293
CIÊNCIA POLÍTICA PAULO BONAVIDES ORELHA: PAULO BONAVIDES é Doutor honoris causa pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Professor Emérito da faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará; Professor Visitante nas Universidades de Colonia (1982), Tennessee (1984) e Coimbra (1989); Lente no Seminário Românico da Universidade de Heidelberg (1952-1953); Membro Cor- respondente da Academia de Ciência da Renânia do Norte-Westfália (Alemanha); Membro Correspondente do “Instituto de Derecho Constitucional y Político”, da faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina; Membro Correspondente do Grande Colégio de Dou- tores da Catalunha (Espanha); Membro do Comitê de Iniciativa que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional (Belgrado); Membro da “Association Internationale de Science Politique” (França), da “Internationale Vereinigung fuer Rechtsund Sozialphilosophie” (Wiesbaden, Alemanha), da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, do Instituto Ibero-americano de Direito Constitucional, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros; “Niemann fellow-Associate” da Universidade de Harvard (1944-1945); prêmio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras (1948) e Prêmio Medalha Rui Barbosa da Ordem dos Advogados do Brasil (1996). Dentre suas obras cabe destacar: Curso de Direito Constitucional (10 a ed., 2000); Teoria do Estado (3 a ed., 1995); Reflexões - Política e Direito (3 a ed., 1998); A Constituição Aberta (2ª ed., 1996); e Do Estado Liberal ao Estado Social (6 a ed., 1996), todas por esta Editora, além de Política e Constituição: os Caminhos da Democracia (1985) e Constituinte e Constituição (2 a ed., 1987). CONTRA CAPA: CIÊNCIA POLÍTICA - Paulo Bonavides: Esta edição, revista e atualizada, é um acontecimento de relevo na bibliografia política do País. Raramente uma obra desse gênero, versando a temático da ciência do governo, teve tão vasta aceitação no meio universitário brasileiro quanto esta do Professor Paulo Bonavides. Desde muito, ela se tornou uma espécie de vade me- cum dos estudantes de Ciência Política. Vazado em linguagem límpida e elegante, transcendeu as estantes de toda uma geração de alunos das nossas Universidades até lograr, com igual êxito e abrangência, a familiaridade de um círculo cada vez mais amplo de leitores, em todos os meios cultos, onde o interesse pelo fenômeno político e pelo destino das instituições que nos governam é preocupação de cada dia. Clássica, didática e atraente, esta obra faz jus ao pres- tígio e influência de que desfruta, tanto nas esferas acadêmicas como noutras faixas do público volvido para essa matéria, sem dúvida fascinante. Quanto ao Autor, trata-se de um publicista consagra- do, nacional e internacionalmente, figurando, sem favor, como disse o Ministro Oswaldo Trigueiro, entre os precursores da Ciência Política em nosso País. 10ª edição (revista, atualizada) 9 a tiragem CIÊNCIA POLÍTICA © PAULO BONAVIDES . ISBN 85-7420-023-9 Direitos reservados desta edição por MALHEIROS EDITORES LTDA. Fax: (0xx11) 3849-2495 URL: www.malheiroseditores.com.br e-mail: [email protected] Composição Helvética Editorial Ltda. Capa Vânia Lúcia Amato 1

Ciencia Politica de Paulo Bonavides

Embed Size (px)

Citation preview

  • CINCIA POLTICAPAULO BONAVIDESORELHA: PAULO BONAVIDES Doutor honoris causa pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

    Professor Emrito da faculdade de Direito da Universidade Federal do Cear; Professor Visitante nas Universidades de Colonia (1982), Tennessee (1984) e

    Coimbra (1989); Lente no Seminrio Romnico da Universidade de Heidelberg (1952-1953); Membro Cor-

    respondente da Academia de Cincia da Rennia do Norte-Westflia (Alemanha); Membro Correspondente do Instituto de Derecho Constitucional y Poltico, da

    faculdade de Cincias Jurdicas e Sociais da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina;

    Membro Correspondente do Grande Colgio de Dou-tores da Catalunha (Espanha); Membro do Comit de Iniciativa que fundou a Associao Internacional de

    Direito Constitucional (Belgrado); Membro da Association Internationale de Science Politique

    (Frana), da Internationale Vereinigung fuer Rechtsund Sozialphilosophie (Wiesbaden, Alemanha), da Academia Brasileira de Letras Jurdicas, do Instituto Ibero-americano de Direito Constitucional, da Ordem

    dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados Brasileiros; Niemann fellow-Associate da

    Universidade de Harvard (1944-1945); prmio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras (1948) e

    Prmio Medalha Rui Barbosa da Ordem dos Advogados do Brasil (1996).

    Dentre suas obras cabe destacar: Curso de Direito Constitucional (10a ed., 2000); Teoria do Estado (3a ed., 1995); Reflexes - Poltica e Direito (3a ed., 1998); A Constituio Aberta (2 ed., 1996); e Do Estado Liberal ao Estado Social (6a ed., 1996),todas por esta Editora, alm de Poltica e Constituio: os Caminhos da Democracia (1985) e Constituinte e Constituio (2a ed., 1987).

    CONTRA CAPA: CINCIA POLTICA - Paulo Bonavides:

    Esta edio, revista e atualizada, um acontecimento de relevo na bibliografia poltica do Pas. Raramente uma obra desse gnero, versando a temtico da cincia do governo, teve to vasta aceitao no meio universitrio brasileiro quanto esta do Professor Paulo Bonavides.Desde muito, ela se tornou uma espcie de vade me-cum dos estudantes de Cincia Poltica. Vazado em linguagem lmpida e elegante, transcendeu as estantes de toda uma gerao de alunos das nossas Universidades at lograr, com igual xito e abrangncia, a familiaridade de um crculo cada vez mais amplo de leitores, em todos os meios cultos, onde o interesse pelo fenmeno poltico e pelo destino das instituies que nos governam preocupao de cada dia.Clssica, didtica e atraente, esta obra faz jus ao pres-tgio e influncia de que desfruta, tanto nas esferas acadmicas como noutras faixas do pblico volvido para essa matria, sem dvida fascinante.Quanto ao Autor, trata-se de um publicista consagra-do, nacional e internacionalmente, figurando, sem favor, como disse o Ministro Oswaldo Trigueiro, entre os precursores da Cincia Poltica em nosso Pas.

    10 edio(revista, atualizada)

    9a tiragem

    CINCIA POLTICA PAULO BONAVIDES

    .

    ISBN 85-7420-023-9

    Direitos reservados desta edio porMALHEIROS EDITORES LTDA.

    Fax: (0xx11) 3849-2495URL: www.malheiroseditores.com.br

    e-mail: [email protected]

    Composio Helvtica Editorial Ltda.

    CapaVnia Lcia Amato

    1

  • SUMRIO

    APRESENTAO ............................................................................................................................................... 3 1 . CINCIA POLTICA ..................................................................................................................................... 4 2 . A CIENCIA POLTICA E AS DEMAIS CINCIAS SOCIAIS .................................................................... 17 3 . A SOCIEDADE E O ESTADO ...................................................................................................................... 22 ...................................................................................................................... 30 4 . POPULAO E POVO ................................................................................................................................ 31 5 . A NAO .................................................................................................................................................... 38 6 . DO TERRITRIO DO ESTADO ................................................................................................................... 43 7 . O PODER DO ESTADO ............................................................................................................................... 55 ...................................................................................................................................................................... 57 8 . LEGALIDADE E LEGITIMIDADE DO PODER POLTICO ......................................................................... 58 ....................................................................................................................................................... 64 9 . A SOBERANIA ............................................................................................................................................ 65 10 . A SEPARAO DE PODERES .................................................................................................................. 73 11 . O ESTADO UNITRIO .............................................................................................................................. 82 12 . AS UNIES DE ESTADOS ....................................................................................................................... 88 .............................................................................................................................................................. 101 13 . O ESTADO FEDERAL ............................................................................................................................. 102 14 . AS FORMAS DE GOVERNO .................................................................................................................. 111 15 . O SISTEMA REPRESENTATIVO ............................................................................................................ 117 ............................................................................................................................................. 133 16 . O SUFRGIO .......................................................................................................................................... 134 17 . OS SISTEMAS ELEITORAIS .................................................................................................................. 146 18 . O MANDATO .......................................................................................................................................... 154 19 . A DEMOCRACIA .................................................................................................................................... 159 20 . OS INSTITUTOS DA DEMOCRACIA SEMIDIRETA .............................................................................. 169 21 . O PRESIDENCIALISMO ........................................................................................................................ 178 22 . O PARLAMENTARISMO ........................................................................................................................ 194 23 . OS PARTIDOS POLTICOS ..................................................................................................................... 210 24 . OS SISTEMAS DE PARTIDOS ................................................................................................................ 222 25 . O PARTIDO POLTICO NO BRASIL ....................................................................................................... 232 26 . REVOLUO E GOLPE DE ESTADO ..................................................................................................... 248 27 . OS GRUPOS DE PRESSO E A TECNOCRACIA .................................................................................. 264 28 . A OPINIO PUBLICA ............................................................................................................................. 277

    2

  • APRESENTAOO Professor Paulo Bonavides, da Faculdade de

    Direito da Universidade do Cear, figura, sem favor, entre os precursores da Cincia Poltica em nosso pas. Os vrios trabalhos que tem publicado, principalmente esta Cincia Poltica, so brilhante atestado de ntida vocao universitria, a servio de uma especialidade acadmica que, cada dia, se torna mais importante no plano do ensino superior.

    Desde os gregos, os fatos relativos ao governo da sociedade humana vm sendo objeto de estudos, em que se destacaram filsofos e pensado-res que exerceram influncia profunda e duradoura na cultura ocidental. Mas a concepo de uma cincia particular, nesse campo, de data recente. aos anglo-saxes que devemos a prioridade na fixao de seu contedo e na definio de seus propsitos. Tanto na Gr-Bretanha como nos Estados Unidos, os fatos relacionados com a formao e o funcionamento do governo as ideologias, os partidos, as eleies, os sistemas de organizao do Estado vm sendo, desde o sculo passado, objeto do ensino e pesquisa, em numerosas universidades. O empirismo do ensino jurdico naqueles pases, certamente ter concorrido para o desenvolvimento desses estudos, fora do mbito das escolas de direito.

    Nos pases latinos, a comear naturalmente pela Frana, somente a partir da ltima guerra que se vm retirando os estudos sobre o Estado e o governo da rbita do direito constitucional, a que estiveram por longo tempo relegados.

    Como observa Maurice Duverger, a nova orientao do ensino universitrio produziu duas conseqncias fundamentais. Por um lado, j no se estudam apenas as relaes polticas disciplinadas pelo direito positivo, mas tambm as que como os partidos, a opinio pblica, a propaganda, os grupos de presso existem, como at h pouco ocorria, inteiramente margem da lei. Por outro lado, operou-se sensvel modificao no prprio campo do ensino tradicional, de vez que as instituies de governo j no so apreciadas apenas sob o ngulo jurdico. Tornou-se necessrio verificar em que

    medida elas funcionam de conformidade com o direito estabelecido, e at que ponto seu funcionamento transcorre fora do quadro legal. Passou-se, sem dvida, a dar mais importncia aos fatos do que a textos artificiais, freqentemente divorciados da realidade poltica.

    O objeto da Cincia Poltica, de certo modo, ainda o de Aristteles. Mas a configurao de uma disciplina universitria, para o nosso tempo, pressupe orientao metodolgica e objetividade de pesquisa compatveis com as exigncias da cincia moderna.

    Decerto, a Cincia Poltica opera sobre terreno que, alm de movedio, ainda no est perfeitamente delimitado. Como assinala o Professor Bonavides, ela ainda assenta em conceitos polmicos no s quanto ao mtodo como tambm quanto definio de seu objetivo.

    O livro que ele agora publica representa valiosa contribuio para o desenvolvimento da Cincia Poltica em nosso pas, onde o ensino da especialidade, ainda preso ao currculo jurdico, prejudicado por deficincias notrias.

    D-nos o Professor Bonavides, neste seu excelente livro, uma segura viso do progresso da Cincia Poltica nos pases onde ela est mais adian-tada, particularmente quanto doutrina alem, que , para ns, a menos acessvel.

    Pela clareza expositiva e pelo seguro domnio da matria, o novo livro do Professor Bonavides parece-me destinado a ampla aceitao e larga influncia nos meios universitrios brasileiros. , assim, um livro que honra a Universidade do Cear, conhecida por seu esprito renovador e que conta com professores da mais alta qualificao como o Professor Bonavides, para o adequado desempenho de sua misso cientfica e cultural.

    OSWALDO TRIGUEIRO

    3

  • 1 . CINCIA POLTICA

    1. Conceito de Cincia 2. Naturalistas versus idealistas (espiritualistas, historicistas e culturalistas) 3. A Cincia Poltica e as dificuldades terminolgicas 4. Prisma filosfico 5. Prisma sociolgico 6. Prisma jurdico 7. Tendncias contemporneas para o tridimensionalismo.

    1. Conceito de Cincia

    De Aristteles a Kant no se faz atenta discriminao entre os conceitos de cincia e filosofia.

    E quase se pode dizer que a separao conceitual pertence idade moderna. S se vai tornar consciente na medida em que aumenta o hiato entre as posies metafsica e naturalista, por conseqncia da crise havida nos estudos filosficos, desde o Renascimento, quando Bacon e Aristteles se definiam como plos opostos da reflexo filosfica.

    De um lado, a atitude escolstica, espiritualista, de razes crists, aristotlicas e platnicas.

    De outro, o comeo da atitude que seculariza o pensamento filosfico em escolas recentes, as quais s chegam, no entanto, ao pleno amadu-recimento de suas teses mais professadamente antiespiritualistas depois da abertura de horizontes pela filosofia kantista.

    Com efeito, foi a filosofia crtica que, embora confessadamente idealista, determinou, pela ambigidade de interpretaes a que deu lugar, os impulsos e sugestes indispensveis de onde saram concepes de todo opostas ao idealismo.

    A cincia, segundo Aristteles, tinha por objeto os princpios e as causas.

    Santo Toms de Aquino, por sua vez, a definiu como assimilao da mente dirigida ao conhecimento da coisa (Summa contra Gentiles, 1 II,

    cap. 60).Viu Bacon na mesma a imagem da essncia e

    Wolff declarou que por cincia cumpre entender o hbito de demonstrar assertos, isto , de inferi-los, por conseqncia legtima, de princpios certos e imutveis.

    Tudo que possa ser objeto de certeza apodtica cincia para Kant.

    A este conceito acrescentou outro, mais em voga, j de todo desembaraado de implicao filosfica, e a que no haviam chegado, com mxima clareza, os seus predecessores.

    Com efeito, diz Kant nos Elementos Metafsicos das Cincias da Natureza que por cincia se h de tomar toda srie de conhecimentos siste-matizados ou coordenados mediante princpios.1

    Depois de Kant, com a ao intelectual dos positivistas e evolucionistas, torna-se cada vez mais preciso o conceito de cincia, ficando quase todos acordes em design-la como o conhecimento das relaes entre coisas, fatos ou fenmenos, quando ocorre identidade ou semelhana, diferena ou contraste, coexistncia ou sucesso nessa ordem de relaes.2

    A caracterizao da cincia implica, segundo inumerveis autores, a tomada de determinada ordem de fenmenos, em cuja pluralidade se busca um princpio de unidade, investigando-se o processo evolutivo, as causas, as circunstncias, as regularidades observadas no campo fenomenolgico.

    Com Spencer baqueiam todas as vacilaes e dificuldades porventura ainda existentes. Sua frmula de caracterizao das mais perfeitas, simples e ntidas que se conhecem.

    H, segundo ele, trs variantes do conhecimento: conhecimento emprico ou vulgar, conhecimento no unificado; conhecimento cientfico, conhecimento parcialmente unificado e conhecimento filosfico, conhecimento totalmente unificado.

    Com Littr a reduo conceitual de Spencer acerca dos distintos ramos do conhecimento reaparece na bela frase que os compndios usual-mente reproduzem: a cincia a generalizao da experincia, e a filosofia, a generalizao da

    4

  • cincia.As quatro cincias fundamentais que a

    inspirao positivista, evolucionista e pragmatista do sculo XIX aponta como classificao inabalvel seriam: a Fsico-Qumica, que estuda os fenmenos do mundo inorgnico; a Biologia, que se ocupa dos fenmenos do mundo orgnico; a Psicologia, que abrange os fenmenos do mundo psquico, e a Sociologia, que trata dos fenmenos do mundo social.

    Separada a cincia da filosofia, sem graves atritos, aparecendo a primeira como ordem de conhecimentos parcialmente unificados e a segunda como conhecimento completamente unificado dos fenmenos que servem de objeto a toda atividade cognoscitiva, resta saber se ponto pacfico a classificao das cincias da resultante.

    Aqui temos outra vez o cisma entre espiritualistas e positivistas, pois ao lado da classificao de Comte Pai do Positivismo concorre outra, no menos difundida, que a classificao dos filsofos neokantistas, da escola de Baden.

    Segundo Comte, as cincias so abstratas e concretas. As abstratas, na explicao de Stuart Mill, referida pelo professor Joaquim Pimenta,3 so aquelas que se ocupam das leis que governam os fatos elementares da natureza, ao passo que as concretas, como cincias tributrias, ou secundrias, se referem a aspectos particulares dos fenmenos, por exemplo, a geologia, a mineralogia em relao fsica e qumica, a botnica e a zoologia, em relao biologia, e assim por diante.4

    No Curso de Filosofia Positiva as cincias abstratas so apresentadas de forma hierrquica, segundo a ordem de generalidade e simplicidade decrescente e a ordem da complexidade e especializao crescente. As cincias, do modo como as disps Comte, vm seriadas de tal sorte que a cincia seguinte depende da antecedente, no sendo porm a recproca verdadeira. ordem lgica se acrescenta a ordem valorativa, isto , das cincias inferiores se passa s cincias superiores, segundo o grau de importncia humana progressiva.5

    A unidade das cincias do mundo com as cincias do homem perfeita, figurando as ltimas no grau mais

    elevado de dignidade do conhecimento, onde os fenmenos fenmenos da sociedade so, pelo seu mximo teor de complexidade, os mais difceis de prever e os mais fceis de modificar, obrigando o cientista verdadeiro ao estudo prvio das primeiras cincias da srie, at que lhe permita o acesso ao ramo mais nobre da cincia a Sociologia, cincia da humanidade, Coroamento de toda a formao cientfica.

    As seis cincias fundamentais do Curso de Filosofia Positiva de Comte so a Matemtica, a Astronomia, a Fsica, a Qumica, a Biologia e a So-ciologia. Por volta de 1850, acrescentou Comte uma stima cincia fundamental a Moral. Com respeito a esse prolongamento da srie por Comte, escreve Laubier: Tendo por objeto o estudo do indivduo, co-mo a Sociologia o da Humanidade, a Moral considera no homem, no somente a inteligncia e a atividade, como a Sociologia, mas tambm o sentimento. Desta sorte a cincia mais complexa, a nica completa, porquanto verdadeiramente concreta: considera seu objeto, o indivduo humano, em sua totalidade, ao passo que as demais no conservam seno certas propriedades dos seres com abstrao dos demais.6

    A cincia, tomada pela valorao positivista, est acima da filosofia, na medida em que esta se confunde com a metafsica.

    A lei dos trs estados ou lei da evoluo, que Augusto Comte exps no tomo III do Sistema de Poltica Positiva, coloca a humanidade e o co-nhecimento em trs fases sucessivas de desdobramento: o estado teolgico, temporrio e propedutico, em que o homem busca as causas e tudo explica, na nsia de conhecimento absoluto ou supremo, pela interveno de divindades, nele imperando os telogos e militares, com o sentimento de conquista dominante em toda a sociedade; o estado metafsico, de transio, em que entidades abstratas explicam os fenmenos ou os fatos se ligam a idias, que j no so completamente preternaturais, nem simplesmente naturais, mas abstraes personificadas, dominando nesse estado intermedirio os filsofos e juristas com a sociedade animada por um sentimento de defesa; enfim, chega-se ao estado cientfico, que o estado positivo ou fsico, ponto final da escala do

    5

  • conhecimento e grau superior de formao definitiva da cincia, com o imprio dos sbios, cientistas e tcnicos, com o abandono das antigas preocupaes de conhecimento absoluto pela investigao das causas, to caracterstica dos dois perodos antecedentes, com a limitao da inteligncia ao conhecimento relativo, que permite a formao da cincia e a verificao das leis. A a razo humana, tendo deixado de parte a fico dos telogos, do estado inicial, e desprezado a abstrao dos metafsicos, do estado intermedirio, se entrega de todo aos processos de demonstrao. O emprego desses processos fez possvel a apario da cincia, isso ocorreu no estado positivo.

    A classificao das cincias de Augusto Comte, estabelecendo a unidade do campo cientfico, no foi acolhida com entusiasmo pelas esferas idealistas da Alemanha, onde os neokantistas de Marburgo e de Baden renovaram a discusso do problema, tais as dvidas que se erguiam acerca da natureza das cincias do homem, nomeadamente as cincias histricas, do esprito, da sociedade e da cultura.

    Windelband, Rickert, Stammler, e fora daquele crculo, mas navegando tambm na corrente do idealismo, Dilthey, certificaram-se sobretudo da importncia que toma para a relao social, objeto daquelas cincias, certos dados que no entram no campo da fenomenologia da natureza e portanto das cincias naturais.

    Estes dados, operando corte dicotmico entre cincias da natureza e cincias da sociedade, vm separ-las em duas rbitas distintas e autnomas, que alguns, exagerando as implicaes da oposio idealista, tomam por irredutveis: o desenvolvimento em Windelband, a finalidade em Stammler, a von-tade em Dilthey, elementos com que o homem empresta ao fenmeno social e s relaes entre esses fenmenos certa estrutura de que carece a ordem fenomnica da natureza.

    2. Naturalistas versus Idealistas (espiritualistas, historicistas e culturalistas)

    Essa reviravolta metodolgica na

    classificao das cincias, que trouxe por resultado fecundo e imediato a retomada de prestgio das correntes idealistas, foi obra sobretudo dos filsofos j referidos: Dilthey, Windelband e Rickert.

    Logrou Dilthey na Alemanha quase o mesmo destino que Krause, fundador de escola entre estrangeiros, sagrado como mestre de juristas na Espanha e na Amrica Latina, e, no entanto, filsofo semidesconhecido e obscuro no seio de seus patrcios.

    A glria de Dilthey comeou singularmente ao enveredar ele pelos caminhos da crtica, ocupando-se, dentre outros, de Goethe e Hoelderlin. J septuagenrio deu estampa Vivncia e Poesia, obra que logrou extraordinrio xito literrio.

    O filsofo trabalhava silenciosamente na Universidade de Berlim, preso intimidade de reduzido crculo de discpulos.

    Lastima-se Ortega y Gasset que, tendo freqentado por aqueles anos do comeo do sculo referida Universidade, hajam as circunstncias con-corrido para que jamais se aproximasse da obra do mestre, a quem tantas afinidades de pensamento vieram depois prend-lo e em cujas idias con-fessadamente descobriu o seu alter ego filosfico.

    Passara Dilthey por algo parecido com o que aconteceu a Nietzsche, tomado a princpio pelos seus contemporneos como simples poeta-filsofo. A arrogante ctedra universitria da Alemanha por pouco no o ignorou totalmente. Envolveu a Nietzsche naquele gelado desprezo que s a grandeza do gnio poderia um dia romper, para da fixar-se na imortalidade e no assombro das geraes subseqentes, rendidas venerao do filsofo, do estilista, do poeta.

    V Ortega y Gasset em Dilthey o mais importante vulto da filosofia na segunda metade do sculo XIX.

    Acontece, porm, que a obra de Dilthey, graas influncia que exerceu, aos debates que provocou, intensidade com que suas teses so a cada passo reexaminadas e onde cada fragmento concentra como que um micro-mundo de idias, permitindo em toda linha e profundidade a mais ampla reaveriguao da histria, faz que ele pertena, indubitavelmente, ao quadro dos

    6

  • pensadores mais vivos que agitaram a primeira metade deste sculo.

    Naquela obra inacabada, alteia-se, sobretudo, o livro que Dilthey no pde concluir e que tantas preocupaes lhe causou no curso da vida, como espinho de frustrao, prestes sempre a mago-lo: a Introduo s Cincias do Esprito, que alis, no dizer de Ortega, sua obra capital, sua nica obra.

    De efeito, toda a fora da originalidade de Dilthey se representa naquelas pginas inconclusas, naquela obra apenas esboada, que lembra uma catedral gigantesca, cuja abbada no se fez, certo, mas cujo perfil basta j para encher-nos distncia do mais grato assombro e da mais consoladora admirao.

    O pensador filho de um sculo historicista, onde se completam imperecveis monumentos de anlise, investigao e restituio do passado, em termos de alta probidade e rigoroso labor cientfico.

    Berlim se torna o centro da cincia histrica e Dilthey, no dizer elegante de Ortega y Gasset, ouve ou trata a Bopp, o fundador da lingstica comparada; a Boechk, o arquifillogo; a Jacob Grimm, a Mommsen, ao gegrafo Ritter, a Ranke, a Treitschke. Com a gerao anterior dos Humboldt, Savigny, Nieburh, Eichhorn, formam estes gigantes a formidvel falange da chamada escola histrica.7

    Respirando essas idias, fez-se ele historiador.

    Mas o que impressiona em sua obra menos o filsofo da histria que o iniciador da reviso crtica da teoria da cincia.

    Aqui nos apartamos de Ortega y Gasset, que viu em Dilthey principalmente o historiador.

    A dimenso dos temas que ele versou do idia da envergadura necessria para um filsofo tornar-se a atual, novo, original, fecundo.

    Tudo isso Ortega y Gasset encontrou com imperfeies no pensador nervoso de idias e copioso de conceitos que foi o insigne Dilthey.

    A nosso ver porm maior ainda que o intrprete da histria o autor da nova agrupao das cincias. A profunda vocao dos estudos histri-cos f-lo ir alm dos conceitos positivistas sobre a natureza das cincias.

    Se uma idia mxima consente alis dizer

    desse crtico da razo histrica: aqui temos um gnio, essa idia no foi outra seno a que separou em duas esferas distintas as cincias do esprito das cincias da natureza.

    Dilthey aparece a para os idealistas como o valente emancipador.

    de estranhar que Ortega y Gasset, tendo reconhecido a importncia capital da Introduo s Cincias do Esprito, no se haja fixado nesse ponto, para nele firmar os crditos do historiador-filsofo s glrias da imortalidade.

    Que fez Dilthey sob esse aspecto? Que passo deu ele para iniciar e encorajar o vigoroso processo de reabilitao ulterior dos movimentos idealistas?

    Nada mais que tomar as cincias histricas, cincias do homem, da sociedade e do Estado, j ento sem arrimo filosfico, por se afrontarem, desde Hegel, com aquela crise de estrutura decorrente da enormidade do predomnio naturalista e dar-lhes ento os cimentos de nova solidez, referindo-as todas a essa categoria, que, tomando a designao ainda rstica de Cincias do Esprito, foi sobremodo aperfeioada com as correes e acrscimos de Windelband e Rickert, filsofos neokantistas da escola de Baden.

    Em discurso de posse na Academia de Cincias de Berlim, assim compendiou Dilthey as aspiraes intelectuais de sua obra: Comecei a fun-damentar as cincias particulares do homem, da sociedade e da histria. Busco-lhes o fundamento e a conexo na experincia, independente da metafsica; pois os sistemas dos metafsicos decaram, e apesar disso continua a vontade a exigir como sempre que propsitos firmes guiem a vida dos indivduos e presidam direo da sociedade.

    O sculo filosfico quis transformar a vida atravs de uma teoria abstrata e geral da natureza humana. Esta teoria mostrou-se ao mesmo tempo triunfante e insuficiente e at certo ponto eversiva na sua arrogncia. Nosso sculo reconheceu, com a escola histrica, a historicidade do homem e de toda a ordem social. Cumpre todavia levar a cabo a funda-mentada explicao das novas concepes. Exige-se o emprego de conceitos e mtodos mais apuradamente psicolgicos, que acompanhem o crescimento da vida histrica; deve-se sobretudo

    7

  • patentear e tomar na devida conta, em todas as realizaes humanas, como tambm nas da inteligncia, a totalidade da vida da alma, a ao do homem completo, volitivo, sensitivo, intelectivo.8

    teoria do conhecimento de Dilthey, como observou Glockner, se depara esse problema bsico, de cuja soluo tudo o mais depende: o do entrelaamento do mundo da experincia externa (natural) com o mundo da conscincia interna (espiritual).

    Pondera aquele moderno historiador da filosofia: Tanto do ponto de vista externo das cincias naturais como da polaridade interna das cincias do esprito possvel explicar esse entrosamento. O propsito de Dilthey assenta em demonstrar que se pode seguir este ou aquele caminho e empreender em bases empricas a anlise dos fatos da conscincia.

    Reside tambm no mago de sua posio que tanto se h-de proceder no assunto por via de sistematizao construtiva como da reflexo histrica.9

    A experincia exprime o mesmo autor tem para o cientista da natureza, s voltas sempre com realidades externas, significado inteiramente distinto daquele que toma na regio das cincias do esprito.

    Aqui, fala-nos Dilthey em palavras que Glockner transcreve textualmente: Indivduos e fatos compem os elementos desta experincia, sua natureza submerso, no objeto, de todas as foras afetivas; o prprio objeto s se constri paulatinamente sob as vistas da cincia em progresso.10

    O aforismo de Dilthey de que no vasto crculo das coisas s o homem compreensvel ao homem denota que o princpio fundamental das cincias do esprito no se confunde com o princpio que rege as cincias da natureza.

    Naquelas, que tm por escopo, segundo Dilthey, a realidade histrico-social, h compreenso; ns as compreendemos; no seu objeto a alma vive, as foras emocionais operam, a auto-reflexo como que domina. De seu contedo lgico, de suas funes racionais, quase no h que falar, pois o que importa, tocante matria social e

    histrica, captar-lhe o sentido.Nas cincias da natureza, ao contrrio, toma

    o cientista o fenmeno para explic-lo, ordenando-a habitualmente segundo a causalidade da lei que o governa.

    Clebre historiador da filosofia e fundador de uma das correntes mais fecundas da filosofia neokantista, Windelband, quando reitor da Univer-sidade de Estrasburgo, proferiu ali o clebre discurso de 1894 intitulado Histria e Cincia da Natureza, enaltecido como captulo dos mais celebrados de sua clssica e afamada obra Preldios, onde o eminente filsofo da escola de Baden, quase em concomitncia com Dilthey, interveio na questo metodolgica das cincias.

    O sentido antinmico da filosofia de Kant, filsofo de quem j se disse que depois dele nenhum princpio novo se criara, reponta na obra de Windelband ostentando aquela nitidez, que alis jamais faltou a alguns neokantistas de altssimo merecimento filosfico, como, por exemplo, no campo das letras jurdicas o insigne Gustavo Radbruch.

    A primeira antinomia de Windelband consiste no corte entre as cincias racionais filosofia e matemtica e as cincias da experincia.

    Estas, que nos interessam particularmente, so aquelas, segundo Windelband, cuja misso se cifra no conhecer determinada realidade, quando esta se faz acessvel experincia.11

    Com as palavras do filsofo, podemos dizer que nas cincias da experincia o que se busca pelo conhecimento do real a generalizao sob a forma de lei natural, ou o particular debaixo de determinada forma histrica.12

    Chega assim Windelband a nomear as primeiras, cincias das leis, as segundas, cincias dos acontecimentos; aquelas se ocupam do que sempre existe, estas daquilo que alguma vez j existiu.13

    Cunha Windelband para o pensamento cientfico novas expresses: cincias nomotticas e cincias idiogrficas.

    Mas ambas adverte sempre guardam invariavelmente esse ponto comum de contato: so cincias da experincia, o que faz que tanto o

    8

  • naturalista como o cientista social ou historiador venham das mesmas premissas, do mesmo ponto lgico de partida: as experincias, os fatos da percepo.14

    E se distanciam, por outra parte, na considerao gnosiolgica e axiolgica dos fatos.

    Um, o naturalista, vai, segundo a linguagem de Windelband, procura de leis; o outro, o historiador, de acontecimentos.

    O primeiro no se contenta com o fenmeno insuladamente, que carece ainda de valor cientfico; o segundo toma o fato como realidade j valorada em si mesma; aquele inclina o pensamento abstrao, este contemplao; ali se pedem teorias e leis, aqui valores e verdades.

    Faz ainda Windelband a ressalva de que aceitaria as designaes tradicionais de cincias naturais e cincias histricas, contanto que nessas perspectivas metodolgicas se inclusse a psicologia entre as cincias da natureza.15

    Assinala o filsofo que o dualismo por ele estabelecido puramente formal, entende com os fins do conhecimento, que num caso procura a lei geral, noutro o acontecimento histrico, particular, nada tendo pois que ver com o contedo do conhecimento em si.

    O mesmo objeto pode sujeitar-se licitamente tanto investigao nomottica como idiogrfica, sendo, por conseqncia, relativo o contraste entre o que sempre idntico e o que nico e individual.

    Tal acontece por exemplo com determinado idioma que, atravs de todas as variaes de expresso, permanece formalmente o mesmo.

    A despeito porm de toda sua unidade formal, esse idioma na vida da linguagem algo singular e transitrio.16

    Depois que Schopenhauer negara histria o valor de cincia autntica, por ocupar-se sempre do particular e nunca do geral, era de todo compreensvel o empenho do grupo neokantista em investigar o carter cientfico daquela ordem de estudos para chegar a concluses afirmativas e animadoras, pertinentes a chamada parte idiogrfica das cincias da experincia.

    As antinomias de Windelband, que o estimularam busca de nova fundamentao

    cientfica, so quase as mesmas de Kant: realidade e valor, fato e idia, causalidade e finalidade, o ser e o dever ser, com o problema j de sua respectiva conexo.

    Toda essa reao idealista contra o positivismo, o empirismo e o ceticismo, tocante ao mtodo e aos fundamentos das cincias do esprito, encontra por fim seu ponto culminante na obra de Rickert, antigo discpulo e sucessor de Windelband na ctedra de Heidelberg.

    O idealismo alemo que acometera, com Dilthey, a preponderncia naturalista no pensamento cientfico, se comportara de incio, com tal timidez, que aquele filsofo se vira compelido a sacrificar a metafsica na fundamentao da cincia.

    Rickert idealista kantiano. Mas idealista que no ignora a dimenso de suas foras, com plena conscincia da consolidao que seu trabalho inte-lectual h-de emprestar aos esforos antecedentes de Dilthey e Windelband.

    Conservando a mesma linha de combate ao emprego do mtodo naturalista como nico exclusivamente cientfico, entra Rickert na querela filosfica para aprofundar o debate em torno da autonomia, mtodos e fundamentos das cincias do esprito.

    Deparamo-nos j com nova nomenclatura em sua obra. Plenamente capacitado da delicadeza e das dificuldades de classificar as cincias, Rickert as distribui tambm em dois ramos fundamentais: cincias da natureza e cincias da cultura.

    Depois de apontar os equvocos que poderiam decorrer da terminologia de Windelband cincias nomotticas e cincias idiogrficas aquelas ocupando-se do geral e estas do particular ou do especial, assinala Rickert que antes lhe apraz referir-se a um mtodo individualizador e a outro generalizador, no se estabelecendo a esse respeito diferena absoluta, mas to-somente relativa, sem o que ningum jamais poder compreender-lhe o pensamento.17

    O mtodo generalizador se aplica diz ele s cincias da natureza e o individualizador s cincias da cultura.

    Sua teoria da cincia puramente formal e no destri, ao contrrio das objees que se lhe

    9

  • fizeram, a unidade da cincia.A nfase de seus trabalhos, adverte o mesmo

    Rickert, no foi posta na distino entre o mtodo generalizador e o mtodo individualizador. Mas em demonstrar os fundamentos que impem a considerao da vida cultural no apenas por via genrica seno tambm por via especfica, pelos caminhos da individualizao.

    E como a toda cultura aderem valores, fora empregar combinada-mente as formas de tratamento da realidade cultural, a saber, a individualizadora, e a decorrente de um processo de investigao das relaes de valores.

    S a esta altura que se perde a possibilidade de unificar lgica e formalmente a realidade estudada.18

    As disciplinas se separam em campos distintos, quanto aos mtodos empregados, na medida em que tenhamos, de um lado, cincias avalorativas, doutro, cincias cujo objeto implique valores ou relaes de valores tornando-se, por conseqncia, decisivo o problema de valor para a teoria do mtodo nas cincias.

    A mesma realidade pode ser objeto, segundo Rickert, de dois pontos de vista distintos: a realidade natureza quando a tomamos com referncia ao geral, e histria, se nos detivermos no exame do especial e particular. Emprega-se no primeiro caso o mtodo generalizador das cincias da natureza; no segundo o mtodo individualizador da histria.19

    Com essa distino acrescenta Rickert possumos o almejado princpio formal da diviso das cincias e quem quiser logicamente chegar a uma teoria cientfica h de tomar por base indispensvel essa distino formal.20

    Lugares h na obra de Rickert onde suas idias acerca do carter das cincias da natureza so expostas com rara transparncia e limpidez.

    Haja vista quando ele acentua o contraste das mesmas com as cincias histrico-culturais. Diz Rickert ento que na mais ampla acepo da palavra nenhum objeto em princpio pode furtar-se ao tratamento natural-cientfico, pois natureza a realidade conjunta psquico-corporal, tomada genericamente, com indiferena aos valores.21

    O cientista da natureza neutraliza-se perante

    os valores e as valorizaes dos objetos. Toma-os livres do que neles h de individual. O especial, tanto na fsica como na psicologia, apenas um exemplar e a cincia comea, para ele, quando esses exemplares reunidos permitem a inferncia de leis de relaes conceituais ou gerais.22

    A concluso que tomamos de autores que to longe conduziram o debate metodolgico para salvar as chamadas cincias do esprito ou da cultura que da por diante j se pode falar com mais segurana em dois mundos distintos: o da natureza e o da sociedade.

    No primeiro, h leis naturais, fixas, permanentes, eternas, imutveis com toda a inviolabilidade do determinismo fsico-mecnico; no segundo imperam as mudanas, as diferenciaes, o desenvolvimento.

    O primeiro o mundo da homogeneidade, o segundo, o da heterogeneidade.

    No primeiro h conservao, certeza, uniformidade, repetio. No segundo rege a infinita diversidade, a probabilidade, o desenvolvimento, a teleologia.

    No primeiro, basta um fenmeno para levar lei geral, basta um exemplar da srie para conhecer-se toda a espcie; no segundo, tudo se passa de modo distinto e cada fenmeno , em si mesmo, uma espcie, algo irreversvel que, segundo Jellinek, existiu uma s vez e nunca se reproduzir em condies idnticas, seno, no melhor dos casos, em condies anlogas, da mesma forma que na infinita massa dos seres humanos nunca reaparecer o mesmo indivduo (Jellinek).

    3. A cincia poltica e as dificuldades terminolgicas

    O reexame da teoria da cincia pelas escolas neo-idealistas da Alemanha a que nos reportamos, tem capital importncia para aclarar as dificuldades metodolgicas, quase intransponveis, com que se defronta toda a cincia social, sobretudo, no caso vertente, a cincia poltica.

    Abriu caminho esse reexame ao reconhecimento dos obstculos levantados ao

    10

  • investigador. F-lo alis com tal vigor que hoje raro cientista social hesita em confessar os embaraos com que se depara para chegar a apreciveis resultados na rbita de sua disciplina.

    A cincia poltica indiscutivelmente aquela onde as incertezas mais afligem o estudioso, por decorrncia de razes que a crtica de abalizados publicistas tem apontado reflexo dos investigadores, levando alguns a duvidar se se trata aqui realmente de cincia.

    Quais so essas razes?O professor Orlando Carvalho enumerou em

    seu prestantssimo ensaio Caracterizao da Teoria Geral do Estado algumas dessas dvidas com que se afrontam os estudiosos da matria social, os quais, desde Sumner Maine a Orlando, haviam assinalado j o carter movedio e oscilante do vocabulrio poltico, as variaes semnticas dos termos de que se serve o cientista social de pas para pas, com as mesmas palavras valendo para os investigadores do mesmo tema, coisas inteiramente distintas, como, por exemplo, a palavra democracia, a que se emprestam variadssimas acepes, ameaando imergir num caos sem sada os mais competentes e idneos esforos de fixao conceitual.

    At mesmo a expresso Estado, ao redor da qual se levanta vastssima e respeitvel literatura j centenria, trazendo o selo de contribuio monumental de afamados pensadores e filsofos, no pde forrar-se ao crculo vicioso de incertezas e objees, quanto determinao exata do significado de que se reveste.

    Compilam-se da antigidade aos nossos dias, nos textos mais autorizados da reflexo filosfica e jurdica, copiosos conceitos que servem apenas de atestar quo longe nos achamos ainda da caracterizao satisfatria.

    Da porque Bastiat, com fina ironia, anunciava em meados do sculo XIX, prmio de 50.000 francos a quem lhe respondesse a contento a interrogao que ele fizera ao pedir que lhe definissem o Estado.

    Esse esmorecimento de Bastiat corrobora o que Hegel dissera da cincia do Estado, tomando-a por primeira das cincias, pela importncia e pelas

    complicaes que a envolvem.O reitor Lowell de Harvard, citado pelo

    professor Carvalho, interveio tambm com pessimismo no debate, para lembrar que falta cincia poltica esse requisito indispensvel cincia moderna: a nomenclatura ininteligvel ao homem educado, o que permite a todo leigo ocupar-se, com a mais santa e incorrigvel leviandade, daquilo onde se detm ou naufragam em dificuldades amargas, cientistas e filsofos insignes, ao versarem conceitos como os de governo, nao, liberdade, democracia, socialismo, etc.

    Tem-se sobretudo referido que o trabalho do cientista da natureza extraordinariamente facilitado pela circunstncia de os fenmenos terem a exterioridade parte do observador ou as substncias de que trata, por exemplo, o qumico, no seu laboratrio, poderem ser pesadas ou medidas, ou ainda a experincia do fsico, como assinalou Lord Bryce, no ter mais requisito de renovao que a vontade do investigador, fazendo que este, sempre por via da experincia e da observao, possa che-gar ao conhecimento de leis perfeitamente exatas e uniformes.

    Mas se o oxignio, o enxofre e o hidrognio se comportam da mesma maneira na Europa, na Austrlia ou em Srius, se qualquer mudana na composio do elemento qumico encontra no cientista condies fceis e seguras de exame e esclarecimento, o mesmo no se d com o fenmeno social e poltico.

    Fica este sujeito a imperceptveis variaes, de um para outro pas, at mesmo na prtica do mesmo regime; ou de um a outro sculo, de uma a outra gerao.

    As instituies, conservando por vezes o mesmo nome, j passaram todavia pelas mais caprichosas alteraes.

    O material de que se serve assim o cientista social cria pela extrema mutabilidade de sua natureza, no somente bices quase invencveis ao estudioso, como torna penosssimo seno impossvel o reconhecimento, na Cincia Poltica, de leis fixas, uniformes, invariveis.

    Obstculo igualmente srio, que se soma aos demais j referidos e de feio no menos

    11

  • desalentadora, decorre da impossibilidade em que fica o observador de neutralizar-se perante o fenmeno que estuda, para da alcanar concluses vlidas, lcitas, imparciais, objetivas, que no sejam fruto de inclinaes emocionais passageiras ou de juzos preformados na mente do observador.

    A conscincia de quem observa no raro se liga ao fenmeno ou processo. Sua aderncia a determinado Estado, seu lastro ideolgico, sua vi-vncia em certa poca, suas reaes psicolgicas em presena dos mais distintos grupos, desde a igreja, o sindicato e a comunidade at famlia e escola, fazem desse observador unidade irredutvel, capaz de emprestar ao fenmeno observado todo o feixe de peculiaridades que o acompanham, recebidas ou inatas.

    Por mais que forceje no chegar ele nunca a captar o fenmeno social imparcialmente, emancipado do crculo vicioso ou da camada densa de preconceitos que o rodeiam.

    Com essas ponderaes pessimistas, mas acauteladoras, h de atuar pois o estudioso da sociedade, que, com o mnimo de dogmatismo inconsciente, se proponha a versar o contedo dificlimo das cincias sociais, rigorosamente advertido j de seus embaraos.

    Onde entram atos e sentimentos humanos, s a considerao despretensiosa dos aspectos histricos, jurdicos, sociolgicos e filosficos, ontem e hoje, neste ou naquele Estado, dar problemtica poltica da sociedade o aproximado teor de certeza que vir um dia galardoar o esforo do cientista social, honesto e incansvel, cujo trabalho, antes da frutificao, sempre tomou em conta a medida contingente das verdades que se extraem do comportamento dos grupos e da dinmica das relaes sociais.

    4. Prisma filosfico

    A Cincia Poltica, em sentido lato, tem por objeto o estudo dos acontecimentos, das instituies e das idias polticas, tanto em sentido terico (doutrina) como em sentido prtico (arte), referido ao passado, ao presente e s possibilidades futuras.

    Tanto os fatos como as instituies e as idias, matrias desse conhecimento, podem ser tomados como foram ou deveriam ter sido (conside-rao do passado), como so ou devem ser (compreenso do presente) e como sero ou devero ser (horizontes do futuro).

    H sempre, em face dos problemas dessa investigao, pertinente a fatos, instituies e idias, no importa o tempo histrico ontem, hoje, amanh em que os tomemos, aquilo que os alemes chamam sein ou sollen, o primeiro designando a realidade que , o segundo a realidade do dever ser.

    Nessa mesma e larga acepo, cabe o exame das instituies, dos fatos e das idias referidas aos ordenamentos polticos da sociedade debaixo do trplice aspecto: filosfico, jurdico ou poltico propriamente dito e sociolgico.

    Mas nem todos os autores, tratadistas e publicistas que versam temas de Cincia Poltica, se pem de acordo com fixar, de maneira to ampla, como vimos acima, o contedo e a conformao desta disciplina.

    Parte toda a Cincia Poltica de conceitos polmicos, quanto ao mtodo, quanto extenso de seus limites, quanto ao nome que se h-de eleger para essa categoria de estudos, conforme teremos mais adiante ensejo de patentear.

    Passemos no entanto revista aos distintos aspectos que permitem acentuar com mais nfase o carter transitrio da disciplina, ao qual se h preponderantemente reduzido, consoante o tratamento que lhe ministra o filsofo, o socilogo ou o jurista.

    Desde a mais alta antigidade clssica, principalmente desde Scrates, Plato e Aristteles, os assuntos polticos impressionam o gnero hu-mano, sequioso de conhec-los e aprofund-los.

    Aristteles conclui na Grcia um ciclo de estudos polticos conscientemente especulativos.

    Mas nos fragmentos das constituies que o filsofo estagirita analisa, assim como nas ltimas pginas polticas de Plato, seu predecessor, que no Livro das Leis passara j do Estado ideal e hipottico ao Estado real e histrico, avultam consideraes de ndole sociolgica, antecipaes que deixam de ser

    12

  • puramente filosficas.Na Europa medieva a filosofia se enlaa com

    a teologia ao ocupar-se de temas polticos.E quando estes se definem, moderna e

    contemporaneamente, numa cincia j organizada e autnoma, conservam alguns de seus cultores a posio tradicional de prestgio de anlise filosfica, dando nos manuais, tratados e compndios de cincia poltica lugar sempre honroso e destacado, seno por vezes predominante, ao aspecto estritamente filosfico dos problemas.

    Entre os pensadores de lngua inglesa, Field, Laski e Bertrand Russel tomaram posio de tericos ou teorizantes, impulsionando a cincia poltica, sob inspirao filosfica.

    Na Alemanha, Carl Schmitt e Rudolf Smend.Nos pases de lngua francesa, Dabin, Marcel

    de La Bigne de Villeneuve e outros.A Filosofia conduz para os livros de Cincia

    Poltica a discusso de proposies respeitantes origem, essncia, justificao e aos fins do Estado, como das demais instituies sociais geradoras do fenmeno do poder, visto que nem todos aceitam circunscrev-lo apenas clula mater, embriognica, que no caso seria naturalmente o Estado, acrescentando-lhe os partidos, os sindicatos, a igreja, as associaes internacionais, os grupos econmicos, etc.

    Convive o debate filosfico ademais com a investigao sociolgica e com a fixao jurdica dos fatos, normas e instituies polticas, arredando assim a possibilidade de ousadamente afirmarmos a existncia de um monismo filosfico entre autores polticos de nosso sculo, que rotulam seus livros com o nome de Cincia Poltica ou Teoria Geral do Estado.

    5. Prisma sociolgico

    Outra dimenso importantssima que toma a Cincia Poltica a de cunho sociolgico.

    O estudo do Estado, fenmeno poltico por excelncia, se constitui um dos pontos altos e culminantes da obra genial de Max Weber.

    O profundo socilogo fez com o Estado aquilo

    que Ehrlich fizera j com a sociologia jurdica. Deu-lhe a consistncia do tratamento autnomo.

    Com efeito, na sociologia poltica de Max Weber, abre-se o captulo de fecundos estudos pertinentes poltica cientfica, racionalizao do poder, legitimao das bases sociais em que o poder repousa: inquire-se ali da influncia e da natureza do aparelho burocrtico; investiga-se o re-gime poltico, a essncia dos partidos, sua organizao, sua tcnica de combate e proselitismo, sua liderana, seus programas; interrogam-se as for-mas legtimas de autoridade, como autoridade legal, tradicional e carismtica; indaga-se da administrao pblica, como nela influem os atos legislativos, ou como a fora dos parlamentos, sob a gide de grupos socio-econmicos poderosssimos, empresta democracia algumas de suas peculiaridades mais flagrantes.23

    A Cincia Poltica, na sua constante sociolgica, no pode tampouco ignorar as razes histricas da evoluo poltica.

    Esse retrato retrospectivo, esse mergulho no passado das instituies devem-se com mais nitidez e originalidade a Gumplowicz e Oppenheimer.

    Traou este ltimo o penoso roteiro que se estende, atravs dos mais agudos transes e das mais amargas vicissitudes, do Estado de conquista ao Estado de cidadania livre. Como forma de coao sobre os homens, o Estado se acha fadado a desaparecer, desde que a escravido antiga e a escravido capitalista, outrora forosas, se tornavam doravante suprfluas.

    Se em Atenas, observa Oppenheimer, ao lado de cada cidado livre trabalhavam cinco homens escravos, na sociedade contempornea a cada cidado livre corresponde o dobro de escravos, mas escravos doutra espcie, doutro cativeiro, escravos de ao que no tm de padecer ou suar quando trabalham!

    E o fim do Estado, segundo o mesmo socilogo, inspirado decerto na profecia marxista, ser sua diluio no automatismo da sociedade futura.24

    Outro escritor poltico no menos digno e autorizado pela excelncia de sua orientao sociolgica Vierkandt, que contribui fixao dos

    13

  • quadros da Cincia Poltica, em seus vnculos com a sociologia, ao estudar principalmente o moderno Estado nacional.

    Acentua ele o carter classista do Estado e da sociedade, a dinmica da luta pelo poder na sociedade moderna, os partidos como representao de interesses e as tendncias e movimentos reformistas que se operam este sculo, com respeito s relaes de trabalho, educao, sade es-piritual da juventude, e o papel da igreja, etc.25

    Seguindo igual trajetria, aparece a verso sociolgica da obra de Stier-Somlo, inclinado sobretudo ao estudo da poltica cientfica, seus pro-blemas, sua significao, suas tarefas, sua possvel sistematizao.

    Desse elenco de primeira ordem faz parte ainda um pensador da fina estirpe de Mannheim. Sua Ideologia e Utopia desses livros que assinalam a fisionomia intelectual de determinada poca. Sente-se nele toda a vibrao mental da sociedade. A sociologia tomada por base da Cincia Poltica, cava ali suas razes mais profundas.

    Os temas de reconstruo social, de diagnose e interpretao dos momentos crticos da democracia, de anlise dos conceitos polticos, de estimativas acerca da planificao, da liberdade e do poder tecem a matria sociolgica que serve de substrato a alguns dos captulos mais fascinantes de nossa Cincia.

    Ao dado jurdico de sua obra, o professor alemo Georg Jellinek, outro clssico da Cincia Poltica, acrescenta com nfase no menos rigorosa o aspecto sociolgico.

    Sua teoria do Estado se revela predominantemente social, situando-o na esfera metodolgica dos dualistas, ou seja, dos que tomam a Cincia Poltica segundo o binmio Direito e Sociedade.

    A estante clssica da sociologia inclui, por ltimo, esse nome glorioso para a Cincia Poltica que foi o de Hermann Heller, cuja obra inacabada tem todos os primores de esquematizao genial.

    Lanou cimentos indestrutveis compreenso da doutrina do Estado como sociologia, como cincia da realidade, como teoria das estrutu-ras. Estudou, com rigor, no seu monumental Staatslehre, o mtodo e a misso da teoria do Estado, a realidade social, o Estado propriamente dito, com seus pressupostos histricos, bem como as condies culturais e naturais da unidade estatal, sua essncia e finalidade, lastimando-se no haja concludo o plano da obra, que todavia um fragmento de grandeza e imortalidade. Honra as alturas a que pode chegar o raciocnio poltico de um pensador.

    6. Prisma jurdico

    Tem sido tambm a Cincia Poltica objeto de estudo que a reduz ao Direito Poltico, a simples corpo de normas.

    Tendncia de cunho exclusivamente jurdico vem representada por Kelsen, que constri uma Teoria Geral do Estado, onde leva s ltimas conseqncias, no estudo da principal instituio geradora de fenmenos polticos, o seu formalismo de inspirao kantista e funda em bases estri-tamente monistas, de feio jurdica, a nova teoria que assimilou o Estado ao Direito e tantos protestos arrancou de filsofos e pensadores durante as ltimas dcadas.

    O Estado, segundo Kelsen, pertencendo ao

    mundo do dever ser, do sollen, se explica pela unidade das normas de direito de determinado sistema, do qual ele apenas nome ou sinnimo.

    Quem elucidar o direito como norma elucidar o Estado. A fora coercitiva deste nada mais significa que o grau de eficcia da regra de direito, ou seja, da norma jurdica.

    O Estado, organizao de poder, para Kelsen, se esvazia de toda a substantividade. Os elementos materiais que o compem territrio e populao se convertem, respectivamente, na tpica e revolucionria linguagem do antigo professor vienense, em mbito espacial e mbito pessoal de validade do ordenamento jurdico.

    A doutrina de Kelsen tem sua originalidade em banir do Estado todas as implicaes de ordem moral, tica, histrica, sociolgica, criando o Estado como

    14

  • puro conceito, agigantando-lhe o aspecto formal, retinta-mente jurdico, escurecendo a realidade estatal com seus elementos constitutivos, materiais, conforme vimos. Chega hipertrofia, j descomunal, do elemento formal o poder, posto que dissimulado este na santidade inviolvel de normas concebidas como direito puro.

    Essa teoria, que faz de todo Estado Estado de Direito, por situar Direito e Estado em relao de identidade, uma vez aceita apagaria na conscincia do jurista o sentido dos valores e na sentena do magistrado os escrpulos normais de eqidade, do mesmo modo que favoreceria o despotismo das ditaduras totalitrias, por emprestar base jurdica a todos os atos do poder, at mesmo os mais inconcebveis contra a vida e a moral dos povos. O exemplo e experincia da Alemanha nazista recente para mostrar at onde podem chegar as conseqncias de um positivismo normativista, maneira kelseniana.

    Criticou-se a Kelsen, e com razo, o haver criado uma Teoria do Estado sem Estado e uma Teoria do Direito sem Direito.

    Entre os publicistas clebres da Frana, no sculo XX, encontramos autores mais preocupados com o aspecto jurdico da Cincia Poltica do que propriamente com as suas razes na filosofia e nos estudos sociais.

    No so to radicais quanto Kelsen, que reduziu o Estado a consideraes exclusivamente jurdicas. Mas fazem da Teoria Geral do Estado um apndice ou introduo ao Direito Pblico, nomeadamente ao Direito Constitucional, no hesitando em versar temas pertinentes ao Estado em livros de Direito Constitucional, segundo velha tradio, ilustrada, dentre outros, por Duguit, com o seu monumental tratado, cuja primeira parte, votada ao Estado, abrange certas anlises onde a cada passo toma o socilogo o lugar do jurista.

    Em Carr de Malberg, depara-se-nos outro clssico dessa orientao, que se inclina mais para o Direito do que para a Sociologia ou a Filosofia.

    7. Tendncias contemporneas para o tridimensionalismo

    A orientao que toma na Cincia Poltica a Filosofia, a Sociologia e o Direito com predominncia ou exclusividade vem cedendo lugar ao emprego da anlise tridimensional, que abrange a teoria social jurdica e a teoria filosfica dos fatos, das instituies e das idias, expostas em ordem enciclopdica, de modo a dar inteira e unificada viso daquilo que objeto desta disciplina.

    Fez o publicista alemo Hans Nawiasky, da Baviera, o esforo mais competente e idneo que se conhece por ultrapassar o unilateralismo e bilateralismo dos cientistas polticos que o antecederam, dando sua Teoria Geral do Estado tratamento tridimensional, ao estudar o Estado como idia, como fato social e como fenmeno jurdico.

    Os autores franceses que publicaram obras mais recentes de Cincia Poltica esto fugindo tambm estreiteza de seus predecessores, e apesar da impopularidade dos nomes de Teoria Geral do Estado e Cincia Poltica na sua literatura especializada, j fizeram todavia a esse respeito considerveis concesses epgrafe desta disciplina, inclinando-se mais para a expresso Cincia Poltica, com a qual batizou Georges Burdeau seu excelente tratado sobre a matria.

    No somente passou o pensamento francs a acatar a denominao de Cincia Poltica, consagrada j no meio cultural anglo-saxnico, como emprestou nos ltimos anos a esses estudos significado mais sociolgico e filosfico do que, em verdade, jurdico, como preconizava a tradio ora proscrita.

    Juristas da envergadura de Duverger, Vedel, Marcel de La Bigne de Villeneuve acompanham a tendncia universalizada de adotar o estudo da Cincia Poltica sob o trplice aspecto tantas vezes aqui referido, a saber, o aspecto tridimensional, abrangendo por conseguinte a considerao jurdica, sociolgica e filosfica.

    Como se v, no reina acordo entre os escritores polticos dos principais pases ocidentais acerca dos limites da disciplina de que nos ocupamos.

    Nem sequer a respeito do nome pelo qual possamos todos reconhec-la. No mundo anglo-americano, a Cincia Poltica ou versa a experincia poltica vivida e acumulada nas instituies (onde as

    15

  • foras polticas competitivas impem os interesses em jogo), com feio de estudo pragmtico, ou despreza fortemente o lado terico.

    Na Alemanha, os juristas que cresceram no culto e superstio do poder, deram-lhe o nome da Teoria Geral do Estado, com variaes de mtodo e contedo e s nas ltimas dcadas se iniciaram numa Cincia Poltica propriamente dita com independncia do condicionamento jurdico, com contribuies prprias, mas debaixo de um visvel influxo das correntes americanas, cujo pragmatismo excessivo, todavia, no perfilhavam.

    A designao de Teoria Geral do Estado entrou enfraquecida em Frana e s chegou ao Brasil em 1940, durante a ditadura. Teve ingresso no currculo das Faculdades de Direito por convenincia ditatorial e no por imperativos pedaggicos ou prescrio didtica. Com efeito, a Constituio de 1937 deparava resistncia nas escolas, por parte de velhos professores de formao democrtica, que se recusavam a interpret-la.

    Que fez pois a ditadura? Criou a Cadeia de Teoria Geral do Estado, para a qual removeu a parte mais obstinada do magistrio, ficando com lugares vagos destinados ao preenchimento de confiana por mestres acomodados a lecionar o constitucionalismo dos autores do golpe de Estado de 1937.

    No Brasil, vingam irmmente os termos Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado. Tem este ltimo maior acolhida no meio jurdico. Por Cincia Poltica, estudiosos h porm neste Pas que entendem a considerao do fenmeno poltico em sua mxima amplitude, qual se manifesta na pluralidade das fontes geradoras.

    Outros se abraam tradicionalmente ao Estado como fonte primria, no enxergando nos demais grupos sociais, nacionais ou internacionais, seno fontes secundrias, cuja autonomia, direta ou indiretamente, deriva do ordenamento estatal, que permanece, em ltima anlise, matriz de toda a fenomenologia poltica.

    Estes no vem razo para sustentar por conseqncia a sutileza daqueles que do preferncia, por mais lata, expresso Cincia Poltica, e ignoram ou negam pois a suposta largueza de mbito da Cincia Poltica, cuja circunferncia

    para eles coincide com a da Teoria Geral do Estado.Por haver equivalncia de reas e de objeto,

    seria a mesma matria, apenas com nomes distintos.A simpatia na escolha, para os que raciocinam

    dessa forma, recai naturalmente sobre a Teoria Geral do Estado, cujas razes, a despeito da origem, se aprofundaram com mais fora que as da Cincia Poltica. O nome desta, soprado ultimamente com intensidade, atravs da leitura e influncia de autores americanos e ingleses, ganha todavia largussimo ter-reno.

    1. Kant, Metaphysische Anfangsgruende der Naturwissenschaft. Prefcio, 2 e 3.2. Joaquim Pimenta, Enciclopdia de Cultura.3. Idem, ibidem, p. 45.

    4. Idem, ibidem, pp. 45-46.

    5. Augusto Comte, Sociologie.6. Jean Laubier, apud Augusto Comte, ob. cit., p. XI. 7. Ortega y Gasset, apud Kant, Hegel, Dilthey, p. 144.8. Wilheim Dilthey, Gesammelte Schriften, V, p. 11.9. Hermann Glockner, Die europaeische Philosophie, von Anfangen bis zur Gegenwart, pp. 1.063-1.064.10. W. Dilthey, Gesammelte Schriften I, 2 ed., p. 109 da Einleitung in die Geisteswisseschaften I, Erstes einleitendes Buch, XVI.

    11. Wilhelm Windelband, Praeludien, V. I/II, p. 141.12. Wilhelm Windelband, ob. cit., p. 141.

    13. Idem, ibidem, p. 145.

    14. Idem, ibidem, p. 145.

    15. Idem, ibidem, p. 148.

    16. Wilhelm Windelband, ob. cit., p. 145.

    17. Heinrich Rickert, Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft sechste und siebente Auflage, pp. VII e VIII.

    18. Idem, ibidem.

    19. Heinrich Rickert, ob. cit., p. IX.

    20. Idem, ibidem, pp. 55-56.

    21. Idem, ibidem, p. 56.

    22. Idem, ibidem, p. 97.

    23. Heinrich Rickert, ob. cit., p. 97.

    24. Max Weber, Staatssoziologie.25. Franz Oppenheimer, Der Staat, pp. 8, 126-133.

    16

  • 2 . A CIENCIA POLTICA E AS DEMAIS CINCIAS SOCIAIS

    1. A Cincia Poltica e o Direito Constitucional 2. A Cincia Poltica e a Economia 3. A Cincia Poltica e a Histria 4. A Cincia Poltica e a Psicologia 5. A Sociologia Poltica, uma nova ameaa Cincia Poltica?

    1. A Cincia Poltica e o Direito Constitucional

    So apertadssimos os laos que prendem a Cincia Poltica ao Direito Constitucional. Entre os publicistas clebres da Frana, no sculo XX, autores h que se preocuparam menos com o aspecto jurdico da Cincia Poltica do que propriamente com suas razes na filosofia e nos estudos sociais.

    Naquele pas, a Cincia Poltica, antes de chegar maioridade como disciplina autnoma, esteve quase toda contida no Direito, mormente no Direito Constitucional. A despeito do cisma operado, este ainda o ramo da Cincia Jurdica cujo influxo mais pesa sobre a Cincia Poltica.

    Alguns dentre os melhores politiclogos da ctedra universitria na Frana so constitucionalistas, o mesmo ocorrendo no Brasil.

    Com efeito, Burdeau, Vedei e Prlot, antes de aderirem Cincia Poltica tinham j nomeada de mestres do Direito Constitucional, onde conservam inalterveis o prestgio e a autoridade de sempre.

    Demais, antes da apario da Cincia Poltica (cincia de sntese), j o Direito Constitucional fora uma das Cincias Polticas. Seu influxo sobre o desenvolvimento da Cincia Poltica, poder eventualmente diminuir, jamais extinguir-se, porquanto o Direito Constitucional abrange larga rea da coisa poltica as instituies do Estado, em cujo mbito, como se sabe, costumam desenrolar-se os principais fenmenos do poder poltico, constitucionalmente organizado.

    A maior ou menor coincidncia de reas da Cincia Poltica com o Direito Constitucional, ditando o grau de profundidade das relaes entre ambos, se

    acha, segundo a perspicaz observao de Burdeau, na dependncia da estabilidade ou instabilidade do meio poltico e social.1

    Daqui se pode extrair tambm a fecunda deduo de que, quanto menos desenvolvida a sociedade, quanto mais grave seu atraso econmico, mais instveis e oscilantes as instituies polticas. Do mesmo passo, menos amplo e eficaz ser ento o Direito Constitucional em sua capacidade de organizar instituies que abranjam de modo efetivo toda a esfera de comportamento e deciso do grupo poltico. Daqui decorre pois um crescente hiato entre a ordem constitucional estabelecida e a realidade poltica. Enfim, diminui com isso a possibilidade de toda a vida poltica inclusive o comportamento e o poder de deciso de indivduos e grupos recair na rbita do direito regulamentado e das instituies criadas.

    Em pases subdesenvolvidos, nominalmente democrticos, h um crculo minimum constitucional, onde operam as instituies que o poder oficializou, ao passo que nos pases desenvolvidos esse minimum se converte em maximum. Aqui, segundo a linguagem de Burdeau, vida poltica real e vida poltica juridicamente institucionalizada tendem a coincidir.2

    Dessa situao emerge em conseqncia um campo mais amplo, mais arejado, mais desimpedido ao Direito Constitucional, que ser o direito das instituies.

    Ali, na sociedade subdesenvolvida, ao contrrio, a vida poltica gera um teor elevadssimo de controvrsias e impe menos uma oposio ao governo do que s instituies, fazendo com que a parte mais importante do comportamento poltico e do funcionamento do poder transcorra fora das regies oficiais ou do direito pblico legislado. A eficcia do sistema fica nesse caso preponderantemente sujeita imprevisvel ao de grupos de presso, lideranas polticas ocultas e ostensivas, organizaes partidrias lcitas e clandestinas, elites influentes, que produzem ou manipulam uma opinio pblica dcil e suspeita em sua autenticidade.

    Observa-se ademais que nos pases subdesenvolvidos, os golpes de Estado, a violao contumaz do Direito Constitucional, o fermento re-volucionrio oriundo da insatisfao social, a luta de classes, brutalmente exacerbada pelo privilgio ou por

    17

  • violentas discrepncias econmicas, compem um quadro onde o processo poltico e a realidade do poder escapam no raro aos limites modestos da autoridade institucionalizada. ento nessas circunstncias que o Direito Constitucional pode ser tomado ou interpretado como um conjunto formal de regras das quais a vida se ausentou, conforme disse Burdeau, e a Cincia Poltica aparece como disciplina apta a prestar contas da realidade,3 pois sua promoo se faz concomitante ao declnio do Direito Constitucional.4

    No procede, por outra parte, e em concluso, a afirmativa de Robson, de que o vnculo da Cincia Poltica com o Direito Constitucional conduziria inevitavelmente a uma concepo estreita, falsa e deformada dessa disciplina.5 Tal ocorreria com efeito se a Cincia Poltica resultasse totalmente absorvida pelo Direito, que apenas uma de suas faces. Com o jurdico, mormente com o Direito Constitucional, a Cincia Poltica, at mesmo para efeito de facilidade e segurana dos estudos e formao de conceitos, deve manter estreitas relaes, fazendo do sistema institucional, sancionado pela ordem jurdica, o ponto de apoio mais firme com que estender a outras esferas sociais todas as indagaes de cunho caracteristicamente poltico.

    2. A Cincia Poltica e a Economia

    Sem o conhecimento dos aspectos econmicos em que se baseia a estrutura social, dificilmente se poderia chegar compreenso dos fenmenos polticos e das instituies pelas quais uma sociedade se governa. Reputa-se pacfico o entendimento de cientistas polticos como Burdeau, que no precisam de ser marxistas, para reconhecer no fato econmico o fato fundamental de politizao da sociedade.6

    Admitida essa tese, perceber-se- sem dificuldade a importncia capital que tem para a Cincia Poltica toda a matria de que se ocupa a Economia Poltica, ela mesma, em outras pocas, considerada uma das Cincias Polticas.

    Assinalando o grau prximo de parentesco

    entre as duas disciplinas, Burdeau assevera que esto unidas por laos de consanginidade e constituem uma nica cincia. Segundo se l no mesmo autor, o fato de a Economia Poltica haver transitado de sua velha acepo de cincia das riquezas para a moderna acepo de cincia dos comportamentos econmicos, em nada alterou a conexidade dos dois ramos, podendo-se, em verdade, passar da anlise econmica a uma poltica econmica, e da poltica econmica para uma ao poltica, racionalmente apoiada num programa de sustentao de metas econmicas, traadas de antemo, com o propsito de promover por exemplo fins desenvolvimentistas, ou combater o atraso de estruturas sociais e econmicas, reconhecidamente arcaicas.

    Democracia e socialismo, formas polticas de organizao do poder, no prescindem, no Estado moderno, de planificao. O conhecimento econmico se faz cada vez mais interessado e o Estado no o emprega unicamente para explicar ou conhecer o modo por que se satisfazem as necessidades materiais de uma sociedade, seno que os emprega cada vez mais, para criar instrumentos novos e diretos de ao, vinculando-os a um programa de governo ou a uma poltica econmica especfica.

    A corrente de idias de que resulta talvez o mais forte acento na identidade da Cincia Poltica com a Economia Poltica sem dvida a dos pensadores marxistas.

    Deduz-se do marxismo que todas as instituies sociais e polticas formam uma superestrutura, tendo por base de sustentao uma infra-estrutura econmica. Essa infra-estrutura determinante, em ltima anlise, de tudo quanto se passa em cima, sendo a funo econmica decisiva, bem que no seja exclusiva, no influxo exercido sobre as instituies integrantes da chamada superestrutura social.

    Numa objeo queles que conferem demasiada importncia aos fatores econmicos, o professor Xifra Heras pondera que existem esferas polticas de todo alheias a interesses econmicos, mencionando aquelas que se relacionam com a manuteno da paz e a administrao da justia.7

    Verifica-se porm que at a paz guarda implicaes econmicas profundas, quer a paz externa, entre Estados, quer a paz interna, a paz social, a paz

    18

  • poltica, cujos reflexos psicolgicos incidem com a mxima intensidade sobre o comportamento econmico e financeiro de um pas. Basta leve comoo ou crise para que se comprove, sobretudo em sociedades de estrutura econmica frgil, quanto a paz necessria ao bom curso dos negcios e como seu transtorno poder refletir-se de modo negativo, com fora quase instantnea, sobre o conjunto das operaes econmicas e financeiras. Demais, paz social fundamentalmente aquela que resulta da atenuao da luta de classes e da distribuio mais equitativa do poder econmico numa sociedade, mediante a prtica da justia social.

    3. A Cincia Poltica e a Histria

    Quando se toma a Histria como acumulao crtica de fatos e experincias vividas, fcil se torna perceber a importncia de seu estudo para a Cincia Poltica e a contribuio essencial que o historiador poder oferecer nesse domnio.

    Se o filsofo, o economista, o socilogo e o jurista quiseram, em outras pocas, monopolizar a Cincia Poltica ou imprimir-lhe uma diretriz que traduzisse exclusividade de perspectiva, tambm o historiador no foi insensvel a essa orientao, querendo igualmente apropriar-se daquela disciplina, para reduzi-la a mera investigao acerca da origem e do desdobramento dos sistemas, das idias e das doutrinas polticas, conhecidas e praticadas pelo gnero humano no decurso de tantos sculos.

    Dessas investigaes seriam extradas generalizaes com o valor de leis histricas, no tendo sido outro, conforme ressalta Burdeau, o trabalho de Hegel e Marx, conferindo Histria um surpreendente teor cientfico, um valor de certeza, empregado para sustentao de ideologias, das quais aquelas leis constituiriam uma espcie de matria-prima.8

    A Cincia Poltica dos idelogos marxistas se serve da Histria como se houvesse ali decifrado o segredo de evoluo dialtica das instituies polticas e sociais. Prognosticam assim um futuro necessrio que alimenta a ideologia e a converte em

    mquina de guerra. Rodeados de descrdito ou de um complexo de inferioridade, segundo assinala Burdeau, ficariam pois os sistemas sociais no-marxistas. Haja vista o liberalismo, o capitalismo, a democracia burguesa, objeto de inapelvel sentena de morte lavrada pela Histria.9

    De ltimo, com o incremento das investigaes sociolgicas e com o maior espao concedido a certas cincias do comportamento, como a Psicologia Social e a Antropologia, arrefeceu o interesse por uma Cincia Poltica fundamentada unicamente na Histria. Como as demais concepes j examinadas filosfica, jurdica e econmica padeceria esta tambm o deplorvel vcio da unilateralidade.

    Se os aspectos histricos tm passado em alguns casos a segundo plano, recaindo sobre a posio historicista pelo menos, a no dialtica a nota de anacronismo, e se j no possvel fazer da Histria nas Cincias Sociais o que se fez da Matemtica nas Cincias da Natureza, a verdade est com Haettich quando continua acentuando a indeclinvel importncia dos estudos histricos. Assim procede ele ao afirmar que determinadas proposies da Cincia Poltica nada mais so do que gene-ralizaes da experincia histrica, ou ao advertir que o que no pode ser compreendido sem o conhecimento do que h sido.10

    A autoridade da Histria, como cincia de base, mantenedora de apertadas conexes com a Cincia Poltica, fica do mesmo passo comprovada pelo esquema dos cientistas da UNESCO, que abriram quase toda uma rubrica para acolher no mbito dessa cincia a Histria das Idias Polticas.

    Sendo ademais a Cincia Poltica co-artfice ou co-constitutiva da realidade mesma que investiga, faz-se vlida a afirmativa de Burdeau, segundo a qual as idias sobre os fatos so mais importantes que os fatos mesmos,11 razo por que cumpre ter sempre presente s indagaes da Cincia Poltica, para faz-las de todo fecundas e compreensveis, a histria das idias.

    4. A Cincia Poltica e a Psicologia

    Temos visto como a Filosofia, o Direito e a Economia reclamaram j um elevadssimo grau de

    19

  • participao no moldar a ndole da Cincia Poltica. Houve pocas em que o pensamento crtico se inclinou fortemente a anexar aquela cincia a cada um daqueles distintos ramos do conhecimento. Cada fase histrica exps o seu figurino de influncia dominante. Este sculo, chegou a vez dos psiclogos e socilogos, os mais recentes em quererem apropriar-se da Cincia Poltica, fazendo hoje o que ontem fizeram os filsofos, os juristas, os economistas, os historiadores.

    Trava a Psicologia com a Sociologia um duelo reivindicatrio, que vai da simples pretenso de hegemonia impertinncia de uma eventual absoro. Se h esfera de modernidade ou atualidade no problema de relaes da Cincia Poltica com outras cincias sociais, essa esfera pertence agora a psiclogos polticos, que intentam impor suas tcnicas de investigao e operar uma reduo sistemtica da Cincia Poltica disciplina da qual procedem e pela qual sempre se orientaram. A esto os behavioristas para atest-lo, formando j escola e fundando a chamada nova Cincia Poltica, to em voga nos Estados Unidos.

    O irracionalismo, no raro observado em atividades de governos ou relaes de Estados, fortalece por igual a convico dos psiclogos sociais de que fora das motivaes psicolgicas no possvel lograr uma compreenso plenamente satisfatria do processo poltico. Com efeito, segundo afirma Xifra Heras, de forma lapidar, a Cincia Poltica opera com material humano e os fundamentos do poder e da obedincia so de natureza psicolgica.12

    Se erro existe entre os que adotam essa posio, decorre isso em larga parte do empenho de alguns em quererem reduzir a Cincia Poltica a simples captulo da Psicologia Social, o que inevitavelmente resultaria num encurtamento intolervel do seu campo. Este, queiram ou no os behavioristas, h-de ser sempre mais vasto do que seria se adotssemos apenas aquela dimenso exclusiva.

    5. A Sociologia Poltica, uma nova ameaa Cincia Poltica?

    Desde que se constituiu cincia autnoma, a Sociologia passou a representar um obstculo ao desenvolvimento da Cincia Poltica. Basta atentar-se para o fato de que suas indagaes se concentravam na unicidade do social (excluso conseqente da autonomia do poltico) e na investigao da sociedade como totalidade, obsesso que em Augusto Comte desembocara no conceito de humanidade.

    Numa segunda fase porm os positivistas, pais da Sociologia, fazendo mais fecunda a investigao sociolgica, volveram de preferncia suas vistas menos para o unitarismo da sociedade do que para o seu pluralismo, menos para a investigao da sociedade do que das sociedades, menos para o conhecimento do todo do que das partes (os agregados sociais).

    A esta altura, uma preocupao terica cedeu lugar a uma preocupao emprica. Grupos, classes sociais, relaes intergrupais entraram a compor o foco dominante de ateno da Sociologia, cujo interesse pela vida poltica se apresentava ainda secundrio.

    O influxo que o fator poltico pode exercer sobre o social e vice-versa forma o ncleo de uma Sociologia Poltica. Mas esta nem sequer se constitura, ficando deveras retardada sua formao em presena de outros ramos j adultos da Sociologia. Somente aps vencer certas relutncias foi que a Sociologia se volveu para a sociedade poltica do nosso tempo, deixando de lado o exclusivismo com que se consagrara ao exame do fenmeno do poder nas sociedades primitivas.

    Essa reviravolta para a contemporaneizao ou atualizao de seu objeto fez a Sociologia Poltica progredir assombrosamente nos ltimos vinte anos, at comprometer, como ora acontece, segundo entendem alguns, a autonomia da Cincia Poltica.

    Em verdade, autores do prestgio de Duverger, Catlin, Aron e Bertrand de Juvenel fazem a Sociologia Poltica coincidir com a Cincia Poltica ou empregam critrios rigorosamente sociolgicos para anlise de todos os fenmenos que se prendem realidade poltica. O ponto de vista em que se colocam poder redundar, conforme j redundou em Duverger, na inteira identidade entre ambas as cincias, com a resultante absoro da Cincia Poltica pela Sociologia Poltica.

    Afigura-se-nos porm inaceitvel essa reduo.

    20

  • A Cincia Poltica possui mbito mais largo que a Sociologia Poltica. Posto que conservem inumerveis pontos de contato ou partilhem ambas um terreno comum e vasto, verdade que se no confundem as duas disciplinas.

    Aquele campo comum grupos, classes sociais, instituies, comportamentos, opinio pblica faz difcil e problemtica a delimitao. Mas a Cincia Poltica toma rumos que a sociologia ignora, e que, admitidos, favorecem o traado de fronteiras: a direo normativa. Uma Sociologia Poltica no poderia, sem descrdito, entrar na esfera do dever ser, do sollen, ser uma cincia dos valores, segundo trs sentidos que a valorao comporta: o emprico, o normativo e o subjetivo, ganhando aquela amplitude que a Cincia Poltica tem ostentado, atravs de suas tendncias mais recentes.

    Se o mbito material da Cincia Poltica fosse unicamente o da Sociologia Poltica, como esta vem sendo de ltimo cultivada, ou se este mbito pudesse servir de critrio a uma nica perspectiva de indagao, e essa indagao emprestasse Cincia Poltica to-somente carter pragmtico e exclusivo de Cincia aplicada e prtica, e no de Cincia normativa, que ela tambm possui, ento toda essa tese de anexao da Cincia Poltica pela Sociologia encontraria ressonncia, a par de legtima base de apoio. Onde ambas as disciplinas operam sobre o mesmo terreno e com idnticas preocupaes pragmticas, a reflexo dificilmente depara limites certos com que distingui-las. A o melhor que lhe cumpre admitir nessa esfera a identidade dos dois ramos.

    Em rigor, a Sociologia Poltica que constitui parte da Cincia Poltica, no o inverso. A Cincia Poltica o todo, a Sociologia Poltica a parte; ali o gnero, aqui, a espcie. Fora dessa compreenso, seria falso, vindo em dano da Cincia Poltica, falar de identidade ou coincidncia das duas disciplinas. No a Cincia Poltica que est dentro da Sociologia Poltica, mas a Sociologia Poltica que fica no interior da Cincia Poltica. Todo socilogo do poder ou do comportamento poltico , com sua contribuio, cientista poltico, mas acontece que nem todo cientista poltico to-somente socilogo.

    Vejamos enfim, de modo sumrio, os principais temas da Sociologia Poltica, que so tambm temas integrantes e inseparveis do contedo da Cincia Poltica: a) o poder poltico, o comportamento poltico (indivduos e grupos), as manifestaes de autoridade (carismtica, tradicional e legal, segundo Max Weber), a legalidade e legitimidade do poder poltico; b) os fatores materiais do poder poltico: o territrio e a populao; c) as origens sociais do Estado e sua penosa evoluo, consagrando institutos que se desdobram historicamente, da escravido liberdade, do Estado de conquista ao Estado de cidadania livre (Oppenheimer); d) a poltica cientfica, volvida ba