12

Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

  • Upload
    lamkiet

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças
Page 2: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

Col

eção

: Fal

ando

de

Sen

timen

tos

Luciene Regina Paulino Tognetta

Americana - SP2011

Suplemento especial parapais e professores

Page 3: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

5

A história da menina e do medo da menina

“Ninguém pode fazer você se sentir inferior sem o seu próprio consentimento”.

Eleanor Rooservelt (1884-1962)

Eu já fui um pouco Serafina, confesso. Era uma menininha,

baixinha, magrela, na época em que as magras não faziam sucesso... Era

diferente por isso e por mais um motivo: era boa aluna e paparicada pelos

professores. O fato é que ninguém de nós, sejamos adultos ou crianças,

está livre do olhar atento de algozes que decidem, como única opção para

se sentirem também aceitos socialmente, atemorizar-nos com apelidos

pejorativos, ameaças, exclusões e tantas outras formas de cometer

bullying.

Sim, o texto de Serafina fala sobre vários aspectos da natureza

humana que estão presentes na escola e, dentre esses, o bullying.

Comecemos então pela explicação do fenômeno e suas características

contidas nas ações dos personagens de nossa história.

O que sofria Serafina? O fenômeno bullying

Bullying é um termo em inglês que significa intimidação. Do

inglês Bull, advém tal ideia de intimidar pela força. Força também é

central no núcleo de significação “vis” da palavra violência. Portanto,

uma força de intimidação violenta para com outrem. Temos encontrado

autores, principalmente entre os portugueses (ALMEIDA, A.; LISBOA, C.;

CAURCEL, M. J., 2005; 2007), que têm optado por uma tradução do termo

bullying à sua língua materna apresentando o fenômeno como maus-

tratos entre iguais. Concordamos com nossos colegas patrícios que uma

das características peculiares dessa forma de violência é o fato de que o

Page 4: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

6 7

colegas no espaço escolar por usar uma saia curta. Constrangida, a garota

só conseguiu sair da escola escoltada pela polícia. Rapidamente o fato

circulou pela mídia e muitos acreditaram ser um caso de bullying.

A questão é que não podemos considerar bullying se esse fato

é um ato isolado na vida desta garota. Foi, sem dúvida, uma forma de

violência, mas não de bullying se, antes desse acontecimento, ela não

havia sido vitimizada repetidas vezes por seus algozes. Essa é a razão

para não traduzirmos o termo como maus-tratos. O fenômeno bullying é

uma forma de maus-tratos, sem dúvida, mas cuja segunda característica

é a repetição, o que o torna de fato “fenômeno” que merece destaque

nos estudos sobre a violência na escola. Quem é alvo de bullying recebe

agressões, intimidações, gozações, ameaças, constantemente, o que torna

sua vida angustiante. É exatamente esse o problema que nos preocupa.

Não se trata de uma brincadeira isolada e sim de atos repetidos que

tornam a vida daquele que sofre os ataques um tormento. É violência,

sem sombra de dúvida. E toda violência é uma forma de desrespeito.

Toda violência “é uma forma de tratar o próximo como meio, e não como

fim em si mesmo” (...) toda violência “é negação da dignidade alheia. E

toda violência é ausência de generosidade, ausência de compaixão e, não

raras vezes, presença de crueldade.” (La Taille, 2007, p. 46)

Talvez Geysi, se não houvesse a repercussão do seu caso, fosse

um alvo fácil para bullying das próximas vezes, já que seus agressores têm

algo muito parecido com o que identificamos nos autores de bullying:

eles sofrem de falta de sensibilidade moral. De que se trata esse termo?

Segundo Smith (1999), esse “senso moral” se refere a um conjunto de

capacidades necessárias a uma ação moral: uma primeira capacidade diz

respeito a distinguir o certo e o errado a partir de uma hierarquia de valores

que são agregados à personalidade da pessoa. Essa primeira capacidade

é somada a outra também importante – a capacidade de atribuir valor a

outrem como alguém que ‘merece’ ser tratado com determinado valor

bullying se dá entre iguais. Isso significa que não se trata de bullying a

intimidação ou violência física e moral que um professor ou pai cometa

contra um aluno ou filho ou que esses cometam contra os adultos. Por

certo, humilhar uma criança na frente das outras, apelidá-la de algo que

a faça se sentir envergonhada são formas de violência à sua intimidade.

Da mesma forma, quando professores se queixam de ameaças que vêm

de seus alunos, de palavrões ou mesmo de agressões físicas ou morais

recebidas deles, não estão sofrendo bullying, embora não deixem de

sofrer uma forma também de violência. Infelizmente, tal confusão tem

sido expressada por alguns autores e pela mídia no Brasil quando, por

exemplo, circula-se a notícia de que 9% dos professores da rede de São

Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de

São Paulo, 17/06/2009). Se foram eles violentados em seus direitos de

cidadãos por parte dos alunos, sofreram intimidação e violência, mas

não bullying. Se foram ameaçados, intimidados, ofendidos por colegas,

então sofreram bullying no trabalho. Se foram ameaçados, ofendidos,

discriminados por uma autoridade, sofreram assédio moral.

O termo bullying é utilizado, assim, para caracterizar as relações

em que há violência entre crianças, adolescentes ou adultos que tenham

o mesmo “poder instituído” de agir e, portanto, não tenham diferenças

quanto à autoridade. Isso não significa que o autor, um dos personagens

do bullying, não tomará atitudes autoritárias e não tentará sobrepor sua

força física e moral sobre outro, como veremos a seguir.

Não concordarmos com que todas as formas de maus-tratos

entre iguais sejam denominados bullying: quanto a essa primeira

característica, entre iguais, estamos de acordo, porém não podemos

dizer que quaisquer tipos de maus-tratos (ainda que violentos, severos,

insensíveis e desumanos) sejam bullying. Houve um caso recente no

Brasil que nos chamou a atenção: uma garota, Geysi, estudante de uma

Universidade particular em São Paulo, foi ameaçada e ridicularizada pelos

Page 5: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

8 9

demais” (La Taille (2007,p. 46). E continua o autor: “isso é autoestima

heterônoma, não falta dela. Isso é pequenez, não necessariamente

infelicidade. É pequenez existencial e também pequenez moral.”

Ao contrário da heteronomia, um sujeito autônomo é aquele

que compreende o valor de uma regra moral, seu espírito, e por isso não

precisa ser vigiado por uma autoridade para agir bem. Ele mesmo é seu

próprio vigia.

Não é autônomo, portanto, aquele que justifica sua ação

culpabilizando o outro, como fizeram os agressores de Geysi, ao dizerem

que a constrangeram exatamente por ela os ter provocado por usar saia

curta.

Essa é, de fato, uma característica muitas vezes notada nas vítimas

de bullying: são vistas como “provocadoras”. Muitos professores notam

que grande parte das vítimas de bullying parece ter comportamentos que

concordam com o que seus agressores apontam: aquele que é chamado

de “chorão”, de fato, resolve seus problemas chorando; aquele que é

chamado de “bicha” demonstra comportamentos efeminados...

Mas o fato é que há entre elas, as vítimas, algo que precisamente

as caracteriza como alvos certos de bullying. São notadamente diferentes

dos estereótipos sociais vigentes: gordinhos, baixinhos, compridos,

magrelos como a Serafina, se saem bem nas aulas (chamados de “nerds”),

os tímidos, os que usam óculos, têm cabelos encaracolados (quando a

cultura prega o auge das chapinhas...). No entanto, essa não é a explicação

mais adequada para entendermos a sutileza do fenômeno em questão:

por que nem todos os que não pertencem aos estereótipos culturalmente

estabelecidos se tornam vítimas de bullying? Como se explica o fato de

que crianças a partir de três anos de idade2, mais ou menos, possam ser

vítimas ou agressores, se ainda não compreendem esses estereótipos

sociais?

2 Autores como RUIZ, R.; MORA-MERCHÁN, J. (1997) nos apontam para o fato de que desde a ‘tomada de identidade’ é possível que a criança passe a sofrer ou a ser autor de bullying.

moral. Seria, portanto, uma espécie de sensibilidade capaz de fazer o

sujeito olhar para o outro com olhos de quem se sensibiliza, se simpatiza1

com esse outro e o vê digno de receber uma ação justa, tolerante,

generosa, honesta ou respeitosa.

Diria La Taille (2007) que o autor de bullying, “para procurar

adquirir pontos positivos ao olhar dos outros, para manter sua ‘fama

de mau’ (...) é desprovido de senso moral, ou tem senso moral

demasiadamente fraco.” (p. 46)

Seria muito bom, por certo, se essa sensibilidade fosse estendida

para todos os seres humanos como desejou Kant e tantos outros que

afirmaram a necessidade de que tratássemos todos como gostaríamos

de ser tratados. Concordamos, pois, com La Taille que, mais do que ideal,

essa capacidade, em termos reais, pode ser fraca demais para algumas

pessoas, como no caso dos autores de bullying que não veem, em suas

vítimas, pessoas que devem ser respeitadas. São sofredores também,

porque, por algum motivo, como a falta de respeito vivida também

para com eles, tornaram-se pouco sensíveis ao outro. Falamos que eles

sofreram também uma falta de valor em termos de respeito e não que

houve problema de autoestima, pois a falta dessa última, os autores não

sentem. Aliás, veem-se com notado valor, mas valor fútil, passageiro,

valor que os leva a tudo para manter sua “fama”, manter sua “boa”

imagem diante dos outros. “Há covardia na agressão”, diria La Taille, pois

o autor “não corre risco” (p.45). Para os autores de bullying, continuaria

ele, “uma das formas de sentir-me bem consiste em rebaixar alguns e

adular outros”.

Podemos dizer que os autores de bullying, meninos e meninas

de oito, 18 ou de qualquer idade, são heterônomos, pois sua autoestima

“é constantemente medida em relação ao valor de outrem: sentem-se

fortes reforçando a fraqueza de uns e inclinam-se perante o prestígio dos

1 Em termos piagetianos ter simpatia por alguém significa, ainda que temporariamente, estar sensível a ele e vê-lo com “bons olhos”.

Page 6: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

10 11

Sim, pois não podemos negar a importância do público para que

haja o bullying. O público é o oxigênio que mantém a chama da vela ace-

sa. Os autores de bullying são fortes, viris, sádicos, tiranos, gozadores,

aos olhos de uma plateia. Não raramente, estes atacam seus alvos às es-

condidas, longe dos olhos das autoridades, mas sempre contando com

a presença dos colegas ou com o fato de que aqueles saibam o que fize-

ram com suas vítimas. Muitas vezes, meninos e meninas, espectadores,

se mantêm indiferentes à situação, por medo de se tornarem a próxima

vítima, quem sabe, ou porque também carecem de senso moral, preferin-

do ficar “do lado dos mais fortes”. Portanto, mais uma característica do

bullying: há sempre um público.

Pois bem, de posse dessas características e explicações para o

fenômeno é possível que nos indaguemos: todas as Serafinas terão forças

suficientes para superar sua condição de vítima? Não; infelizmente,

é a resposta. Contudo, tal negação nos impulsiona a pensar em ações

prementes que, enquanto professores e pais, podemos ter para ajudar

meninos e meninas a enfrentarem seus medos.

O que fazer? É a pergunta a ser respondida. Antes, porém,

gostaríamos ainda de aprofundar nossas reflexões sobre uma tarefa

que a escola não tem cumprido eficazmente e, por isso, tem favorecido

a permanência ou o surgimento de situações desse tipo de violência.

Bullying é, sem dúvida alguma, uma forma de exclusão social. Uma forma

de exclusão dentro de uma instituição que se apresenta como inclusiva.

A explicação nos parece bastante interessante: vítimas de

bullying, ainda que temporariamente, não têm força para lutar contra

o que sofrem porque se veem também diferentes. Têm uma imagem

de si empobrecida, que parece corresponder àquelas apontadas por

seus agressores. Dissemos “temporariamente”, pois podemos entender

a condição de vítima como estado: ela está alvo de bullying, pois pode

superar tal condição. Como? A resposta vem com outra pergunta: como

fez Serafina para se tornar parte do grupo que antes a excluía? Passemos

então para nosso segundo aspecto destacado na história da menina.

A menina tinha medos...

Na história de Serafina contamos sobre seu medo. Medonho

representa todos os medos que a menina, como qualquer ser humano,

tem. Para vencer o processo de vitimização a que foi submetida, Serafina

teve que buscar forças para superar seus medos. Onde ela pode buscar

essas forças? O próprio texto diz: dentro dela mesma, numa procura

com sucesso, Serafina encontra um pedacinho de si capaz de superar o

medo do Medonho. Certamente, dominar o medo que tinha foi possível

quando Serafina olha para si, pensa sobre seus medos, os enfrenta

porque os conhece. Conhece-os e conhece a si mesma. Então, as risadas

da criançada já não a incomodam, e, portanto, os autores de bullying já

não encontram alvo fácil para seus ataques em Serafina.

Mais do que isso, quando Serafina vence Medonho, vendo-o

então como pequenininho, ela se insere como igual num grupo daqueles

a que almeja pertencer. Ela sabia que causaria boa impressão com aquilo

que conseguia fazer e que isso corresponderia ao que seu grupo de

colegas também valorizava. Quando Serafina canta a canção de que todos

gostavam, ela se torna pertencente a esse grupo. E, então, atinge a todos,

seus antes agressores e o público, antes espectadores do bullying que ela

sofria.

Page 7: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

12 13

Novamente nos questionamos: quem são os diferentes? Nem

sempre são aqueles diagnosticados como portadores de necessidades

especiais. São também negros, índios, pobres, sujos, raquíticos e,

principalmente, os que não aprendem.

Soubemos outro dia de um caso. Contou-nos a professora de

uma sala numerosa, que acolhe 39 crianças de 5º ano, que 30% de seus

alunos foram diagnosticados por ela como ainda estando silábicos para

ler e escrever. São meninos e meninas, estigmatizados pela diferença

de idade do restante da classe, repetentes, aglomerados numa única

sala que recebeu a professora mais recentemente concursada, aquela

que menos pontos tinha para efetuar a escolha de onde começaria sua

carreira, aquela que é vista pelas outras (como ela mesmo nos relatou)

como a que “faz tudo para se mostrar”, já que está começando... O fato

é que essas crianças são altamente indisciplinadas. Por quê? A própria

professora tem a resposta. Explica ela: “comecei a notar que, na falta de

um material impresso, quando eu solicitava que os alunos copiassem da

lousa uma matéria, eles permaneciam em silêncio. Mas cada vez que

solicitava a resolução de um problema, a interpretação livre de um texto,

eles não o faziam, esperavam as respostas que possivelmente seriam

escritas na lousa para copiarem e passavam a conversar e bagunçar”. E,

continua ela, “compreendi que eram apenas ótimos copistas3, mas que

não sabiam pensar. Então, resolvi levar jogos e propor que ficassem em

duplas ou em pequenos grupos para que um ajudasse o outro nas tarefas

que propunha”.

Porém, trazer às aulas oportunidades de pensar não foi visto

como algo valioso pela direção da escola, que solicitou imediatamente

3 Estudos do Instituto de Estatística da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), realizados entre 2005 e 2007 em escolas primárias de 11 países da América Latina, da Ásia e África, chegam à conclusão de que o Brasil é um dos líderes na utilização de métodos mecânicos, pois 91,6 % colocam o conteúdo no quadro-negro para os alunos copiarem; 64,2% recitam tabelas e fórmulas e 63,8% das classes repetem sentenças.

Bullying e inclusão social na escola: um problema ainda sem

solução

Desde a Lei Federal nº 7.853 publicada em 24 de outubro de 1989,

a inclusão de pessoas com necessidades especiais na escola dita “normal”

foi assegurada pela legislação no Brasil. Uma conquista para uma escola

que pregava a democracia, mas que selecionava, dividia, separava e

excluía aqueles que eram “diferentes”.

Quem são aqueles que devem ser incluídos pela escola? Segundo

Corrêa (1990), os que possuem uma marca, um rótulo que os estigmatiza

em função do que é culturalmente aceito. Todo e qualquer ser humano,

continua a autora, que tem um “carimbo” limitando suas expectativas

de crescimento e tornando-o um humano prisioneiro. Quem são os

diferentes? Renomeados de diferentes formas e sob os mais diversos

rótulos: “‘pobre’, ‘sem condições de sobrevivência’, ‘descamisado’, ‘de

famílias desestruturadas’, ‘negligenciados’, ‘portadores de deficiência’,

‘pretos’, ‘doentes’, ‘homossexuais’, ‘descompensados’, ‘retardados’,

‘lentos’, etc...” (Santos, 2000, p. 47).

Entretanto, podemos nos indagar: será que, de fato, a inclusão

dos que são “diferentes” tem acontecido em nossas escolas? Sabemos

que a resposta é negativa para a maioria das instituições que educam

no Brasil. Meninos e meninas com dificuldades especiais são, a bem da

verdade, integrados ao sistema, e não incluídos. Transformá-los, adaptá-

los para pertencer a essa escola é o que chamamos de integração: nada

precisa se modificar para receber esse que é diferente. Por certo, como

diria Mantoan (2004), na perspectiva da integração “é papel do aluno se

adaptar à estrutura vigente na escola, aceitando as normas expostas pelo

sistema, sendo considerado objeto do currículo”. E continua: “o aluno

tem que se adaptar ao seu ambiente, como se ele ‘fosse culpado’ de suas

dificuldades” (Ibid).

Page 8: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

14 15

seus professores, são menosprezados quando o professor diz, a um de

nossos alunos estagiários, “eu dou aula para os que aprendem, porque

para os burros, os do fundão, não quero nem saber”?

O estigma de alvo é, muitas vezes, reforçado por ações não

intencionais, mas incisivas, de muitos professores: por acreditar que a

educação se dá por meio das críticas em público, por meio dos elogios

aos que se saem melhor, por meio das ameaças, pais e professores muitas

vezes reforçam o sentimento de menos valia de muitos de nossos alunos.

Da mesma forma, muitas vezes, o que deveria ser público se torna

uma ação particularizada que não promove a superação do problema de

violência entre os alunos. Em nosso livro anterior (Era outra vez o reizinho

... e seus vizinhos) discutimos o quanto uma “briga de galo” (quando dois

ou mais garotos brigam e outros assistem) precisa ser retomada com

todos os que estão envolvidos. Normalmente, o que se faz? Mandam-

se os “brigões” para a direção e que os outros se “dispersem”. O fato é

que os espectadores também participam do problema: são indiferentes,

e a indiferença é uma das piores inimigas de uma virtude como a

generosidade. “Não é comigo”, poderia dizer um aluno. Ou então “eu não

fiz nada, dona, só estava olhando”, diria outro. É exatamente aí que entra

nossa intervenção que desafia a exclusão social: é por não ter feito nada

que tantos meninos e meninas precisam ser questionados: e se fosse

com você? Como será que aqueles que apanharam se sentiram? Como

devem ser tratadas as pessoas? O que você poderia ter feito para ajudar

a solucionar o problema?

Infelizmente, a intervenção proposta pela escola é pontual:

chamam-se os pais, transfere-se o problema à polícia, suspende-se o

aluno que continua com raiva, com ódio do outro, indignado...

Por certo, não se trata de enxergar amigos onde há estranhos.

Uma proposta de inclusão implica necessariamente a “transformação

de relações sociais sedimentares, já que não se pode fazer uma lei que

à professora que voltasse as carteiras para o lugar em que sempre

estiveram: enfileiradas. Jogos? Segundo a diretora, a professora não daria

conta de dar todo o conteúdo do 5º ano, que não era fácil e que não

comportava “brincadeiras infantis”. E mais: se a única maneira de fazê-

los ficar em silêncio era propondo cópias da lousa, que isso fosse feito.

Infelizmente, a direção dessa escola está longe de entender que a criação

de condições para incluir “implica refletir de forma crítica sobre o papel

da educação, do projeto da escola, do sistema de avaliação etc.” (Fogli,

Silva Filho e Oliveira, 2008).

Por certo, meninos e meninas estigmatizados pelo fracasso

escolar são bons candidatos a alvos e mesmo a autores de bullying. São

excluídos da escola que não se adapta a eles, às suas necessidades. Esse é

um bom exemplo de integração e não de inclusão que acontece na escola.

Estigmatizados, estão com certeza todos os diferentes que não

aprendem na escola que não se renova e nem se preocupa em criar for-

mas de se adaptar às suas necessidades especiais. Notemos o olhar do

professor na sala de aula da Serafina: é voltado ao quadro, e não a quem

aprende. Até porque, infelizmente, perpassa pela cabeça de muitos pro-

fessores que o problema de bullying é uma brincadeira própria da idade.

Ou então, para outros, um problema que não é da escola. Mas convenha-

mos: ética não é um conteúdo da escola? Se sim, como afirmado pelos

parâmetros curriculares, é trabalho imprescindível do professor tratar

deste conteúdo em suas aulas. Se concordarmos com Ricoeur (1993) que

“ética é a busca de uma vida boa com e para o outro em instituições jus-

tas”, trabalhar com o tema da ética é trabalhar com as relações entre as

pessoas. É ajudá-las a buscar a “vida boa” como sinônimo de dignidade.

É possibilitar que meninos e meninas se vejam com valor, para então va-

lorizarem os outros.

Então nos questionamos: como tal tarefa tem sido realizada na

escola se, costumeiramente, crianças e adolescentes são humilhados por

Page 9: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

16 17

de “veado”, claro que de maneira pejorativa, é um problema particular

dele. Sua afirmação foi convicta: “Estamos na escola pública e precisamos

dar conta do conteúdo programático”. Acreditamos que não será preciso

retomar o que já dissemos sobre ética ser um tema a ser trabalhado na

escola. Interessantemente, a escola desse diretor é uma das instituições

em que mais encontramos regras. Em escolas como esta, se gasta um

tempo considerável com regras convencionais que não garantem a

dignidade das pessoas que lá convivem...6 Falta, então, “tempo” e

entendimento de que o respeito para com uma criança ou adolescente

chamado de “bicha” é imprescindível.

O que fazer?

“As crianças são candidatas a humanidade”, diria Hanna

Arendt...

É, portanto, nossa tarefa, humanizá-las. E isso significa gastar

tempo com aqueles que precisam de pessoas em quem confiar, a

quem admirar...7 Sim, pois o papel do professor e dos pais continua

imprescindível. É ilusão acreditar que as crianças se educam moralmente

sozinhas. Precisam de um adulto que lhes apresente o espírito das regras,

que diga para aqueles que são autores de bullying “Isso não se faz. Como

você pode fazer para reparar o que fez com seu colega?” e que, ao mesmo

tempo, para os alvos que não encontraram, ao contrário de Serafina,

6 Encontramos nos regimentos das escolas visitadas por nossos alunos estagiários regras como: “Não é permitido nas dependências do colégio o uso de brincos, colares, ‘piercings’, tatu-agens ou qualquer outro tipo de adereço extravagante”, “não é permitido o uso de ‘pochete’ ou qualquer outro tipo de bolsa fora dos padrões da escola” e ainda “não é permitido se apresentar no colégio com penteados que caracterizem desleixo, exibicionismo ou modismo”. São exemplos de regras convencionais.

7 Por certo, como diria Parrat-Dayan: “Se eu me coloco no lugar do aluno, onde o aluno vai se colocar?” Silvia nos lembra de que nossa tarefa não é ser “igual” ao aluno e sim alguém a quem ele pode admirar.

obrigue as pessoas a gostar uma das outras” (Fogli, Silva Filho e Oliveira,

2008).

Portanto, não é possível exigir a alguém que goste e simpatize com

determinado colega da escola. Até porque generosidade não é algo cuja

ausência se possa cobrar. Mas é preciso que se exija justiça, e justiça se faz

ao se discutir os conflitos com quem é de direito (e não tornando público

um problema que é particular) e permitir que os mesmos envolvidos, os

alunos, possam chegar, com nossa ajuda, a possibilidades de solução para

os problemas que têm. Esse é o papel, por exemplo, das assembleias4.

Contudo, o fato de a ausência da generosidade não ser condenável

não faz dela uma virtude menor: a generosidade é imprescindível para que

se possa humanizar as relações entre as pessoas. É dela que precisamos

quando choramos pela perda de alguém, quando nos sentimos sós

ou quando nos sentimos angustiados por carregar um peso que nos

sobrecarrega... Sim, pois se a falta da justiça pode ser condenável, a falta da

generosidade é, no mínimo, desprezível e nos afasta de sermos humanos

(La Taille, 2008). Como temos ensinado a generosidade na escola? Não

temos. Está provado que generosidade não se ensina, mas se possibilita

pela experiência da convivência com aqueles que são diferentes, que têm

gostos, ideias, preferências, sentimentos, muitas vezes diferentes dos

nossos. Em outros trabalhos já demonstramos como a generosidade não

tem sido presente na escola5.

A questão é que comumente se invertem os papéis: diria um

diretor que nossos alunos de licenciatura conheceram em seus estágios:

“Não pode falar sobre bullying na escola”. Como explicar esse fato? O

diretor se justifica dizendo que o problema de certo aluno ser chamado

4 Maiores discussões sobre como propô-las e conduzi-las o leitor pode encontrar no livro “Quando a escola é democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembleias na escola” (Tognetta e Vinha, 2007), Editora Mercado de Letras. 5 Ver “A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola” (Tognetta, 2003), Editora Mercado de Letras.

Page 10: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

18 19

forças para vencer seus algozes, seja um adulto presente ao dizer “Por

que você deixou que lhe tratem assim? O que podemos fazer para que

isso não aconteça mais?”, ajudando a vítima de bullying a se indignar

pelos insultos recebidos, ajudando-a a perceber o quanto é importante e

o quanto precisa se dar valor e ser respeitada.

Simples ações como essas já são um caminho para que mais e

mais Serafinas possam estar presentes entre nós. Quando permitimos

que as crianças manifestem seus sentimentos, quando criamos espaços

para que elas possam falar sobre o que sentem, possam falar sobre o que

gostam, sobre o que não gostam, é seu valor que estamos ajudando-as a

construir. Isso para que elas se conheçam e se atribuam valor. Não se trata

de criar especulações para saber da vida das crianças. Se sofrem, se têm

problemas em casa, já sabemos quando elas se tornam vítimas ou autoras

de bullying. Temos insistido em dizer que jogos e atividades que falem de

si não são terapias de grupo. São momentos de encontro solitário, ou com

seus pares, escolhidos pelas crianças (Tognetta, 2003; 2009).

Assim como os alvos precisam de ajuda, os autores também

necessitam de nossa contribuição para superarem sua condição de

agressores. Como dissemos, sofrem de falta de senso moral. Por essa

razão, mais e mais necessários são os momentos em que se pense nas

regras da escola, nas assembleias semanais e na discussão conjunta do

que é respeito pelos outros, que são sempre diferentes. Por um lado,

“não basta reconhecer e aceitar a diferença” (Alves, 2008). Por outro

lado, negar que as diferenças existam significa “submeter-se a padrões

preestabelecidos, o que acarreta a perda da identidade. A perda da

identidade, por sua vez, amputa-nos a condição de ser sujeitos, nos

colocando na de sujeitável. É contra isso que temos que lutar nos espaços

com os quais nos relacionamos”(Ibid).

Enfim, vencer os nossos medos de transformar a escola numa

escola acolhedora é preciso. Vencer os próprios medos de arriscar uma

nova forma de educar crianças e adolescentes que possam pensar e se

sentir valorizados é para nós um desafio. Um desafio prenhe de muitos

frutos, ainda que o parto seja doloroso...

Page 11: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças

20 21

Referências bibliográficas

ALMEIDA, A.; LISBOA, C.; CAURCEL, M. J. As explicações dos maus-tratos em

adolescentes portugueses. Possíveis vantagens de um instrumento narrativo

para a compreensão do fenômeno. RIDEP. Lisboa, Portugal: Vol. 19, nº1,

2005.

_____. ¿Por qué ocurren los malos tratos entre iguales?: Explicaciones

causales de adolescentes portugueses y brasileños. Interamerican Journal of

Psychology. México: ano/vol 4, nº2, ago. 2007, pp. 107 - 118.

ALVES, C. N. O Coordenador Pedagógico como agente para a inclusão. In:

SANTOS, M. P.; PAULINO, M. M. (org). Inclusão em Educação: culturas,

políticas e práticas. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

CORRÊA, C. Que é ser diferente em uma sociedade de iguais? Dissertação de

Mestrado em Educação, apresentada na Unicamp, na Faculdade de Educação,

Programa de Pós-graduação em Educação, 1990.

FOGLI, B. F. C. S.; SILVA FILHO, L. F.; OLIVEIRA, M. M. N. S. Inclusão na

educação: uma reflexão crítica da prática. In: SANTOS, M. P.; PAULINO, M. M.

(org) Inclusão em Educação: culturas, políticas e práticas. São Paulo: Cortez

Editora, 2008.

Folha de São Paulo: 17 de junho de 2009. Fundação Instituto de Pesquisas

Econômicas (Fipe) para o Ministério da Educação (MEC).

LA TAILLE, Y. Bullying. Revista PÁTIO. Ano XI nº 42, mai/jul, 2007.

_____. Moral e ética, dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed,

2009.

MARTINEZ, J. M. A.; ELVIRA, N. A. E. Definicion. In: El bullying: la intimidacion

y El matrato entre iguales. JMAM Ediciones, 2002, pp. 17 - 27.

RUIZ, R.; MORA-MERCHÁN, J. El problema del matrato entre iguales.

Cuadernos de Pedagogía, junio, nº. 270, 1997, pp. 45 - 50.

RICOEUR, P. Le “soi” digne d’estime et de respect. AUDARD, C. Le respect.

De l’estime à la déférence: une question de limite. Éditions Autrement, série

Morales, 1993, pp. 88 - 99.

SANTOS, M. P. Desenvolvendo políticas e práticas inclusivas “sustentáveis”:

uma revisita à inclusão. Educação em foco, v. 4, nº 2, set/fev, 1999 – 2000,

pp. 47 - 56.

SMITH, A. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

TOGNETTA, L. R. P. A construção da solidariedade e a educação do sentimento

na escola. Campinas: FAPESP/Editora Mercado de Letras, 2003.

_____. O reizinho e ele mesmo. Literatura Infantil. Coleção: Falando de

sentimentos. Americana: Editora Adonis, 2008.

_____. A formação da personalidade ética: estratégias de trabalho com

afetividade na escola. Campinas: Editora Mercado de Letras, 2009.

_____. Perspectiva ética e generosidade. Campinas: Editora Mercado de

Letras/FAPESP, 2009.

_____. O menino e a mãe do menino. Literatura Infantil. Coleção: Falando de

sentimentos. Americana: Editora Adonis, 2009.

_____. Era outra vez o reizinho... e seus vizinhos. Literatura Infantil. Coleção:

Falando de sentimentos. Americana: Editora Adonis, 2009.

TOGNETTA, L. R. P.; LA TAILLE, Y. A formação da personalidade ética:

representações de si e moral. Revista Psicologia: Teoria e pesquisa.

Universidade de Brasília, 2008.

TOGNETTA, L. R. P.; VINHA, T. P. Quando a escola é democrática: um olhar

sobre a prática das regras e assembleias na escola. Campinas: Editora

Mercado de Letras, 2007.

_____. Estamos em conflito, eu comigo e com você: uma reflexão sobre o

bullying e suas causas afetivas. In: CUNHA, J. L.; DANI, L. S. C.: Escola, conflitos

e violência. Santa Maria: Ed. UFSM, 2008.

_____. Até quando? Bullying na escola que prega a inclusão social. Educação

– Revista do Centro de Educação/Universidade Federal de Santa Maria, no

prelo.

Page 12: Coleção: Falando de Sentimentos - gostinhodeleitura.com.br · Paulo dizem já terem sido vítimas de bullying de seus alunos (Folha de ... Como se explica o fato de que crianças