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O DILEMA DO INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL THE DILEMMA OF INDIGENOUS INFANTICIDE IN BRAZIL Melissa Mariano Ribeiro – [email protected] Graduanda em Direito – UniSALESIANO Lins Juliano Napoleão Barros – [email protected] Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do curso de Direito do UniSALESIANO/Lins. RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo analisar a prática do infanticídio pelos povos indígenas, presente em algumas tribos no Brasil. Foram feitas considerações acerca do significado da prática para os indígenas, tido, pelas tribos, como ato de amor ao filho e de preservação das tradições. Para tanto, a investigação se dedicou à relação do índio com a sociedade brasileira e à problematização do papel da sociedade civil e do Estado no enfrentamento dessa realidade que se contrapõe frontalmente à proteção à infância e à vida asseguradas pela Constituição da República Federativa do Brasil e por diferentes tratados internacionais. No que se refere á opções metodológicas, trata-se de pesquisa de vertente jurídico- sociológica, de tipo interpretativo, com uso de raciocínios dedutivos e indutivos e o emprego de fonte diretas e indiretas, consultadas mediante adoção de procedimento de analise de conteúdo. Palavras-chave: INFANTICÍDIO INDÍGENA. DIREITO À VIDA. DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS. ABSTRACT The present research aims to analyze the practice of infanticide by indigenous peoples present in some tribes in Brazil. Considerations were made about the meaning of the practice for the natives, which the tribes had as an act of love for the child and for the preservation of traditions. In order to do so, the research was 1

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O DILEMA DO INFANTICÍDIO INDÍGENA NO BRASIL

THE DILEMMA OF INDIGENOUS INFANTICIDE IN BRAZIL

Melissa Mariano Ribeiro – [email protected] em Direito – UniSALESIANO Lins

Juliano Napoleão Barros – [email protected] e Doutor em Direito pela UFMG.

Professor do curso de Direito do UniSALESIANO/Lins.

RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo analisar a prática do infanticídio pelos povos indígenas, presente em algumas tribos no Brasil. Foram feitas considerações acerca do significado da prática para os indígenas, tido, pelas tribos, como ato de amor ao filho e de preservação das tradições. Para tanto, a investigação se dedicou à relação do índio com a sociedade brasileira e à problematização do papel da sociedade civil e do Estado no enfrentamento dessa realidade que se contrapõe frontalmente à proteção à infância e à vida asseguradas pela Constituição da República Federativa do Brasil e por diferentes tratados internacionais. No que se refere á opções metodológicas, trata-se de pesquisa de vertente jurídico-sociológica, de tipo interpretativo, com uso de raciocínios dedutivos e indutivos e o emprego de fonte diretas e indiretas, consultadas mediante adoção de procedimento de analise de conteúdo.

Palavras-chave: INFANTICÍDIO INDÍGENA. DIREITO À VIDA. DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS.

ABSTRACT

The present research aims to analyze the practice of infanticide by indigenous peoples present in some tribes in Brazil. Considerations were made about the meaning of the practice for the natives, which the tribes had as an act of love for the child and for the preservation of traditions. In order to do so, the research was dedicated to the relationship between the Indian and Brazilian society and to the role of civil society and the State in confronting this reality that is directly opposed to the protection of children and life guaranteed by the Constitution of the Federative Republic of Brazil and by different international treaties. As far as methodological options are concerned, it is a research of juridical-sociological aspect, of an interpretive type, using deductive and inductive reasoning and direct and indirect sources, consulted through adoption of content analysis procedure.

KEYWORDS: INDIGENOUS INFANTICIDE. RIGHT TO LIFE. INDIGENOUS PEOPLES' RIGHTS.

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INTRODUÇÃO

O infanticídio indígena é o principal causador de morte nas tribos indígenas,

porém, sabe-se que este não é abrangido pelo art. 123 do Código Penal. A

expressão “infanticídio indígena” é uma forma de se referir à prática de matança de

crianças indígenas que nascem de maneira indesejada, seja por sua família ou pelos

integrantes da tribo, pelo fato de terem nascido com alguma deficiência, por serem

filhos de mães solteiras, filhos gêmeos ou até mesmo por serem meninas, nas tribos

em que há a preferência pelo nascimento de filhos de sexo masculino.

Atualmente, a prática do infanticídio indígena persiste presente em algumas

tribos brasileiras, como entre as etnias uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna,

amondaua, uru-eu-uauuau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro,

kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi.

Desse modo, faz-se importante apresentar os aspectos que envolvem este

tipo de prática, tão pouco discutida atualmente na sociedade brasileira e em

pesquisas científicas e acadêmicas. Qual o papel da sociedade e do Estado diante

dessa violência praticada na cultura de determinados povos indígenas?

No enfrentamento de tal questão, não se pode ignorar que a prática do

infanticídio indígena se contrapõe frontalmente à proteção à infância e à vida, bens

juridicamente tutelados pela Constituição da República Federativa do Brasil e por

diferentes instrumentos internacionais. Neste cenário, é pertinente destacar que a

persistência de tais práticas culturais também está relacionada a questões políticas

e socioeconômicas, em suma, às condições de vida nas respectivas tribos.

1 A PRÁTICA DO INFANTICÍDIO INDÍGENA E O SEU SIGNIFICADO PARA AS COMUNIDADES INDÍGENAS

Diante da situação dos povos indígenas no Brasil, faz-se necessário analisar

a prática do infanticídio indígena e os conflitos existentes no país que dela decorrem,

2

visto que há um dilema entre o direito à vida e o direito à cultura, além dos direitos

dos povos indígenas, que são previstos na Constituição Federal de 1988. A prática

faz com que haja um conflito de interesses e valores, dividindo muito as opiniões,

haja vista que de um lado há uma afronta aos direitos humanos por retirar a vida da

pessoa humana, atentando contra sua dignidade e causando indignação em muitos.

Do outro lado, têm-se a proteção aos direitos dos povos indígenas, que garante o

direito à cultura e às práticas tradicionais. Conforme dispõe os autores Marcus

Mendonça Gonçalves de Jesus e Erick Wilson Pereira:

A prática de infanticídio em tribos de diferentes etnias indígenas traz à tona uma discussão que envolve diferentes interesses e valores. A influência religiosa que incide na sociedade brasileira (sobretudo a cristã) e o ativismo de grupos de direitos humanos se confrontam com as opiniões de antropólogos e de entidades defensoras dos direitos indígenas. O ato de retirar a vida de uma criança recém-nascida é causador de repugnância e revolta em várias pessoas, mas, por outro lado, há um entendimento por parte de especialistas que não se deve interferir nos costumes indígenas, pois é um direito que lhes assiste preservá-los. (JESUS; PEREIRA, 2017, p. 367).

Tal questão causa certo alvoroço na sociedade, principalmente no meio

jurídico, pois muitos defendem que o direito à vida deve estar acima de qualquer

outro direito. Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal garante proteção aos

índios, garante também o direito à vida e à sua dignidade. Neste sentido, entende-se

que “o debate sobre infanticídio indígena constitui-se como um lócus da tensão

existente entre o direito à diversidade cultural dos povos e o princípio de

universalização de direitos humanos fundamentais”. (ROSA, 2012, p. 2).

O termo infanticídio advém do latim infanticidium, referindo-se ao assassinato

de uma criança pela própria mãe. (GIRARDON DOS SANTOS; LIMA; LIMA, 2017, p.

159). De acordo com José Marcos Rocha de Novaes (2018, p. 11-13), a expressão

“infanticídio indígena” é popularmente utilizada com o objetivo de se referir ao

assassinato de crianças que nasceram de forma indesejada. Este costume entre os

índios não tem a inflexibilidade conceitual da espécie estatuída em nosso Código

Penal. Aqui ele é entendido no seu sentido literal.

3

Importante ressaltar que as mães que praticam o infanticídio em seus filhos

nem sempre agem somente por efeito do estado puerperal, mas sim para honrar o

costume de sua tribo. Nas comunidades indígenas brasileiras, o infanticídio se trata

de uma prática tradicional presente em algumas tribos que é feita em recém-

nascidos que possuem alguma deficiência, filhos de mães solteiras, filhos bastardos,

gêmeos, também aqueles provenientes de violência sexual. Esta prática é feita de

diversas formas, como enterrar as crianças ainda vivas, sufocar, estrangular e até

mesmo abandonar no meio da mata. (GIRARDON DOS SANTOS; LIMA; LIMA,

2017, p. 162).

Conforme versa Fernanda Braghirolli e Adelar Monteiro Barreto, o infanticídio

indígena é um tema que representa bem o desafio da sociedade contemporânea, já

que visa assegurar o respeito à diversidade cultural e o direito à vida. Desta forma,

traz à tona a dúvida de até que ponto a cultura seria legítima para que não afronte

os direitos fundamentais do ser humano, que são assegurados pela Constituição

Federal de 1988 e diversos outros textos. (BARRETO; BRAGHIROLLI, 2017, p. 2).

A mãe que for dar à luz é consciente de que possui um dever social a ser

cumprido. Para manter o respeito aos valores de seu grupo, acaba matando seu

filho que não é bem-vindo pela tribo. (ESTEVES, 2012, p. 14). Neste sentido, Eni

Rodrigues de Paula dispõe:

Os indígenas brasileiros são constituídos de grupos sociais autônomos, com práticas e costumes próprios. E cada etnia possui uma visão diferenciada de mundo. Cada um destes grupos possui um conceito diferente sobre o que é a vida e a morte do ser humano. Esta visão de mundo algumas vezes se contrapõe com os valores universais dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente e também na nossa Carta Magna. (PAULA, 2013, p. 1).

Os povos indígenas acreditam que a morte das crianças é necessária porque

elas podem se tornar um peso e podem até mesmo amaldiçoá-los. Tem-se como

exemplo os deficientes físicos ou mentais, que são tidos como amaldiçoados pelo

fato de não ser possível auxiliar nos afazeres da tribo e por “atrapalhar” seus pais, já

que passariam o tempo tendo que cuidar do filho deficiente que necessitaria de um

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cuidado maior. O nascimento dos gêmeos é outro exemplo em que são

considerados como amaldiçoados, então, para expulsar o espírito maligno, algum

dos dois devem ser mortos. Até mesmo os filhos de mãe solteira podem ser mortos,

visto que para a tribo é considerado uma vergonha. (SOUSA; VALADARES, 2014, p.

1). Há também que se falar que os filhos de sexo masculino são os preferidos por

alguns grupos. Partos muito próximos, sonhos ou maus presságios também são

motivos para a morte. (PAULA, 2013, p. 3). José Marcos Rocha de Novaes nos traz

uma profunda reflexão acerca disso:

Destaque-se que a cultura dos povos indígenas é colocada acima da vida e suas vozes são abafadas pelo manto da crença, com imutáveis e estáticas visões de que a espiritualidade deve ser o princípio norteador para autorizar que uma criança, tida como impura aos olhos de seus líderes ou familiares, seja morta à revelia da sociedade civil organizada. (NOVAES, 2018, p. 11).

O infanticídio aparenta tratar da vontade coletiva dos povos indígenas,

considerando que esta prática se fundamenta na preservação de interesses

coletivos e no cumprimento de regras. Com a eliminação dos recém-nascidos que

de alguma forma possuem alguma das limitações impostas pelos índios, a

comunidade se livra do peso de ter que carregá-los, já que além de uma atenção

especial, não ajudariam na caça, pesca e demais trabalhos. (SILVEIRA, 2011, p.

145).

2 A REALIDADE DOS POVOS INDÍGENA NAS ALDEIAS BRASILEIRAS

De acordo com os dados divulgados pelo IBGE no último censo demográfico,

há cerca de 896, 9 mil indígenas nas aldeias do Brasil (IBGE, 2010). Mesmo a

Constituição Federal, em seu artigo 231, ter reconhecido o direito à organização

social, costumes, línguas, crenças e tradições, as crianças indígenas estão em

grupo muito excluído há muito tempo atrás. (SILVEIRA, 2011, p. 61). De acordo com

Silveira, todas as crianças são frágeis e devem ter uma proteção especial, ainda

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mais aquelas que vivem em situação de risco ou que possuem problemas de saúde,

onde se encaixam as indígenas. No Brasil, estas crianças se encontram expostas,

principalmente no tocante à vulnerabilidade social, étnica e cultural. Aquele que

possui o dever de protegê-las alega que por se tratar de uma prática cultural, não

pode haver intervenção. (BARRETO; BARRETO, 2017, p. 17).

Ana Keila Mosca Pinezi faz o apontamento de que a situação atual dos índios

no Brasil é bem precária e sempre foi. Segundo Pinezi, os índios estão sendo

excluídos das condições básicas de cidadania e de sobrevivência. (PINEZI, 2010).

Para Márcia Suzuki, algumas vozes se levantam acerca do infanticídio:

Os líderes indígenas de hoje têm consciência do caráter dinâmico das culturas. Eles não estão interessados em ficar parados no tempo nem confundem respeito à diversidade com tolerância universal. Eles estão preocupados em garantir a sobrevivência física e cultural de suas comunidades, enquanto querem, ao mesmo tempo, o diálogo inter-étnico. Estão abertos para implementar mudanças em suas comunidades, sempre que essas signifiquem melhorias na qualidade de vida e na dignidade dos povos indígenas. Muitos estão cansados de ouvir um discurso hipócrita de preservação cultural. Eles não querem essa preservação “folclórica”, feita a todo custo. (SUZUKI, 2007, p. 10).

A prática é presente em algumas etnias, como uaiuai, bororo, mehinaco,

tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uauuau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa,

waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi. (SUZUKI, 2007,

p. 7).

Em 2009, o site Veja divulgou uma matéria acerca desta prática envolvendo o

Ministério Público de Amazonas, o qual pediu à Vara da Infância e Juventude de

Manaus que determinasse que uma criança da etnia Yanomami continuasse

internada em um hospital pelo fato de ter hidrocefalia, pneumonia e tuberculose,

indo, aliás, contra a vontade de sua tribo e também da FUNAI. (VEJA, 2009).

O Estado, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Fundação

Nacional da Saúde (FUNASA), está sendo omisso em relação aos casos de morte

de crianças indígenas decorrentes das práticas culturais. (BARRETO;

6

BRAGHIROLLI, 2017, p. 14). Importante salientar que não há dados oficiais quanto

ao infanticídio indígena, existindo apenas alguns estudos. (SILVEIRA, 2011, p. 133).

Os órgãos responsáveis por manter em dia esses dados e o bem-estar dos índios,

continuam desinteressados com a alta taxa de mortalidade de crianças por causas

não esclarecidas, não interferindo nas tribos indígenas. Por dizer ser um valor

cultural que não pode ser retirado de um povo. (BARRETO; BRAGHIROLLI, 2017, p.

14). Daí surge a necessidade, como bem menciona a autora, de que haja mais

informações acerca das comunidades indígenas. (SILVEIRA, 2011, p. 134).

3 A SOCIEDADE CIVIL FRENTE AO INFANTICÍDIO INDÍGENA: breves considerações sobre a atuação da ONG Atini – Voz pela vida

Diante de tudo o que envolve a prática do infanticídio indígena, vale ressaltar

a importância da intervenção de toda a sociedade civil e das organizações sociais

neste dilema. Tem-se como exemplo, a criação de organizações sociais que visam

proteger os direitos das crianças.

A ONG Atini – Voz pela vida, sediada em Brasília - DF, trata-se de uma

dessas organizações. É uma organização sem fins lucrativos que visa defender os

direitos das crianças indígenas e erradicar o infanticídio presente em determinadas

tribos. O movimento é inspirado em Muwaji Suruwahá, mulher indígena que lutou

pela vida de sua filha Iganani, nascida com paralisia cerebral. Para não praticar o

infanticídio em sua filha, Muwaji desafiou esta tradição cultivada pelo seu povo.

(SUZUKI, 2007, p. 22).

Conforme dispõe Taurino (2015, p. 32) “a referida Organização não tem o

objetivo de qualquer incentivo, criminalização ou mesmo punição pela prática do

infanticídio pelos grupos indígenas que praticam”. Neste sentido, a ONG auxilia

famílias indígenas que buscam solucionar problemas decorrentes de determinadas

práticas culturais de suas comunidades. (TAURINO, 2015, p. 33). A ONG visa:

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1. Promover a conscientização e a sensibilização da sociedade sobre a questão do infanticídio de crianças indígenas, abordando o assunto nos mais diversos meios de comunicação, produzindo e distribuindo material informativo, promovendo ou participando de eventos culturais, seminários e palestras em universidades, igrejas, escolas, empresas etc.

2. Prevenir o infanticídio junto às comunidades e profissionais atuantes em áreas indígenas, produzindo e distribuindo material informativo conscientização sobre os direitos humanos e direitos das crianças.

3. Assistir crianças em risco de infanticídio ou sobreviventes, e seus familiares. Atualmente, a Atini assiste crianças das etnias Kamayurá, Kajabi, Suruwahá, Kuikuro, Ikpeng. (ATINI, 2006).

A Atini não busca recorrer à legislação brasileira pela criminalização do

infanticídio indígena, mas sim pela implementação de ações aptas a proteger as

crianças “indesejadas” desta prática. Segundo a Organização, a insuficiência de

políticas públicas faz com que alguns indígenas peçam ajuda de organizações como

a Atini. (ATINI, 2006). Assim sendo, verifica-se a importância da existência de uma

Organização que ampare os indígenas com o objetivo de atender suas

necessidades.

4 O PAPEL DO ESTADO NO TOCANTE AS POLÍTICAS PÚBLICAS NAS ALDEIAS

Diante da situação em que vivem os indígenas nas aldeias, verifica-se a

importância da intervenção do Estado mediante políticas públicas que assegure

melhor condição de vida à todos, principalmente às crianças indígenas que podem

ser vítimas da prática do infanticídio. Diante disso, Mario Roberto Verene dispõe que

“políticas públicas são normas e ações determinadas por um poder que é legitimado

pelas relações sociais em prol de uma população, de uma comunidade, de uma

etnia” (VERENE, 2005, p. 59).

Diante deste dilema, torna-se necessário a tutela do direito à vida,

combatendo as práticas que a viola. Destaca-se o dever do Poder Público em

proteger e assegurar a dignidade da pessoa humana para todos. (BARRETO;

8

BRAGHIROLLI, 2017, p. 16). Nesse diapasão, verifica-se que a criação de ações

governamentais é fundamental para que seja efetivado o direito à vida. Cabe ao

Estado destinar proteção àqueles que pedem socorro para se desvencilhar de

práticas degradantes em nome da cultura. (BARRETO; BRAGHIROLLI, 2017, p. 17).

A autora Nataly Freire Portela dispõe acerca da necessidade criação das

políticas públicas, afirmando que, com isso, resguardaria os direitos individuais e

melhoraria a convivência social, diante da tamanha diversidade cultural presente na

sociedade. Conforme o entendimento da autora, se o Estado tratar o infanticídio com

efetividade poderá haver a eliminação dessa prática danosa contra a vida das

crianças. Além do mais, vale ressaltar que cabe ao Estado assegurar e realmente

efetivar melhores condições de vida a todos mediante o acesso à saúde e

profissionais capacitados. Diante dessas ações, os povos indígenas terão o pleno

exercício de seus direitos e um desenvolvimento sustentável para essas situações

(PORTELA, 2016, p. 52). Neste sentido, a autora Anathielly Martins Valadares e

Fernanda Nepomuceno Sousa traz uma reflexão:

A vida é protegida desde a concepção até a morte natural, sendo dever do Estado protegê-la por meio de leis e políticas públicas que conscientizem a população sobre o crime de retirar a vida alheia. (SOUSA; VALADARES, 2014, p. 8).

O Estado tem a obrigação legal e moral de proteger a vida das crianças

indígenas, equilibrando o direito às práticas culturais e os deveres de toda

sociedade, priorizando, assim, o direito à vida. (BARRETO; BRAGHIROLLI, p. 16).

Todas as crianças, sem qualquer exceção, devem ter o direito à vida com saúde e

dignidade tutelado pelo Estado, mediante políticas públicas e sociais para que

tenham uma existência com dignidade. (NOVAES, 2018 p. 21). Diante disso, a

autora ainda acrescenta que “o bem jurídico vida não é apenas fundamental ao

indivíduo, é objeto de proteção indiscutível do Estado”. (NOVAES, 2018, p. 21).

A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) não defende esta política

intervencionista do Estado, o que acaba dificultando o desenlace deste problema.

9

Desta forma, entende-se que há sim o dever do Estado de implementar as políticas

públicas para os indígenas, bem como fomentar o diálogo intercultural, pois através

disso poderá criar formas para que as crianças não sejam vítimas de serem mortas

por sua próprias famílias, como, por exemplo, através de possibilidades de cura,

tratamentos e adoções das crianças especiais. Há índios que interagem com os

valores ocidentais, reconhecendo o que é ou não aceito pela sociedade brasileira,

não se tornando “menos índios” possuir esse grau de comunicação. (SOUSA;

VALADARES, 2014, p. 11). Há quem defenda que a prática do infanticídio se faz

presente em determinadas comunidades indígenas justamente pela omissão do

Estado em garantir informação e políticas públicas. (NOVAES, 2018, p. 12).

Conforme versa Valéria Trigueiro Adinolfi, atualmente, estamos em uma

sociedade em que há profundas disparidades, sendo a área da saúde uma das mais

afetadas. Muitos não possuem um mínimo acesso à saúde, fazendo com que

sobrevenham péssimas conseqüências para todos aqueles que são mais

vulneráveis, ou seja, as crianças, especialmente as indígenas. (ADINOLFI, 2008, p.

1). Neste, contexto, cabe ressaltar os dizeres de Berreto e Braghirolli:

A problemática do infanticídio indígena urge maior participação do Poder Público, na promoção de ações que busquem a efetivação dos direitos fundamentais e o respeito pelo princípio da dignidade humana, independente dos segmentos étnicos de cada povo, desta feita, estaria resguardado o direito à vida, mas sem distanciar-se ao mesmo tempo dos valores culturais das comunidades indígenas. (BARRETO; BRAGHIROLLI; BARRETO, 2017, p. 18).

Conforme Santos (2016, p. 11), o infanticídio decorre da soma de todo um

conjunto: “a realidade vivida dentro das aldeias, a necessidade de sobrevivência

falando mais alto, a pressão social, a falta de acesso à saúde, falta de informação

para lidar com as diferenças, a religiosidade, o sexismo”. Diante do provável

sofrimento das crianças indígenas que nascem com algum tipo de limitação devido à

precariedade do acesso à saúde e informação, torna-se preferível interromper a vida

destes como sendo um verdadeiro ato de amor.

10

Considerando que a vida humana possui um valor supremo, verifica-se que o

Estado tem de intervir na prática do infanticídio presente nas aldeias indígenas

mediante políticas públicas, para que de alguma forma seja erradicada a violação do

direito à vida dessas crianças. O Estado deve agir de forma mais ativa a respeito da

violência praticada pelos povos indígenas, mas não deixando de respeitar a cultura,

para buscar meios possíveis para resolução destes conflitos entre cultura e direitos

humanos.

Assim sendo, cabe ao Estado intervir em tais práticas para que a vida e a

integridade física da criança sejam realmente tuteladas. O infanticídio indígena é

uma prática tradicional nociva que atenta contra a vida humana e contra a dignidade

da pessoa humana, e o Estado tem responsabilidade e deve intervir neste conflito de

modo a resolver a situação desta prática cultural presente em determinadas tribos

especialmente por meio de políticas públicas.

CONCLUSÃO

Diante do infanticídio indígena, verificou-se que esta prática expressa um

dilema entre o reconhecimento do direito à vida e do direito à cultura. Há um conflito

de valores que divide a comunidade jurídica e política em muitas opiniões. Desde o

genocídio protagonizado pelos portugueses, os índios vivem em situações bem

precárias e até os dias atuais são desprezados e excluídos de condições mínimas

para sobreviverem com dignidade. O desprezo se evidencia, aliás, pela imprecisão e

insuficiência dos dados oficiais sobre esses povos, como, no que concerne ao objeto

dessa pesquisa, a especificação da taxa de mortalidade das crianças indígenas.

Apesar de ser uma prática tradicional, o infanticídio se conecta também à

escassez de recursos na tribo, visto que seria difícil manter uma criança que nasceu

com alguma deficiência, por exemplo, em um local sem nenhuma estrutura.

Considera-se ainda que o infanticídio é praticado pelos mais diversos motivos. A

mãe que dá a luz se sente no dever de proteger os valores culturais de seu povo,

então põe fim à vida de seu filho em nome de sua tribo. As crianças são mortas

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porque podem se tornar um peso a ser carregado pelo seu povo e pela crença de

que carregam em si maldições. Saliente-se que nem todas as tribos indígenas são

adeptas da prática do infanticídio.

No que concerne ao papel do Estado brasileiro, este possui,

constitucionalmente, o dever de garantir o bem-estar de todos. Em decorrência,

deve haver políticas públicas efetivas visando dar melhor condição de vida a todos,

inclusive à população indígena. Do mesmo modo, mostra-se imprescindível a

difusão do diálogo intercultural.

REFERÊNCIAS

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