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    SOCIEDADE, COTIDIANO ESCOLAR E CULTURA(S):UMA APROXIMAO*

    VERAMARIAFERRO CANDAU**

    RESUMO: Este trabalho pretende apresentar a problemtica da educa-

    o multicultural hoje, do ponto de vista conceitual e prtico. Nestecontexto, situa e define a perspectiva da educao intercultural Apre-senta uma viso de conjunto da linha de pesquisa que a autora vemdesenvolvendo no Departamento de Educao da PUC-Rio, que tempor preocupao central analisar as relaes entre cultura(s) e educaona sociedade brasileira.

    Palavras-chave: Multiculturalismo. Interculturalismo. Cultura(s). Co-tidiano escolar.

    SOCIETY, EVERYDAYSCHOOLLIFEANDCULTURE(S): ANAPPROACH

    ABSTRACT: This paper analyses the current multicultural educationboth from a theoretical and a practical point of view. Using multiculturaleducation as a frame of reference, it also defines the notion of interculturaleducation. Finally, it presents a general view of the research beingcarried out by the author at the Department of Education of theCatholic University of Rio de Janeiro (PUC-Rio). The project is mainlyconcerned with the discussion of the relationship between culture(s)and education in the Brazilian society.

    Key words: Multiculturalism. Interculturalism. Culture(s). Schoolpractices.

    * Este texto uma verso revista e ampliada do trabalho Multiculturalismo, cotidiano escolar eformao de professores, apresentado no Colquio sobre Questes Curriculares, realizado naUniversidade do Minho, Portugal, de 4 a 6 de fevereiro de 2002, e promovido por essainstituio e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    ** Professora titular e pesquisadora do Departamento de Educao da Pontifcia Universi-dade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: [email protected]

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    questo multicultural nos ltimos anos vem adquirindo cada vezmaior abrangncia, visibilidade e conflitividade, no mbitointernacional e local. Isso preocupa muitas sociedades. O debate

    intenso nos Estados Unidos e tambm na Europa. No se trata de

    maximizar a dimenso cultural e desvincul-la das questes de carterestrutural e da problemtica da desigualdade e da excluso crescentes nomundo atual, nem de consider-la um mero subproduto desta realidade.O importante , tendo presente a configurao poltico-social e ideolgicado momento, no negar a especificidade da problemtica cultural, semconsider-la de modo isolado e autocentrado.

    Na Amrica Latina e, particularmente, no Brasil, a questo multi-cultural apresenta uma configurao prpria. Nosso continente umcontinente construdo com uma base multicultural muito forte, onde as

    relaes intertnicas tm sido uma constante atravs de toda sua histria,uma histria dolorosa e trgica principalmente no que diz respeito aosgrupos indgenas e afro-descendentes.

    A nossa formao histrica est marcada pela eliminao fsica dooutro ou por sua escravizao, que tambm uma forma violenta denegao de sua alteridade. Os processos de negao do outro tambmse do no plano das representaes e no imaginrio social. Neste sentido,o debate multicultural na Amrica Latina coloca-nos diante desses sujeitoshistricos que foram massacrados, que souberam resistir e continuamhoje afirmando suas identidades fortemente na nossa sociedade, masnuma situao de relaes de poder assimtricas, de subordinao eacentuada excluso.

    No plano nacional, convm salientar que, pela primeira vez nanossa histria, uma proposta educacional que emana do Ministrio deEducao nacional, os Parmetros Curriculares Nacionais, publicados em1997 e que suscitaram grandes controvrsias quanto a sua concepo,processo de construo e estruturao interna, incorporou, entre os temas

    transversais, o da pluralidade cultural. Esta opo no foi pacfica e simobjeto de controvrsias, de toda uma negociao em que a presso dosmovimentos sociais se fez presente, e a reestruturao da equiperesponsvel, inevitvel. O prprio documento assim justifica a introduoda temtica da pluralidade cultural no currculo escolar:

    sabido que, apresentando heterogeneidade notvel em sua composiopopulacional, o Brasil desconhece a si mesmo. Na relao do Pas consigo mes-mo, comum prevalecerem vrios esteretipos, tanto regionais quanto emrelao a grupos tnicos, sociais e culturais.

    A

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    Historicamente, registra-se dificuldade para se lidar com a temtica do precon-ceito e da discriminao racial/tnica. O Pas evitou o tema por muito tempo,sendo marcado por mitos que veicularam uma imagem de um Brasilhomogneo, sem diferenas, ou, em outra hiptese, promotor de uma supostademocracia racial. (Parmetros Curriculares Nacionais, vol. 10, p. 22)

    Por outro lado, somos conscientes de que o atual contexto interna-cional, marcado por uma globalizao excludente, polticas neoliberais euma emergente doutrina de segurana global, est reforando fenmenossocioculturais de verdadeiro apartheid, que assumem diferentes formas emanifestaes. No entanto, esta no uma realidade que afeta igualmentea todos os grupos sociais, culturais, nem a todas as pessoas. So osconsiderados diferentes, aqueles que por suas caractersticas sociais e/ou tnicas, por serem considerados portadores de necessidades especiais,

    por no se adequarem a uma sociedade cada vez mais marcada pelacompetitividade e pela lgica do mercado e do consumo, os perdedores,os descartveis, que vm a cada dia negado o seu direito a ter direitos(Hanna Arendt).

    exatamente nesta conjuntura que a UNESCO, logo aps a realizaoda controvertida Conferncia da ONU sobre o Racismo, a DiscriminaoRacial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerncia, realizada emDurban (Africa do Sul), do 31 de agosto ao 8 de setembro de 2001, emsua ltima Conferncia Geral, celebrada em Paris, de 15 de outubro a 3

    de novembro de 2001, aprovou por aclamao umaDeclarao Universalsobre a Diversidade Cultural. Nessa ocasio, o Diretor-Geral desteorganismo, Kochiro Matsuura, afirmou que esperava que essa declaraochegasse um dia a adquirir tanta fora quanto a Declarao Universaldos Direitos Humanos.

    neste horizonte que se coloca o presente trabalho, que tem porobjetivo apresentar uma viso de conjunto da linha de pesquisa quevimos desenvolvendo, desde 1996, com o apoio do Conselho Nacional

    de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e, nos ltimos doisanos, da Fundao de Amparo Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), noDepartamento de Educao da PUC-Rio, tendo como preocupaocentral as relaes entre cultura(s) e educao na sociedade brasileira.

    Algumas tenses fundamentais

    O referencial terico que vimos trabalhando ao longo desses anos,tentando navegar na ampla literatura sobre o tema, tem privilegiado

    algumas tenses que consideramos especialmente significativas no mundo

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    atual e mergulhado nas diferentes concepes e propostas do multicul-turalismo. Permeando toda nossa reflexo est o aprofundamento emconceitos especialmente complexos e polissmicos, tais como cultura,identidade cultural, diferena, diversidade cultural, identidades de

    fronteira, hibridizao cultural, entre outros. Trata-se de um universosemntico amplo no qual seria impossvel aprofundar-se neste momento.Limitar-nos-emos a tecer algumas consideraes que permitam explicitara perspectiva em que nos situamos.

    No que diz respeito s tenses, privilegiamos trs que se interpe-netram e que consideramos fundamentais para as questes educativas:globalizao versus multiculturalismo, igualdade versus diferena euniversalismo versus relativismo cultural .

    Globalizao e multiculturalismo muitas vezes so apresentados

    como movimentos com lgicas contrapostas. A primeira reforando apadronizao e o segundo as particularidades culturais e as diferenas. Noentanto, estas relaes se revelam de grande complexidade, no podendoser vistas de modo simplificado e reducionista, assumindo diferentesconfiguraes. Partindo das contribuies de Stuart Hall (1997a; 1997b)e Boaventura de Sousa Santos (2001), procuramos penetrar nas teias queconfiguram tais relaes numa perspectiva dialtica e multidimensional.

    Articular igualdade e diferena constitui outra questo que permeia

    todo o nosso trabalho. No entanto, o problema no afirmar um plo enegar o outro, mas sim termos uma viso dialtica da relao entre igual-dade e diferena. Hoje em dia no se pode falar em igualdade sem incluiras questes relativas diferena, nem se pode abordar temas relativos spolticas de identidade dissociadas da afirmao da igualdade.

    Uma frase de Sousa Santos (2001) sintetiza de maneira especialmenteoportuna esta tenso: As pessoas e os grupos sociais tm o direito a seriguais quando a diferena os inferioriza, e o direito a ser diferentes quandoa igualdade os descaracteriza. E acrescenta: Este , consabidamente, um

    imperativo muito difcil de se atingir e manter (p. 10).No se deve contrapor igualdade diferena. De fato, a igualdade

    no est oposta diferena, e sim desigualdade, e diferena no se ope igualdade e sim padronizao, produo em srie, uniformidade,a sempre o mesmo, mesmice.

    O que estamos querendo trabalhar , ao mesmo tempo, negar apadronizao e tambm lutar contra todas as formas de desigualdade ediscriminao presentes na nossa sociedade. Nem padronizao nem

    desigualdade. A igualdade que queremos construir assume o reconhe-

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    cimento dos direitos bsicos de todos. No entanto, esses todos no sopadronizados, no so os mesmos. Tm que ter as suas diferenasreconhecidas como elementos presentes na construo da igualdade.

    Considero que, nos prximos anos, essa temtica vai suscitar uma

    grande discusso, um debate difcil, que desperta muitas paixes, masque fundamental para se avanar na afirmao da democracia. Hoje emdia no se pode mais pensar numa igualdade que no incorpore o temado reconhecimento das diferenas, o que supe lutar contra todas asformas de desigualdade, preconceito e discriminao.

    A terceira tenso, universalismo versus relativismo cultural, especialmente relevante para a ao educativa e, particularmente, paraas questes curriculares. A escola como instituio est construda tendopor base a afirmao de conhecimentos e valores considerados universais,

    uma universalidade muitas vezes formal que, se aprofundarmos um pouco,termina por estar assentada na cultura ocidental e europia, consideradascomo portadoras da universalidade. A questo colocada hoje supeperguntarmo-nos e discutirmos que universalidade essa, mas, ao mesmotempo, no cairmos num relativismo absoluto, reduzindo a questo dosconhecimentos e valores veiculados pela escola a um determinado universocultural, o que nos levaria inclusive a negar a prpria possibilidade deconstruirmos algo juntos, negociado entre os diferentes, e guetificao.A questo do conhecimento e dos valores transculturais, preferimos estaexpresso, faz com que nos situemos de uma maneira crtica em relaoaos conhecimentos e valores universais tal como estamos acostumados aconsider-los, assim como em relao ao relativismo cultural radical.

    No estaremos chamados a relativizar o universalismo, afirmando seu carterhistrico e dinmico, e, ao mesmo tempo, a relativizar o relativismo, afirmandoseu carter no absoluto, atentos aos meta-valores, aos contedos transculturais,historicamente construdos? (Candau, 2000, p. 83)

    Este tema comea a ser objeto de uma ampla discusso entre oseducadores e pesquisadores das reas de currculo e didtica, assim comode filosofia e sociologia da educao.

    Multiculturalismo ou Multiculturalismos?

    O tema do multiculturalismo especialmente polmico nomomento atual. Defensores e crticos confrontam suas posies apaixona-damente. Uma das caractersticas fundamentais deste possvel campo de

    estudos constitudo pelas questes multiculturais exatamente o fato de

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    estar atravessado pelo acadmico e o social, a produo de conhecimentose a militncia. Convm ter sempre presente que o multiculturalismono nasceu nas universidades e no mbito acadmico em geral. So aslutas dos grupos sociais discriminados e excludos de uma cidadania

    plena, os movimentos sociais, especialmente os referidos s questesidentitrias, que constituem o locus de produo do multiculturalismo.Sua penetrao na academia deu-se num segundo momento e, at hoje,me atreveria a afirmar, sua integrao no mundo universitrio frgil eobjeto de muitas discusses, talvez exatamente por seu carterprofundamente marcado pela intrnseca relao com a dinmica dosmovimentos sociais. No possvel trabalhar questes relativas aomulticulturalismo sem um dilogo intenso com os grupos sociais, relaoesta que passa por algum tipo de presena nos diferentes fruns da

    sociedade em que os conflitos e embates multiculturais se do. Nestesentido, o multiculturalismo no pode ser reduzido a uma temtica deproduo acadmica. Ao mesmo tempo em que penetra na lgica daacademia, submete-a permanentemente a vrios questionamentos a partirdo olhar e do compromisso da militncia.

    Outra dificuldade para se penetrar na problemtica do multicultu-ralismo est referida polissemia do termo. Inmeras e diversificadasso as concepes e vertentes multiculturais. Muitos autores, tanto deperspectiva liberal quanto de inspirao marxista, que levantam fortes

    questionamentos tericos e ao seu papel na sociedade, no levam devida-mente este fato em considerao ou, quando o fazem, referem-se a aspectosmais superficiais, sem distinguirem com maior profundidade as diferentesposies, ou fazem grandes generalizaes.

    No que diz respeito s diferentes concepes e propostas domulticulturalismo, esta corrente de pensamento tem sido reconhecida ediscutida por defensores e crticos, como uma estratgia de lidar com asdiferenas, seja no mbito poltico-social, cultural ou educativo.

    Nos Estados Unidos, Peter McLaren e James Banks so doisimportantes autores que abordam a questo do multiculturalismo apartir da realidade americana. O ambiente escolar nesse pas tem setornado palco de diversas tragdias ligadas muitas vezes s questestnicas. Nesse contexto, o debate sobre a educao multicultural torna-se especialmente intenso, sendo protagonizado tanto por grupos maisconservadores, que o apontam como uma nova forma de racismo, quantopor aqueles que o concebem como um princpio orientador da educaopara a democracia em um mundo marcado pela globalizao e pelo

    pluralismo cultural.

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    Ancorado na Pedagogia Crtica, McLaren nos ltimos anos vemtrabalhando tambm questes hoje colocadas pela chamada perspectivaps-moderna. Em relao ao multiculturalismo como projeto poltico,enumera quatro grandes tendncias: multiculturalismo conservador,

    multiculturalismo humanista liberal, multiculturalismo liberal de esquerdae multiculturalismo crtico. Embora proponha essas quatro tendncias,reconhece que as caractersticas de cada posio tendem a se misturar umascom as outras dentro do horizonte geral da vida social. Parte da afirmaode que a descrio que faz dos diversos tipos de multiculturalismo temexclusivamente um papel heurstico, j que as diferentes posies seinterpenetram nas prticas sociais.

    Comea por identificar um multiculturalismo que chama deconservador ou empresarial, que pode assumir diferentes formas: as vises

    coloniais de europeus e norte-americanos em relao aos povos colonizadosencarados como escravos, serviais etc., as teorias evolucionistas quejustificaram polticas imperialistas, assim como pode tambm ser encaradocomo resultado direto das polticas de supremacia branca. Esta posiodefende o projeto de construir uma cultura comum e, em nome dele,deslegitima dialetos, saberes, lnguas, crenas, valores diferentes,pertencentes aos grupos subordinados, considerados inferiores. Queremassimilar a todos ordem social dominante. Um pr-requisito parajuntar-se turma desnudar-se, desracializar-se, e despir-se de sua

    prpria cultura (p. 115). Para McLaren esta no uma posio superada.Pelo contrrio, apresenta muitas manifestaes e vigornasociedade norte-americana atualmente. Para qualquer observador atento fcil identificarfenmenos que atestam sua forte presena hoje na escala planetria.

    Uma segunda posio a que denomina de multiculturalismohumanista liberal. Parte da afirmao da igualdade intelectual entrediferentes etnias e grupos sociais, o que permite a todos competir nasociedade capitalista. Para que esta competio se possa dar, necessrio

    remover os obstculos por meio de reformas orientadas a melhorar ascondies econmicas e socioculturais das populaes dominadas. Paratal, podem ser criados programas especficos, dentro do modelo socialvigente. Essa posio, segundo o autor, reveste-se freqentemente deum humanismo etnocntrico e universalista que privilegia na realidadeos referentes dos grupos dominantes.

    Quanto ao multiculturalismo liberal de esquerda, coloca a nfasena diferena cultural e afirma que privilegiar a igualdade entre as raas/etnias pode abafar diferenas culturais importantes entre elas, assim como

    as diferenas de gnero, classe social e sexualidade. No entanto, segundo

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    McLaren, esta posio pode tender a essencializar as diferenas e no terpresente que estas so construes histricas e culturais, permeadas porrelaes de poder. Favorece muitas vezes tambm um certo elitismopopulista que valoriza as experincias dos grupos populares e tnicos e

    praticamente no leva em considerao a cultura dominante.A ltima posio assinalada pelo autor, tendncia na qual se situa, a que ele mesmo denomina de multiculturalismo crtico (1997) e,mais recentemente, multiculturalismo revolucionrio (2000).

    Esta perspectiva parte da afirmao de que o multiculturalismotem de ser contextualizado a partir de uma agenda poltica de transfor-mao, sem a qual corre o risco de se reduzir a outra forma de acomodao ordem social vigente. Entende as representaes de raa, gnero e classecomo produtos de lutas sociais sobre signos e significaes. Privilegia a

    transformao das relaes sociais, culturais e institucionais nas quais ossignificados so gerados. Recusa-se a ver a cultura como no-conflitiva,argumenta que a diversidade deve ser afirmada dentro de uma polticade crtica e compromisso com a justia social (p. 123). Entende oeducador como agente revolucionrio, ressaltando que se reconhecer dessaforma

    mais do que um ato de compreender quem somos; um ato de reivindicao dens mesmos a partir de nossas identificaes culturais sobrepostas e de nossas

    prticas sociais, de forma que possamos vincul-las materialidade da vida sociale s relaes de poder que as estruturam e as sustentam. (McLaren, 2000, p. 2)

    Este enfoque se recusa a entender a cultura como no-conflitiva,harmoniosa ou consensual. Para ele, as questes relativas diferena sodeterminadas pelos processos histricos, pelas mentalidades e ideologias,pelas relaes de poder e mobilizam processos polticos e sociais.

    Outro autor do cenrio norte-americano, profundamente envol-vido com a questo das relaes entre multiculturalismo e educao e

    que assume uma perspectiva de carter liberal, James A. Banks (1999).Esse autor parte sua anlise da problemtica do fracasso escolar dosalunos oriundos das camadas populares e, particularmente, de grupostnicos como os afro-descententes. Privilegia na sua anlise doisparadigmas utilizados para enfrentar essa problemtica. O primeiro,da privao cultural, parte do pressuposto de que o fracasso dessesalunos est motivado pela cultura em que foram socializados, que nolhes favoreceu experincias fundamentais para o bom desempenhoescolar. Os defensores desta perspectiva consideram o contexto social e

    a cultura de origem dos alunos como o maior problema e no a cultura

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    da escola. Neste sentido, privilegiam estratgias educacionais decompensao das deficincias culturais dos alunos. Pode-se dizer queesse paradigma reconhece a diversidade cultural mas hierarquiza asdiferentes culturas, considerando a relao entre elas de superior a

    inferior. Desvaloriza determinadas culturas e suas especificidades e reduzo papel da educao a uma funo de compensao cultural que terminapor negar a diferena.

    Quanto ao segundo paradigma, que Banks intitula da diferenacultural, parte da afirmao de que as diferentes culturas possuemlinguagens, valores, smbolos e estilos de comportamentos diferentes, quetm de ser compreendidos na sua originalidade. As relaes entre as culturasno podem ser analisadas numa perspectiva hierarquizadora. Neste sentido,os seus defensores, entre os quais se situa, opem-se ao primeiro paradigma

    e deslocam o centro da questo. O que precisa ser mudado no a culturado aluno, mas a cultura da escola, que construda com base em umnico modelo cultural, o hegemnico, apresentando um cartermonocultural.

    Na viso de Banks, a educao multicultural um movimentoreformador destinado a realizar grandes mudanas no sistema educacional.Concebe como a principal finalidade da educao multicultural favorecerque todos os estudantes desenvolvam habilidades, atitudes e connhecimentosnecessrios para atuar no contexto da sua prpria cultura tnica, no da culturadominante, assim como para interagir com outras culturas e situar-se emcontextos diferentes dos de sua origem (Banks, 1999, p. 2).

    Banks (1994) afirma que existem diversas formas de abordar aquesto das relaes entre educao e cultura(s) no contexto escolar.Assim, identifica dez modelos que permeiam os programas e as prticasescolares sob o mesmo rtulo de educao multicultural: tnico-aditivo,de desenvolvimento do autoconceito, da privao cultural, centrado nalinguagem, anti-racista, radical, baseado na meritocracia, assimilacionista,

    do pluralismo cultural e da diferena cultural.Prope um modelo prprio de educao multicultural para serum referente no dia-a-dia das salas de aula, baseado em cinco dimensesinterligadas, que assim so explicitadas (Banks, 1999):

    - Integrao de contedo: lida com as formas pelas quais osprofessores usam exemplos e contedos provenientes deculturas e grupos variados para ilustrar os conceitos-chave,os princpios, as generalizaes e teorias nas suas disciplinas

    ou reas de atuao;

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    - processo de construo do conhecimento: prope formas por meiodas quais os professores ajudam os alunos a entender, inves-tigar e determinar como os pressupostos culturais implcitos,os quadros de referncia, as perspectivas e os vieses dentro de

    uma disciplina influenciam as formas pelas quais o conheci-mento construdo;

    - pedagogia da eqidade: existe quando os professores modificamsua forma de ensinar de maneira a facilitar o aproveitamentoacadmico dos alunos de diversos grupos sociais e culturais,o que inclui a utilizao de uma variedade de estilos de ensino,coerentes com a diversidade de estilos de aprendizagem dosvrios grupos tnicos e culturais;

    - reduo do preconceito: esta dimenso focaliza atitudes dosalunos em relao raa e como elas podem ser modificadaspor intermdio de mtodos de ensino e determinados mate-riais e recursos didticos;

    - uma cultura escolar e estrutura social que reforcem o empoderamentode diferentes grupos: promove um processo de reestruturaoda cultura e organizao da escola, para que os alunos dediversos grupos tnicos, raciais e sociais possam experimentara eqidade educacional e o reforo de seu poder na escola.

    Para Banks & Banks (1997), a educao multicultural deve serentendida como um conceito complexo e multidimensional. Afirmamque se costuma focalizar apenas uma de suas dimenses, reduzindo-a.Na escola esta viso reducionista se evidencia pelo entendimento domulticulturalismo como apenas a incluso de contribuies de diferentesgrupos tnicos no currculo, ou a reduo do preconceito ou a celebraode festas relacionadas s diferentes culturas. Na viso de educaomulticultural proposta por Banks, a nfase no no ou, mas sim no e.

    Assim, cada atividade que pretenda trabalhar a perspectiva multicultural importante na medida em que esteja integrada numa proposta ampla,ou seja, que no se constitua em uma iniciativa isolada.

    Outro aspecto que esse autor trabalha se relaciona s estratgiasutilizadas para se transformar o currculo na perspectiva da introduoda sensibilidade diversidade cultural. Distingue quatro abordagensque podem indicar diferentes nveis de mudana curricular. O nvel maiselementar o que enfatiza, sem afetar o currculo formal, as contribuiesdas diferentes culturas por meio da introduo no cotidiano escolar de

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    comemoraes, eventos e realizao de acontecimentos especficos relativoss diversas culturas. A abordagem aditiva procura penetrar o currculoformal acrescentando determinados contedos em diferentes disciplinassem afetar a sua estrutura bsica. O enfoque transformador, em contraste

    com o aditivo, reestrutura o currculo em sua prpria lgica de base, demodo a permitir que os estudantes trabalhem conceitos, temas, fatosetc., provenientes de diferentes tradies culturais e, o quarto enfoque,da ao social, estende a transformao curricular possibilidade dedesenvolver projetos e atividades que suponham envolvimento direto ecompromisso com diferentes grupos culturais, favorecendo a relaoteoria/prtica no que diz respeito diversidade cultural.

    Uma das questes que consideramos fundamental a colocadapor Garcia Castao, Pulido e Montes del Castillo (1998), antroplogos

    que trabalham nos Laboratorios de Estudios Interculturales das universi-dades de Granada, Almeria e Murcia (Espanha), respectivamente, osquais sustentam que, tendo presente que por detrs de cada modelo deeducao multicultural existe um conceito de cultura, o problema estem que, na maior parte das vezes, esse conceito no est explcito. Noentanto, devemos desvel-lo para entender o sentido profundo daproposta pois, em geral, a concepo de cultura predominante naspropostas de educao multicultural aproxima-se de uma perspectivaesttica e essencialista, em que a cultura vista como um conjunto mais

    ou menos definido de caractersticas estveis atribudas a diferentes grupose s pessoas que se considera a eles pertencerem. Esta uma realidademuito presente no imaginrio dos educadores e da sociedade em geral,que tendem a classificar as pessoas segundo atributos consideradosespecficos de determinados grupos sociais. Questionar esta perspectiva um grande desafio.

    No nosso trabalho de pesquisa, tendo presente as diferentesposies existentes no campo da educao multicultural, privilegiamos

    a abordagem da educao intercultural, que parte de um conceitodinmico e histrico da(s) cultura(s), como processo em contnuaconstruo, desconstruo e reconstruo, no jogo das relaes sociaispresentes nas sociedades. Neste sentido, a cultura no , est sendo acada momento. O interculturalismo, ainda pouco trabalhado pela litera-tura brasileira, supe a deliberada inter-relao entre diferentes gruposculturais. Neste sentido, situa-se em confronto com todas as visesdiferencialistas que favorecem processos radicais de afirmao deidentidades culturais especficas. Rompe com uma viso essencialista

    das culturas e das identidades culturais. Parte da afirmao de que nas

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    sociedades em que vivemos os processos de hibridizao cultural sointensos e mobilizadores da construo de identidades abertas, emconstruo permanente. consciente dos mecanismos de poder quepermeiam as relaes culturais. No desvincula as questes da diferena

    e da desigualdade presentes na nossa realidade e no plano internacional.A abordagem intercultural que assumimos se aproxima do multicul-turalismo crtico de McLaren (1997; 2000).

    Pela importncia, no nosso trabalho, do conceito de hibridizaocultural, gostaramos de explicitar os principais autores que nos servemde referncia. So eles Stuart Hall (1997a; 1997b) e Garcia Canclini(1991; 1995; 1997; 1999), especialistas que vm abordando estatemtica desde diferentes perspectivas. Garcia Canclini particularmenteenfatizado por aprofundar a reflexo sobre esses processos na perspectiva

    da problemtica latino-americana. Para este autor,Estabelecer relaes entre as estratgias globalizadoras e de hibridizao e asexperincias variadas de interculturalidade torna visvel que, por mais que seforme um mercado mundial de finanas, de alguns bens e alguns circuitosmediticos, por mais que avance o ingls como lngua universal, subsistem asdiferenas e a tradutibilidade entre as culturas limitada. No impossvel.Superando as narrativas fceis da homogeneizao absoluta e da resistncia dolocal, a globalizao nos confronta com a possibilidade de apreender fragmen-tos, nunca a totalidade, de outras culturas e reelaborar o que vnhamos imagi-

    nando como prprio em interaes e acordos com outros, nunca com todos.Deste modo a oposio j no entre o global e o local, entendendo globalcomo subordinao geral a um nico esteretipo cultural, ou local simplesmen-te como diferena. A diferena no se manifesta como compartimentalizao deculturas separadas e sim como interlocuo com aqueles com que estamos emconflito ou buscamos alianas. (Garcia Canclini, 1999, p. 123)

    O caminho percorrido

    No perodo de 1996 at o presente momento desenvolvemos trsprojetos integrados de pesquisa, com a participao de alunos degraduao e ps-graduao, assim como produzimos vrios artigos,captulos de livros e orientamos dissertaes de mestrado e teses dedoutorado que abordam diferentes dimenses das relaes entre multicul-turalismo e educao.

    No que diz respeito aos projetos integrados de pesquisa, o primeiro,intitulado Cotidiano escolar e cultura(s): Desvelando o dia-a-dia....,desenvolvido de maro de 1996 a fevereiro de 1998, teve como objetivo

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    geral compreender como se do no cotidiano escolar as relaes entre educaoe cultura(s), como se expressam as diferentes dimenses desta problemticano dia-a-dia das escolas. O estudo realizado caracterizou-se por seu carterexploratrio, procurando enfatizar uma viso ampla e geral da temtica.

    O trabalho de campo foi realizado em duas escolas de ensino mdio,situadas na mesma rea geogrfica do Rio de Janeiro, a zona sul da cidade.Dada a natureza das questes que nortearam o trabalho, consideramosmais adequado delimitar o campo da investigao ao ensino mdio. Outrarazo que justificou esta opo a pouca ateno que as escolas dessenvel de ensino tm tido nas pesquisas sobre cotidiano escolar.

    A escolha por se trabalhar com duas escolas obedeceu ao desejo deinvestigar as relaes entre escola e cultura(s) em contextos escolares quelidam com diferentes tipos de clientela. A hiptese de trabalho que orien-

    tou a seleo das escolas foi assim formulada:

    a escola lida sempre com dificuldade com a diferena e o pluralismo scio-cultural. Existe sempre uma ruptura entre a cultura escolar/cultura da escola eo universo cultural da sua clientela. No entanto, esta tenso e/ou conflito semanifesta de diferentes maneiras, tem rostos distintos, na escola pblica e naescola particular.

    Para verificar esta suposio, o trabalho de campo foi realizado emduas escolas que, situadas no mesmo contexto geogrfico, dirigiam-se apopulaes provenientes de universos sociais e culturais nitidamentediferenciados e mesmo, particularmente no atual contexto da cidade doRio de Janeiro, uma cidade partida, na expresso de Zuenir Ventura,em situao diria de confronto.

    As duas escolas escolhidas, Colgio Guarani e Escola Iracema,1 aprimeira uma escola pblica estadual de ensino mdio e a segunda umaescola particular que desenvolve sua ao educativa do pr-escolar aoensino mdio, so conhecidas na sociedade carioca como escolas dife-

    rentes, em funo principalmente do seu passado de carter alternativoe da sua preocupao com a qualidade do ensino e a relao com a atuali-dade.

    No estudo realizado, penetramos no cotidiano de cada uma dasescolas de modo progressivo, intensivo e abrangente; na sala de aula, nasatividades extra-classe, sempre atentos s diversas dimenses da prticapedaggica. O olhar de inspirao antropolgica foi privilegiado.

    Nas duas escolas foram observados(as) professores(as) de disciplinasdas reas curriculares de Cincias Sociais e Cincias Naturais, alm da

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    disciplina de Lngua Portuguesa, considerada indispensvel dada anatureza do estudo.

    O estudo focalizou turmas de primeiro e segundo ano do ensinomdio, j que o terceiro ano apresenta uma problemtica muito especfica,

    quer seja pela proximidade do vestibular e/ou do trmino da escolarizaoe de seus possveis desdobramentos em relao ao mercado de trabalho.

    Quanto s atividades extra-classe, procuramos participar docotidiano da escola em suas diferentes atividades, desde o corredor e orecreio, at as diferentes comemoraes e festas, assim como de conselhosde classe, reunies de professores(as), de reflexo pedaggica, de plane-jamento etc. Foi dada particular ateno s atividades de iniciativa dosalunos e alunas ou nas quais sua participao era especialmentesignificativa.

    As principais tcnicas util izadas na pesquisa foram: anlisedocumental, observao e entrevista. A anlise documental incluiu aconsulta de documentos oficiais registros, atas de reunio, planificaes,grades curriculares, dirios de classe, planos de aula, livros-texto e outrosmateriais didticos, boletins, dados estatsticos da escola, cartas oficiais,circulares etc. , assim como de documentos pessoais exerccios dosalunos, dirios, grafites, desenhos, notas pessoais etc.

    No Colgio Guarani, o nmero total de horas de observao foi

    de, aproximadamente, 215 e, na Escola Iracema, de 220 horas. Quantos entrevistas, foram realizadas com a direo, coordenadores(as),professores(as) e alunos(as) das respectivas escolas. No Colgio Guaraniforam entrevistados 24 profissionais da educao e 25 alunos(as) e naEscola Iracema, 15 profissionais da educao e 25 alunos(as). As entre-vistas foram de carter semi-estruturado e estavam orientadas a captar osmodos de pensar, sentir, situar-se, apreciar etc., dos diferentes agenteseducativos em relao s questes-eixo que orientavam a pesquisa. Osroteiros que serviram de base para essas entrevistas passaram por umlongo processo de discusso e construo coletiva por parte de toda aequipe. Alm das entrevistas individuais, no caso dos(as) alunos(as),optamos por tambm realizar o que chamamos Encontros de Opinio,uma modalidade de entrevista coletiva com uma dinmica proposta paracada encontro, de modo que se favoreceu o dilogo entre os(as) jovenssobre alguns temas de particular relevncia para a pesquisa. Em cadauma das escolas foram realizados quatro encontros sobre os seguintestemas: E os jovens hoje?, Iguais ou diferentes?, A escola: Realidadee sonho e Violncia hoje.

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    A realizao da pesquisa permitiu levantar algumas questes edetectar desafios importantes para a construo de prticas educativasrelevantes, capazes de dialogar com as transformaes socioculturaispresentes na nossa sociedade. Destacaremos alguns aspectos.

    Uma questo bsica, que perpassou todo o trabalho realizado,est referida ao prprio sentido da escolarizao na sociedade atual e,mais concretamente, ao papel do ensino mdio. Tendo-se presente aafirmao de Perez Gomez (1993) de que a escola deveria ser concebidacomo um espao de cruzamento de culturas e exercer uma funo demediao reflexiva daquelas influncias plurais que as diferentes culturasexercem de forma permanente sobre as novas geraes(p. 80), o universoescolar pesquisado revelou-se bastante longe desta possibilidade. Emlinhas gerais, apresentou-se bastante uniforme e auto-referido, distante

    de ser um espao dinmico e plural, que favorece o dilogo entre dife-rentes culturas.No caso das escolas pesquisadas, alm da sua uniformidade, apesar

    da diferenciao da clientela das escolas, ficou evidente a falta de clarezasobre o sentido do ensino mdio hoje e suas funes. Cruzaram-sediferentes expectativas e movimentos. Para uns, o fundamental apreparao para o vestibular. Para outros, este ensino est orientadounicamente para uma terminalidade formal, para a certificao. Tambmfoi expresso o desejo de uma melhor preparao para o mercado de

    trabalho, alm de, na perspectiva dos alunos, ser concebido como umespao de socializao e lazer. De fato, educadores e alunos no pareciamter clareza sobre a identidade da escola de ensino mdio hoje na nossasociedade, quais deveriam ser suas preocupaes fundamentais e quenovas funes deveriam ser incorporadas.

    Junto com esta questo e em ntima relao com ela, podetambm ser colocada a questo da importncia e, ao mesmo tempo, dadificuldade de se construir um projeto pedaggico para as escolas de

    ensino mdio. As experincias analisadas tornaram muito evidente queeste aspecto deve ser muito mais valorizado no mbito escolar. O projetopedaggico confere identidade, impregna a cultura escolar e a culturada escola, favorece a coeso e um sentido de pertena que do consis-tncia ao processo educativo. Ambas as escolas experimentaram estarealidade nas suas origens, mas a proposta foi se diluindo com o passardos anos. No entanto, ainda hoje, por afirmao de alguns de seuselementos ou pela conscincia de sua ausncia, constatou-se o podermobilizador de sonhos, anlises crticas e perspectivas de futuro do

    projeto pedaggico.

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    A pesquisa realizada permitiu-nos, ainda que com carter explo-ratrio, penetrar nos meandros e na complexidade dos processos queconstituem a cultura escolar (Forquin, 1993). Consideramos a sala deaula como o espao privilegiado de expresso da cultura escolar. Neste

    sentido, constatamos que esta manifestava com fora uma dinmica denormatizao e rotinizao que lhe dava uma acentuada rigidez e poucapermeabilidade a aspectos relacionados cultura social de referncia,assim como a interesses mais conjunturais e contextualizados que emer-giam no seu dia-a-dia. Esta realidade nos fez refletir sobre a natureza dacultura escolar e sua relao com o contexto sociocultural em que sesitua. Tomar distncia da(s) cultura(s) social(ais) de referncia ser umaexigncia para que a escola possa se concentrar na socializao dosconhecimentos considerados universais e gerais, inerentes ao saber escolar?

    Como articular estes dois movimentos, de garantir o conhecimento escolare no desconhecer ou negar os saberes sociais de referncia? A tendnciaevidenciada, no nvel da sala de aula, privilegiava a distncia, a rupturae, em alguns casos, a negao explcita dos saberes sociais.

    Por outro lado, no caso das escolas de ensino mdio pesquisadas, possvel afirmar que a seleo dos contedos por elas veiculados nas salasde aula estava centrada nos contedos definidos para os exames vesti-bulares e nos livros didticos adotados, principalmente na escolaparticular. No caso da escola pblica, a seleo estava centrada basicamente

    nas apostilas indicadas e/ou nos livros didticos adotados, sem que areferncia ao vestibular fosse forte, em geral por no se acreditar naspossibilidades de os alunos terem xito neste exame. Apesar da afirmao,em ambos os casos, cada vez com maior fora, da autonomia das escolase dos professores, a seleo dos contedos veiculados no cotidiano dassalas de aula estava muito mais determinada por critrios externos dinmica pedaggica escolar.

    Outro aspecto importante de ser destacado se relaciona difi-

    culdade de se articular construo do conhecimento e prazer nessenvel de ensino. A aquisio/construo do conhecimento estava emgeral associada a um esforo rido e pouco prazeroso, para o qual aavaliao constitua o estmulo fundamental. Neste sentido, os processosavaliativos ocupavam um lugar privilegiado, enfatizavam-se seus aspectosdisciplinadores e de controle, todo esforo sendo mais orientado apassar e a tirar nota do que a aprender. Em consonncia com estarealidade, dar aula e cobrar o contedo da aula constituam asprincipais preocupaes da grande maioria dos professores. Estamos

    longe de se conceber a aula como um frum aberto e democrtico de

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    dilogo, contraste de abordagens, assim como de se recrear as diferentesperspectivas culturais presentes na nossa sociedade (Perez Gomez,1993, p. 85).

    No entanto, necessrio afirmar que as situaes vivenciadas no

    foram uniformes, admitindo uma gama que ia da nfase numa viso daprtica pedaggica centrada na avaliao, em que o conhecimento sesituava de modo funcional em relao a esta, at prticas com maiorapelo criatividade e construo do conhecimento, em que os processosavaliativos se situavam de modo subordinado e eram abordados de modomais amplo. No entanto, possvel afirmar que a avaliao um nespecialmente crtico da ao educativa e que, em geral, este era umtema que provocava tenso e desconforto, inibidor de toda tentativa dearticulao do conhecimento escolar com outros saberes.

    Outro aspecto a destacar em relao cultura da sala de aula dizrespeito centralidade que nela ocupa a linguagem escrita e oral e suadificuldade de incorporar, a partir de sua finalidade especfica, a plura-lidade de novas linguagens hoje presentes na sociedade e com as quais osjovens tm grande familiaridade. Entre as mediaes culturais e tecno-lgicas utilizadas pela escola e aquelas presentes hoje na sociedade eutilizadas pelos diferentes grupos sociais e culturais, existe uma distnciabastante acentuada. Certamente um dos desafios em busca de umaescolarizao mais em sintonia com os desafios da sociedade atual repensar a cultura da sala de aula e romper com o congelamento quesofreu atravs do tempo, tanto nos seus aspectos de configurao espao-temporal, quanto no modo de se conceber e desenvolver o processo deensino-aprendizagem e as mediaes utilizadas, assim como na concepodo(s) saber(es) a ser(em) privilegiado(s) e articulado(s).

    Se o espao privilegiado da cultura escolar a sala de aula, possvelter como referncia fundamental para a cultura da escola as atividadesextra-classe. Estamos conscientes da interpenetrao destas duas dimenses

    a cultura da escola est presente na cultura escolar e vice-versa mas,para efeitos da pesquisa de campo, privilegiamos espaos especficos paraobservar e analisar uma e outra. Se se pode falar da cultura da escola comofalamos da cultura da empresa, dos shoppings centers etc., como um mundosocial que tem ritmos, ritos, smbolos, linguagens e caractersticas prprias(Forquin, 1993, p. 167), certamente ela penetra todos os espaos e temposescolares. No entanto, partimos da hiptese de que se expressa de modoprivilegiado nos espaos menos controlados e rotinizados que a sala deaula. neste sentido que privilegiamos a referncia s atividades extra-

    classe para tentar penetrar na cultura da escola.

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    Foi possvel constatar que estas constituam realidades plurais,diversificadas, nas quais os alunos tomavam mais iniciativa e se expressavammais livremente e nas quais se estabeleciam pontes mais espontneas edinmicas com a atualidade, os universos sociais de referncia e as culturas

    dos jovens, mesmo admitindo-se diferentes nveis de tenso entre estasrelaes. Nessas atividades estavam presentes temas como eleies,olimpadas e Rio-2004, msica popular brasileira, obras teatrais, areforma agrria e o MST, acontecimentos internacionais, a morte dondio Galdino etc.

    Constatamos um contraste especialmente agudo entre a sala de aulae esses espaos e, em geral, os temas presentes nas atividades extra-classeno eram nem reconhecidos, nem valorizados, nem trabalhados na sala deaula. Poucas foram as excees observadas. Dialetizar a relao sala de aula/

    atividades extra-classe parece-nos um caminho particularmente promissorpara se estimular a articulao cultura escolar/cultura da escola numaperspectiva de se repensar o papel da escola na nossa sociedade.

    O mergulho que realizamos no cotidiano das escolas que participaramdessa pesquisa nos levou a relativizar e problematizar a hiptese que orientoua pesquisa. De fato, na mesma escola, diferentes professores apresentavammodos diversificados de trabalhar a relao escola/cultura(s), indo de umextremo de acentuada ruptura a outro de intensa busca de articulao. Noentanto, esta constatao compatvel com a afirmao de que h espaos as salas de aula que esto centrados no conhecimento acadmico e, emgeral, apresentam maior distncia em relao (s) cultura(s) social(ais) dereferncia, e outros as atividades extra-classe, em que as interrelaescom a(s) cultura(s) social(ais) de referncia e, particularmente, as culturasjuvenis esto especialmente presentes. Esta tenso permeia em maior oumenor grau o cotidiano das escolas estudadas e, talvez, se possa afirmarque constitutiva da dinmica escolar.

    Certamente o trabalho realizado abriu muitas perspectivas, tanto

    no nvel da continuidade da linha de pesquisa, quanto no da busca demodos concretos de se trabalhar a prtica pedaggica no sentido de quea sensibilidade pela valorizao das relaes entre educao e cultura(s)cresa entre ns e contribua para se recriar os processos de escolarizao,no sentido de sua maior relevncia acadmica, poltico-social e cultural.

    O segundo projeto integrado de pesquisa, intitulado Educaointercultural e cotidiano escolar: Construindo caminhos, foi realizadode maro de 1998 a fevereiro de 2000. Situou-se em continuidade pesquisa anterior e teve por objetivo geral realizar um balano crtico

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    dos principais enfoques presentes na produo terica sobre multi-culturalismo e educao, situando a reflexo brasileira neste contexto, eidentificar e estudar experincias educativas, no mbito da educaoformal, que tivessem claramente a questo multicultural como referncia.

    A natureza das questes propostas e sua abrangncia exigiram umtratamento metodolgico que articulasse um estudo, na perspectivados levantamentos bibliogrficos, orientados a um balano crtico daproduo cientfica pertinente, com a realizao de uma pesquisa decampo de natureza etnogrfica.

    O levantamento bibliogrfico da literatura sobre o tema focalizoua produo da rea a partir dos anos 80 e no teve a pretenso de serexaustivo, tarefa hoje impossvel de ser realizada.2

    Quanto pesquisa de campo, realizou-se um estudo de caso

    centrado no movimento Pr-Vestibular para Negros e Carentes(PVNC), que teve suas origens na Bahia e vem realizando atividades noRio de Janeiro desde 1992, sendo este atualmente o local onde temmaior desenvolvimento, chegando a aproximadamente 70 ncleos. Essemovimento se prope explicitamente a ser um instrumento de conscien-tizao, articulao e apoio juventude negra e alavancar o processo decombate ao racismo e discriminao do acesso da populao pobre universidade.

    Analisando o contexto histrico-social de seu surgimento, possvelafirmar que a proposta do Pr-Vestibular para Negros e Carentes3

    (PVNC) no apenas nasce em meio a uma srie de tenses como tambmpretende ser uma forma de procurar dar resposta a elas.

    Entre as tenses com as quais convive possvel destacar umacomo radical: a presente entre, de um lado, a seletividade do acesso aoensino superior, um dos efeitos da realidade de excluso social, culturale educacional de grupos sociais desfavorecidos, prioritariamente dos negrose, de outro, a forte demanda desses grupos pela democratizao da

    educao, particularmente do ensino superior, e o reconhecimento peloPVNC da legitimidade desta luta.Neste contexto, por intermdio da criao de seus ncleos,

    promotores de pr-vestibulares comunitrios, o projeto tem promovidoa entrada em universidades pblicas e particulares de um nmerosignificativo de universitrios, em vrios estados do pas, oriundos dasclasses populares e, em geral, afro-descendentes.

    Em momento algum o conhecimento e a discusso da realidade

    anteriormente apontada so negados aos alunos e alunas dos Prs. Muito

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    pelo contrrio, os cursos no incentivam iluses sobre a possvel aprovaono vestibular de seus alunos e alunas, e tampouco a reduo dos precon-ceitos existentes em relao a eles, caso venham a passar nesse exame. Osestudantes so incentivados a enfrentar a realidade competitiva e precon-

    ceituosa, caracterstica do apartheiduniversitrio brasileiro, buscandoformas solidrias de encarar essa mesma realidade como fonte de motivaopara que continuem lutando contra todas as situaes adversas que pesamsobre sua condio de negro e carente.

    Esta postura, no entanto, convive com tenses no interior dadinmica do movimento e dos ncleos, uma vez que se faz necessrioconviver lado a lado tanto com o clima de competio tpico do processoseletivo, do qual o vestibular no uma exceo, quanto com o clima desolidariedade, no qual os(as) alunos(as) se apiam mutuamente e se

    sentem mais fortes por saberem que sua excluso no isolada, mas arealidade de milhes de negros e pessoas de baixa renda que sofreram econtinuam sofrendo todo tipo de injustia e preconceito em nossasociedade.

    Estas duas lgicas (a de adeso e a de resistncia) se confrontamna concepo do PVNC. A lgica de adeso tende a reforar o papelcentral atribudo aos exames vestibulares, concebendo as diferentesdimenses do projeto de forma subordinada finalidade mais imediatade ingresso no ensino superior. Nesta lgica, mais importante do quequestionar a atual concepo do vestibular, trata-se de adequar-se s suasexigncias. Dessa forma, por exemplo, professores(as) aceleram o contedodas matrias, ou privilegiam correes de questes de provas de vestibularespassados, deixando de lado frequentemente discusses de interesses maisamplos, ou, em outra perspectiva, a coordenao e os(as) alunos(as)enfatizavam e dedicavam muito tempo e energia a recorrer a vrios meiospara conseguir dinheiro ou isenes para garantir as inscries de todos(as)nos exames, entre outros exemplos.

    Quanto lgica de resistncia, tambm presente, ela tende aimprimir um movimento de distanciamento em relao ao vestibular,ou melhor, um movimento de conformidade crtica. Joga-se com as regrasdo jogo em vigor sem, no entanto, deixar de question-las. Nesta pers-pectiva, resiste-se lgica competitiva e individualista que caracteriza osexames vestibulares e introduz-se outros contedos que no esto diretanem necessariamente orientados a esses exames.

    No entanto, a presso da lgica de adeso ao ritmo de trabalho depreparao para o vestibular imposta aos docentes, colaboradores e alunos(as),

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    dificulta a realizao de atividades e a discusso de temticas que possam iralm do programa cobrado no vestibular, como sugere a carta de princpiosdo PVNC, ou seja, a criao de um espao pblico de elaborao de propostase discusso poltica sobre justia, democracia e educao, assim como a defesa

    de posturas contrrias a qualquer tipo de discriminao racial. A disciplinaCultura e Cidadania tenta minimizar essa tenso constituindo-se como umespao para se discutir questes gerais de cultura, poltica, sade, educaoetc. Contudo, seja pela maneira como ministrada em vrios ncleos, sob aforma de palestras realizadas por diferentes especialistas convidados, sejapela presso da discusso de temas mais ligados aos contedos solicitadospelo vestibular, ela tambm possui suas tenses prprias, e nem sempreconsegue trabalh-las de modo adequado e produtivo.

    A prpria justificativa da introduo da disciplina Cultura e

    Cidadania no currculo do PVNC traduz essa tenso: de um lado, algica de adeso tende a justificar a presena dessa disciplina comofacilitadora dos temas dos exames de redao presentes no vestibular; deoutro, a fora da argumentao da lgica de resistncia para a imple-mentao dessa disciplina consiste na importncia do papel desem-penhado pela natureza especfica dos contedos administrados por elano processo de conscientizao poltica e de construo da identidadescio-cultural dos(as) alunos(as) do PVNC.

    Esta tenso constitutiva do PVNC foi muito bem traduzida em

    um slogan de uma camiseta confeccionada por um dos ncleosobservados, que diz o seguinte: Chegar o dia em que o PVNC nomais existir, pois ele ter alcanado o seu objetivo maior: uma educaodigna e igualitria para todos.

    Na anlise da prtica pedaggica do PVNC, utilizamos comoreferncia fundamental o modelo proposto por Banks para a construode um currculo multicultural. Neste sentido, cinco critrios marcaramo nosso olhar durante a observao das aulas das diferentes disciplinas: o

    grau de integrao dos contedos, o processo de construo de conheci-mentos, a reduo do preconceito, a pedagogia da eqidade e oempoderamento dos diferentes grupos. O fato de o PVNC atender auma populao com caractersticas bem definidas, traduzidas no prprionome dado a esta experincia educativa, faz com que o grupo de alunos(as)possua um certo grau de homogeneidade, o que exigiu uma adequaodo modelo realidade observada. Assim, a aplicao de alguns critriosse tornou mais difcil do que a de outros, quando utilizados de formaisolada em cada disciplina, prestando-se muito mais para caracterizar

    esta experincia pedaggica como um todo.

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    No que diz respeito integrao do contedo, foi possvel observarque, apesar de os contedos especficos de algumas disciplinas ofereceremuma maior visibilidade sobre estas questes e uma maior possibilidadepara que essas disciplinas pudessem ser contempladas e devidamente

    exploradas Literatura, Portugus, Histria e Geografia , dois fatosparecem desempenhar um papel decisivo neste processo seletivo, se bemque em direes contrrias: a sensibilidade dos(as) professores(as) e dos(as)alunos(as) para estas questes e a expectativa do vestibular no final doano letivo. O primeiro tende a intensificar o grau de integrao e osegundo a limit-lo. Esta tenso, apesar de em graus diferenciados, estavapresente muitas vezes no seio de uma mesma disciplina, assim como deuma mesma aula.

    Importa sublinhar que, no caso da disciplina Cultura e Cidadania,

    a aplicao deste critrio no se coloca da mesma forma. A sua prpriaexistncia traduz uma modalidade de abordagem da questo da eletividadedos contedos escolares s avessas. Ao passo que a tendncia mais comumno mbito das disciplinas escolares tradicionais a de minimizar a dimensoseletiva dos contedos trabalhados, Cultura e Cidadania, ao oferecer umespao de discusso e reflexo sobre temas ou contedos que em geral noso contemplados nas disciplinas tradicionais, no apenas reconhece adimenso seletiva de todo conhecimento escolar, como tambm se posicionade forma explcita quanto aos critrios dessa seleo.

    Estes resultados confirmam a afirmao de Banks de que estadimenso da abordagem multicultural na sala de aula apresentadacomo tendo maior relevncia para professores(as) das reas de cinciassociais e linguagem do que para os da rea cientfica. No entanto, convmsalientar que os indicadores observados so frgeis, mas podem representarum ponto de partida importante para que essa dimenso possa serdesenvolvida e mais explicitamente trabalhada. Quanto s disciplinasda rea cientfica, segundo o mesmo autor, outras dimenses do seu

    modelo so mais pertinentes para serem por elas trabalhadas.Quanto segunda dimenso do modelo de Banks, o processo deconstruo do conhecimento, nas observaes realizadas, foi possvel perceberque no trabalho dos(as) professores(as), principalmente das reas sociaise relativas ao ensino de lngua e literatura, esta preocupao se fez presentede modo espordico e pouco trabalhado. No que diz respeito subjeti-vidade dos(as) alunos(as) e forma como esta intervm no processo deconstruo do conhecimento, a tendncia mais presente nas prticaspedaggicas foi a de consider-los mais como consumidores de informao

    do que sujeitos ativos na produo do seu prprio conhecimento.

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    Reduzir o preconceito outra das dimenses que caracterizam umaeducao multicultural, o que significa ter como um princpio bsico odesenvolvimento nos(as) educandos(as) de uma postura racial e tnicapositiva. Desenvolver um sentimento, uma atitude e um relacionamento

    positivo com outros grupos raciais e tnicos no uma realidade dada.Ela deve ser construda, estimulada. Para uma educao multicultural,os(as) educandos(as) devem ser estimulados nesta direo.

    Foi possvel constatar em nossas observaes que a inteno doPVNC prev uma formao crtica dos(as) jovens que passam pelos ncleosdo movimento, o que se efetiva ainda que de maneira frgil e nemsempre constante em algumas aulas, nas reunies dos ncleos e nasassemblias do movimento, nas discusses informais, nas aulas de Culturae Cidadania, nas brincadeiras, na vigilncia linguagem politicamente

    correta, na promoo da auto-estima racial etc. Os professores e profes-soras mais engajados na proposta do PVNC e, principalmente, as(os)coordenadoras(es) dos ncleos buscavam despertar os(as) alunos(as) parauma viso crtica sobre a situao do negro no Brasil.

    Os dados coletados permitem afirmar que, no que diz respeito dimenso de reduo do preconceito, este movimento incorpora demaneira muito clara em sua proposta e de maneira ainda incipiente nadinmica da sala de aula esta preocupao que, segundo Banks (1999), inerente s propostas de educao multicultural.

    Quanto pedagogia da eqidade, os diferenciados modos depromover um ensino cooperativo tm sido uma das estratgias maisutilizadas pelos professores que querem incorporar a abordagem multi-cultural para favorecer este processo. Nesta categoria, quando muitopuderam ser detectados alguns indicadores de que, eventualmente,determinados professores procuram utilizar estratgias de diversificaopara a facilitao da aprendizagem. No entanto, esta uma temticaainda pouco trabalhada entre ns, particularmente no que diz respeito

    diversidade cultural, mas que de especial importncia para a dinamizaode uma pedagogia da eqidade. A conscincia desta perspectiva pratica-mente no foi evidenciada nas observaes realizadas, aparecendo apenasde modo muito tnue alguns indicadores de diversificao no plano daaprendizagem dos contedos, sem uma relao explcita com dimensessocioculturais.

    Segundo Banks (1999), uma prtica escolar que promova oempoderamento de diferentes grupos deve estar atenta ao processo dereconstruo da cultura e da organizao escolar, de maneira tal que

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    os(as) estudantes de diferentes grupos tnicos, de gnero e classes sociaisfaam uma experincia de igualdade educacional e dos prprios processosde empoderamento. Esta uma dimenso da educao multiculturalque envolve uma concepo da escola como mobilizadora de mudana

    social a partir do prprio ambiente educacional. Sendo assim, parte-seda convico de que todos os estudantes podem lograr nveis adequadosde aprendizagem, independentemente de sua etnia, gnero ou classesocial. Lograr um clima educacional nesta perspectiva uma metaimportante para prticas educacionais que desejem criar uma culturaescolar e uma estrutura social que seja empoderadora dos estudantesde diferentes grupos, especialmente daqueles oriundos de setores sociaise culturais marginalizados.

    Partindo desta categorizao, podemos considerar que o PVNC tem

    esta como uma de suas preocupaes e a incorpora de maneira significativamas no com a mesma intensidade por parte de todos os professores. Adimenso do empoderamento manifesta-se de diferentes maneiras, sejadesenvolvendo de modo constante a auto-estima dos alunos e alunas,promovendo assim uma conscincia de que todos podem aprenderindependentemente de sua condio social, de gnero ou tnica, sejapropiciando entre os(as) alunos(as) e os(as) professores(as) uma prticademocrtica, na qual a participao e o envolvimento de todos(as) umarealidade buscada e bastante alcanada, dentro dos limites deste processo.

    Tendo por base o modelo de Banks, possvel afirmar que asdimenses mais trabalhadas nas salas de aula dos ncleos observados foramas relacionadas ao empoderamento e reduo de preconceito. Essas sodimenses presentes no cotidiano dos ncleos e reforadas pelos(as)coordenadores(as) e professores(as), no sempre com o mesmo grau deconscincia, compromisso e intensidade. Os atores mais envolvidos nomovimento como um todo, professores(as), coordenadores(as) e alunos(as),revelaram maior envolvimento nesta perspectiva.

    Quanto s dimenses menos presentes nas salas de aula integraodos contedos e processo de construo do conhecimento , relacionam-se com questes inerentes seleo dos contedos escolares, constituiodo conhecimento escolar e transposio didtica, assim como s questesepistemolgicas relativas prpria natureza do conhecimento e suahistoricidade. Constituem preocupaes importantes para se trabalhar acultura escolar na perspectiva multicultural. Sua incidncia no dia-a-diados ncleos observados revelou-se escassa e frgil, em geral no mbitodas cincias sociais e do ensino de lngua e literatura. A prpria natureza

    de um curso pr-vestibular certamente opera como um inibidor desta

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    preocupao. No entanto, perguntamo-nos se sua quase ausncia devidaexclusivamente a este fator ou se o nvel de conscincia desta problemticaest ainda muito pouco presente entre os professores e professoras doPVNC em geral. Poder-se-ia esperar que educadores engajados num

    movimento de natureza identitria tivessem mais sensibilidade para estasquestes.

    Certamente a introduo da perspectiva multicultural no dia-a-dia das escolas e da sala de aula, provoca muitas questes pedaggicasrelacionadas com a seleo dos contedos escolares, as estratgias deensino, o relacionamento professor(a)-aluno(a) e aluno(a)-aluno(a), osistema de avaliao, o papel do(a) professor(a), a organizao da sala deaula, as atividades extra-classe, a relao escola/comunidade, entre outras.

    Tanto na anlise da documentao relativa ao PVNC, quanto nasobservaes e entrevistas realizadas, foi possvel detectar que a sensibilidadepara as questes especificamente pedaggicas ainda est pouco presentenas preocupaes do movimento, sendo raros os espaos de reflexo sobresua problemtica.

    Outro aspecto de especial importncia para a proposta do PVNCdiz respeito disciplina Cultura e Cidadania. Ela reconhecida pelosdiferentes atores como de particular relevncia para o projeto. afirmadacomo sendo sua alma, sua espinha dorsal. Sua organizao e desen-

    volvimento de responsabilidade das coordenaes dos ncleos, havendouma enorme variedade de modos concretos de desenvolv-la, noparecendo haver uma base comum. Talvez fosse importante promoveruma reflexo sobre sua organizao, os temas a serem enfatizados, asmetodologias a serem privilegiadas etc., evitando-se assim a improvisaoe que possa ficar reduzida a uma srie de palestras, sem maior articulaonem um planejamento orgnico.

    Uma questo que emergiu durante a pesquisa de campo diz respeito articulao da formao para a cidadania com as questes culturais.

    No se pode dar por bvia esta interlocuo. De fato, ela pode assumirdiferentes configuraes, indo da mera justaposio, sendo a dimensopoltica e a cultural concebidas como plos independentes, sem nenhumaarticulao, at uma perspectiva integradora na tica do que Chau (1999)denomina cidadania cultural.

    As observaes e entrevistas realizadas permitiram perceber que,na prtica, predomina uma abordagem de justaposio, com nfase emtemas relacionados dimenso poltica e ao exerccio da cidadania.

    Tratando-se de uma questo nuclear para o desenvolvimento do projeto,

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    consideramos especialmente importante que haja uma reflexo coletivasobre a articulao cidadania/cultura e que se v construindo um modoprprio, flexvel, mas com um enfoque comum, de trabalh-la nodesenvolvimento da disciplina Cultura e Cidadania, assim como no

    cotidiano dos ncleos.O Pr-Vestibular para Negros e Carentes constitui-se em umaexperincia educacional que busca inserir na universidade alunos(as) que,por conta prpria, dificilmente o conseguiriam em razo dos processosexcludentes que tm sofrido ao longo de suas histrias individuais esociais. Sem dvida alguma o PVNC um importante veculo no sentidoda incluso dos grupos marginalizadas, como os negros e os grupospopulares de baixa renda. Diante desta realidade, questionamo-nos sobrecomo o PVNC se situa em relao s polticas de ao afirmativa.

    Consideramos que as aes afirmativas podem ser analisadas pordois prismas: num sentido restrito e num sentido mais amplo. Noprimeiro caso, as aes afirmativas so apontadas como polticas pblicastemporrias, promovidas por parte do Estado tanto em seu PoderLegislativo quanto Executivo, que objetivam a promoo da igualdadeentre os grupos sociais, levando em considerao desvantagens sofridasao longo da Histria, como aponta Melo (1998). Assim, as medidas deao afirmativa configuram-se como uma alternativa para o acesso escolaridade e a cargos pblicos e privados e at mesmo representaoparlamentar por parte de grupos tnicos, de gnero etc. (Melo, 2000).

    A segunda possibilidade de interpretao das aes afirmativasseria encar-las como medidas amplas, no necessariamente atreladas spolticas pblicas, medidas estas que visam justia distributiva, ouseja, que buscam a democratizao da sociedade e so promovidas emdiferentes espaos sociais, como movimentos populares, por exemplo.

    Se considerarmos a definio na qual as aes afirmativas seriamum conjunto de medidas, legislativas ou administrativas, que tendem a

    defender ou incentivar grupos marginalizados e discriminados, nopodemos considerar o PVNC como uma ao afirmativa em si mesmo,uma vez que se trata de um movimento de educao popular que norecebe apoio ou proteo de leis que facilitem o acesso de alunos(as)oriundos do PVNC s universidades.

    Talvez algumas medidas de ao afirmativa, em sentido maisrestrito, mediadas pelo movimento sejam as lutas por iseno das taxaspara inscrio no vestibular e para a concesso de bolsas de estudo aosalunos e alunas oriundos do PVNC nas instituies de ensino superior

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    particulares. Neste caso, esta luta se d quando o(a) aluno(a) j ingressouna universidade nica e exclusivamente pelos seus prprios esforos eno por polticas que facilitem a insero do(a) aluno(a) negro(a) e debaixa renda nos quadros universitrios.

    Em uma perspectiva mais ampla, o PVNC pode ser interpretadocomo ao afirmativa, uma vez que, ao buscar inserir as camadas desfavo-recidas na universidade e, ao mesmo tempo, considerar a importnciade uma formao crtica e orientada afirmao das identidades culturais,est operando na lgica da justia distributiva, oferecendo possibilidadesde oportunidades que levem os(as) alunos(as) a estarem mais prximosda igualdade de oportunidades educacionais. Na qualidade de aoafirmativa, o Pr-Vestibular para Negros e Carentes parece-nos umimportante instrumento de empoderamento de identidades socio-

    culturais historicamente excludas do ensino superior, e de um ensinode qualidade de maneira geral.

    O PVNC, alm de preparar tecnicamente os(as) alunos(as) para ovestibular, teria um importante papel no sentido de empoder-los deforma que estes se percebam como importantes agentes sociais, para quepossam atuar no mundo social, cientes de suas potencialidades, de seusdireitos e de seu poder.

    A categoria empowerment, muitas vezes traduzida como empode-

    ramento, tem sido ainda pouco utilizada por autores brasileiros, sendoespecialmente difundida nos debates em relao questo de gnero. Sen(1998) sustenta que termos como participao e empoderamento sopalavras cuja origem pode estar situada em uma linguagem crtica dosparadigmas de desenvolvimento dominantes nas dcadas de 1960 e 1970.Tais expresses tm sido utilizadas, ainda que no tenham o mesmosignificado, por agncias de financiamento, governos e organizaes dasociedade civil. Como ressalta Sen (1998), quando atores sociais comideologias, enfoques e prticas muito variados buscam encontrar umconjunto comum de conceitos, existe uma considervel falta de clareza ecerta confuso acerca de seus significados reais. Assim, ao utilizarmos oconceito de empoderamento indispensvel clarificar o que entendemospor este. Para Sacavino (1998):

    Empoderamento significa que cada cidado/ deve descobrir, construir e exer-cer no cotidiano, individual e coletivamente, o poder que tem pela prpriacondio de cidadania. importante que cada grupo, movimento, associaodescubra seu poder e o exera. Constitui uma tarefa educativa fundamental

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    colaborar na construo do empoderamento dos grupos tradicionalmente mar-ginalizados e hoje excludos: indgenas, negros, mulheres, jovens, desemprega-dos, analfabetos, sem terra, sem casa etc.; todos esses grupos aos que o sistemadominante faz crer que no tm poder, porque o poder est concentrado prin-cipalmente exclusivamente nos polticos, empresrios e investidores. (P. 83)

    As aes afirmativas so estratgias orientadas para o empode-ramento. Tanto as concebidas no sentido restrito quanto as que se situamnum enfoque amplo desenvolvem estratgias de fortalecimento do poderde grupos marginalizados, para que estes possam lutar pela igualdade decondies de vida em sociedades marcadas por mecanismos estruturaisde desigualdade e discriminao.

    O Pr-Vestibular para Negros e Carentes entende que para aceleraras transformaes sociais preciso que sejam formuladas polticas de

    ao afirmativa, para que se corrijam as marcas da discriminao cons-truda ao longo da Histria, a exemplo de pases como Alemanha, Rssiae EUA. Neste sentido, defende que sejam aprovadas leis que vinculempelo menos 50% das vagas nas universidades pblicas aos alunos e alunasprovenientes da rede pblica de ensino.

    Assim, consideramos que as estratgias de empoderamentoconstrudas no interior do PVNC possam ser um importante instrumentode presso social para que medidas de ao afirmativa no sentido depolticas pblicas sejam implementadas em relao ao ingresso na univer-sidade ou no mercado de trabalho.

    Na Carta de Princpios do Pr-Vestibular para Negros e Carentesest claramente formulado o seu compromisso com uma proposta educa-tiva e um projeto de sociedade que promovam processos de demo-cratizao onde as lutas por maior igualdade no plano socioeconmico epor melhores condies de vida para os grupos populares estejamassociadas s questes relativas s identidades culturais e colaborem paraasuperao do racismo, da discriminao de gnero, da discriminao cultural

    e, de forma geral, das desigualdades sociais. Sendo assim, fica claramenteexplicitada a intencionalidade de se trabalhar na perspectiva da educaomulticultural.

    O multiculturalismo, como j afirmamos, um fenmeno comple-xo, contraditrio e atravessado por mltiplas questes, concepes etenses. Entre ns trata-se de uma preocupao que recentemente vemadquirindo maior visibilidade e vo surgindo vrios grupos, tanto nosespaos acadmicos quanto nos movimentos sociais, preocupados com adiscusso terica e as implicaes prticas das suas propostas.

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    Nesta perspectiva, o PVNC pode ser considerado um dos pioneiros,j que no so muitas as experincias atualmente em realizao queexplicitam claramente e de modo orgnico o enfoque multicultural.

    Certamente preocupaes presentes no PVNC, como conscincia

    da identidade cultural e social, autoconceito e auto-estima, empo-deramento, combate ao racismo, ao preconceito e discriminaocultural e social, ao afirmativa, respeito diversidade tnico-cultural,democratizao da educao e da sociedade, entre outras, so caracte-rsticas importantes da perspectiva multicultural. No entanto, tambmo so as questes relativas ao modo de produo e socializao doconhecimento, tenso relativismo-universalismo e seleo de contedoscurriculares, s vozes ausentes dos contedos escolares, crtica eelaborao de materiais didticos, formao de professores etc.

    Na pesquisa de campo realizada, em vrias ocasies foi possvelevidenciar, nas categorias de Banks (1999), uma abordagem multiculturalque, do ponto de vista cognitivo, aditiva, incluindo-se alguns temasespecficos em diversas disciplinas, e, principalmente, por meio daintroduo da disciplina Cultura e Cidadania. O desafio da perspectivamulticultural est em que todo o currculo possa ir sendo transformadoa partir desta preocupao e no se restrinja esta sensibilidade a determi-nados temas e/ou disciplinas. Nas observaes realizadas tambm seevidenciaram aspectos inerentes ao enfoque da ao social, articulando-se a dinmica da sala de aula e do ncleo com uma incidncia social,manifestada em compromissos com aes comunitrias e com a proble-mtica da democratizao, do preconceito e da discriminao na sociedadeem geral.

    Entre as tendncias inerentes ao multiculturalismo situa-se aeducao intercultural. No caso do PVNC, a nfase colocada naconstruo de identidades particulares, silenciadas e excludas dasociedade. A principal preocupao o empoderamento destes sujeitos

    sociais do ponto de vista educativo e social. Podemos considerar queestas so condies importantes para o desenvolvimento da intercultu-ralidade. Para um relacionamento lcido e crtico com o outro, odiferente, importante a construo consciente da prpria identidadecultural, assim como um autoconceito e uma auto-estima positivos, doponto de vista pessoal, social e cultural.

    No entanto, o confronto entre os diferentes, quando trabalhadodo ponto de vista educativo, um fator importante na tomada deconscincia e construo da prpria identidade, no plano pessoal e

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    coletivo. Articular o reconhecimento entre iguais e o sentido de pertenaa um grupo especfico com a interrelao com os diferentes, reconhe-cendo-os como tais e desenvolvendo a capacidade de um dilogo crtico, uma preocupao fundamental da educao intercultural. Esta pers-

    pectiva articuladora no nega os conflitos e supe lutar contra todaforma de preconceito e discriminao, favorecendo dinmicas sociaisorientadas afirmao de uma sociedade democrtica e igualitria.

    Foi possvel constatar, de modo especial nos depoimentos de algunsatores, que a interculturalidade est no horizonte do PVNC e que, nestesentido, no se trata de um movimento que favoreceria um multicultu-ralismo fechado e sim uma perspectiva aberta, orientada afirmao deuma interculturalidade crtica, orientada a favorecer a democratizaoda sociedade.

    Como desdobramento dessa pesquisa, tendo presente que em vriasentrevistas realizadas com universitrios(as) ex-alunos(as) do PVNC,apesar de no ter sido este o foco do trabalho, emergiram em muitosmomentos o estranhamento, a dificuldade de lidar com a culturauniversitria, a experincia de discriminao e racismo na vida universi-tria, a rigidez das prticas pedaggicas e a dificuldade dos professoresde lidar com a pluralidade cultural, apresentamos ao CNPq um terceiroprojeto integrado de pesquisa Universidade, diversidade cultural e

    formao de professores , que focaliza fundamentalmente as relaesentre diversidade cultural e pedagogia universitria, de modo especialnos cursos de licenciatura. Esse projeto teve incio em 1999 e se encontrana fase final de anlise dos dados.

    A pesquisa de campo foi realizada em uma universidade comu-nitria, reconhecida nacionalmente pela sua qualidade acadmica ecientfica, que vem desenvolvendo desde 1994 uma poltica com oobjetivo de favorecer o acesso de estudantes de camadas populares aosseus cursos de graduao, a maioria dos quais de afro-descendentes.

    Esses alunos e alunas, uma vez aprovados nos exames vestibulares,candidatam-se a uma bolsa de ao social em outubro de 2001 auniversidade contava 436 bolsistas de ao social , bolsas integraisno-reembolsveis que garantem a gratuidade na universidade. Essesalunos e alunas tambm podem aceder a outros apoios que visam aoferecer condies bsicas necessrias vida universitria. A maioriadesses bolsistas est vinculada ao movimento Pr-Vestibular paraNegros e Carentes (PVNC), havendo tambm alunos(as) vinculados(as)a outros pr-vestibulares comunitrios.

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    Concentramos o nosso estudo em trs departamentos, entre osque tm maior nmero desses estudantes e oferecem cursos de licenciatura.Numa primeira aproximao, analisamos o currculo explcito dessescursos, as ementas e os programas das disciplinas por eles oferecidas,

    com a finalidade de identificar alguns elementos que permitissem vislum-brar uma preocupao com temticas que poderiam ser includas nombito do multiculturalismo. Estamos conscientes dos limites desta abor-dagem, mas consideramos que ela pode oferecer alguma contribuiopara identificar uma intencionalidade explcita. A anlise ainda no estterminada, mas possvel afirmar que o nmero das disciplinas queexplicitam, mesmo de um modo amplo, uma preocupao sensvel squestes colocadas pelo multiculturalismo, bastante reduzido. Estaafirmao confirmada pelos depoimentos dos(as) alunos(as), os quais,

    em geral, declararam que as questes relativas diversidade cultural e diferena somente estavam presentes em algumas disciplinas e de formaespordica e pontual. Tambm afirmaram que, mesmo quando eramdiscutidas em sala de aula, existia uma distncia muito grande entre otratamento acadmico desta problemtica, a afirmao da importnciade se levar em considerao esta realidade no ensino fundamental emdio, e a prpria dinmica da sala de aula que ignorava a diversidadecultural nela presente. A sala de aula era vivenciada pelos estudantesentrevistados como um espao padronizado, rgido, homogneo e

    monocultural, que no dava abertura para a manifestao das diferenasou, quando esta realidade acontecia, assumia muitas vezes uma dimensofortemente agressiva e mobilizadora de dinmicas de excluso ouguetificao. Situaes de preconceito, discriminao e racismo foramexplicitadas, tanto nas relaes entre alunos e alunas, quanto nas dos(as)alunos(as) com os(as) professores(as).

    A entrada na universidade, na qual foi realizado esse estudo, deum nmero significativo de alunos oriundos de camadas populares eafro-descendentes vista por um nmero significativo e diferenciado deatores universitrios, tanto entre alunos(as) quanto professores(as), comoapresentando muitos desafios e mesmo como uma ameaa qualidadedo ensino na instituio em que foi realizado o estudo. Tais alunos ealunas sentem-se muitas vezes discriminados e desenvolvem estratgiaspessoais e grupais, nem sempre bem-sucedidas, de resistncia e conquistado espao universitrio. Iniciativas de ao afirmativa promovidas pelauniversidade, orientadas permanncia desses alunos e alunas na vidauniversitria, tm sido de especial importncia e provocado diferentesreaes entre o corpo docente e discente, tanto de apoio como de rejeio.

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    Quanto aos professores e professoras entrevistados, estes assumemdiferentes posies diante do tema: h os que se aproximam mais deuma perspectiva universalista, centrada no contedo cognitivo e numtratamento igual a todos os alunos e alunas, e silenciam a problemtica

    da diferena aos que, conscientes das questes provocadas pela hetero-geneidade sociocultural dos(as) alunos(as), pem nfase num enfoquede carter compensatrio, procurando um tratamento adequado para asdeficincias que alunos e alunas oriundos dos pr-vestibulares comu-nitrios trazem no que diz respeito ao domnio de habilidades cognitivasfundamentais para a vida acadmica, como se somente eles apresentassemesta problemtica. H tambm aqueles, no muito numerosos, que reve-lam maior sintonia com uma perspectiva mais aberta, admitindo a neces-sidade de uma certa reconceitualizao da seleo dos contedos e do

    tratamento pedaggico, em funo da sua adequao realidade dosdiferentes sujeitos socioculturais e a suas especificidades, assim como daprpria relevncia para as diferentes reas do conhecimento das questessuscitadas pelo multiculturalismo. O que fica claramente evidente adificuldade dos(as) professores(as), e da universidade em geral, de lidaremcom as questes epistemolgicas, pedaggicas e didticas na perspectivamulticultural e de romperem com uma representao uniforme dealuno(a), que passada tambm aos futuros professores e professoras doensino fundamental e mdio.

    Consideraes finais

    Certamente, a introduo da perspectiva multicultural no dia-a-dia das escolas e na formao de professores no pode limitar-se a questesde carter poltico-ideolgico, de sociologia e antropologia da educaoe de princpios orientadores da teoria curricular. Estas dimenses soimprescindveis, mas insuficientes. Esta perspectiva provoca muitas ques-tes relacionadas com o prprio papel social, cultural e cientfico da

    universidade, assim como questiona a pedagogia universitria vigente.No Brasil, a reflexo sobre esta temtica tem sua especificidade e

    vai penetrando lentamente na vida acadmica. No cotidiano escolar aindaest muito pouco presente. Nos anos que levamos aprofundando estatemtica, no foi nada fcil identificar propostas educativas concretasque tenham uma referncia explcita a questes que podem ser situadasno mbito das preocupaes multiculturais. A maioria das escolas emque de alguma forma o tema penetra se limita a adicionar alguns contedosque tm que ver com a pluralidade cultural, a ressignificar comemoraes

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    e outras prticas escolares espordicas nesta perspectiva ou a adotar umaperspectiva assimilacionista e/ou compensatria. Em geral, predominauma abordagem que no afeta a globalidade do currculo, no desenvolveprocessos de construo de identidades culturais em que se fortaleam a

    auto-estima e o autoconceito dos alunos provenientes de grupos excludose discriminados, nem se promove o seu empoderamento.No caso do PVNC e de outros movimentos sociais de carter

    identitrio, a nfase colocada nos processos de empoderamento ecombate ao racismo e discriminao. No entanto, os aspectos relativoss questes epistemolgicas e pedaggicas praticamente no sotrabalhados.

    No que diz respeito universidade, a cultura acadmica apresentaespecial dificuldade de lidar com a diferena. So as polticas de ao

    afirmativa, ainda incipientes entre ns e objeto de grandes controvrsias,que incidem mais fortemente nesta problemtica, mas, em geral, estoorientadas a favorecer o acesso de determinados grupos excludos universidade, especialmente aqueles oriundos das camadas populares eafro-descendentes, e privilegiam medidas de carter socioeconmico, noincidindo nas dimenses cientfica e pedaggica da vida universitria.

    Quanto aos cursos de formao de professores, esses abordamalguns temas geralmente de modo episdico e de acordo com as opes

    de cada professor(a), mas a questo multicultural ainda no assumidacomo um dos princpios orientadores da formao docente, inicial econtinuada.

    Consideramos que, para que estas questes possam ser maistrabalhadas na educao brasileira, necessrio desvelar o mito dademocracia racial, to arraigado no nosso imaginrio social, para quesejamos capazes de assumir o carter discriminador, hierarquizador,autoritrio e de negao do outro da nossa sociedade, to presenteentre ns. Nossa educao tem caractersticas fortemente monoculturais

    e privilegia uma perspectiva universalista vinculada viso iluminista darealidade.Por outro lado, somente assumindo de modo consciente e crtico os

    processos de hibridizao cultural presentes na sociedade brasileira efavorecendo o dilogo intercultural seremos capazes de promover processoseducacionais que articulem igualdade e diferena, universalismo e relati-vismo e globalizao e pluralidade cultural em nosso Pas.

    A interculturalidade aposta na relao entre grupos sociais e tnicos.

    No elude os conflitos. Enfrenta a conflitividade inerente a essas relaes.

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    Favorece os processos de negociao cultural, a construo de identidadesde fronteira, hbridas, plurais e dinmicas, nas diferentes dimensesda dinmica social.

    A perspectiva intercultural quer promover uma educao para o

    reconhecimento do outro, para o dilogo entre os diferentes grupossociais e culturais. Uma educao para a negociao cultural. Umaeducao capaz de favorecer a construo de um projeto comum, peloqual as diferenas sejam dialeticamente integradas. A perspectivaintercultural est orientada construo de uma sociedade democrtica,plural, humana, que articule polticas de igualdade com polticas deidentidade (Santos, 2001).

    Para terminar este artigo, que pretendeu unicamente levantarquestes e inquietudes, gostaramos de retomar uma questo que nos

    parece nuclear: a perspectiva multicultural constri-se na tenso entreos movimentos sociais e a academia. Coloca-nos no horizonte da afirmaoda dignidade humana num mundo que parece no ter mais esta convicocomo referncia radical.

    Estas palavras do subcomandante Marcos (2001), representanteprivilegiado de um movimento em que igualdade e identidade mutua-mente se exigem, poticas e militantes, especialmente estimulantespara as nossas buscas cotidianas, pessoais e coletivas, intelectuais e

    polticas, parecem-nos especialmente significativas e oportunas a situar-nos no horizonte utpico que alimenta e inspira esta perspectiva:A Dignidade exige que sejamos ns mesmos.Mas a Dignidade no somente que sejamos ns mesmos.Para que haja Dignidade necessrio o outro.E o outro s outro na relao conosco.

    A Dignidade ento um olhar.Um olhar a ns mesmos que tambm se dirige ao outro olhando-se e olhando-nos.

    A Dignidade ento reconhecimento e respeito.Reconhecimento do que somos e respeito a isto que somos, sim, mas tambmreconhecimento do que o outro e respeito ao que ele .

    A Dignidade ento ponte e olhar e reconhecimento e respeito.Ento a Dignidade o amanh.Mas o amanh no pode ser se no para todos, para os que somos ns e para osque so outros.

    A Dignidade ento uma casa que nos inclui e inclui o outro.A Dignidade ento uma casa de um s andar, onde ns e o outro temos nosso

    prprio lugar, isto e no outra coisa a vida, e a prpria casa.

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    Ento a Dignidade deveria ser o mundo, um mundo que tenha lugar param