203
Maria Denise Schimith COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAÇÕES ENTRE TRABALHADORES DE SAÚDE E USUÁRIOS? Implicações para a continuidade do cuidado Tese apresentada à Universidade Federal de São Paulo para obtenção do título Doutor em Ciências São Paulo 2013

COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAÇÕES …sites.multiweb.ufsm.br/.../Disciplinas/maria_denise_schimith_tese.pdf · de Saúde, contemplando a temática da continuidade do cuidado

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Maria Denise Schimith

COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES

ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?

Implicaes para a continuidade do cuidado

Tese apresentada Universidade Federal de So Paulo para obteno do ttulo Doutor em Cincias

So Paulo 2013

Maria Denise Schimith

COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES

ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?

implicaes para continuidade do cuidado

Tese apresentada Universidade Federal de So Paulo, Programa de Ps-graduao em Enfermagem da Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Enfermagem para obteno do ttulo de Doutor em Cincias. Convnio Dinter Novas Fronteiras Unifesp/ UFSM/ EEAN. Linha de pesquisa: Cuidado em Enfermagem e Sade na Dimenso Coletiva Vinculada aos Ncleos: Ncleo de Estudo e Pesquisa em Sade, Polticas Pblicas e Sociais da Unifesp e, Cuidado, Enfermagem e Sade da UFSM Orientadoras: Ana Cristina Passarella Brtas e Maria de Lourdes Denardin Bud

So Paulo 2013

Schimith, Maria Denise Colonialismo ou solidariedade nas relaes entre trabalhadores de sade e usurios? Implicaes para a continuidade do cuidado./ Maria Denise Schimith. -- So Paulo, 2013. xvii, 203f. Tese (Doutorado) Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista de Enfermagem. Programa de Ps-Graduao em Enfermagem. Ttulo em Ingls: Is it colonialism or solidarity in the relations between health works and users? implications for continuity of the care 1. Participao do paciente. 2. Continuidade da assistncia ao paciente. 3. Sistema nico de Sade. 4. Assistncia Sade.

iii

Tese de Doutorado vinculada linha de pesquisa Cuidado em Enfermagem e

Sade na Dimenso Coletiva e aos Ncleos de Estudo e Pesquisa em Sade,

Polticas Pblicas e Sociais. Programa de Ps-graduao em Enfermagem da

Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Enfermagem.

iv

Maria Denise Schimith

COLONIALISMO OU SOLIDARIEDADE NAS RELAES

ENTRE TRABALHADORES DE SADE E USURIOS?

Implicaes para a continuidade do cuidado

Presidente da banca: Profa Dra Ana Cristina Passarella Brtas

BANCA EXAMINADORA

Profa Dra Anna Maria Chiesa (EE/USP/SP)

Profa Dra Elisabeth Niglio de Figueiredo (EPE/Unifesp)

Profa Dra Teresinha Heck Weiller (Denfe/UFSM)

Profa Dra Cleide Lavieri Martins (FSP/USP)

Profa Dra Carmem Lcia Colom Beck (Denfe/UFSM)

Profa Dra Dirce Stein Backes (Enfermagem/Unifra)

v

Dedicatria

Dedico minha tese aos usurios da Estratgia Sade da Famlia que tm a

esperana de serem acolhidos e respeitados em sua singularidade. Tambm aos

gestores e trabalhadores da sade que ousam tornar a Ateno Bsica em

espaos de escuta, responsabilizao e solidariedade.

vi

Agradecimentos

Minha mais sincera gratido a todos e todas que fizeram este sonho se

tornar possvel,

minha orientadora da Unifesp, Profa Ana Cristina Passarella Brtas por

me ensinar a ser colega, respeitando minha histria e instigando minha

autonomia. Contigo compreendi que o importante na pesquisa seguir e investir

no que faz o corao bater mais forte;

minha orientadora da UFSM, Profa Maria de Lourdes Denardin Bud

pela disponibilidade e afeto com que me recebeu no grupo de pesquisa e por ter

aceitado o desafio de me orientar nesta caminhada;

Profa Anna Maria Chiesa pelas contribuies apresentadas no exame

de qualificao e na defesa, fazendo me sentir muito cuidada;

Profa Teresinha Heck Weiller pela participao na qualificao e defesa

e por compartilhar do mesmo sonho na construo do SUS;

Profa Cleide Lavieri Martins pelas contribuies na defesa e por

partilhar suas experincias, gerando muitos aprendizados;

Profa Elisabeth Niglio de Figueiredo por aceitar contribuir com a tese

no momento da defesa e pelos belos encontros na EPE;

s Profas Carmem Beck e Dirce Backes pela leitura e ricas contribuies.

s colegas dinterianas pelo convvio profcuo e por tornarem as aulas

do doutorado momentos de trocas e de amizades;

vii

Aos companheiros e companheiras do grupo de pesquisa Cuidado,

Sade e Enfermagem da UFSM, principalmente ao pequeno grupo pela troca

de conhecimentos e possibilidade de compartilhar projetos de pesquisa e

extenso;

Aos colegas do Ncleo de Estudo e Pesquisa em Sade, Polticas

Pblicas e Sociais da Unifesp pela possibilidade de aprendizado e troca de

experincias;

Profa Mnica Antar Gamba, minha amiga, com sua intensidade e

emoo me fez apreender o sentido da parceria e comprometimento;

s colegas enfermeiras que me auxiliaram durante o perodo de

observao, Bruna Sodr Simon e Melissa Gewehr, sem a dedicao de vocs

esta maratona no teria sido possvel;

Bruna, Franciele, Jamilles, Tas, Saul, Mariane, Marianne, Tifany, Lais

e Melissa pelo auxlio nas transcries das entrevistas;

Aos gestores da ESF Santa Maria que aceitaram participar da pesquisa,

dividindo suas experincias;

equipe e usurios da USF estudada pela acolhida e por possibilitarem o

ingresso no cotidiano de trabalho;

minha famlia amada, em especial ao meu companheiro Denilso, por me

acompanhar com amor e carinho e possibilitar meus estudos; aos meus lindos

filhos Vincius, Lucas e Bruno pelo amor e compreenso incondicional, vocs

so a razo da minha vida; Mariana Gaida por aceitar nossa famlia como ela ;

viii

Nick, segunda me do Bruno, por permitir minhas ausncias com

segurana e a tranquilidade de que cuidado no faltaria aos meus amores;

famlia que me trouxe ao mundo, principalmente ao meu pai Leonardo,

hoje em outra dimenso, que sempre nos incentivou aos estudos, e minha me

Natalina, sempre guerreira, agora necessitando de cuidados, soube me esperar

concluir esta tarefa; s minhas irms, irmos, cunhadas, cunhados, sobrinhos e

sobrinhas, que sempre acompanham e torcem por mim;

Carol Mussoline, minha sobrinha e afiliada, por estar presente na minha

qualificao;

famlia do Denilso que me acolheu com carinho e fez-me sentir parte

dela, em especial Vanise, Denise, Mirtes e Edson pelas conversas e

cumplicidade; e a minha sogra Claudina pelas oraes e exemplo de fora;

Aos amigos e amigas do Grupo Esprita Irmo Helil pela escuta e

carinho e por me manterem sempre em contato com a espiritualidade superior;

s colegas professoras da Enfermagem da UFSM por possibilitarem meu

afastamento e tornarem possvel a concluso desta empreitada;

s colegas professoras Stela Maris Padoin, Janine Schirmer e Laura

Guido por acreditarem e apostarem na proposta Dinter;

s professoras da Escola Paulista de Enfermagem de Unifesp e da Escola

de Enfermagem Ana Nery de UFRJ pelos ensinamentos e contribuies na minha

formao;

Universidade Federal de Santa Maria pela oportunidade de realizao

do doutorado;

ix

Sumrio

Dedicatria.......................................................................................... v

Agradecimentos.................................................................................. vi

Listas................................................................................................... xi

Resumo............................................................................................... xv

1 INTRODUO................................................................................. 1

2 FUNDAMENTAO TERICA..................................... 6

2.1 Princpios norteadores da Ateno Bsica e Estratgia Sade

da Famlia............................................................................................

6

2.2 A corresponsabilizao entre trabalhadores e usurios nas

praticas de cuidado.............................................................................

9

2.3 Construo de redes: da hierarquia conectividade.................... 11

2.4 Conexes entre o macro e o micro: conceito de conhecimento-

emancipao....................................................................................

13

3 PERCURSO METODOLGICO 16

3.1 Primeira etapa............................................................................... 16

3.2 Etapa 2: Relaes entre trabalhadores e usurios durante as

prticas de cuidado realizadas em uma USF......................................

19

3.2.1 Tipo de estudo............................................................................ 20

3.2.2 Unidade de Anlise.................................................................... 21

3.2.3 Coleta de dados......................................................................... 23

3.2.4 Critrios para a interpretao dos dados................................... 28

3.2.5 Aspectos ticos......................................................................... 29

4 RESULTADOS 31

4.1 Processo de implantao e acompanhamento da ESF em Santa

Maria...................................................................................................

31

4.1.1 A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da

ESF..................................................................................................

31

4.1.2 foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria: a

x

presena do SUS na vida das pessoas............................................ 32

4.1.3 A transio na troca de gesto................................................... 47

4.1.4 Nova gesto: novas escolhas?.................................................. 52

4.1.5 Desafio de explicar os altos e baixos da ESF em Santa Maria.. 56

4.2 Relaes entre trabalhadores de sade e usurio em uma USF. 62

4.2.1 Diferentes caminhos que o usurio submetido na RAS de

Santa Maria a partir da USF estudada................................................

62

4.2.2 Participao do usurio na deciso do encaminhamento:

negociao possvel?.......................................................................

87

4.2.3 Usurio encaminhado RAS: fatores que interferem nesse

caminhar..............................................................................................

95

4.2.4 Modo de gerenciar influenciando na autonomia e

responsabilidade dos trabalhadores...................................................

104

4.2.5 Usurio generalizado, desrespeitado......................................... 117

5 ANLISE E DISCUSSO 126

5.1 O que aprender com o processo de implantao da ESF em

Santa Maria?.......................................................................................

126

5.2 Barreiras continuidade do cuidado............................................. 131

5.3 Gesto do trabalho: implicaes para a continuidade do

cuidado................................................................................................

135

5.4 Colonialismo e a negao da pluralidade humana....................... 146

6 CONSIDERAES FINAIS............................................................. 155

7 ANEXOS.......................................................................................... 160

7 REFERNCIAS................................................................................ 163

Abstract

Apndices

xi

Lista de figuras

Figura 1 Esquema de gestores indicados para entrevista..................... 19

Figura 2 Unidade dialtica da subjetividade objetividade................... 150

xii

Lista de tabelas

Tabela 1 - Descrio dos perodos observados na USF.......................... 24

xiii

Lista de abreviaturas e siglas

AB - Ateno Bsica

ACD Auxiliar de Consultrio Dentrio

ACS Agente comunitrio de sade

APS - Ateno Primria Sade

ATB - Antibitico

CAEE - Certificado de Apresentao para Apreciao tica

CAPS - Centro de Ateno Psicossocial

CAPS i - Centro de Ateno Psicossocial infantil

CAPS Ad - Centro de Ateno Psicossocial lcool e drogas

CEDAS Centro de Especialidades e Diagnstico em Sade

CEDEC - Centro de Especialidades Erasmo Crossetti

CEREST - Centro Regional de Sade do Trabalhador

CMS Conselho Municipal de Sade

CO Centro Obsttrico

CRAS Centro de Referncia de Assistncia Social

CT Conselho Tutelar

DENASUS Departamento Nacional de Auditoria do Sistema nico de Sade

DINTER Doutorado Interinstitucional

Dra - Doutora

EEAN Escola de Enfermagem Anna Nery

Enfa- Enfermeira

EP Educao Permanente

ESF Estratgia Sade da Famlia

HGT Hemoglicoteste

HIV- Vrus da Imunodeficincia Humana (traduzido)

HUSM - Hospital Universitrio de Santa Maria

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

Md Mdico(a)

MPE Ministrio Pblico Estadual

MPF - Ministrio Pblico Federal

xiv

MPT - Ministrio Pblico do Trabalho

MS Ministrio da Sade

OMS - Organizao Mundial da Sade

OPAS - Organizao Pan-Americana de Sade

PA Pronto Atendimento

PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade

PRD - Programa Reduo de Danos

PROESF - Projeto de Expanso e Consolidao da ESF

PS Pronto Socorro

PSF Programa Sade da Famlia

PTS Projeto Teraputico Singular

RAS - Redes de Ateno Sade

RMPISPS - Residncia Multiprofissional Integrada do Sistema Pblico de Sade

SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia

SIAB - Sistema de Informao da Ateno Bsica

SUS - Sistema nico de Sade

TAC Termo de Ajuste de Conduta

UAC - Unio das Associaes Comunitria

UBS Unidade Bsica de Sade

UFSM Universidade Federal de Santa Maria

UNIFESP Universidade Federal de So Paulo

UPA - Unidade de Pronto Atendimento

VD Visita Domiciliria

xv

Resumo

Essa pesquisa insere-se no tema da integralidade da ateno do Sistema nico

de Sade, contemplando a temtica da continuidade do cuidado nas Redes de

Ateno Sade e tendo como objeto as relaes que se estabelecem em uma

Unidade de Sade da Famlia do municpio de Santa Maria, Rio Grande do Sul.

Os objetivos foram: analisar o processo de implantao e acompanhamento da

Estratgia Sade da Famlia em Santa Maria; compreender as relaes entre

trabalhadores e usurios durante as prticas de cuidado realizadas em uma

Unidade de Sade da Famlia do municpio de Santa Maria, relacionando-as com

a efetivao da continuidade do cuidado na Rede de Ateno Sade do Sistema

nico de Sade. Trata-se de uma pesquisa social, com abordagem metodolgica

qualitativa. Os objetivos desta tese foram desenvolvidos em duas etapas. Para o

primeiro objetivo, a coleta de dados foi realizada atravs de anlise documental e

entrevistas semiestruturadas com gestores. Analisamos as resolues, atas e

documentos do Conselho Municipal da Sade. As entrevistas foram realizadas

com 16 gestores, indicados intencionalmente, iniciando com a Secretria

Municipal de Sade que implantou a Estratgia Sade da Famlia. A apresentao

dos resultados foi organizada em eixos temticos: A Ateno Bsica em Santa

Maria antes da implantao da Estratgia Sade da Famlia; foi assim que a

estratgia comeou em Santa Maria: a presena do SUS na vida das pessoas; A

transio na troca de gesto; Nova gesto: novas escolhas? e Desafio de explicar

os altos e baixos da Estratgia Sade da Famlia em Santa Maria. O segundo

objetivo teve o estudo de caso como referencial metodolgico. A unidade de

anlise foi uma Unidade Sade da Famlia do municpio de Santa Maria. A coleta

de dados ocorreu por observao participante, direta e no estruturada;

entrevistas semiestruturadas; anlise de documentos e de registros. Os sujeitos

da pesquisa foram os trabalhadores de sade e usurios. A anlise ocorreu

guiada pela coleta de dados, mediada pela orientao terica e pelos

pressupostos estabelecidos. Os seguintes eixos temticos apresentam os

resultados: Os diferentes caminhos que o usurio est sujeito na Rede de Ateno

Sade; A participao do usurio na deciso do encaminhamento: negociao

xvi

possvel?; Usurio encaminhado Rede de Ateno Sade: fatores que

interferem nesse caminhar; O modo de gerenciar influenciando na autonomia e

responsabilidade dos trabalhadores; Usurio generalizado, desrespeitado.

Apreendemos que as escolhas da gesto, ou a proposta de governo, so os

disparadores para a melhoria ou degradao do Sistema nico de Sade. O

percurso da Estratgia Sade da Famlia est refletido no cotidiano das equipes,

com imbricamentos que precisam ser enfrentados, sob pena de tornar ineficaz e

ineficiente a reestruturao do modelo de ateno. Defendemos a transparncia, a

publicizao e a construo coletiva de critrios, tcnicos e singulares, a serem

utilizados pelas equipes no intuito de instituir novas maneiras de buscar a

integralidade da ateno e regular a Rede de Ateno Sade. preciso reverter

o padro de relacionamento entre usurios e trabalhadores, indo do colonialismo

para a solidariedade e da invaso cultural para a promoo da sade.

Descritores: participao do paciente; continuidade da assistncia ao paciente;

sistema nico de sade; assistncia sade.

xvii

o importante no reduzir o realismo ao que

existe, pois, de outro modo, podemos ficar

obrigados a justificar o que existe, por mais injusto

ou opressivo que seja (SANTOS, 2005, p.13).

1

1 INTRODUO

As Redes de Ateno Sade (RAS) so propostas integrantes aos

Sistemas Integrados de Sade no mundo todo. O Sistema nico de Sade (SUS),

na Lei 8080/90, estabelece como um dos seus objetivos a assistncia s pessoas

por meio da promoo e recuperao de sade, preveno de doena,

presumindo que isso se d pela integrao das aes preventivas e assistenciais.

Legitima que estas aes sejam organizadas de forma regionalizada e

hierarquizada em nveis de complexidade crescentes. Em 2010, o Ministrio da

Sade (MS) publicou a Portaria 4279/2010 conceituando a RAS como a

coordenao integrada de aes e servios de sade de diferentes densidades

tecnolgicas, que procuram garantir a integralidade do cuidado. A RAS tem como

objetivo a promoo da integrao sistmica, de aes e servios de sade com

proviso de ateno contnua, integral, de qualidade, responsvel e humanizada.

Busca ainda, entre outros objetivos, melhorar o desempenho do SUS, no que diz

respeito ao acesso, equidade e eficcia (BRASIL, 2010, p.4).

No Brasil, vrias pesquisas j indicam inexistncia da rede e falha na

continuidade da assistncia (TAVARES, MENDONA, ROCHA, 2009;

NASCIMENTO et al, 2009; PINAFO, LIMA, BABUY, 2008; SOUZA et al, 2008a;

SOUZA, GARNELO, 2008; SARINHO et al, 2007; CAMPINAS, 2004). H

pesquisas que indicam dificuldade na interface da Ateno Primria Sade1

(APS) e Ateno Secundria em outros pases, em especial nos que possuem a

inteno de garantia de acesso ao cuidado integral a seus cidados (DE VOS et

al., 2008; TELFORD et al, 2002; REDFERN et al, 2002), persistindo assim o

desafio da complementariedade nos sistemas pblicos no mundo todo. Vrios

fatores interferem no acesso a rede, os quais podem ser agrupados em

pertencentes macroestrutura, como a territorializao inadequada (ROESE,

GERHARDT, 2008); barreiras na organizao dos servios bsicos (CARRET,

FASSA, DOMINGUES, 2009; OLIVEIRA et al, 2008, SACCHI et al, 2006) e falha

1 Utilizaremos Ateno Primria Sade e Ateno Bsica como termos equivalentes.

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Telford%20R%22%5BAuthor%5Dhttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed?term=%22Telford%20R%22%5BAuthor%5D

2

na educao permanente (SILVA et al 2005; LUCCHESE et al, 2009). Outros so

compostos por aspectos relacionais, como comunicao (BARRIGA et al, 2002);

questes morais (HARRIS et al, 2007); caractersticas pessoais e profissionais dos

mdicos (ROSA FILHO, FASSA, PANIZ, 2008); falha na linha de cuidado

(LUCCHESE et al, 2009); processo de trabalho (TAVARES, MENDONA,

ROCHA, 2009; SCHIMITH, LIMA, 2004); atendimento fragmentado (MAEDA et al,

2007; OLIVEIRA, MATTOS, SOUZA, 2009) deciso pessoal dos gestores

(NOGUEIRA DAL PR, FERMIANO, 2007) e relacionamento interpessoal

(SACCHI et al, 2006). O rol de aspectos envolvidos aponta para a complexidade

da organizao e efetivao das RAS.

Estas pesquisas revelaram o que os usurios do sistema pblico de sade,

especialmente o brasileiro, enfrentam ao buscarem as portas para o atendimento

a seu cuidado. Na maioria das vezes no so individualizados ou singularizados

nos diferentes servios e aes que lhes so ofertados. Alm disso, a concepo

predominante que trabalhadores e gestores tm a respeito dos usurios, a julgar

pela forma como organizam ou executam as aes em sade, de um objeto, um

ser genrico, sem particularidades. Assim, o cidado brasileiro, que conta com

uma Constituio Federal que lhe promete acesso universal, integral e equnime,

se v solitrio na busca desse direito (MARQUES, LIMA, 2007). A questo de

fundo parece ser a de no se reconhecer o usurio como cidado e partcipe

nesse processo. Santos (2009, p.81) chama isso de colonialismo, revelado na

ignorncia da reciprocidade e na incapacidade de conceber o outro a no ser

como objeto.

Estudos que abarcam as relaes entre trabalhadores de sade e usurios

indicam que este um campo ainda aberto para descortinar a implicao na

continuidade do cuidado. Podemos citar pesquisa realizada nos Estados Unidos

(EUA) entre indivduos HIV positivos, especificando o aspecto relacional da

confiana, indica que a desconfiana pode ser barreira para a utilizao dos

servios de sade e interferir nos resultados destes (WHETTEN et al, 2006). Outra

realizada em So Leopoldo, Rio Grande do Sul (RS), cujo objetivo foi estabelecer

a rota crtica de mulheres no enfrentamento da violncia, apontou que no caminho

3

percorrido pelas mulheres muitas vezes no receberam acolhimento nos servios

e ainda, os trabalhadores minimizaram os pedidos de ajuda das mulheres e

culpabilizaram-nas (PRESSER, MENEGHEL, HENNINGTON, 2008). Estudo

identificou o imperativo de especificar as necessidades de usurias no pr-natal

com fortalecimento do vnculo com os profissionais (FIGUEIREDO, ROSSONI,

2008) e, em pesquisa realizada com o purperas de Curitiba, Paran, o

acolhimento e vnculo com profissional e equipe de sade somente foi

ultrapassada pelo desejo de ser algum com direito a diferena (SOUZA et al,

2008b). Indicaram, ainda, que no trabalho da enfermeira e da equipe de sade,

acolhimento e vnculo so aspectos positivos, mas demonstram a necessidade de

reconstruo de prticas que fortaleam a autonomia e autoconfiana das

mulheres para o cuidado em sade.

A participao do usurio pode se dar pelo modelo da chamada tomada de

deciso compartilhada. Este modelo depende de alguns elementos essenciais que

possibilitam tal participao, dentre eles, o incentivo explcito por parte do

profissional para a participao do paciente e a valorizao do direito do usurio

em desempenhar um papel ativo na tomada de deciso (FRAENKEL, MCGRAW,

2007). Esta prtica pode fortalecer a autonomia e responsabilizao dos usurios

pela proposta teraputica escolhida.

A submisso do usurio s regras de uma equipe de Sade da Famlia foi

revelada em pesquisa realizada durante mestrado acadmico (SCHIMITH, LIMA

2004) e neste momento incentiva-nos a questionar a relao existente entre esta

condio do usurio (submisso) e a continuidade do cuidado em outros pontos

do sistema. Outra motivao para estudar esse tema decorre da experincia como

docente do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria

(UFSM). Nossa experincia com atividades de ensino, pesquisa e extenso nas

ESF de Santa Maria permitiu que vivencissemos vrios momentos desde a

implantao da Estratgia Sade da Famlia (ESF) em Santa Maria. Durante as

vivncias em aulas terico-prticas, com graduandos e residentes

multiprofissionais, nos diferentes servios de sade, observamos que a

4

necessidade do usurio muitas vezes traduzida por um encaminhamento a outro

servio sem a participao deste.

O municpio de Santa Maria aderiu proposta em 2004, por meio do

Projeto de Expanso e Consolidao da ESF (PROESF). Justificamos a

realizao desta pesquisa por consideramos que a histria da ESF de Santa Maria

apresenta uma singularidade que deve ser respeitada ao se desenvolver

pesquisas relacionadas a essa rea da rede assistencial, identificando esse

processo e os possveis reflexos nas prticas de sade. Portanto, para entender

as relaes que se estabelecem em uma Unidade de Sade da Famlia (USF) e a

construo do fluxo assistencial na rede de servios de sade, necessrio se faz

considerar a complexidade da construo local de sade, a partir da histria de

implantao da ESF em Santa Maria, anlogo ao que Santos (2009, p. 81)

denomina de campo privilegiado do conhecimento emancipatrio. A APS

considerada o centro de comunicao da RAS, pela funo resolutiva dos

cuidados primrios sobre os problemas mais comuns de sade e a partir do qual

se realiza e coordena o cuidado em todos os pontos de ateno (BRASIL, 2010,

p.4), e a ESF o principal modelo de APS no SUS, justificando o locus deste

estudo.

Assumimos como pressupostos que com a negociao e a tomada de

deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios, o encaminhamento

realizado pode ser promotor de responsabilizao, tanto do trabalhador quanto do

usurio; que, ao contrrio, o encaminhamento sendo uma deciso unilateral pode

gerar desresponsabilizao tanto do trabalhador quanto do usurio, funcionando

como barreira ao acesso equnime aos servios e comprometendo o desempenho

do SUS.

A questo norteadora desta pesquisa como aspectos relacionais da

negociao e a tomada de deciso entre trabalhadores e usurios durante as

prticas de cuidado em uma USF podem efetivar a continuidade do cuidado na

RAS do municpio de Santa Maria? Reiteramos que entre os aspectos relacionais,

a negociao e tomada de deciso compartilhada, so elementos que se

constituem em espaos para a participao do usurio.

5

Os objetivos deste estudo so:

1. analisar o processo de implantao e acompanhamento da ESF em

Santa Maria;

2. compreender as relaes entre trabalhadores e usurios durante as

prticas de cuidado realizadas em uma USF do municpio de Santa

Maria, relacionando-as com a efetivao da continuidade do cuidado

na Rede de Ateno Sade do SUS.

6

2 FUNDAMENTAO TERICA

O referencial terico que embasa esta pesquisa est estruturado em itens

que discutem os princpios norteadores da Ateno Bsica (AB) e ESF, a

corresponsabilizao entre trabalhadores de sade e usurio nas prticas de

cuidado, a construo de redes: da hierarquia conectividade e as conexes

entre o macro e micro espaos: conceito de conhecimento-emancipao. Alm

disso, foram realizadas duas revises integrativas, organizadas em artigos, um j

publicado (SHIMITH et al., 2011) e outro submetido revista.

2.1 Princpios norteadores da Ateno Bsica e Estratgia Sade da Famlia

Os servios de sade apresentam como metas principais otimizar a sade

da populao e reduzir as desigualdades entre os subgrupos populacionais

(STARFIELD, 2002).

No almejo de diminuir as crescentes iniquidades sociais e de sade de

grande parte dos pases, a Organizao Mundial da Sade (OMS) elaborou a

Carta de Lubliana no sentido de planejar a base da APS, em que os servios de

sade necessitam estar direcionados para a promoo e proteo da sade. Alm

disso, devem focar na qualidade, equidade, dignidade humana, solidariedade e

tica profissional, no obstante, precisam centrar nas pessoas, no intuito de

permitir que os sujeitos sintam-se parte desse sistema e responsveis pela sua

prpria sade (STARFIELD, 2002).

Para que a APS melhore a situao de sade da populao, se faz

necessrio que a sade dos sujeitos seja abordada dentro de um meio social e

fsico, na coletividade, e no apenas focalizar a enfermidade individualmente.

Ento, nesta instncia dos servios de sade ofertada a entrada no sistema de

maneira a formar a base e direcionar o trabalho dos demais nveis de sade,

possibilitando a preveno, cura e reabilitao dos sujeitos, com objetivo de

maximizar a sade e o bem-estar da comunidade (STARFIELD, 2002).

7

A OMS defende que a APS deve ser renovada, para revitalizar a

capacidade dos pases de elaborar uma estratgia coordenada, eficaz e

sustentvel para combater os problemas de sade existentes, e assim propor

novos desafios como melhorar a equidade (ORGANIZAO PAN-AMERICANA

DE SADE, 2007).

A Organizao Pan-Americana de Sade (OPAS) salienta que frente

diversidade cultural existente, faz-se necessrio que cada pas elabore sua prpria

estratgia de APS, no entanto no deve perder de vista que um sistema de sade

com base na APS formado por um conjunto de elementos funcionais e

estruturais que garantam a cobertura e o acesso universal a servios

fundamentais para o bem estar da populao (ORGANIZAO PAN-AMERICANA

DE SADE, 2007).

Em nosso pas observa-se que mesmo antes da OPAS afirmar essa

necessidade de adaptao, os servios de sade j sofriam alteraes quanto sua

dinmica de organizao, de acordo com o movimento de reforma sanitria

brasileira. Desde 1994, quando o Programa Sade da Famlia (PSF) foi criado

como proposta e alternativa para melhorar a APS no Brasil, formularam-se aes

para cada Estado e suas respectivas comunidades, conforme as necessidades e

polticas dos mesmos. Por isso, esse um programa dinmico e plural que muda

de localidade para localidade, tamanho a diversidade brasileira.

A Ateno Bsica (AB), segundo o Ministrio da Sade (BRASIL, 2011a),

caracteriza-se por um conjunto de aes de sade, que pode ser individuais e/ou

coletivas, voltado para a promoo, proteo, reabilitao e a manuteno da

sade e a preveno, o diagnstico e o tratamento de agravos. Estas aes so

desenvolvidas por meio do exerccio de prticas gerenciais e sanitrias

democrticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe. O objetivo da

AB desenvolver ateno de forma integral, impactando na situao de sade e

autonomia das pessoas, bem como nos determinantes e condicionantes de sade

da coletividade, dirigidas a populaes de territrios definidos, pelas quais assume

a responsabilidade sanitria.

8

A Poltica Nacional de Ateno Bsica, Portaria 2488/2011, considera a

Sade da Famlia sua estratgia prioritria para expanso e consolidao da AB.

A qualificao da ESF dever seguir as diretrizes da AB e do SUS configurando

um processo progressivo e singular que considera e inclui as especificidades

locoregionais. Deve ser tambm o contato preferencial dos usurios, a porta de

entrada principal e o centro de comunicao da RAS. A universalidade, a

acessibilidade, o vnculo, a continuidade do cuidado, a integralidade da ateno, a

responsabilizao, a humanizao, a equidade e a participao social so seus

princpios orientadores. A AB deve considerar o sujeito em sua singularidade e

insero sociocultural (BRASIL, 2011a).

Dentre as funes da AB na RAS, destacamos a de coordenao do

cuidado. A referida portaria prev que a elaborao, o acompanhamento e a

gesto dos projetos teraputicos singulares (PTS), bem como acompanhamento e

organizao do fluxo dos usurios entre os pontos de ateno das RAS sejam

funes da AB. Responsabilizar-se pelo cuidado dos usurios em qualquer destes

pontos atravs de uma relao horizontalizada, contnua e integrada com o

objetivo de produzir a gesto compartilhada da ateno integral tambm sua

funo. Para isso, articular outras estruturas das redes de sade e intersetoriais,

pblicas, comunitrias e sociais, incorporando ferramentas de gesto do cuidado,

entre elas, citamos a gesto das listas de espera (encaminhamentos para

consultas especializadas, procedimentos e exames). Neste espao micro-

regulatrio, a partir da relao horizontal, deve garantir o acesso a outros pontos

da rede em tempo adequado, com equidade.

Salientamos que a ESF surgiu com a proposta de ser a porta de entrada

dos usurios para os servios de sade, e exigir a inter-relao entre diversos

nveis de ateno, ou seja, alterar o modelo tradicional do trabalho isolado, e

assim fazer a complementaridade das polticas pblicas, a reorganizao da

assistncia e dos servios de sade (BRASIL, 1997).

A ESF assume como modelo de ateno sade a Vigilncia em Sade

tendo como pilares a intersetorialidade, a atuao com foco em problemas e a

territorializao. Deve realizar o cadastro das famlias adstritas e trabalhar com a

9

lgica do planejamento e programao locais, utilizando o Sistema de Informao

da Ateno Bsica (SIAB). Reconhecemos que o Siab apresenta vrios limites,

como j constatados em pesquisa (BITTAR et al, 2009). Com isso possui

ferramentas que poderia possibilitar o desempenho da funo de ordenar as

redes, prevista na Portaria 2488/2011, reconhecendo as necessidades de sade

da populao de seu territrio de abrangncia, identificando as necessidades

desta populao em relao aos outros pontos de ateno sade, favorecendo a

programao dos demais servios de sade, que podero adequar a oferta a partir

das necessidades de sade dos usurios.

Trabalhar com a lgica da territorializao favorece s equipes da ESF

atuarem com o conhecimento da realidade e os riscos sociais que a populao

adstrita est exposta. A maneira de agir e tratar os sujeitos na APS diferenciado,

ou seja, so manejados de modos mltiplos, em que seus sinais e sintomas so

abordados em um amplo panorama, sendo que sua enfermidade no se enquadra

nos diagnsticos e tratamentos convencionados pela medicina das

especialidades, concluindo-se ento, que a sade possui diversos determinantes

(STARFIELD, 2002).

2.2 A corresponsabilizao entre trabalhadores e usurios nas prticas de

cuidado

As prticas de cuidado devem ser desenvolvidas com corresponsabilizao

entre trabalhadores e usurios e que a gesto local se d de forma cooperada

entre os mltiplos atores sociais do territrio (SILVA, MAGALHES JUNIOR,

2008). A responsabilizao evoca o tema das relaes entre trabalhadores e

usurios, que foi amplamente analisado em uma reviso narrativa (SCHIMITH el

al, 2011). Destacamos o ncleo de sentido que chamamos de des(colonialismo),

no qual agruparam-se resultados de pesquisas que revelaram a ambiguidade nas

relaes, ora sendo solidrias, ora opressoras.

A permanncia de relaes colonialistas nos servios de sade, negando a

proposta de emancipao dos sujeitos, um impeditivo da corresponsablizao,

10

pois para incluir os usurios nas decises faz-se necessrio descolonizar nossas

mentes e compartilhar saberes (SANTOS, 2007 e 2009). A descolonizao ocorre

quando o trabalhador de sade enxerga o usurio como sujeito, no somente

como um corpo. A construo da continuidade do cuidado de forma

responsavelmente compartilhada sair da utopia quando formos capazes de

entender que os usurios e os grupos sociais tm o direito a ser iguais quando a

diferena os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os

descaracteriza (SANTOS, 2005, p. 12). Defendemos que o reconhecimento do

usurio com direito a diferena tambm seja um princpio norteador da AB e ESF.

A tomada de decises compartilhadas tambm foi revelada como

fundamental para a adeso e a continuidade do tratamento (SCHIMITH el al,

2011). A deciso compartilhada est relacionada s dimenses do cuidado

paciente-centrado citados por Dolan (2008), entre as quais esto: a perspectiva

biopsicossocial do usurio; o entendimento do usurio como uma pessoa com

direitos (cidado); responsabilidade e poder compartilhado entre trabalhador e

usurio; construo da aliana teraputica e entender o trabalhador de sade

como uma pessoa, no meramente um tcnico qualificado.

Interligar os princpios da AB e da ESF com a responsabilizao, a

negociao e a tomada de deciso compartilhada se faz necessrio para

avanarmos no acesso equnime ao SUS e torn-lo, de fato, um direito de

cidadania. Tendo em vista que a histria da reforma sanitria no Brasil se originou

articulada com o movimento democrtico de meados dos anos 1980 e culminou

com a proposta de instrumentos democrticos como o controle social na gesto

das polticas pblicas. Em 1990 foram institudos, pela Lei 8.142/90, os Conselhos

de Sade e as Conferncias com o objetivo da garantir a participao da

comunidade no SUS, bem como, proporcionar a democracia que fazia parte dos

iderios do movimento sanitrio. Sabemos, no entanto, que estes espaos no

so suficientes para levar a cabo este objetivo (CAMPOS, 1998).

11

2.3 Construo de redes: da hierarquia conectividade

As redes de servios de sade so construes sociais, portanto,

interessante entender como isso ocorreu historicamente. Os desenhos de rede

tecidos nos municpios brasileiros apresentam heranas histricas da poltica

pblica do nosso pas, que na dcada de 70, desenvolveu um modelo centralizado

e apoiado na diviso dos espaos que produzem cura e nos que fazem

preveno. Naquele momento, duas redes foram construdas e instaladas nos

municpios, uma do Ministrio da Previdncia e outra do MS, sem que estes

tivessem participao na gesto e organizao delas, tornando o municpio

apenas endereo das instituies de sade (RIGHI, 2005, p. 75).

A rede tecida com a lgica de mercado, que orientava essa organizao,

priorizou a instalao de servios mais complexos em municpios de grande porte,

imprimindo no imaginrio da sociedade a valorizao de servios especializados e

localizados nos grandes centros, como ressalta a mesma autora. Decorreu disto a

precariedade dos servios de sade em municpios de mdio e pequeno porte, e

de autonomia administrativa destes, luta histrica de gestores, que por muito

tempo disputaram sua insero da gesto do SUS.

A herana desta rede notvel at os dias atuais, pois a rede regionalizada

e hierarquizada ainda no logrou sua sustentao. A proposta de organizar a

demanda pela AB e essa direcionar os encaminhamentos para outros nveis de

ateno, j discutida em outros trabalhos (CECLIO, 1997; CAMPOS, 1997),

permanece desmaterializada na maioria dos municpios brasileiros. Ainda temos

filas interminveis, desigualdade no acesso e quando o acesso possvel,

convivemos com a desumanizao nos atendimentos. Os usurios que enfrentam

esses problemas sofrem com o descaso, principalmente por no serem

reconhecidos como sujeitos e no terem suas dores respeitadas.

Atualmente temos como imagem-objetivo a construo de redes que

atendam os princpios do SUS e que acolham os usurios. Somando-se ao

conceito de rede j apresentado, temos no Decreto 7508/2011 a definio de

redes como um conjunto de aes e servios de sade articulados em nveis de

12

complexidade crescente, com a finalidade de garantir a integralidade da

assistncia sade (BRASIL, 2011b). Antes disso, Silva, Magalhes Junior

(2008, p. 81) conceituaram-na como sendo uma

malha que interconecta e integra os estabelecimentos e servios

de sade de determinado territrio, organizando-os

sistemicamente para que os diferentes nveis e densidades

tecnolgicas de ateno estejam articulados e adequados para o

atendimento ao usurio e para a promoo da sade.

Possui como componentes imprescindveis a definio do espao territorial

e a populao de abrangncia; a identificao das aes e servios de diversas

caractersticas e diferentes densidades tecnolgicas integrados e articulados; fluxo

que oriente os usurios a caminharem na rede, com ferramentas que possibilite

identificar o usurio e pronturio que seja possvel acessar em qualquer ponto do

sistema e sistemas de regulao com normas e protocolos que orientem o acesso,

definam competncias, responsabilidades e coordenao dos processos de

deciso, segundo os mesmos autores.

A importncia da construo das redes justifica-se pelo aumento das

doenas crnicas; pela possibilidade da integralidade e vnculo e pelos gastos

crescentes com o adoecimento (SILVA, MAGALHES JUNIOR, 2008).

Destacamos aqui a criao de vnculo, sem desconsiderar os demais importantes

aspectos da RAS, pois est relacionado ao foco deste estudo. Do vnculo

estabelecido emerge a responsabilizao entre trabalhadores e usurios, no

somente a ideia de conhecimento da comunidade e de seus riscos (FERREIRA,

SCHIMITH, CCERES, 2010). A responsabilizao pressupe o compartilhar de

saberes, com um forte componente relacional nesta construo. A isso

poderamos acrescentar a perspectiva de alcanar o princpio da equidade no

SUS.

O acesso equnime, assim como a informao e a comunicao, com foco

no papel de escolha objeto do estudo conceitual de Theide e Mcintyle (2008). Os

autores afirmam que a informao e suas caractersticas, que atravessam as

diversas dimenses do acesso, devem fortalecer os indivduos na expanso dos

13

seus conjuntos de escolhas. Portanto, referindo-se a essas dimenses, o grau de

ajuste entre o sistema de sade e os usurios e comunidades tem um papel

determinante no nvel de acesso aos servios de sade, pois tem potencial para

definir o conjunto de escolhas.

2.4 Conexes entre o macro e o micro: conceito de conhecimento-

emancipao

Encontramos respaldo nas produes de Boaventura de Souza Santos para

realizar esta conexo entre os macro e micro espaos. Para ele no existe um

nico caminho para a transformao social, convivemos com uma sociedade que

ao mesmo tempo autoritria e libertria. Assim no existe apenas uma forma de

dominao e opresso. A histria da sade em curso permite dizer que h

opresso e dominao, na qual usurios, profissionais e gestores se revezam na

situao de refns. Por outro lado, Santos (2009) diz que como so vrias as

formas de opresso e dominao tambm so vrias as formas de resistncia e

os agentes protagonistas. Na impossibilidade de reunir todas as resistncias e

agentes, a necessidade que urge traduzir as lutas, tornando-as inteligveis,

permitindo que os sujeitos coletivos possam refletir sobre as opresses que os

afligem e tambm os desejos que os guiam. Esta tese soma-se ao desafio de

fazer esta traduo.

As dificuldades que cercam a Ateno Bsica e a ESF no Brasil no

impedem que tornemos nossas experincias em conhecimento cientfico, no

sentido que Santos (2009) defende. Um paradigma cientfico, de um conhecimento

prudente, conectado a um paradigma social, de uma vida decente. O

conhecimento, para esse autor, total, mas tambm local, construdo por temas

adotados por projetos de vida locais, como por exemplo, reconstruir uma histria

de um contexto local. Ao estimular os conceitos e as teorias desenvolvidas no

local a emigrarem para outros espaos cognitivos, esses podem ser usados em

outros contextos. A generalizao pode ocorrer atravs da qualidade e da

exemplificao. Com isso, o autor afirma que a cincia ps-moderna tradutora.

14

A organizao dos servios de sade possui igualmente mltipas formas de

resistncia. O anseio por servios, aes e instituies de sade que visem

integralidade da ateno e que respeitem as individualidades dos usurios est

polinizado nas pesquisas e relatos de experincia na sade. Segundo Santos

(2009), decorrente da multiplicidade de opresses, resistncias e agentes torna-se

difcil identificar ou determinar o inimigo ou adversrio. Por trs de um inimigo

pode estar outro e por trs desse pode estar outro ainda. Isso tambm ocorre nas

prticas de cuidado na sade. Questionamo-nos quais so os inimigos da garantia

ao acesso equnime? Por que para o usurio a resolutividade do seu caso est

em outro servio que no aquele que ele acessou? Parece-nos que precisamos

traduzir os inimigos, sem jamais ignor-los ou subestim-los.

O conceito de conhecimento emancipao nos auxilia a entender como isso

ocorre. Nesse tipo de conhecimento, a ignorncia o colonialismo e o

colonialismo a concepo do outro como objeto e, consequentemente, o no

reconhecimento do outro como sujeito. Elevar o outro condio de sujeito

pressupe o conhecimento como conhecimento-reconhecimento, de forma que

funcione como princpio de solidariedade (SANTOS, 2009, p.30).

Ento, como investigar as prticas de cuidado que traduzam o

conhecimento emancipao? Como identificar o princpio da solidariedade de

modo que ele possa ser difundido e pactuado entre trabalhadores, usurios e

gestores? Seguindo Boaventura uma implicao d-se do monoculturalismo ao

multiculturalismo. Nesse sentido, precisamos enfrentar duas dificuldades: o

silncio e a diferena. Parece-nos que no existe dilogo fcil na sade, o

profissional tem a autorizao para conduzir a conversa, dada pela capa dos

valores universais autorizados pela razo que imps a razo de uma raa de

um sexo e de uma classe social (SANTOS, 2009, p. 30). Na sade esses valores

universais podem produzir o que Cunha (2004) chama de dilogo de surdos. A

dificuldade aqui est no dilogo multicultural. Comparar os discursos disponveis,

hegemnicos e contra hegemnicos e analisar as hierarquias entre eles, bem

como os vazios que produzem possibilita captar esses silncios, as necessidade e

15

desejos dos usurios que so no ditos e que se configuram como um dos

inimigos do acesso equnime.

A segunda dificuldade, a diferena, diz respeito necessidade dela para

que ocorra a solidariedade, sem a qual no h conhecimento multicultural.

Traduzir as diferentes prticas do cuidado pode tornar possvel a compreenso

entre trabalhadores e usurios, tornando-as inteligveis possvel transformar as

prticas do cuidado em prticas emancipatrias. Como diz Santos, finitas e

incompletas e, por isso, apenas sustentveis quando ligadas em rede (p.31).

Assim tambm os servios de sade deveriam se complementar em rede,

traduzindo seus cdigos para que os servios, instituies, trabalhadores e

usurios, respeitando suas diferenas, atravs do conhecimento-reconhecimento

e exercitando a solidariedade. O saber enquanto solidariedade visa substituir o

objeto-para-o-sujeito pela reciprocidade entre sujeitos (p.83).

Assim, investigar o papel da negociao e da tomada de deciso

compartilhada em uma USF na construo da rede de cuidado sade dos

cidados, desafia-nos a percorrer caminhos terico-metodolgicos, indissociveis

da prtica cotidiana do fazer sade, sempre em movimento, em transformao,

acreditando que h vrias possibilidades ainda no mapeadas de solidariedade e

emancipao.

16

3 PERCURSO METODOLGICO

Colocar em foco o contexto local e as relaes entre trabalhadores e

usurios da ESF, suscita a necessidade de um referencial metodolgico que tenha

como conceito a investigao do ser humano em sociedade com suas relaes e

instituies, como a Pesquisa Social. Tais pesquisas se fundamentam em razes

e objetivos oriundos da insero no real. A Pesquisa Social em Sade trata do

fenmeno sade/doena e das representaes dos vrios atores envolvidos,

sejam as instituies polticas e de servios, sejam os profissionais e usurios

(MINAYO, 2008).

A abordagem metodolgica qualitativa a escolha feita para desenvolver

esta investigao, pois trabalha com as relaes, representaes, percepes e

opinies, produto das interpretaes que o ser humano faz a respeito de como

vive, sente e pensa (MINAYO, 2008).

Os objetivos desta tese foram desenvolvidos em duas etapas. A primeira

conta o processo de implantao e implementao da Estratgia Sade da

Famlia no municpio de Santa Maria. A outra etapa foi pesquisada por meio de um

estudo de caso, com o objetivo compreender as relaes entre trabalhadores e

usurios durante as prticas de cuidado realizadas em uma USF do municpio de

Santa Maria, relacionando-as com a efetivao da continuidade do cuidado na

Rede de Ateno Sade do SUS. A seguir apresentaremos os caminhos

percorridos nas duas etapas.

3.1 Primeira etapa

A coleta de dados foi realizada atravs de anlise documental e entrevistas

semiestruturada (MINAYO, 2008) com gestores. Analisamos as resolues e atas

do Conselho Municipal da Sade (CMS) e tambm documentos recebidos e

expedidos, principalmente os que envolvem processos judiciais acerca da ESF. As

17

entrevistas continham um roteiro (APNDICE A) formado por temas, as quais

foram gravadas e posteriormente transcritas. A transcrio foi devolvida aos

entrevistados para sua conferncia. Os sujeitos entrevistados foram escolhidos

intencionalmente e sendo utilizada a tcnica bola de neve ou indicao da rede

de relaes, sendo que cada gestor recomendou outros sujeitos que estiverem

envolvidos (BARRIOS, 2009; VICTORIA, KNAUTH, HASSEN, 2000), seguindo o

nosso seguinte questionamento: qual gestor municipal que acompanhou a ESF

pode ser entrevistado? O nmero de entrevistas seguiu o critrio de saturao de

dados, a qual ocorre quando os relatos subsequentes revelam informaes que o

pesquisador julga serem repetitivas, no sendo mais necessrio realizar novas

entrevistas (FONTANELLA, RICAS, TURATO, 2008). Iniciamos as entrevistas

com a Secretria Municipal de Sade que estava frente da pasta quando da

implantao da ESF na data que o Conselho Municipal de Sade aprovou a

implantao da ESF no municpio de Santa Maria, conforme a ata de 28 de agosto

de 2003, na Resoluo 60/2003. A coleta de dados ocorreu de agosto de 2011 a

maio de 2012.

No processo da anlise, os dados da pesquisa foram vrias vezes

revisitados, permitindo a identificao de eixos temticos capazes de auxiliar na

sistematizao das narrativas e documentos. A partir disso, foi possvel construir

uma histria sobre o processo de implantao da ESF em Santa Maria.

Por se tratar de uma pesquisa que envolve seres humanos, as normativas

ticas e cientficas pautadas na Resoluo 196/96 foram respeitadas (BRASIL,

1996). Os sujeitos indicados foram informados sobre a temtica da pesquisa, os

objetivos, metodologia, e os riscos e benefcios, sendo respeitada sua autonomia,

estando livres para participar e desistir de sua participao em qualquer etapa da

mesma. Aps o aceite, foi disponibilizado aos sujeitos pesquisados o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (APNDICE B).

Seguindo os princpios ticos esse projeto de pesquisa foi aprovado pela

Secretaria Municipal de Sade (SMS) e pelo Conselho Municipal de Sade, sendo

ento submetido e aprovado pelo Comit de tica da Universidade Federal de

Santa Maria, sob CAEE no 23081.007707/2011-51 (ANEXO 1). Os entrevistados

18

contaram tambm com um Termo de Confidencialidade (APNDICE C), no qual

ficou estabelecido o compromisso do pesquisador em manter o anonimato da

identidade das pessoas. Foi ofertada aos sujeitos a possibilidade de escolha de

seu codinome, sendo essas respeitadas. Aos entrevistados que delegaram essa

tarefa s pesquisadoras foram utilizados nomes fictcios.

Dos gestores participantes da pesquisa, 13 so mulheres e trs homens.

Quanto formao nove so enfermeiros, dois dentistas e dois fisioterapeutas, e

os demais so psiclogo, cientista social e graduando em psicologia. O que

trabalhou mais tempo na gesto permaneceu durante sete anos no cargo. Com

exceo de um dos entrevistados, os demais sujeitos possuem ps-graduao,

entre eles nove possuem mestrado e um doutorado. As especializaes so em

sua maioria em Sade Pblica e Coletiva, Gesto em Sade e Gesto da Clnica,

Humanizao, Sade da Famlia, Sade Mental, Administrao Hospitalar, ainda

dois residentes multiprofissionais. Esses participantes ocuparam os mais

diferentes cargos na gesto, so atores que em diferentes momentos exerceram

papis tambm diferenciados, ora gestores, ora trabalhadores de AB ou ESF, ora

docentes de universidades. Em vrios casos foram gesto em um governo e

equipe no outro. Consideramos que isso permite a abordagem do tema por

diversos ngulos, podendo ser um fator que garante a realidade dos fatos e a

triangulao dos dados.

Organizamos a apresentao dos resultados em eixos temticos, quais

sejam: A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da ESF; foi assim

que a estratgia comeou em Santa Maria: a presena do SUS na vida das

pessoas; A transio na troca de gesto; Nova gesto: novas escolhas? e

Desafio de explicar os altos e baixos da ESF em Santa Maria.

19

Figura 1 - Esquema de gestores indicados para a entrevista

Legenda:

* Perodo em que o entrevistado esteve na gesto 2001-2008

# Perodo em que o entrevistado esteve na gesto 2009-2012

3.2 Etapa 2: Relaes entre trabalhadores e usurios durante as prticas de

cuidado realizadas em uma USF

Considerando a extenso do objeto de pesquisa e tendo como referncia

metodolgica a pesquisa qualitativa, propomos realizar uma pesquisa

desenvolvida a partir de um estudo de caso.

Entrevista 1*

Entrevista 2* Entrevista 3* Entrevista 4*

Entrevista 15* Entrevista 5# Entrevista 9* Entrevista 6*#

Entrevista 8# Entrevista 7*# Entrevista

12*# Entrevista

10*#

Entrevista

11*#

Entrevista

13*# Entrevista

14*#

Entrevista 16*

20

3.2.1 Tipo de estudo

[...] nada mais universal que o nosso

umbigo e [...] uma histria confinada em

si mesma [...] traduz a humanidade

toda. (MEDEIROS, 2011, p.2)

O estudo de caso investiga um fenmeno contemporneo em profundidade

e em seu contexto de vida real, especificamente quando os limites entre o

fenmeno e o contexto no so claramente evidentes (YIN 2010, p. 39). Com

estas caractersticas, no estudo de caso h mais variveis de interesses do que

pontos de dados e, os resultados contam com mltiplas fontes de evidncia,

precisando convergir os dados, de maneira triangular. Outro resultado que a

coleta e anlise dos dados so beneficiadas por haver proposies tericas

desenvolvidas anteriormente.

Para um projeto com estudo de caso so necessrios cinco componentes:

questes do estudo; proposies; unidade de anlise; coerncia que une os dados

s proposies e critrios para interpretao dos dados. A questo deste estudo,

j apresentada na introduo, pressupe uma investigao explanatria. O estudo

de caso se constitui em uma vantagem diferenciada quando uma pergunta como

ou por que feita sobre um evento contemporneo e sobre algo que o

pesquisador tem pouco ou nenhum controle (YIN, 2010), como o caso dos

aspectos relacionais entre trabalhadores e usurios.

O segundo componente do estudo de caso tambm foi apresentado na

introduo e chamamos de pressupostos. Nos estudos explanatrios, sobre temas

j bem explorados, os pressupostos so guias seguros para saber onde procurar

as evidncias relevantes e para refletir sobre os aspectos tericos segundo o

mesmo autor. Ressaltamos que os demais componentes de um estudo de caso

sero apresentados nos prximos itens.

21

3.2.2 Unidade de anlise

A seleo da unidade de anlise, ou o caso, est relacionada questo

da pesquisa (YIN, 2010). Neste estudo, como os aspectos relacionais da

negociao e a tomada de deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios

durante as prticas de cuidado em uma USF podem efetivar a continuidade do

cuidado na RAS do municpio de Santa Maria? j est apontando para a unidade

de anlise, uma USF. Faz-se necessrio, para isso, especificar o contexto da USF

pesquisada. Apresentamos de forma sucinta o sistema municipal de sade de

Santa Maria para depois localizar a USF a ser estudada.

Santa Maria situa-se no centro do estado do Rio Grande do Sul e possui

uma populao de 261.031 habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATSTICA, 2010). municpio-sede da 4 Coordenadoria

Regional de Sade. A RAS do municpio conta 31 Unidades Bsicas de Sade

(UBS), sendo 24 urbanas e sete rurais e uma Unidade Mvel de Atendimento

Bsico; um Laboratrio de Anlises Clnicas; um Pronto Atendimento Municipal

(PA), que agrega atendimentos diferenciados para adultos, crianas e

odontolgico. Entre os servios especializados esto o Centro de Ateno

Psicossocial infantil (CAPS i) o equilibrista; CAPS II lcool e drogas (Ad)

Caminhos do Sol; CAPS II Ad Cia do Recomeo; CAPS II Prado Veppo;

Ambulatrio Municipal de Sade Mental e Programa Reduo de Danos (PRD).

Sedia ainda o Hospital Universitrio de Santa Maria (HUSM), referncia para

atendimento de emergncia, internao e servio ambulatorial; o Centro Regional

de Sade do Trabalhador (CEREST), um servio referncia em oftalmologia e um

Hemocentro. Possui um hospital geral, Hospital Casa de Sade, referncia para

internao. A RAS conta ainda com uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e

o Servio de Atendimento Mvel de Urgncia (SAMU).

22

Em visita ao setor de regulao/agendamento, feita em maio de 2011,

fomos informadas que a SMS conta com as seguintes especialidades mdicas:

infectologia (1); urologia (3); proctologia (1); angiologia (1); pneumologia (1);

reumatologia (1); otorrinolaringologia (1); cardiologia (3); pneumologia peditrica

(1) endocrinologia (1); dermatologia (2) e neurologia (4) que atendem no Centro de

Especialidades Erasmo Crossetti (Cedec). O Governo Municipal enviou Cmara

de Vereadores em 07 de novembro de 2011, o Projeto de Lei que institui no

municpio a Tabela SUS Municipal com o objetivo de reduzir a demanda reprimida

de mdicos especialistas em Santa Maria. Segundo a Prefeitura, naquele

momento 1.497 pacientes estavam na fila para a consulta em cardiologia; 300 em

pneumologia, 1.661 em endocrinologia, 350 aguardam neurologista, 2.395 em

traumatologista (no conta com mdico traumatologia, nesta rea possui convnio

com um Pronto Socorro (PS) traumatolgico, o PS de Fraturas), 357 em

otorrinolaringologista e 238 em gastroenterologista. Segundo esta notcia, a

Prefeitura convocou 45 profissionais mdicos de um concurso realizado em 2008,

dos quais 24 tomaram posse, mas somente 15 esto trabalhando (SANTA MARIA,

2011).

Nas Unidades de Sade da Famlia (USF) atuam 16 equipes da ESF, cada

equipe composta por mdico, enfermeiro, tcnico de enfermagem e Agentes

Comunitrios de Sade (ACS). Em cinco unidades h equipes de sade bucal.

Uma equipe trabalha em duas USF rurais (Arroio do S e Pains).

A unidade de anlise estudada uma USF com duas equipes bsicas e

equipe de sade bucal. Para preservar o anonimato da equipe pesquisada no

revelaremos o local da pesquisa, mas ele estabelece o limite espacial do caso

(YIN, 2010). Para produzir conhecimento sobre a realidade social imprescindvel

mergulhar no seu cotidiano, buscando uma relao de intersubjetividade

(DESLANDES, 2005), pois o trabalho de campo ser mediado pelo referencial

terico e prtico, portanto nunca neutro (MINAYO, 2008).

Alm da delimitao espacial da unidade de anlise, tambm importante

delimitar o tempo e os sujeitos envolvidos (YIN, 2010). Quanto ao limite temporal

para a coleta de dados, foi de fevereiro a julho de 2012, com incio desencadeado

23

aps a aprovao no Comit de tica em Pesquisa (CEP) da Unifesp e a definio

do trmino da coleta deu-se pela saturao de dados.

Os sujeitos desta pesquisa foram os trabalhadores de sade2 e usurios da

USF. O grupo de trabalhadores composto por um Auxiliar Administrativo, nove

Agentes Comunitrios de Sade (ACS), uma Auxiliar de Consultrio Dentrio

(ACD), um Auxiliar de Servios Gerais, um coordenador administrativo de USF,

duas enfermeiras, uma mdica, uma odontloga e duas tcnicas de enfermagem.

Ainda compe o contexto do estudo de caso, mas esto fora do caso (YIN,

2010), mdicos no vinculados ESF, residentes multiprofissionais de sade,

professores e acadmicos.

importante lembrar que os estudos de caso so generalizveis s

proposies tericas e no s populaes, portanto a USF no est sendo

considerada uma amostra das demais ESF de Santa Maria (YIN, 2010, p. 36). A

meta ser expandir e generalizar analiticamente os resultados sobre as relaes

entre trabalhadores de sade e sua implicao para a continuidade do cuidado na

RAS de Santa Maria.

3.2.3 Coleta de dados

A coleta de dados em estudo de caso deve seguir trs princpios essenciais

que so: a utilizao de mltiplas fontes de evidncia; a criao de um banco de

dados e a manuteno de uma conexo entre estas evidncias (YIN, 2010).

Nesta pesquisa foram realizadas observao, entrevistas com os

trabalhadores e usurios e buscas em documentos e em registros de sistemas de

informaes.

A observao desenvolvida foi do tipo participante, no estruturada e direta.

A observao participante pressupe a interao do pesquisador com os sujeitos

da pesquisa (KAKEHASHI E PINHEIRO, 2006). A participao ativa durante a

observao, com o desenrolar do estudo, variou em graus desde a no

2 Optamos por utilizar a definio trabalhadores de sade e no profissionais de sade por

incluirmos todos os sujeitos que atuam na USF.

24

participao at a participao completa (SPRADLEY, 1988). Identificamos um

envolvimento crescente da pesquisadora e suas auxiliares para com o contexto e

os sujeitos pesquisados, bem como dos sujeitos pesquisados para com as

pesquisadoras.

A observao foi ainda no estruturada, pois foi guiada pelo

questionamento do estudo, no havendo um instrumento previamente elaborado,

e direta porque teve a presena fsica do pesquisador no ambiente da pesquisa

(KAKEHASHI e PINHEIRO, 2006).

As observaes foram realizadas durante perodos em que a USF estava

em funcionamento, principalmente durante as prticas de cuidado. As prticas de

cuidado foram consideradas como todas as aes que envolviam o encontro entre

trabalhadores e usurios. Tambm as reunies de equipe, encontros com a

comunidade, encontros entre os membros da equipe que aconteciam

informalmente durante os turnos de trabalho. A tabela 1 apresenta os perodos

observados.

Tabela 1. Descrio dos perodos observados na USF

Data Dia da

semana Turno

Entrada e

sada

Horas

observadas

27/02/12 Segunda Tarde 13h40min

15h10min 1h30min

28/02/12 Tera Tarde 13h40min

15h10min 1h30min

29/02/12 Quarta Tarde 13h

15h15min 2h15min

01/03/12 Quinta Tarde 13h45min

15h50min 2h05min

08/03/12 Quinta Tarde 13h45min-

15h 1h15min

25

09/03/12 Sexta Manh 8h 11h 3h

12/03/12 Segunda Manh 8h30min

10h45min 2h15min

13/03/12 Tera Manh 8h20min

11h20min 3h

15/03/12 Quinta Tarde 13h45min-

15h30min 1h45min

23/03/12 Sexta Manh 8h20min

11h15min 1h55min

26/03/12 Segunda Tarde 13h45min-

15h45min 2h

27/03/12 Tera Manh 8h15min

10h45min 2h30min

29/03/12 Quinta Tarde 13h45min-

16h15min 3h30min

30/03/12 Sexta Manh 8h 11h15min 3h15min

03/04/12 Tera Tarde 13h40min-

15h50min 2h10min

04/04/12 Quarta Tarde 12h-13h 1h

17/04/12 Tera Manh 8h45min-

11h45min 3h

17/04/12 Tera Tarde 13h45min-

15h45min 2h

19/04/12 Quinta Tarde 13h45min-16h 2h15min

20/04/12 Sexta Manh 10h-11h45min 1h45min

23/04/12 Segunda Tarde 13h50min-

16h20min 2h30min

24/04/12 Tera Tarde 13h30-16h 2h30min

26

25/04/12 Quarta Tarde 13h-14h15min 1h15min

26/04/12 Quinta Tarde 13h40-

16h10min 2h30min

27/04/12 Sexta Manh 8h30-

12h45min 4h15min

02/05/12 Quarta Tarde 13h-15h15min 2h15min

03/05/12 Quinta Tarde 13h40-

15h10min 1h30min

10/05/12 Quinta Tarde 14h-16h 2h

16/05/12 Quarta Tarde 13h-15h30 2h30min

22/05/12 Tera Tarde 14h-16h30 2h30min

23/05/12 Quarta Tarde 13h30-15h15 1h45min

29/05/12 Tera Manh 8h40- 11h 2h20min

30/05/12 Quarta Tarde 13h30-15h 1h30min

13/06/12 Quarta Tarde 13h30-15h 1h30min

19/06/12 Tera Manh 9h-11h 2 h

19/06/12 Tera Tarde 14h- 15h 1 h

20/06/12 Quarta Tarde 13h-16h 3 h

Total 76h25 min

Vale destacar que para realizar a descrio das observaes primamos por

esta ser minuciosa, detalhada e densa, tentando captar o todo que estava

acontecendo durante os perodos observados. Com o dirio de campo construdo

desta forma, a anlise foi facilitada, auxiliando a evitar pensamentos

convencionais (BECKER, 2007).

Para aumentar a confiabilidade dos dados observados e evitar a

parcialidade do pesquisador prudente garantir a presena de mais de um

27

observador (YIN, 2010). Contamos com duas observadoras auxiliares que so

membros do grupo de pesquisa e j possuam familiaridade com a pesquisa. As

auxiliares receberam treinamento prvio no qual, alm de conhecerem o contedo

do projeto, elaboramos os Apndices 1 e 2 para dar segurana s observadoras,

facilitando as primeiras observaes. Portanto, tais apndices no foram utilizados

no sentido de estruturar as observaes. Os dirios de campo eram elaborados

pela pesquisadora e pela auxiliar, sendo posteriormente confrontados e discutidos

para garantir maior fidedignidade observao.

A entrevista, para o estudo de caso, pode ser tipo conversas guiadas, e no

inquritos estruturados. Duas tarefas devem ser seguidas durante a realizao da

entrevista: seguir a linha de investigao e manter a imparcialidade, formulando

perguntas no ameaadoras (YIN, 2010). No caso desta pesquisa, por tratarmos

de relaes, as entrevistas so considerados relatos e, em alguns casos, contm

histrias que envolvem a vida pessoal do sujeito da pesquisa ou seu percurso

profissional. Lembramos que quando a relevncia do discurso entra em jogo, a

questo torna-se poltica por definio, pois por meio do discurso que o ser

humano um ser poltico (ARENDT, 2001, p. 11).

As entrevistas foram realizadas com as duas enfermeiras, com a duas

tcnicas de enfermagem, com a mdica, com a odontloga, com a ACD, com o

auxiliar de servios gerais, com o coordenador da USF e com quatro ACS

(APNDICE 3 e 4). Ainda entrevistamos seis usurios (APNDICE 5) que, durante

o perodo da coleta de dados, receberem um encaminhamento a outro ponto da

RAS de Santa Maria, totalizando 19 entrevistas. O nmero de usurios

entrevistados seguiu o critrio de saturao dos dados, que indica suspenso da

incluso de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na

avaliao do pesquisador, certa redundncia e que atendiam os objetivos

(FONTANELLA, RICAS, TURATO, 2008).

A documentao analisada consistiu em cadernos de atas da equipe,

relatrios da equipe, relatrios de gesto da SMS, agendas dos encaminhamentos

e ofcios recebidos. A documentao foi usada com cuidado, evitando serem

tomados como registros literais do ocorrido. importante lembrar que o

28

documento no foi redigido para a pesquisa e sim para alguma outra finalidade

especfica (YIN, 2010).

3.2.4 Critrios para a interpretao dos dados

A anlise de estudo de caso foi conduzida de modo a perseguir a resposta

questo de pesquisa e aos objetivos estabelecidos, juntamente com as

proposies tericas, que esto em constante atualizao. Tambm a coleta de

dados, mediados pela orientao terica, com pressupostos estabelecidos

guiaram a anlise (YIN, 2010).

Em contraposio a isso, e buscando a confiana nas constataes, foram

estabelecidos outros pressupostos considerando possibilidades inversas de

explanaes sobre a construo das RAS, ou seja, explanaes rivais (YIN,

2010). Neste projeto estamos considerando que com a negociao e a tomada de

deciso compartilhada entre trabalhadores e usurios, o encaminhamento

realizado pode ser promotor de responsabilizao, tanto do trabalhador quanto do

usurio.

Tomamos como hiptese nula (explanao rival) que a responsabilizao

sobre a continuidade do cuidado, tanto do trabalhador quanto do usurio, no

dependem da negociao e tomada de deciso compartilhada. Perguntamos a

ambos como o usurio chegar ao destino previsto no encaminhamento e quem

chegar num perodo aceitvel de tempo para cada caso, considerando outras

influncias que no a responsabilizao. Para isso foi necessrio de antemo

conhecer todas as possibilidades de razes para usurios conseguirem caminhar

na RAS, mesmo as improvveis. Assim, a anlise est preservada das

confortveis rotinas do pensamento que a vida acadmica promove e sustenta,

tornando a maneira certa de fazer as coisas (BECKER, 2007, p. 24).

Definimos como estratgia analtica a prpria elaborao do corpus da

pesquisa. Os dados da pesquisa foram vrias vezes revisitados, permitindo a

identificao de marcadores importantes para orientar a anlise e evitar

interpretaes a priori. A questo de pesquisa e o pressuposto estabelecidos,

29

como j foi dito, serviram de guia durante a anlise com a inteno de ser uma

orientao para contar a histria do caso (YIN, 2010).

A apresentao dos resultados est pautada pelos eixos temticos, guiada

pela necessidade de inserir o leitor no contexto pesquisado, procurando

compreender como as relaes entre trabalhadores e usurios implicam na

continuidade do cuidado. Os eixos temticos so: 1. Os diferentes caminhos que o

usurio submetido na RAS de Santa Maria a partir da USF estudada; 2. A

participao do usurio na deciso do encaminhamento: negociao possvel?;

3. Usurio encaminhado RAS: fatores que interferem nesse caminhar; 4. O

modo de gerenciar influenciando na autonomia e responsabilidade dos

trabalhadores; 5. Usurio generalizado.

3.2.5 Aspectos ticos

Procurando assegurar e valorizar uma conduo tica, durante todo o

processo desta pesquisa, as orientaes e disposies da Resoluo n 196/96,

do MS (BRASIL, 1996), na qual esto descritas as diretrizes e normas que

regulamentam os processos investigativos que envolvem seres humanos, foram

consideradas. Apresentamos a proposta equipe da Unidade Sade da Famlia e

SMS do municpio de Santa Maria, solicitando a anuncia para realizao da

pesquisa. Aps, o projeto foi submetido ao CEP da UNIFESP e considerado

aprovado sob protocolo no 1939/11 (ANEXO 2).

A participao na pesquisa se deu a partir da aceitao dos sujeitos e

firmada por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

(APNDICE 6) pelos participantes. Os objetivos e a metodologia foram

apresentados de forma clara, bem como os riscos e benefcios. Os participantes

tm garantidos seu anonimato e de suas informaes. Alm disso, a liberdade de

participao espontnea e o direito de desistncia, em qualquer momento da

pesquisa, foram preservados e explicitados. Destacamos que a trabalhadora que

exerce a funo de recepcionista no aceitou participar da entrevista.

Comprometemo-nos com os sujeitos atravs do Termo de Confidencialidade

30

(APNDICE 7), no qual ficou estabelecido o compromisso em manter de forma

confidencial a identidade das pessoas cujas informaes sero coletadas.

Aos sujeitos envolvidos na pesquisa foi solicitado que escolhessem seu

codinome. A equipe decidiu em reunio do dia 18 de julho de 2012 que devemos

adotar nomes prprios para todos os trabalhadores da USF. Os usurios que

escolheram tambm optaram por nomes prprios. Com o intuito de agradecer e

homenagear os sujeitos envolvidos utilizamos nomes de pessoas que j foram

medalhistas olmpicos, pois os consideramos heris. Para Arendt (2001, p.199), o

heri no necessita fazer atos heroicos, mas a fato de o ser humano abandonar

seu esconderijo para mostrar quem , para revelar e exibir sua individualidade, j

denota coragem e at mesmo ousadia.

31

4 RESULTADOS

Para atender aos objetivos propostos, neste captulo apresentaremos os

resultados divididos em duas partes. O item 4.1, e suas subdivises, do conta do

primeiro objetivo que analisou o processo de implantao da ESF em Santa Maria

e o item 4.2, tambm apresentado por eixos temticos, apresenta o estudo de

caso.

4.1 Processo de implantao e acompanhamento da ESF em Santa Maria

Para iniciar a apresentao dos resultados, antes necessrio dizer que o

recorte realizado est permeado por uma intencionalidade de aprendizado e de

no julgamento. Sabemos que fazer gesto pressupe escolhas, que sempre

apresentam consequncias e que esto cercadas por um contexto que tambm as

influenciam.

4.1.1 A Ateno Bsica em Santa Maria antes da implantao da ESF

Antes da implantao da ESF em Santa Maria, a AB do municpio

desenvolvia uma assistncia restrita, fragmentada. Na opinio de gestores, isso

desencadeou um processo efervescente de fazer o novo, transformar uma

realidade e tambm motivou a forma de contratao das equipes.

[...] 2003 a gente sentia que no municpio existia uma estrutura de

unidade bsica de sade [...] muito centrada na figura do mdico

[...]. E que no tinham resolutividade. E havia uma dificuldade

histrica em relao sade da famlia em Santa Maria, porque

havia sido implantado o Pacs, mas no a ESF3. (Ametista)

3 Utilizamos no decorrer da exposio das falas a abreviatura ESF, mas os sujeitos, com raras

excees, falavam a expresso Estratgia Sade da Famlia.

32

[...] no havia naquele momento nenhuma organizao para

Ateno Bsica. Santa Maria trabalhava como um retrato do Brasil

inteiro. Com um modelo desarticulado, no preparado, que

trabalhou com a lgica de soma das coisas sem organiz-las.

Ento, eram servios que no se conversavam, cumpriam

meramente com as atividades tradicionais, enfim, um conjunto de

servios que no trabalhava em conjunto. Com isso havia lacunas

na assistncia muito importantes que a ESF poderia efetivamente

suprir, principalmente nas reas que eram vazias de acesso [...]

(Catina)

[...] sabemos que os profissionais que ns tnhamos reproduziam

um modelo muito tradicional, que nada iria mudar. Ento a gente

precisa de gente nova. [...] (em Santa Maria) uma enfermeira para

fazer uma consulta de enfermagem no fazia, solicitao de

exames nem pensar, coleta de CP (citopatolgico) pensava que

era atribuio s do ginecologista, quer dizer umas coisas [...]

totalmente absurdas, ento a gente deu esta movimentada.

(Marisa)

Motivados por iniciar um novo processo em Santa Maria, os gestores no

mediram esforos para mostrar que poderia ser diferente. Essa constatao que

tinham gerou um distanciamento entre AB e a ESF, como veremos adiante.

4.1.2 foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria: a presena do

SUS na vida das pessoas

A implantao foi motivada por uma demanda social e construda com a

participao de vrios segmentos da sociedade, coerente com a ideologia

partidria que estava no governo municipal e reconhecida por quem no

compartilhava a mesma ideologia.

33

[...] final de 2002 [...] a primeira vez que chegou essa discusso da

ESF [...] foi uma demanda vinda do conselho, no foi da gesto.

(Esmeralda)

[...] em 2004 que foi implantado, porque a ESF em Santa Maria foi

sempre muito discutida, teve muito debate de como que ia ser

implantado, de quem iria implantar, quem seriam os funcionrios,

eu acho que isso teve um grande debate, no foi uma coisa

decidida por um governo, ou no. Foi o Partido dos

Trabalhadores, mas eles deram oportunidade de ouvir, foi

debatido dentro do Conselho Municipal de Sade. (Borboleta)

[...] um programa de reestruturao para cidades com mais de 100

mil habitantes [...] pessoas (da gesto) da ateno bsica

descobriram esse decreto, essa nova proposta do governo, e a

gente comeou a estudar, e vimos que havia uma viabilidade de

implantao aqui em Santa Maria. J havia a resoluo do

conselho, j haviam acontecido vrios movimentos, mas nunca

tinha sido possvel em funo de dinheiro. [...]. Quando a gente viu

que tinha um financiamento especfico para cidades com mais de

100 mil habitantes, a gente construiu uma proposta, a equipe

construiu uma proposta, apresentamos para o prefeito. (Ametista)

[...] como era uma administrao popular, ela tinha na sua

concepo a escuta da populao. Foram mobilizadas nos bairros

vrias reunies com a proposta de discutir a ESF, [...] a

implantao da ESF em alguns locais, esses locais passaram pela

discusso do prefeito e da secretaria geral do governo, porque ela

vinha muito baseada nos indicadores de sade, era baseada na

questo das vulnerabilidades sociais. (Esmeralda)

34

Tu pensares os vazios assistenciais, a localizao de uma

unidade de sade com uma delimitao geogrfica de

responsabilidade, com pessoas e com habitaes que eram da

sua responsabilidade, com uma lgica mais coerente de presena

do SUS na vida das pessoas. (Catina)

A gente discutiu com as associaes comunitrias e com o

conselho de sade, quais os lugares onde ns tnhamos

indicadores epidemiolgicos piores, onde a gente entendia que

precisava ter uma equipe de sade para tentar melhorar, onde

tinha um ndice de mortalidade infantil mais alto, onde tinha

mulheres com dificuldade de acesso ao pr-natal. Enfim, onde

tinha um vazio assistencial, no tinha unidade de sade prxima e

as pessoas precisavam caminhar muito para ir at a unidade de

sade. Acho que isso j fez a diferena porque comeamos a

discutir isso com a prpria comunidade nos mais diferentes

espaos a gente ocupava para fazer essa discusso explicando

para eles, inclusive, o que era a ESF, para eles poderem entender

que a gente queria era um envolvimento deles. (Dulce)

A primeira gesto, ao aderir proposta da ESF fez isso com um projeto

construdo, conhecia o que estava implantando, tinha feito uma opo por um

modelo de ateno sade que envolvia a proposta da ESF. Isso pode ser

confirmado a partir das falas.

A gente tinha claro para ns, at fundamentado teoricamente:

esse era o modelo, e isso ia gerar um movimento de mudana.

(Ametista)

35

[...] o objetivo que se tinha era de realmente impactar e fazer a

mudana nos indicadores de sade e na organizao do SUS de

Santa Maria, do sistema de sade de Santa Maria. (Dulce)

[...] era a inverso completa da lgica que at ento acontecia [...]

a primeira coisa o (nome do prefeito) falava: essa ficha no pode

mais existir, ficha no se existe mais, as pessoas iam ser

acolhidas, todas elas iam ser atendidas (Esmeralda)

A opo da primeira gesto da ESF em Santa Maria foi envolver e

proporcionar a participao dos profissionais, da comunidade e do CMS. Outra

escolha foi a transparncia na forma de contratao das equipes e a certeza que o

perfil profissional faria toda a diferena. A escolha pelo vnculo empregatcio se

deu muito por sugesto do MS.

[...] foi assim que a estratgia comeou em Santa Maria, com uma

participao muito grande do controle social e das associaes

comunitrias, no s do conselho de sade, mas de todos os

movimentos sociais daquelas comunidades onde iriam ser

implantadas as Unidades de Sade da Famlia. (Dulce)

[...] o grande problema era: como contratar esses recursos

humanos? E como garantir que as pessoas que viessem, seriam

pessoas que iriam fazer a diferena nesse modelo? (Ametista)

[...] Se voltarmos para o perodo inicial da ESF em Santa Maria, o

sentimento na gesto era de que haviam conseguido achar o

caminho para que a contratao sem incidir na Lei de

Responsabilidade Fiscal, uma vez que o vnculo do pessoal era

via Consrcio e o pagamento era realizado para pessoa Jurdica,

36

Fundo Municipal de Sade para Consrcio Intermunicipal de

Sade. (Mandacaru)

[...] Ento, olhando hoje esse processo d para ver claramente

que se o prprio Ministrio (da Sade) tivesse definido algumas

regras claras sobre a via (de contratao), no deixasse to

flexvel a modalidade de contratao, isso poderia ter, no apenas

em Santa Maria, mas em toda essa regio centro do estado, feito

uma diferena muito grande no potencial da estratgia para

reordenar as equipes. (Catina)

A opo de realizar as contrataes via Processo Seletivo e no

Concurso, na poca, tambm tinha o intuito de contratar pessoas

com experincia e perfil para atuarem na ESF. (Mandacaru)

[...] o processo seletivo [...] guardava muita diferena de qualquer

outro que tivesse sido feito. Ns tivemos o cuidado de trabalhar

com uma lgica muito coletiva e transparente. Ento, ns tivemos

mais de 300 candidatos e constitumos uma comisso de

avaliao que foi muito abrangente: tnhamos representao do

Conselho Municipal de Sade, representao da Cmara de

Vereadores, representao da Secretaria de Sade, da 4

Coordenadoria Regional de Sade. (Catina)

Analisando as atas do CMS, identificamos uma consonncia com essas

falas, pois em janeiro de 2004 designaram-se os conselheiros que representariam

o CMS no acompanhamento e fiscalizao do Processo Seletivo do Programa de

Sade da Famlia. Alm disso, com o propsito de assegurar e qualificar a

implementao do PSF como prtica de Sade Pblica foi formada a comisso

para estudos das regies sanitrias alm da discusso sobre a formao de novas

equipes e localizao do PSF.

37

[...] os critrios para o processo seletivo, foram aprovados no

Conselho Municipal de Sade, como formao, com residncia em

sade da famlia ou com especializao em sade coletiva [...]

depois chamava para entrevista. A entrevista foi bem interessante

na poca porque a gente comps a comisso das pessoas que

fariam a entrevista com diferentes segmentos da comunidade,

com trabalhadores e docentes das universidades, com

representantes do controle social, do Conselho, com

representao da cmara de vereadores, o grupo era bem

diversificado, com segmentos representativos da comunidade [...]

tinha entrevista individual e entrevista coletiva, at porque a ideia

era de que as pessoas vo trabalhar em equipe, ento numa

entrevista coletiva, no s por categoria profissional, misturando

as categorias profissionais, d a ideia de como vai ser o

comportamento para desenvolver o trabalho em equipe, por isso

que foi bem focado para mudana mesmo. (Dulce)

Selecionadas as primeiras equipes, a gesto colocou em prtica a cogesto

com as equipes, essas puderam programar seu processo de trabalho, com a

ressalva de sempre envolver a comunidade. Esse compartilhamento de

gerenciamento ilustrado pelos entrevistados:

[...] as equipes participando do planejamento, porque diferente,

ns enquanto gesto pensar como queramos e dizer para essas

equipes executarem, afinal ningum gosta de apenas executar

aquilo que no ajudou a planejar, ajudou a pensar. (Dulce)

[...] ns sentamos para trabalhar a ESF Santa Maria e fizemos trs

grupos: (um) para construir as linhas de cuidado; um que

trabalhou os protocolos, e o terceiro grupo que trabalhou o

38

processo de trabalho. [...] a gesto disse: vai ser um processo que

ser construdo entre vocs, a gesto vai bater martelo [...] muito

do que vocs pensarem a gesto vai aprovar. (Esmeralda)

No incio da ESF em Santa Maria a gesto utilizou como processo de

educao permanente o envolvimento das equipes em questes estruturais da

proposta, como a territorilizao. As prprias equipes conheceram os territrios e

fizeram os desenhos, com a inteno de suprir vazios assistenciais. Durante o

perodo de trs meses as equipes trabalharam nas propostas, antes de iniciar

suas atividades.

[...] Tudo isso foi feito dentro do processo de capacitao que

culminou com a apresentao de tudo isso. Era um processo que

foi bem exuberante, eles mesmos se identificavam com as

regies. (Catina)

[...] tu conhecias as pessoas e tu dizias onde querias ir (trabalhar)

[...] eu quero ir para (nome do bairro), por qu? Porque era uma

localidade que tinha uma alta vulnerabilidade social [...].

(Esmerlada)

[...] tnhamos um modus operandi de trabalhar, quando chegaria

algum que fosse fora de rea, ns tratvamos do mesmo jeito,

era emergncia, ns abramos pronturio, desde a questo da

padronizao do tamanho do pronturio ns tnhamos, a

padronizao do nmero [...]. Ento, foi muito rico, foi excelente,

foi enriquecedor [...] e a partir da comearam as implantaes nos

locais. (Esmeralda)

No incio da Estratgia, 2004 e 2005, a gesto era participativa,

com a presena constante da gesto e dos profissionais da

39

assistncia na gesto.