Cada_casa_e_um_caso

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  • Esta coleo se compe de 7 livros e 2 DVDs:

    DVD Abrigos Em moVimEnto

    Depoimentos e reflexes sobre o abrigo e suas possibilidades.

    DVD QUE CAsA EssA

    situaes e depoimentos que estimulam a reflexo no que se refere aos preceitos do ECA.

    LIVRO 1 HistriAs DE ViDA: iDEntiDADE E protEo A HistriA DE mArtin

    Um percurso singular representativo de muitas outras histrias de ruptura e separao e os caminhos para a construo/reconstruo de histrias e caminhos possveis

    LIVRO 2 Abrigos Em moVimEnto

    sistematizao de experincias de abrigos que estabeleceram novas aes e projetos de mudana, contando seus avanos e seus desafios na viso dos participantes e parceiros locais.

    LIVRO 3 imAginAr pArA EnContrAr A rEAliDADE: rEflExEs E propostAs pArA o trAbAlHo Com joVEns nos Abrigos

    Uma reflexo coletiva sobre a insero social de jovens abrigados, a construo de um projeto de vida e os caminhos trilhados na busca da autonomia.

    LIVRO 4 rEDEs DE protEo soCiAl

    Estudo do conceito e da aplicao da proposta de redes em seus diversos modelos: a rede familiar de proteo, as redes de servios de proteo, as redes interinstitucionais etc.

    LIVRO 5 CADA CAso Um CAso: A VoZ DAs CriAnAs E Dos ADolEsCEntEs Em AColHimEnto institUCionAl

    Uma reflexo sobre o estudo de caso e plano personalizado de atendimento de crianas em vias de abrigamento ou j abrigadas.

    LIVRO 6 QUEro VoltAr pArA CAsA

    o trabalho em rede e a garantia do direito convivncia familiar e comunitria para crianas e adolescentes que vivem em abrigos.

    LIVRO 7 Abrigo ComUniDADE DE AColHiDA E soCioEDUCAo

    Conjunto de artigos e textos sobre a realidade e o dia-a-dia dos abrigos.

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    ENTO

    CADA CASO UM CASOA VOZ DE CRIANAS E ADOLESCENTES

    EM SITUAO DE ABRIGAMENTO

    COLeO: AbRIgOs em mOVImentO

    A Coleo Abrigos em movimento oferece diversas perspectivas para a reflexo e a ao dos profissionais que trabalham nos programas e servios de acolhimento e que buscam a melhoria do atendimento e a concretizao dos direitos da criana e do adolescente, indicadas pelos novos marcos normativos, visando garantir os parmetros de qualidade j previstos no ECA.

    o abrigo, redefinido pela lei n. 12.010, um servio de acolhimento institucional que integra a proteo social Especial do sistema nico de Assistncia social, compondo, portanto, a rede socioassistencial para atender crianas e adolescentes afastados do convvio familiar em razo de medida protetiva.

    Esta coleo realizada pelo instituto fazendo Histria e pelo neca, com o apoio da secretaria de Direitos Humanos da presidncia da repblica com recursos do fundo nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente rene relatos de experincias, textos de orientao e reflexo, estudos de caso e depoimentos para a disseminao no pas da cultura dos direitos da criana e do adolescente convivncia familiar e comunitria.

    Em alinhamento com a demanda de reordenamento dos abrigos, os livros e os DVDs que compem esta Coleo discutem questes importantes e urgentes, e colocam disposio dos interessados um material de base para processos de formao e superviso da prtica institucional em abrigos ou projetos especiais da rede socioassistencial.

    so pistas e consideraes que os ajudaro a enfrentar os desafios cotidianos e a promover os avanos que a realidade local e institucional requer, que as novas normativas indicam e que a criana e o adolescente merecem, para que possam viver e se desenvolver plenamente.

    boa leitura!

  • CADA CASO UM CASOA VOZ DAS CRIANAS E DOS ADOLESCENTES

    EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

  • SDH Secretaria de Direitos HumanosEsplanada dos Ministrios, Bloco T, sala 420Edifcio Sede do Ministrio da JustiaCEP 70064-900Braslia, DF

    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Secretrio Especial de Direitos HumanosPaulo de Tarso Vannuchi

    Subsecretria de Promoo dos Direitos da Criana e do AdolescenteCarmen Silveira de Oliveira

    Copyright 2010 - Secretaria de Direitos Humanos SDH

    A reproduo do todo ou parte deste documento permitida somente para fins no lucrativos e com a autorizao prvia e formal da SDH/PR.

    Contedo disponvel tambm no site da SDH www.direitoshumanos.gov.br

    Tiragem desta edio: 3.000 exemplares impressos

    Impresso no Brasil

    1 edio: 2010

    O contedo da obra de responsabilidade exclusiva dos autores.

    Distribuio gratuita

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Cada caso um caso : estudos de caso, projetos de atendimento / [coordenao da publicao Dayse C. F. Bernardi] . -- 1. ed. -- So Paulo : Associao Fazendo Histria : NECA - Associa-o dos Pesquisadores de Ncleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente, 2010. -- (Coleo Abrigos em Movimento)

    ISBN 978-85-63512-05-5

    1. Abrigos 2. Crianas e adolescentes - Cuidados institucionais - Estudos de caso I. Bernardi, Dayse C. F.. II. Srie.

    09-09724 CDD-362.732

    ndices para catlogo sistemtico:1. Abrigos : Estudos de caso : Crianas e adolescentes : Bem-estar social 362.7322. Crianas e adolescentes : Abrigos : Estudos de caso : Bem-estar social 362.732

  • CADA CASO UM CASO

    A VOZ DAS CRIANAS E DOS ADOLESCENTES EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

  • CoordenaoDayse Cesar Franco Bernardi

    Participantes da OficinaBruna ElageIvy Gonalves de AlmeidaJanete Aparecida Giorgetti ValenteMichelina Della PortaRicardo AlbuquerqueRilma BentoRita de C. S. OliveiraYara Sayo

    Produo de textosDayse Cesar Franco BernardiIvy Gonalves de Almeida.Janete Aparecida Giorgetti ValenteLilian de Almeida Guimares Solon Maria Clotilde Rossetti-FerreiraMichelina Della PortaRilma BentoRita de C. S. OliveiraYara Sayo

    EdioRicardo Prado

    FotografiaDaniela SavastanoAcervo Neca - p. 50Alexandre Tremanti - p. 76, 86, 126 e 142

    IlustraesAdriana Schiavon

    Projeto grfico e diagramaoFonte Design

    AgradecimentosIsa Guar, Maria Lcia Gulassa e Alessandra Coelho (da Associao dos Pesquisadores de Ncleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criana e o Adolescente Neca).Bruna Elage, Cludia Vidigal, Lola Cuperman (do Instituto Fazendo Histria)Flvia Rosemberg (da Ps-graduao em Psicologia Social da PUC/SP).

  • SAWABONA *

    Eu o respeito

    Eu o valorizo

    Voc importante para mim...

    *Saudao usada por uma tribo da frica.

  • Sumrio

    Introduo

    08 Uma obra coletiva

    Captulo 1

    13 A voz da criana e do adolescente como sujeitos de direitos

    Captulo 2

    19 Abrigos: para quem?

    Captulo 3

    37 Famlias em situao de vulnerabilidade

    Captulo 4

    45 Abandono: uma questo social preocupante

    Captulo 5

    49 A voz das crianas em situao de acolhimento

    Captulo 6

    61 A delicada arte de conversa e de escuta

  • Captulo 7

    85 Relatrio de caso na abordagem social

    Captulo 8

    95 Acolhida e socioeducao em abrigos

    Captulo 9

    117 Desenvolvimento infantil e abrigamento

    Captulo 10

    125 A criana, a famlia, o abrigo e o psiclogo clnico: parcerias mltiplas

    Captulo 11

    139 Servio de acolhimento familiar: programa de famlias acolhedoras

  • * Psicloga Jurdica, Mestre em Psicologia,Social, assessora da Coordenadoria da Infncia e da Juventude do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo; ex-presidente da Asso-ciao dos Assistentes Sociais e Psiclogos do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, Coordenadora do Curso de Especializao em Psicologia Jurdica do Instituto Sedes Sapientiae (SP), Membro do NECA e da equipe responsvel pelo Projeto SIABRIGOS , membro do Grupo de Trabalho Es-tadual Pr Convivncia Familiar e Comunitria (SP), mem-bro de comisso ad hoc do Conselho Federal de Psicologia.

    Introduo

    UMA OBRA COLETIVA

    Dayse Cesar FranCo BernarDi*

    Esta publicao teve como ponto de partida uma oficina realizada com profissio-nais convidados a refletirem coletivamente sobre as prticas habituais de abriga-mento e seus efeitos. Na ocasio perseguamos o objetivo de construir, com base no compartilhamento de nossas experincias, alguns possveis parmetros de ao

    que orientassem todos aqueles que trabalham diariamente com crianas e adolescentes acolhidos. Tambm era necessrio que tais parmetros fos-

    sem coerentes com o Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e

    Comunitria (PNCFC).1

    Cada participante apresentou sua forma de pensar e agir sobre questes centrais do acolhimento institucional e,

    no debate entre ideias e propostas, foi possvel identificar os principais pontos de interseco. Destacaram-se quatro objeti-

    vos gerais, todos girando em torno de um eixo norteador: a voz da criana e do adolescente como sujeitos de direitos.

    1. O desejo de organizar parmetros para que os estudos de caso refletissem a especificidade de cada criana e adolescente, conside-rando sempre sua insero nos contextos familiar e comunitrio.

    2. A necessidade de se elaborar um Plano Individual de Atendi-mento (PIA) no qual a criana e o adolescente participassem

    como sujeitos ativos, para que o plano respondesse de fato s suas peculiaridades de pessoas em desenvolvimento.

  • 1 .

    2 Como j indicam a Doutrina de Proteo Integral das Naes Unidas e o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), alm da condio de sujeito de direitos, a criana e o adolescente esto em situao peculiar de pessoa em desenvolvimento.

    3 ECA artigo 98 As medi-das de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaados ou violados: I. Ameaa ou violao dos direitos por ao ou omisso da sociedade e do Estado; II. Falta, omisso ou abuso dos pais ou responsveis; III. Em razo de sua conduta.

    3. A reflexo em torno das consequncias que informes e relatrios de casos tinham sobre a deciso judicial de acolhimento institucional.

    4. A necessidade de estabelecer parmetros para a elaborao de documentos, considerando sempre as caractersticas do sujeito e da situao vivida por aquela criana ou aquele adolescente.Para perseguir estes quatro objetivos principais, ficou claro que seria muito

    importante que a criana e o adolescente fossem ouvidos de maneira atenta e cuidadosa, e que recebessem dos profissionais todas as informaes possveis re-ferentes sua situao. Essa compreenso baseia-se na premissa de que a criana e o adolescente, sujeitos de direitos,2 devem emitir opinies e participar das decises que digam respeito s suas vidas. Parece lmpido e claro, mas na prtica nem sem-pre assim que acontece.

    A palavra sujeito traduz a concepo da criana e do adolescente como indivduos autnomos e ntegros, dotados de personalidade e vontade prprias que, na sua relao com o adulto, no podem ser tratados como seres passivos, subalternos ou meros objetos, devendo participar das decises que lhe digam respeito, sendo ouvidos e considerados em conformidade com suas capacidades e grau de desenvolvimento (PNCFC, 2007, p. 28).

    Havia a preocupao de desenvolver um trabalho articulado, no qual o abrigo fosse compreendido como uma medida de proteo provisria e excepcional, des-tinada a acolher crianas e adolescentes quando seus direitos fossem ameaados ou violados,3 exigindo providncias do Estado para sua recomposio. Todas as modalidades de acolhimento institucional ou de entidades que desenvolvem pro-gramas de abrigo, tais como Abrigo institucional, Casas-lar ou Casas de Passagem, devem, portanto, prestar assistncia criana e ao adolescente ofertando-lhes aco-lhida, cuidado e espao para sua socializao e desenvolvimento.

    No fcil lidar com violaes de direitos e com o impacto que estas tm sobre os vnculos. Mais difcil ainda construir formas de atendimento especfi-cas para cada caso, de forma que a passagem pela instituio fosse pensada como um caminho que emancipasse esses jovens. Emergiu desta reflexo uma questo que julgamos fundamental ser respondida pela oficina e, indiretamente, por esta publicao: como os abrigos podem mudar seu modo de olhar e de fazer para que crianas e adolescentes sejam tratados como sujeitos de direitos de maneira indis-socivel do seu contexto sociofamiliar e comunitrio? Eis a questo.

    Conclumos que s podemos mudar nossas ideias e modos de agir se com-preendermos que nosso trabalho integra um movimento coletivo e articulado na efetivao de direitos, possibilitando avano na promoo, proteo e defesa do direito convivncia familiar e comunitria, ampliando a concepo de cidadania para incluir as crianas e os adolescentes e suas famlias com suas necessidades prprias.

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  • Desta forma, o Caderno Cada caso um caso nos permitiu acompanhar todas as etapas de um acolhimento institucional ou familiar, vistas por diferentes ngulos e profissionais, indicando a oportunidade de se construrem referncias para uma prtica de acolhida e socioeducao que esteja referendada nos prin-cpios da proteo integral do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA),3 nas normativas do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) e no Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria (PNCFC).

    A acolhida aqui se refere ao sentido que se d escuta, ao respeito e ao modo de receber a criana e o adolescente, sem nenhum tipo de intolerncia ou discri-minao econmica, social e pessoal. Ver a criana e o adolescente como pessoas que, por razes diversas, fazem a travessia de uma situao de vulnerabilidade para um programa de garantia de direitos por meio de um servio de acolhimento institucional ou familiar. A qualidade desta passagem de vida poder lhes garantir convvio, equidade e autonomia.

    Com base nos textos elaborados pelos participantes deste Caderno, pudemos repensar as formas de compreender o problema e de agir sobre questes centrais das modalidades de acolhimento. Com o debate entre ideias e propostas, foi poss-vel identificar e sistematizar pontos de interseco, norteadores para uma prtica que emancipe todos os atores sociais que lidam, direta ou indiretamente, com questes de ameaa e violao de direito de crianas e adolescentes.

    PONTOS IMPORTANTES, PARA COMEO DE CONVERSA1. Distinguir a pobreza do abandono evitando que a privao do convvio fa-

    miliar seja motivada unicamente pela situao de pobreza, provendo apoio famlia e combatendo a discriminao por meio de articulao entre o siste-ma de justia e as polticas sociais.

    2. Reconhecer em quais situaes o acolhimento institucional indicado e, nes-tes casos, fazer desta fase de vida um momento rico de aprendizagem entre pares que permita, criana e ao adolescente acolhido, superar as perdas e se desenvolver com liberdade e dignidade.

    3. Observar parmetros tcnicos e ticos para que os estudos de caso reflitam a especificidade de cada criana e adolescente, considerando sempre sua inser-o nos contextos familiar e comunitrio.

    4. Elaborar e implementar um Plano Individual de Atendimento(PIA), no qual a criana e o adolescente participem como sujeitos ativos, sendo ouvidos, para que o planejamento responda s suas peculiaridades de pessoas em desenvol-vimento, considerando sempre suas possibilidades, habilidades e interesses.

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  • 5. Refletir sobre as relaes entre os contedos de informes e relatrios de casos sobre a deciso judicial, bem como sobre as consequncias para as pessoas envolvidas, tendo como princpio fundamental e prioridade que a criana e o adolescente sejam tratados como sujeitos de direitos.

    6. Estabelecer parmetros para que a elaborao de documentos considere sem-pre as caractersticas do sujeito e da situao na qual est inserido, respeitan-do suas particularidades sem juzos de valor.

    7. Respeitar o direito de participao e de informao de crianas, adolescentes e suas famlias sobre as decises que lhes digam respeito.

    8. Construir, conjuntamente, formas de superao das dificuldades esgotando as possibilidades de reintegrao familiar, um direito inalienvel de todas as crianas e todos os adolescentes acolhidos.

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  • 4 Diz respeito a como a criana formada e educada, nas relaes com as outras pessoas (adultos e crianas), adquirindo valores e normas de seu grupo de referncia social, cultural e poltico.

    Captulo 1

    A VOZ DA CRIANA E DO ADOLESCENTE COMO SUjEITOS DE DIREITOS

    Dayse Cesar FranCo BernarDi

    A maturidade das crianas um fato biolgico, mas a forma como ela com-preendida e lhe atribuem significados um fato da cultura (James e Prout, 1997).

    Dar voz s crianas em situao de abrigamento tem como pressuposto o fato de que elas tm o que dizer e deveriam ser ouvidas por todos aqueles que participam da deciso e dos procedimentos de acolhimento institucional ou familiar. Mas o que significa ouvir crianas, se no so elas que decidem seus destinos?

    Este Caderno traz para a arena do debate a necessidade de pensarmos quais as concepes de infncia que vm orientando nossos procedimentos. Se, por exemplo, concebemos o sujeito criana como tbula rasa, amorfo, determinado ou moldado pelo processo de socializao,4 possivelmente no teremos prticas no abrigo ou na famlia que estimulem sua participao. Se, por outro lado, em fun-o da imaturidade biolgica, pensarmos a infncia como um dado da natureza, isto , como um componente natural e universal dos grupos humanos, deixamos de perceber o quanto a infncia adquire sentidos e significados diversos conforme o contexto social e histrico no qual ela se desenvolve.

    Da mesma forma que as famlias mudam seus desenhos, sua forma de cons-titurem laos (monoparentais, reconstitudas, homoafetivas), a infncia e a ju-ventude, como etapas da vida, desenvolvem especificidades de acordo com o mo-mento histrico e social em que vivem. Assim, uma criana de 6 anos que more no centro da cidade de So Paulo pode ter um repertrio muito diferente de outra, da mesma idade e sexo, que viva no meio rural do mesmo estado.

    Estudos contemporneos sobre a infncia nos confirmam o quanto esta eta-pa da vida no pode ser compreendida apenas por seu componente biolgico e

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  • tm se proposto a desnaturalizar o conceito acolhendo um novo paradigma, no qual a categoria infncia vista como uma construo social.

    EM NOME DO PRESENTE

    A perspectiva de estudiosos contemporneos como James e Prout (1997), citados na epgrafe desta introduo, critica as teorias tradicionais de desenvolvimento e nos ajuda a compreender as sociedades contemporneas como adultocntricas, isto , centradas nos adultos. Consequentemente, as prticas sociais atuais tendem a sustentar relaes assimtricas entre adultos, adolescentes e crianas, mantendo uma subordinao por idade, de forma semelhante s relaes desiguais de classe, gnero e etnia. Desta forma, as diferenas de idade, tamanho e fora so tratadas como desigualdades de poder.

    A lei dispe que a infncia e a adolescncia gozam dos mesmos direitos dos adultos direitos humanos consagrados a todas as pessoas e, alm destes, de direitos especiais, em funo de sua condio peculiar de pessoas em desenvol-vimento. Os direitos especiais compem a proteo integral que assegura, por lei e por outros meios, todas as oportunidades e facilidades s crianas e aos adoles-centes, a fim de lhes facultar o desenvolvimento fsico, mental, moral, espiritual e social, em condies de liberdade e dignidade (ECA artigo 3).

    Contudo, estes direitos especiais tm sido escamoteados por aes que fazem da dependncia fsica e psicolgica da infncia e da adolescncia uma forma de inferiorizar. Nesta perspectiva, a criana e o adolescente so conduzidos, enca-minhados e guardados em nome do futuro. Suas vidas no presente so, invariavel-mente, ignoradas, observadas por lentes tcnicas de avaliao, de mensurao e de caracterizao de potenciais. So meios utilizados como baluartes de prognsti-cos, parece que a servio de responderem o que podero vir a ser no futuro?.

    Como pensamos de forma totalmente diferente, neste Caderno trabalhare-mos outro enfoque, voltado ao presente. Nossas perguntas so:1. Como as crianas e os adolescentes do abrigo esto hoje?2. Como elas podem participar das decises e dos programas sociais a que tm

    direito?3. O que ns podemos fazer juntos com elas e para elas?

    Nesta direo, adotamos a proposta da pesquisadora inglesa Erica Burman (1999) para quem temos que estudar no apenas a criana, mas, tambm, o contexto (isto , a situao interpessoal, cultural, histrica e poltica) que a produz.

    Para que possamos conhecer e lidar com a realidade determinante da situao de acolhimento institucional, precisamos, antes de tudo, nos despir desta tradio de olhar para crianas e adolescentes como vasos vazios, como seres incompletos. Em vez disso, adotar a perspectiva de que, para conhecer e lidar com pessoas,

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  • precisamos ter clareza do possvel alcance de nossas aes. Elas podem servir tan-to para interagir, construir algo em comum, descobrir nossa humanidade mais profunda na relao com os outros quanto para manter crianas e adolescentes subjugados ao nosso modo de fazer e decidir por elas.

    ESTERETIPOS INFANTIS

    Por que os adultos costumam ter tanta dificuldade para aceitar a participao das crianas? Muitos tm concepes tradicionais sobre a infncia e a veem como um perodo de proteo e inocncia ou consideram a criana um adulto em miniatura, que precisa de uma dura disciplina para aprender a cuidar de si mesmo e garantir sua sobrevivncia. Ainda resiste a idea de que a criana deve ser moldada de acordo com os adultos para que se transforme em elemento til para a sociedade. Os adultos creem que o estgio final a ser atingido a vida adulta. S que, na verdade, todos ns estamos em constante vir-a-ser, ou seja, em constante transformao e crescimento. As concepes sobre a infncia so histrica e socialmente construdas, o que significa que elas mudam com o passar do tempo e com o contexto. Mesmo dentro da mesma sociedade, podemos encontrar diferentes maneiras para descrever essa fase da vida. A maneira como enxergamos essa fase tem impacto em como os adultos respondem s crianas. Assim, se, para o adulto, a criana est sempre no papel passivo em relao ao prprio processo de desenvolvimento, difcil compreender que a ela possa emitir opinies e fazer escolhas sobre as questes que afetam sua vida e que tm um papel ativo na determinao de seu prprio desenvolvimento.

    (Adaptado de Primeira infncia, 2007 Participao infantil ProMundo)

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  • Embora possam parecer complexas, as representaes de infncia e de cuidado fazem parte de nosso cotidiano, ora nos movendo para aes de manuteno da cultura adultocntrica, ora inspirando prticas transformadoras que permitam infncia uma participao social compatvel com sua capacidade de compreenso e expresso de sentimentos e ideias, de comunicao de experincias e de opinies.

    Para que nossas aes nos servios de acolhimento e nas instncias defini-doras do uso desta medida de proteo possam se revestir de uma atitude tica e comprometida com a concepo de que crianas e adolescente so sujeitos de di-reitos ativos, participantes da sociedade, precisamos conhecer, aprofundadamen-te, os princpios e as diretrizes atuais para o acolhimento institucional como um servio de proteo social especial de alta complexidade.

    Este Caderno apresenta e discute alguns procedimentos e instrumentais de trabalho que, de maneira articulada, visam garantir s crianas e aos adolescentes acolhidos nos abrigos um atendimento respeitoso e que os emancipe, sendo trata-dos de fato como sujeitos de direitos no no discurso, mas na prtica cotidiana. Entendemos que esses procedimentos de trabalho podem ser muito teis para profissionais de abrigos, membros dos Conselhos Tutelares, juzes, promotores, defensores pblicos, equipes interdisciplinares das Varas da Infncia e Juventude, equipes tcnicas das Secretarias Municipais, alm das organizaes no governa-mentais que participam do Sistema de Garantia de Direitos e Sistema nico de Assistncia Social.

    Veja, a seguir, alguns procedimentos e instrumentais que sero discutidos ao longo desta publicao. Estudosdecaso. EstudosocialepsicolgiconainterfaceabrigoeVaradaInfnciaedaJuventude

    (VIJ). PlanoIndividualdeAtendimento(PIA). Observaoeregistrodeaspectosdodesenvolvimentopessoalegrupal. Observaoeintervenoemmomentosdevisitas. Acompanhamentodecasos. Encaminhamentoarecursosdacomunidade;aoarticuladaemrede. Elaboraodeinformes,relatrios,laudosepareceres. Sistemainformatizadosobrecrianaseadolescentesabrigados(Siabrigos).

    Tais procedimentos j so utilizados pelos vrios profissionais que integram o fluxo de atendimento s crianas, aos adolescentes e s famlias em situao de abrigamento, de acordo com suas respectivas disciplinas. Contudo, na prtica cotidiana, invariavelmente, somos convidados a transpor os recortes disciplinares e integrar nossos conhecimentos numa prtica interdisciplinar e intersetorial, capaz de romper com o isolamento institucional e promover aes articuladas em rede5 para garantir avanos na resoluo de casos, na consolidao de polticas pblicas, no fortalecimento de aes de defesa e de ampliao de direitos.

    5 Para saber mais sobre redes e atendimento interssetorial,

    consulte o caderno Redes de Proteo Social, nesta Coleo

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  • O uso de procedimentos e tcnicas por profissionais da rede de atendimento parte de um ponto comum: a compreenso de que cada caso um caso e de que cada criana e adolescente deve ser conhecido em sua especificidade de pessoa em desenvolvimento.

    Nosso desafio, portanto, saber como ouvir cada criana e adolescente con-siderando sua especificidade, ou seja, que ela faz parte de um contexto com o qual se relaciona de forma integrada. Ela constri e construda pelas relaes que estabelece em seu contexto de vida.

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  • Captulo 2

    ABRIGOS PARA QUEM?

    Dayse Cesar FranCo BernarDi

    Considerar o direito da criana e do adolescente opinio e participao pode soar estranho. Para alguns, seria mais uma das infindveis conversas, debates e discursos sobre utpicos direitos da infncia e da adolescncia brasileira quando estamos tratando das razes pelas quais ela ainda precisa ser acolhida em abrigos ou famlias distintas, como famlias acolhedoras, por exemplo.

    As formas de acolhimento institucional ou familiar so medidas de proteo excepcionais e provisrias. A reinsero da criana e do adolescente em sua famlia e na comunidade de origem a meta prioritria. No entanto, em nosso pas, os indicadores sociais mostram que as crianas e os adolescentes so a parcela mais exposta s consequncias nefastas da excluso social (SILVA, 2004), ou seja, o elo mais frgil no quadro de desigualdade socioeconmica que compromete a garan-tia dos direitos bsicos de todos os cidados brasileiros. Crianas e adolescentes representam hoje 46% dos 50 milhes de brasileiros que vivem na pobreza (em famlias com renda per capita de at meio salrio mnimo). Destaca-se ainda que 53% das crianas de zero a 6 anos vivem nesta situao.6 Contudo, segundo Cury (2008) H uma lamentvel confuso conceitual entre abandono e pobreza, uma vez que a maioria das crianas pobres, mesmo as que esto nas ruas ou recolhidas em abrigos, possuem vnculos familiares. Os motivos que as levam a essa situao de risco no so, na maioria das vezes, a rejeio ou a negligncia por parte de seus pais, e sim as alternativas de sobrevivncia.

    Parece improvvel, diante deste quadro social, conjugarmos a garantia de di-reitos fundamentais de cidadania, agregando infncia e adolescncia espaos de expresso de suas prprias experincias de vida, quando estas so marcadas pela violao de todos os direitos fundamentais, entre eles o da convivncia fami-liar e comunitria

    Contudo, mais do que um convite para pensarmos e agirmos nesta perspec-tiva, procuramos aqui ressignificar o sentido desta medida de proteo. O ter-mo acolhimento refere-se s experincias de cuidados prestados s crianas e aos adolescentes fora de sua casa, que, mesmo ocorrendo em carter excepcional e

    6 IBGE/PNAD 2004, tabulao especial IBGE/Unicef

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  • temporrio, podem se constituir em um espao de proteo e de desenvolvimento. Rizzini considera que a distino entre acolhimento institucional e familiar est ligada ideia de acolhimento como antagnica noo de institucionalizao, como prtica de confinamento e segregao (RIZZINI, 2006, p. 23).

    Acolher , ento, estar aberto para proteger e educar, auxiliando na pas-sagem rumo famlia original ou substituta. bem diferente de recolher e guardar. Acolher faz parte das premissas da proteo integral, que a estadia pro-visria, porm qualificada, para desenvolver o trabalho educacional que busca a reinsero familiar.

    Entendemos que a insero de crianas e adolescentes em programas de acolhimento institucional deveria acontecer apenas quando eles so submetidos a situaes graves de abandono, vitimizao, explorao sexual e de trabalho, des-de que essas agresses no possam ser interrompidas com sua permanncia na famlia de origem (natural ou extensiva), famlia de apoio ou mesmo junto sua comunidade. O acolhimento tambm se torna uma necessidade quando a criana e o adolescente se encontram em situao de abandono, fuga do lar e vivncia de rua, situaes que denunciam vulnerabilidade social e pessoal.7

    Assim, entendemos que acolhimento institucional uma das respostas de proteo do Estado a situaes especficas de violao de direitos, quando esgota-das as possibilidades de resoluo no ambiente familiar e comunitrio da crian-a e do adolescente em questo. O abrigo tem a responsabilidade de zelar pela integridade fsica e emocional de crianas e adolescentes que, temporariamente, necessitem viver afastados da convivncia com suas famlias, promovendo formas de cuidado e de educao em ambiente coletivo, pequeno e dotado de infraestru-tura material e humana capazes de proporcionar, ao acolhido, condies de pleno desenvolvimento.

    O trabalho articulado com a rede de servios da comunidade permite aos abrigos fazer deste perodo de vida da criana e do adolescente uma passagem rumo sua reinsero comunitria. O Instituto Fazendo Histria (2008) conside-ra que o abrigo cumpre um papel social desafiador e contraditrio, em funo de conjugar o carter provisrio da medida e, ao mesmo tempo, ser um espao de vnculos e afetos, para lidar com situaes complexas de abandono, violncia ou negligncia. Define o abrigo como um espao no qual as crianas e os adolescen-tes se sintam protegidos e criem vnculos de confiana. Ele existe para ser um lugar de acolhimento e socializao, que favorea o desenvolvimento da autonomia e da criatividade (2008, p. 29).

    Neste sentido, discutir como o acolhimento institucional pode vir a ser uma medida provisria, mas eficaz, em seu trabalho de aproximar e fazer a passagem da criana e do adolescente para bases de apoio familiares e comunitrias torna-se uma meta mais vivel quando entendemos que crianas e adolescentes podem ser sujeitos ativos na transformao da prpria histria.

    7 Vulnerabilidade: quando se refere aos grupos ou

    indivduos que, por diversos motivos, so mais atingidos

    pelos efeitos das desigualda-des socioeconmicas e pela

    precariedade das polticas pblicas. Risco: tende a

    indicar algum tipo de perigo, demandando medidas de

    proteo, independentemen-te da condio social (RIZZINI,

    2000)

    20

  • O ECA nos convida a pensar, pela perspectiva da proteo integral, o direito de todas as crianas e todos os adolescentes e, assim, apostar nas polticas sociais de ampla cobertura que possam, de fato, contribuir para a diminuio das cir-cunstncias que prejudicam seu desenvolvimento integral. Pouco se tem traba-lhado para prevenir e erradicar as causas do abandono e da violncia estruturais, por exemplo, fortalecer as bases de apoio familiares e comunitrias para crianas e adolescentes. Bases de apoio, segundo Rizzini e Barker (2000), so os elementos fundamentais que compem os alicerces do desenvolvimento integral da criana. So recursos familiares e comunitrios que oferecem segurana fsica, emocional e afetiva a crianas e jovens. Referem-se tanto a atividades ou organizaes formais (creches, escolas, programas religiosos, clubes, centros juvenis...), quanto a formas de apoio espontneas ou informais (redes de amizade e solidariedade, relaes afetivas significativas, na vida das crianas e jovens, oportunidades disponveis na prpria comunidade que contribuam para o seu desenvolvimento integral), como refletimos no Caderno Redes de Proteo Social, desta Coleo.

    DO CDIGO DE MENORES AO ECA

    Historicamente, a trajetria dos cuidados institucionais com a infncia no Brasil esteve sempre marcada pela distino entre pobres e ricos. A infncia e a ado-lescncia pobre eram, e ainda so, tratadas como uma gerao em e de risco, compreendida como um problema merecedor de aes especiais do aparato es-tatal. Partia-se de uma perspectiva correcional e repressiva, visando proteger a sociedade de crianas e adolescentes pobres, estigmatizados como menores, isto , como crianas perigosas (ver Referncias bibliogrficas). O advento do Esta-tuto da Criana e do Adolescente, mudou a perspectiva de tutela e vigilncia para crianas e adolescentes em situao irregular, perspectiva esta presente no Cdi-go de Menores de 1979, para a garantia de direitos e proteo integral.

    Assim, at a dcada de 1990, as crianas e os adolescentes de famlias pobres eram tratados como riscos, considerados desviantes em potencial a merecer con-trole e vigilncia do Estado para impedir uma possvel manifestao de sua natu-reza criminosa. Conceitos sustentados pela cincia mdica e jurdica da poca ten-diam a aproximar pobreza e criminalidade. Conceituavam crianas e adolescentes como abandonados, carentes e infratores, isto , como menores sustentando ideologicamente relaes de dominao/submisso.

    Sob este prisma, crianas e adolescentes pobres e em situao de risco neces-sitavam da interveno de adultos qualificados (especialistas, mdicos, educado-res), capazes de lhes definir e preencher as faltas, os vazios, as ausncias, as inca-pacidades. Alm disso, os especialistas seriam imprescindveis para identificar e tratar, estrategicamente, do duvidoso carter moral daqueles menores, para que eles no oferecessem riscos sociedade.

    21

  • Para esta tarefa higienizadora, o Estado associava medidas saneadoras de assis-tncia social e medidas legais, restritivas, que intervinham nas famlias pobres e pro-moviam a institucionalizao de seus filhos. O Estado substitua as famlias conside-radas carentes, desestruturadas, por programas de parentagem pblica8 internatos, educandrios ou orfanatos. Nesta tradio a de segregar segmentos da sociedade em funo da idade e das condies de miserabilidade de sua famlia as pesso-as acabavam sendo responsabilizadas por sua misria. As desigualdades de classe, de gnero, de etnia e de gerao no eram analisadas em sua transversalidade e as situaes sociais de desigualdade, opresso e violncia eram vistas como quadros particulares, explicados, muitas vezes, pelo vis da natureza psicolgica das pessoas. Neste quadro, os profissionais, mesmo que muito bem intencionados, auxiliavam a manter institucionalizado um grande nmero de crianas e adolescentes, em regi-mes fechados de internao, sem contato com seus meios de origem.

    A perspectiva correcional e repressiva embasava a legislao menorista. O Cdigo de Menores de 1927 e de 1979 era centrado nos conceitos de desvio e de irregularidade. A viso filantrpica, associada policial, manteve seus princpios e prticas asilares durante a implantao da Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor, nas dcadas de 1960 a 1990.

    A CONSTITUIO E O ECA

    Ao longo do sculo XX, as diretrizes para as aes sociais voltadas a este segmen-to populacional foram sendo paulatinamente alteradas. No bojo das mudanas polticas vividas no pas durante os anos de redemocratizao, no qual houve a transio da ditadura ao Estado Democrtico de Direito, a Constituio Federal de 19889 redefiniu as prioridades e o enfoque que o Estado deveria dar s ques-tes relacionadas infncia e adolescncia adotando as diretrizes da Conveno Internacional dos Direitos da Infncia (ONU, 1989), materializada em tratados e convenes aceitas pelos pases signatrios. Deste modo, a Constituio Fede-ral disps sobre os direitos fundamentais da infncia e da adolescncia acatando os princpios da Doutrina de Proteo Integral. A partir deste novo paradigma, crianas e adolescentes passam a gozar direitos especiais e prioritrios de proteo em funo de sua condio peculiar de desenvolvimento e, simultaneamente, dos direitos humanos consagrados a todas as pessoas, conforme artigo 3 do ECA.

    A garantia de prioridade na efetivao dos direitos compreende, segundo o artigo 4 da Constituio: aprimaziadereceberproteoesocorroemquaisquercircunstncias; precednciadeatendimentonosserviospblicosouderelevnciapblica; preferncianaformulaoenaexecuodaspolticassociaispblicas; destinao privilegiada de recursos pblicos nas reas relacionadas com a

    proteo infncia e adolescncia.

    8 Refere-se prtica de educao coletiva por

    profissionais, em instituies ou organizaes sociais, em

    substituio aos pais, familia-res ou responsveis legais.

    9 A Constituio Federal incorporou a dimenso social

    da cidadania ao ordenamento jurdico.

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  • Graas mobilizao e organizao social ocorrida durante o processo cons-tituinte e regulamentao de lei especfica (o Estatuto da Criana e do Adoles-cente, de 1990), o valor intrnseco da criana e do adolescente como ser humano foi afirmado claramente. Fixava-se, assim, um novo paradigma para entender a infncia e a juventude, que adotava a concepo de que todas as crianas e todos os adolescentes so sujeitos de direitos, independentemente de suas condies sociais e, como tais, tm o direito de exercer os mesmos direitos civis, humanos e sociais dos adultos.

    A proteo integral tem como fundamento

    [....] a concepo de que crianas e adolescentes so sujeitos de direitos frente famlia, sociedade e ao Estado rompe com a ideia de que sejam simples objetos de interveno no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condio peculiar de pessoas em desenvolvimento (CURY et al., 2000, p. 19).

    Entre as mudanas introduzidas pelo ECA (1990) e reiteradas pelo Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa da Convivncia Familiar e Comunitria (2006), destaca-se o reordenamento das entidades de acolhimento institucional. Estas instituies devem oferecer suporte de carter excepcional e provisrio, com o propsito de promover a reintegrao ou reinsero familiar e comunitria. Tais mudanas definem os servios de acolhimento para crianas e adolescentes, sejam eles de natureza pblico-estatal ou no estatal, como servios de proteo social de alta complexidade do Sistema nico de Assistncia Social, cujas aes devem ser pautadas nos referenciais do Estatuto da Criana e do Adolescente e nos marcos normativos posteriores, relativos ao direito da criana e do adolescente e assis-tncia social.

    COMO SE MUDA UM PARADIGMA

    Estas normativas legais estabeleceram os parmetros para as aes de cuidado e socioeducao da criana e do adolescente. Passaram a incluir as famlias como ponto nodal do trabalho redefinindo a relao entre os profissionais do abrigo e as pessoas do crculo de relaes das crianas e dos adolescentes. Contudo, a mu-dana da lei no tem sido suficiente para alterar a realidade. Vises culturais que se tornaram anacrnicas no que diz respeito legislao em vigor permanecem, j que foram sustentadas ideologicamente em nossa sociedade ao longo do tempo. Do mesmo modo, perduram os preconceitos em relao s famlias e situao de miserabilidade, considerados sinnimos de abandono.

    Colocadas na prtica, as normativas funcionariam como baluartes de mu-danas possveis e desejveis. Entretanto, mudar preconceitos e evitar a estigma-

    23

  • tizao de pessoas exige uma postura nova e corajosa. Para dar ferramentas ne-cessrias s mudanas de postura no olhar, no escutar, no conversar e no fazer cotidiano foram elaboradas as Orientaes Tcnicas10 que explicitam aspectos do Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito Convivncia Familiar e Comunitria. Elas oferecem subsdios tcnicos e metodolgicos para o projeto de atendimento dos abrigos e discutem apontando os casos e situaes para os quais cada medida mais indicada. Todas as referncias legais salientam a necessidade de aes interssetoriais para que as famlias cujos filhos estejam abrigados unicamente pela situao de pobreza sejam includas, com prioridade, em servios e programas que facilitem o processo de reintegrao familiar da criana e/ou do adolescente. Indicam, ainda, a necessidade de se buscar recursos sociais que permitam s mes conciliarem sua rotina de trabalho e sustento do lar com as tarefas de cuidado e educao da prole, tais como creches e ncleos socioeducativos.

    A deciso pelo acolhimento institucional ou familiar da criana e do adoles-cente depende, atualmente, de avaliaes sociais, psicolgicas e jurdicas sobre a pertinncia do afastamento da famlia. Os resultados permitiriam uma indicao mais precisa de qual das modalidades possveis de acolhimento11 poder respon-der de forma mais eficaz s necessidades das crianas e dos adolescentes neste determinado momento de suas vidas.

    Ainda precisamos implementar muitas das mudanas dispostas no ECA, en-tre elas a prpria concepo de infncia e adolescncia do Estatuto e, por conse-guinte, nossa forma de compreender e de agir com crianas e adolescentes em todas as situaes, e no apenas nas de vulnerabilidade ou risco social.

    Para tanto, organizamos a seguir as situaes que ensejam o uso da medida de acolhimento, as modalidades de acolhimento possveis e em quais casos o afas-tamento do convvio familiar poder ser indicado.

    SITUAES DE ACOLHIMENTO

    A deciso pelo afastamento do convvio familiar extremamente sria e ter pro-fundas implicaes, tanto para a criana quanto para a famlia. Portanto, deve ser aplicada apenas quando representar o melhor interesse da criana ou do adoles-cente e o menor prejuzo ao seu processo de desenvolvimento (Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito Convivncia Familiar e Comunitria).

    A difcil deciso sobre qual ser a medida de proteo mais adequada situao vi-vida por crianas e adolescentes cabe ao Conselho Tutelar e Justia da Infncia e Juventude.12 Ambas so instncias de deciso com atribuies de atender as crian-as e os adolescentes em situaes de violao de direitos e de aplicar as medidas de proteo13 previstas pelo ECA.

    10 Orientaes Tcnicas: servios de acolhimento

    de crianas e adolescentes. Conanda e CNAS, 2009.

    11 Existem diversas moda-lidades de servio de acolhi-

    mento para o atendimento de crianas e adolescentes. Ver

    adiante neste captulo.

    12 Conhea suas atribuies adiante neste captulo.

    13 ECA, os artigos 136 a 137 dispem sobre as atribuies

    do CT e o artigo 101 estabele-ce as medidas especficas de

    proteo.

    24

  • Os conselheiros tutelares, os profissionais da equipe interprofissional das Va-ras da Infncia e Juventude, o magistrado, o promotor pblico e o defensor p-blico so atores que integram o Sistema de Garantia de Direitos, acionado sempre que direitos fundamentais de crianas e adolescentes so ameaados ou violados pela sociedade famlia ou Estado.

    O que proteo integral?

    O captulo II do ECA define que a criana e o adolescente tm direito liberdade, ao respeito e dignidade como Direitos Fundamentais da pessoa humana: Art. 15 a criana e o adolescente tm direito liberdade, ao respeito e dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituio e nas leis;Art. 16 O direito liberdade compreende aos seguintes aspectos:I ir, vir e estar em logradouros pblicos e espaos comunitrios, ressalvadas as restries legais;II opinio e expresso;III crena e culto religioso;IV brincar, praticar esportes e divertir-se;V participar da vida familiar e comunitria, sem discriminao;VI participar da vida poltica, na forma da lei;VII buscar refgio, auxlio e orientao.Art.17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade fsica, psquica e moral da criana e do adolescente, abrangendo a preservao da imagem, da integridade, da autonomia, dos valores, ideias e crenas e objetos pessoais.Art. 18 dever de todos velar pela dignidade da criana e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatrio ou constrangedor.

    25

  • CENTRALIDADE NA FAMLIA

    Toda ao ou omisso que coloque a criana e o adolescente em situao vulner-vel e propcia a violaes de sua integridade fsica, psquica e moral e sua digni-dade como pessoa considerada uma ameaa. Contudo, aquilo que considerado ameaador para uns pode no ser para outros. Apenas conhecendo profundamen-te a situao vivida pelas pessoas implicadas, tendo por base seus contextos sociais e culturais, que poderemos concluir sobre o quanto aquela ameaa real.

    Vamos imaginar que uma criana de 6 anos cuide de seu irmo de 6 meses na ausncia de sua me, que trabalha fora. Esta uma situao comum em vrias famlias brasileiras. Um profissional ou conselheiro que tenha como pressuposto que crianas de 6 anos no tm capacidade de proteger adequadamente um beb poder ver esta situao como de muito risco para ambas, decidindo pela necessi-dade de uma interveno.

    Para que a interveno ocorra, um estudo de caso14 deve ser realizado, com base nas diretrizes fixadas pela normativa legal, visando garantia ao direito de convivncia familiar e comunitria e priorizando aes protetivas da famlia, vista como um ncleo de cuidado e de educao da criana. Segundo o artigo 100 do ECA, na aplicao das medidas de proteo, deve-se levar em conta as necessida-des pedaggicas da criana e do adolescente, dando-se preferncia quelas que visem ao fortalecimento dos vnculos familiares e comunitrios.

    Esta diretriz implica que tanto a equipe interdisciplinar do Poder Judi-cirio quanto o Conselho Tutelar e os servios de diagnstico a ele relacionados devem contemplar todas as medidas protetivas anteriores ao acolhimento institu-cional da criana e do adolescente, trabalhando de forma interssetorial para que as medidas voltadas famlia possam ser efetivadas, de acordo com as diretrizes do ECA.

    Reafirmando a importncia do convvio familiar, o Plano Nacional de Pro-moo, Proteo e Defesa da Convivncia Familiar e Comunitria estabelece pa-rmetros e aes para a garantia deste direito, e o Sistema nico da Assistncia Social elege a famlia e o territrio como eixos centrais da ao social. O entendi-mento que no possvel combater os problemas relativos infncia e adoles-cncia sem trabalhar o seu meio familiar e comunitrio. Para tanto, importante que o municpio conte com o apoio e acompanhamento sociofamiliar na proteo social bsica, por meio dos Centros de Referncia da Assistncia Social CRAS, e na proteo social especial, por meio dos Centros de Referncia Especializado de Assistncia Social Creas.

    14 No captulo 6, ser abor-dado como um procedimento

    utilizado antes, durante e aps o acolhimento institu-

    cional ou familiar.

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  • VIOLAO DE DIREITOS

    Por outro lado, h situaes de emergncia nas quais a violao de direitos ex-plcita e grave o suficiente para que a medida de acolhimento institucional seja utilizada como a forma mais segura de proteo. Nesta situao, a medida im-prescindvel manuteno da integridade fsica e psicolgica da criana e do ado-lescente. H situaes em que o acolhimento utilizado para proteo da vida, por exemplo, no caso de crianas e adolescentes ameaados de morte e includos em projetos especficos, tais como o Programa de Proteo Criana e ao Adolescente Ameaados de Morte (PPCAM).15 No entanto, mesmo as situaes emergenciais so diferentes entre si e devem ser conduzidas de acordo com as particularidades de cada caso. Para o GT Nacional, a avaliao do grau de violao e dos tipos de situaes emergenciais de crise podem servir de parmetros diagnsticos para as decises a serem tomadas.16

    Inicialmente, deve-se avaliar quando necessrio o imediato afastamento da criana ou do adolescente do contexto familiar ou se, em vez disso, possvel afas-tar o desencadeador do risco, muitas vezes o prprio genitor ou uma referncia familiar importante.

    QUANDO PODE SER NECESSRIO AFASTAR A CRIANA DE SUA FAMLIA

    1. Nos casos de violncia sexual, violncia fsica, trfico e uso abusivo de dro-gas ou situaes de negligncia grave que comprometam a integridade fsica e emocional da criana e que no possam ser solucionados imediatamen-te. Mesmo assim, primeiro devem ser buscadas solues que mantenham a criana protegida na famlia extensa ou em famlias da rede de referncia com vnculos j estabelecidos.

    2. Por circunstncias externas, como internao por motivo de doena ou en-carceramento dos pais ou responsveis. Nessas situaes, a criana ou o ado-lescente poder ser encaminhado para um servio de acolhimento quando no h outro parente ou pessoa prxima que possa se responsabilizar pelo seu cuidado, mesmo que temporariamente.

    3. Crianas e adolescentes ameaados de morte, includos em programa de pro-teo, depois de esgotadas as possibilidades de mudana de contexto e de insero em outras famlias da comunidade.

    15 Programa da Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos - PPCAM.

    16 O GT Nacional prope que a equipe de diagnstico tenha um referencial terico e cientfico que direcione a avaliao do grau de violao, como Maslow e Eva Faleiros, que propem escalas para os graus de violao (pgina 15).

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  • AS MODALIDADES DE SERVIOS DE ACOLHIMENTO

    1. Abrigo institucional

    Servio que oferece acolhimento, cuidado e espao de desenvolvimento e socio-educao para grupos de crianas e adolescentes de zero a 18 anos incompletos, cujas famlias ou responsveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir estas funes. O abrigo oferece atendimento especializado e funciona como moradia provisria at que seja viabilizado o retorno famlia de origem ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para famlia substituta.

    O atendimento prestado pelo abrigo deve ser personalizado e feito em pe-quenos grupos, com nmero mximo de 20 usurios de ambos os sexos, respei-tando-se o no desmembramento de grupos de irmos ou outros vnculos de pa-rentesco e buscando favorecer o convvio familiar e comunitrio. O abrigo deve estar inserido nos equipamentos e servios da comunidade local e us-los, alm de estar localizado em rea residencial, a mais prxima possvel, do ponto de vista geogrfico e socioeconmico, da comunidade de origem das crianas e dos ado-lescentes atendidos.

    O ambiente oferecido deve ser acolhedor e ter aspecto semelhante ao de uma residncia, mantendo um corpo de profissionais capacitados para o exerccio das atividades de acompanhamento das crianas e dos adolescentes e suas famlias.

    2. Casa de passagem ou Casa transitria

    Servio proposto pelo Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa da Con-vivncia Familiar e Comunitria, que tem o objetivo de oferecer acolhimento de carter emergencial, com espao adequado e profissionais preparados para receber a criana/adolescente em qualquer horrio do dia ou da noite, diante da necessi-dade de acolhimento imediato e emergencial. Fazem parte desses casos crianas perdidas ou com internao hospitalar do nico responsvel por elas. A entidade acolhe crianas e adolescentes por curta durao, tempo suficiente para avaliar a situao (diagnstico situacional) e encaminh-los para seus familiares ou para outros servios de acolhimento.

    3. Casa-lar

    Servio de Acolhimento provisrio oferecido em unidades residenciais, nas quais pelo menos uma pessoa ou um casal trabalha como educador/cuidador residen-te em uma casa que no a sua prestando cuidados a um grupo de crianas e adolescentes afastados do convvio familiar por meio de medida protetiva de abrigo (Orientaes Tcnicas, 2009, p.75).

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  • 4. Repblicas/pensionatos para adolescentes:17

    Modalidade de acolhimento institucional, destinado ao atendimento de jovens entre 18 e 21 anos em situao de vulnerabilidade e risco pessoal e social, com vn-culos familiares rompidos ou extremamente fragilizados ou egressos dos servios de acolhimento.

    ORIENTAES METODOLGICAS

    Veja, a seguir, o que a legislao indica nas diferentes situaes de acolhimento.18

    1. Acolhimento dos filhos por pobreza da famlia

    Em conformidade com o artigo 23 do ECA, a falta de recursos materiais por si s no constitui motivo suficiente para afastar a criana ou o adolescente do convvio familiar, encaminh-los para servios de acolhimento ou, ainda, para inviabilizar sua reintegrao na famlia de origem. Nessas situaes, o convvio familiar deve ser preservado e a famlia, obrigatoriamente, includa em programas oficiais de auxlio.19

    Os municpios devem proceder imediata identificao dessas crianas e desses adolescentes, cuja permanncia em servios de acolhimento decorra exclu-sivamente da situao de pobreza de suas famlias. Um planejamento de carter interssetorial deve ser viabilizado para proporcionar sua reintegrao familiar no menor tempo possvel.

    2. Casos de violncia intrafamiliar

    Nos casos de violncia fsica, abuso sexual ou outras formas de violncia intra-familiar, a medida prevista no artigo 130 do ECA afastamento do agressor da moradia comum deve sempre ser considerada antes de se recorrer ao encami-nhamento para o servio de acolhimento. A proteo da criana ou do adolescente vitimizado deve ser providenciada com o uso de programas especficos e especiali-zados de atendimento no municpio. H um Plano Nacional de Enfrentamento da Violncia Sexual Infantojuvenil20 que fixa as normativas de atendimento e estabe-lece os programas a serem implementados pelo governo municipal.

    3. Casos de crianas com necessidades especiais

    A presena de quadros de deficincias fsicas, sensoriais, psquicas, mentais ou ou-tros agravos no devem, por si s, motivar o afastamento do convvio familiar ou a permanncia em servios de acolhimento.

    17 Para saber mais, consulte o Caderno n03 Imaginar para encontrar a realidade, desta coleo.

    18 Baseadas no PNCFC e nas Orientaes Tcnicas: Servios de Acolhimento para Crianas e Adolescentes (Conanda;CNAS, 2009).

    19 A situao das famlias e os programas de auxlio esto dispostos no captulo Famlias em situao de vulnerabilidade, adiante, neste Caderno

    20 O Plano Nacional de Enfrentamento da Violncia Sexual Infantojuvenil pode ser acessado no portal do Ministrio da Justia

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  • Nessas situaes, a criana e o adolescente devem ser encaminhados aos ser-vios prestados em ambulatrios, preferencialmente prximos ao domiclio, que possam apoiar a famlia para o exerccio do cuidado. Para tanto, a rede deve ser articulada com as polticas municipais de sade, sade mental e assistncia social. Caso o municpio no disponha destes servios ou eles sejam incapazes de su-prir a demanda, devem ser mobilizados esforos e vontades para a implementao desses servios e fortalecimento dos programas existentes. Diante da ausncia de respostas, se faz necessria uma denncia ao Ministrio Pblico, instituio que deve zelar pelos direitos difusos e coletivos da populao. O Estado e a sociedade civil no podem se omitir ou agir de forma a manter crianas e adolescentes abri-gados por incapacidade de oferecer servios e apoiar as famlias a lidarem com as necessidades especiais de seus filhos.

    Para operacionalizar essa articulao interssetorial, devem ser estabelecidos fluxos e normativas locais entre os rgos gestores das polticas pblicas sociais e a Justia da Infncia e Juventude. Esse princpio deve ser particularmente observado em municpios de grande porte e nas metrpoles.

    PRINCPIOS NORTEADORES DOS SERVIOS DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

    Os princpios que as entidades devem desenvolver nos programas de acolhimento institucional so definidos no artigo 92 do ECA e reafirmados no documento de Orientaes Tcnicas (2009) e no documento Orientaes Tcnicas: Servios de Acolhimento para Crianas e Adolescentes:1. Excepcionalidade do afastamento do convvio familiar procurar manter,

    estimular e fortalecer o convvio da criana ou do adolescente com a rede primria de proteo famlia nuclear e extensa e considerar o distancia-mento da famlia, uma situao excepcional e no comum.

    2. Provisoriedade do afastamento do convvio familiar garantir a proteo da criana ou do adolescente fora do ambiente familiar por prazo muito cur-to, agilizando sua reinsero familiar, seja com seus parentes, seja em famlia substituta, quando a famlia biolgica no puder proteg-los.

    PENSE NISSO:A permanncia da criana ou do adolescente por longo tempo no abrigo no deve ser motivo para desistncia ou desnimo na busca de suas razes familiares e para a diminuio do esforo contnuo na sua reinsero social e familiar.

    30

  • 3. Preservao e fortalecimento dos vnculos familiares e comunitrios tra-balhar no sentido de favorecer os contatos que promovam ou reconstruam a vinculao da criana e do adolescente com a famlia e a comunidade.

    4. Garantia de acesso e respeito diversidade e no discriminao acolher todas as crianas e os adolescentes e familiares respeitando suas caracters-ticas, peculiaridades e diferenas, zelando para que no haja qualquer dis-criminao, humilhao ou ofensa e articulando a rede de servios para seu atendimento integral.

    5. Oferta de atendimento personalizado e individualizado toda criana e todo adolescente deve ser acolhido e educado para desenvolverse como pes-soa humana integral, com suas necessidades e potencialidades especficas, para que possa construir uma identidade prpria segura que seja base para sua convivncia grupal e social.

    6. Garantia de liberdade de crena e religio o caminho da espiritualidade e da transcendncia deve ser uma escolha das crianas, dos adolescentes e dos familiares, portanto a liberdade de culto e crena religiosa, sem imposio de uma ou outra orientao especfica, deve ser garantida.

    7. Respeito autonomia da criana, do adolescente e do jovem a participao da criana e do adolescente na vida social e nas atividades socioeducativas, dentro e fora do abrigo, deve ser estimulada e sua opinio deve ser respeitada, visando sua aprendizagem e seu desenvolvimento e o gradativo aumento da autonomia pessoal e social.

    DIREITO DA INFNCIA E DA ADOLESCNCIA

    O Direito da Infncia e Adolescncia se constitui em um novo ramo no mun-do jurdico, criado a partir da Constituio de 1988, inspirado na Doutrina de Proteo Integral da Conveno Internacional dos Direitos da Criana (ONU, 1989) e regulamentado por lei especfica, o Estatuto da Criana e do Adolescen-te (ECA). O ECA prev, em seu ttulo VI, o acesso justia como um direito de toda criana e todo adolescente. Alm do Conselho Tutelar, que deve zelar por seus direitos, o artigo 141 do ECA assegura este acesso por meio da Defensoria Pblica, do Ministrio Pblico e do Poder Judicirio e seus respectivos rgos e servios.

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  • O PAPEL DO CONSELHO TUTELAR

    O Conselho Tutelar (CT) rgo permanente e autnomo, no jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianas e dos adolescentes (artigo 131 do ECA). Os componentes do CT so pessoas escolhidas pela comunidade local para exercerem um servio pblico relevante. Os critrios de escolha e o regime de trabalho so fixados por lei municipal.Para exercer suas funes e promover a execuo de suas decises, o CT pode requisitar servios pblicos nas reas de sade, educao, servio social, previdncia, trabalho e segurana.

    O SISTEMA DE jUSTIA DA INFNCIA E jUVENTUDE

    Compete Justia da Infncia e Juventude a apreciao de violao de direitos individuais, coletivos e difusos de crianas e adolescentes, procedendo, ainda, ao controle de entidades de atendimento por seu dever de fiscalizao21 e seu poder de aplicar-lhes medidas cabveis quando infringem preceitos garantidores de di-reitos. Atua pela recomposio do direito violado, por meio do julgamento das aes judiciais, dirigidas e decididas pelo Juiz da Infncia e da Juventude ou juiz geral que exera as funes na comarca.

    A deciso judicial toma por base os subsdios oferecidos nos estudos de caso realizados por equipe interdisciplinar prpria (composta por, pelo menos, assis-tentes sociais e psiclogos judicirios) e as informaes documentais fornecidas por profissionais do servio de acolhimento, por conselheiros tutelares e outras instituies que possuam conhecimento da demanda, dos demandantes e dos de-mandados. Contudo, o juiz no fica adstrito aos relatrios. Deve formar livremen-te sua convico, estando, no entanto, obrigado a justificar suas decises.

    A atuao do magistrado est ancorada no direito da infncia e da adoles-cncia e nas regras processuais prprias da matria, que exigem sensibilidade e capacidade de trabalhar interdisciplinarmente. Segundo o artigo 6 do ECA, na interpretao desta lei, levar-se-o em conta os fins sociais a que se dirige, as exi-gncias do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condio peculiar da criana e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

    21 Artigo 95 do ECA.

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  • Equipes Interprofissionais

    A incorporao de uma dimenso interdisciplinar de atuao no mbito do Po-der Judicirio tornou obrigatria a estruturao de equipes interprofissionais nas Varas da Infncia e Juventude, tendo por competncia a garantia de direitos de crianas e adolescentes. Atuam como assessores do Juzo, fornecendo relatrios e participando de audincias, para auxiliar o magistrado a decidir sobre a medida judicial que melhor garanta os interesses superiores das crianas e dos adolescen-tes. Esses profissionais, por meio de sua atuao como assessores diretos do juzo, subsidiam as aes judiciais, viabilizando a garantia dos direitos violados e a cons-truo de aes articuladas em rede, que possam prevenir a sistemtica ameaa aos direitos fundamentais de cidadania por ausncia ou ineficcia das polticas pblicas de ateno criana e ao adolescente, bem como s suas famlias. Assim, o trabalho das equipes interdisciplinares extrapola o atendimento direto dos casos individuais dotando o Poder Judicirio de conhecimento e acesso s polticas se-toriais e consolidando o Sistema de Garantia de Direitos.

    Para a Associao Brasileira de Magistrados, Promotores de Justia e Defen-sores Pblicos da Infncia e Juventude, o reconhecimento da complexidade e es-pecificidades prprias atuao do Sistema de Justia em funo das diversas temticas, exigindo conhecimentos interdisciplinares e uma ao sistmica e ar-ticulada mais em consonncia com a rede de atendimento indica a necessidade de Varas Especializadas da Infncia e Juventude em conformidade com o grau de complexidade dos problemas que a populao infantojuvenil e suas famlias esto expostas (ABMP, 2008, p. 11).

    O MINISTRIO PBLICO

    A instituio possui autonomia funcional e administrativa, tem papel de defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses difusos e coletivos (CF. art. 127). Atua como defensora dos direitos sociais e individuais instransponveis, de crianas e adolescentes, principalmente no campo dos interesses difusos e cole-tivos. Os promotores da Infncia e da Juventude exercem uma funo importante na averiguao e acompanhamento dos fatos e aes que devem garantir os direi-tos da comunidade infanto-juvenil.

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  • SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

    Conhecido pela sigla SGD, o sistema de proteo integral dos direitos de crianas e adolescentes, cujo intuito a efetiva implementao da Doutrina de Proteo Integral, inclui princpios e normas que regem a poltica de ateno a crianas e adolescentes cujas aes so promovidas pelo Poder Pblico (Judicirio, Executivo e Legislativo) e pela sociedade civil, sob trs eixos: Promoo, Defesa e Controle Social.22

    Integram o SGD um conjunto de rgos, entidades, autoridades, programas e servios de atendimento a crianas, adolescentes e suas respectivas famlias, que devem atuar, de forma articulada e integrada, na busca da proteo integral, nos moldes do previsto pelo ECA e pela Constituio Federal.

    PENSE NISSONenhuma lei, por melhor que seja, pode substituir o substrato econmico e social que falta maioria da populao brasileira. Contudo, a lei pode ser concebida levando-se em conta os interesses de seus destinatrios, como um instrumento de transformao social, como garantia de possibilidades, de sorte que a ao transformadora possa nela buscar respaldo (MPPR, CAOPCA, 2010).

    REFERNCIAS:

    ABMP.O Sistema de Justia da Infncia e Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criana e do Adolescente: desafios na Especializao para a Garantia de Direitos de Crianas e Adolescentes. Braslia, 2008.

    AMARALESILVA,AntonioFernandodo.A nova justia da infncia e juventu-de. In: PEREIRA, Tnia Maria da Silva. Estatuto da Criana e do Adolescente: estudos scio-jurdicos. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.

    BERNARDI,D.C.F.Concepes de infncia em relatrios psicolgicos judi-ciais. Dissertao (Mestrado em Psicologia Social), PUC, So Paulo, 2005.

    BRASIL.PresidnciadaRepblica.SecretariaEspecialdosDireitosHuma-nos. Conselho Nacional de dos Direitos da Criana e do Adolescente. Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescen-tes Convivncia familiar e Comunitria. SEDH, Braslia, Conanda, 2006.

    BRASLIA.MinistriodoDesenvolvimentosocialeCombateFome.Secre-taria Nacional de Assistncia Social. Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS/2004) Norma Operacional NO/SUAS. Braslia, 2005.

    22 Sinase, 2005.

    34

  • _.SecretariaNacionaldeAssistnciaSocial.Orientaes tcnicas: Servios de acolhimento para crianas e adolescentes. Braslia: Departamento de Proteo Social Especial, 2008. Princpios e diretrizes organizadas pelo GT Nacional do PNCFC em documento interno, Braslia, 2008.

    CURY,Munir.Direito convivncia familiar: da reintegrao colocao em famlia substituta. Revista Igualdade, n. 19. Disponvel em: , 2008.

    CURY,GarridoeMarura.Estatuto da Criana e do Adolescente Anotado.: Revista dos Tribunais, p. 122, So Paulo, 2000.

    ESTADODOPARAN.MinistrioPblicodoEstadodoParan.Jurisprudn-cia selecionada. CAOPCA-MPPE. Janeiro 2010. Disponvel em: . Acesso em: abr. 2010.

    ESTATUTO da Criana e do Adolescente, Lei Federal n. 8.069 de 1990.

    GRUPOdeTrabalhoNacionalPr-ConvivnciaFamiliareComunitria.Fa-zendo valer um direito. Caderno 1 Princpios/Diagnstico. Braslia: Unicef, 2007.

    INSTITUTOFazendoHistria. Fazendominhahistria:guiadeaoparaabrigos e colaboradores. So Paulo: Associao Fazendo Histria, 2008.

    PEREIRA,TniadaSilva.Direitodacrianaedoadolescente:umapropostainterdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar,1996.

    Polticas e prioridades polticas. Revista Frum D. C. A., n. 1, 1993.

    RIZZINI, Irene; BARKER,Garyu; CASSANNIGA,Neide.Criana no risco, oportunidade. Rio de Janeiro: ; Ed. Universitria; Instituto Promundo, 2000.

    ________.(Org.).Olhares sobre a criana no Brasil sculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobras; Ministrio da Cultura; USU Ed. Universitria: Amais, 1997.

    ______. (Coord.).Acolhendo crianas e adolescentes: experincias de Pro-moo do Direito Convivncia Familiar e Comunitria no Brasil. So Paulo: Cortez; Braslia: Unicef; Ciespi; Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2006.

    SEDA, Edson.A criana e sua conveno no Brasil: pequeno manual. So Paulo: Conselho Regional de Psicologia, 1998.

    SILVA,EnidRochaAndradeda(Coord.).O direito convivncia familiar e co-munitria: os abrigos para crianas e adolescentes no Brasil. Braslia: IPEA; Conanda, 2004.

    35

  • Captulo 3

    FAMLIAS EM SITUAO DE VULNERABILIDADE

    Dayse Cesar FranCo BernarDi

    O que vimos at aqui nos mostrou um retrato da infncia e da adolescncia em situao de vulnerabilidade. A fragilizao dos vnculos familiares e comunitrios no ocorre apenas por fora das dinmicas intrafamiliares, mas tambm por fa-tores estruturais e histricos da sociedade brasileira. Falar das condies em que vivem as crianas e os adolescentes no Brasil falar tambm das condies de vida de suas famlias (PNCFC, 2006, p. 50,51).

    Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domiclios (PNAD), em 2004, uma em cada quatro famlias brasileiras eram monoparentais femini-nas. Em 75% dos lares, h um casal, embora no se indique se o cnjuge da me o pai da criana.23 Pode-se concluir que h um grande percentual de crianas e adolescentes vivendo em famlias organizadas de modo diferente da famlia idealizada, composta por pai, me e seus filhos em comum.

    A anlise destes dados demogrficos mostra que a famlia brasileira contem-pornea apresenta arranjos diversos e a maioria das que tm mulheres como fi-guras de referncia est entre as mais pobres. Alm disso, famlias em situao de pobreza sofrem influncia dos processos culturais e sociais de excluso sistemti-ca, que enfraquece sua capacidade de fazer valer seus direitos e prerrogativas na sociedade. Essa famlia empobrecida, embora conte eventualmente com relaes de solidariedade parental ampliada e conterrnea, tem experimentado uma cres-cente diminuio de sua capacidade de proteger seus membros. Criar e educar os filhos, garantindo-lhes o usufruto de todos os direitos de que so titulares como pessoas em situao peculiar de desenvolvimento, tem sido tarefa muitas vezes impossvel de ser cumprida pelas famlias submetidas a condies de vida pre-crias, sem garantia de alimento, de moradia, de trabalho, de assistncia sade, escolaridade e todos os servios que definem uma vida minimamente digna no mundo contemporneo.

    As condies socioeconmicas e a luta pela sobrevivncia determinam ainda uma dinmica familiar marcada pela ocorrncia de entradas e sadas de inte-

    23 IBGE; PNAD. Pesquisa nacional por amostra de domiclios, 2004.

    37

  • grantes. So pais e mes que se ausentam em busca de novas oportunidades ou em funo da ocupao exercida, como o trabalho domstico, alm da institucio-nalizao de filhos e de idosos, entre outras situaes. Este cenrio, consequncia da profunda desigualdade social, colabora ainda para que a violncia perpasse as relaes de gnero, de etnia e de gerao (PNCFC, 2006, p. 51).

    PENSE NISSOSituaes estressantes podem contribuir para aes e omisses de negligncia ou de maus-tratos contra as crianas e adolescentes, sustentadas por uma sociedade que banalizou a violncia, atrelada a uma cultura que mantm a agresso fsica como forma de disciplina e socializao (PNCFC, 2006, p. 52).

    Este quadro, entre as famlias mais fragilizadas, favorece a violao de direitos de crianas e adolescentes. Contudo, salientamos que essa violao um fenmeno complexo que deve ser abordado de maneira mais aprofundada, pois ocorre em todas as classes e grupos sociais, atinge meninos e meninas, em todas as socieda-des, pobres ou ricas.

    Todos os esforos para a defesa e garantia dos direitos e a universalizao do acesso a polticas pblicas e programas sociais devem articular a proteo social das crianas e dos adolescentes s polticas de apoio s suas famlias.

    O TRABALHO COM AS FAMLIAS

    Na oficina realizada pelo Ncleo de Estudos da Criana e do Adolescente (Neca), o trabalho com famlias foi apontado pelos participantes da oficina24 como uma das maiores dificuldades do cotidiano das entidades de acolhimento. Elas tm conhecimento dos caminhos, mas necessitam constantemente de estmulos para buscar e usar os servios disponveis. O ciclo de abandono inclui a famlia tanto quanto seus filhos e, muitas vezes, o abrigo visto por elas como um recurso co-munitrio. Sentem o abrigo como uma ajuda que possibilita aos seus filhos mais segurana e conforto do que eles teriam na prpria casa. Essa constatao gera sentimentos confusos por coloc-las em uma posio de menos valia. Como lidar com este sentimento de impotncia? Como, efetivamente, incluir as famlias no processo de acolhimento, visando reintegrao de seus filhos?

    Trata-se de um trabalho que requer participao, comprometimento multidisciplinar, unio e disposio de todos os envolvidos no acolhimento das crianas e suas famlias. Requer ainda muita ateno e humildade, para termos capacidade de perceber que no percebemos direito. Perseverana, pacincia, se-renidade, amor e compaixo tambm so fundamentais. H muitos retrocessos no

    24 Oficina atividade coleti-va, realizada no Neca, como

    estratgia para formular o Caderno, tendo como base a experincia de profissionais que lidam diretamente com

    questes relacionadas ao acolhimento institucional de

    crianas e adolescentes em So Paulo e que acumularam

    conhecimento crtico e pro-positivo respeito da medida

    abrigo.

    38

  • percurso, porm, em funo disso o avano ganha o valor da conquista cotidia-na, do sucesso em pequenos detalhes que, juntos, vo compondo uma situao cada vez melhor e mais clara para todos.

    A seguir, o depoimento de um profissional de abrigo ilustra bem esse es-foro cotidiano de incluso da famlia no plano de trabalho do abrigo.

    Quando o abrigo foi montado, em 2001, tnhamos a ideia de que cuidaramos das crianas, enquanto os parceiros, sobretudo do Judicirio, cuidariam das famlias. No meio do caminho, notamos que a realidade seria outra. Ao contrrio do trabalho com as crianas, que era fcil construir, aquele feito com suas famlias no se desenvolvia com a mesma rapidez, permanecia na estagnao, na fragilidade, na dependncia, no abandono e na impotncia social. Tnhamos que primeiro descontruir (caminho mais difcil!), para ento co-construir. Quando nos sentimos seguros da qualidade do trabalho com as crianas, elaboramos um projeto voltado para as famlias, com o objetivo de ajud-las a mudar de lugar, sair da situao de acomodao e dependncia e ir para ao de constituir uma imagem positiva de si mesmas, garantir seus direitos como pessoas e, fundamentalmente, propiciar uma viso de caminhos para uma autonomia. Nesse projeto, que se chama Recriar, a base inicial do trabalho acontece no mbito da constituio da autoestima, no resgate da capacidade protetora dessas famlias. Ns as ajudamos a buscar e construir suas redes, orientando-as para a descoberta de suas potencialidades, de forma a ampliar horizontes, pensar alternativas de gerao de renda e buscar uma tomada de conscincia de seus direitos e deveres. Esse trabalho realizado por meio de atendimentos individuais e encontros de grupo mensais. Inicialmente, rastreamos redes locais, pblicas e privadas, vislumbrando a possibilidade de cursos para a formao profissional dos membros da famlia. Percebemos que todos os cursos oferecidos pelas redes (manicure, copeira, cabeleireira e outros) exigiam, no mnimo, uma capacidade de leitura e escrita, requisito incompatvel com nosso pblico, que mal assina o nome. Passamos, ento, a buscar cursos de alfabetizao, com maior sucesso, porm, nos deparamos com outro problema: a fragilidade na adeso das famlias, que frequentavam algumas aulas e logo desistiam. O trabalho com essa populao requer esforo adicional e constante, exercitar a

    39

  • criatividade sempre. necessrio pesquisar e buscar o universo das famlias: que linguagem usam? Quais filmes, novelas e canais de TV assistem? Conhecer gostos musicais tambm aproxima e ajuda a criar vnculos de confiana. Tudo isso necessrio para se construir ferramentas, como dinmicas e jogos, para que, de um modo ldico, se alcancem os objetivos. Vale dizer que toda literatura de Dinmicas de Grupo e Jogos que pesquisamos no incluam pessoas sem alfabetizao. Com o projeto, percebemos uma melhoria do convvio das famlias com os profissionais do abrigo, o que significa mais conforto para as crianas, ao perceberem um clima amistoso e de boas relaes. Tambm houve o fortalecimento de vnculos entre as famlias e as crianas e, na maior parte das vezes, conseguimos abreviar o tempo de acolhimento (Depoimento de Ricardo Albuquerque, psiclogo e funcionrio do abrigo ABCD Nossa Casa).

    O SENTIDO DO ACOLHIMENTO PARA A FAMLIA E PARA A CRIANA

    O sentido do acolhimento institucional dos filhos para as famliasAs famlias mostram-se inseguras e desconfiadas, apresentam em suas falas e aes desconforto quando se afastam de seus filhos. Imaginam que tudo que for dito e feito no abrigo ser repassado ao Poder Judicirio, o vilo da histria. Dentro desse imaginrio, as pessoas que cuidam de seus filhos figuram como cmplices de uma imposio judicial. A suspeita que seus filhos sero mal-tratadose,talvez,colocadosemadoo.Comotempo,essavisoarrefecida;ento, as famlias percebem que a instituio oferece a seus filhos bons recursos, moradia confortvel, alimentao adequada, boas roupas e cursos extracurri-culares. A partir desta percepo, muitas mes se tranquilizam e comeam a associar o abrigo com um colgio interno. neste momento que o trabalho do projeto faz sentido.

    O sentido do acolhimento para crianas e adolescentes acolhidosA chegada a um ambiente estranho sempre assustadora para a criana e o ado-lescente, mesmo que aparentemente no demonstrem essa percepo. Muitas delas parecem se sentir aprisionadas, mas, com o tempo, divertem-se com os passeios, valorizam os objetos e materiais a que tem acesso e aceitam a ateno dos profissionais cuidadores. Entretanto, ainda que estejam adaptadas ao am-biente, quando indagadas se gostariam de estar com suas famlias (mesmo mo-rando em um pequeno quarto e com uma me com capacidade de maternagem frgil), a resposta, invariavelmente, a mesma: Sim.

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  • MUDANAS DE FOCO E DE ENFOQUE

    Uma das mudanas de enfoque propostas por este Caderno a de pensar como a criana e o adolescente podem nos ajudar a reconstruir sua comunidade familiar, como um espao de proteo e cuidado, dando pistas para a ampliao de laos e redes de apoio familiar e comunitrio.

    importante fazer com que as experincias de acolhimento institucional se-jam relatadas, refletidas e ganhem significado para a criana ou para o adolescente acolhidos, e suas famlias. Conhecer os sentidos atribudos, estar junto deles e sa-ber o que pensam e sentem a respeito de suas experincias e avaliar os efeitos que a vivncia na instituio ter em suas vidas ajuda na construo de alternativas para a sada da situao em que se encontram. Muda-se, assim, o enfoque do risco, da incapacidade e da falta para a promoo do desenvolvimento de habilidades e novas competncias na construo de perspectivas e um plano de vida.

    Cada criana e adolescente deve ser compreendido como um ser nico, que merece todas as oportunidades para se desenvolver como sujeito de direitos espe-ciais e gerais como todo cidado brasileiro.25 Mas, para isto, ele precisa ser visto e tratado como um cidado do presente, cujo acolhimento institucional responde a uma situao mais geral e complexa, que inclui todas as pessoas de seu crculo: familiares e pessoas de referncia.

    Programas e possibilidades de reintegrao familiar e comunitria26

    A preservao dos vnculos familiares aps o abrigamento, alm de direito do abrigado e de sua famlia (ECA, artigo 92), um facilitador para a reintegrao fa-miliar. Tais vnculos podem ser preservados, fortalecidos e muitas vezes at cons-trudos por meio da viabilizao e estmulo (por parte do abrigo) de vrias aes, como telefonemas, troca de cartas ou mesmo desenhos, atividades no abrigo que incluam os familiares por exemplo, almoos, comemoraes bem como, est-mulo participao na vida escolar, acompanhamento mdico, internao hospi-talar da criana e do adolescente etc.

    necessrio identificar a dificuldade da famlia em realizar visitas no abrigo, tendo em vista a distncia geogrfica e a falta de dinheiro para o transporte.

    Essas visitas tambm podem ter mo dupla, ou seja, tanto a famlia pode visitar as crianas e os adolescentes no abrigo quanto os abrigados podem visit-los em suas casas. Quando no se sabe o paradeiro de familiares do abrigado, imprescindvel que o abrigo recorra a instituies, rgos e servios que possam localizar membros dessa famlia.

    A insero em famlia substituta por meio de guarda, tutela ou adoo me-dida exclusivamente aplicada pelo Juiz da Infncia e da Juventude. Nesse sentido, o abrigo deve estabelecer comunicao constante com o Sistema de Justia sobre as situaes de falta de contato com familiares ou abandono, ou mesmo possvel interesse de pessoas que no so da famlia de origem em se aproximar do abrigado,

    25 Cidadania: o conceito est fundado na ideia de que, embora diferentes como indi-vduos, as pessoas so iguais em relao s leis fundamen-tais da sociedade.

    26 Texto extrado do Caderno de Orientao, do Siabrigos/Neca, 2009.

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  • situaes essas decorrentes da relao do abrigo com a comunidade, e no de expo-sio das crianas para interessados em adoo. O abrigo tem papel importante na preparao da criana para colocao em famlia substituta e no acompanhamento e integrao famlia substituta, tendo em vista que conhecem as particularidades do abrigado, podendo contribuir assim com o processo de adaptao.

    Os programas de apadrinhamento so desenvolvidos pelos abrigos com di-versos objetivos, alguns tm como caracterstica a contribuio material, financeira, ou viabilizao de algum servio para garantir o atendimento das necessidades dos abrigados, como roupas, brinquedos, material escolar, alimentao especfica, acom-panhamento de sade especializado etc. Outros visam ampliar a convivncia dos abrigados com outras pessoas que possam lhes servir de referncia. O favorecimento do contato e da convivncia dos abrigados com outras pessoas no pode prejudicar a preservao dos vnculos com sua famlia e nem o trabalho de reintegrao familiar.

    Os programas de famlias guardis ou acolhedoras encontram respaldo em normativa nacional e referem-se insero da criana/adolescente em famlias previamente selecionadas e cadastradas pelo Poder Pblico. Tais famlias assu-mem provisoriamente a guarda judicial da criana e do adolescente at que possa ocorrer sua reintegrao famlia de origem ou insero em famlia substituta.27

    Possibilidades de sada do abrigo e alternativas de reintegrao familiar e comunitria Retorno famlia de origem ou natural Regresso da criana ou adolescente ao grupo familiar onde ele vivia at o

    acolhimento institucional. Entende-se por famlia natural a comunidade formada por qualquer um dos

    pais e de seus descendentes (conforme a Constituio Brasileira, CF, art. 226, pargrafo 4, e ECA, art. 25).

    Integrao em famlias substitutas mediante guarda Entende-se por famlia substituta aquela que assume os cuidados de criana

    ou adolescente substituindo temporariamente ou definitivamente a famlia natural. A colocao em famlia substituta pode ser legalizada mediante:- guarda que obriga prestao de assistncia material, moral e edu-

    cacional criana, conferindo ao seu detentor o direito de opor-se a terceiros,inclusiveospais(ECA,art.33);

    - tutela as famlias assumem o dever de guarda. O deferimento da tutela pressupe a prvia decretao da perda ou suspenso do poder familiar pelo Poder Judicirio (ECA, art. 36 ao 38).

    - adoo nacional ou internacional A adoo uma medida judicial de colocao, em carter irrevogvel, da criana ou do adolescente em outra famlia (nacional ou estrangeira) que no seja aquela onde nasceu, confe-rindo vnculo de filiao definitivo, com os mesmos direitos e deveres da filiao biolgica (ECA, art. 39 ao 52).

    27 No captulo 10 deste Caderno, aprofundaremos o

    tema Famlia Acolhedora ou Servio de acolhimento

    familiar.

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  • Desligados por terem completado a maioridade Adolescentes que completaram 18 anos e que foram desligados do abrigo. Transferidos para outras instituies (repblica/albergue) Adolescentes que esto em idade prxima maioridade e foram transferidos

    para instituies que os preparam para a sada do abrigo. Transferidos para outros abrigos Crianas ou adolescentes que foram transferidos para outros servios de aco-

    lhimento por motivos diversos. Evaso Crianas/adolescentes que deixaram o servio por vontade prpria sem auto-

    rizao judicial ou da instituio.. Falecimento Desligamento por morte do abrigado.

    PENSE NISSO O menino infinito em si mesmo, ele no um vir a ser. A pior coisa que se pode fazer para um menino prepar-lo para o futuro, pois isto s lhe traria angstias. Temos que preparar o menino para hoje, porque o futuro feito de muitos hojes (Ziraldo, 2000).

    REFERNCIAS

    BRASIL.SecretariaEspecialdeDireitosHumanos/PlanoNacionaldePro-moo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convi-vncia Familiar e Comunitria. Conanda, 2006.

    FVERO,EuniceT.Rompimento dos vnculos do ptrio-poder: condicionan-tes socioeconmicos e familiares. So Paulo: Veras, 2001.

    INSTITUTOFazendoHistria.Fazendo minha histria: Guia de ao para abrigos e colaboradores. So Paulo: Instituto Fazendo Histria, 2008.

    MOTTA,MariaAntonietaPisano.Mes abandonadas: a entrega de um filho em adoo. So Paulo: Cortez, 2001.

    STELLA,Cladia.Filhos de mulheres presas: solues e impasses para seus desenvolvimentos. So Paulo: LCTE Editora, 2006.

    SOLYNOS,GiselaM.B.Vencendo a desnutrio: abordagem psicolgica. 1. ed. So Paulo: Salus Paulista, 2002. (Coleo Vencendo a Desnutrio).

    TEIXEIRA,MariadeLourdesTrassi.As histrias de Ana e Ivan: boas experincias em liberdade assistida. So Paulo: Fundao Abrinq. (Coleo D pra Resolver).

    VENANCIO,RenatoPinto.Famlias abandonadas: assistncia s crianas de camadaspopularesnoRiodeJaneiroeemSalvadorsculoXVIIIeXIX.Campinas: Papirus, 1990. (Coleo Textos do Tempo).

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  • Captulo 4

    ABANDONO: UMA QUESTO SOCIAL PREOCUPANTE

    MiChelina Della Porta*

    O abandono infantil,28 mesmo se diferentemente denominado e administrado, constitui um dos problemas sociais mais graves e historicamente presentes tanto nos pases industrializados quanto naqueles em desenvolvimento. Mas, somente nos ltimos anos, foram conduzidos e publicados estudos pontuais e especficos sobre o tema.

    Trata-se de um fenmeno que assume dimenses cada vez mais dramticas, com nmeros em constante crescimento em todo mundo, especialmente nos pa-ses africanos, conforme nos mostra o Relatrio do Unicef sobre a Situao Mun-dial da Infncia: sobrevivncia infantil (2008).Todavia, no podemos analisar o abandono exclusivamente como consequncia da pobreza ou como uma questo social do Sul do Mundo, o mundo pobre, com uma economia de transio ou em vias de desenvolvimento. O fenmeno tambm se apresenta nos pases mais indus-trializados e ricos do planeta, revelando-se uma emergncia social em muitos pases do G8 e constituindo-se em prioridade na agenda das polticas sociais de muitos Pases da Europa ocidental.

    Atualmente, os nmeros e o nvel crescente de ateno internacional ao fe-nmeno parecem, portanto, tornar o abandono infantil uma emergncia social, poltica e humana em escala mundial, que se caracteriza em diversos nveis (indi-vidual, de gnero, poltico-social, cultural).

    O Brasil vive a era da mundializao do capital e, como pas perifrico no mercado internacional, sofre as consequncias que se refletem na profunda de-sigualdade social que atinge a maior parte da populao brasileira, em especial, crianas e adolescentes. justamente nesse contexto econmico-social que ocorre o acolhimento de crianas e adolescentes por meio de medidas de proteo social especial. Nesse processo, na maioria dos casos, os laos afetivos com a famlia de

    * Coordenadora Amici dei Bambini. Estado de So Paulo, Relaes Internacionais. Traduo: Luana Maria Barbieri - Ai-Bi.

    28 Considerado uma emer-gncia humanitria para a Ai-Bi e a Pastoral da Famlia.

    45

  • origem tornaram-se fragilizados. Ou seja, houve uma interrupo no seu processo de convivncia familiar, por isso a construo de projetos de vida com crianas e adolescentes institucionalizados deve ser entendida como um processo que leva os sujeitos a pensar individual e coletivamente em caminhos possveis para trans-formar sonhos em realidade, para reconhecer, nos planos para o presente e para o futuro, pistas para alterar as suas condies gerais de existncia.

    No faltam estudos e pesquisas que demonstram como o abandono, seguido de uma histria de institucionalizao precoce e prolongada, impede e compro-mete o crescimento de quem o sofre, mas no este o espao para aprofundar tais efeitos. O que podemos afirmar com certeza que, quaisquer que sejam as causas que conduzem ao abandono, a integrao da criana em um abrigo por perodo prolongado refora e perpetua um verdadeiro ciclo da privao, obrigando-nos, como tcnicos e como pessoas comprometidas, a nos responsabilizar pela inter