CARLOS NEJAR Antologia Poética

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    Prefcio deLo Gilson Ribeiro

    Carlos ejar, o Poeta

    Nejar em rabe quer dizer carpinteiroe Carlos tem sido o carpinteirode magnficos poemas ao longo de trinta e cinco anos - uma vida adulta

    inteira de fidelidade poesia.

    Desde as mais longnquas citaes de seus primeiros versos, vibra umatenso - a revolta diante da situao social de abandono dos pobres no campo,sem terras, sem paga justa, sem futuro. Mas a inteligncia disciplina essa ira e

    Nejar nunca se afasta dessas figuras de aspecto humano e que agora constituem

    os 30 ou 40 milhes de brasileiros que vivem na mais humilhante e imvel misria.Um dos versos iniciais assinala, precoce:

    " Os homens eram de treva,fizeram-se escravos dela.

    Os homens eram remotosno grande tnel de pedra.

    (...)

    Florao ali no medra.Tudo o que nasce de pedra.O tempo nasceu do homem,mas o homem no pedra

    (...)

    Os homens donde vieramcom seu destino de pedra ? " (. ..)

    Lcido sempre, Nejar jamais quis dar ao seu canto um tom fcil de planfleto poltico. Mas sabe que a poesiatira toda a sua seiva desse terreno spero, que a liberdade e um ideal poltico totalitrio no rima com a

    livre inspirao potica. Como ele poderia ter feito um nome nas rodinhas literrias ridculas que levam oscriadores a congressos de literatura em Houston, Texas, ou em Frankfurt ou Berlim - e no quis. Mas se o

    poeta gacho no estava preso a nenhum manual de converso poltica, tampouco poderia limitar-se apenasao descampado, ao meio rural do Rio Grande do Sul.Como ele prprio reconhece e proclama:

    "Embora preso ao pampa,eu sempre fui sem ptriaou acostumei-me ingratavolpia de ir seguindo" (...)

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    Semelhante aos poetas do romantismo ingls, e sobretudo, Wordsworth,que revelara, absorto: "O cu se estende sobre ns / na nossa infncia ",Nejar tem da ptria uma noo que se une ao tempo que as rugas e os

    ponteiros dos relgios assinalam:"Quem apartar a infncia,pode ser dela, ao menos,absorto na fragncia

    de seus campos amenos ?" (...)

    A ptria abrange muito mais: a ptria o ser humano, nosso prximo,so todos os pases e todos os povos, como no canto fraternal do poeta

    norte-americano Walt Whitman. Nejar evoca a irmandade de todos os homenssobre este frgil planeta devastado por guerras, poluio e violncia:

    "O homem sempre mais forte,

    se a outro homem se aliar ; (...)

    Por mais que a morte desfaa,h um homem sempre a lutar.O vento faz seu caminhopor dentro, no seu poemar ".

    E na prpria paisagem inaugural campestre, ele tem as primeiras einesquecveis fulguraes msticas, como o menino Miguilim do contoCampo Geral, de Guimares Rosa, quando deixa a miopia e v tudo

    num deslumbramento, com os culos novos que lhe deram:

    '"Um dia vi Deus numa palavrae luminosa despontava, argila.

    E Deus vagueava tudo, aquietavaas numinosas letras, quase em fila " (...)

    Ado, feito da argila modelada por Deus, nomeava as flores, rvores,rios, animais do Paraso e o Nome uma palavra, banhada de transcendncia.

    A palavra se comunica de um ser a outro, mas tambm indica uma interrupo,corte, separao, morte, ou um mistrio de que apenas o smbolo, a guardi,

    o caminho do Absoluto: Deus.

    Do viver rduo, spero que se extrai aquilo que fica depois quea morte passou como um arado sobre os nossos ossos e a nossa memria:

    a Esperana. Esperana de vida para os que se contentam com a existnciacarnal efmera sobre a Terra. Esperana, alm do acaso, da destruio, da

    frustrao para os que, como o poeta, a arrancam do Mal universal e, mesmoaleijados, a esculpem a mando de seu corao:

    "Limars tua esperana.At que a m se desgaste;

    mesmo sem m, limarscontra a sorte e o desespero.

    At que tudo te sejamais doloroso e profundo.

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    Limars sem mos ou braos,com o corao resoluto.

    Conhecers a esperana,aps a morte de tudo".

    Em um de seus versos mais formosos, o poeta admite, com clareza,como se contemplasse um cu coalhado de estrelas:

    "Amar a mais alta constelao".

    Atravs de todas as etapas de sua poesia-social, mstica, pica, lrica - oseu canto , inconfundivelmente, um canto viril, que no teme os grilhes dos

    poderosos que pretendem deformar a verdade ou estrangul-la. Assim, no altivo, destemido, desafiador poemaem que Giordano Bruno se levanta contra a

    hedionda Inquisio, diz :

    " o a mimque condenais. (...)

    ada podeisroubar-me.

    A verdade sofreue eu sofri

    no gro dos ossos. (...)

    o cedoo que aprendi

    com os elementos . (...)Eu me fieiao universoe sou janelade harmonia indelvel.

    o vos julgo.

    O que se move a histria

    no caule da fogueira

    Sou de uma raaque procede

    do fogo.

    o podereis calar-me ".

    Dos tempos imemoriais, o homem pressente e s o poeta sabe,claramente, que at para os ateus e agnsticos, existem conceitos humanosque no passam pela morte: a Verdade, a Justia, o Amor, a Liberdade, a

    tica, a Generosidade, a Compaixo, a Paz. Essa a razo para no temer aquelaque o grande poeta pernambucano Manuel Bandeira chamava de "A indesejada

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    das gentes ", a Morte. Ele v esse momento final do corpo, seno da almatambm, como o retorno cclico de outro eu:

    "Depois minha morte vai amadurecer de novo , mas ser da mesma natureza. E aprenderei a falarcom o mundo. E o mundo vai amadurecer como uma pra e depois vai vir uma semente com o mesmonome. Porm, j serei eterno ".

    Como para a Antiguidade Clssica, a Grcia calcada sob os ps dotosco Imprio de Roma, as estaes que se sucedem, antecipam ao ser

    humano, a sua perenidade. Como exclamaria o genial poeta ingls John Donne:

    "Morte, onde est tua vitria? "

    O mais recente livro de Nejar - um longo e culto canto contra a tiraniados controladores da mdia nesse nosso indigente Brasil - diz:

    "E eu ressuscitarei na palavra".

    Basta um relance sobre a triste histria da humanidade para nosconvencer de que os poetas (mesmo os que escrevem em prosa, como

    Dostoievsky), sempre ergueram suas conscincias e sua altivez contra os tiranos:Ossip Mandelstamm no "Gulag " (campo de concentrao) sovitico de Stlin,

    Garca Lorca caindo fuzilado pelos fascistas espanhis, Graciliano Ramos presonas cadeias do "Estado Novo" de Getlio Vargas - os exemplos poderiam se multiplicar por milnios.Mas os

    supremos artistas e msticos como Gandhi, Martin Luther King, Chagall, Proust sabem que a liberdade umametfora da Verdade,

    assim como o poeta ingls Keats repetia, semelhante a uma criana que tivesse capturado uma estrela e elabrilhasse agora em suas mos:

    "A thing of beaty is a joy forever. Truth is Beauty and Beauty is Truth ":"Tudo que belo uma alegria para sempre. A Verdade a Beleza e a

    Beleza a Verdade".

    Tendo profissionalmente desempenhado funes em tribunais,Nejar discerne com rapidez e equilbrio de que lado est a causa justa:

    o contato com a fragilidade da justia dos tribunais humanos chocou-o pelo que elatem de venalidade, de aproximativo, de errneo, tantas vezes. Mas essa lacuna,todos os seus livros - dos mais importantes da literatura escrita em portugusneste sculo - reconforta-nos sempre a mesma voz em estruturas diversas: naesfera do amor, no quadrado das relaes "des"umanas, no vitral da busca deDeus, no solo que compartilhamos com todos, na campa estreita da Morte que

    nos colher quando bem lhe aprouver, sem apelao. Essa fila de atentas sentinelas traz, em cada volume,aportes novos viso plural de Carlos Nejar.

    Seria auspicioso que a reedio desta coletnea de seus versos, despertasseno leitor, o desejo de complementar sua leitura nos demais livros, cada um regorgitando mais de tesouros de

    conceitos e dizeres, como se a tica e a Estticase dessem as mos momentaneamente. OLivro de Silbion, 1963, O Campeador e o Vento, de 1966, a

    Canga, 1971, Ordenaes, do mesmo ano, ao Poo do Calabouo, de 1974, rvore do mundo, 1977, OChapu das Estaes, de 1978, Os Viventes, 1979, Um Pas O Corao, 1980, Memrias do Poro,

    1985, A Idade da Aurora eAmar, a mais alta constelao, ambos em 1991 e outros mais.

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    A poesia de Nejar nunca uma criao espordica ou bissexta: ele no jamais, nem um "poeta de ocasio", nem um poeta " altura de seu tempo"no sentido utilitrio de se usar a poesia para fins mesquinhos e perecveis.

    Como o passar do tempo comprova cabalmente, a inspirao potica deCarlos Nejar flui, constante, como um rio que atravessasse idades carregadas de herosmo, luta, feridas, mas

    nunca desnimo. Tal o clere e clebre rio deque nos fala o filsofo Herclito, nunca nele nos banhamos novamente: cada vezsuas guas ho de correr ,volumosas, rumo a outras paragens, a servir de espelho

    para outros homens. Assim, a poesia desse gacho que estendeu a tendada ptria por sobre todos os pases e agrupamentos humanos existentes na

    Terra. Compreendeu desde cedo que a situao do homem, seu condicionamentosocial e temporal, foram sempre os mesmos: diante da Morte, diante da no-vida,

    que a misria imposta pelas castas dominantes, usurpadoras da prpriaflorao dessas vidas. No importa, parece afirmar o poeta universal do Sul .

    Os sonhos do homem no podem ser abolidos. Os ideais da humanidade avanam, lentamente, mesmo queno sobrevenham os milagres nem seres extra-terrestres. Pois, desde cedo a centelha que iluminou todas asfases desse poeta

    inspiradssimo pelos deuses, foi a F, justificada na palavra como transformadora da condio humana.

    H pouco, durante uma entrevista concedida na Espanha, o escritor insigne do Peru, Mrio Vargas -Llosa,confessou que chegara, aps dca das de fecunda dedicao, ao escrever romances sumamente importantes e

    comoventes que "a literatura no faz acontecer". De fato, os livros no so granadas, nem msseis, nemmetralhadoras. Sob esse ngulo, realmente , eles no so uma ao, um gesto que muda as coisas.

    Porm, como a poesia contida neste volume, comprova, de maneira esplndida,os versos penetram sem pressa na sensibilidade e na apreenso do mundo e da vida,

    e quase imperceptivelmente, vo tornan do a existncia um salto para a metafsica do "estado potico". A,sim, a poesia age, soberana e inconteste. E ns, leitores, que, gratos, nos engrandecemos seguindo o cantodo poeta, a mais vlida prova de uma transcendncia mediada pela palavra.

    .

    Lo Gilson Ribeiro crtico literrio e jornalista. Formado em Literatura Comparadana Universidade deHamburgo, Alemanha, em 1959, lecionou Literatura Brasileira na Universidade de Heidelberg. Atividade

    militante de crtica literria no Jornal da Tarde, de So Paulo e na Revista Veja.Publicou Cronistas do Absurdo (ensaios), Jos lvaro Editor, Rio de Janeiro,

    em 1964 e O Continente Submerso, editora Best Seller, So Paulo, 1988. Seu trabalho cultural em jornais erevistas lhe valeu o II Prmio rdica de Jornalismo Literrio.

    Permitido o uso apenas para fins educacionais.Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que asinformaes acima sejam mantidas.

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    AssentadaCarlos Nejar

    Chega a esta casasem prazo ou contrato.Faze de pousadaas salas e quartos.Os nossos arreiosningum os desatacom dio e receios.

    O tempo no sobenas suas paredes;secou como um frionos beirais da sede;calou-se nos mapas,na plcida aurora,nos pensos retratos.

    Entra nesta casaque tua e de todos,h muito deixadaaberta aos assombros.

    Entra nesta casato vasta que o mundo,pequena aos enganos,perdida, encontrada.Os dias, os anosso palmos de nada.

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    Soltos de imensido

    Carlos Nejar

    Os anos, Elza, j no gravam nada,porque gravamos ns o tempo todo.O teu cuidar, faz-me animar o fogoe cada dia em ns, jamais se apaga.

    Provados somos e o provar um gomodesta rom partida pelas guas.Somos o fruto, somos a dentadae a madureza de ir no mesmo sonho.

    Os anos, Elza, no consertam mgoas,mas as mgoas no correm, se corremos.No encanece a luz, onde so remos

    da limpa madrugada, os nossos corpos.Amamos. No existir estamos soltos,soltos de imensido entre as palavras.

    Aos senhores da ocasio e da guerra

    Carlos Nejar

    A vs, que me despejastesnesta loucura sem telhase neste cho de desastres,acaso devo ajoelhar-mee bendizer as cadeias ?

    E ser aquele que acataas ordens e ser aquele,apaziguado e cordado,preso s aranhas e s teias.

    Levando o sim em uma das mose o no noutra, rastejanteaos senhores da ocasioe da guerra. Ser no cho,o inseto e sua caverna ?

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    Corrente serei

    no recuo das guas.Resina aos frutos do exlio.Esprio entre as bodas.Resduo.

    At poder elevar-mecom a fora de outras asas,para os meus prprios lugares.

    A vs, que me despejastesnesta loucura sem telhas

    e neste cho de desastres,com a resistncia das penas,aceitarei o combate.

    Foste

    Carlos Nejar

    Foste ligadocomo um cavalono arado.

    Foste cavadocomo a terra.Foste jogado,semente na terra.

    Foste arrancadopelas mosque te haviamplantado.

    Foste acorrentadopelos dentesque te haviamsangrado.

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    Foste delatadopelos lbiosque te haviam

    amado.

    Foste mordidopelas ferasque te haviammorrido.

    Foste apodrecido.

    Poema da devastao

    Carlos Nejar

    H uma devastaonas coisas e nos seres,como se algum vulcoabrisse as sobrancelhase ali, sobre esse cho,pousassem as inteirasangstias, solides,passados desesperose toda a condiode homem sem soleira,ventura to curta,punio extrema.

    H uma devastaonas guas e nos seres;os peixes, com seus vios,revolvem-se no umbigodeste vulco de escamas.

    H uma devastaonas plantas e nos seres;o homem recurvadocom a plpebra nos joelhos.As lavas sopraro,enquanto ns vivermos.

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    De como a terra e o homem se unemCarlos Nejar

    Fica a terra, passa o arado,mas o homem se desgasta;sangra o campo, pasce o gado,brota o vento de outro ladoe a semente tambm brota.

    Fica a terra, passa o aradoe o trabalho o que nos passa,como nome, como herana;fica a terra, a noite passa.

    A semente nos consome,mas a terra se desgasta.

    2.

    Que ser do novo homemsobre a terra que vergasta ?Sangra a terra, pasce o gadoe o trabalho o que nos passa.

    Vem o sol e cava a terra;a semente como espada.H uma noite que nos geraquando a noite dissipada.

    Vem a noite e cava a terra;vem a noite, madrugada.

    3.

    O homem se desgasta,sopro misturadoao sopro rijo do arado.Vai cavando.

    Madrugada sai da terra,como um corpo se entreabrepara o orvalho e para o trigo.

    O homem vai cavando,vai cavando a madrugada.

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    Napoleo BonaparteCarlos Nejar

    Fui Napoleo Bonaparte: atorperdido no guerreiro,estrategista efmerode mortos que subiam e desciamna convulso da terra.

    Fui ator, s vezes generalna roda de batalhas,o acampamento rude, eraum soldado entre outros.Um soldado de ignotosritos, de uma ordem fatalque vinha do que os homenschamam gnio, ou desesperode ter a forma humana,embora um fogo o aniquilee seja o pensamento friode ir engendrando deusese batalhas.

    Pode um ator e personagem,trocar em surdina seus papise continuar a cena? Imperadordos reis e prisioneiro dos inglesesnesta Ilha de Santa Helena?

    Uma agonia pertinaz me aula,uma agonia, esta matilha.Os mortos querem matar os vivos.Mas quanto custa morrer.

    Um furor de faca sobreo estmago, um repuxode lmina cortando,um repuxo de jorros.Como se gotas de venenose grudassem no sangue.E a febre borbulhanteda agonia, as ervas negras.

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    A dor era maior que o reinoque tivera ou a viglia

    dos tambores, ou Waterloo.A dor de uma cama a outra.O quarto, mundo submergindo.De uma cama a outra.

    E os lenis no murchavamos quadrantes desta morteque me arqueava.

    Quando a morte viu,eu nela me deitava.

    Principiei a dormir.Com a minha cara.E a mscara.

    Secaram o corpo

    Carlos Nejar

    Secaram o corpoque o sangue reveste;secaram o corpo,A idia no secam.

    rida e durano crebro frtil;secaram os gestos,a idia no secam.

    hspida e crua,de lance inflexvel;a guerra lhe furao peito e a figura.

    A idia perdurano sangue mais pura;secaram os gestos,a idia no secam.

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    Secaram-lhe os msculos

    no crcere injusto;secaram-lhe a vida,secaram-lhe tudo.

    A idia no secame brota do mundo.

    Esto enferrujados

    Carlos Nejar

    Esto enferrujadoso ferro e a solido,o jugo com sua casa,o medo e a noite vasta,porm o sonho no.

    Esto enferrujadasa morte e sua aljava,a faca sob a toca,porm, o brao no:quando se ergue, corta.

    Construo da noiteCarlos Nejar

    No casulo h um homemmas o fundo o outro lado.

    No casulo de seu tempo h um homem,mas o fundo o outro lado. o casulo onde o homem foi achado,mas o fundo o outro lado. o terreno onde o homem foi lavrado,mas o fundo o outro lado. a treva onde o homem foi fechado,mas o fundo o outro lado. o silncio de um homem soterrado,mas o fundo o outro lado.Mas o fundo o outro lado.

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    a infncia que nasce sobre o morto, a infncia que cresce sobre o morto,

    o sol que madruga no seu rosto, um homem que salta do sol postoe convoca outros homens para o sonhoe mistura-se terrae mistura-se ao sonho.

    E o canto recomea alm do sonho,alm da escurido, alm do lago.Mas o fundo o outro lado,mas o fundo principia sem passado,sem os montes, sem os barcos, sem o lago.

    Tua vida verdadeira o outro lado.Tua terra verdadeira o outro lado.Tua herana verdadeira o outro lado.

    Tudo cessa.Tudo cessa,tudo cessa.Mas o mundo o outro ladoque comea.

    Prlogo

    Carlos Nejar

    Nossas dramas quotidianosno contamna milcia dos dias.

    Iguais s nuvens,as noites vm e vonum redondel ou tubo.E os reveses so ncleo.Qualquer gotanos filtra.O extravio nossa identidade.Nosso nmero.

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    Tudo sucedea tudoe ns, humanos,

    no nos sucedemos.Nos sucedem.E o sangue a caldo sangue,sua provncia.

    S vingao que adubamoscom folhas de abandono.

    Tbuas de rebelio.Tbuas de dor,ns somos.Tbuas, tbuasdo universo invivel.

    Tudo sucedea tudo.Sem vestgio.

    Insubmissos ,

    nosso amor remontaaos astros.E o desequilbrio.

    Repdio

    Carlos Nejar

    Ru de morte,ru com denodo,cordel e archote,desterrai-me.

    Infiisao eixo a que pertenceis,desterrai-mepelo que deixaisde fazer.

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    Na fartura e na colheita,desterrai-me.

    Pousastes a mo de ferrosobre a vida que no herdo,mas pretendo por direito.Vosso rosto no mudou,em si mesmo se fechou,lacrada urna.

    Desterrai-mepela paz e pela guerra;sou o sinal que eliminaa vossa parte de fera.

    Desterrai-mecom paixo e desespero,girante em torno do Todo,como pssaro ao viveiro.

    Desterrai-me.

    Incomodo a solidodestes corpos que se dopara o nada, para o cho,

    para o terrvel ento.

    Giro em torno do Todo,sendo, por isto, mais eu;tudo o que a morte tolheu,reverto em pesado ouro.

    Sou aquele que cedeuo melhor de seu tesouroe mendigo se perdeunas prprias coisas que deu.

    Desterrai-me.Giro em torno do Todo,morcego no breu.Giro em torno do Todo,giro em torno do covo,onde iro enterrar-me.

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    E usai de precisoem colocar o tampo,em colocar-me qual po

    para o consumo do Todo.

    Baixai-me, se o quiserdes,com nojo.Tambm na morte,preciso de vosso engodo.

    Abandonei-me ao vento

    Carlos Nejar

    Abandonei-me ao vento. Quem sou, podeexplicar-te o vento que me invade.E j perdi o nome ao som da morte,ganhei um outro, livre, que me sabe

    quando me levantar e o corpo solteo seu despojo vo. Em toda a parteo vento h de soprar, onde no cabea morte mais. A morte a morte explode.

    E os seus fragmentos caem na viraoe o que ela foi na pedra se consome.Abandonei-me ao vento como um gro.

    Sem a opresso dos ganhos, utenslio,abandonei-me. E assim fiquei conciso,eterno. Mas o amor guardou meu nome.

    De longo cursoCarlos Nejar

    (Para Elza)

    Minha alma descansana tua alma,onde a luz jamaisdesativada: um navio de longocurso pela gua.

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    Redonda a luz e nsatracamos na foz

    com o fundo calmo.Em mim te almase te amando, eu almo.

    Os meus sentidosCarlos Nejar

    Um dia vi Deus numa palavrae luminosa despontava, argila.E Deus vagueava tudo, aquietavaas numinosas letras, quase em fila.

    E depois se banhava nesta ilhade bosques e bilnios. Clareavaas formigas noctmbulas da fala.E nele os meus sentidos se nutriam.

    Os meus sentidos eram coelhos briosna verdura de Deus entretecidos.A palavra empurrava o que era cego,

    a palavra luzia nos sentidos.E Deus nas vistas do menino, rodae roda nos olhos da palavra.

    O homem sempre mais forteCarlos Nejar

    O vento faz seu caminhoonde o sol desemboca o mar,onde a terra tarja o vinho,onde a noite seu lagar.

    O vento faz seu caminhoonde os mortos vo deitare a noite move moinho,move outra noite no mar.

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    O vento faz seu caminhoe pssaros vo pousarna florao dos moinhos

    que amadurecem o mar.

    O vento faz seu caminhoonde h sede de plantar,onde a semente destinoque um sulco no pode dar.

    II.

    O homem sempre mais fortese a outro homem se aliar;

    o arado faz caminhono seu tempo de cavar.

    No mesmo mar que nos leva,o vento nos quer buscar;o que da terra do homem,onde o arado vai brotar.

    Por mais que a morte desfaa,h um homem sempre a lutar;o vento faz seu caminho

    por dentro, no seu pomar.

    Contra a esperana

    Carlos Nejar

    preciso esperar contra a esperana.Esperar, amar, criarcontra a esperanae depois desesperar a esperanamas esperar, enquantoum fio de gua, um remo,peixes existem e sobrevivemno meio dos litgios;enquanto batera mquina de cosere o dia dali saircomo um colete novo.

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    preciso esperarpor um pouco de vento,um toque de manhs.

    E no se espera muito.S um curto-circuitona lembrana. Os cabelos,ninhos de andorinhase chuvas.A esperana,cachorro a corrersobre o campoe uma pequena lebreque a noiteem vo esconde.

    O universo um telhadocom sua calha, to baixoe as estrelas, enxamede abelhas na ponta.

    preciso esperar contra a esperanae ser a mo pousadano leme de sua lana.

    E o peito da esperana no chegar;

    seu rosto sempre mais. preciso desesperara esperanacomo um balde no mar.

    Um balde a maisna esperanae sobre ns.

    No TribunalCarlos Nejar

    Eu e o tribunale sua fria mudez.O juiz no centro e no fim,o rosto girando em mim,farndola.

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    Vim, com a escura coragem,de um ru antigo e selvagem.O que me prendeu,

    lutou comigo e venceu.Vacilava em me reter,mas eu que entregava,por saber que minha chagaestava exposta na lei.

    Giram as mose os ps atados. O juiz um vulto que eu mesmo fizcom meus esboos. O juizno centro, no fim,

    no tribunal onde vou,no tribunal donde vim.

    E assim me condeneia permanecer aqui.

    Giordano Bruno fala aos seu julgadoresCarlos Nejar

    No a mimque condenais.

    Nada podeisroubar-me.A verdade sofreue eu sofrino gro dos ossos.

    A vida no me veiopara mim.E servirei de vaua seu moinho.

    No cedoo que aprendicom os elementos.

    Prefiro o fogo, vossa complacncia.E o fogo no remio que est vendo.

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    Abre flancosno aventaldas cinzas esbraseadas.

    O fogode flamejante lnguae sem coleira:morde.E testemunhasem favor dos anjos.

    No a mimque condenais.

    A Inquisiovos fragmentoue ao vosso juzo.

    A cincia toda aparncia de outraque nada em nscomo se fora guado corao.

    Eu me fiei

    ao universoe sou janelade harmoniaindelvel.

    No vos julgo.

    O que se move a histriano caule da fogueira.

    Sou de uma raaque procede do fogo.

    No podereis calar-me.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    O martrio de Estvo, o dicono

    Carlos Nejar

    Estvo sabia que ia morrernaquele dia. Os algozes decidiram.Vestira o diaconato, junto morte.Apenas vo ouvi-lo, suport-lo,antes do sacrifcio.

    Tinha a face de um anjoe eram ptreos os rostosdos que o viam. Seus olhoseram pedras. Se jogavam.

    Ia morrer. Sabia.Radioso, ia resoluto.Vinham as pedras. Iaao encontroda angular, certeirapedra viva.

    A genealogia da palavraCarlos Nejar

    Minha morte comea a amadurecer e depois vou com-la como uma pra,largando o caroo fora e depois vai vir uma semente com o mesmo nomeque vai crescer e amadurecer. Mas j no minha morte - surpresa da terraapenas - descendncia de uma morte futura.

    Depois as geraes perdem de vista a prpria morte que aparece como umfio de gua no meio das pedras, visvel a um e outro profeta.

    Mas nada abalar a espcie: a vida tambm foi vista como um fio de gua no

    meio das pedras. S que no se podia distinguir os fios e as guas que conversavam entre si, sem preconceito. E at moravam juntos, vez e outra.Depois minha morte vai amadurecer de novo mas no ser da mesma nature-

    za. E aprenderei a falar com o mundo.E o mundo vai amadurecer como uma pra e depois vai vir uma semente com

    o mesmo nome. Porm, j serei eterno.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    O que do homem

    Carlos Nejar

    O que do homemningum lhe tira.

    O rosto gumedentro do gesto.Ningum lhe tira

    O gesto exatodentro da morte.Ningum lhe tira.

    A morte semprena noite fundae o vio acesode sua luta.

    EntreatoCarlos Nejar

    Testemunhei o desconcertomeu e de todos;no escondi o logro.

    Se nunca me rendi,somente desarmeio que perdi.

    Nada retirei

    dos arsenaisa no ser(por meu mal)este revlversem balas,calibre de horaspadecidase um coldrede ambies.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Sim, muito trabalheipor natureza e lei.Medir no aprendi:

    a morte, a vida.

    Por isso jazo aqui.

    Infindvel solo ou a ordem dos planetas

    Carlos Nejar

    Embora preso ao pampa,eu sempre fui sem ptriaou acostumei-me ingrata

    volpia de ir seguindo.No parava na falta.Parava, onde soa.

    Parava de ir partindo.Tinha casa na alvasem rede, pelo instinto

    de pescador ao eito.Pr o espinhel de almaou ento fisgar o peixe

    sem portulano, ondeo dia em ns confundeas ps de espuma e o rude

    repasto das correntese a luz o peixe arfantee o peixe morde a sede.

    E eu morderei o instanteigual a um po. Me rendoa cada rio ou monte,

    s rvores, ao hlitodo diamante clridoque no sereno arpeja.

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    Mas no me rendo luta,ou dissipada urna,que a noite faz da lua.

    Transmudo-me, oscilante.No sou eu mesmo nunca,nem mesmo eu era antes.

    Sem ptria e circunspecto,fui tantos, nenhum gestopegava-me no engenho

    de construir-me, sendo,com calas de palavras

    e palets, crepsculos

    que urdem os minsculosestatutos da sombra.Mas construir, nos funda.

    E o que me contentavano vinha da estranhezaou pramos, das cores

    ou suas flores mudas.

    Aperfeioava as dvidasem (g)alas de lembrana.

    Aperfeioava a vidanas ddivas e usanasde cada coisa minha

    ou tua ou nos penedosou lgida espessurade ir ardendo. Herdo

    a natural brandurade quem, no tendo ptria, ptria o que acompanha:

    o penso fecho, a tardee os meus sapatos tardose os altos olhos secos

    e o que caduca e vencea glria ou em glria geme.A ordem dos planetas

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    ptria. Onde no chegaa viandante instncia

    deste vagar plangente.

    Quem apartar a infncia,pode ser dela, ao menos,absorto na fragncia

    de seus campos amenos ?E to restrito o cantoquando da ptria pende

    e reticente o verso.

    Embora ao pampa preso,em que ptria sustenho

    os teus olhos ulmeirose os tordos pensamentos ?Sou pouco, parco e atento.

    No muito amar, aprendoa lngua dessa ptria.Aos pssaros escrevo

    no ar: " ptria rdua".Ou "excelsa liberdade"- segredo para as vastas

    afluncias da noite.Ou fidente flauta,gracioso tom que sigo.

    Sonata de colheitase ondulantes juzos.O meu pas onde.

    E quando no entendo,ou quando em mim consentemdescansar os viventes,

    os pasmados rebanhos.Pode ter ptria, aqueleque no a pe no tempo ?

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Ou ptria, o banimento,o reluzente plio

    de que a verdura aclara

    em soberana estrela ?A ululante mquina,que se emperrou, girante

    onde jamais se achara,rangente e mais amara ?O enferrujado eixo

    de tmida memria ?

    Acostumado incautavolpia de ir partindo,

    onde pas me calo.No sou mais forasteiro.Alm de mim, te afago.

    Acalmo, palpo, cheiro. forasteiro o tempo, forasteira a morte.

    O meu pas quandos alcancei, sonhando.E por te amar, contento,

    ali, se resplandeceVsper e o largo oceano.E tanto o que te amo,

    que j perdi a fontedo ar de ir deitandoas guas e os sossegos.

    Infindvel o solo. quando quando quando.Por onde nunca morro.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    O Bufo "El Primo" - Dom Diego de Acedo (Velasquez)

    Carlos Nejar

    Penria, penria, penriado homem. O riso - a mais forte.Nenhuma rocha resistea esta dor informede bufo, entreos grandes da corte.

    Impune e ano, folheiaeste livro e resumeno gesto da mo ,o pesadume, o pesadelode acordado sono.

    Preto o chapu, pretose esconde o cognome,El Primo . O que decifrouos seus mortosat o azedume.E se inteiroudo espetculo.

    O que esgotouo provado e o sabido.O que aprendeu,esquecendo. O que vaino ltimo espao.

    E h muito est morto.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Nossa a misria

    Carlos Nejar

    Nossa a misria,nossa a inquietao incalculvel,nossa a nsia de mar e de naufrgios,onde nossas razes se alimentam.

    Em vo lutamoscontra os grandes signos.Seremos semprea mesma folhagemde madrugada ausente.O mesmo aceno imperceptvelentre a janela e o sonho.A mesma lgrimano mesmo rosto vazio.A mesma frasedentro dos mesmos olhossob a fonte.

    Seremos semprea mesma dor ocultanas rvores, no vento.A mesma humilhaodiante da vida.

    A mesma solidodentro da noite.

    A mesma noite antigaque separaa semente do frutoe amadureceos lbios para a mortecomo um rastode silncio no mar.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Lisura

    Carlos Nejar

    Entras na morte,como se entra em casa,desvestindo a carne,pondo teus chinelose pijama velho.

    Entras na morte,como algum que partepara uma viagem:no se sabe o nortemas comea agora.

    Entras na morte,sem escuros,sem punhais ocultossob o teu orgulho.

    Entras na morte,limpode cuidados breves;como algum que dormena varanda enorme,entras na morte.

    Entre as cinzas

    Carlos Nejar

    Confesso s formigasas cruas penas e elasna terra da noite lerdaSero futuras amigas

    e confidentes. Meu corpopoder falar as ternascoisas que nos ignoram.S falarei com meu corpo,

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    que a alma estar longe.E as formigas no precisamque alma exista. Cotovias

    da escurido, sabidas,

    mnimas, deixam suas folhasno formigueiro. Entre as cinzas,o p se encher de falas.E minha boca de formigas.

    Aventura

    Carlos Nejar

    Aventura humana: a esperana.No h outra couraaou fortuna.

    A mancha de sangueera a esperanade que estivesse vivo.A chegada de uma carta

    sbitarodeada de vento.

    Quem cavar o seu murosaber que resistimos.

    Levanta o rosto, amada.Levantamos. A esperana um cercado de bois.Depois se alastra.

    Nicanor e seu cavaloCarlos Nejar

    Nunca vi ningum olharcom tal ternura um cavaloe um cavalo navegarnos seus olhos, desvi-lopara dentro, onde mare o mar, apenas cavalo.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Nunca vi ningum olharNicanor naqueles olhos

    que pareciam findaronde os espaos se foram.Nicanor sabia olharsem o menor intervalocomo lhe fosse apanhara toda brida, os andares.

    E se podiam falarnum trote pequeno ou largo,com rdea de muito amparo,o corpo estando a montar

    a eternidade cavalo.

    A chuva do Velho TestamentoCarlos Nejar

    "Estou dentro da luz que avana"

    azim Hikmet

    Encontrei a almana infncia.Fomos juntos crianas.E podia invent-laou ser alegre riana desprumada flautado sol.

    Encontrei a almana infncia.A inocncia, arcada aliana enferrujadapela chuva do Velho Testamento.Madurou, envelheceu?Encontrei-a solvel,apressada.Nem conversamos.Foi algumque muito amei.E s me levantei,quando a vi levantada.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    2.

    E me enredei num fio

    que no tem fim.

    o comeo de Deusaquele rio.

    No se sabia onde a cabeceiraou a foz do texto.amos apenas.

    3.

    Deus vontadede estar to pertoque s capinano amor ou dentrodo pensamento.

    O seu semblante ser o campo.

    Se o distinguimos,estamos diante

    de nosso rosto.

    4.

    Deus no a palavra Deuse andorinha,a palavra andorinha.

    H um pooque no entrana palavra poo.

    E Deus tudo isso.

    5.

    Deus era a selvaonde cresci.A teologia me espiavapela fresta de uma palavra.

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    Criei tamanhoe fui medido em plantas,pedras.

    Selva selvagem, Deuse eu me abeiravade sua densidade.E s vezes Deus pousavanuma clareirasob o dedal do dia.

    Caava borboletasem Deus.

    De fauna e florame cobria:os panos da linguagem.De fauna e flora, DeusMargem nenhumaa separar a identidade.

    E a tudo o amor ouvia.Em toda a parte.

    A idade

    Carlos Nejar

    Falou e disse um pssaro,dois sis, uma pequena estrela.Falou para que calssemose disse amor, penria, brevidade.E disse disse dissea idade da eternidade.

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    Os cavalosCarlos Nejar

    Os cavalos tinham o ardor de nuvens se empinando.Vinham, inteiros, no nitrir das tardes, junto s oliveiras.Meninos em frias, focinhavam dlias. Eram exaltados,amorveis e as ervas das crinas mugiam de verdor.As plpebras amor baixavam. E s vezes, os cavalosse riam , a dentua mostra. Coavam-se nas ancas, coma ferrugem de sediciosas vespas.Eternos, quando saltam. Ou descarregam rolos de aresbbados. Todo galope um pssaro.

    Bufo Dom Sebastio de Morra (Velasquez)

    Carlos Nejar

    Duas vezes ano entreo existido e o ser,na estatura e nos tocosde vela das mos

    sob o casaco, embutidos.Como se subitamentepudessem descer num desvoou fenecer. E a memrianada mais recordasse.

    Viver era carregar fraesde esquecimento, os captulosde lucidez demasiada, a dbiae monstruosa natureza.

    Tantas vezes bufo, quantoseu rosto abismo, quantodanava perante o monarcasilente, quanto danavaa agonia de um animalesfaqueado na tardee vazando com as cargasao dia seguinte.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Bufo sempre do dia seguinte,da seguinte esperana,da hora, do alento

    que teimava em vir.E o frentico risode palavras no pertencentes ordem, reino, alfabticamanso dos dicionrios.

    E at as solas dos sapatosexpostas, a sola das humanasdevastaes, a sola do desastreanunciado entre os vivos,as solas de outro pai esvoaante,

    onde cabem seus ps bufesda eternidade.

    Clara ondaCarlos Nejar

    Este amor em meadas e triciclosque nunca se divide, confluindoe torna noite este sapato findoe o firmamento, silencioso ciclo.

    Este amor em meadas, infinito.Em meadas de orvalho, desavindo,em meadas e quedas, rugas, trincose rusgas, trinos, pios e sis contritos.

    Este amor me retece e configura.Tem pressa de crescer, fogo calado.Apenas queima, quando no se apura.

    Parece interminvel, quando tomba.E s se apura, quando despertado.Dissolvido me solve em clara onda.

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    FamliaCarlos Nejar

    Nossa famlia: as estaes.Nada sobrado que julgam seras propriedades.

    O corpo, a alma,apenas usufruto.Tambm os meus deveres.

    S o amor nosso.

    E o soluo.

    Cantata em rodas plumasCarlos Nejar

    O amor armou a clavada tarde e seu alarme.Quer, albatroz, levar-meonde alcanam suas asas.

    Vem, ditoso, acordar-me.Quer nos levar nas rodasdas plumas e avalanches.Ns chegaremos antes

    com jubilosas almas,que se absorvem, alvase salvas, nos redutos.De cu a cu, conceitos

    so cinzas e ferrugem.E os que se amam, pungemde amar, e mais amandoem gozo, em gozo, em bombo

    ou nos vestgios, nuvens;nos elos desta lava.Em mais amor solvemoso que se faz pequeno.

    E humano: abismo, abismo.

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    RedondelCarlos Nejar

    O corao se acrescentaao corao se acrescentaa outro e senta sob a rvore- tudo to nuvem entreum corao e outro -redondos os sins, os vos,a noite na concha

    do corao, o pampae os coraes sentadose um corao voando.

    Mudando, tudo possvelrecomear.

    ClaridadeCarlos Nejar

    O barulho de existir:um codentro de mim.

    Atravessocomo a um ptioo barulho de existir.

    Aos amigos e inimigosCarlos Nejar

    De amigos e inimigosfui servido,agora estamos unidos,atrelados ao degredo.

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    Nunca fui o escolhidoonde os deuses me puseram.Nem sou deles, sou de mim

    e dos ntimos infernos.

    No.No me entreguem aos mortos,os filhos que me parirame plasmei com meus remorsosno seu mgico convvio.

    De amigos e inimigosfui servidoe com to finada vida

    e alegados motivos,que ao dar por eles, j partirae quando dei por mim, no estava vivo.

    DisciplinaCarlos Nejar

    Ordenar a morte,pr os objetosda sobrevivncia,onde o amor slido,prateleira acesa.

    Ordenar a morte ,ruflando-a, coesa,contra o sul, o nortee outras redondezas,ruflando-a, ruflando-ae que nada sobrede seu rude golpe,salvo referncias.

    Ordenar a mortee aceit-la,nesgaa nesga, vala,descuidada telha,chuva que no tarda.

  • 7/23/2019 CARLOS NEJAR Antologia Potica

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    Ordenhar a morte,desanim-la,comprimir as tetas

    de sua treva.

    Cora sob a seta,sim, desanim-la,que ela em ns se esgote,mesmo quando cresa.

    Ordenar a morte.

    Pedra-ventoCarlos Nejar

    O vento lavou as pedras,mas ficaram as palavras.O vento lavou as pedrascom sabor de madrugada.

    O vento lavou as noites,mas ficaram as estrelas.

    O vento lavou a noitecom gua lmpida e mansa.Mas no lavou a salsugem.

    O vento lavou as guas,mas no lavou a inocnciaque amadurece nas guas.

    O vento lavou o vento.

    Luiz Vaz de CamesCarlos Nejar

    No sou um tempoou uma cidade extinta.Civilizei a lnguae foi reposta em cada verso.E fome, condenaram-me

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    os perversos e algunsdos poderosos. Ameia ptria injustamente

    cega, como eu, numdos olhos. E no pdever-me enquanto vivo.Regressarei a elacom os ossos de meu sonhoprecavido? E o idiomano passa de um poemasalvo da espumae igual a mim,bebidopelo sol de um pasque me desterra. E agora

    me ergue no Conventodos Jernimos o tmulo,quando no morri.No morrerei, noquero mais morrer.Nem sou cativo ou mendigode uma ptria. Mas da lnguaque me conhece e espera.E a razo que no me dais,eu crio. Jamais penseiser pai de tantos filhos.

    O Campeador com as rdeas do tempoCarlos Nejar

    Quando os ventos chegaremna terra forte,quando as nuvens rolaremsobre as nuvense o vento se deslocarsobre o vento,o sonho tombar o sonho,reverdecendo.

    Quando o vento se deslocarsobre o ventona terra forte,os homens sero setas no tempo.O tempo destila o tempo.

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    II.

    Os ventos sero asas,

    os homens sero ventos,as noites sero as noitesdentro das noites,as casasdentro dos homens,o tempo.

    A morte sempre vivida vida multiplicada.

    III.

    Nada,nem a lentido do drama,o curto espaoem que habitava,o fio da espada,nem os trpicos,nada embaciavaaquela onda :o Cavaleiro e sua jornada.

    IV.

    As pedras se transformamem astros longe ventando,os pssaros retomamos horizontes de vento.

    As noites passamdentro das noitese os ventos dentrodos ventos.

    A morte sempre vivida vida multiplicada.

    V.

    O vento o vento ,a vida noitecheia de ventos,porm ao ventocomo encontr-lo ?

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    Na sombra branca ,na sombra branca,na sombra branca de seu cavalo.

    VI.

    O vento o vento;as crinas no rompemo silncioe ao seu galoperetumba a gua,prossegue sempre,at que o tempodesmonte a morte,

    no seu galope,desmonte o tempo.Prossegue sempre.

    VII.

    Quando os ventos forem caminhose os ventos-ventos forem sementes,quando os cavalos forem moinhose a noite negra for transparente.

    Quando os ventos forem caminhos,quando os barcos forem poente,quando os cavalos forem moinhos,moendo a noite tranquilamente.

    Quando os ventos forem caminhos,a vida cheia de ventosna vida feita semente,moendo o jugo com seus dentes.

    Quando os ventos forem caminhos,

    seremos ventos e ninhos,sombras esguias, ventos-moinhos,moendo a noite nos seus caminhos.

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    Os mortos - eu os vi - na primaveraCarlos Nejar

    Os mortos - eu os vi - na primavera.Ressurgiam dos corpos. Eu os vi.A primavera comeava nelese terminava onde a alma estava.

    Os mortos- eu os vi- iam descalosna primavera, iam libertados.Nada tolhia, nada separavaos ps das coisas vivas.

    Os mortos - eu os vi- no tinham rostonem nome.Eram muitos.Num s se acrescentavam.Eram muitos e vivos.Perguntei-lhespor onde a primavera se alongava.

    Os mortos - eu os vi - na primavera.O sol dobrava neles os seus frutos.O sol entrava neles. Eram larvas.

    Paiol da AuroraCarlos Nejar

    Colocaste este nomena casa. E eramais nua que a ondana gua.

    Como podemas coisas existir,sem afago?Paiol como anotaste a luzque se despe de amor.

    E arders no coraodesta enseada em concha.

    At o Pontaldo derradeiro orvalho.

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    II.

    Os morangos tinhamidades em ti. Mas a almano.

    O cu como uma rodalacerava o eixo azule no dormiano dormia.

    Nem tu, que estavas nelagirando e envelhecendo.

    Com seu ronco de boto,pesava-te ao pescoo o sol.

    No, no te escapas:pertences mesma raa.

    III.

    As castanheiras se tornam imensas,ao toc-las. Imensas

    e esqueces as diferenasde infncia e cor.At que o pintassilgolevante em trompao bico.E caiassob o pesode conselhos, juzos.

    Caias sob o cantoque leva flor ao cimo.E a gua do mar gritava

    e chamavas sem doloo nome das coisas.

    Todas ficavam em flor.

    IV.

    No s senhor de rvore,pedra ou dos risde gua, junto praiadesta mnica de espuma,

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    com os ns pelo ar, parados.

    E as cordas das fundas estrelas.

    No s dono nem de tuasdvidas. Nem o oceanode olhar-te, conhecetuas feies.

    E os amantes se querem maispelas estranhezas, que asdescobertas.Nem so donosdo que os invade.

    Pontal de guas claridades!

    V.

    Em novelo, como os cese as crianas adormeces.Basta o assobio e o maravana.Basta deixara vida sob o paiol,sozinha e ento,possu-la: mais grata

    e rara. Apetecida.

    VI.

    Viver estar acordadoe acordar. E comero po, beber a brancaalegria, deitarcom as lavas.

    E no tempo ajustado

    pela alma, ergueras asas.

    VII.

    Os olhos voaro,os braos e os psvoaro.

    E pela sacadade mel, no h

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    alma que no voe.

    E o cu coado

    entorna fluvo,uivo: em decibis,como um tonel,o anel intransponvelde gaivotas.

    VIII.

    A roda de Deusnos toca.E vives

    com um ramode amanhecerna boca.

    Soneto aos Sapatos Quietos

    Carlos Nejar

    Os ps dos sapatos juntos.Hei-de cal-los, soltose imensos, e talvez rotos,como dois velhos marujos.

    Nunca tero o desgostoque tive. Jamais o sujodesconsolo: estando postos,como eu, em chos defuntos.

    Em vos de flor, sem o riachode um p a outro, entre guizos.No h demncia ou fome.

    Sapatos nos ps no comem.S dormem. Porm, descalopela alma, o paraso.