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CINECLUBE FEMINISTAS DE QUINTA: DESCONSTRUÇÃO FEMININA E CULTURA AUDIOVISUAL Gabriela Santos Alves 1 Saskia Aparecida Maciel Lavinas de Morais Correia de Sá 2 Resumo: a proposta deste artigo é relatar de maneira sistemática a experiência construída pelo Cineclube Feministas de Quinta, antes Terça Feminista, durante 2015, seu primeiro ano de exibição e primeiro semestre de 2016. Concebido e liderado por um coletivo de mulheres, o Cineclube conta com exibições mensais, sempre nas últimas quintas-feiras de cada mês, no Cine Metrópolis/UFES. Essas exibições são seguidas por debates com convidadas mulheres e os filmes escolhidos destacam temas relacionados à questões feministas. O projeto tem se demonstrando como uma experiência de desconstrução de padrões de conformações do feminino na vida das mulheres participantes, funcionando como um gatilho que cria movimentos de afeto nos corpos. As temáticas do período abordado englobaram diversas questões: feminismo e mulher negra, maternidade e corpo da mulher, orgulho lésbico, estupro, violência contra a mulher e outras que nos são cotidianas em um estado que é um dos mais violentos contra as mulheres no país. Trata-se de uma pesquisa de onde falamos a partir de um lugar de mulher que continua a nos delimitar com suas fronteiras, sem que possamos muitas vezes nos narrar ou, ainda, percebermos as possíveis linhas de fuga. A sistematização de experiência, assim, propicia que nós, sujeitos da ação, apropriemo-nos de uma experiência própria, dando sentido a elas e reelaborando, assim, crenças e convicções. Palavras-chave: cineclube; feminismo; cultura audiovisual; desconstrução; sistematização de experiência. 1 Doutora em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação (PPGE/UFES). Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]

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CINECLUBE FEMINISTAS DE QUINTA: DESCONSTRUÇÃO FEMININA E

CULTURA AUDIOVISUAL

Gabriela Santos Alves1

Saskia Aparecida Maciel Lavinas de Morais Correia de Sá2

Resumo: a proposta deste artigo é relatar de maneira sistemática a experiência construída pelo

Cineclube Feministas de Quinta, antes Terça Feminista, durante 2015, seu primeiro ano de

exibição e primeiro semestre de 2016. Concebido e liderado por um coletivo de mulheres, o

Cineclube conta com exibições mensais, sempre nas últimas quintas-feiras de cada mês, no

Cine Metrópolis/UFES. Essas exibições são seguidas por debates com convidadas mulheres e

os filmes escolhidos destacam temas relacionados à questões feministas. O projeto tem se

demonstrando como uma experiência de desconstrução de padrões de conformações do

feminino na vida das mulheres participantes, funcionando como um gatilho que cria

movimentos de afeto nos corpos. As temáticas do período abordado englobaram diversas

questões: feminismo e mulher negra, maternidade e corpo da mulher, orgulho lésbico, estupro,

violência contra a mulher e outras que nos são cotidianas em um estado que é um dos mais

violentos contra as mulheres no país. Trata-se de uma pesquisa de onde falamos a partir de um

lugar de mulher que continua a nos delimitar com suas fronteiras, sem que possamos muitas

vezes nos narrar ou, ainda, percebermos as possíveis linhas de fuga. A sistematização de

experiência, assim, propicia que nós, sujeitos da ação, apropriemo-nos de uma experiência

própria, dando sentido a elas e reelaborando, assim, crenças e convicções.

Palavras-chave: cineclube; feminismo; cultura audiovisual; desconstrução; sistematização de

experiência.

1 Doutora em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ). Professora do Departamento de Comunicação Social e do

Programa de Pós-graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo

(UFES). E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação (PPGE/UFES). Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade

Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: [email protected]

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O Cineclube Feministas de Quinta

O Cineclube Feministas de Quinta, antes Terça Feminista, constitui-se em sessões cineclubistas

desenvolvidas de forma independente e colaborativa por um grupo de mulheres3 e que, até o

final do ano de 2015, ocorriam em todas as últimas terças-feiras de cada mês no Cine Metrópolis

da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, período em que o projeto se chamava Terça

Feminista. Em 2016, devido à mudança de distribuição da grade de exibição do Cine

Metrópolis, o cineclube passou a exibir suas sessões nas últimas quintas-feiras do mês, quando

passou a se chamar Feministas de Quinta. O projeto Feministas de Quinta tem nos surpreendido

por estar levando um contingente de público além da média para as sessões cineclubistas, que

sempre são seguidas por debates com convidadas após os filmes com temas relacionados às

questões feministas.

A partir de observações informais, o projeto Feministas de Quinta tem demonstrando ser uma

experiência de desconstrução de padrões de conformações do feminino na vida das mulheres

participantes e organizadoras, funcionando como um gatilho que cria movimentos de afetos nos

corpos a partir dos filmes cujas temáticas no último ano englobaram a questão da mulher negra,

maternidade e corpo da mulher, orgulho lésbico, estupro e violência contra a mulher e tantas

outras que são cotidianas nas nossas vidas em um estado que é um dos mais violentos contra as

mulheres no país.

Toda a organização do projeto é feita de forma colaborativa e coletiva pelo grupo de mulheres

que prepara as exibições com o apoio da equipe do Cine Metrópolis. As sessões são

programadas em discussões pelo grupo através de uma comunidade no Facebook, onde

escolhemos os filmes, buscamos informações sobre os temas e postamos ideias e propostas que

vão surgindo sobre o cinema feito por mulheres, geralmente com protagonistas mulheres e com

temáticas feministas que buscam desmanchar as máscaras que nos constituem enquanto gênero.

Também criamos uma página aberta para que o público possa colocar suas sugestões de filmes

e ideias para sessões especiais e sempre criamos um evento para cada sessão para divulgar os

filmes e as convidadas dos debates.

3 As idealizadoras do projeto são Ana Lucia Rezende, Deb Schulz, Gabriela Santos Alves, Maria Eduarda Gimenes

e Saskia Sá, com importante apoio de Luiza Grillo, do Cine Metrópolis e da equipe do cinema da UFES.

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Para nós, e também para grande parte das mulheres que participam do cineclube e com quem

tivemos oportunidade de dialogar, o projeto das Feministas de Quinta oportuniza tecer redes de

afetos em torno de uma sororidade importante na produção de novos olhares cartografados

sobre a experiência do ser mulher em um espaço-tempo de desconstruções e possíveis

demarcações de território sobre a identidade de gênero, sobre nossos corpos e nossos lugares.

Estes encontros que têm se demonstrado como formas de produção de conhecimentos por todas

e todos participantes, tornam-se lugar de educação não formal, onde novas propostas de

narrativas sobre o ser mulher no mundo são criadas, pois lidamos com as narrativas

cinematográficas sob a perspectiva do olhar cineclubista, na qual os filmes vistos têm suas

tramas apropriadas pelos participantes das exibições, por suas próprias narrativas nos debates e

conversas tanto presenciais como virtualmente nas listas de discussão das redes sociais. Sendo

assim, as sessões das Feministas de Quinta têm como objetivo geral avaliar a potência do

acontecimento do devir mulher gerado pelo encontro filme/público/debate, no qual se inscreve

uma cartografia do desejo a partir dos afetos produzidos nos encontros, propiciando a auto

ficção das mulheres participantes em narrativas de si e criando, assim, possibilidades de

produção de conhecimento.

A Metodologia do projeto é a mesma utilizada na atividade cineclubista, ou seja, toda a

produção do projeto é feita de forma colaborativa, coletiva e democrática, com a participação

de qualquer membro que queira se engajar na organização e curadoria dos filmes e escolha dos

temas que norteiam as exibições e debates pós sessões. Além disso, o processo envolve uma

atividade sem fins lucrativos e que se norteia de forma a fomentar a discussão de temas de

relevância para o universo das mulheres, propiciando debates que trazem à tona, produção de

sentidos e afetos entre as participantes das sessões.

Nossa principal ação é a de exibirmos filmes realizados por diretoras mulheres, com temáticas

feministas, uma vez por mês e em sessões gratuitas e abertas ao público em geral, com debates

pós sessão.

Vale reafirmar que o estado do Espírito Santo ocupa o primeiro lugar no cruel e alarmante

ranking de mulheres assassinadas por maridos ou companheiros nos últimos anos no

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Brasil, segundo dados divulgados em 2013 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e

Aplicada). Analisando os números da pesquisa, vê-se que num período de 10 anos (2001

a 2011), cinquenta mil mulheres foram vítimas de feminicídio no país, sendo que no

Espírito Santo são 11,24 assassinatos de mulheres a cada 100 mil habitantes.

Por outro lado, nota-se que desde a década de 1960 tem se intensificado o debate e a luta por

amplitude de direitos em campanhas pelo direito ao voto, à autonomia e à integridade do corpo,

aos direitos reprodutivos e contra qualquer tipo de violência e discriminação contra a mulher.

Essa maior participação social feminina que objetiva a igualdade de gêneros questiona, em sua

base, padrões baseados em normas de conduta pré-estabelecidos, ou seja, papéis sociais

distintamente determinados para homens e mulheres, nos quais a criação dos filhos e os

cuidados com o lar são atribuídos a elas, enquanto para eles são destinados o espaço do mercado

de trabalho e o sustento do lar.

Nesse cenário, que de um lado apresenta o estado do Espírito Santo como líder nos casos de

feminicídio no Brasil e por outro traz uma demanda por discussões e reflexões no espaço

acadêmico sobre questões de gênero, foi desenvolvida a proposta do Cineclube Feministas

de Quinta, experiência de crítica midiática, sororidade e emancipação que será descrita a seguir.

Feminismo e cultura audiovisual

A demanda por uma representação de gênero igualitária tem sido promovida a partir da ação de

movimentos sociais e acadêmicos que questionam as formas de representação da mulher a partir

de ideais preconceituosos e desqualificadores. Um dos principais objetivos é perceber

criticamente imagens cristalizadas ligadas à mulher e ao cotidiano feminino, como o ideal do

amor romântico e a obrigatoriedade da maternidade, desnaturalizando-as e reconstruindo-as.

O que se percebe, nesse cenário, é uma luta pela construção e aceitação de uma identidade

feminina pautada por condutas de escolha, empoderamento e emancipação. No conflituoso jogo

em que as relações de poder se estabelecem, a identidade feminina reelabora suas referências,

constituindo-se a partir de características que também são caras à ideia de identidade

contemporânea, aproximando-se das noções de mutação e fluidez:

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Até pouco tempo, falar da identidade era falar de raízes, isto é, de costumes e

território, de tempo longo e de memória simbolicamente densa. Disso e

somente disso estava feita a identidade. Mas falar de identidade hoje implica

também – se não quisermos condená-la ao limbo de uma tradição

desconectada das mutações perceptivas e expressivas do presente – falar de

migrações e mobilidades, de redes e de fluxos, de instantaneidade e fluidez

(BARBERO, 2006: 61).

O ideal de indivíduo moderno, representado pelo sujeito unificado que constrói sua identidade

a partir de valores e comportamentos fixos, entrou em decadência no decorrer do século XX,

em especial na sua segunda metade, quando mudanças estruturais passaram a fazer parte das

paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Se antes o

indivíduo social podia ser representado a partir de noções e valores quase que imutáveis, nas

últimas décadas tem se vivenciado a busca por um caminho alternativo, onde as sólidas bases

de sua estrutura identitária dão lugar a propostas e características mais abertas, contraditórias,

inacabadas e fragmentadas (HALL, 2005).

A formação de identidade do sujeito moderno é reelaborada na contemporaneidade a partir de

um contexto que Hall caracteriza como os cinco avanços, ou motivos, que promovem esse

descentramento: as diferentes interpretações do pensamento marxista, que possibilitaram novos

questionamentos sobre a posição que o sujeito ocupa na sociedade; Freud e o conceito de

inconsciente, atrelado a um ideal de identidade móvel e não explícito; os estudos e propostas

de Saussure, linguista que questiona quem são, de fato, os autores e os significados daquilo que

afirmamos em nossa linguagem; o trabalho de Foucault, em especial a ideia de disciplina e o

conceito de poder disciplinar, que objetiva o controle sobre os corpos dos indivíduos e, por fim,

os movimentos sociais que emergem a partir de 1960, em especial o feminismo, que além de

questionar o papel que desempenha a mulher na sociedade, propõe reflexões e críticas acerca

das identidades de gênero e sexuais:

O feminismo questionou a classica distincao entre o “dentro” e o “fora”, o

“privado” e o “publico”. O slogan do feminismo era: “O pessoal e politico”.

Ele abriu, portanto, para a contestacao politica, arenas inteiramente novas de

vida social: a familia, a sexualidade, o trabalho domestico, a divisao domestica

do trabalho, o cuidado com as criancas etc. Ele tambem enfatizou, como

questao politica e social, o tema da forma como somos formados e produzidos

como sujeitos generificados. Isto e, ele politizou a subjetividade, a identidade

e o processo de identificacao (como homens/mulheres, maes/pais,

filhos/filhas) (HALL, 2005: 49).

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Partimos aqui da compreensão do feminismo como a tomada de consciência feminina da

situação culturalmente oprimida e minoritária das mulheres, particularmente na condução de

seu discurso e de sua prática no espaço público, a partir da segunda metade do século XX. Na

tv e no cinema, por exemplo, o número de roteiristas e diretoras mulheres ainda hoje é pequeno

se comparado ao de homens que exercem tais funções. Assim, narrativas que expressam ideais

de autonomia, emancipação e empoderamento da mulher, e que sejam escritas e dirigidas por

elas, merecem atenção.

Já o conceito de empoderamento, amplamente utilizado nos discursos atuais, acadêmicos ou

sociais, é entendido a partir das proposições de Batliwala (1997), para quem a emancipação da

mulher está relacionada à compreensão e questionamento das relações de poder entre os

gêneros, em especial o patriarcado, objetivando mudanças estruturais individuais e coletivas

que possam garantir à mulher autonomia de pensamento e ação. Essa ressignificação se constrói

via conflito, caminho que garante também aos homens a superação das relações desiguais de

poder.

Sessões cineclubistas como cartografias de afeto e o devir filme-público

Sendo assim, as sessões cineclubistas ocorrem de forma a se criar uma cartografia a partir dos

encontros mensais onde ocorrem desmanches e produção de mundos para as mulheres afetadas

por estas exibições e a forma como conhecimentos podem ser produzidos neste contexto,

principalmente nos debates pós sessão, assim como a sua relação com a utilização do

audiovisual como estopim para que se produzam suas próprias narrativas de si apropriando-se

dos objetos-filme.

Neste processo de desmonte de máscaras do ser mulher pelo movimento feminista em sua

diversidade de formas e atuação, percebe-se que esse processo de criação está presente na forma

cienclubista de se apropriar das narrativas presentes nos filmes e nas narrações engendradas

pelos debates pós sessões sendo também um processo de criação pelo público que se torna

coautor da ficção de si, tornando-se assim, produtor de conhecimento.

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A importância do projeto de exibições das Feministas de Quinta está presente ainda em

pretender abordar a questão do cinema a partir da perspectiva do cineclubismo e suas práticas

entramadas às questões feministas em uma experiência não formal de educação, trabalhando

ainda, a partir da premissa da naturalização dos processos audiovisuais entrelaçados à vida na

contemporaneidade e da necessidade de desconstruir estas narrativas na construção de afetos

direcionados às mulheres em um processo de desnaturalização de conformações e de

desconstrução de identidades de gênero que nos são impostas a elas desde sempre, para a partir

dessa desconstrução, valorizar e preservar suas vidas. O audiovisual tem se tornado referencial

para a produção de mundos, pelo contato permitido pelos novos aparatos tecnológicos dos seus

meios de produção e difusão, aos quais somos expostos a narrativas que se colam às nossas

formas de nos viver e ver o mundo.

Por sua vez, os movimentos sociais e culturais já se utilizam do audiovisual como estratégias

para, através da experiência cineclubista de ver e discutir filmes, buscarem suas formas de

narrar ao mundo e a si mesmos e assim moverem-se nas paisagens que criam onde produzem

conhecimentos que provocam ações potentes de afirmação de diferenças. Sendo assim, projetos

de exibições cineclubistas, como os das exibições das Feministas de Quinta podem ser

importantes, principalmente no que provocam em termos de encontros e possibilidades de

criação de um lugar, onde se desenham possibilidades de fala e de escuta tecidas na sororidade

e nas narrações de experiências em um processo que acaba ultrapassando territórios e levando

para outros palcos e telas da contemporaneidade, a produção de conhecimentos.

O projeto propicia o encontro de mulheres nos seus devires com o mundo que nos lembra o

tempo todo que somos mulheres em constante produção das nossas condições de nos narrar a

nós mesmas e ao mundo nos nossos encontros. As exibições das Feministas de Quinta acabam

se tornando parte de uma pesquisa encarnada, de onde falamos de dentro de nossos corpos de

mulheres, de nossos lugares de mulheres que, ainda que em constante mutação, continuam a

ser um lugar que tenta nos delimitar com suas fronteiras que foram erigidas desde muito antes

de podermos nos narrar ou perceber as possíveis linhas de fuga em uma cartografia dos afetos

que nos movem.

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Ao atuarmos pela perspectiva e modos dos encontros cineclubistas, em um devir no qual o

público se reúne ao redor dos processos da oralidade audiovisual, tornando-se através deste

viés, coautor do filme projetado na tela ao narrá-lo, a narrativa fílmica se torna um devir do

público com o filme que se estabelece na medida em que se desnaturalizam os processos de

produção e difusão cinematográficos na tessitura das tramas narrativas pelo público. Não que o

filme se torne o público ou vice-versa, mas eles se hibridizam e nesse hibridizar ocorre o salto,

como bem nos fala Deleuze:

Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla

captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos. As núpcias são

sempre contra natureza. [...] A vespa e a orquídea são o exemplo. A orquídea

parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há um devir-vespa da

orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura pois "o que" cada

um se torna não muda menos do que "aquele" que se torna. A vespa torna-se

parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea

se torna órgão sexual para a vespa. Um único e mesmo devir, um único bloco

de devir, ou, como diz Rémy Chauvin, uma "evolução a-paralela de dois seres

que não têm absolutamente nada a ver um com o outro". (DELEUZE,

PARNET, 1998, p. 10).

Para trabalhar com as questões que pretendem ter como objeto, as experiências que ocorrem a

partir dos devires que explodem nas exibições cineclubistas das Feministas de Quinta, temos

ainda em Rolnik uma fala que ajuda a pensar no que consiste o envolvimento com a pesquisa

que nasce dos encontros cineclubistas das Feministas de Quinta:

“[...] consiste no movimento de afetos e simulação desses afetos em certas

máscaras, movimento gerado no encontro dos corpos [...] consiste também

num movimento contínuo de desencantamento, no qual, ao surgirem novos

afetos, efeito de novos encontros, certas máscaras tornam-se obsoletas;

movimentos de quebra de feitiço; afetos que não existem e máscaras que

perderam o sentido” (ROLNIK, 2011, p.36)

Sendo assim, podemos constatar que, muitas mulheres (e homens também) que fazem parte do

público das sessões se movem para as exibições devido a um desconforto sobre o lugar-mulher-

no-mundo que acaba provocando o desejo de criar mundos onde sejam possíveis outros lugares-

mulher, desencadeando também o desejo de desenhar a cartografia dos afetos coletivos traçados

nos encontros deste projeto em uma pesquisa na qual nos inserimos enquanto mulheres em

primeira pessoa. É importante, dessa forma, perceber neste traçado, que se torna possível

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produzir conhecimento que se dá na fabulação das vidas dos indivíduos como potências com a

valorização das suas diferenças durante o processo desencadeado a partir deste lugar encontro,

de conforto, de afeto e de fala. Ocorre nessa construção coletiva e colaborativa a constituição

de todas nós como protagonistas de nossas histórias ao utilizarmos o meio audiovisual e a

estratégia cineclubista para a narração da nossa ficção de si no mundo como afirmação da

diversidade.

O cineclubismo se torna um gatilho para a produção do conhecimento dentro das relações de

afeto que se dão durante e após as exibições fílmicas, com os debates. Os indivíduos são

produtores de mundos e de singularidades em um caminho entramado de possibilidades, uma

aventura na qual o único parâmetro aceitável é o da expansão da vida. As imagens e sons do

mundo audiovisual podem ser a força impulsionadora das intensidades na defesa da vida em

um processo de criação que se faz e se desfaz para além de si mesmo, destroçando e fazendo

explodir as máscaras impostas pelas imagens e sons através da perspectiva cineclubista de ver

e discutir filmes.

Esse processo começa a se inserir nos mais variados meios sociais e culturais, unindo a

oralidade narrativa de diversos grupos que encontram na perspectiva cineclubista, os meios que

potencializam suas discussões e percepções dos processos conformadores, os quais estão

presentes nas realidade das comunidades onde se inscrevem, acarretando nosso interesse em

ampliar o envolvimento com a construção das práticas cineclubistas junto a outras mulheres no

desenvolvimento do projeto das Feministas de Quinta.

As sessões do Cineclube Feministas de Quinta em 2015

A partir da reflexão sobre essas questões foram formulados os temas mensais das sessões do

Cineclube, que teve início em abril de 2015 com a exibição do filme “Exílio” (Saskia Sá, 2015),

totalizando 09 sessões durante o ano, sempre finalizadas com debate sobre os temas e questões

abordados durante cada sessão:

Sessão 1. Lançamento do Cineclube e do filme "Exílio": nessa primeira exibição, além da

apresentação do Cineclube, foram tratadas questões como o protagonismo na realização da

narrativa fílmica, com foco tanto na mulher que protagoniza uma narrativa audiovisual quanto

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a mulher realizadora, que dirige a obra, em especial no cenário da produção capixaba. Além da

exibição do filme, o projeto também lançou a Feirinha Feminista, espaço que oportuniza a

participação de artistas mulheres, onde elas podem expor e vender suas produções artísticas.

Foto 1: Debatedoras (organizadoras das Feministas de Quinta) – Sessão 1

Sessão 2. Ativismo na internet: partiu-se da exibição de vídeos virais da internet e de páginas

do facebook/canais do youtube para discutir-se o crescente aumento da participação feminina e

da construção de discursos feministas nesses territórios.

Foto 2: Público e debatedoras – Sessão 2

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Sessão 3. Feminismo e mulher negra: a partir da exibição do filme “Quase samba” (Ricardo

Targino, 2013), discutiu-se sobre feminismo negro e o lugar da mulher negra na produção

audiovisual brasileira recente.

Foto 3: Público – Sessão 3

Sessão 4. Territórios: exibição dos curtas “Vento Sul” (Saskia Sá, 2014) , “Raspage” (Produção

coletiva cineclube Nome Provisório, 2014) e “Rabidante” (Lívia Perez, 2015) seguido de debate

sobre os espaços e territórios sociais que são “permitidos” à mulher.

Foto 4: Público e debatedoras – Sessão 4

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Sessão 5. Visibilidade lésbica: partiu-se novamente da exibição de vídeos virais da internet e

de páginas do facebook/canais do youtube para discutir-se lesbianidade e (in)visibilidade

midiática e audiovisual.

Foto 5: Debatedoras – Sessão 5

Sessão 6. Estupro: a temática da violência contra a mulher foi vista e debatida a partir do longa

“India's Daughter” (Leslee Udwin, 2015) .

Foto 6: Público e debatredoras – Sessão 6

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Sessão 7. Gordofobia: partiu-se da exibição do curta “Madrepérola” (Deise Hauenstjein, 2015)

para promover a discussão sobre os padrões estéticos impostos às mulheres e, em especial,

sobre o tema da gordofobia.

Foto 7: Público no debate – Sessão 7

Sessão 8. Feminicídio: o assassinato da jovem Eloá sensibilizou todo o país em 2008. O longa

“Quem matou Eloá” busca respostas para quem, de fato, matou a menina e foi a partir dele que

questões como midiatilização e romantização da violência contra a mulher foram debatidos.

Sessão realizada em parceria com a Mostra Cinema e Direitos Humanos 2015.

Foto 8 : Público no debate – Sessão 8

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Sessão 9. Sabedoria ancestral: a sabedoria e as tradições da mulher xavante foram tema da

última exibição do ano de 2015, que contou com a exibição do documentário “Piõ Höimanazé

- a Mulher Xavante em sua Arte”, de Cristina Flória.

Foto 9: Organizadoras das Feministas de Quinta e debatedoras da Sessão 9

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Conclusões

As sessões das Feministas de Quinta têm buscado sempre a potência do acontecimento do devir

mulher gerado pelo encontro filme/público/debate, no qual o desejo se inscreve a partir dos

nosso encontros onde nascem possibilidades para que as mulheres participantes narrem-se a si

e as suas vidas com total protagonismo, criando assim, possibilidades de produção de

conhecimento e de encontros sempre aguardados com muito afeto e amor em torno do filme e

da experiência cineclubista que nos une uma vez por mês.

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