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Cole ção de Textos Ivo Tonet Salvador Maceió 23/08/2012

Coleção de Textos - Ivo Tonet - Final3

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  • Coleo de Textos Ivo Tonet

    Salvador Macei 23/08/2012

  • x ndice de Textos Cincia/Categorias

    1. A Crise das Cincias Sociais

    2. Cidadania ou Emancipao Humana? 3. Cidado ou Homem Livre?

    4. Cincia: quando o Dilogo se Torna Impossvel 5. Do Conceito de Sociedade Civil 6. tica e Capitalismo

    7. Interdisciplinaridade, Formao e Emancipao Humana 8. Mercado e Liberdade 9. Modernidade, Ps-Modernidade e Razo 10. Para Alm dos Direitos Humanos

    11. Pluralismo Metodolgico: Falso Caminho

    Educao

    1. A Educao Numa Encruzilhada 2. Educao e Concepes de Sociedade

    3. Educao e Formao Humana 4. Educao e Revoluo 5. Educar para a Cidadania ou para a Liberdade 6. Um Novo Horizonte para a Educao

    7. Universidade Pblica o Sentido da Nossa Luta

    Esquerda/Marxismo/Atualidade

    1. As Tarefas dos Intelectuais, Hoje

    2. Crise Atual e Alternativa Socialista

    3. Descaminhos da Esquerda: da Centralidade do Trabalho Centralidade do Poltica (Com Adriano Nascimento)

    4. Eleies: Repensando Caminhos

    5. Esquerda Perplexa

    6. Expresses Scio-Culturais da Crise Capitalista na Atualidade

    7. Introduo a Filosofia de Marx (Com Srgio Lessa)

    8. Lukcs e as Esquerdas Brasileiras

    9. Marxismo e Democracia

    10. Marxismo e Educao

    11. Marxismo para o Sculo XXI

    12. O Batismo de Marx

    13. Para Alm das Eleies (Com Srgio Lessa e Belmira Magalhes)

    14. Qual Marxismo?

    15. Recomear com Marx

    16. Revoluo Francesa: de 1789 a 1989

    Prefcios/Introdues/Resenhas

    1. Introduo a Ideologia Alem Karl Marx 2. 3. Cristina Paniago 4. John Holloway 5. e a Herana Hegeliana. Lucio Colleti e o Debate Italiano (1945- ? ? ? ? Orlando Tambosi 6. Utopia Mal Armada

    Trabalho/Socialismo

    1. O grande Ausente

    2. Sobre o Socialismo

    3. Socialismo e Democracia

    4. Socialismo: Obstculos a uma Discusso 5. Trabalho Associado e Revoluo Proletria

    6. Trabalho, Educao e Luta de Classes (Prefcio)

  • Cincia e Categorias

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  • CIDADANIA OU EMANCIPAO HUMANA?

    Introduo Fala-se muito, hoje, em cidadania como se esse termo fosse sinnimo de liberdade tout

    court. Supe-se que lutar por um mundo cidado equivaleria a lutar por uma sociedade efetivamente livre e humana. Supe-se, tambm, que com a cidadania, que certamente inseparvel da democracia, se haveria descoberto a forma mais aperfeioada possvel da sociabilidade.No porque ela fosse perfeita, mas porque estaria indefinidamente aberta a novos aperfeioamentos.

    Ao contrrio, parece-nos equivocado pensar que a cidadania expressa a forma superior da liberdade humana. Por suas origens e sua funo na reproduo do ser social, ela representa uma forma de liberdade, certamente muito importante, mas essencialmente limitada. Ao nosso ver, a efetiva emancipao humana , por seus fundamentos e sua funo social, algo radicalmente distinto e superior cidadania, que parte integrante da emancipao poltica. da mxima importncia esclarecer, hoje, essa distino se queremos que a luta social esteja orientada no sentido da superao dessa forma desumanizadora de sociabilidade, cujas razes se encontram no capital. Por sua vez, esse esclarecimento supe a busca da natureza mais ntima da cidadania e da emancipao humana. o que nos propomos fazer brevemente nesse texto.

    1. O ponto de partida O caminho mais comum, quando se pretende entender a questo da cidadania, tentar

    refazer a sua trajetria histrica. No cremos que esse seja, de fato, o melhor caminho. Sem dvida, o conhecimento da histria muito importante. No entanto, o processo histrico algo muito complexo e variado. Como evitar que nos percamos em meio a essa complexidade e variedade de aspectos? Precisamos de um fio condutor que nos permita compreender a lgica do processo histrico. Esse fio, ao nosso ver, so as determinaes gerais que caracterizam o processo de autoconstruo humana. Ou seja, a primeira pergunta no pode ser a respeito do que a cidadania, mas a respeito do que o homem, do que so essas determinaes fundamentais que demarcam o processo de tornar-se homem do homem. Esse o caminho que nos parece mais adequado para compreender todo e qualquer fenmeno social.

    Na perspectiva marxiana, esse fio tem como ponto de partida o ato que, para Marx, o ato originrio do ser social, vale dizer, o ato do trabalho. Segundo ele, se queremos respeitar o processo real temos que partir no de especulaes ou fantasias, mas de fatos reais, empiricamente verificveis, ou seja, dos indivduos concretos, o que fazem, as relaes que estabelecem entre si e suas condies reais de existncia. E o primeiro ato dos homens

  • exatamente o ato de trabalhar. Somente desse modo, seremos capazes de capturar as determinaes fundamentais que caracterizam o ser social e seu processo de reproduo. O exame rigoroso do ato de trabalho permite a Marx perceber que este se compe de dois momentos: a teleologia e a causalidade. Dois momentos, ressalte-se, de igual estatuto ontolgico. Ou seja, de um ponto de vista ontolgico, a conscincia to importante como a realidade objetiva. Trabalhar , portanto, conceber antecipadamente o fim que se pretende alcanar e atuar sobre a natureza para transform-la segundo esse objetivo. Por outro lado, ao transformar a natureza, o homem cria, ao mesmo tempo, o seu prprio ser. Tanto Marx, como Lukcs insistem em que por

    intermdio do ato do trabalho que se realiza o salto ontolgico do ser natural para o ser social. A partir dessa anlise mais rigorosa da estrutura ontolgica do trabalho, pode-se perceber

    que o ser social um ser radicalmente histrico e social. Isso quer dizer que nada existe, no ser social, que seja imutvel; que a totalidade deste ser sempre o resultado dos atos humanos. Como conseqncia, nenhum tipo de ordem social pode afirmar a sua insuperabilidade. A partir da anlise do trabalho, tambm se pode perceber que o ser social um ser que se caracteriza essencialmente pela atividade, a socialidade, a conscincia, a liberdade e a universalidade. Essas determinaes constituem elementos essenciais do ser social. No entanto, preciso ressaltar enfaticamente: a noo marxiana de essncia no , de modo algum uma noo metafsica, mas inteiramente histrica. O que significa que essas determinaes tambm tm suas origens nos atos humanos. O que as distingue dos aspectos fenomnicos no sua imutabilidade, mas a sua maior continuidade e unidade.

    No entanto, apesar de ser o ato originrio e fundante do ser social, o trabalho no esgota a natureza deste ser. Por sua natureza, o ato do trabalho um ato que tem a possibilidade de produzir de maneira cada vez mais ampla. O que tem como conseqncia o fato de que a complexificao sempre mais intensa uma caracterstica prpria do ser social. Essa intensificao da complexificao responsvel pelo surgimento de problemas e necessidades que no podem ser resolvidos ou satisfeitas diretamente pelo trabalho. A resoluo desses problemas e necessidades exige a estruturao de outras dimenses especficas, como a linguagem, a cincia, a arte, a educao, o direito, a poltica, etc. Todas essas dimenses tm a sua origem na dimenso fundante do trabalho, o que no significa, de modo algum que sto se d por derivao mecnica ou direta. A autonomia relativa -lhes necessria para que possam cumprir suas funes na reproduo do ser social. Em conseqncia disso, para compreender qualquer uma dessas dimenses teremos sempre que buscar as suas origens histrico-ontolgicas e a funo que devem cumprir na reproduo do ser social.

    2. Cidadania e emancipao humana

  • Com esses pressupostos, podemos agora investigar a natureza na cidadania e da emancipao humana.

    Para Marx, a cidadania parte integrante do que ele denomina emancipao poltica. Logo, faz parte do campo da poltica. E a poltica , para ele, em essncia, uma forma de opresso. Como diz, junto com Engels, no Manifesto Comunista (1998: 31): Em sentido prprio, o poder poltico o poder organizado de uma classe para a opresso de outras.

    Ao contrrio dos autores liberais, que consideram a poltica como a dimenso fundante da sociedade, Marx afirma que a emancipao poltica tem seu fundamento no que ele denomina sociedade civil, ou seja, as relaes econmicas. E a emancipao poltica uma dimenso que tem suas origens histricas na passagem do feudalismo ao capitalismo. Suas razes histrico-ontolgicas se encontram no ato de compra e venda de fora de trabalho, com todas as suas conseqncias para a constituio da base material da sociedade capitalista. Esse ato originrio produz, necessariamente, a desigualdade social, j que ope o proprietrio dos meios de produo ao simples possuidor da fora de trabalho. E o que ocorre s nossas vistas, hoje, mostra que a produo da desigualdade social uma tendncia crescente e no decrescente da reproduo do capital. O que significa que ser cada vez mais forte a impossibilidade de construo de uma autntica comunidade humana sob o capital.

    Todavia, esse ato originrio necessita para sua efetivao, de homens livres, iguais e proprietrios. Porm, na efetivamente livres, iguais e proprietrios, mas apenas sob o aspecto formal. Vale dizer, somente na dimenso jurdico-poltica e nunca na dimenso social. Essa situao responsvel pela diviso da sociedade capitalista em uma dimenso privada e em uma dimenso pblica, sendo a primeira a matriz da segunda. O que significa que essa segunda esfera no indefinidamente aperfeiovel, mas, pelo contrrio, essencialmente limitada. Ser cidado ser participante dessa dimenso pblica. Portanto, ser cidado no ser efetivamente, mas apenas formalmente livre, igual e proprietrio. Por mais direitos que o cidado tenha e por mais que esses direitos sejam aperfeioados, a desigualdade de raiz jamais ser inteiramente eliminada. H uma barreira intransponvel no interior da ordem social capitalista. Como conseqncia, a busca, hoje, pela construo de um mundo cidado uma impossibilidade absoluta.Em resumo: sem desmerecer os aspectos positivos que a cidadania representa para a autoconstruo humana, fica claro que ela , por sua natureza mais essencial, ao mesmo tempo, expresso e condio de reproduo da desigualdade social e, por isso, de desumanizao. Por isso mesmo, deve ser superada, porm no em direo a uma forma autoritria de sociabilidade, mas em direo efetiva liberdade humana.

    O que realmente deve ser buscado a emancipao humana. Ora, essa algo muito diferente da cidadania e da totalidade da emancipao poltica. O emancipao humana, ou seja,

  • uma forma de sociabilidade na qual os homens sejam efetivamente livres, supe a erradicao do capital e de todas as suas categorias. Sem essa erradicao, impossvel a construo de uma autntica comunidade humana. E essa erradicao no significa, de modo algum, o aperfeioamento da cidadania, mas a sua mais completa superao. Como diz Marx, nas Glosas crticas, h uma distncia infinita entre o homem e o cidado assim como entre a vida humana e a vida poltica.

    Assim como o ato fundante da emancipao poltica a compra e venda de fora de trabalho, o ato originrio da emancipao humana tem que ser, necessariamente, o trabalho associado. Esse ato pode ser definido, de incio, como uma forma de relaes que os homens estabelecem entre si na produo econmica, na qual as foras individuais so colocadas em comum e permanecem sempre sob o controle coletivo. Porm, a existncia desse ato de trabalho associado exige, para sua efetivao, duas condies. Primeira: um grande desenvolvimento das foras produtivas, que permita a produo de bens capazes de satisfazer as necessidades de todos. Segunda: a diminuio do tempo de trabalho, de tal modo que os homens possam dedicar-se a atividades mais propriamente humanas. Tais condies so o resultado do desenvolvimento do prprio capitalismo, embora, sob o capital, isto se realize de uma maneira deformada e desumanizadora.

    Essa forma de trabalho a nica que pode impedir a apropriao privada das foras sociais e, com isso, permitir a eliminao do capital, das classes sociais, da diviso social do trabalho, do mercado e de todas as objetivaes democrtico-cidads. Por isso mesmo, tambm a nica que pode permitir a construo de uma autntica comunidade onde todo os indivduos podero ter um acesso amplo a todas as objetivaes materiais e espirituais que constituem o patrimnio da humanidade; podero desenvolver amplamente as suas potencialidades; onde se encontraro em situao de solidariedade efetiva uns com os outros e no de oposio e concorrncia.

    Nesse momento, os homens tero chegado ao patamar mais elevado de sua entificao. E, ao contrrio da emancipao poltica, esse um patamar que abre um processo indefinidamente aperfeiovel para a humanidade. S ento se poder dizer que os homens so, de fato, livres. O que no significa, de modo nenhum, afirmar que so nem completa, nem perfeita e nem totalmente livres, mas que sero, como seres humanos, o mais plenamente livres possvel.

    Todavia, importante ressaltar: a emancipao humana no algo inevitvel. somente uma possibilidade. Se se realizar efetivamente ou no, depende da luta dos prprios homens. Porm, ao contrrio da impossvel cidadania mundial, ela uma possibilidade real, cujas bases se encontram na materialidade do prprio ser social.

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    TICA E CAPITALISMO Ivo Tonet

    Introduo

    Nunca, como hoje, se enfatizou tanto a importncia dos direitos humanos, a necessidade do respeito vida humana, de uma relao harmnica com a natureza, de uma ao poltica eticamente orientada, de uma recuperao dos verdadeiros valores. De outro lado, nunca foi to disseminada a conscincia de que h uma enorme confuso na rea dos valores. Em todas as dimenses da vida social, valores que antes eram considerados slidos e estveis sofreram profundos abalos. H uma sensao geral de desnorteamento e de insegurana. Parece que, de uma hora para outra, a sociedade se transformou num vale-tudo, onde no se tem mais certeza do que bom ou mau, correto ou incorreto. E, sobretudo, parece que os valores que mais se impem so os de carter, individualista, imediatista e utilitrio, chegando, muitas vezes, ao cinismo mais aberto. Aspira-se a um mundo justo, solidrio e humano, mas parece que estes valores se tornam cada vez mais distantes.

    O objetivo desse texto no o de refletir sobre o conjunto das questes implicadas no ttulo acima. Pretendemos abordar apenas um aspecto. Trata-se da fratura, cada vez maior, que se est abrindo no mundo de hoje, entre a realidade objetiva e os valores ticos proclamados.

    Que h uma dissociao entre estes dois momentos, na sociedade capitalista, algo da natureza desta forma de sociabilidade. Que hoje, com as possibilidades que esto disposio da humanidade para super-la ela esteja se tornando cada vez maior, eis o que move a nossa reflexo.

    1. Um perodo de decadncia.

    Para aqueles que admitem que as classes sociais so os sujeitos fundamentais (embora de modo nenhum nicos) da histria, o ano de 1848 marca o incio do perodo de decadncia da sociabilidade burguesa. Isto porque foi neste ano que a burguesia derrotou um conjunto de tentativas feitas pela classe trabalhadora de vrios pases europeus, para eliminar, pela raiz, a explorao do homem pelo homem. Sem dvida esta no foi uma vitria definitiva mesmo porque isto algo impossvel do capital sobre o trabalho. Contudo, esta vitria, de

    Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em educao pela UNESP-Marlia.

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    grande importncia exatamente porque se deu sobre a classe trabalhadora dos pases mais desenvolvidos, permitiu burguesia consolidar plenamente o seu poder econmico e poltico. Viu, ento, abertas diante de si as portas para um desenvolvimento extraordinrio das foras produtivas e para a configurao de uma ordem social sua imagem e semelhana. Contudo, isto tambm significou, como foi muito bem expresso pelo lema positivista ordem e progresso, que o desenvolvimento da humanidade, da para diante, se faria tendo por base a propriedade privada e, portanto, a continuidade da explorao do homem pelo homem.

    Como conseqncia, aquele impulso progressista, que levava a burguesia, desde o seu nascimento, a demolir as barreiras que a ordem feudal colocava ao desenvolvimento da humanidade, agora se transformava em uma fora conservadora.

    Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi responsvel pelo impulso conferido ao desenvolvimento da cincia e da tecnologia; pela supresso dos privilgios feudais e, portanto, pela nfase na igualdade de todos os indivduos; pela valorizao da razo e da atividade humanas; pela intensificao do carter universal da humanidade e pela ampliao do processo de individuao.

    Tudo isso, no obstante ter sido realizado a um custo altssimo de violncia e explorao, abriu caminho para a elevao de toda a humanidade a um novo patamar de existncia. Neste sentido, vale a pena ressaltar o carter decisivo que a revoluo industrial (1760-1830), capitaneada pela burguesia, teve para o desenvolvimento da humanidade. Com a revoluo industrial, a humanidade viu abrir-se, pela primeira vez na sua histria, a possibilidade de produzir riqueza suficiente para satisfazer as necessidades de todos os homens. Contudo, foi exatamente o enorme desenvolvimento das foras produtivas, que se iniciou a partir dela, que tornou claro, desde ento, que a desigualdade social, com todo o seu cortejo dos chamados problemas sociais, j no era uma questo de escassez de conhecimentos, de recursos, de tecnologia ou de bens, mas um problema de exclusiva e total responsabilidade das relaes entre os prprios homens.

    Este exatamente o fundamento da decadncia desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcanado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidades de todos, v-se impossibilitada de atender essa exigncia. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior parte da humanidade riqueza social. Em vez de impulsionar a humanidade toda no sentido de uma elevao, cada vez mais ampla e profunda, do seu padro de ser (ontolgica e no apenas material e empiricamente entendido), o que se v uma intensa e crescente degradao da vida humana.

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    2. O que decadncia

    Para evitar mal-entendidos, vale a pena clarificar um pouco esse conceito. Quando falamos em decadncia no estamos afirmando que, de 1848 para c, as coisas se tornaram piores em todos os aspectos. Tal afirmao no faria sentido, uma vez que ela contraditada pelos prprios fatos.

    Na esteira marxiano-lukacsiana, entendemos que a sociedade um complexo de complexos. Vale dizer, uma totalidade (sempre em processo), articulada e formada por inmeras partes. Embora matrizadas ontologicamente pelo trabalho, cada uma destas partes tem uma especificidade prpria e uma autonomia relativa. Deste modo, a natureza delas e a funo que exercem na reproduo do ser social so elementos importantes para o seu prprio desenvolvimento. No h, pois, um evolver uniforme e homogneo do conjunto do ser social. O mesmo vale para o processo que se d no interior de cada uma das partes que o compem. Poder haver avanos em certos aspectos ao mesmo tempo que, em outros, poder haver recuos.

    Contudo, assim como o desenvolvimento da totalidade o momento predominante em relao ao desenvolvimento de cada uma das partes, assim tambm podemos dizer que a direo positiva ou negativa que a totalidade toma um dos critrios mais importantes para aferir o carter de ascenso ou decadncia de uma forma de sociabilidade. A questo, assim, : considerado o patamar geral atingido pela humanidade, qual a tendncia geral em relao aos indivduos singulares? A apropriao, ampla e profunda, do patrimnio acumulado; a possibilidade dos indivduos, por meio dessa apropriao, realizarem largamente as suas potencialidades ou a excluso e/ou o acesso limitado, estreito, unilateralizado e deformado? Uma vida cada vez mais digna e autenticamente humana ou uma vida sempre mais pobre e esvaziada de sentido?

    Mas, h um outro critrio, tambm da maior importncia, para esse julgamento. Trata-se da resposta pergunta: o que que nos permite distinguir o que positivo e o que negativo no processo geral de tornar-se homem do homem? Evidentemente, esta reposta s pode ser dada na medida que definirmos quais so as linhas essenciais deste processo de tornar-se homem do homem.

    Sem podermos nos alongar aqui a respeito dessa questo, e tomando como base o pensamento marxiano-lukacsiano, diremos, resumidamente, o que segue. Partindo do trabalho como momento fundante do ser social, podemos constatar que ser homem (obviamente de modo sempre processual) ser criativo, social, consciente, livre e universal. De modo que o que permitir ao homem expandir, cada vez mais, as suas potencialidades, construir um mundo

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    adequado a uma vida digna, criar bens que possam atender as suas necessidades, apropriar-se (cada indivduo) do patrimnio material e espiritual comum ao gnero humano, participar, de modo cada vez mais consciente, do processo histrico, sendo seu sujeito efetivo, ter um carter positivo. Tudo que se transformar em obstculo a esse andamento, ter um carter negativo.

    Se articularmos esses dois critrios, poderemos com facilidade confirmar, sem cair numa homogeneizao simplificadora, a decadncia que marca a atual forma de sociabilidade.

    Sem dvida, no h como negar que, de 1848 para c, houve um enorme desenvolvimento das foras produtivas. E que houve inmeros avanos cientficos e tecnolgicos, que resultaram no melhoramento da vida de um nmero significativo de pessoas.

    Vale ressaltar, contudo, j aqui, que no por acaso que no conhecimento e na transformao da natureza ou daqueles setores sociais que mais podem contribuir para a reproduo do capital que se fizeram sentir esses progressos. Exatamente porque a se trata dos aspectos que mais contribuem para a produo de mercadorias, o que uma exigncia da prpria dinmica interna do capital.

    Contudo, tambm no h como negar que, mesmo esse desenvolvimento cientfico e tecnolgico no tem contribudo para melhorar a vida de toda a humanidade. Mas, no s no tem contribudo para melhorar como, sob certos aspectos, tem sido um fator de degradao profunda da vida humana. Basta lembrar dos avanos no campo da medicina. Sob o aspecto cientfico e tecnolgico so enormes, enquanto sob o aspecto da socializao desses benefcios as coisas andam em sentido contrrio.

    O agravamento crescente dos problemas sociais de toda ordem est a para confirmar que a dinmica desta ordem social no vai no sentido de ampliar, mas de diminuir relativamente o universo daqueles que tm acesso ao patrimnio da humanidade. Se houve, ao longo desses ltimos cento e cinqenta anos, ilhas e perodos de elevao do padro de vida (sem levar em conta que mesmo esse conceito de padro de vida muito questionvel), da maioria da populao de alguns pases (welfare state), tambm houve, do ponto de vista do conjunto espao-temporal da humanidade, um crescente retrocesso.

    Mas, no apenas no mbito da produo e do acesso riqueza material que se verifica essa decadncia. na degradao do conjunto da vida humana, na crescente mercantilizao de todos os aspectos da realidade social; na transformao das pessoas em meros objetos, e mais ainda, descartveis; no individualismo exacerbado; no apequenamento da vida cotidiana, reduzida a uma luta inglria pela sobrevivncia; no rebaixamento do

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    horizonte da humanidade que leva a aceitar, com bovina resignao, a explorao do homem pelo homem sob a forma capitalista, como patamar mais elevado da realizao humana.

    Vale a pena relembrar, aqui, o que dissemos acerca da importncia da revoluo industrial para a histria da humanidade. Ela significou a possibilidade de a humanidade produzir riquezas suficientes para atender as necessidades de toda a humanidade. Se, apesar disso, se verifica uma tendncia geral no sentido da degradao da vida humana, ento pode-se dizer que estamos vivendo um momento de decadncia e no de progresso.

    Sabemos que a explorao do homem pelo homem da natureza do capitalismo. E que, portanto, a desumanizao da vida humana est sempre presente, independente de qual seja o momento histrico. O que distingue, porm, o primeiro (primrdios at 1848) do segundo perodo do mundo moderno que no primeiro a burguesia representava, ainda que apenas de modo limitado, os interesses de toda a humanidade. Ao contrrio, no segundo seus interesses de classe particular colocam-se inteiramente em primeiro plano. Obviamente, em detrimento do restante da humanidade. Esse predomnio dos interesses dessa classe particular o responsvel maior pela crescente decadncia em todos os setores dessa forma de sociabilidade.

    Em resumo, esta forma de sociabilidade j no tem mais como abrir novos horizontes para a totalidade da humanidade. A concentrao brutal da riqueza em pouqussimas mos e o cinismo dos que a detm so apenas os aspectos mais visveis desse fato.

    Contudo, de algumas dcadas para c, este segundo momento (de 1848 a nossos dias), o da decadncia, ganhou contornos muito particulares. Com a ecloso da crise, no mais conjuntural, mas agora estrutural, do capital, aquilo que era um processo mais ou menos lento de decadncia se tornou uma perspectiva de catstrofe iminente. No no sentido da imploso imediata do sistema, mas no sentido de que os caminhos pelos quais a lgica do capital est conduzindo a humanidade colocam claramente em perigo a prpria sobrevivncia desta. A devastao da natureza e a violncia, sob todas as formas, cuja matriz a absurda concentrao da riqueza em poucas mos, levaro, fatalmente, a humanidade pelo caminho da sua destruio. No preciso citar os inmeros estudos que comprovam essa afirmao.

    Ora, verdade que nenhuma forma de vida assiste passivamente a sua morte. No enquanto puder lutar contra ela. Tambm verdade que sua defesa face ao perigo implicar na ativao de todos os meios de que possa dispor. exatamente o que acontece com a forma de vida burguesa. Sentindo-se ameaada, lana mo de todos os meios para defender a sua existncia. Mesmo que isso signifique a barbarizao mais brutal de toda a humanidade. Nesse sentido, o exemplo mais estarrecedor no tanto o fato do atual presidente dos Estados

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    Unidos invocar, descaradamente, a lei da fora nas relaes internacionais, mas o fato de o seu cinismo ser largamente aceito sem grandes resistncias.

    3. A fratura entre os valores e a realidade objetiva Diante desse quadro assustador, o que se passa no terreno dos valores? Mesmo entre

    a maioria daqueles que se pretendem comprometidos com a construo de uma ordem social justa? Uma dissociao cada vez maior entre o discurso e a realidade objetiva. Enquanto esta ltima vai no sentido acima apontado, de um aprofundamento na degradao da vida humana, o primeiro vai para o lado oposto: ou do apelo moralizante (solidariedade, ajuda, preocupao com o bem comum, etc.) ou das tentativas de fundar uma tica capaz de fazer frente a essa avalanche devastadora. No outro o sentido das tentativas em curso, tanto no sentido de exigir um comportamento tico no campo da poltica, quanto no sentido de buscar novos fundamentos para a justia social ou, ento, de alcanar um impossvel desenvolvimento sustentvel, que tenha entre seus pilares o objetivo de uma vida realmente digna para todos.

    A conseqncia disto uma fratura cada vez mais ampla entre os valores ticos proclamados e a lgica da realidade objetiva. Concretamente: uma a lgica do ser, outra a lgica do dever-ser. A um ser que vai no sentido de tratar tudo, inclusive os indivduos, como coisas, ope-se o dever de tratar os indivduos como fim. A um ser que se move no sentido cada vez mais individualista, ope-se o dever de ser solidrio. A uma realidade objetiva que est nucleada, cada vez mais, pelo interesse privado, se ope o dever de preocupar-se com o interesse pblico, com o bem comum. A uma lgica que, por exigncia da reproduo do capital, caminha sempre mais no sentido da devastao e da degradao da natureza, ope-se o dever de ter maior respeito pela natureza. E assim por diante. Estamos diante de uma clara viso idealista da problemtica dos valores. O que leva a pensar, por exemplo, que se nos conscientizarmos de que temos de ser solidrios, justos e pacficos, o mundo se tornar ipso facto solidrio, justo e pacfico..

    No entanto, por incrvel que parea, essa relao no harmnica entre ser e dever-ser perfeitamente coerente Mais ainda, a nica maneira de articular esses dois momentos numa forma de sociabilidade que, por sua prpria natureza, impossibilita uma articulao harmnica.

    Consideremos: qual o valor supremo que rege esta forma de sociabilidade? Parece-nos que no h dvida de que a produo de mercadorias e, portanto, a reproduo do prprio capital. Qual o valor supremo proclamado pela tica dominante? A vida humana, na sua forma mais digna possvel. evidente que entre esses dois valores h uma incompatibilidade radical. A produo de mercadorias implica, necessariamente, a

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    transformao do prprio homem em mercadoria e, portanto, a manuteno da explorao do homem pelo homem. A conseqncia disto a completa destituio do sentido mais genuno da vida humana.

    Ora, admitido esse pressuposto, a nica possibilidade de fundar uma tica a dissociao entre o reino da realidade objetiva e o reino dos valores. Estes, transcendentalmente fundados, teriam por misso orientar a transformao da realidade.

    Foi este o grande feito de Kant e por isso que ele , ao nosso ver, o autor que deu a contribuio mais genial, no terreno da tica, mas no s, para a sustentao dessa ordem social. E no por outro motivo que todos os pensadores ps-Kant, que no questionam radicalmente o capital, tm retornado a esse mesmo autor como fonte inspiradora. o caso de H. Arendt, de Rawls, de Habermas e outros. O que Kant fez foi elaborar uma tica fundada transcendentalmente e no de modo objetivo e imanente. Com isso, ele apenas realizou, de modo intelectual, aquilo que uma exigncia do processo social regido pelo capital. Com efeito, a matriz ontolgica do processo social inteiramente regida pelo princpio do interesse particular. Coisa, alis, reconhecida pelo prprio Kant quando diz que o homem tem uma natureza socialmente insocivel. Ao contrrio, o universo dos valores pretende-se voltado para o interesse universal. Salta aos olhos a radical inconciliabilidade desses dois universos. Como, ao nosso ver, o primeiro o fundamento do ser social na sua totalidade e, portanto, tambm do universo dos valores ticos, ento o segundo s pode comparecer sob a forma de uma dimenso abstrata. Vale dizer, o universo dos valores ticos s pode aparecer como um discurso vazio, que jamais pode ser efetivado praticamente. Trata-se, ento, de um discurso vazio, mas socialmente necessrio. Como argumento adicional, este discurso vazio se apresenta com um carter de princpio regulador, ou seja, como algo necessrio, mas configurado como um horizonte que jamais pode ser alcanado.

    4. O alargamento da fratura

    J vimos como da natureza da sociabilidade capitalista a existncia de uma fratura insupervel entre a lgica da realidade objetiva e o universo dos valores. E que essa fratura existiu e existe mesmo nos espaos e nos momentos menos brutais do capitalismo. Porm hoje a crise estrutural do capital confere a esse fato um carter novo. Ou seja, essa dissociao no s existe, como tende a se tornar cada vez maior e a assumir um carter sempre mais perverso. Como falar em respeito vida, em tratar as pessoas como fins e no como meios, em preocupao com a natureza e o bem-comum, em desenvolvimento integral do homem quando a realidade objetiva se encaminha a passos largos em rumos totalmente opostos?

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    Argumenta-se, muitas vezes, que nunca, como hoje, houve tanta preocupao com os direitos humanos, com as questes ecolgicas, com a problemtica ligada qualidade de vida e ao espao pblico. Isso verdade. Contudo, em vez de tomar isso como sintoma de decadncia, considera-se como uma demonstrao de positividade. Ao contrrio, ao nosso ver, a nfase em todos esses aspectos uma clara demonstrao da decadncia dessa forma de sociabilidade. Ela constitui a expresso de que quanto mais a realidade objetiva evolui no sentido da desumanizao, mais o universo dos valores ganha um estridente carter de discurso vazio e at de moralismo barato. Ou seja, quanto menos se vai no sentido de mudar a realidade objetiva, tanto mais se acentua o discurso sobre a necessidade de mudar a realidade. Como esse discurso no aponta em direo s causas mais profundas a prpria existncia do capital , mas apenas em direo aos efeitos o neoliberalismo , ele se perde no vazio. Se forem necessrios exemplos, veja-se a reunio realizada recentemente na frica do Sul, denominada Rio+10, sobre questes ambientais. A constatao, quase unnime, foi de que no s no houve avanos significativos, como houve, de modo geral, um retrocesso muito claro. Ditado por quem? Pela lgica de reproduo do capital.

    Talvez um dos aspectos mais trgicos dessa decadncia seja o fato de que a oposio a essa ordem social, que impossibilita uma vida efetivamente digna, se expresse, no universo dos valores, sob uma forma que, no obstante a inteno em contrrio, aquela que interessa reproduo dessa prpria ordem social. Vale a pena acentuar: essa tica abstrata, no s no se ope desumanizao da vida, como um elemento funcional a ela. Isso pode parecer absurdo. Como, ento, a nfase naqueles valores universais acima mencionados pode contribuir para a desumanizao da vida humana? fcil demonstrar isso. A lgica do capital, tomada na sua pura dimenso econmica, to perversa que, em pouco tempo, levaria destruio do prprio capital. Como se sabe, o desejo mais profundo do capital, o seu sonho dourado seria destruir aquele que o produz, mas necessariamente seu antagonista, o prprio trabalhador. Alm das lutas dos que se opem ao capital, so as outras dimenses sociais, entre as quais a tica, abstratamente posta, que impedem que essa lgica se realize de modo direto e brutal. Constituem elas uma espcie de freio, que, como no caso de um veculo, no impede que este se mova, mas lhe impem um certo ritmo. Contudo, diferena dos freios do veculo, que podem alterar radicalmente o seu movimento e a sua direo, esses freios, por terem naquela lgica o seu fundamento, no podem impedir nem mudar integralmente esse movimento desumanizador. Quando muito, contribuem para amenizar, e mesmo assim de forma bastante tpica e epidrmica, os aspectos mais gravosos e perversos. Ora, exatamente nisso que reside a sua funcionalidade para a reproduo da ordem do

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    capital. Permitir que ela funcione sem perder a sua natureza essencial, mas tambm sem deixar que as suas contradies internas emerjam com toda a sua fora.

    5. sanvel a fratura?

    Milhes de pessoas, de todos os quadrantes e de todos os nveis intelectuais, acham que possvel realizar o impossvel, mas no o possvel. Desejando, no entanto, que esse ltimo se torne realidade. Eis um dos aspectos mais trgicos desse momento de decadncia. O que o impossvel? Construir uma autntica comunidade humana, um mundo onde os valores universais tenham realidade objetiva sem questionar a lgica do capital. Portanto, humanizar o capital. Ora, sob essa lgica nem mesmo um mundo mais justo, mais livre e mais igualitrio possvel, dada a dinmica intrnseca do prprio capital. O que o possvel? Erradicar o capital, e ento construir uma autntica comunidade humana, na qual os indivduos possam transformar em prtica cotidiana os valores universais, encontrando nisso a realizao de uma vida verdadeiramente digna e cheia de sentido. (Nota sobre a possibilidade ontolgica e a possibilidade histrico-estrututural).

    Como se pode ver, a distino que fizemos, aqui, foi entre possvel e impossvel e no entre fcil e difcil ou entre mediato e imediato. O que no pode ser realizado tem a aparncia de factvel, ao passo que o que pode ser realizado (embora seja apenas uma possibilidade), aparece como no efetivvel. Parece mais fcil realizar o que impossvel e mais difcil efetivar o que possvel. Como se explica isso? Em primeiro lugar, porque h uma inverso de sentido entre o primeiro e o segundo. O que intrinsecamente impossvel a humanizao do capital visto, dado o desconhecimento de sua lgica mais profunda e o peso esmagador de sua realidade imediata, como realizvel, ainda que de modo lento e gradual. O que possvel a erradicao do capital tido, dado o desconhecimento da lgica mais profunda e imanente do processo histrico e a enorme dificuldade de visualizar as mediaes necessrias, como de fato irrealizvel. Em segundo lugar, porque no primeiro caso, a ao imediata e tpica pode mostrar um sucesso visvel. Como, porm, a conexo dessa ao com o objetivo maior pode ser apenas suposta, mas no demonstrada porque, de fato, no existe, sua possibilidade passa, imperceptvel e sorrateiramente, para o mbito da f e no da racionalidade. Non intelligo, sed credo (No entendo, mas acredito). Ou seja, no posso demonstrar a relao que existe entre o que estou fazendo e a humanizao do capital, mas mesmo assim acredito!

    No segundo caso, uma ao imediata e tpica, que pretenda estar voltada para a alterao radical da atual ordem social, no apresenta, neste momento histrico, nenhum

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    sucesso visvel. E sabe-se como importante sentir que se est realizando algo de positivo. A conexo pode existir, mas praticamente impossvel de ser percebida. S um conhecimento profundo da realidade social, orientado por uma perspectiva terica revolucionria, que permita apreender o seu movimento integral e no apenas superficial ou parcial, pode, de algum modo, possibilitar a captura dessa conexo. E mesmo assim, sem nenhuma garantia slida, at porque se trata de uma questo eminentemente prtica, ou seja, que diz respeito ao movimento da realidade social como totalidade. Da porque, aqui, a questo se coloca assim: Non intelligo et non credo (No entendo e no acredito). Vale dizer, no compreendo que se possa fundamentar a possibilidade de erradicao do capital e por isso no creio nisso.

    Baseados numa compreenso ontolgica do ser social e numa anlise da sociedade capitalista, cremos que possvel afirmar, com tranqilidade, que a dissociao entre a realidade objetiva e o mundo dos valores supervel. Mas, somente na medida em que houver uma radical transformao da atual ordem social. Ou seja, na medida em que, eliminado o capital, com todas as suas decorrncias, for instaurada uma outra forma de sociabilidade fundada no trabalho livre. Somente a superao da propriedade privada e a instaurao de uma forma de sociabilidade cujo fundamento seja o trabalho associado possibilitar ao discurso tico deixar de ser apenas um discurso abstrato para se tornar vida real.

    Considerando, pois, a impossibilidade de um mundo verdadeiramente humano sob a regncia do capital e a possibilidade deste mundo para alm dele, toda discusso sobre valores ticos tem que, necessariamente, ter como ponto de partida o questionamento radical do capital, da propriedade privada. Toda discusso que desconhea, passe ao largo ou no admita que a lgica do capital o fundamento ontolgico dessa forma de sociabilidade, uma discusso estril, falseadora e fadada ao fracasso. compreensvel que os gregos, medievais e modernos pr-1848 buscassem como viver justamente numa cidade injusta (isto , numa cidade fundada sobre a propriedade privada). Isto porque eles no tinham como compreender a matriz que se constitua no fundamento da cidade injusta e muito menos a conexo ontolgica entre esta matriz (o trabalho sob a forma da propriedade privada) e o universo dos valores ticos. Mas, depois que Marx desvendou essas questes, no h mais como deixar de tom-las como ponto de partida. Qualquer exemplo mostra isso com meridiana clareza. Basta um: como discutir acerca do respeito vida humana, acerca de uma vida realmente digna e cheia de sentido sem por em questo o ato fundante dessa sociedade, responsvel final por tornar esse respeito e essa vida impossveis?

    De modo que antes de qualquer discusso tica preciso responder a pergunta: possvel e, portanto, constitui-se num valor decisivo para a humanidade, a superao da sociabilidade regida pelo capital? Se a resposta for negativa, ento no haver como superar a

  • 11

    fratura entre o mundo da realidade objetiva e o mundo dos valores. Deste modo, a tica jamais poder deixar de ser abstrata, no sentido de dissociada da vida real. Se, como pensamos, a resposta for afirmativa, ento estar aberto o caminho para pensar uma tica que possa vir a tornar-se concreta.

    O mais interessante, e isto convm salientar, que nos dois casos a tica , hoje, necessariamente abstrata. Ou seja, no pode se tornar vida cotidiana real. Mas, h uma enorme diferena entre a abstrao da tica pensada no interior da sociabilidade do capital e daquela pensada em direo a uma futura sociabilidade do trabalho. No primeiro caso, a abstrao o outro lado da moeda da concretude da matriz do capital. Situa-se, portanto, no interior da ordem do capital. Por isso, jamais poder deixar de ser uma tica alienada e alienante.

    No segundo caso, tendo (a reflexo tica) por base o processo de tornar-se homem do homem e compreendendo os obstculos postos pelo capital autntica realizao humana e as possibilidades apontadas pelo trabalho, a abstrao apenas um momento que aponta para alm de si mesma, ou seja, para uma forma de sociabilidade onde ela possa se tornar concreta. Por isso mesmo, uma tica ontologicamente fundada tem, necessariamente, um carter revolucionrio. Porque, ao fundar os valores na objetividade do processo histrico-social e ao evidenciar a impossibilidade de realizar esses valores universais no interior da ordem social do capital, ela se inscreve no movimento de luta pela superao dessa mesma ordem.

    A guisa de concluso

    Em resumo, podemos dizer que tica e capitalismo se excluem radicalmente. Se por tica entendemos aqueles valores que elevam o indivduo a superar a esfera da particularidade para conectar-se com a universalidade do gnero humano, e se a sociabilidade regida pelo capital est fundada no interesse particular, ento no h como conciliar estas duas dimenses. Se isto verdade, duas constataes se impem. Primeira: toda tentativa de fundar uma tica no interior desta forma de sociabilidade s pode resultar numa tica abstrata e contribui, no obstante inteno em contrrio, para a reproduo dessa ordem social essencialmente injusta. Mais ainda: a nfase dada, hoje, questo dos valores, sem um questionamento radical da matriz fundante desta ordem social, no tem nada de positivo. Pelo contrrio, a expresso do extravio e da impotncia de uma conscincia que, ignorando a dinmica da realidade objetiva, pretende ditar normas do alto de um pedestal transcendental. Segunda: a fundamentao de qualquer tica autntica tem de ser precedida, necessariamente, pela demonstrao da

  • 12

    possibilidade e da necessidade ontolgicas da superao da explorao do homem pelo homem. Somente assim o discurso tico deixar de ter apenas uma coerncia lgica para ter uma coerncia ontolgica, vale dizer, ter a possibilidade (ainda que s a possibilidade) de se transformar, em outra ordem social, em prtica cotidiana.

    Referncias bibliogrficas

    ARENDT, H. A condio humana. So Paulo: Martins Fontes, 1997. BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. HABERMAS, J. La teora de la accin comunicativa. Madrid: Taurus, 1987. HOBSBAWN, E. A era do capital. So Paulo: Paz e Terra, 1999. LUKACS, G. Ontologia dellEssere Sociale. Roma: Riuniti, 1976. KANT, I. Fundamentao da Metafsica dos Costumes e outros escritos. So Paulo: Martin Claret, 2002.

    MARX, K. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Martn Claret, 2001. ____. El Capital. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1995. MSZROS, I. Para alm do capital. So Paulo: Boitempo/Ed. da Unicamp, 2002. RAWLS, J. Uma teoria da justia. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

  • 1INTERDISCIPLINARIDADE, FORMAO E

    EMANCIPAO HUMANA

    Introduo

    Fala-se muito, hoje, em interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade,

    pluridisciplinaridade e outras denominaes semelhantes. Todas essas seriam formas de superar o

    problema da fragmentao do saber e da formao profissional.

    No nossa inteno discutir, aqui, em detalhes, essa problemtica. No desconhecemos as

    diferenas que so feitas entre as vrias denominaes acima referidas e entre a

    interdisciplinaridade na pesquisa cientfica e na ao pedaggica. Tambm no nosso objetivo

    discutir a interdisciplinaridade entendida como proposta epistemolgica e como atitude pedaggica.

    Nossa inteno, nesse texto, fazer uma crtica dos fundamentos da proposta da

    interdisciplinaridade, demonstrando que, apesar do seu carter atraente e dos seus aparentes

    resultados, uma soluo equivocada para um problema mal equacionado.

    Qual o estado da questo?

    H uma sensao generalizada e causadora de mal-estar de que o conhecimento est

    excessivamente fragmentado; de que cada disciplina trata isoladamente de um determinado aspecto

    econmico, histrico, sociolgico, psicolgico, filosfico, artstico, etc e que, assim, no

    possvel adquirir uma viso de conjunto dos objetos estudados. O resultado disto uma formao

    construda com fragmentos desconexos e justapostos. Em conseqncia dessa viso fragmentada da

    realidade, a interveno prtica para o enfrentamento dos problemas sociais tambm se v

    comprometida, levando a buscar solues isoladas.

    Para essa formao fragmentada colaboraria, tambm, a intensa especializao, que levaria

    a uma concentrao cada vez mais localizada em aspectos restritos, tornando, de novo, o indivduo,

    incapaz de uma percepo da totalidade.

    A causa mais comum dessa fragmentao atribuda crescente complexificao da

    realidade social e conseqente ampliao do territrio do conhecimento. Salta aos olhos a enorme

    amplitude que esse territrio adquiriu, em especial a partir da modernidade. um fato amplamente

    reconhecido o avano extremamente rpido do conhecimento nos mais variados aspectos a partir do

    Renascimento. Se na Antiguidade era admissvel a existncia de uma figura enciclopdica como

    Aristteles, que no era a nica, mas certamente a maior, e no Renascimento ainda podemos

    admirar uma mente que dominava saberes to vastos e diversificados como Leonardo da Vinci, hoje

    seria impensvel, diante da vastido do que j foi descoberto, que algum pudesse abarcar,

  • 2minimamente, o conjunto do conhecimento. A revoluo industrial e a disseminao do capitalismo

    por todo o globo terrestre tambm contriburam enormemente para a ampliao e a variedade dos

    domnios do saber. Da a crescente especializao, necessria para o domnio, em profundidade, de

    um determinado campo do saber. A conseqncia dessa ampliao e dessa especializao seria,

    segundo os cultores da interdisciplinaridade, a compartimentao e o isolamento cada vez mais

    intensos de cada campo do saber. Assim, complexificao, especializao e fragmentao seriam

    conseqncias necessrias na trajetria do processo social.

    Diante do reconhecimento das conseqncias negativas desse processo, busca-se encontrar

    uma soluo que restitua ao conhecimento aquele carter de totalidade que permita, tanto na

    realizao de pesquisas tericas, como na formao profissional e no tratamento dos problemas

    sociais, superar aquela viso atomizada dos objetos. Da o surgimento das propostas de inter, trans,

    multi, pluri disciplinaridade. Por mais que haja diferenas entre essas propostas, o cerne da questo

    que a abordagem de um mesmo objeto sob vrios aspectos, no caso das cincias humanas

    filosfico, econmico, sociolgico, histrico, etc. seria o caminho para a superao dessa

    fragmentao do saber. Por outro lado, a prpria realidade indicaria a necessidade de evitar a

    rigidez da compartimentao. O recente surgimento de alguns novos campos da cincia, cujos

    limites so bastante fluidos, evidenciaria que praticamente impossvel definir claramente onde

    comea e onde termina um determinado territrio cientfico.

    Esse modo de pensar se tornou extremamente atraente, dando origem a teorizaes

    sistematizadas e sendo incorporado, no Brasil, nos PCN Parmetros Curriculares Nacionais. To

    atraente que dificilmente se imaginaria algum fazendo uma crtica no sentido de afirmar que se

    trata de um equvoco.

    Poderamos perguntar, ao final dessa introduo, porque esse modo de pensar se torna to

    atraente? E por que sua atrao tanta que, provavelmente, o fato de o questionarmos provocar,

    imediatamente, uma reao de espanto ou de rejeio?

    Essa atrao decorre, a nosso ver, do seu carter de obviedade, do fato de se apoiar em

    aspectos empricos verdadeiros e facilmente identificveis, de se apresentar como a nica via para

    superar a fragmentao do saber e de apresentar resultados aparentemente positivos.

    um fato que houve, ao longo da histria da humanidade, mas especialmente, nas ltimas

    centenas de anos, e mais ainda nas ltimas dezenas, uma grande complexificao da realidade social

    e uma enorme ampliao do territrio do saber. Tambm incontestvel que isso levou a uma

    especializao crescente, dada a impossibilidade de um indivduo s dominar o conjunto do saber e

    dado o surgimento de novos campos de atuao profissional. Ao longo desse processo foram sendo

    criadas inmeras disciplinas sem conexo entre si, fazendo da pesquisa e do ensino uma autntica

    colcha de retalhos. Em conseqncia, a formao se d pela justaposio de pedaos desconexos,

  • 3impedindo uma viso de totalidade. Do mesmo modo, tambm so visveis os variados e complexos

    problemas sociais que foram surgindo a partir da revoluo industrial e a impossibilidade de

    resolver cada um deles de modo isolado.

    Diante disso, parece que, de fato, o trabalho interdisciplinar um procedimento que tem

    resultados imediatos positivos. Pois, certamente verdade que a soma de aspectos econmicos,

    sociolgicos, filosficos, histricos e outros, trar um conhecimento mais ampliado do que se esse

    tratamento se limitasse a apenas uma dessas reas. Por outro lado, um conhecimento mais amplo

    permitiria um tratamento menos isolado de cada problema, seja no mbito profissional, seja na

    esfera da ao social.

    Tudo isso confere a esse modo de pensar essa aura de obviedade, pois entre

    disciplinaridade (fragmentao) e interdisciplinaridade (unificao) a escolha s poderia ser bvia.

    Em resumo, entre a fragmentao resultante da compartimentao do saber e a ao

    focalizada sobre os problemas sociais, de um lado, e a viso de totalidade que seria fornecida pela

    interdisciplinaridade e a possibilidade de uma ao social que considerasse os vrios aspectos como

    partes de uma totalidade, de outro lado, no h dvida que esta ltima alternativa , obviamente, a

    mais atraente. Ela se impe com o poder de algo inteiramente evidente.

    Deste modo, no se trataria de discutir a validade da interdisciplinaridade, mas apenas as

    suas formas concretas. E sobre isso que se debruam autores conhecidos, no Brasil, como Ivani

    Fazenda, Hilton Japiass e Antonio Joaquim Severino, entre outros.

    1. Os equvocos desse modo de pensar

    A contrapelo dessas idias dominantes , defendemos a tese de que esse modo de pensar

    profundamente equivocado. E que a interdisciplinaridade uma soluo equivocada para um

    problema mal equacionado.

    Por que isto? Em primeiro lugar, porque pressupe que a complexificao e a

    fragmentao so simplesmente resultados naturais do processo social, sendo a segunda uma

    conseqncia necessria da primeira.

    Em segundo lugar, porque desfaz a dependncia ontolgica do conhecer em relao ao ser.

    Por mais que faa referncia ao processo histrico que levou fragmentao do saber, no percebe,

    ou no aceita a relao de dependncia ontolgica do conhecimento em relao s condies

    materiais. Deste modo, termina por atribuir ao conhecimento uma autonomia que ele de fato no

    tem, tratando, assim, a fragmentao do saber como um processo que se d no interior do prprio

    saber.

    Da porque tambm se impe como algo evidente a necessidade de refazer a totalidade

    perdida, atravs da reaproximao desses novos campos.

  • 4Pressupe-se, portanto, que da soma desses diversos fragmentos possvel obter um

    conhecimento totalizante de um determinado objeto.

    Em terceiro lugar, porque, pressupondo a autonomia do saber, no toma como ponto de

    partida uma crtica do prprio processo material de fragmentao. Sua teorizao se limita a buscar

    superar a fragmentao pelas vias epistmica, pedaggica ou comportamental.

    Em quarto lugar, porque toma o padro moderno de cientificidade como o verdadeiro

    caminho para a produo do conhecimento cientfico, ignorando que a fragmentao do saber faz

    parte da natureza desse padro e que a origem dessa ciso no est no prprio saber, mas no solo

    social que lhe deu origem.

    Em quinto lugar, porque, ao tomar o padro moderno de cientificidade como o verdadeiro

    caminho para a produo do conhecimento cientfico, tambm ignora que este padro tem no sujeito

    o plo regente do conhecimento, o que resulta, como veremos, em graves e negativas

    consequncias.

    Passemos, ento, a um exame crtico dessa problemtica.

    2. Equacionando o problema

    Parafraseando Marx, em sua referncia religio, poderamos afirmar que a crtica da

    interdisciplinaridade no a crtica da interdisciplinaridade, mas a crtica do mundo que produz e

    necessita dessa forma de produo do saber. A questo inicial e fundamental, ento : que mundo

    este?

    Considerando, pois, esse pressuposto, antes de propor qualquer frmula de superao da

    fragmentao do saber preciso explicar esse fenmeno e no aceit-lo como um fato natural.

    necessrio compreender, desde suas razes materiais, o processo que levou a esse resultado.

    Contudo, a compreenso desse processo no pode partir de um momento j bem avanado do ser

    social que a modernidade. Partir da modernidade tomar como ponto de partida uma situao que

    j o resultado de um determinado processo histrico. Seria, de novo, tomar como pressuposto

    exatamente aquilo que deve ser explicado.

    Para entender como se chegou at esta situao faz-se necessrio apreender a trajetria do

    ser social a partir dos seus fundamentos originais, tanto em termos histricos como em termos

    ontolgicos. Em termos histricos, porque a prpria modernidade j o resultado de uma longa

    trajetria. E em termos ontolgicos, porque preciso buscar, na natureza do ser social, os

    fundamentos que deram origem ao processo de fragmentao.

    Somente assim se poder compreender tanto a natureza mais profunda da realidade social

    quanto os seus desdobramentos ao longo da histria. Vale dizer, s possvel compreender tanto o

    processo de complexificao quanto o de fragmentao apreendendo o carter unitrio do ser social

  • 5e o processo social que deu origem quebra dessa unidade. E isto, tanto em termos da sua

    materialidade quanto no que se refere ao processo de conhecimento. Para isso, preciso partir do

    ato fundante do ser social. Na esteira de Marx, pressupomos que esse ato o trabalho1.

    a partir da anlise do trabalho e de suas relaes com as demais dimenses do ser social

    tais como linguagem, socialidade, arte, cincia, poltica, direito, educao, filosofia, etc. que se

    compreende que o ser social uma totalidade, isto , um conjunto de partes articuladas, em

    constante processo. O trabalho, esse intercmbio do homem com a natureza, atravs do qual so

    produzidos os bens materiais necessrios existncia humana o ato que funda o mundo social.

    Porm, a prpria realizao do trabalho exige a interveno de outras dimenses, como linguagem,

    socialidade, conhecimento, educao para a sua realizao. Por outro lado, a complexificao da

    sociedade a partir do trabalho, faz surgir novas situaes, problemas e necessidades que demandam

    outras dimenses sociais para o seu enfrentamento. Pense-se na arte, na religio, na cincia, na

    poltica, no Direito. Nenhuma dessas dimenses trabalho, mas todas tm a sua origem a partir do

    trabalho. Vale dizer, todas elas tm uma dependncia ontolgica em relao ao trabalho. O ser

    social, assim, , na feliz expresso de Lukcs, um complexo de complexos, mas matrizado pelo

    trabalho. Desse modo, fica claro que a categoria da totalidade, antes de ser uma categoria

    epistemolgica uma categoria ontolgica, isto , constitutiva da prpria natureza essencial do ser

    social.

    A anlise do trabalho tambm nos permite perceber que ele uma categoria que remete

    sempre para alm de si mesmo, vale dizer, que possibilita a criao permanente do novo e no a

    simples reposio do mesmo como acontece no reino animal. Deste modo, prprio do ser social

    tornar-se cada vez mais complexo e universal. Isto significa que a complexificao no um

    defeito, mas uma determinao ontolgica do ser social.

    tambm a partir da anlise do trabalho uma sntese entre teleologia e causalidade, ou

    conscincia e realidade natural que se compreende que o conhecimento um momento que,

    juntamente com a realidade natural, constitui uma unidade indissolvel, cuja efetivao resulta na

    constituio da realidade social. Porm, esta anlise tambm permite compreender que o

    conhecimento tem uma relao de dependncia ontolgica em relao ao trabalho. Repetindo Marx

    e Engels (1984, p. 37): No a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a

    conscincia. Isto significa, sem nenhuma relao mecnica, mas levando em conta todas as

    mediaes insuprimveis, que a forma do trabalho, ou seja, o modo como os indivduos concretos se

    relacionam entre si no processo de transformao da natureza, o fundamento da forma como se

    1 A esse respeito, ver, de K. Marx. Manuscritos econmico-filosficos e O Capital; de G. Lukcs, Ontologia

    dellEssere Sociale e Prolegomeni ad una ontologia oggi divenuta possibile e As bases ontolgicas do pensamento e da atividade do homem; de S. Lessa, Mundo dos homens; de Jos Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia Poltica uma introduo crtica, cap. 1.

  • 6estrutura o conhecimento da realidade. Como sntese e exemplo disto poderamos dizer que a

    cientificidade (no simplesmente a cincia) do mundo moderno a forma do fazer cientfico

    historicamente condicionada pelo mundo moderno.

    Trata-se, ento, de compreender, a partir dessa unidade originria do ser social, como se

    deu, ao longo da histria, seu processo de entificao, que levou tanto complexificao e

    especializao quanto fragmentao e isso tanto na realidade material quanto no mbito do

    conhecimento.

    Partindo-se, pois, desse ato fundante do ser social, que o trabalho, pode-se perceber como

    a complexificao uma caracterstica ontolgica, e por isso insuprimvel, do ser social. Dos

    grupos primitivos e mais simples ao mundo atual, temos um processo ao longo do qual a realidade

    social vai se tornando cada vez mais complexa e universal. Por seu lado, a complexificao resulta,

    necessariamente, na especializao pois, de fato, impossvel a um nico indivduo abarcar a

    totalidade do fazer e do saber sociais.

    Porm, a entrada em cena da diviso social do trabalho e da propriedade privada imprimem

    a essa complexificao uma especificidade prpria e radicalmente diferente daquela que existia no

    interior da comunidade primitiva. Opera-se, ento, no interior do ser social, uma profunda ciso.

    Trata-se da diviso entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta diviso no , de modo

    nenhum, natural, embora adquira um carter de naturalidade. Pelo contrrio, resulta de um processo

    claramente social. Saber e fazer so separados e essa separao justificada teoricamente e

    contribui poderosamente para manter a explorao e a dominao de classes.

    Essa ciso ganha uma forma toda particular na sociedade burguesa atravs da

    fragmentao no interior do prprio processo de trabalho. Como se sabe, esta fragmentao faz do

    trabalhador uma mera pea na engrenagem de produo, impedindo-o de ter o conhecimento e o

    controle da totalidade do processo produtivo. Este conhecimento e este controle so detidos pelo

    capital e so instrumento fundamental de sua dominao sobre o trabalho. Alm disso, pelo

    processo de fetichizao, cuja origem est na forma especfica da produo da mercadoria, a

    realidade social recoberta por um carter de naturalidade. Deste modo, tanto a fragmentao do

    processo de trabalho como do conhecimento se apresentam como desdobramentos naturais na atual

    forma da realidade social.

    3. A crtica desse modo de pensar

    Partindo dessa materialidade do mundo moderno, podemos entender por que a

    fragmentao uma caracterstica tpica da cientificidade moderna e porque equivocada a

    proposta da interdisciplinaridade.

  • 7Sabe-se que a cincia moderna surgiu no perodo de transio do feudalismo ao

    capitalismo. O cerne dessa transio no mbito do conhecimento se situa na passagem da

    centralidade do objeto (na concepo greco-medieval) para a centralidade do sujeito (na concepo

    moderna). Mas, importante acentuar que essa mudana se deveu, em primeiro lugar, s

    transformaes materiais que se deram nesse perodo. A um mundo largamente esttico, finito e

    hierarquicamente ordenado, sucedeu-se um mundo em rpidas transformaes, cada vez mais

    amplo e sem nenhuma hierarquia. A uma ordem social diante da qual o sujeito se via apenas como

    expectador e contemplador, sucedeu-se uma ordem na qual o homem se via como construtor ativo,

    tanto prtica como teoricamente. Conhecer o mundo, especialmente a natureza, para transform-lo

    se tornou a caracterstica central desse novo modo de estar no mundo.

    Resumindo um processo extremamente complexo e de longa durao, podemos recorrer a

    Kant, no por acaso conhecido como aquele que realizou, na problemtica do conhecimento, a

    mesma revoluo efetivada por Coprnico na concepo de mundo. Da ser ele conhecido como

    autor da revoluo copernicana na concepo do conhecimento. Em sntese, essa revoluo

    significava que, em vez de o objeto ser o plo regente do conhecimento, seria o sujeito a ocupar

    esse lugar. As causas dessa mudana esto nas transformaes que o mundo sofreu ao longo desse

    perodo, gerando a demanda por um novo padro de conhecimento.

    Tendo perdido os fundamentos da ordem do mundo que, na concepo greco-medieval,

    estariam na natureza do prprio mundo (na sua essncia), o homem precisava buscar esses

    fundamentos em si mesmo. O cogito cartesiano emblemtico disso, assim como o empirismo

    tpico ingls. Eis porque, ao contrrio dos gregos e medievais, para os quais a primeira tarefa era a

    elaborao de uma teoria geral do ser, os pensadores modernos comeam por elaborar uma teoria do

    conhecimento, buscando construir fundamentos considerados mais slidos para o novo tipo de

    saber.

    Mas, essa busca dos fundamentos no interior da prpria subjetividade implicava a

    impossibilidade e a nulidade de buscar a essncia das coisas e, portanto, de encontrar a ordem

    estabelecida pela hierarquia das essncias inerente prpria realidade, como propunha a concepo

    greco-medieval. Na concepo moderna, a mediao inescapvel entre a subjetividade e a realidade

    do mundo so os dados dos sentidos. Nenhum conhecimento seria cientfico se no se apoiasse

    nesses dados e se extrapolasse o campo por eles permitido. Porm, esses dados so, em si mesmos,

    sempre singulares, parciais, mltiplos e caticos. Faz-se, ento, necessria a interveno da razo

    para orden-los.

    Propondo-se a superar o dissenso, sobejamente conhecido entre racionalismo e empirismo,

    Kant elabora a sua sntese que implica a articulao entre razo e dados da sensibilidade. Os

    sentidos colhem os dados e a razo classifica, organiza, extrai as legalidades e elabora uma

  • 8teorizao a partir deles. Deste modo, o objeto de conhecimento j no o mundo real, mas aquilo

    que o sujeito constri a partir dos dados colhidos pelos sentidos.

    A conseqncia lgica, tambm extrada por Kant que ns no podemos conhecer a

    coisa em si (o nmeno); s podemos conhecer a coisa como ela para ns (o fenmeno). Vale

    dizer, por esse andamento, a categoria da essncia, to cara concepo greco-medieval, se torna

    inatingvel e a categoria da totalidade se transforma em uma categoria puramente lgica. A

    realidade j no mais um compsito de essncia e aparncia, mas apenas fenmeno. Por isso

    mesmo, a ordem do mundo j no se encontra nele, mas o sujeito que imputa ao mundo um

    determinado ordenamento.

    Em sntese, nessa transio do mundo greco-medieval ao mundo moderno h uma

    passagem de uma perspectiva ontolgica centralidade do ser, embora de carter metafsico para

    uma perspectiva gnosiolgica centralidade do conhecer.

    Por outro lado, na origem da cincia moderna tambm encontra-se uma acirrada disputa

    entre a concepo de mundo crist e as novas tendncias profanas do conhecimento. Disputa que,

    como se sabe, no era meramente terica, mas tinha conseqncias prticas da maior gravidade. A

    soluo intermediria encontrada foi atribuir a cada cincia a competncia de falar sobre um

    determinado campo restrito da realidade. religio se reservava a competncia de elaborar uma

    viso de mundo totalizante. Deste modo, as diversas cincias se viam impedidas de extrair das suas

    pesquisas consideraes a respeito do mundo em geral.

    Mas, havia ainda outro aspecto da maior importncia. Como se sabe, a sociedade burguesa

    marcada, como nenhuma outra anterior, por uma intensa diviso social do trabalho, resultado da

    lgica auto-expansiva do capital. Diviso esta que se acentuou extraordinariamente com a entrada

    em cena da revoluo industrial.

    Como a sociedade burguesa seria a expresso da prpria natureza humana (socialmente

    insocivel, no dizer de Kant), nada mais justo que essa diviso do trabalho fosse considerada o

    modo natural de manifestar-se dessa natureza. A naturalidade dessa diviso social do trabalho, por

    sua vez, esteve na origem das chamadas cincias humanas, cada uma delas surgindo a partir da

    delimitao de um territrio especfico. Essa delimitao partia do pressuposto de que a realidade

    social no era um conjunto de partes intimamente articuladas, mas uma soma de partes sem conexo

    essencial entre si. Da porque cada uma das disciplinas economia, sociologia, cincia poltica,

    psicologia, antropologia, etc. poderia reivindicar o tratamento isolado de uma parte da realidade

    social.

    Ora, a teoria da interdisciplinaridade, como vimos acima, no tem como ponto de partida

    uma teoria da fragmentao. Vale dizer, no comea buscando uma explicao para o processo de

    fragmentao do saber. Apenas reconhece esse fato e as suas consequncias negativas. Mesmo

  • 9quando faz referncia fragmentao do processo produtivo capitalista, a conexo desta com o que

    acontece na dimenso cientfica muito tnue. Deste modo, a proposta de superao da

    fragmentao do saber ganha um carter marcadamente subjetivo. Deixando de lado as razes

    materiais da fragmentao do conhecimento, e mesmo admitindo que este um processo natural,

    pressupe que se trate de um problema meramente epistmico e que, portanto, pode ser superado

    tambm no plano epistmico. Quando muito, alm desse plano meramente epistmico tambm se

    agrega um plano moralista, enfatizando a necessidade de ter atitudes pedaggicas integradoras.

    Por sua vez, a articulao entre o carter fenomnico da cientificidade moderna, ao qual j

    aludimos acima, e o fetichismo da mercadoria, faz com que a realidade social seja resumida

    aparncia, ao fenmeno, aos dados empricos, perdendo-se, deste modo, as categorias da totalidade

    e da essncia, que, como vimos, so constitutivas da natureza do ser social.

    Vale lembrar, ainda, que a constituio da sociedade burguesa um processo que,

    comeando por volta do sculo XV, continua at hoje. No interior dele, podemos distinguir dois

    grandes momentos. O momento de ascenso, que vai do sculo XV at a metade do sculo XIX.

    Nesse perodo, a burguesia, que o sujeito fundamental desse processo, uma classe

    revolucionria, ou seja, est impulsionando a abertura de uma nova forma de sociabilidade, mais

    favorvel ao desenvolvimento da humanidade. Para isso, ela precisa de uma forma de conhecimento

    mais adequada a esse novo empreendimento. Da a necessidade de um conhecimento da natureza e

    da prpria realidade social de carter mais emprico e no especulativo. Como o seu antagonista a

    nobreza feudal e ainda no o proletariado, sua demanda por um conhecimento mais verdadeiro da

    realidade, inclusive social, pode ter um impulso muito positivo. Ainda que no seja um padro de

    conhecimento que v at a raiz do ser social ou que se equivoque na identificao dessa raiz, trata-

    se de uma aproximao realidade bem mais efetiva do que aquela proporcionada pela perspectiva

    greco-medieval. Exemplos desse impulso positivo so autores como Maquiavel, na poltica, Smith e

    Ricardo, na economia, Vico, na histria e Bacon e Galileu, no mbito da cincia.

    Contudo, esse impulso positivo sofre uma profunda inflexo negativa quando a burguesia

    se torna classe dominante. A partir desse momento, a burguesia tem necessidade de bloquear uma

    compreenso mais profunda da realidade social. Trata-se, da perspectiva dessa classe, de

    compreender a realidade social na forma e at o limite que permita a reproduo dessa ordem social

    considerada, no por acaso, a mais consentnea com a natureza humana. Nada disso intencional

    no sentido conspirativo, mas certamente intencional no sentido de que os pensadores tem

    conscincia do que esto fazendo e acreditam que esse o caminho mais adequado para a

    humanidade.

    exatamente nesse momento que se constituem as chamadas cincias sociais.

    Respondendo fragmentao da materialidade do ser social, mas tambm necessidade de

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    justificar a nova forma da sociabilidade, elas se configuram ao redor de dimenses isoladas da

    realidade social, que s se conectam entre si de forma inteiramente superficial e a critrio do

    prprio sujeito. Temos, assim, a economia, a sociologia, a cincia poltica, a psicologia, a

    antropologia, etc., e, em cada uma delas, muitas subdivises, todas elas delimitando seus campos de

    estudo e seus mtodos de abordagem dos objetos como se fossem partes inteiramente autnomas.

    Ora, ao eliminar as categorias da totalidade e da essncia da realidade social, joga-se,

    necessariamente, sobre os ombros do sujeito a tarefa de realizar os recortes do objeto a ser estudado

    e de conferir unidade aos dados empricos. A aparncia e o emprico se tornam a matria sobre a

    qual trabalha a cientificidade moderna. Como expressa muito bem Jos Paulo Netto, referindo-se s

    duas posies fundamentais em face do conhecimento do social, no mbito do racionalismo

    contemporneo(1989, p. 143):

    A primeira (...) concebe a anlise dos fenmenos a partir de sua expresso emprica

    (...). Nesta tica, o trabalho terico tem na sistematizao operada sobre o material

    emprico (seleo, organizao, classificao, tipificao, categorizao) um

    patamar prvio: sobre ela que a teoria se estrutura, produzindo um smile ideal que

    procura contemplar a organizao interna da empiria abordada atravs de um

    rigoroso tratamento analtico. A resultante da elaborao terica, o produto terico

    por excelncia, um modelo que a razo elabora e cria a partir do objeto

    empiricamente dado.

    4. A superao da fragmentao do saber

    Do que foi dito at aqui infere-se que a fragmentao do saber tem sua origem na div