Carlos Eduardo Batalha - · PDF fileTomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec, 1953; Grinberg, Keila. “Interpretação e Di

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    O jurista cOmO verdadeirO tericO dO estadO

    Carlos Eduardo Batalha

    autobiografia.

    Kelsen, Hans. Trad. Gabriel Nogueira Dias e Jos Igncio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2011.

    [1] Cf. Reale, Miguel. Teoria tridi-mensional do Direito. 5. ed. rev. e aum. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 118.

    [2] Cf. Alencar, Ana Valderez A. N. A competncia do Senado Federal para suspender a execuo dos atos declarados constitucionais. Revista de Informao Legislativa, v. 15, n. 57, jan.mar.1978, pp. 23943; Prutsch, Ursula. Instrumentalisierung deutschsprachiger Wissenschafter zur Modernisierung Brasiliens in den dreiiger und vierziger Jahren. In: Lechner, Manfred; Seiler, Dietmar (orgs.). Zeitgeschichte.at. 4. sterreichischer Zeitgeschichte-tag 99. Innsbruck: Studienverlag, 1999, pp. 36169.

    [3] Cf., em particular, Abreu, Joo Leito de. A validade da ordem jurdica. Porto Alegre: Globo, 1964, pp. 4971 e 12571.

    No parece datada a afirmao de que ocupase uma posio no espao jurdico conforme se est mais perto ou mais longe de Hans Kelsen1. Ainda hoje diversos juristas referemse ao autor da Teoria pura do Direito como uma espcie de smbolo, ao mesmo tempo central e superior, para a compreenso do Direito.

    Contemporneo de uma gerao de intelectuais austracos que se destacaram para alm do contexto europeu, Kelsen estudou e lecionou na Universidade de Viena no comeo do sculo xx. Dirigiuse Alemanha em 1930, mas sua origem judaica e sua imagem pblica como redator e guardio judicial da primeira Constituio democrtica da ustria o tornaram vulnervel perseguio nazista. Aps buscar refgio em outros pases, chegou aos Estados Unidos em 1940, onde se estabeleceu e se aposentou como professor da Universidade da Califrnia, vindo a falecer em 1973. No Brasil, sua obra tornouse referncia a partir da elaborao da Constituio de 19342, e, por volta de 1950, foi aqui consolidada no campo da Filosofia do Direito, ganhando lugar cativo em manuais e monografias dedicados s questes da justia, da cincia do Direito e da estrutura do ordenamento jurdico3.

    To ampla foi a recepo das concepes kelsenianas que ela prpria acabou por se tornar objeto de discusso. Ao menos desde 1970, tanto herdeiros quanto crticos de Kelsen tm se preocupado com a reavaliao da apropriao de sua teoria. De modo geral, possvel dizer que esse reexame tem sido marcado por trs atitudes distintas. Por um lado, temse a reviso dos fundamentos da Teoria pura do Direito, seja reconsiderando os vnculos de Kelsen com o neokantismo, seja promovendo sua aproximao com o neopositivismo lgico e a filosofia analtica. Por outro lado, h a atualizao do horizonte de insero da obra de Kelsen, na busca por sua integrao ao debate contemporneo sobre a jurisdio e o papel da interpretao na

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    [4] Para a primeira atitude, temos como exemplo obras de Snia Broglia Mendes, Fernando Pavan Baptista e Henrique Smidt Simon. Para a segunda atitude, consideramos os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck. J a atitude de denncia foi aqui caracterizada segundo a obra de Lus Alberto Warat.

    [5] Cf. Machado, Lourival Gomes. Toms Antnio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec, 1953; Grinberg, Keila. Interpretao e Direito natural. In: Gonzaga, Toms Antnio. Tratado de Direito natural. So Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. viixxxv.

    determinao do direito. H tambm, por fim, a denncia da trivializao do pensamento kelseniano, decorrente da simplificao e da distoro de suas ideias para fazlas circular no dia a dia dos juristas como uma espcie de senso comum terico4.

    Como resultado desse reexame, vrias sutilezas do pensamento de Kelsen obtiveram reconhecimento. Vse agora com maior clareza o equvoco de atribuir a ele a reduo do direito lei, a existncia de um direito sem moral, a desconsiderao da dimenso humana e seus valores, ou de acuslo de ter colocado no mesmo nvel as normas de um Estado totalitrio e as de um Estado democrtico. Contudo, ainda h muitos outros aspectos de sua obra a serem revistos, atualizados e descobertos.

    A recente publicao da traduo brasileira da autobiografia escrita por Kelsen em 1947 coloca em evidncia alguns desses aspectos. Acompanhada de uma autoapresentao elaborada em 1927 como explicao da gnese intelectual da Teoria pura do Direito , a autobiografia ultrapassa tanto o testemunho pessoal quanto a condio de museu dos conceitos kelsenianos. Por meio de rigorosa seleo de episdios, Kelsen enfatiza elementos que o debate filosficojurdico no Brasil muitas vezes considerou secundrios. Nesse sentido, ainda que por contraste, sua autobiografia nos auxilia a traar os caminhos pelos quais sua teoria foi aqui incorporada Filosofia do Direito. Ao mesmo tempo, ela tambm nos ajuda a entender melhor os limites de nossa apropriao da Teoria pura do Direito.

    Como se sabe, o ambiente que recepcionou a obra de Kelsen no Brasil comeou a se configurar antes mesmo da criao dos primeiros cursos jurdicos nacionais. Ao longo do sculo xviii, um pequeno grupo da sociedade brasileira j se dirigia metrpole portuguesa para realizar estudos superiores em Direito. E o debate intelectual que ali se encontrava no era exatamente o moderno confronto entre a tradio romanocannica e a nova orientao do direito racional. Enquanto as concepes jusnaturalistas assumiram pela Europa uma funo crtica e revolucionria, as reformas pombalinas incorporaram o discurso jusnaturalista para articular ortodoxia religiosa e manuteno do poder real em Portugal. Difundiase um jusnaturalismo pela via do catolicismo, a servio do Estado nacional, da centralizao administrativa e das prerrogativas da monarquia. Essa perspectiva encontrase claramente delineada no Tratado de Direito Natural escrito pelo futuro inconfidente Toms Antnio Gonzaga5. Elaborado como tese para concurso na Faculdade de Leis de Coimbra, esse tratado examinava as concepes propostas por Grotius, Pufendorf e Thomasius para submetlas crtica, assentando, em primeiro lugar, a origem divina de imutveis princpios necessrios para o Direito natural e

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    [6] Cf. Pauprio, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, pp. 1536.

    [7] Cf. Ferraz Jr., Tercio S. A Filosofia do Direito no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia, v. 45, n. 197, 2000, pp. 146.

    civil. Tal associao entre jusnaturalismo e filosofia catlica nunca deixou de compor o quadro da Filosofia do Direito no Brasil, seja no sculo xix, por meio de obras marcadas por certo ecletismo espiritualista, seja no sculo xx, com o empenho de diversos juristas na restaurao da tradio escolstica6.

    No entanto, com a criao dos cursos jurdicos em So Paulo e Olinda, aps a Independncia, surgiram condies para que trabalhos doutrinrios introduzissem elementos caractersticos da modernidade na determinao do Direito. A defesa de limitaes constitucionais ao poder governamental, assegurando reas de autonomia vida privada, fez com que instituies e princpios prprios do Estado liberal comeassem a ser empregados na compreen so da estrutura legal do pas. A divulgao do liberalismo veio acompanhada da importao de teorias ligadas ao iluminismo francs e ao idealismo alemo, com especial ateno para a filosofia de Immanuel Kant, lida por intermdio das obras de Karl Krause e Ludwig Noir. O que se assimilou do kantismo, porm, no foi suficiente para apreender seu projeto de filosofia crtica. Falase em filosofia transcendental, apriorismo e coisa em si mesma, mencionase a combinao de liberdade e coero no domnio do Direito, mas o criticismo no mais que um ponto intermedirio entre as atitudes dogmticas e cticas, de modo a conciliar a tradio escolstica com os valores emergentes das revolues burguesas. Tambm havia dificuldades prticas para consolidar a compreenso liberal da ordem jurdica como um sistema impessoal, fundamentado em princpios gerais e aplicado segundo critrios objetivos. O aparato jurdico ento existente no deixava de ser considerado, em sua aplicao, como um instrumento manipulvel, a servio de arranjos pessoais, trocas de favores e relaes orientadas por critrios de lealdade. O que se desenvolve a partir da criao das academias de Direito , portanto, a percepo da distncia quando no do desencontro e da contraposio entre as diretrizes bsicas da formao jurdica nacional e as necessidades reais da vida social, gerando um debate, que se torna recorrente no ensino jurdico do pas, sobre a relao entre as leis abstratas e formais e a prtica concreta e material do Direito7.

    Nesse contexto, a referncia a Kant acabou por adquirir novos contornos a partir da segunda metade do sculo xix. Os ensaios e estudos do germanista Tobias Barreto articularam a insero do Direito no mbito da cultura e essa perspectiva o levou a negar a universalidade do fenmeno jurdico, em face da historicidade do ser humano. Influenciado pela obra de Rudolf von Ihering, Barreto acabou por atribuir maior peso s noes de finalidade e valor, como elementos definidores do prprio homem. Com isso, enca

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    [8] Cf. Costa, Joo Cruz. Contri-buio histria das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1956, pp. 13846.

    [9] Cf. Ferraz Jr., A Filosofia do Direito no Brasil, op. cit., p. 24; Nader, Paulo. Filosofia do Direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 27881.

    [10] Englard, Izhak. Nazi criticism against the normativist theory of Hans Kelsen: its intellectual basis and postmodern tendencies. Israel Law Review, n. 32, 1998, p. 183.

    [11] A expresso aparece na tese escrita por Miguel Reale entre 1939 e 1940, para concurso ctedra da Faculdade de Direito do Largo So Francisco. Cf. Reale, Miguel. Funda-mentos do Di