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Caderno de Formação do Levante!

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caderno de formaçao do levante!

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Caderno de formação 01

Twitter: @levantenacionalBlog: coletivolevante.wordpress.com

Coletivo

Page 2: Caderno de Formação do Levante!

2Sumário

Repensando a Universidade

Vamos ganhar dinheiro à beça

A crise Mundial

Organizando a transição

Feminismo, militância e transformação social

Balanço da Gestão da UNE

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17

31

36

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Somos o Levante! Coletivo nacional de estudantes que tem em seu nome a razão de sua existência e o seu propósito: lutar diante de todas as injustiças, vibrar com todas as vitórias daqueles que querem mudar o mundo, chorar diante da alienação e desigualdades, se indignar diante de todas as opressões. Mas somos Levante porque vivemos de sonhos, de esperança, de enxergar no horizonte um outro mundo. Para enxergar esse outro mundo, não bastam os panfletos e as palavras de ordem, é pre-ciso ir além. Por isso, lançamos o primeiro caderno de formação política de nosso coletivo, após mais de quatro meses de debates. Seu objetivo é iniciar uma prática necessária para quem um dia quer fazer-se de estudante uma mulher (e um homem) livre, totalmente livre.

No primeiro texto, Repensando a Universidade, Ernâni Lampert apresenta a dis-cussão sobre universidade com fôlego, levantando alternativas sobre suas entranhas e mecanismos. É uma discussão de universidade para valer, sem tratar nada como secundário. No segundo texto, José Rodrigues revela os interesses de quem manda na universidade com o título “Vamos ganhar dinheiro à beça”, denunciando a mer-cantilização da educação. Um processo que transforma um objeto não voltado para a venda, como o mestrado, numa ferramenta para a formação essencialmente mer-cadológica.

Em seguida, a discussão de universidade é completada nesse caderno pela sua con-textualização na crise mundial em A crise mundial e os reflexos na Educação Superior. Crise essa que não é somente financeira, quem dera! É sim uma crise de civilização, e David Harvey, analisada pelo intenso artigo Organizando para a transição anti-capi-talista, do famoso geógrafo entusiasta da experiência do Fórum Social Mundial, con-hecida pela ode ao movimentos sociais, de todas as formas e identidades.

Encerramos nosso primeiro caderno escolhendo dois temas, dois movimentos, duas atuações que fundaram nosso coletivo: o movimento feminista e o movimento estu-dantil. As companheiras do coletivo Levante apresentam uma forte e densa contri-buição sobre o sentido de feminismo nos movimentos sociais e na luta geral. Sentido claro vemos também noBalanço de Gestão de nossa primeira experiência na diretoria da UNE, precursora de nosso coletivo.

Bom pessoal, não resta nada a mais a dizer aos que se deparam com esse compilado de boas, plurais e importantes contribuições do que... Boa leitura!

E aí, demorô formar?Quem somos nós?

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4Repensando aUniversidadealgumas notas para análise

Por Ernâni Lampert,Professor da UFRG

Resumo: O trabalho é um recorte do pro-jeto de pesquisa “Re(criar) a Universidade na América Latina”, em que o autor do presente texto mostra a necessidade urgente de se re-criar administrativa e pedagogicamente a uni-versidade, dentro do atual contexto político, econômico, social, tecnológico e cultural.

Situando a problemática

Muito se tem discorrido sobre a temática “educa-ção superior”. Do surgimento da primeira universi-dade no mundo ocidental, em 1088, à contempo-raneidade, a problemática tem intrigado diferentes segmentos sociais, além da academia.

A partir dos anos 80, com as fortes restrições econômicas impostas pela política neoliberal, em praticamente todos os países do mundo ocidental, a questão da reestruturação da universidade veio à tona e tem ocupado espaço nos periódicos es-pecializados, na academia, na tribuna dos políticos e na imprensa em geral. No século XXI é um tema desafiador, que merece uma análise acurada do governo, da sociedade civil organizada e, principal-mente, da academia.

Na sociedade hodierna, a universidade, como as demais instituições religiosas, econômicas, finan-ceiras, culturais, educacionais, políticas e sociais, está passando por uma variada gama de transfor-mações. Se, sob um ângulo, a educação superior é indispensável ao desenvolvimento econômico, político, social, cultural, educacional e à manuten-ção do status quo, por outro prisma, com algu-mas, exceções, a universidade não consegue mais atender às demandas, às exigências, às expecta-tivas, às necessidades de uma sociedade cambi-ante, cada vez mais exigente, competitiva, individu-alista, pragmática e consumista, que é a sociedade pós-moderna.

A propósito do assunto, López Segrera (2006) as-sinala que: “Estamos assistindo à crise da universi-dade não somente em seus aspectos de gestão, fi-nanciamento, avaliação e currículo, mas é a própria concepção de universidade que devemos adequar a um contexto que, por outra parte, mostra mu-danças radicais nas identidades e suportes bási-cos [...]. O desafio consiste em construir uma nova universidade – em reinventá-la - neste clima de in-

certezas, evitando a vitória da anomia e do pessi-mismo”. Seguindo esta linha de pensamento, San-tos (2009) afirma que:

O atual estágio do ensino superior não atende às necessidades da sociedade. A evolução social está a exigir uma nova universidade para o ter-ceiro milênio. Uma universidade pós-moderna, de excelência, que privilegie relações de gênero, com habilidades de compreensão do contexto socio-político, capacidade de gerenciar a complexidade,a ariabilidade, a incerteza, a transitoriedade, e capa-cidade para a mobilização do potencial humano e compromisso social (p.4).

Portanto, reafirmando as idéias de Lampert (2008a), a universidade, principal gestora de ciência, não poderá ocultar a complexidade da sociedade, dos paradigmas múltiplos e complementares. Precisa, com urgência, repensar suas convicções para conseguir saídas viáveis e confiáveis, admitindo a pluralidade ideológica e sem fechar a porta para nenhuma modalidade de entender o mundo. Com visão crítica, deverá estudar novos modos de pen-sar, ler o mundo, gerenciar e conduzir o processo ensino/aprendizagem.

Dentro desta nova visão de mundo, precisa estar aberta às inovações e contradições que a tríade ciência/tecnologia/indústria desenvolve. A universi-dade não poderá ser uma torre de marfim, obso-leta, dirigida somente para o passado. Deve con-siderar a bipolaridade como forma de analisar o desenvolvimento que, de um lado, traz benefícios, conforto e bem-estar a poucos, e, por outro prisma, deteriora a natureza, produz a atomização dos in-divíduos, que perdem sua identidade, tornando-se objetos manipulados e dominados pela máquina.

A expansão quantitativa, o crescimento da priva-tização, a grande diversificação institucional, a re-strição do gasto público e as inadequadas políti-cas públicas são alguns aspectos desta crise, que merecem análise. A expansão quantitativa e a massificação do sistema universitário não têm sido acompanhadas do melhoramento da qualidade.

Grosso modo, a qualidade do ensino tem declinado em praticamente todo o mundo, mas este desenro-lar é uma das características marcantes da educa-ção superior, nos países emergentes. “Na maioria dos países em desenvolvimento, a educação su-perior tem mostrado grandes deficiências, que são agravadas pela expansão do setor” (ARAÚJO CAS-TRO, 2006, p. 120).

No que concerne ao Brasil, Hermida (2006), ao analisar as ações afirmativas e a inclusão educa-cional, assinala que também houve uma regressão na qualidade da educação no sistema de educa-ção superior do Brasil. Borón (2004), na palestra

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5Repensando a Universidade

“Reformando las ‘reformas’: transformaciones y cri-sis en las universidades de América Latina y el Ca-ribe”, proferida no Congresso Universidade 2004, em Havana, aponta que, no Brasil, são muitos os fatores que explicam esse lamentável retrocesso: falta de qualificação dos professores, contratação de docentes com contratos de trabalho precários, expansão quantitativa e crescente massificação do corpo estudantil. Para Borón, “grande parte da re-sponsabilidade pelo declínio qualitativo é devido ao sistema privado de ensino superior, que pouco ou nada se preocupa em fazer com que as universi-dades cumpram com a função social que a deveria caracterizá-las” (BORÓN, 2004, tradução nossa).

A orientação meramente para o mercado faz com que muitas instituições tenham apenas um cresci-mento quantitativo. López Segrera (2006) vem ao encontro dessa idéia, afirmando que muitas univer-sidades se convertem em empresas, cujo principal fim é produzir lucros. Para Vizcaíno (2006), as uni-versidades têm adotado essencialmente os mes-mos componentes da política neoliberal geral e os têm introduzido em suas dinâmicas internas.

Os serviços têm-se convertido em produtos para o mercado; os beneficiários transformaram-se em clientes; as relações entre servidores e usuários transformaram-se em oferta e demanda; a legiti-mação centrada no Estado e nas instituições foi transladada para o mercado; as práticas internas de produção e circulação de conhecimentos es-tão sendo associadas com qualidade, pertinência, eficiência, flexibilidade e oportunidade, no contexto de mercados elásticos.

Nunes (2006b), analisando a expansão do ensino superior no Brasil e verificando as conseqüências desta transformação, assinala que as instituições de ensino superior, para sobreviverem, precisam se reestruturar rapidamente, sem perder de vista seu foco, o cliente.

Dentro dessa lógica, educar se transformou em sinônimo de não perder o aluno. Historicamente, não contrariar o cliente é um dos mandamen-tos mais importantes para qualquer empresa que queira sobreviver no mercado. No caso do ensino superior privado no Brasil, esse andamento ganha cada vez mais centralidade, uma vez que a concor-rência tende a aumentar.

Repensando a universidade: algumas notas para reflexão

A universidade, instituição antiga, além da docên-cia e da pesquisa, funções historicamente assumi-das, deve empenhar-se na transformação social, lutando por um mundo sustentável, mais humano, igualitário e justo, onde o homem seja sujeito-ci-

dadão. Nessa direção, López Segrera afirma que “a definitiva razão de ser da universidade é a transfor-mação da sociedade e para isso ela deve participar ativamente na solução dos principais problemas lo-cais, regionais, nacionais e universais” (2006, p. 29, tradução nossa).

Posto isso, cabe à universidade engajar-se na solução dos problemas sociais, ambientais e cul-turais, em qualquer âmbito, e opor-se à tese neo-liberal que considera como sua missão essencial, a adaptatividade às demandas do mercado.

“A universidade atua em um contexto de complexi-dade e incerteza, onde são exigidas novas inter-faces com a sociedade, visando capturar suas ne-cessidades e demandas” (AUDY, 2006, p. 68). O foco da instituição deve estar voltado à melhoria das condições de vida da população e não atender unicamente aos interesses de determinados gru-pos hegemônicos, que objetivam tão somente o lucro. Além disso, cabe à universidade a formação de cidadãos críticos, éticos, comprometidos com a transformação da realidade circundante. Esses são os grandes desafios e, certamente, serão o diferen-cial das instituições de ensino superior no séc XXI.

A universidade deve estar a serviço da sociedade, que lhe confere legitimidade e credibilidade. Utilizan-do-se de um plano político-pedagógico-estratégico acurado, deve encaminhar, de forma concreta, pro-jetos e atividades com abordagem interdisciplinar, transdisciplinar e multidisciplinar para solucionar ou amenizar os gritantes problemas que afligem a sociedade (violência, pobreza material e espiritual, fome, enfermidades, intolerância, imediatismo, competição, exclusão social, analfabetismo, dete-riorização do meio ambiente, contaminação do ar, das águas, do solo).

A universidade somente recuperará o seu status de outrora se realmente estiver a trabalho da socie-dade e prestando um bom serviço, ajudando, por meio de ações práticas, a reintegrarem os excluídos na força do trabalho, recuperando sua dignidade, sua força de vontade, e se encarar a realidade com o intuito de transformá-la para uma sociedade mais justa, igualitária, menos agressiva, violenta e mais humanitária.

Além disso, cabe à universidade engendrar novos paradigmas para criar uma sociedade voltada à paz, à solidariedade, em que esteja excluída toda a forma de exploração e de indiscriminação. Deve promover a cultura da paz e a perspectiva de apre-nder a viver com os diferentes e uns com os outros, de forma pacífica e civilizada. A universidade, além do ensino e da pesquisa, deve ter uma responsabi-lidade social, não assistencialista. Ela deve ouvir a comunidade e, na medida do possível, atendê-la.

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6Repensando a Universidade

Este deverá ser o diferencial de se repensar a uni-versidade. De acordo com Mora (2006), a mudança de con-texto para a educação superior (sociedade global, sociedade do conhecimento e universalidade) ex-ige a realização de reformas no sistema educativo para responder aos novos desafios. As mudanças devem ser de dois tipos: intrínsecas (modelo ped-agógico) e extrínsecas (modelo organizacional). A idéia de mudança intrínseca pode ser sintetizada na necessidade de mudar o paradigma educacio-nal, partindo-se de um modelo baseado, quase que exclusivamente, no conhecimento para outro, fundamentado na formação integral dos indivíduos. É indispensável que os sistemas de educação su-perior dediquem especial atenção para o desen-volvimento das habilidades “saber ler, saber falar e escrever, saber pensar e saber continuar aprenden-do, aprender a relacionar-se e entender o mundo do trabalho, além de desenvolver os conhecimen-tos de caráter prático que facilitem a aplicação dos conhecimentos teóricos” (MORA, 2006, p. 140).

A mudança extrínseca refere-se ao modelo orga-nizacional das instituições de educação superior, que deve estar orientado para o aumento de flexi-bilidade do sistema, em um sentido temporal (facili-tando a educação ao longo de toda a vida) e opera-tivo (facilitando a passagem do sistema educativo ao mercado de trabalho e entre programas dentro do sistema educativo). Em síntese, a mudança re-sume-se a abrir as portas à sociedade e escutar o que ela necessita das universidades.

Ao se repensar a universidade, cabe fazer menção a uma preocupação histórica, que vem acompan-hando a instituição ao longo de sua trajetória, ou seja, a autonomia. De uma estrutura simplificada e homogênea, a universidade passou a ser uma in-stituição cuja complexidade e heterogeneidade são marcantes, na contemporaneidade. A rígida estru-tura administrativa e pedagógica, a inflexibilidade, o autoritarismo e o excessivo controle, a exces-siva legislação e a própria burocracia são fatores que entravam a autonomia e, conseqüentemente, sua capacidade inovadora de realização e de em-preendedorismo, indispensáveis em uma socie-dade dinâmica.

Percebe-se que as instituições particulares estão se adaptando de maneira mais veloz às mudanças que a sociedade globalizada exige. Nos últimos anos, a universidade pública também está fazendo um esforço para adaptar-se ao modo de ser, viver e agir da sociedade.

Kerr, citado por Clark (2006), enfatiza que somente as universidades autônomas estão em condições de se mover rapidamente em tempos de mudan-ças e fazer frente à crescente concorrência. Des-

sa forma, faz-se necessária uma autonomia ativa, conduzida por um ponto de vista empreendedor.

A universidade, como instituição capaz de valori-zar a cultura local/universal, produzir e disseminar o conhecimento, mediante a pesquisa, a docên-cia e a extensão, deve ter autonomia. No entanto, esta deve ser acompanhada de mecanismos, de autocontrole e de acompanhamento externo, para harmonizar a autonomia, pois a instituição utiliza-se de recursos públicos e faz parte de um sistema nacional de educação.

Cabe ao Estado acompanhar e zelar pela quali-dade, e a universidade deve responder ante a so-ciedade pelo bom uso dos recursos públicos e as-sumir uma autonomia responsável. De acordo com López Segrega (2006), a autonomia não exime a universidade do compromisso social. E a instituição tem a obrigação de prestar contas à sociedade.

Quanto à gestão e ao financiamento, há a neces-sidade de serem revistos alguns sistemas arcaicos, aristocráticos e burocráticos de administrar a uni-versidade. É indispensável para as lideranças e para os gestores que estejam convencidos de que o modo adequado de governar a universidade é pela via da participação e não da imposição. A gov-ernabilidade da universidade se constrói mediante participação, negociação, argumentação, pontos de vista convergentes/divergentes e convencimen-tos. A participação supõe que toda a comunidade universitária seja consultada e, por meio de diferen-tes formas, possa expressar seus pontos de vista, quer de forma presencial ou virtual. Os pontos de vista divergentes, comumente conflituosos numa primeira instância, se bem encaminhados, serão extremamente benéficos para a oxigenização e crescimento da instituição.

No que diz respeito ao financiamento, o Estado deve ser o principal provedor, pois a educação su-perior é de sua responsabilidade, porém, devido aos ajustes fiscais ocorridos nos últimos anos, o Estado tem reduzido os investimentos nas univer-sidades públicas federais. Em relação a essa prob-lemática, Chaves (2006) assinala:

As políticas de ajuste fiscal implementadas no Es-tado brasileiro pelos sucessivos governos neolib-erais, especialmente de Fernando Henrique e Luis Inácio, promoveram o gradativo afastamento do estado da manutenção do sistema público de en-sino superior e do financiamento da pesquisa no País, agravando a crise vivida pelas universidades públicas federais (p.99).

Além desses recursos federais, a universidade deve, por intermédio dos diferentes órgãos de fo-mentos locais, regionais, nacionais e internacio-

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7Repensando a Universidade

nais, buscar o apoio para o desencadeamento de seus projetos de ensino, de pesquisa e de exten-são. Não se podem descartar os recursos oriundos da iniciativa privada, pela negociação de projetos de ponta, geralmente de aplicação imediata, porém deve-se ter o cuidado com esse tipo de recurso, no sentido de haver preocupação ética e social.

É oportuno frisar que há praticamente consenso entre os gestores, docentes e discentes sobre a falta de recursos e investimentos e, como conse-qüência dessa realidade, afirmam que pouco se pode realizar em termos concretos para a melhoria de vida da população e do entorno. Contrapondo-se a essa idéia, Neciosup La Rosa (2006), em seu estudo “La educación superior virtual: un reto para la universidad latinoamerica”, enfatiza que:

Existe uma moda neoliberal de fazer da educação uma mercadoria. A universidade pública latino-americana deverá assumir o compromisso de que é possível fazer educação de qualidade e direcio-nada à erradicação da pobreza, ainda que com os escassos recursos financeiros de que dispõe. O principal recurso já se tem: são os próprios docen-tes e estudantes universitários latino-americanos, que com criatividade deverão encaminhar a univer-sidade pública e reatualizar a liderança acadêmica que já teve algum dia (p. 316, tradução nossa).

Partindo-se da tese de que toda a atividade hu-mana precisa ser avaliada, a avaliação institucional, produto do capital avançado e do mundo global-izado, deve constituir-se em parte integrante da agenda da universidade. Em direção a esta idéia, Holgado Sánchez e Lampert (2002) assinalam que a necessidade de avaliar as instituições superiores provém de vários fatores, construídos historica-mente.

Entre eles se destacam: a crescente massificação de matrículas, principalmente a partir de 1970, em muitos países do continente africano, australiano, asiático, americano e europeu; o aumento das in-stituições privadas que oferecem ensino superior, constituindo-se muitas vezes, em estabelecimen-tos heterogêneas em relação às universidades públicas; os insuficientes recursos destinados às universidades públicas, o que afeta a estrutura ad-ministrativa/pedagógica, obrigando a instituição a buscar recursos do setor privado; o aumento das exigências em relação às universidades, em fun-ção de um mercado de trabalho mais restrito e competitivo, o que faz com que as instituições se-jam competitivas na busca dos escassos recursos do setor produtivo; e, ainda, a adoção da política neoliberal.

Diferentes autores, Segenreich (2005), Gatti (2006), Nunes (2006a), Souza (2006) e Ribeiro (2009) en-

fatizam a importância da avaliação institucional como processo que deve ser desenvolvido de ma-neira permanente e global, utilizando-se da avalia-ção interna e externa e considerando o contexto em que a instituição está inserida. Além disso, o processo avaliativo deve envolver diferentes atores sociais, abarcar uma variada gama de metodolo-gias, assessorar-se de especialistas, com o obje-tivo de rever e aperfeiçoar o projeto político-ped-agógico, considerando a pertinência e a relevância das atividades desencadeadas, na dimensão ped-agógica e administrativa.

A avaliação institucional, que é um processo ex-tremamente delicado, deve ser feita com muita cautela, tanto em sua realização técnica como no que concerne às implicações pessoais, pois, em geral, gera situações de conflito e insegurança en-tre as pessoas e a instituição. A forma de conduzir o processo é tão importante quanto a coleta de dados. A busca dos melhores e menos dolorosos caminhos deve ser a preocupação da instituição e dos especialistas. Os interesses da instituição não são suficientes. É necessário o compromisso de to-dos os membros e de todos os segmentos, com a participação dos envolvidos nas diferentes etapas: pensar, elaborar e executar. Em relação a essa problemática, Lampert e Holgado Sánchez (2001) afirmam que:

O processo de avaliação tem que ter a participa-ção dos diferentes setores, categorias profission-ais, alunado, tanto na discussão e no planejamento como na execução do processo avaliativo. A aval-iação, para ter credibilidade e legitimidade, deve ser o resultado de uma construção coletiva de todas as pessoas que integrem a universidade. Portanto, a avaliação é um processo democrático, participativo e construído historicamente.

A avaliação institucional ocorre em uma entidade viva, que tem sua história composta por seres vi-vos, heterogêneos e em contínuo processo de crescimento. Constitui-se em uma realidade, sub-jetivamente construída e compartilhada social-mente pelo grupo. A instituição é o conjunto dos elementos culturais (valores, ideais e símbolos). Por sua vez, os membros da organização têm sua tra-jetória de vida, experiências, modos de ver e sentir. É imprescindível, tanto na avaliação interna como externa considerar o contexto político, econômico, social, cultural, a história e a missão da instituição, pois cada instituição é única e é necessário levar em conta as dinâmicas e os contextos internos e os externos às instituições.

Portanto, a avaliação institucional, em sua essên-cia, deve substituir o modelo puramente classifi-catório, pontual e fragmentado, por uma avaliação mais completa, global, abrangente, integradora,

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8Repensando a Universidade

sistemática, participativa, rigorosa, em que a flexi-bilidade estará presente. Avaliar, nesta perspectiva, não significa mais inspecionar, controlar, buscar da-dos parciais, desconexos e pouco confiáveis.

Avaliar consiste em analisar, de forma contextual-izada, os dados qualitativos e quantitativos, identifi-cando as potencialidades e fragilidades, permitindo conhecer a realidade, dos cursos e da instituição, com o objetivo, se for o caso, de redimensionar ou reforçar o processo. Este olhar crítico, porém não punitivo, tem como objetivo auxiliar a universidade a encontrar a sua missão, de forma dialógica, à luz de caminhos viáveis, dentro do atual contexto político, econômico, social e cultural.

Lampert (2008b), no artigo “Avaliação Institucio-nal: qual a ideologia subjacente a este processo na educação superior brasileira?”, salienta que a construção de um sistema de avaliação nacional, de um lado, é indispensável para uniformizar pro-cedimentos, manter a qualidade e a credibilidade no sistema. Por outra perspectiva, a extensão ter-ritorial, as peculiaridades regionais, a falta de recur-sos para a implantação e o acompanhamento, a grande gama, heterogeneidade e diversidade de instituições, são entraves quase intransponíveis. A construção de um sistema avaliativo nacional que contemple todas estas variáveis é um grande desa-fio, mas também uma perspectiva a ser perseguida.

Por fim, deve-se refletir se vale a pena tanta pre-ocupação com o sistema de avaliação nacional, sem que haja uma reversão deste quadro político, econômico, social, cultural caótico, neste país in-dustrializado, corrupto, com enormes disparidades sociais, no qual as políticas públicas, comumente, não são prioridade. A quem mais interessa um sistema nacional de avaliação? Ao capital avança-do na aldeia planetária ou à Nação Brasileira, so-berana, mas dependente dos países centrais e do mundo globalizado?

Algumas considerações finais

O Estado tem a obrigação de oferecer o ensino superior, não podendo renunciar ao seu compro-misso social. A educação superior, patrimônio da humanidade é um direito do cidadão e não pode ser confundida com um bem de importação ou de exportação, que se adquire. A universidade é uma instituição de ensino superior que deveria preparar o homem para a vida e não pode ser concebida como uma empresa rentável, com fins lucrativos.

Para a ideologia neoliberal, o importante é o lucro, a quantidade, os dados estatísticos que impress-ionam a população. A universidade deve se opor a essa tese e priorizar a qualidade, em todos os níveis de ensino, nas suas investigações, nos pro-

jetos, nos programas, nas atividades de extensão e serviços à comunidade.

A universidade, para retomar seu status e manter-se viva, com utilidade social, científico-tecnológica, de produção e disseminação do conhecimento, deve manter uma estrutura administrativa e ped-agógica flexível, em que a consulta e a participa-ção coletiva sejam uma premissa. A autonomia é indispensável para que a universidade consiga atender às demandas de uma sociedade mutante, e a inovação, em todas as dimensões, deve partir da universidade e não dos governos.

Há a necessidade de a universidade ajudar na sub-stituição do paradigma da modernidade, voltado exclusivamente para o processo de desenvolvim-ento, pelo do desenvolvimento humano susten-tável, que: coloca os seres humanos no centro do processo; considera o desenvolvimento econômi-co um meio e não um fim em si; protege as opor-tunidades de vida das gerações atuais e futuras; e, por último, respeita a integridade dos sistemas de suporte à vida no planeta. Para Guimarães (2006), os seres humanos devem constituir o centro e a razão de ser do processo de desenvolvimento. Nesse sentido, pretende-se que o desenvolvimento seja ambientalmente sustentável, no acesso e uso dos recursos naturais e na preservação da bio-diversidade; que seja socialmente sustentável, na redução da pobreza e das desigualdades sociais, promovendo a justiça e a equidade; que seja cul-turalmente sustentável, na preservação do sistema de valores, práticas e símbolos de identidade que determinam a integração nacional; que seja politi-camente sustentável, ao aprofundar a democracia e garantir o acesso e a participação de todos nas tomadas de decisão.

Por fim, cabe à universidade contribuir para o de-senvolvimento sustentável e melhorar as condições de vida da sociedade como um todo. Por meio de suas funções básicas, deve buscar um equilíbrio entre: ciência e tecnologia; inovação e conserva-dorismo; formação técnica e humanismo; formação profissional e educação permanente; conhecimen-to científico e cultura popular; economia e ecolo-gia; medicina e terapias alternativas; globalização e localidade; indivíduo e sociedade; pesquisa e ensino; graduação e pós-graduação; qualidade e quantidade; desenvolvimento e sustentabilidade. Isto tudo, tendo sempre presente que somente por intermédio de uma formação humanizada ter-se-á um homem humano, condição para redimensionar a sociedade.

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9“Vamos ganhar dinheiro à beça”Farsa e tragédia na política do governo Lula para a Educação Superior.

Por José Rodrigues,Professor da UFF

Resumo: O presente artigo analisa criticamente a política de educação superior do governo Lula, particularmente quanto à pós-graduação e, em especial, em relação aos chamados mestrados pro-fissionais. Para tal, analisa a entrevista do presidente da Capes, publicada em 21 de junho de 2009, em O Globo, e a portaria nº. 07/2009, do MEC, que regulamenta o mestrado profissional.

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grandeimportância na história do mundoocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar:a primeira vez como tragédia,a segunda como farsa (KARL MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte).

empresariamento da educação, em particu-lar da educação superior, não é propriamente novidade no cenário nacional. Tampouco é

desconhecido daqueles que acompanham as pro-postas, os discursos e a política educacional do governo Lula que, pelo menos desde julho de 2004, é francamente favorável à conversão da edu-cação em mercadoria, naquele processo que, em outro momento, denominei de educação-merca-doria e mercadoria-educação (RODRIGUES, 2007).

Sobre a natureza da pós-graduação

Ao ser questionado, pelo jornalista Demétrio We-ber, sobre as supostas diferenças entre o mestrado, dito “acadêmico”, e o mestrado apelidado de “pro-fissional”. Guimarães, há seis anos da Capes, tra-duz de maneira clara e direta a visão “pragmática” do governo brasileiro sobre a educação superior e o papel da ciência. Segue parte da entrevista:

“Até o momento são duas diferenças básicas: o perfil do candidato e o foco. O mestrado profission-al tem um foco específico de resolução de prob-lemas. O acadêmico, não: nesse caso, é preciso fazer levantamento de literatura a respeito, acom-panhar o que está acontecendo no mundo etc”.

Ora, na verdade, desde pelo menos o século XVIII, a produção sistematizada do conhecimento é voltada para a “resolução de problemas”, como sabe qualquer iniciante do mundo da ciência, seja ele pesquisador júnior, de ensino médio, jovem graduando, em iniciação científica, mestrando ou doutorando. Imediata (pesquisa aplicada) ou me-diatamente (pesquisa básica), os pesquisadores contemporâneos procuram respostas às perguntas postas pela humanidade para os problemas.

Para construir tais respostas e para que seja evi-

tada qualquer nova tentativa de (re)inventar a roda, toda pesquisa começa – obviamente - pelo “levan-tamento da literatura a respeito”. Ou seja, antes de começar a pesquisa, é preciso verificar ou “acom-panhar o que está acontecendo no mundo” – é a etapa preliminar de qualquer investigação que se pretenda científica.

Contudo, como pôde ser verificado pela leitura do trecho acima da entrevista, para o presidente da Capes, esta etapa é praticamente um estorvo à formação de mestres “profissionais”. Talvez deva-mos concluir que - para Jorge Almeida Guimarães – os pesquisadores em formação nos programas de pós-graduação não se preocupam em resolver problemas, ou melhor, talvez estejam apenas in-teressados em criar problemas... Talvez ele tenha razão. Pensar, de fato, cria muitos problemas.

Criando problemas

Como talvez seja sabido, os programas de pós-graduação se expandiram fortemente durante a chamada Ditadura Militar, particularmente, após a chamada Reforma Universitária de 1968 (Lei 5.540/68) e sob os auspícios da Capes.

Curiosa e contraditoriamente, pelo menos no cam-po educacional, a produção científica originada neste contexto logrou analisar precisa e critica-mente a política educacional governamental.

No que tange à educação superior, a política era voltada ao estabelecimento estrutural de uma dua-lidade na educação superior brasileira. A idéia posta em prática era, relativamente, tão simples quanto perversa. De um lado, existiriam poucas instituições universitárias – públicas e gratuitas - voltadas para a formação de quadros superiores, altamente qualificados, para a produção científica e para a extensão. Nestas, em geral, as vagas seriam (e o foram!) ocupadas por estudantes pertencentes às camadas médias da população e também pela própria burguesia.

Já, de outro lado, houve a expansão descontrolada (isto é, promovida pelo governo) de instituições de ensino superior (IES) privadas, as quais eram volta-das apenas para o ensino de graduação, em geral

O

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considerado de baixa qualidade. Não por acaso, as vagas (pagas) de graduação destas IES foram, em grande parte, ocupadas por pessoas oriundas das camadas trabalhadoras. Enfim, a política de educa-ção superior, no período da Ditadura Militar, consti-tui um sistema de educação superior dual.

No que tange à produção teórica, foram realizadas duras e consistentes críticas à base teórica desta política educacional – a chamada teoria do capital humano – que não só sustentou a reforma universi-tária, mas, também, e principalmente, a política da profissionalização compulsória do 2º grau.Dermeval Saviani corrobora esta visão:

Embora implantada segundo o espírito do pro-jeto militar do “Brasil Grande” e da modernização integradora do país ao capitalismo de mercado associado-dependente, a pós-graduação se cons-tituiu num espaço privilegiado para o incremento da produção científica e, no caso, da educação, também para o desenvolvimento de uma tendên-cia crítica que, embora não predominante, gerou estudos consistentes sobre cuja base foi possível formular a crítica e a denúncia sistemática da peda-gogia dominante, alimentando um movimento de contra-ideologia (2005, p.37).

Em outras palavras, de maneira contraditória, a crítica à política governamental surgiu dali onde se esperaria, talvez, o seu apoio. A comunidade acadêmica está, hoje, em posição e disposta a dar combate às atuais medidas de subordinação da educação e da produção do conhecimento à lógica mercantil?

Ganhar dinheiro à beça ou a política de Estado para a pós-graduação

Mas, a respeito de nossas interrogações, Jorge Al-meida Guimarães explicita precisamente por que o governo Lula, por intermédio do Ministério da Educação, resolveu “investir” nos chamados mes-trados profissionais, transformando-os em alvo de uma “política de Estado”:

Por que o governo tomou a decisão de investir nos mestrados profissionais?GUIMARÃES: Porque há uma demanda enorme. Este ano o ministro (Fernando Haddad) me cham-ou e disse: “Vamos transformar o mestrado pro-fissional em política de Estado, fazer um modelo diferente.” Batemos o martelo: vamos transformar o mestrado profissional em modelo de indução. Como fica claro em outras passagens da entre-vista, a “demanda enorme” provém das instituições de educação superior privadas, ou seja, aquelas cuja principal finalidade é, sem dúvida, o provi-mento do mercado com a educação-mercadoria.

Senão, vejamos:De onde vem a demanda para o mestrado pro-fissional?GUIMARÃES: Sobretudo do segmento privado. Queremos atrair para o sistema as universidades privadas que têm um bom nível. No contexto da pós-graduação acadêmica, 20% das instituições são não públicas. Quando eu comecei (há seis anos atrás), eram 10% e passamos a 20%. Ou seja, não há preconceito, tem que ter qualidade. No mestrado profissional, porém, é meio a meio. E cresce mais no privado.

Se há ainda alguma dúvida, cabe, então, transcrev-er o seguinte trecho, no qual o presidente da Capes responde a Demétrio Weber sobre o funcionamen-to do “novo modelo”:

O mestrado profissional passa a ser por edital, a-berto a todas as áreas que se sintam atraídas. Hoje temos um aplicativo na internet, mas muita gente não fica sabendo. Com a chamada pública, pode ser que um hospital excelente em ortopedia, como este aqui do Distrito Federal (Sarah Kubitschek), diga: “Nós temos cinco doutores nisso e temos dez dos melhores cirurgiões. Vamos montar um mes-trado profissional, vamos ganhar dinheiro à beça.” Hoje precisa ser todo mundo doutor.

O exemplo dado por Guimarães não é casual. Com efeito, provavelmente, a Associação das Pioneiras Sociais – entidade gestora da Rede Sarah de Hos-pitais de Reabilitação – é a pioneira na privatização dos serviços públicos.

Com efeito, em 1991, pela Lei 8.246, Collor de Mello (tendo à frente do Ministério da Saúde Al-ceni Guerra) cria um tipo de instituição peculiar, símile às entidades do chamado Sistema S (Senai, Senac, Senat, Sesi, Sesc e Sest), hoje conhecida como OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), ou simplesmente OS. Este tipo de instituição é peculiar porque é herdeira do pa-trimônio público, financiada pelo poder público, mas administrada privadamente, por meio dos chamados “contratos de gestão”.

Para aqueles que acompanham cotidianamente a política estadual do estado do Rio de Janeiro, assim como a municipal carioca, as OS estão na “agenda” destes governos. Com efeito, ambos es-tão em um célere processo de privatização dos serviços públicos, precisamente por meio da en-trega das redes públicas (educação, saúde, cultura) às chamadas OS.

“Vamos ganhar dinheiro à beça”. Este é o lema pro-ferido pelo presidente da Capes, que deverá nortear a criação e o funcionamento dos chamados mes-

“Vamos ganhar dinheiro à beça”

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11trados profissionais, onde, para ele, revisão e litera-tura, pesquisa básica e doutores-pesquisadores é um verdadeiro estorvo.

Fechando a entrevista, Jorge Almeida Guimarães dá mais um passo na explicitação cínica, isto é, “pragmática”, do papel do conhecimento na so-ciedade capitalista, seja ele produzido ou não às expensas das verbas públicas:

O camarada passa um período numa empresa, como consultor. Ele está fazendo mestrado profis-sional e nem é empregado daquela empresa. Essa consultoria contará (pontos). A empresa vai dizer se valeu a pena. Contará pontos e até pode ser a própria defesa final (em vez de dissertação). Se for assunto de sigilo industrial, pode ser uma defesa sigilosa. Tem que ter um trabalho final, só que o trabalho não precisa ser a tese clássica. Pode ser uma patente, uma consultoria, um conjunto de ar-tigos na imprensa.

Esta resposta põe claramente no lugar de merca-doria, o conhecimento: o “sigilo industrial”. Por co-erência à lógica mercantil, para proteger o conheci-mento, produzido a partir de todo o acervo cultural humano, a “defesa sigilosa” e a patente são itens indispensáveis. De fato, desde a revolução indus-trial inglesa, em meados do século XVIII, o conhe-cimento deixou de ser meramente contemplativo, compreensivo, para se converter em aplicação prática, tão-somente.

A portaria ministerial de Haddad

No dia seguinte à publicação da entrevista de Jorge Almeida Guimarães, efetivamente, foi assinada a portaria ministerial que normatiza o “Mestrado Pro-fissional”, em todo o país. De fato, a portaria con-firmou toda a entrevista concedida por Guimarães, ou melhor, a entrevista, que fora publicada em uma edição dominical de um dos maiores jornais brasileiros, funcionou, na verdade, como uma re-senha apologética da portaria ministerial.

Tal qual a entrevista do presidente da Capes, a portaria do ministro Fernando Haddad é rica em aspectos elucidativos das orientações política, pe-dagógica e ideológica do governo Lula para a edu-cação superior. Contudo, diante da natureza deste breve texto, optamos por destacar apenas alguns aspectos.

Já em seu artigo 1º, a Portaria nº 7/09 anuncia a intenção da Capes em “regular a oferta” dos cursos de mestrado profissional, assim como a sua avalia-ção. Sobre isto, basta dizer que se, por um lado, os defensores da regulação da vida humana via mer-cado, em particular na área da educação, justificam suas ações pelas demandas de mercado – como,

por exemplo, a criação dos mestrados profissional-izantes -, por outro lado, parecem não confiar, tanto assim, à pródiga “mão invisível mercado” a respon-sabilidade de condução de seus próprios negócios.

Além disso, ameaça-se sempre com a mão pesada da avaliação. Mão esta que, até o momento, tem sido dura com alguns programas de pós-graduação (particularmente com aqueles que vêm resistindo à produção em série de dissertações e teses) e bas-tante suave com as faculdades de fim-de-semana, com as universidades de faz-de-conta, que, volta e meia, estão presentes nas páginas da imprensa. Na mesma ambivalência, segue o artigo 2º da Por-taria Ministerial, que anuncia aos futuros estudantes que se tranqüilizem, pois o Estado irá garantir seus direitos de consumidores:

Art. 2º O título de mestre obtidos nos cursos de mestrado profissional reconhecidos e avaliados pela CAPES e credenciados pelo Conselho Na-cional de Educação - CNE tem validade nacional e outorga ao seu detentor os mesmos direitos con-cedidos aos portadores da titulação nos cursos de mestrado acadêmico.

Contudo, os aspectos mais ricos em contradições são, sem dúvida, a confrontação, de um lado, dos artigos 3º e 4º - que traçam, respectivamente, a definição e os objetivos do mestrado profissional - com o inciso II, do artigo 7º, de outro lado, o qual indica que a duração do curso de mestrado profis-sional será de, no mínimo, um ano e no máximo, dois anos. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, analisando-se, mesmo que rapi-damente, os artigos 3º e 4º, ficam claras as inten-ções do Ministério da Educação para com o novo mestrado profissional: uma preparação técnico-científica da força de trabalho qualificada em nível superior – calcada nos interesses imediatos do parque produtivo brasileiro. Destacam-se aqui as noções de “inovação”, “competitividade”, “produ-tividade”: léxico mágico do discurso neodesen-volvimentista aplicado à educação, tomada como o velho capital humano.

Art. 3º O mestrado profissional é definido como mo-dalidade de formação pós-graduada stricto sensu que possibilita:

I - a capacitação de pessoal para a prática profis-sional avançada e transformadora de procedimen-tos e processos aplicados, por meio da incorpora-ção do método científico, habilitando o profissional para atuar em atividades técnico-científicas e de inovação;

II - a formação de profissionais qualificados pela apropriação e aplicação do conhecimento emba-

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12sado no rigor metodológico e nos fundamentos científicos;

III - a incorporação e atualização permanentes dos avanços da ciência e das tecnologias, bem como a capacitação para aplicar os mesmos, tendo como foco a gestão, a produção técnico-científica na pesquisa aplicada e a proposição de inovações e aperfeiçoamentos tecnológicos para a solução de problemas específicos. (Brasil, Portaria do MEC, nº 7,de 22 de junho de 2009).

O artigo supracitado explicita o deslocamento “para cima” da dualidade que marca a educação brasileira, em particular a educação superior. As-sim, como hoje temos dois tipos de graduação (a dita tradicional e os atuais cursos superiores de tecnologia)12, a Portaria 07/2009 formaliza a nova dualidade no plano da pós-graduação. Aliás, como já indicara, (RODRIGUES, 2005) este deslocamen-to “para cima” da dualidade já estava previsto no Decreto 5.154/04.

De fato, conforme já havíamos interpretado (RO-DRIGUES, 2007), só existem duas formas básicas da burguesia - isto é, do capital - encarar a educa-ção escolar: educação-mercadoria ou mercadoria-educação. Cada uma dessas perspectivas liga-se diretamente à forma como o capital busca a auto valorização, onde cada uma dessas perspectivas são faces de uma mesma moeda, ou seja, formas sob as quais a mercadoria se materializa no campo da formação humana.

Note-se que encontramos - ao lado de noções, interesses, objetivos e finalidades do discurso burguês-industrial (na fase da acumulação flexível) – significantes, outrora, situados em outro campo político-semântico. Senão, vejamos o artigo 4º da portaria ministerial:

Art. 4º São objetivos do mestrado profissional:

I - capacitar profissionais qualificados para o exer-cício da prática profissional avançada e transforma-dora de procedimentos, visando atender deman-das sociais, organizacionais ou profissionais e do mercado de trabalho;

II - transferir conhecimento para a sociedade, aten-dendo demandas específicas e de arranjos produ-tivos com vistas ao desenvolvimento nacional, re-gional ou local;

III - promover a articulação integrada da formação profissional com entidades demandantes de na-turezas diversas, visando melhorar a eficácia e a eficiência das organizações públicas e privadas por meio da solução de problemas e geração e aplica-ção de processos de inovação apropriados;

IV - contribuir para agregar competitividade e au-mentar a produtividade em empresas, organiza-ções públicas e privadas.

Parágrafo único. No caso da área da saúde, quali-ficam se para o oferecimento do mestrado pro-fissional os programas de residência médica ou multiprofissional devidamente credenciados e que atendam aos requisitos estabelecidos em edital es-pecífico. (Brasil, Portaria do MEC, nº 7, de 22 de junho de 2009).

Enfim, a educação, as instituições públicas, a produção do conhecimento devem ser guiadas pe-los mesmos princípios e interesses que governam as atividades privadas, empresariais. Em outras palavras, há uma sutil metamorfose, de um hori-zonte democrático-popular (burguês) para o télos economia competitiva, erigido pelo discurso indus-trial (burguês), na virada do padrão de acumulação fordista para a acumulação flexível.

No caso desta portaria, fica claro que, de um lado, os artigos 1º, 3º e 4º procuram garantir a convers-ibilidade da educação-mercadoria em mercadoria-educação. Ou seja, de um lado, a portaria acena aos eventuais interessados em adquirir o título de mestre profissional que seus certificados e diplo-mas terão validade no mercado do trabalho com-plexo16. De outro lado, indica aos empresários que o produto que estes adquirirão como insumo à produção, terá a qualidade necessária ao seu em-preendimento.

Em tempos democrático-burgueses, os mecanis-mos de subordinação da educação e da produção de conhecimento não precisam ser de caráter re-pressivo policial, isto é, coercitivo. Simplesmente, se convence a comunidade acadêmica que a adoção das regras de mercado, além de inevitável, lhe será útil. Por isso, alguns pesquisadores-em-preendedores parecem dizer, durante as reuniões dos colegiados dos programas de pós-graduação: “A Capes somos nós, nossa força e nossa voz”.

A política deles e a nossa

Faz mais de 150 anos que Marx e Engels, por so-licitação dos camaradas da Liga Comunista, es-creveram:

Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dis-solvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com o seu cortejo de concepções e idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se con-solidarem. Tudo o que era sólido e estável se des-

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mancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens.

Talvez nos falte serenidade para encarar as mani-festações públicas e desavergonhadas de apreço à mercantilização da educação, do conhecimento, da cultura, da saúde, da vida, enfim.

Mas, sem dúvida, não nos falta a certeza que tudo o que um dia foi sagrado, hoje é, contínua e fran-camente, profanado e imolado no altar do Deus-Mercado. Em outras, palavras, a burguesia despo-jou de sua auréola todas as atividades até então reputadas como dignas e encaradas com piedoso respeito. Fez do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio seus servidores assalariados (MARX & ENGELs. op.cit. p.42).

Ou seja, temos hoje uma política de Estado que tem como pressuposto a apropriação privada do conhecimento produzido coletivamente e financia-do por verbas públicas.

Efetivamente, devemos encarar serenamente que - sob o modo de produção capitalista - a ciência está subjugada à “lei do valor” e que, portanto, só pode existir no movimento contínuo, autoexpansivo, tra-duzido, por Marx, na fórmula D-M-D’.

Ou seja, no capitalismo, a educação, o conheci-mento, a saúde, a verdade são meras Mercadorias que só podem existir se entrarem no processo de valorização do Dinheiro inicialmente investido para, unicamente, convertê-lo em mais-D’inheiro.

O governo Lula da Silva não se opôs a tal diretriz, ao contrário, vem – sempre que pode – procurando aperfeiçoar as políticas sociais, particularmente a educacional, na direção da lógica mercantil. Esta, portanto, é a política “deles”.

Infelizmente, diversos setores da classe trabalha-dora (ou não as compreenderam ou) apóiam con-scientemente tais políticas. Contra isso, nos cabe seguir fazendo a “nossa” política: utilizar o “pessi-mismo da inteligência” para analisar e denunciar to-das as formas de exploração e dominação perpe-tradas pela burguesia contra o conjunto da classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, nos apoiar no “otimismo da vontade” para dar combate político organizado às ações burguesas e de seus aliados, em todos os espaços sociais.

Assim, até que a noite se torne dia, qualquer ciên-cia, educação, cultura ou modo de vida que pre-tenda confrontar as velhas práticas dominantes, só poderá existir como prática social evanescente: centelha.

A crise mundiale seus reflexos na Educação Superior.

Por Olgaíses Cabral Maués,Professor da UFPA

Resumo: Defendendo a tese de que a atual crise do capital não acabou, ao menos para os trabalhadores, o texto discute as conseqüên-cias derivadas para a educação superior e as tendências observadas nas políticas na área, no Brasil.

Entre o final do século XX e o início do século XXI já tivemos pelos menos duas grandes crises no sistema capitalista. A última delas manifestou-se mais agudamente a partir de setembro de 2008, quando o capitalismo, em mais uma das suas cri-ses cíclicas, foi aparentemente empurrado para a crise pelo estouro da “bolha” do mercado imobil-iário norteamericano, formada por capital fictício.

A necessidade de superação dessa crise estrutural, que trouxe desemprego, crescimento econômico baixo, levou à adoção de medidas que contribuís-sem para a recuperação das taxas de lucro e da produtividade do capital. Nesse contexto de instau-ração de uma nova fase do capitalismo, visando à saída da crise, a educação, sobretudo a superior, é vista por alguns organismos internacionais como um instrumento capaz de contribuir para o cum-primento desse objetivo.

O papel do mercado, tão valorizado pelas políticas neoliberais, começa a ser questionado e o Estado ganha proporções salvacionistas, no socorro de-mandado pelos bancos e pela indústria.

Nesse contexto, a importância de se analisar o pa-pel da educação superior, a partir das recomenda-ções internacionais, e da posição brasileira, se faz fundamental, tendo como objetivo identificar os rumos que esse nível de ensino pode tomar a partir dessa “nova” visão redentora dos problemas criados pelo sistema capitalista. É este o escopo do presente artigo que procurará identificar as pos-síveis mudanças na elaboração das políticas de educação superior, considerando a crise estrutural do capitalismo dos anos 2000.

A crise do capital

Nos últimos doze meses se tem escrito bastante sobre a crise do capital. Inúmeras análises têm sido feitas procurando explicar as causas e mostrando as possíveis saídas. Por vezes, os menos avisados e perguntam como o fato de alguém não poder saldar suas dívidas com um banco pode afetar o sistema financeiro mundial. Para essas pessoas não há compreensão clara de que o capitalismo

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14gera suas próprias crises, tendo em vista que seu objetivo é o aumento constante da taxa de lucro e a acumulação e quando estas não se dão, o prob-lema está posto. Há sempre, nas crises do capital, um problema de superprodução, isso é inerente ao modelo e essa acontece pelo fato de não haver planejamento. Na última crise não foi diferente.

Como, hoje, vivemos a mundialização do capital (CHESNAIS, 2009) esse fato, o estouro da “bol-ha” imobiliária nos Estados Unidos, vai ter reper-cussões violentas no mundo inteiro. Para esse au-tor a mundialização “trata-se de um espaço livre de restrições para a operação do capital, para produzir e realizar mais-valias, tomando este espaço como base e processo de centralização de lucros à es-cala verdadeiramente internacional” (idem, p.3).

Marx (2008) apresenta, nos seus escritos, o fato de o capitalismo gerar suas próprias crises como sendo um processo inerente à sua natureza. Esta estaria marcada pelo caráter cíclico do processo de desenvolvimento, alternando fases de prosperi-dade com outras de depressão, representadas por ciclos parciais ou gerais, quando então se apresen-tariam as crises, significando estas um colapso de reprodução do sistema.

O que Marx quer dizer é que o modo de produção capitalista, que se baseia na acumulação de rique-za por meio da produção da mais-valia, implica a realização da mercadoria via ampliação do con-sumo. Mas, como o espírito é produzir, sem levar em conta a capacidade de consumo da sociedade, isso acaba gerando a superprodução. Para se re-compor, o capital passa a criar o desemprego, a destruição das forças produtivas, o aumento da ex-ploração dos trabalhadores por meio da diminuição do custo do trabalho, com o objetivo de aumentar a mais-valia e, conseqüentemente, a taxa de lucro.

Na atual crise, diferentemente daquela que marcou as décadas de 1970 e 1980, não se culpou o Esta-do, mas se buscou nele o socorro necessário para dela sair. Os Estados injetaram muitos bilhões/tril-hões para ajudar os capitalistas a se recuperarem. Os recursos públicos, que poderiam ser aplicados em políticas sociais, foram desviados para os ban-queiros e industriais. Com isso há uma diminuição dos recursos, que são finitos, para atender aquilo que deve ser o real papel de um governo, o bem-estar social.

Os homens de negócio, que, até então, vinham defendo o liberalismo econômico, a partir da crise de 2008 passaram a se posicionar em favor de uma maior participação do Estado na economia. Na hora do lucro, o mercado era o grande regula-dor, na hora do prejuízo, o setor público é chamado para dividir a conta. Mészaros (2009) denomina

esse fato de nacionalização da bancarrota do capi-tal.

Os reflexos da crise ainda estão se processando, apesar de haver já uma manifestação eufórica de que, no caso, o Brasil já haveria superado esse mo-mento. O Ministro da Fazenda, em uma declaração a um órgão da imprensa (Globo Economia, 2009), afirmou que “saímos da crise com a cabeça ergui-da, não destroçada, como no passado”.

Apesar da euforia das autoridades brasileiras, o Correio Brasiliense, de 08 de setembro de 2009, informa que a “América Latina levará 10 anos para reduzir a fome ao nível anterior à crise”. Os números a respeito do assunto são alarmantes. A mesma reportagem do jornal informa que existem 190 milhões de crianças que sofrem de desnu-trição crônica na América Latina. Os especialistas da ONU que fizeram o estudo informam que a crise afetou a renda real dos trabalhadores e isso difi-culta o acesso ao alimento, em quantidade e quali-dade suficientes.

Pode ser, pois, que a crise tenha acabado para os banqueiros e os industriais, não para a popu-lação assalariada. Os fatos apresentados parecem demonstrar isso. Ou seja, os dados indicam que a crise pode ter acabado, mas, certamente, as suas conseqüências, não!

Consideramos que não se tem ainda elementos su-ficientes que possam nos indicar as conseqüências maiores, que ainda terão efeito na vida dos trabal-hadores. Mas sabe-se que os reflexos se farão sen-tir também sobre o serviço público e, neste, sobre as políticas sociais, que poderão sofrer contingen-ciamento de recursos, já historicamente insuficien-tes para fazer face as suas necessidades.

Nesse cenário, a educação superior não está imune e o seu papel pode ser alterado de acordo com as exigências que a ela forem feitas, em função da im-portância que possa representar para a diminuição do impacto da crise sobre o Estado capitalista.

A crise e a educação

Um comunicado feito pelo secretário geral da OCDE, em setembro de 2009, preconiza mais in-vestimentos na educação superior e diz que “para sair da crise econômica global, é preciso mais do que nunca um maior investimento na educação universitária”.

No editorial do documento Regards sur l’éducation. Indicateurs de l’OCDE1, de 2009, cujo título é “In-vestir em Educação para Retomar a Economia”, a questão da crise é abordada com uma justificativa de que não é possível ainda avaliar o impacto desta

A crise mundial

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15no sistema de educação, mas é apresentado um conjunto de indicadores que poderá ajudar o de-bate relativo à forma pela qual os investimentos no capital humano podem contribuir para a retomada da economia.

O documento, que traz dados dos países membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de alguns países “parceiros”, dentre eles o Brasil, referentes a 2007, ressalta que o nível de formação da população adulta é freqüentemente utilizado como indicador do capi-tal humano, quer dizer do nível de competência da população e da mão de obra.

A questão da educação superior (terciária) aparece no documento como sendo a senha para o em-prego e para maiores salários. Em uma análise de-talhada, o documento informa que as pessoas do sexo masculino titulares de diplomas de nível supe-rior gozam de uma vantagem salarial, que, no caso do Brasil, por exemplo, chega a 100% em relação às pessoas que têm apenas o nível médio (OCDE, 2009, p. 148). Já as mulheres, refletindo a diferença da renda entre os gêneros, têm também uma dife-rença menor.

Apesar desse reconhecimento, e ao contrário do que se poderia deduzir a partir das loas à educação superior, a Organização de Cooperação e Desen-volvimento Econômico não dá ênfase à importância de que os países, por meio dos governos, de fato, invistam na educação superior. Ao contrário, a re-sponsabilização do indivíduo é bem estimulada.

“A vantagem pecuniária que proporciona a el-evação do nível de formação incita os indivíduos a fazer este investimento para o futuro; retardar a compra de bens de consumo”. É apresentada uma metodologia de análise que considera vários dos investimentos feitos pelo indivíduo, que precisa pagar pelos seus estudos, considerado os cus-tos diretos, as mensalidades escolares, e os cus-tos indiretos, por exemplo, a diminuição de gan-hos durante os estudos. A análise demonstra que o rendimento social de uma formação terciária é claramente mais elevado do que aquele de uma formação secundária. A partir daí, conclui o docu-mento, que os indivíduos devam encarregar-se de uma maior parte do investimento material para se qualificarem”.

A importância do ensino superior continua sendo analisada no documento Regard sur l’éducation 2009 e uma informação interessante é trazida: o Canadá, a Coréia e os Estados Unidos e, entre os países “parceiros”, Israel, consagram entre 1,8% a 2,9% de seu PIB ao ensino superior e, ademais, es-tão entre os países nos quais o investimento priva-do, para esse nível, é o mais elevado (OCDE, 2009).

Já o Brasil destina aos estabelecimentos de ensino superior uma parte do PIB que é inferior a média da OCDE (idem, p. 224), e, apesar de destinar à edu-cação básica recursos acima da média dos países que compõem a pesquisa desse organismo, o total fica bem abaixo da média correspondente.

Outro dado a ser considerado é a informação de que, entre 2000 e 2006, o Brasil aumentou o número de matrículas em 47% - sem explicitar em qual esfera pública ou privada; em contrapartida, diminuiu o gasto por aluno na ordem de 16%.

Além da OCDE, outras manifestações em nível in-ternacional têm se apresentado, destacando a im-portância do investimento em educação superior. A Conferência Mundial sobre a Educação Superior, ocorrida em julho de 2009 na sede da UNESCO em Paris, cuja temática foi La nueva dinámica de la educación superior y la investigación para el cam-bio social y el desarrollo ressalta que:

Em nenhum outro momento da história tem sido mais importante que agora o investimento nos es-tudos superiores, por sua condição de força pri-mordial para a construção de sociedades de con-hecimento integradora e diversa para fomentar a investigação e a criatividade. A experiência da década passada demonstrou que a educação e a investigação contribuem para erradicar a pobreza, para fomentar o desenvolvimento, para sustentar e avançar na consecução dos objetivos de desen-volvimento acordados no plano internacional, en-tre outros. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) e a Educação para Todos (EPT). Os programas mundiais de educação deveriam refletir estas realidades (UNESCO, 2009, tradução nossa).

A Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe, realizada em 2008, como etapa preparatória à Conferência Mundial de Edu-cação Superior de 2009, coloca a educação su-perior como um direito humano e um bem público social, devendo os Estados garantirem esse direito.

O Plano de Ação decorrente dessa Conferência ex-plicita algumas diretrizes nas quais está presente a necessidade de expansão da educação superior, apontando uma meta de 40% para ser atingida pe-los países da América Latina e Caribe, até o ano de 2015. As questões da Avaliação e da Qualidade dessa educação também são apontadas como sendo importantes. Há também explícito, nas dir-etrizes desse Plano, uma questão voltada aos do-centes, indicando a necessidade de esses serem motivados com planos de carreira e salários, enfim, com condições de trabalho para o melhor exercício profissional.Para se preparar para participar da Conferência Mundial, o Brasil, por meio do Conselho Nacional

A crise mundial

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16de Educação, realizou o Fórum Nacional de Educa-ção Superior, cujas ênfases recaíram: na democra-tização do acesso e na flexibilização dos modelos de formação; na elevação da qualidade e na aval-iação; e no compromisso com a inovação. Além das manifestações já detalhadas em outros docu-mentos, o Conselho reiterou a questão da educa-ção como direito social e universal, e como bem público. Não se encontram nos relatos sobre este Fórum posições mais claras sobre a questão da necessidade de maior investimento na educação superior pública.

Retornamos às posições apresentadas pela OCDE no documento já mencionado Regard sur l’éducation, 2009, no qual há um destaque signifi-cativo sobre a importância, a relevância do papel da educação, inclusive para a saída da atual crise mundial do capital. A partir das afirmações desses organismos internacionais, tanto a OCDE quanto a UNESCO, promotora da Conferência Mundial de 2009, nos indagamos sobre as formas como o Brasil vem se posicionando acerca desse nível de ensino.

Os tópicos que compõem este artigo procuram fazer uma análise de algumas políticas de educa-ção superior que estão em curso no país, buscan-do identificar os caminhos indicados pelo governo brasileiro no sentido de realizar a expansão da edu-cação superior pela via pública.

As políticas de educação superior

Apesar da propalada importância da educação su-perior, no Brasil a expansão desse nível de ensino vem sendo feita pela via privada. A reestruturação da educação superior está vinculada a um projeto privatista, cujo aprofundamento se inicia no gov-erno de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e tem continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).

As políticas que serão definidas após a crise de 2008 dificilmente mudarão essa rota, tendo em vista as ações em curso e a defesa desse modelo expansionista que vem se caracterizando pela am-pliação de vagas no setor privado, com recursos públicos e, nesses últimos anos, com a intensifica-ção do trabalho docente. Por isso, na minha aval-iação, as políticas terão continuidade, pois elas já foram concebidas no sentido de respaldar o capital e de atender aos interesses privados, não havendo necessidade de mudança de rota.

Alguns dados extraídos do Censo da Educação Su-perior 2008 (INEP, 2009) são reveladores e respal-dam a avaliação de que o rumo das políticas para educação superior não mudará em conseqüência da crise: existem 2.252 instituições de educação

superior, sendo que dessas 236 são públicas e 2.016 privadas. Dessas, apenas 183 são universi-dades, sendo 97 públicas e 86 privadas Em relação ao número de cursos presencias, a configuração não se modifica, do total de 24.719 cursos, existem 6.772 (27,39%) nas instituições públicas e 17.947 nas instituições privadas (INEP, 2009).

De modo ainda mais dramático, aparece a concen-tração das vagas nos cursos presenciais no setor privado (INEP, 2009): do total de 3 milhões de va-gas oferecidas, (precisamente, 2.985.137), mais de 88%, ou seja, 2.641.099, são de IES privadas. Gov-ernos, tanto o federal quanto vários estaduais, têm feito propaganda quanto ao esforço em aumentar as vagas públicas. Contudo, de 2007 para 2008, o aumento de vagas públicas correspondeu a ap-enas 4,5%, pois, se houve acréscimo de 9,3% nas IES federais (IFES), houve crescimento bem menor nas estaduais (IEES) e decréscimo nas municipais (IMES). Como as vagas privadas, apesar de apre-sentarem mais de 50% de ociosidade, cresceram em 5,9%, portanto acima da expansão das vagas públicas, a desproporção continua se ampliando, a favor da oferta privada.

O total de matrículas (INEP, 2009) correspondeu, em 2008, a pouco mais de 5 milhões (5.080.056), tendo crescido 4,1% em relação a 2007; destas, ao redor de um quarto (1.273.965) se encontram no setor público, estando aproximadamente metade destas últimas (643.101) nas IFES, em 2008. Um aspecto grave é que, deste total de matrículas, um terço (ou seja, 1.673.823) se encontra em institu-ições isoladas, ou seja, faculdades, escolas supe-riores ou institutos, sem vivência do clima universi-tário, e, praticamente a totalidade delas, privadas. Nas instituições isoladas apenas 9,2% do corpo docente têm o título de doutor e 63,2% dos profes-sores estão submetidos às condições precarizadas dos contratos por hora-aula.

No período de FHC pode-se dizer que a marca da educação superior foi a da privatização. Já no gov-erno Lula, além da continuação da expansão pela via privatista, com programas como o PROUNI, a ampliação do FIES, a ênfase também recai na que-bra da fronteira entre público e privado, com re-passe de recursos públicos para o setor privado, a mercantilização e o empresariamento, com a trans-formação da educação de direito público inalienáv-el para o vago conceito um bem público.

Em relação à educação superior, a efetivação dessa direção política do atual governo, vem ocor-rendo por meio da contra reforma da educação su-perior, assim chamada pelos movimentos sociais, traduzida, dentre outras medidas: no PL 7.200 de 2006, encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional; no REUNI um Programa de Reestrutura-

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17ção e Expansão das Instituições Federais de Edu-cação Superior, cujos objetivos são de expandir o número de matrículas, sem garantia de financia-mento compatível; nas Parcerias Público-Privadas, que tornaram as universidades heterônomas; pela proposta de desestruturação da carreira dos do-centes. É preciso salientar, que entre outros prob-lemas, o REUNI foi responsável pela introdução do contrato de gestão, orientado por metas numéri-cas, nas IFES, totalmente estranho ao verdadeiro fazer acadêmico.

No caso do PL 7.200 de 2006, a concepção de educação superior como “bem público”, e que tem uma “função social”, (art.3º.) está presente no documento. Essa linguagem parece estar bem nos moldes preconizados por Bresser Pereira (1997), quando afirma que é:

Público aquilo que está voltado para o interesse geral [...] está claro que o público não pode ser lim-itado ao estatal [...] e que associações não volta-das para a defesa de interesses corporativos, mas para o interesse geral não podem ser consideradas privadas.

Assim, as instituições particulares, em especial, aquelas ditas sem fins lucrativos são consideradas públicas, nessa acepção, e, como tal, podem rece-ber recursos públicos. Outro aspecto que merece destaque na contra reforma e está explicitado no referido Projeto de Lei é a possibilidade de a educação superior poder ter como sócio o capital estrangeiro, na ordem de 30%. Embora, na legis-lação atual, não haja referência alguma a esta pos-sibilidade, configurando uma insegurança jurídica, estaria, então, aberto em definitivo esse nível de ensino para a especulação internacional, numa re-sposta às recomendações e decisões da Organiza-ção Mundial de Comércio (OMC), portanto dentro de um projeto político do capital.

Além do envio de uma proposta de lei ao Con-gresso Nacional, o governo federal tem legislado por meio de Decretos, com destaque ao conjunto baixado em abril de 2007, dentre eles o de número 6.096 que cria o já citado Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Univer-sidades Federais (REUNI), cujos objetivos centrais são: aumentar a relação do número de alunos por professor; e elevar para 90% a taxa média de con-clusão de curso.

Na lógica do Decreto, esses dois objetivos re-dundariam em considerável aumento das vagas e matrículas, na medida em que seria aumentado o número de alunos em sala de aula, ao mesmo tem-po em que haveria aumento do número de alunos concluintes, permitindo com isso que novas vagas pudessem ser ofertadas no vestibular.

Em relação a esses dois principais objetivos do REUNI, os dados do Censo da Educação Superior 2008 (INEP, 2009) também nos ajudam na análise.As Instituições Federais de Educação Superior (IFES) apresentaram, em 2008, uma taxa de 67% de concluintes, o que significa um índice muito próximo ao alcançado pela maioria dos países da OCDE, diferentemente das Instituições Privadas, que obtém a taxa de 55,3%. Ao ampliarmos essa análise para o indicador relativo às vagas ociosas, a situação é ainda mais significativa: o número de vagas ociosas nas Universidades Federais foi de 7.387 enquanto que nas instituições privadas foi de 1.442.593 (INEP, 2009, p. 17).

Relativamente ao outro objetivo do REUNI, que é o aumento do número médio de alunos por profes-sor, o censo relativo ao ano de 2008 informa que, sobre a totalidade do ensino superior, esse índice é de 15, 8, sendo, contudo, composto a partir do índice de 10,4 para as IFES e 18,2 para as IES privadas. Conhecendo-se a realidade do trabalho do professor nestas últimas, com classes de até 120 alunos, será esta a condição pretendida tam-bém para a maioria das IFES?

Esclareça-se que a metodologia adotada no Cen-so utiliza a relação alunos por função docente, o que significa que o mesmo professor pode ser computado mais de uma vez, na medida em que trabalhe em mais de um lugar. Levando em conta que, nas instituições públicas federais, além das aulas, com, já hoje, cerca de 50 alunos na classe e dos cerca de 10 orientandos, incluindo Iniciação Científica, orientandos de Cursos de Mestrado e Doutorado, que cada docente atende, ele executa, diuturnamente, outras tarefas de pesquisa, exten-são e administração, o professor certamente está sobrecarregado, mesmo nas condições atuais.

Destaque-se que para a efetivação do cálculo, além dos aspectos já citados, deveriam, pois, ser computados outros, tais como as horas dedicadas a atividades de pesquisa, extensão, administração, participação em comissões, que as metas do REU-NI não consideram. Outro grande prejuízo ao futuro das IFES é que os estudantes de pós-graduação não são em princípio, considerados no cômputo da meta do REUNI, sendo aquinhoadas com um “desconto” basicamente apenas aquelas universi-dades com programas de doutorado consolidados pela avaliação Capes (notas 6 e 7).

Em decorrência, esses objetivos do REUNI rep-resentam dois grandes problemas:

1. a intensificação do trabalho docente, com o au-mento das atividades, mais turmas por professor, salas mais cheias, maior demanda sobre o docen-te, ocasionando o que os estudos já vêm compro-vando o chamado “mal estar docente” - depressão,

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18stress, problemas de voz; distúrbios mentais e out-ros males;

2. prejuízos à qualidade do ensino. Com a obrigato-riedade de que haja 90% de concluintes, possivel-mente, estará instituída, também no nível superior, a “promoção automática”. Isso já ocorreu na Educa-ção Básica e sabemos quais foram os resultados: estudantes na quinta-série sem saber ler; pessoas entrando na educação superior sem saber redigir, com problemas de ortografia, pontuação; sem or-denamento lógico das idéias, dentre outros.

Ao analisar o Acordo de Metas no. 010, celebrado entre o MEC e a Universidade Federal do Pará, “para os fins que especifica o Decreto 6.096 de 2007”, pode-se já constatar a questão da intensi-ficação do trabalho do professor. Com referência à matrícula, o referido Acordo indica, entre os anos de 2007 a 2012, um crescimento de 61%3.

Em relação ao aumento no número de professo-res, no mesmo período, constatasse que este será de apenas 28,8%4 (ADUFPA, 2009). Ao cruzar-mos os dados, pode-se constatar que o número de matrículas crescerá quase três vezes mais do que o número de professores. Ora, isso é um forte indicador da sobrecarga docente, que ocorrerá na medida em que a UFPA terá um crescimento ver-tiginoso de alunos, sem o correspondente número de professores.

O trabalho do professor já está precarizado e flexi-bilizado, sobretudo para aqueles que atuam nos Programas de Pós-Graduação. A intensificação do regime de trabalho, em função, tanto da diminuição numérica do corpo docente, por falta de concur-sos, quanto do aumento da carga horária real em classe e extra classe, além da ampliação da nature-za das atividades que esses profissionais passam a desenvolver a partir de uma nova lógica geren-cialista, são alguns dos aspectos que caracterizam essa “tendência”, presente hoje das Universidades Federais e que poderá se aprofundar com a im-plantação do REUNI, tendo em vista o Acordo de Metas que as IFES firmaram com o MEC. O não cumprimento do Acordo significará o não repasse de verbas, como é caracterizado em um contrato de gestão.

O objetivo de trazer à discussão, novamente, o REUNI está ligado ao fato de que o governo federal está sinalizando às Universidades Federais que, em 2010, haverá uma repactuação das metas, o que trará a questão novamente à tona. Sabe-se do pro-cesso tumultuado pelo qual se deu a aprovação do REUNI nos Conselhos Superiores, na grande maio-ria das Instituições Federais de Educação Superior. O outro ponto levantado na análise do REUNI, diz respeito à qualidade do ensino. Ora, as exigên-cias de um índice muito alto, 90%, de conclusão

de curso podem ter uma influência nefasta sobre a qualidade do ensino, na medida em que os profes-sores serão pressionados a atingir a meta, para que a instituição possa obter os recursos financeiros vinculados. Com as turmas lotadas (o aumento da matrícula, sem o correspondente aumento do cor-po docente, como já demonstrado), a exigência de aprovação poderá se tornar um fator decisivo para o aligeiramento, a flexibilização do ensino e a con-seqüente perda da qualidade necessária para que se forme um cidadão e um profissional que venha atender as demandas da sociedade.

O objetivo, nesse texto, é dar destaque àquelas políticas que mais diretamente poderiam, na lógica governista, estar contribuindo para a expansão da educação superior e, assim, para a lógica explic-itada pela OCDE de que o investimento nesse nível de ensino poderá ajudar os países a superarem a crise. O Brasil tem um atraso histórico em relação à educação superior, representado tanto pela implan-tação tardia desse nível de ensino no país, quanto pela baixa oferta pública de vagas, o que fez com que, no início do século XXI, se tenha cerca de 24% de matrícula líquida (jovens de 19 a 24 anos).

Em função desse índice, que destoa da grande maioria dos países da América Latina, o governo federal vem estimulando a oferta de cursos de grad-uação à distância (por Ensino à Distância – EAD). Os dados do Censo 2008 indicam que houve um crescimento significativo da matrícula nesses cur-sos. Em 2008, o número de matrículas nessa mo-dalidade de ensino foi de 727.961. Nas instituições públicas foram 278.988 (55.218 nas IFES; 219.940 nas Instituições Estaduais e apenas 3.830 nas Mu-nicipais). Já nas Instituições Privadas o número de matrículas nesse período foi de 448.973, ou seja, 61,67% do total.

Como diferença mais notável, em relação ao ensi-no presencial, pode-se notar a relação muito baixa, 0,41, entre candidatos e vagas (INEP, 2009). As-sim, das 1,7 milhões de vagas em EAD oferecidas, menos de um quarto (430.259) corresponderam, efetivamente, a ingressos.

A matrícula no EaD já representa 14,3% do total das matrículas globais da graduação. Chamamos a atenção de que o número de matrículas via ensino à distância quase duplicou entre o ano de 2007 e 2008, continuando a ampliação, praticamente ex-ponencial, iniciada em 2004 (INEP, 2009, p. 30), o mesmo não ocorrendo com a educação presencial.

O barateamento dos custos, a pouca exigência de professores qualificados, os currículos enxutos, em particular via EAD, estão despontando como mais uma política de expansão sem a devida qualidade.Finalizando

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19

A crise de 2008 serviu para desvelar o papel do mercado e do Estado frente aos interesses do capi-tal e desmistificar o discurso neoliberal. A avalia-ção que se faz é que, sem uma mobilização forte e consciente da sociedade civil, à frente professores e estudantes, ela vai trazer um aprofundamento ainda maior da transferência de recursos públicos para o setor privado, uma diminuição dos recursos para a educação superior (hoje parada no patamar de menos de 1% do PIB), a flexibilização dos direi-tos trabalhistas, e, em especial nas universidades, a intensificação do trabalho docente e o aligeira-mento da qualidade da educação.

O ANDES-SN, em reunião de diretoria ocorrida em setembro de 2009, se manifestou a respeito da conjuntura mundial e nacional e explicitou a posição da entidade em relação ao assunto, ratificando que o governo Lula, consoante com a perspectiva do capital, de negação da educação como direito in-alienável dos indivíduos, mantém um projeto políti-co, que tem se manifestado por meio de leis, por-tarias, decretos, e vem, de fato, caracterizando a reforma fatiada da educação superior. O Sindicato continua na luta, no sentido da resistência e da mo-bilização do conjunto da categoria docente, para realizar articulações com os demais protagonistas da educação superior, técnicos administrativos e estudantes, além da sociedade civil, para, de for-ma organizada, conseguir modificar o atual quadro político.

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Apesar das recomendações emanadas da OCDE, da UNESCO, das Conferências Regionais, não se têm indicações quanto à vontade política efe-tiva para o aumento de recursos, de forma mais impactante para a educação superior, visando à melhor remuneração dos profissionais que atuam nesse nível de ensino e à adequação da infra-estru-tura para acomodar, com qualidade, o aumento do número de vagas ofertadas pelas Instituições Fed-erais de Ensino.

O que se pode perceber, é que, como na década de 1990, a expansão das vagas para a educação superior continua sendo implementada majoritari-amente pela iniciativa privada e, dentro dessa, em grande parte por meio das Faculdades e com um corpo docente sem a qualificação em nível de dou-toramento.

A alteração dessa situação, na atual conjuntura, não se dará sem o protagonismo dos movimentos organizados. O Sindicato dos Docentes da Educa-ção Superior ANDES-SN tem um importante pa-pel a desempenhar nessa conjuntura de mais uma crise do capitalismo, lutando por uma educação que possa estar a serviço da transformação social.

Twitter: @levantenacionalBlog: coletivolevante.wordpress.com

Coletivo

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20Organizandopara a transição anti-capitalista

Por David Harvey.

A história geográfica do desenvolvimento capitalis-ta está em um ponto de inflexão no qual as config-urações geográficas de poder estão rapidamente mudando, ao mesmo tempo em que a dinâmica temporal está enfrentando sérias restrições. 3% de crescimento composto (geralmente considerada a taxa mínima aceitável para uma economia saudável) está se tornando cada vez menos possível de sus-tentar sem recorrer a toda sorte de ficções (como aquelas que caracterizaram os mercados de ações e negócios financeiros nas últimas duas décadas).

Há razões para crer que não existe alternativa para a nova ordem mundial de governança, que eventu-almente terá que administrar a transição para uma economia com crescimento zero. Se isto precisa ser feito de maneira equitativa, então não há alter-nativas que não o socialismo ou o comunismo.

Desde o fim dos anos 1990, o Fórum Social Mun-dial tornou-se o centro de articulação do tema “um outro mundo é possível”. E agora deve assumir a tarefa de definir como um outro socialismo ou co-munismo são possíveis e como a transição para estas alternativas deve ser realizada. A atual crise oferece uma oportunidade de reflexão a respeito do que pode estar envolvido.

A crise atual foi originada nas medidas tomadas para resolver a crise dos anos 1970. Estas medi-das incluem:

(a) o bem sucedido ataque ao trabalho organizado e suas instituições políticas enquanto mobilizavam o excedente da mão de obra global, instituindo mu-danças tecnológicas para economizar mão de obra e aumentando a competição. O resultado foi a di-minuição dos salários em nível global (uma parcela em declínio dos salários no total do produto interno bruto em quase toda parte) e a criação de uma reserva de trabalho descartável ainda mais vasta vivendo em condições marginalizadas. (b) o enfraquecimento das estruturas prévias de monopólio de poder e a substituição do estágio an-terior (Estado nação) de monopólio capitalista ao abrir o capitalismo para uma competição interna-cional muito mais feroz. A intensificação da com-petição global traduziu-se em lucros corporativos não-financeiros mais baixos. O desenvolvimento geográfico desigual e a competição interterrito-rial tornaram-se peças chave no desenvolvimento capitalista, abrindo caminho em direção a uma mu-dança hegemônica de poder particularmente, mas não exclusivamente, na Ásia.

(c) a utilização e o empoderamento das formas mais fluidas e altamente voláteis de capital – din-heiro – para realocar globalmente recursos de capital (eventualmente através dos mercados ele-trônicos) incentivando assim a desindustrialização em regiões fundamentais tradicionalmente e novas formas de (ultra opressiva) industrialização e extra-ção de recursos naturais e matéria prima agrícola em mercados emergentes. A proposta era melho-rar o potencial lucrativo das corporações financei-ras e encontrar novas maneiras de globalizar e su-postamente absorver riscos através da criação de mercados de capital fictícios.

(d) No outro extremo da escala social, isso sig-nificou uma maior credibilidade do “acúmulo por espoliação”, como meio de aumentar o poder da classe capitalista. Os novos ciclos de acumula-ção primitiva contrários às populações indígenas e camponesas foram intensificados por perdas patrimoniais das classes mais baixas nas econo-mias centrais (como testemunhado pelo mercado imobiliário sub-prime nos EUA que impingiu uma perda enorme de ativos particularmente por parte das populações de afroamericanos.

(e) O aumento da demanda efetiva, anteriormente flácida, ao pressionar a economia da dívida (gover-namental, empresarial e doméstica) até o seu limite (especialmente no EUA e no Reino Unido, mas tam-bém em muitos outros países da Letônia a Dubai).

(f) A compensação pelas anêmicas taxas de re-torno da produção com a construção de toda uma série de bolhas no mercado de ativos, que tiveram um caráter Ponzi, culminando na bolha imobiliária que estourou em 2007-8. Essas bolhas de ativos apoiaram-se no capital financeiro e foram facilita-das por grandes inovações financeiras tais como os derivativos e as “obrigações de dívida colateral-izada”, também conhecidas como “obrigações de dívida com garantia”.

As forças políticas que se uniram na mobilização por trás dessas transições tinham um caráter de classe distinto e vestiram-se com as roupas de uma ideologia distinta chamada neoliberal. A ideologia repousava sobre a idéia de que os mercados livres, o livre comércio, a iniciativa pessoal e o empreen-dedorismo eram os melhores fiadores da liberdade individual e da liberdade como um todo, e que o “Estado-babá” deve ser destruído para o benefício de todos. Os interesses do povo eram secundários em relação aos interesses do capital, e na eventu-alidade de um conflito entre eles os interesses do povo teriam que ser sacrificados. O sistema criado equivale a uma verdadeira forma de comunismo para a classe capitalista.

Estas condições variaram consideravelmente, como era de se esperar, dependendo de qual par-te do mundo a pessoa morasse, das relações de classe lá predominantes, das tradições políticas e

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21culturais e de como o equilíbrio de poder político-econômico estivesse se movendo.

Então, como poderá a esquerda negociar a dinâmi-ca desta crise? Em tempos de crise, a irraciona-lidade do capitalismo torna-se clara para todos. Excedentes de capital e de trabalho existem lado a lado sem uma forma clara de uni-los em meio a um enorme sofrimento humano e necessidades não satisfeitas. Em pleno verão de 2009, um terço dos bens de capital nos Estados Unidos permaneceu inativo, enquanto cerca de 17 por cento da força de trabalho estava desempregada, trabalhando involuntariamente em regimes de meio período ou era formada por trabalhadores “desencorajados”. O que poderia ser mais absurdo que isso! Seria o capitalismo capaz de sobreviver ao presente trau-ma? Sim. Mas a que custo?

Esta pergunta encobre outra. Poderia a classe capitalista reproduzir seu poder face ao conjunto de problemas econômicos, sociais, políticos e geo-políticos e dificuldades ambientais? Novamente, a resposta é um sonoro “sim”, mas a massa terá de entregar os frutos do seu trabalho para quem está no poder, ceder muitos dos seus direitos e ativos (de todos os tipos desde habitação à previdência) e sofrer degradações ambientais em abundância, sem falar nas sérias reduções em seus padrões de vida, o que significa a fome para muitos daqueles que já lutam para sobreviver no fundo do poço. As desigualdades de classe aumentarão (de novo).

Estas questões podem exigir mais do simples-mente um pouco de repressão política, violência policial e controle militarizado do Estado para repri-mir a desordem.

Uma vez que boa parte destes fenômenos é im-previsível e os espaços da economia global são tão variáveis, as incertezas quanto aos resultados são intensificadas em períodos de crise. Todos os tipos de possibilidades localizadas surgem para que os novos capitalistas em algum espaço novo aproveitem as oportunidades para desafiar os mais antigos e as hegemonias territoriais (como quando o Silicon Valley susbstituiu Detroit a partir dos anos 1970 nos Estados Unidos) ou para que os movi-mentos radicais desafiem a reprodução de um pod-er de classe já desestabilizado. Dizer que a classe capitalista e o capitalismo podem sobreviver não quer dizer que eles estão predestinados a isso nem que seu caráter futuro está determinado. As crises são momentos de paradoxo e possibilidades.

Então, o que vai acontecer desta vez? Se quiser-mos voltar para o crescimento de três por cento teremos encontrar novas e lucrativas oportuni-dades de investimento global para US$1,6 trilhão em 2010 subindo para perto de US$ 3 trilhões em 2030. Isto contrasta com o investimento de 0,15 tril-hão de dólares necessários em novos investimen-tos em 1950 e 0,42 trilhão de dólares necessários

em 1973 (os valores em dólar foram reajustados de acordo com a inflação). Problemas reais para se encontrar saídas adequadas para o capital ex-cedente começaram a aparecer depois de 1980, mesmo com a abertura da China e o colapso do bloco soviético. As dificuldades foram, em parte, resolvidas pela criação de mercados fictícios onde a especulação dos valores dos ativos poderia de-colar sem impedimentos. Para onde irá todo esse investimento agora?

Deixando de lado as restrições indiscutíveis nas relações com a natureza (o aquecimento global sendo de suma importância), as outras potenciais barreiras para a demanda efetiva no mercado, para as tecnologias e para a distribuição geográfica/geopolítica serão provavelmente profundas, mes-mo supondo, o que é improvável, que nenhuma oposição ativa séria para o contínuo acúmulo de capital e posterior consolidação do poder de classe se materialize. Que espaços são deixados na eco-nomia global para novas correções espaciais para absorção do excedente de capital? A China e o an-tigo bloco soviético já foram integrados. Sul e Sud-este Asiático estão se abastecendo rapidamente. África ainda não está totalmente integrada, mas não há nenhum outro local com capacidade para absorver todo este capital excedente. Que novas linhas de produção podem ser abertas para absor-ver o crescimento?

Pode não haver soluções capitalistas eficazes a longo prazo (além da volta às manipulações fictí-cias de capital) para esta crise do capitalismo. Em algum ponto, as mudanças quantitativas levarão às mudanças qualitativas e precisamos levar a sério a idéia de que estejamos exatamente neste ponto de inflexão na história do capitalismo. O question-amento a respeito do futuro do próprio capitalismo como um sistema social adequado deve, portanto, estar na vanguarda do atual debate.

No entanto, parece haver pouco apetite para tal discussão, mesmo entre a esquerda. Em vez disso, continuamos a ouvir os mantras convencionais de sempre sobre o potencial de perfeição da humani-dade com a ajuda dos mercados livres e do livre comércio, da propriedade privada e da responsabi-lidade pessoal, dos impostos baixos e do envolvi-mento minimalista do Estado na provisão social, ainda que tudo isso soe cada vez mais vazio.

Uma crise de legitimidade se avizinha. Mas as cri-ses de legitimação normalmente se desdobram em um ritmo diferente do ritmo dos mercados de ações. Passaram-se, por exemplo, três ou quatro anos antes que o crash da bolsa em 1929 produz-isse o movimento social massivo (tanto o progres-sista quanto o fascista) depois de 1932. A inten-sidade da atual busca do poder político por meios para sair da atual crise pode ter algo a ver com o medo político de iminente ilegitimidade. Os últimos trinta anos, no entanto, assistiram ao surgimento

Transição anti-capitalista

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22de sistemas de governança que parecem imunes a problemas de legitimidade e despreocupados, até mesmo com a criação de consentimento. A mistura de autoritarismo, corrupção monetária da democracia representativa, a vigilância, o policia-mento e a militarização (particularmente através da guerra contra o terror), controle de mídia e produção sugere um mundo no qual o controle dos descontentes através da desinformação, fragmen-tação de oposições e da concepção de culturas de oposição através da promoção de ONGs tende a prevalecer com muita força coercitiva para apoiá-lo, se necessário.

A idéia de que a crise teve origem sistêmica é pouco debatida na mídia prevalente (mesmo que alguns economistas como Stiglitz, Krugman e até Jeffrey Sachs para tentar roubar a cena histórica da esquerda, confessem uma epifania ou outra). A maioria dos movimentos governamentais para conter a crise na América do Norte e Europa levou a perpetuação da situação de sempre que se tra-duz em apoio à classe capitalista. O “risco moral” que foi o estopim para os fracassos financeiros está ultrapassando novos limites nos resgates a bancos. As práticas atuais do neoliberalismo (ao contrário de sua teoria utópica) sempre implicaram claro apoio para o capital financeiro e para as elites capitalistas (geralmente com base na teoria de que as instituições financeiras devem ser protegidas a todo custo e que é dever do poder do Estado criar um clima agradável para os negócios, o que resul-taria em um maior lucro). Fundamentalmente, nada mudou. Tais práticas são justificadas pelo apelo à proposição duvidosa de que uma “maré crescente” do empreendimento capitalista “levantaria todos os barcos”, ou seja, que os benefícios do crescimento composto traria, como em um passe de mágica, benefícios à toda população (o que nunca acon-tece, exceto sob a forma de alguns migalhas caí-das das mesas dos mais abastados).

Então, como a classe capitalista sairá da atual crise e em quanto tempo? O recuo dos valores nos mercados acionários de Xangai, Tóquio, Frankfurt, Londres e Nova York é um bom sinal é o que nos dizem, mesmo que o desemprego por toda parte continue a aumentar. Mas notem o viés de classe dessa medida. Somos intimados a regozijar-nos com a recuperação dos valores das ações para os capitalistas, porque esta sempre precede, dizem, uma repercussão na economia “real”, onde os pos-tos de trabalho são criados e os salários pagos. O fato de que a recuperação do último recuo das ações nos Estados Unidos após 2002 revelou-se uma “recuperação de desempregados” parece já ter sido esquecido. O público anglo-saxão, em par-ticular, parece ser seriamente atingido por essa am-nésia. Ele esquece e perdoa com grande facilidade as transgressões da classe capitalista e os desas-tres periódicos que suas ações precipitam. A mídia capitalista tem o prazer de promover essa amnésia.China e Índia ainda estão crescendo, o primeiro

aos trancos e barrancos. Mas no caso da China, o custo equivale a uma enorme expansão dos empréstimos bancários em projetos de risco (os bancos chineses não foram apanhados no frenesi especulativo global, mas agora estão dando con-tinuidade a este movimento). O superacúmulo da capacidade produtiva, que promove investimentos em infraestrutura graduais e de longo prazo, cuja produtividade não será conhecida por vários anos está crescendo (inclusive nos mercados imobiliári-os urbanos). E a crescente demanda da China está envolvendo também essas economias fornecedo-ras de matérias-primas, como a Austrália e o Chile. A probabilidade de um choque subseqüente na China não pode ser descartada, mas pode levar algum tempo para sabermos (uma versão de longo prazo de Dubai). Enquanto isso, o epicentro mun-dial do capitalismo acelera seu deslocamento pri-mordialmente para o leste da Ásia.

Nos centros financeiros mais antigos, os jovens tubarões financeiros pegaram seus bônus do ano anterior e, conjuntamente, abriram pequenas insti-tuições financeiras para continuarem a circular em Wall Street e City of London, peneirando os restos deixados pelos gigantes financeiros de outrora e recolhendo as partes suculentas para recomeça-rem tudo novamente. Os bancos de investimento que permanecem nos EUA – Goldman Sachs e JPMorgan – embora reencarnados como holdin-gs bancários, ganharam isenção de requisitos regu-lamentares e estão conseguindo lucros enormes ao especularem perigosamente com o dinheiro de contribuintes em mercados derivativos ainda não regulamentados e em plena expansão.

A alavancagem que nos levou à crise retornou como se nada tivesse acontecido. Inovações em matéria de finanças usadas como novas formas de empacotar e vender dívidas de capital fictício estão sendo reinventadas e oferecidas às institu-ições (como os fundos de pensão), desesperados por encontrar novos mercados para o capital ex-cedente. As ficções (assim como os bônus) estão de volta!

Os consórcios estão comprando propriedades cujo direito de resgate à hipoteca encontra-se anulado esperando que o mercado mude seu rumo antes de cancelá-los definitivamente ou ainda guardando propriedades de alto valor para um futuro momento de volta ao desenvolvimento ativo. Os bancos nor-mais estão estocando dinheiro, boa parte colhida em cofres públicos, também com a intenção de voltar ao pagamento de bônus compatíveis com o estilo de vida que levavam anteriormente, enquanto um conjunto de empresários paira ao seu redor à espera de aproveitar este momento, apoiados por uma enxurrada de dinheiro público.

Enquanto isso, o poder do dinheiro exercido por poucos prejudica todas as formas de governança democrática. Os lobbies farmacêutico, de seguro

Transição anti-capitalista

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23de saúde e de hospitais, por exemplo, gastou mais de US $ 133 milhões no primeiro trimestre de 2009 para se certificar que as coisas sairiam como eles querem na reforma da saúde nos Estados Unidos. Max Baucus, chefe do comitê de Finanças do Se-nado, que formulou o projeto de lei referente aos serviços de saúde recebeu US $ 1,5 milhões por um projeto de lei que oferece um vasto número de novos clientes para as companhias de seguros, com poucas proteções contra a exploração cruel e o lucro excessivo (Wall Street está encantada).

Outro ciclo eleitoral, legalmente corrompido pelo imenso poder do dinheiro, logo se avizinhará. Nos Estados Unidos, os partidos de “K Street” e de Wall Street serão devidamente re-eleitos enquanto tra-balhadores americanos são exortados a encontrar uma saída para a confusão que a classe dominante criou. Nós já estivemos em situação igualmente precária antes, e em todas as vezes os trabalha-dores norte-americanos arregaçaram as mangas, apertaram os cintos, e salvaram o sistema de al-gum mecanismo misterioso de auto-destruição, pelo qual a classe dominante se exime de qualquer responsabilidade.

Se este é o esboço da estratégia de saída, então quase certamente estaremos em outra confusão antes de cinco anos. Quanto mais rápido sairmos desta crise e quanto menos capital excedente for destruído agora, menor será o espaço para reviver-mos o crescimento ativo a longo prazo. A perda de valor dos ativos nesta conjuntura (meados de 2009) é, fomos informados pelo FMI, pelo menos de US $ 55 trilhões, o que equivale a praticamente toda produção anual mundial de bens e serviços. Já es-tamos de volta aos níveis de produção de 1989.

Podemos estar frente a perdas de US$400 trilhões ou mais antes do fim. De fato, em um surpreen-dente cálculo feito recente, sugeriu-se que os EUA estavam em maus lençóis por terem que garantir sozinhos mais de US $ 200 trilhões em valor de ati-vos. A probabilidade de que todos os ativos este-jam “podres” é mínima, mas a idéia de que muitos deles possam estar é bastante realista. Só para dar um exemplo concreto: Fannie Mae e Freddie Mac, agora resgatadas pelo Governo dos EUA, têm ou ofereceram garantia para mais de US$5 trilhões em empréstimos de habitação, muitos dos quais estão com profundas dificuldades (perdas de mais de US$150 bilhões foram registradas apenas em 2008). Então, quais são as alternativas?

Há tempos o sonho de muitos no mundo é que uma alternativa para a ir(racionalidade) capitalista possa ser definida e concluída racionalmente por meio da mobilização das paixões humanas, na busca co-letiva de uma vida melhor para todos. Estas alter-nativas – historicamente chamadas socialismo ou comunismo – foram tentadas em diferentes épocas e lugares. Antigamente, como em 1930, a visão de um ou outro deles funcionava como um farol de es-

perança. Mas nos últimos tempos ambos têm per-dido seu brilho, ignorados, não apenas por conta do fracasso das experiências históricas com o co-munismo em cumprir suas promessas e a propen-são dos regimes comunistas para encobrir os erros cometidos pela repressão, mas também por causa de seus pressupostos supostamente falhos sobre a natureza humana e do potencial de perfeição da personalidade humana e das instituições humanas.

A diferença entre o socialismo e o comunismo é digna de nota. O Socialismo visa democraticamente gerir e regular o capitalismo de modo a acalmar seus excessos e redistribuir seus benefícios para o bem comum. Trata-se de espalhar a riqueza através de acordos em torno de uma tributação progressiva, enquanto as necessidades básicas – como educação, saúde e até mesmo de habitação – são fornecidas pelo Estado, fora do alcance das forças de mercado. Muitas das principais conquis-tas do socialismo redistributivo no período após 1945 não só na Europa, mas em outros locais, tor-naram-se tão socialmente incorporadas que estão praticamente imunes ao ataque neoliberal. Mesmo nos Estados Unidos, a seguridade social e o Medi-care são programas extremamente populares que as forças de direita encontram enorme dificuldade para exterminar. Os Thatcheristas na Grã-Bretanha não puderam encostar em nada que dissesse res-peito à saúde nacional, exceto marginalmente. As provisões sociais na Escandinávia e na maior parte da Europa Ocidental parecem ser uma camada in-destrutível da ordem social.

O comunismo, por outro lado, pretende deslocar o capitalismo através da criação de um modo com-pletamente diferente da produção e distribuição de bens e serviços. Na história do comunismo realmente levado a cabo, o controle social sobre a produção, troca e distribuição significava con-trole estatal e planejamento estatal sistemático. No longo prazo, estas medidas se mostraram mal su-cedidas, porém, curiosamente, sua conversão na China (e sua adoção anteriormente em locais como Singapura) tem se mostrado muito mais bem suce-dida do que o modelo neoliberal puro na geração de crescimento capitalista, por tantas razões que não poderiam ser desenvolvidas neste texto.

Tentativas contemporâneas de reviver a hipótese comunista tipicamente evitam o controle estatal e procuram outras formas de organização social coletiva para suplantar as forças do mercado e a acumulação de capital como base para organizar a produção e distribuição. Em rede horizontal, ao contrário dos sistemas de coordenação coman-dados hierarquicamente entre coletivos de produ-tores e consumidores autonomamente organiza-dos e autogovernados estão previstas no cerne de uma nova forma de comunismo. Tecnologias con-temporâneas de comunicação fazem um sistema como este parecer viável. Podem ser encontrados por todo o mundo experiências de pequena escala

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24em que tais formas econômicas e políticas estão sendo construídas. Há nisto uma convergência de algum tipo entre as tradições marxista e anarquista que remonta à situação amplamente colaborativa entre elas na década de 1860, na Europa.

Ainda que não tenhamos certeza é possível que 2009 marque o início de uma prolongada revira-volta em que a questão ao redor de alternativas ao capitalismo que sejam grandiosas e de longo al-cance irão passo a passo borbulhar até a superfície em uma parte ou outra do mundo. Quanto mais prolongadas forem a incerteza e a miséria, maior será o questionamento em torno da legitimidade do atual modo de fazer negócios e maior será a demanda para se construir algo diferente.

O desenvolvimento desigual das práticas capitalis-tas ao redor do mundo tem produzido movimen-tos anticapitalistas em toda parte. As economias Estado-cêntricas de grande parte da Ásia Oriental geram descontentamentos diferentes em compa-ração com a agitação antineoliberal das lutas que ocorrem em boa parte da América Latina, onde o Movimento Revolucionário Bolivariano pelo Poder Popular encontra-se em uma relação peculiar com os interesses da classe capitalista que ainda têm que ser verdadeiramente confrontados. Diferenças a respeito de táticas e políticas em resposta à crise entre os Estados que compõem a União Européia estão aumentando ao mesmo tempo em que uma segunda tentativa de chegar a uma constituição unificada da UE está em curso.

Movimentos revolucionários e resolutamente anti-capitalistas também podem ser encontrados, em-bora nem todos eles sejam do tipo progressista, em muitas das zonas marginais do capitalismo. Espaços foram abertos dentro dos quais algo radi-calmente diferente em termos de relações sociais dominantes, modos de vida, capacidades produ-tivas e concepções mentais do mundo pode flo-rescer. Isto se aplica tanto para os talibãs e para o regime comunista no Nepal, como para os zap-atistas em Chiapas e os movimentos indígenas na Bolívia, os movimentos maoístas na Índia rural, ai-nda que sejam muito diferentes entre si em termos de objetivos, estratégias e táticas.

O problema central é que, no total, não há movi-mento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar adequadamente a re-produção da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial. Da mesma forma não há nenhuma maneira óbvia de atacar os bal-uartes dos privilégios das elites capitalistas ou de limitar seu desmesurado poderio financeiro e mili-tar. Apesar de haver aberturas para uma possível ordem social alternativa, ninguém realmente sabe onde ela está ou o que ela é. Mas só porque não há nenhuma força política capaz de articular e muito menos montar um programa, não há motivos para se deter o esboço de alternativas.

A famosa pergunta de Lenin “o que fazer?” não pode ser respondida, certamente, sem alguma noção de quem é que pode fazê-lo e onde. Mas é pouco provável que um movimento global anti-capitalista surja sem alguma animação visual do quê está por ser feito e o porquê. Existe um du-plo bloqueio: a falta de uma visão alternativa im-pede a formação de um movimento de oposição, enquanto a ausência de tal movimento opõe-se à articulação de uma alternativa. Como, então, esse bloqueio poderia ser superado? A relação entre a visão do que fazer e o porquê, e a formação de um movimento político em determinados lugares tem que ser transformada em uma espiral. Uma tem que reforçar a outra, para que algo possa ser feito. Caso contrário, a potencial oposição será trancada para sempre em um círculo fechado que frustra to-das as perspectivas de mudança construtiva, de-ixando-nos vulneráveis a sofrermos no futuro per-pétuas crises do capitalismo, com resultados cada vez mais mortais. A pergunta de Lênin exige uma resposta.

O problema central a ser abordado é bastante claro. Obter crescimento composto para sempre não é possível e os problemas que assolaram o mundo nos últimos trinta anos sinalizam que es-tamos próximos do limite para o contínuo acúmulo de capital, que não pode ser transcendido exceto criando-se ficções não duradouras. Adicione-se a isso o fato de que tantas pessoas no mundo vivem em condições de extrema pobreza, que a degrada-ção ambiental está fora de controle, que a digni-dade humana está sendo ofendida em toda parte, enquanto os ricos estão acumulando mais e mais riqueza (o número de bilionários na Índia dobrou no ano passado de 27 para 52) para si próprios e que as alavancas dos poderes políticos, institucionais, judiciais, militares e midiáticos estão sob controle político estrito, porém dogmático, encontrando-se incapazes de fazer algo além do que perpetuar o status quo e o frustrante descontentamento.

Uma política revolucionária capaz de enfrentar o problema do interminável acúmulo de capital com-posto e, eventualmente, desligá-lo como o principal motor da história humana, requer uma compreen-são sofisticada de como ocorre a mudança social. O fracasso dos esforços passados para construir um socialismo e comunismo duradouros tem que ser evitado e lições dessa história extremamente complicada devem ser aprendidas. No entanto, a absoluta necessidade de um movimento revo-lucionário anticapitalista coerente também deve ser reconhecida. O objetivo fundamental deste movimento é assumir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes.

Precisamos urgentemente de uma teoria revolu-cionária explícita adequada aos nossos tempos. Eu proponho uma “teoria co-revolucionária” derivada da compreensão de Marx sobre como o capitalis-mo surgiu do feudalismo. A mudança social surge

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25através do desdobramento dialético das relações entre sete momentos dentro do corpo político do capitalismo, visto como um conjunto ou junção de atividades e práticas:

a) formas de produção tecnológicas e organizacio-nais, intercâmbio e consumob) relações com a natureza;c) relações sociais entre as pessoas;d) concepções mentais do mundo, abrangendo conhecimentos e entendimentos culturais;e) processos de trabalho e produção de bens es-pecíficos, geografias, serviços ou sentimentos;f) arranjos institucionais, legais e governamentais;g) a condução da vida diária que está subjacente a reprodução social.

Cada um desses momentos é internamente dinâmico e internamente marcado por tensões e contradições, mas todos eles são co-dependentes e co-evoluem em relação ao outro. A transição para o capitalismo implicou em um movimento de apoio mútuo em todos os sete momentos.

Quando o próprio capitalismo passa por uma de suas fases de renovação, ele o faz precisamente por co-evolução de todos os momentos, obvia-mente não sem tensões, lutas e contradições. Mas considere como estes sete momentos foram con-figurados aproximadamente em 1970, antes do surgimento da onda neoliberal, e considere como eles são hoje em dia e você verá que todos eles mudaram de uma forma que re-define as caracter-ísticas operativas do capitalismo visto como uma totalidade não-Hegeliana.

Um movimento político anticapitalista pode começar em qualquer lugar. O truque é manter o movimento político seguindo em frente de um mo-mento para outro, de maneira que se reforcem mu-tuamente. Foi assim que o capitalismo surgiu do feudalismo e é assim que algo radicalmente dife-rente chamado comunismo, socialismo ou outra coisa deve surgir do capitalismo. As tentativas an-teriores de se criar uma alternativa comunista ou socialista não foram capazes de manter a dialé-tica entre os diferentes momentos em movimento e não conseguiram abraçar as imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre eles. O capitalismo tem sobrevivido justamente por manter focado o movimento dialético entre os momentos e abraçar construtivamente as tensões inevitáveis, incluindo as crises.

A mudança surge, naturalmente, de um estado de coisas existente e tem que aproveitar as possibili-dades imanentes dentro de uma situação existente. Uma vez que a situação existente varia enorme-mente do Nepal, para as regiões do Pacífico da Bolívia, ou para as cidades desindustrializadas de Michigan e as cidades de Bombaim e Xangai, ainda em desenvolvimento e os abalados, mas de nenhu-ma maneira destruídos centros financeiros de Nova

Iorque e Londres, então todos os tipos de experi-mentos de mudança social em diferentes lugares e em diferentes escalas geográficas são provável e potencialmente esclarecedores como maneiras de produzir (ou não produzir) um outro mundo pos-sível. E em cada instância pode parecer que um ou outro aspecto da situação existente é a chave para um futuro político diferente. Mas a primeira regra para um movimento global anticapitalista deve ser: nunca conte com a dinâmica de um momento em desdobramento sem considerar cuidadosamente como as relações com todos os outros estão se adaptando e reverberando.

Possibilidades futuras viáveis resultam do atual es-tado das relações entre os diferentes momentos. Intervenções políticas estratégicas dentro e entre as esferas podem mover gradualmente a ordem social para um caminho de desenvolvimento dife-rente. Isto é o que os líderes sábios e as instituições progressistas fazem o tempo todo em situações locais, por isso não há razão para se pensar que há algo particularmente fantástico ou utópico em se agir desta forma. A esquerda tem que construir alianças entre aqueles que trabalham nas distintas esferas. Um movimento anticapitalista tem que ser muito mais amplo do que grupos de mobilização em torno das relações sociais ou sobre questões da vida quotidiana. Hostilidades tradicionais entre, por exemplo, pessoas com conhecimentos téc-nicos, científicos e administrativos e aquelas que motivam as atividades dos movimentos sociais têm que ser resolvidos e superados. Temos agora que transmitir o exemplo do movimento das mudanças climáticas, um exemplo significativo de como tais alianças podem começar a trabalhar.

Neste caso, a relação com a natureza é o ponto de início, mas todo mundo percebe que algo tem que acontecer em todos os outros momentos e en-quanto houver uma política de desejos que procura a solução puramente tecnológica torna-se cada vez mais claro que a vida cotidiana, as concepções mentais, os arranjos institucionais, os processos de produção e as relações sociais têm que estar en-volvidos. E tudo isso significa um movimento para a reestruturação da sociedade capitalista como um todo e para confrontar a lógica do crescimento por trás do problema inicial.

Deve haver, contudo, objetivos comuns vagamente acordados em qualquer movimento de transição. Normas gerais de orientação podem ser ajustadas. Estas podem incluir (apenas apresentarei breve-mente estas normas para discussão), o respeito pela natureza, o igualitarismo radical nas relações sociais, arranjos institucionais com base em alguma noção sobre interesses comuns e propriedade co-mum, procedimentos administrativos e democráti-cos (em oposição às ilusões lucrativas que existem hoje em dia), processos de trabalho organizados diretamente pelos produtores, a vida cotidiana como a livre exploração de novos tipos de relações

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26sociais e condições de vida, as concepções men-tais que focam sobre a realização pessoal através do serviço aos outros e as inovações tecnológicas e organizacionais orientadas para o bem comum e não para o apoio do poder militarizado, da vigilân-cia e da ganância corporativa. Estes poderiam ser pontos co-revolucionários em torno dos quais a ação social poderia convergir e girar. Claro que isso é utópico! Mas e daí! Não podemos nos dar ao luxo de não sê-lo.

Deixe-me detalhar um aspecto em especial do problema que surge onde eu trabalho. As idéias têm conseqüências e idéias falsas podem ter con-seqüências devastadoras. Falhas de políticas base-adas em pensamentos econômicos errôneos des-empenharam um papel crucial para o desenrolar do desastre dos anos 1930 e na aparente incapacid-ade de se encontrar uma saída. Embora não haja consenso entre os historiadores e economistas so-bre exatamente que políticas falharam foi acordado que a estrutura de conhecimento através da qual a crise foi entendida precisava ser revolucionada. Keynes e seus colegas realizaram essa tarefa.

Mas, em meados da década de 1970, tornou-se claro que os instrumentos de política keynesiana já não funcionavam, pelo menos não da forma como estavam sendo aplicados, e foi neste contexto que o monetarismo, a teoria da economia de oferta e a (bela) modelagem matemática dos comportamen-tos de mercado microeconômicos suplantaram o pensamento econômico keynesiano. A teoria mon-etarista e neoliberal mais limitada que dominou após os anos 1980 está agora em questão. Na ver-dade ela tem falhado desastrosamente.

Precisamos de novas concepções mentais para compreender o mundo. Quais poderiam ser elas e quem irá produzi-las, considerado o mal-estar so-ciológico e intelectual que paira sobre a produção e (igualmente importante) difusão do conhecimento de maneira mais geral? As concepções mentais profundamente arraigadas associadas às teor-ias neoliberais e a neoliberalização e corporatiza-ção das universidades e dos meios de comuni-cação tem desempenhado um papel importante na produção da atual crise. Por exemplo, toda a questão em torno do que fazer sobre o sistema fi-nanceiro, o setor bancário, o vínculo Estado-finan-ças e o poder dos direitos de propriedade privada, não pode ser trabalhada sem deixarmos de lado o pensamento convencional. Para que isso aconteça será necessária uma revolução no pensamento, em lugares tão diversos quanto as universidades, a mí-dia e o governo, bem como no âmbito das institu-ições financeiras.

Karl Marx, embora não estivesse de modo algum inclinado a abraçar o idealismo filosófico, conside-rou as idéias como uma força material na história. Concepções mentais constituem, afinal, um dos sete momentos da sua teoria geral da mudança

co-revolucionária. Evoluções autônomas e confli-tos internos sobre quais concepções mentais pas-sariam a ser hegemônicas, portanto, têm um pa-pel histórico importante a desempenhar. Por esta razão Marx (junto com Engels) escreveu o Manifes-to Comunista, O Capital e inúmeras outras obras. Estes trabalhos fornecem uma crítica sistemática, ainda que incompleta, do capitalismo e as tendên-cias de sua crise. Mas, como Marx também insistiu, apenas quando essas idéias críticas transitassem para os campos dos arranjos institucionais, formas organizacionais, sistemas de produção, vida cotidi-ana, relações sociais, tecnologias e relações com a natureza que o mundo realmente mudaria.

Uma vez que o objetivo de Marx era mudar o mun-do e não apenas entendê-lo, idéias tinham que ser formuladas com certa intenção revolucionária. Isto significa, inevitavelmente, um conflito com modos de pensamento mais úteis e fáceis de se conviver para a classe dominante. O fato de que as idéias de oposição de Marx, particularmente nos últimos anos, têm sido alvo de repetidas repressões e ex-clusões, sugere que suas idéias podem ser muito perigosas para serem toleradas pelas classes dom-inantes.

Ainda que Keynes repetidamente declarasse que nunca tinha lido Marx, ele foi cercado e influenciado em 1930 por muitas pessoas (como por seu co-lega economista Joan Robinson) que leram. Em-bora muitos deles se opusessem veementemente aos conceitos fundamentais de Marx e seu modo dialético de raciocínio, eles estavam bastante con-scientes e profundamente afetados por algumas de suas conclusões e previsões. É justo dizer, penso eu, que a revolução da teoria keynesiana não pode-ria ter sido realizada sem a presença subversiva de Marx, sempre à espreita.

O problema nos dias de hoje é que a maioria das pessoas não tem idéia de quem foi Keynes e o que ele realmente defendia e para estas mesmas o conhecimento de Marx é desprezível. A repressão das correntes críticas e radicais do pensamento, ou para ser mais exato o confinamento do radicalismo dentro dos limites do multiculturalismo, políticas de identidade e escolha cultural, cria uma situação lamentável na academia e fora dela, que equivale em princípio a ter que pedir aos banqueiros respon-sáveis pela bagunça que a limpem exatamente com as mesmas ferramentas que eles usaram para produzi-la.

A ampla adesão às idéias pós-modernas e pós-es-truturalistas que celebram o particular em detrimen-to do pensamento mais amplo não ajuda. O local e o particular são de vital importância e teorias que não aceitem, por exemplo, a diferença geográfica, são inúteis. Mas quando esse fato é usado para ex-cluir qualquer coisa maior do que políticas paroqui-ais, então, a traição dos intelectuais e a revogação do seu papel tradicional tornam-se completas.

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27A atual população de acadêmicos, intelectuais e especialistas em ciências sociais e humanidades é, em geral, mal equipada para realizar a tarefa cole-tiva de revolucionar as nossas estruturas de con-hecimento.

Eles foram, de fato, profundamente implicados na construção dos novos sistemas de governabilidade neoliberal que contornam questões ligadas à legit-imidade e democracia e promovem uma política tecnocrática autoritária. Poucos parecem predis-postos a empreender uma reflexão autocrítica. Universidades continuam a promover os mesmos cursos inúteis sobre a teoria política da escolha racional ou economia neoclássica, como se nada tivesse acontecido e as faculdades de administra-ção adicionam um curso ou dois sobre ética dos negócios ou sobre como ganhar dinheiro a partir da falência de outras pessoas. Afinal, a crise surgiu da ganância humana e não há nada que possa ser feito sobre isso!

A atual estrutura do conhecimento é claramente disfuncional e ilegítima. A única esperança é que uma nova geração de estudantes com alto senso crítico (no sentido amplo de todos aqueles que pre-tendem conhecer o mundo) seja capaz de enxergar isso e insista em mudar esta realidade. Isto acon-teceu na década de 1960. Em vários outros pon-tos críticos da história movimentos inspirados por estudantes, reconhecendo a disjunção entre o que está acontecendo no mundo e o que está sendo ensinado a eles e transmitido pela mídia estiveram dispostos a fazer algo a respeito disso. Há sinais em Teerã a Atenas e em muitas universidades eu-ropéias de tal movimento. Como a nova geração de estudantes na China vai agir certamente deve ser de grande preocupação nos corredores do poder político, em Pequim.

Um movimento revolucionário juvenil conduzido por estudantes, com todas as suas evidentes incerte-zas e problemas é uma condição necessária, mas não suficiente, para produzir essa revolução nas concepções mentais que podem nos levar a uma solução mais racional para os atuais problemas de crescimento infinito.

O que, de maneira mais ampla, aconteceria se um movimento anticapitalista fosse constituído a partir de uma ampla aliança de excluídos, descontentes, pobres e sem posses? A imagem de todas essas pessoas em toda parte se levantando, exigindo e conquistando seu devido lugar na vida econômi-ca, social e política está se formando. Ela também ajuda a focar na questão sobre o que é que eles podem exigir e o que precisa ser feito.

Transformações revolucionárias não podem ser realizadas sem que no mínimo mudemos nossas idéias, abandonando crenças e preconceitos que nos são caros, confortos diários e direitos, submet-endo-nos a um novo esquema de vida cotidiana,

mudemos nossos papéis sociais e políticos, reaf-irmemos nossos direitos, deveres e responsabi-lidades e alteremos nosso comportamento para estar em mais conformidade com as necessidades coletivas e com uma vontade comum. O mundo que nos cerca – as nossas geografias – deve ser radicalmente reformado, assim como nossas rela-ções sociais, a relação com a natureza e todos os outros momentos do processo co-revolucionário. É compreensível, até certo ponto, que muitos pre-firam uma política de negação a uma política de confronto ativo.

Também seria reconfortante pensar que tudo isso poderia ser realizado pacífica e voluntariamente, que disporíamos de nossas posses, nos despiría-mos, como antes, de tudo o que possuímos hoje e se encontra no caminho da criação de uma ordem de Estado estável, socialmente justa. Mas seria hipócrita imaginar que isso se dará desta maneira, que nenhuma luta ativa estará envolvida, incluindo um certo grau de violência. O capitalismo veio ao mundo, como Marx disse certa vez, banhado em sangue e fogo. Embora seja possível fazer um trab-alho melhor ao sairmos dele do que quando entra-mos, é improvável pensarmos em uma passagem puramente pacífica para a terra prometida.

Existem várias grandes correntes de pensamento rebelde à esquerda quanto à forma de abordar os problemas com que hoje nos confrontamos. Há, acima de tudo, o sectarismo habitual, decorrente da história de ações radicais e as articulações da teoria política de esquerda. Curiosamente, o único lugar onde a amnésia não é tão prevalente é den-tro da esquerda (o racha entre os anarquistas e os marxistas que ocorreu na década de 1870, entre trotskistas, maoístas e os comunistas ortodoxos, entre os centralizadores que querem comandar o Estado e os antiestadistas autonomistas e os an-arquistas). Os argumentos são tão ressentidos e tão turbulentos, que às vezes nos fazem pensar que um pouco mais de amnésia ajudaria. Mas para além destas seitas tradicionais revolucionárias e facções políticas, todo o campo de ação política sofreu uma transformação radical desde a década de 1970. O terreno da luta política e das possibi-lidades de política mudou, tanto geograficamente quanto organizacionalmente.

Existe hoje um vasto número de organizações não-governamentais (ONG’s) que desempenham um papel político que era pouco visível antes de meados dos anos 1970. Financiadas por interess-es estatais e privados, muitas vezes povoadas por pensadores idealistas e organizadores (que con-stituem um vasto programa de empregos), e em grande parte dedicadas a questões isoladas (meio ambiente, pobreza, direitos das mulheres, anties-cravidão e tráfico de trabalho, etc.) elas se abstém de uma política estritamente capitalista mesmo de-fendendo idéias e causas progressistas. Em alguns casos, no entanto, elas são ativamente neoliberais,

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28defendendo a privatização de funções do Estado de bem estar social ou promovendo reformas insti-tucionais para facilitar a integração de populações marginalizadas no mercado (esquemas de micro-crédito e microfinanças para populações de baixa renda são um exemplo clássico disto).

Embora existam muitos praticantes radicais e dedi-cados neste mundo das ONGs, seu trabalho é na melhor das hipóteses benéfico. Coletivamente, eles têm um registro irregular de conquistas progressis-tas, embora em certas áreas, tais como os direi-tos da mulher, saúde e preservação ambiental seja possível afirmar que fizeram grandes contribuições para o aperfeiçoamento humano. Mas a mudança revolucionária através das ONGs é impossível.

Elas são muito limitadas pelas instâncias políticas e de formulação de políticas dos seus mantene-dores. Assim, embora elas possam apoiar a ca-pacitação local ao ajudar na abertura de espaços onde as alternativas anticapitalistas se tornam pos-síveis e até mesmo apoiar a experimentação com essas alternativas, elas são inócuas para impedir a re-absorção destas alternativas para a prática capi-talista dominante: elas até mesmo a encorajam. O poder coletivo das ONGs, nos dias de hoje é re-fletido no papel preponderante que desempenham no Fórum Social Mundial, onde as tentativas de for-jar um movimento de justiça global, uma alternativa global ao neoliberalismo, têm-se concentrado ao longo dos últimos dez anos.

O segundo grande grupo de oposição surge de anarquistas, autonomistas e organizações de base (GROS), que recusam financiamento externo, ainda que alguns deles se apóiem em algum tipo de base institucional alternativa (como a Igreja Católica com as “comunidades de base”, na América Latina ou patrocínio mais amplo da igreja para a mobilização política em cidades do interior dos Estados Uni-dos). Este grupo está longe de ser homogêneo (na verdade, existem fortes disputas entre eles, colo-cando, por exemplo, os anarquistas sociais contra aqueles a que eles se referem raivosamente como meros anarquistas por “estilo de vida”). Há, no en-tanto, uma antipatia comum à negociação com o poder do Estado e uma ênfase na sociedade civil como sendo a esfera onde a mudança pode ser realizada.

Os poderes de auto-organização das pessoas nas situações cotidianas em que elas vivem têm que ser a base para qualquer alternativa anticapitalista. A formação de redes horizontais é o seu modelo de organização preferido. As chamadas “econo-mias solidárias” baseadas em trocas têm os siste-mas coletivos e de produção local como sua forma político-econômica preferida.

Eles normalmente se opõem à idéia de que qualquer direção central possa ser necessária e rejeitam as relações sociais hierárquicas ou estruturas de pod-

er político hierárquico, juntamente com os partidos políticos tradicionais.

Organizações deste tipo podem ser encontradas em todos os lugares e em alguns locais atingiram um alto grau de proeminência política. Alguns deles são radicalmente anticapitalistas na sua postura e defendem objetivos revolucionários e em alguns casos, estão dispostos a defender a sabotagem e outras formas de desordem (as Brigadas Vermel-has na Itália, o Meinhoff Baader na Alemanha e o Weather Underground nos Estados Unidos, na década de 1970).

Mas a eficácia de todos estes movimentos (deix-ando de lado os mais violentos) é limitada pela re-lutância e a incapacidade para elevar seu ativismo a formas de organização em grande escala capazes de enfrentar os problemas globais. A presunção de que a ação local é o único nível significativo de mu-dança e que tudo o que cheira a hierarquia é anti-revolucionário é, na verdade, autodestrutivo em se tratando de questões maiores. No entanto, esses movimentos estão, inquestionavelmente, fornecen-do uma base ampla para a experimentação com políticas anticapitalistas.

A terceira grande tendência advém da transforma-ção que vem ocorrendo na organização do trabal-ho tradicional e nos partidos políticos de esquerda, variando desde tradições social-democráticas até trotskistas mais radicais e formas comunistas de or-ganização de partidos políticos. Esta tendência não é hostil à conquista do poder do Estado ou de out-ras formas de organização hierárquica. Na verdade, ela vê esta última como necessária à integração da organização política em uma variedade de escalas políticas. Nos anos em que a social-democracia era hegemônica na Europa e até mesmo influente nos Estados Unidos, o controle estatal sobre a distri-buição dos excedentes se tornou uma ferramenta essencial para diminuir as desigualdades.

O fracasso em se conseguir o controle social sobre a produção de excedentes e, assim, realmente de-safiar o poder da classe capitalista foi o calcanhar de Aquiles deste sistema político, mas não de-vemos esquecer os avanços que ele fez, mesmo que agora seja claramente insuficiente a volta para tal modelo político com o seu assistencialismo so-cial e economia keynesiana. O movimento bolivaria-no na América Latina e a ascensão ao poder do Es-tado conseguida por governos social-democratas é um dos sinais mais promissores da ressurreição de uma nova forma de estatismo de esquerda.

Tanto o trabalho organizado quanto os partidos políticos de esquerda tomaram bons golpes no mundo capitalista ao longo dos últimos trinta anos. Ambos foram convencidos ou coagidos a um am-plo apoio ao neoliberalismo, ainda que este con-tasse com contornos mais humanos.

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Embora existam sinais de recuperação da orga-nização do trabalho e das políticas de esquerda (em oposição à “terceira via”, celebrada pelo Novo Trabalhismo na Grã-Bretanha sob Tony Blair e de-sastrosamente copiada por muitos partidos so-cial-democratas na Europa), juntamente com os sinais do aparecimento de partidos de esquerda mais radicais em diferentes partes do mundo, o uso exclusivo de uma vanguarda de trabalhadores está agora em questão tanto quanto a habilidade daqueles partidos de esquerda que conquistam algum grau de acesso ao poder político a ter um impacto substancial sobre o desenvolvimento do capitalismo e lidar com a dinâmica conturbada da acumulação propensa a crise.

O desempenho do Partido Verde alemão no poder não tem sido algo fora do comum em relação à sua postura política de poder e os partidos social-democratas perderam sua habilidade para atuar como uma verdadeira força política.

Mas os partidos políticos de esquerda e sindicatos ainda são significantes e sua aquisição de aspec-tos do poder do Estado, como no caso do Par-tido dos Trabalhadores do Brasil ou do movimento bolivariano na Venezuela teve um claro impacto no pensamento de esquerda, não apenas na América Latina. Talvez não seja fácil resolver os complicados questionamentos a respeito de como interpretar o papel do Partido Comunista da China, com seu controle exclusivo sobre o poder político e sobre quais serão suas futuras políticas.

A teoria co-revolucionária anteriormente apresenta-da sugeria que de forma alguma uma ordem social anticapitalista poderia ser construída sem a tomada do poder do Estado, transformando-o radicalmente e retrabalhando as estruturas constitucional e in-stitucional que atualmente apóiam a propriedade privada, o sistema de mercado e a interminável acumulação de capital.

A concorrência interestatal e as lutas geoeconômi-ca e geopolítica por tudo, desde comércio e din-heiro até as questões de hegemonia também são importantes demais para serem deixadas para os movimentos sociais locais ou postas de lado como sendo grandes demais para serem contempladas. Como a arquitetura da conexão Estado-finanças deve ser retrabalhada juntamente com a questão premente da medida comum de valor determinado pelo dinheiro são fatos que não podem ser ignora-dos na busca pela construção de alternativas para a economia política capitalista. Ignorar o Estado e a dinâmica do sistema interestatal é, portanto, uma idéia ridícula demais para ser aceita por qualquer movimento revolucionário anticapitalista.

A quarta tendência geral é constituída por todos os movimentos sociais que não sejam guiados por alguma filosofia política ou inclinação em es-pecial, mas pela necessidade pragmática de re-

sistir a deslocamentos e desapropriações (através da gentificação, do desenvolvimento industrial, da construção de barragens, da privatização da água, do desmantelamento dos serviços sociais públi-cos e oportunidades educacionais e outros). Neste caso, o enfoque na vida diária na cidade, vila, al-deia ou outro local fornece uma base material para a organização política contra as ameaças que as políticas de Estado e de interesses capitalistas, invariavelmente, representam para as populações vulneráveis. Estas formas de protesto político são enormes.

Novamente, há uma vasta gama de movimentos sociais deste tipo, alguns dos quais podem tornar-se radicalizados ao longo do tempo na medida em que eles, cada vez mais, percebam que os prob-lemas são sistêmicos e não particulares ou locais. A junção de tais movimentos sociais em alianças da terra (como a Via Campesina, o movimento dos camponeses sem-terra no Brasil, ou camponeses mobilizando contra a tomada de terra e recursos por corporações capitalistas na Índia) ou em con-textos urbanos (o direito à cidade e retomada dos movimentos dos sem teto no Brasil e agora nos Es-tados Unidos) indica que o caminho esteja aberto para a criação de alianças mais amplas para discu-tir e enfrentar as forças sistêmicas que sustentam as particularidades da gentificação, da construção de barragens, da privatização e outros.

Mais pragmáticos, ao invés de impulsionados por preconceitos ideológicos, esses movimentos, no entanto, podem chegar a uma compreensão sistêmica gerada por suas próprias experiências. Na medida em que muitos deles existem no mesmo espaço, como dentro da metrópole, eles podem (como supostamente aconteceu com os operários nas fases iniciais da revolução industrial) se reunir em torno de uma causa comum e começar a es-tabelecer, com base na sua própria experiência, a consciência de como o capitalismo funciona e o que pode ser feito coletivamente.

Este é o terreno em que é muito significativa a figura do líder “orgânico intelectual”, tão presente na obra de Antonio Gramsci, o autodidata que consegue entender o mundo em primeira mão através de du-ras experiências, mas formula sua compreensão do capitalismo de maneira mais geral.

Ouvir as falas de líderes camponeses do MST no Brasil ou dos líderes do movimento contra a tomada de terras por corporações na Índia é um privilégio educacional. Neste caso, a tarefa dos excluídos e descontentes educados é ampliar a voz subalterna, para que se possa prestar atenção à situação de exploração e repressão, assim como as respostas que podem ser pensadas para um programa anti-capitalista.

O quinto epicentro para a mudança social reside nos movimentos emancipatórios em torno das

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questões de identidade – mulheres, crianças, ho-mossexuais, minorias raciais, étnicas e religiosas, todos merecem um lugar ao sol – juntamente com a vasta gama de movimentos ambientais que não são explicitamente anticapitalistas.

Os movimentos que reivindicam a emancipação em cada uma destas questões são geografica-mente desiguais e muitas vezes geograficamente divididos em termos de necessidades e aspira-ções. Mas as conferências mundiais sobre os di-reitos das mulheres (Nairóbi, em 1985, que levou à declaração de Pequim de 1995) e anti-racismo (conferência muito mais controversa, em Durban, em 2009) estão tentando encontrar um terreno em comum, como é o caso também das conferências ambientais, e não há dúvida de que as relações sociais estão mudando juntamente com todas es-sas dimensões, pelo menos em algumas partes do mundo.

Quando expressos em termos estritamente es-sencialistas, esses movimentos podem parecer antagônicos à luta de classes. Certamente, den-tro de grande parte da academia eles tornaram-se prioridade em detrimento da análise de classe e economia política. Mas a feminilização da força de trabalho global, a feminilização da pobreza em quase toda parte e o uso das disparidades de gênero como um meio de controle do trabalho fa-zem a emancipação e a eventual libertação da mul-her das suas repressões uma condição necessária para ajustar o foco da luta de classes. A mesma observação se aplica a todas as outras formas de identidade onde a discriminação ou a repressão podem ser encontradas.

O racismo e a opressão das mulheres e crianças foram fundamentais para a ascensão do capital-ismo. Mas o capitalismo na sua atual forma pode, em princípio, sobreviver sem estas formas de dis-criminação e opressão, apesar de sua habilidade política para fazê-lo ser gravemente prejudicada se não mortalmente ferida, face à uma força de classe mais unida.

A modesta inclusão do multiculturalismo e dos direitos das mulheres no mundo corporativo, em particular nos Estados Unidos, fornece algumas evidências da acomodação do capitalismo a essas dimensões de mudança social (incluindo o meio ambiente), enquanto reenfatiza a relevância das di-visões de classe como a principal dimensão para a ação política.

Estas cinco grandes tendências não são mutua-mente exclusivas nem anulam os modelos orga-nizacionais para a ação política. Algumas orga-nizações combinam aspectos de todas as cinco tendências maneira organizada. Mas há muito tra-balho a ser feito para fundir essas várias tendências em torno da questão subjacente: poderia o mundo mudar materialmente, socialmente, mentalmente e

politicamente, de tal forma a confrontar não apenas o estado terrível das relações sociais e naturais nas muitas partes do mundo, mas também a perpetu-ação do crescimento composto infinito? Esta é a pergunta que os excluídos e descontentes devem seguir se perguntando, vezes sem conta, enquanto aprendem com aqueles que experimentam a dor diretamente e que são tão hábeis em organizar re-sistências para as terríveis conseqüências de um crescimento composto no mundo real.

Comunistas, Marx e Engels asseveraram em sua concepção original apresentada no Manifesto Co-munista, não pertencerem a partidos políticos. Eles simplesmente constituem-se em todos os momentos e em todos os lugares como aqueles que entendem os limites, deficiências e tendências destrutivas da ordem capitalista, bem como as in-úmeras máscaras ideológicas e falsas legitimações que os capitalistas e seus apologistas (sobretudo nos meios de comunicação) produzem para per-petuar o seu poder de classe. Comunistas são to-dos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capi-talismo. Esta é uma definição interessante.

Ainda que o comunismo institucionalizado tradicio-nal esteja morto e enterrado, há sob esta definição milhões de comunistas ativos de fato entre nós, dis-postos a agir de acordo com seus entendimentos, prontos para exercerem criativamente imperativos anticapitalistas. Se, como o movimento de global-ização alternativa dos anos 1990 declarou: “um outro mundo é possível”, então por que não dizer também “um outro comunismo é possível? As at-uais circunstâncias do desenvolvimento capitalista requerem algo deste tipo, se realmente desejamos alcançar a mudança fundamental.

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31Feminismo,militância e transformação social

Contribuição do coletivo Levante

Marxismo e feminismo: um balanço necessário

Ao longo de séculos as mulheres vem sendo oprimidas em diferentes sociedades. A origem da opressão às mulheres tem a ver com o aparecimen-to da sociedade de classes e da apropriação do trabalho por um grupo privilegiado, porém não nos interessa aqui falar sobre a história dessa opressão, mas resgatar alguns debates importantes quanto à história da luta pela emancipação das mulheres e tentar fazer um balanço bastante breve sobre a incorporação do feminismo ao marxismo.

De um modo geral, o marxismo teve dificuldades, ao longo de sua história, para incorporar o feminis-mo como um eixo importante. Seja em seu grupo de teóricos, seja no movimento operário, não foi raro vermos posturas que foram desde o combate à incorporação da mulher no movimento operário (e mesmo o combate à mulher se tornar operária) até a ignorância por completo de pensar o social-ismo como um caminho para libertar também as mulheres, e não só os homens.

Mesmo teóricos como Marx, Engels, Lênin e mui-tos outros “marxistas históricos” revelam isso (al-guns por completo, outros por deslize), porém isso nesse momento não nos importa. Mas é preciso resgatar também a importância (sobretudo nesse contexto) de figuras de relevo como Alexandra Kolontai, Clara Zetkin e mesmo Rosa Luxemburgo que, junto com tantas outras mulheres operárias, foram responsáveis pela denuncia ao machismo dentro e fora do movimento dos trabalhadores de sua época contribuindo fundamentalmente para se pensar um feminismo socialista do qual hoje somos herdeiras.

É bem verdade que as mulheres sempre trabal-haram, mas a partir da segunda metade do século XIX podemos observar um momento de aprofun-damento das relações capitalistas e da expansão de sua necessidade de mão de obra barata e dócil (nas quais as mulheres se adequavam muito bem). No entanto a participação das mulheres nos sindi-catos foi bem mais tardia que a venda da sua força de trabalho ao capital.

Dentre os motivos para isso vale destacar a postu-ra agressiva dos sindicatos “masculinos” que viam no trabalho feminino a ameaça ao seu emprego e sobrevivência. Homens e mulheres executavam o mesmo trabalho, mas as mulheres, em seu esta-tuto socialmente rebaixadas, custavam menos ao capital. Será o crescimento um movimento operário feminino que irá alterar esse quadro e, ainda que muito devagar e de forma sempre deficiente, as mulheres serão “incorporadas” à classe.

As experiências com o socialismo real, sobretudo o soviético e com as tradições que daí surgiram também influenciaram bastante para a construção de uma teoria marxista não-feminista. A tradição estalinista desenvolvida na URSS e espalhada pe-los PCs ao mundo sustentou um reducionismo que liga o fim de todas as opressões à planificação econômica e que muito custou às mulheres. So-bretudo na própria URSS, antes beneficiadas pela Revolução de Outubro, agora diversos direitos re-cuavam como estruturas de uso coletivo e a pos-sibilidade de realização do aborto.

Em outras localidades seria ilustrativo analisar ca-sos de Cuba, da Revolução Espanhola (a diferença de orientação quanto à participação das mulheres antes e depois das intervenções estalinistas e da aliança junto à Franco), e mesmo de alguns países africanos no pós-independência.

Mas a partir dos anos 60, em diversos locais do mundo, começa a se delinear um feminismo de novo tipo, que teria a capacidade de se manter à esquerda e ao mesmo tempo fazer seus balanços históricos. . Com o crescimento os movimentos feministas, mas, sobretudo com uma conjuntura que potencializava as vozes dos mesmos, foi pos-sível avançar (ou recuperar) na formulação de ban-deiras e na politização do espaço público e privado, pautando a sexualidade e a reprodução, a ausência das mulheres dos espaços de poder, a desvaloriza-ção do trabalho feminino, etc.

O potencial revolucionário do feminismo

A opressão das mulheres, embora não tenha sur-gido com o capitalismo, foi assimilada por ele como um dos pilares de sua dominação. Manter as mul-heres oprimidas e subordinadas permite diminuir os custos com a reprodução da força de trabalho; aumentar a exploração, rebaixando os salários da classe trabalhadora como um todo; manter uma di-visão importante dentro do proletariado, facilitando a dominação e exploração; assegurar a manuten-ção da família como um mecanismo essencial de assimilação da ideologia burguesa e patriarcal no seio dos oprimidos; aumentar a situação de de-sumanização e alienação do proletariado, diminu-indo com isso sua consciência como classe domi-nada e, portanto, sua capacidade de revolta.

A tradição feminista denunciou ao longo dos tem-pos a formatação a qual homens e mulheres estão submetidos desde seu nascimento e que é respon-sável pela atribuição de papeis diferenciados e hi-erarquizados socialmente aos sexos.

A partir da luta pela igualdade para homens e mul-heres, as feministas politizaram áreas antes não politizáveis e se debruçaram sobre a sexualidade, a educação, a saúde, o trabalho, a política, e muitas outras áreas tentando repensá-las sob um para-digma não sexista. Nem mesmo a família, antes

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32sagrada, escapou e as feministas denunciaram seu papel na transmissão de riquezas, na desre-sponsabilização do Estado sobre a reprodução da classe trabalhadora e na transmissão de valores diferenciados para homens e mulheres.

Mas o fato de a mulher ser oprimida não a torna por isso uma revolucionária. É bem verdade que existem mulheres proletárias e mulheres burguesas e que estas são submetidas a diferentes graus de opressão. No entanto reafirmar as mulheres pro-letárias como uma vanguarda potencial na con-strução de um movimento de mulheres classista é fundamental. Porque na luta das mulheres está contido o combate contra um aspecto fundamental da dominação de classe não sendo esta, portanto uma luta somente coorporativa, mas uma luta que, na sua radicalidade, põe em xeque a estrutura so-cial do capital.

A libertação das mulheres só será possível quan-do o capitalismo for superado, já que a melhoria da vida das mulheres necessita da preservação e edificação de áreas minadas pela expansão desen-freada do capital sobre o social.

Portanto podemos identificar que o inimigo tanto da classe trabalhadora produtora de riqueza quan-to das mulheres especificamente (dentro ou fora da classe) é o mesmo. Isso não significa que não exis-tiam aí contradições e tensões. Afirmar as mulheres trabalhadoras como um setor estratégico na con-strução do feminismo revolucionário empenhado na construção do socialismo é fundamental porque somente elas sintetizam a opressão de classe e de gênero.

Mas se por um lado é verdade que a emancipação das mulheres não é possível sob o capitalismo tam-pouco é verdade que a derrubada do capitalismo por si só tornaria possível a emancipação das mul-heres (ver balanço da incorporação do feminismo pelo marxismo acima).

É por isso que é importante afirmar a necessidade da existência do movimento feminista desde já (e também no pós-revolução, pois o Estado social-ista por si só não é capaz de transformar instanta-neamente a consciência e os costumes machistas fortemente arraigados na nossa cultura) buscando chegar ao máximo de mulheres trabalhadoras e rei-vindicar do Estado apoio econômico, legal, jurídico, cultural, etc para criar as condições necessárias à emancipação feminina.

Desta forma é importante entendermos a importân-cia de incorporarmos, enquanto organização, o feminismo como um eixo não menos importante de debates e ações e construirmos no cotidiano de nossa militância intervenções temáticas seja de forma transversal a outros temas, seja nos incorpo-rando ao movimento feminista existente, seja apos-tando em novas possibilidades.

Mulheres sob o neoliberalismo

O advento do capitalismo, mesmo inserindo as mulheres no “mercado de trabalho” (“trabalho produtivo”), não igualou em nenhum momento a trabalhadora mulher e o trabalhador homem. Ele se apropriou dos valores e da educação machista para “fabricar” a operária submissa e barata.

Com base em justificativas que viam o salário das mulheres como complementares à renda da família e as próprias mulheres como menos qualificadas/capazes ou instáveis emocionalmente, as mulheres tiveram seu salário rebaixado, seu trabalho não re-conhecido, e dificuldades de livre acesso a cargos de chefia. No entanto não é sem contradições que encontramos o sistema e, apesar das desigual-dades no estatuto econômico e social das mul-heres, o capitalismo foi responsável pela reinserção delas à esfera produtiva e, a partir daí criou a pos-sibilidade de independência econômica, necessi-dade primordial para a criação de condições míni-mas para sua libertação.

Do século XIX pra cá muitas coisas mudaram na vida das mulheres, mas seria bastante errado afir-marmos que a opressão às mulheres acabou. As-sistimos hoje a um momento de redefinição da ideologia machista onde nossa opressão e direitos conquistados são invisibilizados. A idéia de que as mulheres hoje estudam, estão presentes nas che-fias das empresas, ocupam quase todas as pro-fissões, são legalmente amparadas por uma série de benefícios (diriam até privilégios), etc é construí-da pelo capital, mas a análise dos números, dados, condições de vida e de trabalho, índices de vio-lência, problemas sociais etc são escondidos dos meios de comunicação hegemônicos.

Sob o neoliberalismo a vida da classe trabalhadora e das mulheres continua a ser atacada.

Assistimos hoje mais um ciclo de crescimento do capital que apelou ao imperialismo e às organiza-ções financeiras como nunca antes visto para ga-rantir o consumo desenfreado e o lucro a qualquer custo. A recente crise financeira nos coloca desa-fios e abre um novo período na conjuntura, talvez menos defensivo para a esquerda, mas por outro lado ainda não temos noção qual será verdadeira-mente o impacto sobre a vida dos trabalhadores.

A saída para a crise encontrada pelos capitalis-tas até agora tem sido enxugar os gastos com a produção pra tentar aumentar a taxa de lucro a par-tir do aumento das demissões e da fragmentação da produção apoiada na flexibilização trabalhista.

É para as mulheres, quando a saída capitalista se apóia na redução de direitos e a precarização do trabalho significa a redução de seus direitos e a precarização do seu trabalho em especial; para as mulheres, o aumento da pobreza no mundo sig-

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nifica o aumento da pobreza entre as mulheres, já que são os pobres do mundo; para as mulheres o avanço da mercantilização das coisas e das vidas significa a mercantilização de seus corpos das dife-rentes maneiras; para as mulheres a continuidade do desrespeito ao meio ambiente a e opção pelo agronegócio, significa trabalhar todo o mês e ga-star todo o dinheiro com duas sacolas de mercado. Por isso é preciso dizer que essa saída dos capital-istas à crise não serve para as mulheres!

Importante também é avaliar como na esfera am-biental o capital tem avançado e os imperativos latifúndio, monocultura e transgenia se fazem pre-sentes. É preciso deter o agronegócio e os altos índices de poluição causados pelo desenvolvim-ento insustentável proposto por países como EUA, Índia, China, etc, que desrespeitam e contribuem decisivamente para o aquecimento global. É impor-tante aliar as lutas da esquerda à luta ecológica. Agricultura familiar, reforma agrária e soberania ali-mentar são palavras que tem impacto também na vida das mulheres.

No campo do trabalho ainda é grande os prob-lemas enfrentados pelas mulheres. A maior parte está fora do mercado formal (e, portanto longe de direitos trabalhistas como aposentadoria, 13º sa-lário, licença maternidade e outros, custo pago para conseguir conciliar o trabalho com os serviços do lar), ganham menos que os homens (em média as trabalhadoras ganham quatro vezes menos que os homens), têm uma taxa de desemprego mais elevada e ainda estão sujeitas a assédio moral, fal-ta de reconhecimento das profissões ditas como “femininas” e outros tipos de mazelas. É também sobre as mulheres que a flexibilização trabalhista proposta pela globalização neoliberal se faz mais cruel. Tudo isso torna possível falarmos hoje em feminização da pobreza, isto é, as mulheres são mais pobres entre os pobres e os pobres são com-postos cada vez mais por mulheres.

Ainda hoje sustentamos dados alarmantes sobre a violência contra as mulheres, que continuam a ser vítimas de um padrão comportamental que im-põe como expressão da sexualidade ao homem o comportamento agressivo, dominador, corajoso, potente e à mulher a fragilidade, a passividade, a subserviência, a dependência.

O tipo de violência sofrida varia entre cantadas in-convenientes, agressões verbais, perseguições, estupros, espancamento, cárcere privado e outros e são as mulheres mais pobres e negras as maio-res vítimas de violência. A falta de assistência do estado, apesar de ter um impacto cruel na vida das mulheres, não é a causa da violência, mas sim o padrão comportamental que legitima a violência contra a mulher. É necessário, portanto agir para a transformação de diversos fatores que alterem a real condição de discriminação social, econômica e política da mulher.

Na mídia hegemônica, cada vez mais agressiva com as classes trabalhadoras, a mulher continua a ser ridicularizada. A imposição de um modelo de beleza impossível e que gera sofrimento e doen-ças é mostrada pela mídia, e exigida pela indús-tria da beleza e da moda, que viram aí também um campo para as relações de mercado. A publicidade do mercado, por sua vez, tem sido cada vez mais apresentada a nós a partir de corpos femininos. Devemos afirmar que não somos mercadorias, que outra mídia é possível e que a beleza não pode ter padrão.

Não podemos nesse momento observar mudan-ças estruturais no papel da família, que perman-ece como mecanismo fundamental de transmissão da ideologia burguesa e patriarcal. Dentro dela, as mulheres se mantêm como principais responsáveis do trabalho doméstico, fruto de uma divisão sexual do trabalho onde as mulheres foram às ruas, mas os homens não socializaram os trabalhos de casa. A reprodução da classe trabalhadora continua sob responsabilidade solitária das mulheres e ao mes-mo tempo invisibilizada e sem importância.

Nessa mesma linha é que vemos sexualidade, di-reitos reprodutivos e aborto ainda serem palavras negadas a muitas. No geral as mulheres continuam sendo as responsáveis solitárias por concepção, anticoncepção e aborto. O papel da sexualidade visto como um direito ao prazer é inseparável da idéia de libertação das mulheres e mexe em pre-conceitos e tabus fortemente arraigados.

É preciso entender a atividade sexual como parte integrante do desenvolvimento sadio do ser hu-mano, independente de sua função procriativa. A “dupla moral” que estimula a atividade sexual do homem (o macho potente) e inibe a da mulher (recato, pudor feminino) traz em si a negação do reconhecimento à sexualidade feminina. É aí tam-bém que talvez a versão mais cruel da combinação capitalismo-patriarcado se impõe com mais vigor e apesar da defesa da saúde das mulheres, do seu direito a sexualidade, da sua liberdade religiosa, do direito a seu corpo o Estado machista e as Igrejas continuam a impedir o direito de decidir das mul-heres e a legalização do aborto.

Ainda hoje 60% das mulheres não passam do en-sino fundamental. Quando tentam estudar têm que conciliar suas atividades com as tarefas de casa e dos filhos, conciliação essa às vezes impossível e que resulta na grande desistência e evasão escolar das mulheres. O acesso à educação é fundamental tanto para a ascensão social quanto para a inde-pendência econômica das mulheres.

Além disso, é fundamental que as mulheres es-tejam engajadas na produção do conhecimento, área, senão restrita, hegemonizada pelos homens, o que colabora para a produção de um conheci-mento machista e da invisibilização das mulheres

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nas ciências e na história. É importante também agir sobre a forma como a educação está estrutu-rada nas escolas e universidades garantindo que a educação não seja sexista.

O mito da democracia racial brasileira invisibilizou um setor importante da população deixando-o à margem do social, mas colocando-o no cen-tro do econômico. Hoje são os negros, e as mul-heres negras especificamente que acumulam as opressões de classe, raça e gênero, responsáveis pela produção de infinitas mazelas.

No campo do trabalho seu salário é menor, são mais sub-empregadas e enfrentam com mais vigor o desemprego e o trabalho informal sem direitos trabalhistas. As negras também são mais pobres, vivem em habitações mais precárias e têm menos assistência a sua saúde. Os índices de violência entre as mulheres negras também são maiores, seja porque vivem em lugares mais perigosos, seja porque são mais alvo da violência. A violência ra-cial e sexual se faz presente. É também entre as mulheres negras que a padronização da beleza tem uma conseqüência mais nefasta. Para além de o modelo “mercanlilizado” ser branco, economica-mente ele se faz mais presente nos empregos que “exigem boa aparência”. Para fechar é importante lembra que elas têm menos condições de estudo e que sua cultura é permanentemente violada, fol-clorizada e marginalizada. Se as mulheres no geral são oprimidas pelo capital, as mulheres negras são massacradas pelo mesmo, que enxerga na cor da sua pele mais uma forma de exploração.

Uma breve visão feminista da conjuntura brasileiraAo longo de 6 anos de governo, Lula nos deu pou-cos sinais de uma ação clara para a mudança da vida das mulheres e para a classe trabalhadora. No geral, podermos dizer que a era Lula iniciou um novo momento do neoliberalismo (mas nem por isso menos atroz) no Brasil. Lula compactuou com o grande capital aprofundando relações com os EUA e se submetendo à OMC e FMI; colocou em ação reformas que continuam a atacar os direitos dos trabalhadores e a vender as esferas sociais, quando não a financiar as elites (PAC).

Ao lado da direita tradicional brasileira, usou os pro-gramas compensatórios como o bolsa-família (vale lembrar que o bolsa-família é dado a mulheres) para moeda de troca política e prosseguiu sem in-vestimentos significativos em áreas fundamentais como saneamento básico, saúde e educação. Lula aceitou os imperativos neoliberais de redução do social e aumento do capital e quando isso acon-tece as mulheres perdem.

Cabe destacar aqui um conjunto de ações de Lula ao longo dos seus governos contra o meio ambien-te e a reforma agrária. O governo liberou ao trans-gênicos, iniciou a transposição do Rio São Francis-co, incentiva cada vez mais a produção do etanol,

deixa de fiscalizar as plantações monocultoras in-dustriais “flexibilizando” as leis e a segurança na-cional, aprova a construção de mais termelétricas poluentes e deixa a reforma agrária a passos len-tos. A opção dada pelo mesmo foi o financiamento do latifúndio e a venda das terras a estrangeiros em detrimento da agricultura familiar e do acesso justo a terra em defesa da soberania alimentar de seu povo. As mulheres exigem soberania alimentar e energética não agressiva ao meio ambiente.

Como aprendiz dos norte-americanos o governo também foi um braço do imperialismo no Haiti. A tal “missão de paz” se mostrou bem mais truculenta e a “ocupação” ficou mais parecida com “invasão”. No mercado internacional o governo abriu uma serie de relações externas, mas quase todas sub-metidas aos ditames do FMI. Na política econômica Lula continua contingenciando milhões dos proje-tos sociais em nome do superávit primário. A di-vida externa foi paga, mas pra fazer isso o Governo contraiu uma dívida interna muito maior, que o faz paga mais altos juros.

No que tange especificamente às mulheres o gov-erno bem pouco construiu. Apesar de avanços como a existência da Secretaria de Políticas Públi-cas para Mulheres com status de ministério esta tampouco produziu/conseguiu implementar políti-cas que tivessem impacto na vida das mulheres. Enquanto isso, vimos pouco avançar na temática do aborto, que continua ilegal, apesar de algumas declarações bastante tímidas sobre o assunto por um lado, e assinatura de acordos com o Papa de outro. A condução da política pelo governo e as contradições do PT e da sua base de sustentação, além da pressão de agrupamentos religiosos, tem provocado reveses à luta do movimento feminista - que enfrenta igualmente uma forte resistência dos setores conservadores (com a CPI do Aborto e a criminalização das mulheres).

O governo lula continua então a gastar 9891 mais para manter o aborto ilegal do que para legalizá-lo. No geral o Brasil ainda continua a sustentar a po-breza feminina, a prostituição infantil, a morte por aborto inseguro, a morte pela violência doméstica de milhares de mulheres todos os anos, e o gov-erno que a esquerda brasileira elegeu em 2002 não foi capaz de mudar essa situação. Entretanto nem tudo foi um desastre. Durante seus quase 6 anos de governo, Lula implementou algumas políticas para as mulheres que tiveram impacto social. Eram necessidades urgentes e bandeiras históricas do movimento feminista e da luta das mulheres. Entre as políticas específicas implementadas é preciso destacar a criação do crédito especial para a ag-ricultora familiar (no Pronaf) e a lei Maria da Penha, acompanhados de alguns outros projetos menores.

A linha específica criada através do programa Pronaf-mulher, possibilitou a inclusão das agricul-toras familiares na contratação de crédito para a

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35produção agrícola independente do financiamento de outra cultura ou beneficiário de crédito agrícola na propriedade (marido, filhos) permitindo mais de uma operação de crédito; e também não agrícola (como agroindústria e atividades complementares de renda familiar). A linha especial pode ser aces-sada de forma individual ou coletiva.

A Lei Maria da Penha proporcionou maior visibili-dade à violência contra a mulher e facilitou, através do debate e divulgação da Lei, o acesso ao direito. Houve avanço através da criação (ainda muito in-suficiente) dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, e das alterações do có-digo de processo penal, código penal e da lei de execução penal. Mas, apesar do reconhecimento da lei, o acesso aos serviços depende ainda de medidas complementares como as casas abrigo, as delegacias da mulher, e de jurisprudência com-patível com a norma. As condenações são brandas, as garantias às mulheres limitadas e a proteção do estado inexistente ou insuficiente (inexistência de casas abrigo, de delegacias específicas, e custeio insuficiente da máquina pública para atendimento, ausência de pessoal qualificado...).

Outras políticas muito parciais como a extensão da licença maternidade (que não impõe obrigações para área pública entre outras limitações) e a am-pliação dos direitos das domésticas (igualmente muito limitada pela exclusão de direitos comuns as trabalhadoras), foram criadas num ambiente de barganha institucionalizada. Ambas as leis tiveram pouca ou limitada eficácia.

Porém, o conjunto dessas políticas foi constituído sem o aporte financeiro e operacional necessário que viabilizasse a efetividade das ações. Especial-mente os irrisórios recursos destinados aos pro-gramas e projetos e a submissão a uma estratégia de focalização das ações sociais - abandonando a necessária universalização dos direitos - são responsáveis pelo impacto restrito das políticas. Igualmente a não responsabilização dos entes fed-erados e poderes da república na gestão dos pla-nos de estado para atendimento das políticas soci-ais e a não garantia da universalidade dos serviços tornam ineficazes ou muito insuficientes essas políticas. A opção pela assistência social exclusiva através do programa bolsa família é um obstáculo adicional. E a submissão à política macro econômi-ca neoliberal é que impõe a escassez de recursos e o que estimula a barganha institucionalizada dos movimentos sociais que ascendem à esfera pública sem autonomia e de forma concorrente para ob-tenção de recursos públicos.

Com a crise essa situação pode piorar ainda mais. É que o governo continua preocupado com a credi-bilidade junto à comunidade financeira e pra isso sustenta metas de superávit monstruosas, respon-sáveis por contingenciar bilhões de reais que, ano a ano não são destinados às políticas públicas. E

as políticas de enfrentamento às desigualdades de gênero e raça, por não possuírem vinculações e mínimos constitucionais assegurados, são as mais penalizadas por este artifício.A renuncia de Lula às bandeiras históricas da classe trabalhadora abriram um momento gelati-noso junto aos movimentos sociais que ou coop-taram na defesa do governo ou tentam, aos pou-cos, se reconstruir pós a adesão petista ao projeto neoliberal. Nessa movimentação não foram poucas as mulheres, organizações feministas e setores de mulheres de outros movimentos que, em sua ori-entação geral, continuaram a defender o mesmo governo que contribui tão pouco para a libertação das mulheres. Por outro lado o ataque dado pelo governo aos movimentos sociais discordantes dele juntamente à defesa cada vez mais clara do projeto hegemônico burguês, ainda tem conseguido des-locar parte do movimento social (Via Campesina, pastorais, organizações sindicais, setores estudan-tis, setores do movimento de mulheres, etc) para a esquerda e construído algumas alianças de tempo variável entre esses movimentos.

Algumas reflexões sobre mulheres e política

Ainda hoje a participação política se configura como uma prática masculina. O espaço político une a es-fera pública e a esfera de poder, ambas ainda ne-gadas às mulheres, confinadas ao espaço privado, à esfera do lar. Contribuem para essa situação dois fatos: O primeiro diz respeito a estarmos em um sistema de dominação patriarcal sustentado pelo capitalismo que ainda não conseguimos enfrentar com resultados significativos; o segundo diz res-peito à dificuldade das organizações assimilarem o feminismo.

Já fizemos parte desse balanço na primeira parte deste texto então não voltaremos a ele, mas vale acrescentar como “motivos” no processo de não incorporação do feminismo pelas organizações uma não compreensão teórica de seus militantes quanto ao papel que a ideologia burguesa patriar-cal cumpre na manutenção da opressão não só das mulheres como de todos os seres humanos por um lado, e por outro a relação que os homens desempenham nessa opressão mediante a obten-ção de privilégios pessoais, materiais, sexuais, afe-tivos, etc.

A incorporação do feminismo depende, portanto de admitirmos que nós estamos imersos em uma cultura machista e entender que por sermos mili-tantes não estamos livres da mesma. Será nosso esforço cotidiano na construção da luta e de outros valores que tornará possível superar esse estágio.

É importante ressaltar que a construção da auto-nomia para as mulheres envolve a mudança das relações de poder nos diversos espaços sociais sendo necessário fazer um esforço não só para in-serir as mulheres no espaço político, mas repensar

Feminismo

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36a forma como toda a prática política é estruturada. Combater práticas discriminatórias dentro da orga-nização, incentivar a participação das mulheres e preocupar-se com demandas estruturais ou orga-nizativas que possibilitem a presença de mulheres é fundamental.

Um passo importante na assimilação do feminismo, entretanto, é a auto-organização das mulheres. É necessário que as mulheres mesmas sejam diri-gentes e repensem a prática política não qual estão inseridas, formulem programas e ações que con-tribuam para sua libertação, etc. Somente as mul-heres podem lutar e construir sua emancipaçãoNo sentido de combater os obstáculos à participa-ção das mulheres é importante atentar para alguns pontos:

- Pelas próprias configurações do espaço político as mulheres têm, de um modo geral, mais dificul-dades/insegurança para o mesmo. Incentivar a participação das mulheres e evitar práticas hostis (piadas, etc) é importante. Da mesma forma as mul-heres devem sempre ser identificadas como mili-tantes tão capazes quanto qualquer outro (e devem também receber formação política na mesma pro-porção), bem como assumir qualquer tipo de ativi-dade (devemos evitar a “divisão sexual da militân-cia” que joga as mulheres para tarefas secundárias e coordenativas e os homens aos espaços públicos e de direção e garantir cotas mínimas de gênero nos espaços de direção e representação).

- Grande parte dos espaços políticos são predomi-nantemente masculinos. Muitas mulheres se sen-tem desconfortáveis de estar num espaço como esse. Tal predominância pode ter como reflexo uma prática política com valores e atitudes machistas, que devem ser combatidos. As mulheres devem ser incentivadas a participar de todos os espaços políticos.

- As obrigações do lar, que recaem sobre as mul-heres pesam mais para sua militância. Os pais, namorados, maridos e filhos podem ser um obs-táculo dificultando dedicação e tempo. Devemos combater essa situação sempre que possível/ne-cessário e ao mesmo tempo garantir mecanismos que paliativos como creches.- O medo e a violência sexista recai sobre as mul-heres e para muitas pode não ser possível reuniões em determinados locais e horários. É importante atenção a isso.- Práticas políticas autoritárias, personalismos e a não coletivização das decisões são ações que difi-cultam e afastam a participação política das mul-heres, além de ser expressão de uma política forte-mente machista. A radicalização da democracia é fundamental também para as mulheres.É preciso então repensar a nós mesmos...

“Nada causa mais pavor à Ordem do que mulheres que lutam e sonham”

Balanço da gestãoda UNE (2007-2009)e perspectivas para o ME Nacional

Vinícius AlmeidaEx-Diretor de Universidades Públicas

da UNE (2007-2009)

Apesar do caráter autobiográfico, procuro nesse texto apresentar uma análise fruto de uma ex-periência coletiva, não somente compreendida a partir de meu grupo, o Levante, fundado durante minha gestão na UNE, mas sim de todos os gru-pos combativos e oposicionistas a atual direção desta entidade. Tenho objetivo de contribuir e, consequentemente, propor uma reorientação nas opções da esquerda no movimento, em especial daqueles que propõem a ruptura com a UNE, ou a não participação dos estudantes nos espaços da mesma.

Enfim, antes uma relatoria daquilo “que eu fiz” como diretor da UNE ou “do que eu achei” da gestão que participei, o objetivo central aqui é ajudar em res-postas para paradigmas já clássicos no movimento nacional.

Achar o motivo por que os setores anti-governistas não estão unidos em uma só entidade, ou na dis-puta de uma. Organizar um balanço a partir de da-dos externos ao movimento, grupos envolvidos e além das diferenças corporativas.

Antes da gestão: formação de Frente de Luta e esperança na unidade

Começamos o retrospecto pelo ano de 2006. Como muitos sabem, no ano de reeleição do gov-erno Lula, foi costurada uma política de alianças entre os setores no movimento estudantil apoiados no campo governista que se unificou de tal forma que foi capaz de impor uma derrota avassaladora em quase todos os DCEs dirigidos pela esquerda do movimento.

Esse cenário trágico foi um banho de água fria em nossa construção, mas atingiu de maneira mais dura o PSTU e sua proposta de nova entidade na época, a CONLUTE. Nesse cenário, somente re-staram dois DCEs combativos para contar história: Unicamp e UFF. Junto do Fórum de Executivas e Federações de Curso (FENEX), esse DCEs, grupos e independentes se reuniram no dia 17 de dezem-bro de 2006 para construir uma proposta de Frente. Estava criada nesse dia a Frente de Luta contra a Reforma Universitária.

Como principal óbvia bandeira dessa Frente, o combate a Reforma Universitária tinha perdido muito o seu fôlego nos anos anteriores. Isso era motivado principalmente pelo fato de que os gru-pos posicionados contra as medidas do governo

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37federal que abrangiam essa (contra)Reforma es-tavam em processo de profundo embate, em cima de uma polêmica de outra natureza.

Dentro ou fora da UNE:A marca de uma geração

Desde o primeiro ano do Governo Lula, as espe-ranças depositadas no mesmo de transformação social e avanço nas bandeiras dos movimentos so-ciais se apagaram com a manutenção da política econômica neoliberal que se desdobrou, assim como em Fernando Henrique, em diversas contra-Reformas.

A primeira foi a da Previdência, depois a Tributária e, por fim, a Universitária. Esta última atingiu em cheio as expectativas do movimento universitário como um todo. Porém, a UNE, por ter uma direção burocratizada e altamente ligada institucionalmente ao Governo Federal, renunciou de sua defesa dos estudantes para defender as políticas de educação de Lula, mesmo que semelhantes as de FHC, que a mesma combateu nos anos anteriores.

Por esse argumento, de “traição”, o PSTU apon-tou para uma ruptura com a UNE, ou seja, não somente com a linha de direção, construindo rep-resentações alternativas que desautorizavam a representação da entidade nacional a partir de sua posição governista, mas também passaram a de-fender a não participação de seus fóruns.

Infelizmente, a maior consequência dessa política não foi a desconstrução da referência da entidade representação estudantil para a ascensão de uma nova. Ao contrário, como não havia consenso entre os diversos setores de Oposição a, naquele mo-mento, optar pela ruptura, a partir da superestima-ção do debate organizativo (dentro ou fora da UNE) gerou-se uma enorme divisão que enfraqueceu esse movimento unitário e abriu espaço para uma retomada governista.

Gestão 2007-2009 da UNE – mais governista do que nunca!

No dia 11 de agosto de 2007 tomava posse uma nova gestão de diretores e diretoras da União Na-cional dos Estudantes em sua antiga sede, no Rio de Janeiro. O discurso de posse da presidente Lú-cia Stumpf era enfatizando a necessidade da en-tidade “ir para as ruas”. Era anunciada a jornada de lutas pela educação, em conjunto com diver-sos movimentos sociais, como o MST. Mesmo a oposição tinha grande expectativa diante de que o movimento estudantil lutasse com bandeiras históricas unitárias, estando junto apesar da di-vergência sobre o Governo Lula.

Devemos considerar os debates, esvaziados, e o esforço do movimento combativo em unificar pau-tas com o governismo estudantil. Contudo, ficou claro uma grande indisposição de construção entre

Balanço da gestão

setores governistas e outros rompidos com a UNE, em especial o PSTU. Motivos para dividir existiam, alguns justificáveis outros não.

A defesa da Reforma Neoliberal do ensino superior por parte da direção governista era contraditória com a necessidade de lutar pelos estudantes. Por outro lado, um erro que foi repetido ao longo dess-es dois anos, era o de priorizar a disputa pela dife-renciação nas bandeiras e não assumindo as ban-deiras unitárias de luta, sem deixar a contradição para aqueles que, na prática, defendiam o governo e atacavam os estudantes.

Para traduzir melhor essa crítica, vejamos a pauta central dessa jornada de lutas: a defesa da erradi-cação do analfabetismo e a derrubada dos vetos ao Plano Nacional de Educação. Com relação ao primeiro, mesmo com um índice de aprovação im-pressionante, Lula da Silva ao longo de seus quase sete anos de mandato avançou muito pouco na diminuição desse problema, coisa que governos como o venezuelano, no mesmo período, alcançou plenamente.

Sobre os vetos do PNE, nenhum avanço. As ver-bas para a educação sofreram inclusive no ano 2008 um corte superior a um bilhão de reais. A re-estruturação das universidades concorre a busca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e ex-tensão. Além de que o novo vestibular prejudica as regionalidades e avança na elitização do ensino superior público.

Dessa forma, essas defesas, pretensamente uni-tárias, somente cabem a setores contrários a política de educação do governo federal atual, ou mesmo a estudantes autônomos ao mesmo, que não é o caso da direção governista da UNE. Nesse sentido, a construção de jornadas, atos, lutas cuja pauta seja unitária e em combate aos governos, imporia uma contradição aqueles que o defendem e assumem uma participação nas mesmas. Ao lon-go da gestão foram vistas outras manifestações do mesmo fenômeno, que foi revelando mais ainda o atrelamento da união dos estudantes com a união governamental.

REUNI:uma luta concreta e um debate complexo

Inspirado fortemente pelo modelo Universidade Nova do então Reitor da UFBA, Naomar de Al-meida, o Decreto 6096/07 instituiu o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, mais conhecido como REUNI. Seu método impositivo às universidades e suas metas absurdas de ampliação das vagas desproporcionais a estrutura, verba e recursos hu-manos necessários insuflou os estudantes dessas instituições em todos o país, gerando o maior mov-imento combinado de ocupações de reitorias do século XXI, à revelia da posição da direção majori-tária da UNE e em embate com o governo federal.

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Desde meus últimos dias como diretor do DCE-UFF até esse furacão de mobilizações autônomas (mesmo surpreso com a dimensão da coisa) ha-via uma certeza de nosso posicionamento político contrário a esse Decreto, e em defensa do debate democrático na universidade sobre os seus rumos. Ficava revelada para uma nova geração de estu-dantes e ativistas, do que se tratavam as carcomi-das e autoritárias estruturas da universidade. Con-selhos Universitários votaram a favor do REUNI, sem nenhum debate, com a presença da polícia e, quando necessário, com uma repressão àqueles que ousassem resistir.

Apesar da derrota anunciada e a implementação do REUNI ocorrer a partir do ano seguinte, o movi-mento reconquistou seus laços com os estudantes e muitos DCEs foram retomados pela esquerda, como o DCE UFRJ, UFMG, UnB, UFS, dentro out-ros. Pudemos participar de muitas ocupações, mas pouco foi articulado nacionalmente pela Frente de Luta, que já não era mais somente “contra a Re-forma” mas também contra o REUNI. Essa fragili-dade ia custar caro no momento seguinte em que a auto-construção falou mais alto do que a unidade.

O fim da Frente

Sucedendo a uma leva de militantes que viven-ciaram os erros da divisão da esquerda, novos mili-tantes tinham em suas mãos a prova pela experiên-cia concreta que a unidade poderia ser melhor para todos os grupos. Mesmo numa lógica pragmática, ao compararmos 2006 com 2007, todas as for-ças cresceram isoladamente mais no primeiro do que no segundo ano. Entretanto, um grupo teve o maior crescimento nesse ano, muito em função de uma organização prévia, apesar de suas suces-sivas derrotas no passado.

Era o PSTU, que pouco a pouco via espaço para recolocar seu debate divisionista de construção de uma nova entidade alternativa a UNE. Mesmo sabendo que a Oposição de dentro da UNE, re-conhecida pela Frente de Oposição de Esquerda, tinha mais peso em presença de DCEs e influencia no movimento que eles, acharam por bem priorizar esse debate que a construção de uma ferramenta unitária. Por outro lado, campos como o Contra-ponto e Rebele-se viam no PSTU uma ameaça constante a nossa linha geral de disputa da União Nacional dos Estudantes por dentro, pelo seus fóruns e reconhecendo a sua direção, apesar de construir alternativamente o movimento com linha política diferente.

As tensões tiveram ápice em janeiro de 2008, com a implosão da plenária da Frente de Luta ocorrida na UFRJ, organizada por nós que iríamos fundar o Le-vante e éramos referenciados na tese do CONUNE 2007 Nós Não Vamos Pagar Nada. A polêmica maior, que podemos ver hoje como absolutamente fútil era a realização ou não de um plebiscito do RE-

Balanço da gestão

UNI, além da participação ou não da nova Jornada de lutas pela educação, anteriormente construída por todas as forças do movimento.

O PSTU era refratário a idéia de participar da Jor-nada, e queria priorizar o plebiscito, a Frente de Oposição de Esquerda (FOE) como um todo acha-va questionável a idéia de um plebiscito naquele momento, porém tinham alguma disposição de construir outras propostas.

A Jornada de Lutas futuramente não foi muito a frente, a exceção do Rio de Janeiro, que foi con-struída apenas por setores combativos e contou com um ato no dia 28 de março em memória pelos 40 anos da morte do estudante Edson Luiz pela Ditadura militar. A direção majoritária da UNE fez um ato também, bem menor, e vergonhosamente recebendo o governador Sérgio Cabral numa sol-enidade. Este governante foi alvo duro de falas no nosso ato pela sua política fascista de repressão, corrupção e violência no Rio de Janeiro.

Com o tempo, a proposta do PSTU de nova en-tidade foi sendo colocada de forma mais explíci-ta, considerando um balanço de que o veto dos setores de dentro da UNE na Frente de Luta im-pedia o funcionamento da mesma para referência dos estudantes em âmbito nacional. Argumento in-egável, mas que não justificou a repetição do erro de apostar num caminho solo de uma estrada bem esburacada e castigada chamada movimento es-tudantil.

A Caravana dos milhõese a luta contra as Fundações

Desde a primeira reunião da executiva da UNE des-sa gestão, em setembro de 2007, foi apresentado pela direção majoritária uma proposta de Caravana da Saúde. Estava presente também a representa-ção da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina).

Foi construído, depois disso, um GT responsáv-el pela organização da Caravana, com meta de acompanhar todos os estados e fazer diversos debates. Participamos de todas as reuniões desse GT que fomos convocados, inclusive mobilizando outras executiva da área de Saúde (Enfermagem, Nutrição, principalmente). Nesse ínterim coorden-amos uma construção com as executivas de saúde de uma campanha contra as Fundações Estatais de Direito Privado, bandeira que todo o movimento de saúde encampava naquele momento, especial-mente os trabalhadores.

Os problemas começaram na medida em que descobrimos que a Caravana da Saúde seria finan-ciada pelo Ministério da Saúde, inviabilizando a dis-cussão de Fundações nela, visto que o Ministério defendia sua implementação e não abriria margem para um debate contrário. Resultado: as executivas de saúde por bem optaram não construir a Carava-

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na e mais uma vez a direção majoritária escolheu o governo federal ao movimento estudantil para con-struir política. Pior ainda quando foi revelado que mais de R$ 10 milhões foram gastos nessa propos-ta do Ministério da Saúde e nada foi explicado pela direção majoritária de como é que foi isso gasto.

Obs.: Uma consideração importante foi que, nosso problema nessa ocasião, como veremos em out-ros momentos, foi a descontinuidade de uma boa política. A campanha contra as Fundações não foi muito para frente, já que não fizemos nada além de um adesivo.

Isso porque havia pouco amadurecimento desse novo movimento engajado sobre as possibilidades de disputa da UNE, que não estão meramente pau-tadas por disputa de cargos, mas principalmente por uma capacidade de, coordenado por um co-letivo, articular iniciativas de diversas esferas do movimento, desde a diretoria de oposição da UNE, passando por executivas e chegando na base das universidades.

De fato, o saldo político de levarmos a frente a cam-panha contra as Fundações certamente fortaleceria hoje o debate sobre OSCIPs e até mesmo sobre o REUNI, pois se veiculam numa mesma política de Estado para o país.

Plenária de Públicas

Talvez o momento de ápice de nossa intervenção num espaço da UNE tenha sido o CONEG em junho de 2008. Ocorrido logo após a ocupação da UnB, que derrubou o reitor Timothy, o evento acon-tecia em um momento de grande fortalecimento da Oposição de Esquerda, visto que cumpriu um papel decisivo naquela ocupação. Infelizmente não mais a Frente de Luta podia confirmar sua força, pois já havia um divisão irremediável de seus gru-pos. Mas no 56o Conselho Nacional de Entidades Gerais, fomos capazes de articular uma experiência a partir dos DCEs UFRJ, UFF e UnB que foi sui generis na breve história da oposição da UNE no tempo recente.

A partir do argumento de que estávamos suprindo uma demanda da diretoria de Universidades Públi-cas, levantamos para a direção majoritária de uma Plenária de Públicas da UNE, espaço tradicional da entidade na década de 90, pois articulava-se com as universidades mais mobilizadas do país. Acon-tecendo o espaço, deliberamos uma carta que se posicionava contra as principais políticas priva-tizantes no período, em especial as Fundações Privadas, pivô da corrupção no caso UnB, Funda-ções Estatais e o REUNI. Com isso, fechava um ciclo de lutas com uma articulação com 17 DCEs presentes (dos 25 credenciados no CONEG) e fazia uma grande demonstração de força para o futuro da disputa da entidade nacional.

Como na campanha contra as Fundações, a políti-

ca da Plenária de Públicas não foi a frente e se per-deu na falta de mobilização e articulação política da Oposição, ainda conhecida por FOE naquele momento. Nesse CONEG também começamos o debate de um novo coletivo com a presença de apenas sete militantes. Menos de um ano depois, seria fundado o Levante num Seminário com mais de 40 participantes.

Somos todos sem terra

Já no período do CONEG, muitas lutas aconteciam, em especial no Rio Grande do Sul, onde ocorreu uma série de prisões de militantes do MST a partir do relatório do Ministério Público local, que crimi-nalizava as principais atividades deste movimento, até mesmo sua escola de formação. Em vários es-tados participamos de uma mobilização em defesa do MST conhecida pela bandeira “Somos Todos sem Terra”. Particularmente participei da organiza-ção do ato no Rio de Janeiro, com cerca de 200 ativistas, dentre entidades, ONGs de Direitos Hu-manos e outros movimentos solidários aos sem-terra e sua luta.

Essa mobilização se somou a iniciativa proposta pela Via Campesina de construção do Encontro Nacional da Juventude do Campo e da Cidade, reunindo mais de 1000 jovens na UFF, com par-ticipação na organização do espaço do DCE-UFF e da Oposição de Esquerda. Fomos capazes de estreitar mais os laços dos movimentos sociais de juventude e avançar até um ato no Rio de Janeiro contra a criminalização dos movimentos no Rio de Janeiro de ampla participação e que fechou a Ave-nida Rio Branco com milhares de jovens.

O petróleo tem que ser nosso

Ao longo do ano de 2008 começamos a acompan-har o espaço da Plenária nacional contra a privati-zação do Petróleo e Gás. Seu lançamento no Rio de Janeiro foi em março e, pouco a pouco, foi se transformando numa das nossas grandes pautas da Oposição, em especial pela peculiaridade de Haroldo Lima, presidente da ANP (Agência Nacional do Petróleo), responsável pelos leilões do petróleo ser do PCdoB, partido que aparelha a UJS, cor-rente majoritária na UNE. Entidade que estava, em plena década de 1950, na campanha “O Petróleo é nosso”, ajudando a garantir o monopólio de ex-ploração que agora era quebrado pelos leilões de FHC e Lula.Portanto, a extrema contradição do papel da UNE hoje, se calando sobre os leilões, com a do pas-sado era um excelente motor para a Oposição de esquerda agir e se diferenciar. Em dezembro de 2008 participamos da organização do ato de ocupação da Petrobrás no Rio de Janeiro, que denunciou o 10o leilão ocorrendo no mesmo dia e deixamos claro para os movimentos sociais que existiam duas UNEs no movimento estudantil, uma de luta e outra governista. Esses laços foram refor-çados pela nossa participação nas Plenárias Na-

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cionais seguintes, principalmente a de Guararema, na escola Florestan Fernandes, em que aprovamos a realização de um ato pela campanha unificada do petróleo com a UNE, em seu Congresso, em junho de 2009.

O CONEB e o fim da FOE

Já no CONEG houve uma votação bem tensa so-bre a data do CONEB dessa gestão (Conselho Nacional de Entidades de Base), chegando a ter contagem, pois houve um racha do PCdoB com o PT naquele momento. Foi a segunda vez que vi uma contagem num fórum da UNE que não fosse a executiva. O crescimento da FOE lá era nítido e os impactos do REUNI na mudança de correlação de forças dos DCEs também.

Porém mesmo com forte pressão, o CONEB ocor-reu numa data e local totalmente inadequados para a garantia de um bom espaço político de con-strução. Foi aprovado para ser em Salvador, em janeiro de 2009, junto da Bienal de Arte e Cultura da UNE. Na prática o CONEB foi tratado pela di-reção majoritária como um espaço apêndice da Bi-enal, sendo sua mobilização muito mais motivada para um evento quase turístico, e não um espaço de profundo debate político. Nossa intervenção foi ainda mais prejudicada pela proximidade das datas com o Fórum Social Mundial em Belém, espaço im-portantíssimo de construção política dos movimen-tos e onde fundamos o coletivo Levante.

Naquele momento, a Frente de Oposição de Es-querda estava para ruir. O campo Rebele-se (ligado ao PCR) já havia saído dela e o próximo a finalizar sua participação era o campo Contraponto. Para estes, no entanto, mais do que não participar, eles defendiam o fim da FOE, considerando que ela não existia de fato, e atacavam muito nossa inter-venção, ainda identificada como Nós Não Vamos Pagar Nada, alegando que usamos o nome da FOE para nos auto-construir.

A falta de um coletivo articulado e organizado para defesa e construção da frente naquele período falou muito alto. A dificuldade de manter vivo o debate da necessidade de um frente nas universidades, so-mado às visões equivocadas de grupos que nunca quiseram de fato o modelo da frente persistisse, interromperam nossos maiores esforços, nos im-pondo uma derrota e ao conjunto dos movimentos e entidades nas universidades contrário aos rumos do movimento estudantil atual.

Meia-Entrada Irrestrita

Nossa intervenção tampouco se abalou com o fim da FOE. Ainda no final do ano de 2008 era anun-ciado a votação de um projeto de lei que impunha sérias restrições ao direito de meia-entrada para estudantes em casas de show, estádios, cinemas e teatros. Como resposta, um grande movimento autônomo dos estudantes, principalmente no Rio

de Janeiro. No dia 28 de março, esse movimento realizou uma ocupação no cinema Arteplex Botafo-go, Zona Sul da capital do estado do RJ com mais de 300 estudantes. Até hoje nada foi aprovado o que pode constituir uma vitória política de nosso movimento.

Pré-CONUNE

No último CONEG anterior as eleições de delega-dos e delegadas para o Congresso da UNE de 2009, credenciamos o maior número de entidades dentre os coletivos de Oposição, o que demonstra-va uma força com relação a nosso início. Foi defini-do o nome do coletivo, Levante, naquele espaço.

Aqui devemos considerar que, diante de um cenário de profunda fragmentação dos grupos de Oposição, desconfianças e brigas por temas ab-solutamente pontuais formaram um cenário positivo para construção a parte de uma perspectiva ampla e dificultaram ainda mais os planos desse novo co-letivo, que era de unir a esquerda e transformar o movimento estudantil, principalmente as suas práti-cas, que não abrangiam somente os setores ma-joritários da UNE, mas também sua Oposição e até mesmo setores rompidos com a entidade, como o PSTU. Levava em conta nós mesmos, que erramos em algumas montagens de chapa, deixando-se le-var pela pequena política também.

Mesmo assim, esse período foi ainda de boas ini-ciativas. A mais importante delas foi a nossa par-ticipação no Encontro de Mulheres Estudantes, em que construímos uma tese “Flores no asfalto” e dialogamos com muitas companheiras no es-paço, coisa que nenhum outro grupo de Oposição foi capaz de fazer. Tivemos uma ótima intervenção também no Congresso da UEE-RJ, que participa-mos quase todos pela primeira vez e elegemos em nossa chapa dois nomes para a executiva da en-tidade. Conseguimos, portanto, usar esse período para preparar bem nossos militantes para as dificul-dades que enfrentaríamos no CONUNE.

CONUNE 2009 e futuro

Nosso coletivo realizou um balanço sobre a intervenção da Oposição de Esquerda no CO-NUNE 2009, o qual participei da elaboração e con-tribui. Não cabe aqui abrir um balanço particular diferente daquele. Somarei apenas que olhando hoje o cenário da Oposição, fica claro que a intran-sigência da construção de uma Frente unitária por parte dos coletivos de esquerda não levou a uma proposta mais eficaz e positiva de propaganda de uma contraposição a direção majoritária da UNE. Cabe o coletivo Levante, junto de outros, retomar esse ideal para os novos militantes, pois os militan-tes envelhecem, se formam e seguem suas vidas, mas os sonhos não envelhecem!

Balanço da gestão