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1 CONFISSÕES DE UMA DE RUA CRIANÇA SHIRLEY CASTILHO 2 Edição a 2ª edição

CONFISSÕES DE UMA CRIANÇA DE RUA

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LIVRO QUE NARRA A VIDA DE UMA CRIANÇA DE RUA, da escritora paraense Shirley Castilho.

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CONFISSÕESDE UMA DE RUA CRIANÇA

SHIRLEY CASTILHO

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O livro ‘’Confissões de uma Criança de Rua’’ possui elementos de caráter sociológico e antropológico, que poderão indicar grandes debates nos movimentos de defesa das crianças e dos adolescentes nas academias, ou mesmos nas organizações governamentais e não-governamentais que desenvolvem as políticas públicas voltadas à proteção social desse segmento. Exploração do trabalho infantil – uma temática atualíssima que vem sendo abordada nas esferas de defesas dos direitos sociais, tanto quanto junto às academias e que instigam a reversão desse procedimento ocorrido tanto no campo privado, das famílias, quanto no público, o que socialmente e ideologicamente muitas das vezes é considerada de forma natural, o que perverte a condição de pessoa em desenvolvimento; A realidade da rua – não obstante pode-se abstrair da leitura elementos que compõem as regras e as estratégias dos atores que produzem o cotidiano desse espaço social. Mostra o quanto a vida dos que se utilizam desse espaço é marcada por violências e opressões e mostra todas as estruturas que se desenvolvem para estrangular direitos e oprimir os que dela sobrevivem; Abuso e exploração sexual de crianças – outra temática que levará o leitor a questionamentos que mexem com os valores e concepções que são inerentes ao desenvolvimento sexual e social das crianças e dos adolescentes, chega a transmitir as redes que se const i tuem como formas de rentabi l idade econômica em detrimento à própria condição humana.

Ela tem apenas 11 anos e decide fugir de casa, depois que sofre uma violência doméstica. Na sacola de plástico, algumas roupas, o velho espelho quebrado, a boneca de pano e o sonho de uma vida melhor. Longe da família, Tatiana é explorada e escravizada por uma garota de programa. Nas ruas, ela busca abrigo na solidariedade humana, e cai nas garras de um comerciante que a contrata para trabalhar em troca de comida. Assediada pelo patrão, ela foge, buscando a sorte nas ruas.

Em meio a tantas aventuras perigosas, Tatiana conhece as drogas, o preconceito, a dor, a fome, a maldade humana e o amor, mas o passaporte para essa nova vida deixa marcas que mudam para sempre sua história.

Tatiana representa todas as crianças que vivem nas ruas. Ela narra o retrato da realidade de muitas capitais brasileiras contando sua trajetória em meio as ruas sujas que foram seu lar.

O livro ‘’Confissões de Uma Criança de rua’’ é fruto de uma pesquisa de 7 anos, onde através de várias reportagens foram entrevistados personagens da vida real, que são retratados pela lente de Tatiana.

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HO SHIRLEY CASTILHO, 37 anos,

é jornalista e escritora, mas já vivenciou muitos horrores da exploração infantil. Começou a trabalhar aos 8 anos, foi babá, empregada doméstica, vendedora, mas mudou sua vida através da educação, entrando na Universidade Federal do Pará aos 18 anos e se formando em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo. Formada, Castilho usou sua profissão como ferramenta para divulgar a exploração do trabalho infantil e defender os direitos da criança e do adolescente. Sua dedicação foi reconhecida por grandes instituições, como Instituto Airton Sena, Unicef, Agência de Notícias da Infância- ANDI, e outras. Ganhou o título de Jornalista Amigo da Criança. Foi a única jornalista do norte a participar do relatório mundial da Unicef. Foi Vencedora do Prêmio em comemoração aos 10 anos do ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente. Foi convida pelo Instituto Camargo Corrêa a escrever matérias para sua revista Ideal Comunitário. Foi destaque na Feira Pan-Amazônia do Livro e esteve nas bienais do Rio de Janeiro e São Paulo divulgando seu trabalho. É palestrante e compartilha sua experiência com crianças, adolescentes em situação de risco; e pessoas comprometidas com a defesa dos direitos descritos no ECA.

2ª edição

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Pesquisa de campo

2Livro na Bienal do Rio de Janeiro

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A Criança e o Adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e

harmonioso, em condições dignas de existência” (Art. 7 do Estatuto da criança e do Adolescente).

Pesquisa de campo

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Todos os direitos desta edição reservados à autora , protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. (2ª edição 2006)

É proibida reprodução total ou parcial por qualquer meio, sem autorização prévia da autora.

Capa e ilustrações Rilke Penafort

Fotos Shirley Castilho

RevisãoMaria do Perpetuo Socorro Santiago (pedagoga e licenciada em Letras)

Ferreira, Shirley Castilho

Confissões de Uma Criança de Rua/ Shirley Castilho – Belém/PA/ Brasil. Agosto 2006. 2ª edição.

206p.:ISBN 85-338-0463-6

1. Romance Brasileiro, baseado na vida de de várias crianças de rua.

CDD 8869.3

índice para Catálogos Sistemáticos

1- Romance Brasileiro: século 21. Literatura Brasileira 869.3

Contatos com a autora: E.mail: [email protected]. (91) 9963.1818 - 8229-2621Correspondências: Tv. 9 de janeiro, 3649 Condor . Cep. 66065-520Belém- Pará- Brasil. Cep. 66065-520

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Dedico este livroÀ todas as instituições, pessoas, empresas e representantes de governo que atuam direta ou indiretamente em defesa dos direitos da Criança e do Adolescente.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Deus, e a todos os atores que me apoiaram direta e indiretamente na realização desse projeto. Ao design e artista plástico Rilke Penafort Pinheiro, autor do projeto gráfico e ilustrações do livro. À toda a equipe da ANDI – Agência de Notícias do Direito da Infância, que me deram apoio e me assessoraram com informações e orientações sobre o tema do livro.

Agradeço a minha mãe, Jovelina Castilho Ferreira, a verdadeira mártir da minha vida, meu pai Pedro da Conceição Ferreira e aos meus dois irmãos: Pedro Charles Castilho Ferreira e Sheila Castilho Ferreira, além dos meus sobrinhos Lucas Charles, Rodrigo e Bruna.

À minha grande amiga, a pedagoga Maria do Perpétuo Socorro Santiago e Silva, que fez a revisão do livro e sempre me apoiou nesse projeto, Antônio Vasconcelos e Ari Souza, coordenador do Observatório de Assistência Social da Universidade Federal do Pará, o autor do prefácio.

Agradeço também ao ex-prefeito de Belém e atual deputado estadual, Edmilson Rodrigues, que sempre me apoiou nos projetos relacionados à causa da infância e adolescência, bem como ao Governador do Estado do Pará, Simão Jatene, que me apoiou na primeira edição.

Enfim, a todos o meu muito obrigada, e espero que este livro cumpra seu objetivo que é sensibilizar a sociedade, o governo e as entidades para um olhar mais cuidadoso em atenção às crianças que ainda vivem hoje em situação de risco e de exploração, não só em Belém do Pará, mas em todo o mundo.

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Prefácio

Quando conheci a ideia do projeto do livro “Confissões de Uma Criança de Rua”, de autoria da jornalista Shirley Castilho percebi seu entusiasmo ao me falar que abordaria a questão da criança em situação de rua. Ela explicou-me detalhadamente toda a proposta e após o contato com a leitura, pude extrair uma visão mais detalhada da sua pessoa, e da própria obra, que aqui está materializada.

Shirley Castilho é uma profissional que tem uma determinação própria para alcançar seus objetivos. Ela possui uma capacidade teleológica inimaginável e obtém dentro da realidade informações que muitos profissionais não conseguem adentrar, a essência da realidade, compreendendo seus nexos e suas determinações, o que favoreceu determinantemente ao conteúdo produzido no seu livro Confissões de uma Criança de Rua.

A abordagem desenvolvida em seu livro é de um alcance caleidoscópico, direcionado a uma questão social, mas como toda realidade é multifacetada, possui nuances que levam a reflexões, compreensões e provocações no campo da visão de homem e de mundo, que o leitor possui. É um convite à visita aos valores, muitas das vezes, perversos que estruturamos das questões que envolvem as populações excluídas socialmente.

O seu texto é escrito de forma envolvente, que prende o leitor numa relação que pode estar próxima ou longe da sua vida social, mas instiga em todos as preocupações que levam a questões como: o que é cidadania? E quais os direitos inalienáveis que as crianças e adolescentes possuem? Como também tantos outros.

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Confissões de uma Criança de Rua possui elementos de caráter sociológico e antropológico, que poderão indicar grandes debates nos movimentos de defesa das crianças e dos adolescentes nas academias, ou mesmos nas organizações governamentais e não-governamentais que desenvolvem as políticas públicas voltadas à proteção social desse segmento.

Exploração do trabalho infantil – uma temática atualíssima que vem sendo abordada nas esferas de defesas dos direitos sociais, tanto quanto junto às academias e que instigam a reversão desse procedimento ocorrido tanto no campo privado, das famílias, quanto no público, o que socialmente e ideologicamente muitas das vezes é considerada de forma natural, o que perverte a condição de pessoa em desenvolvimento;

A realidade da rua – não obstante pode-se abstrair da leitura elementos que compõem as regras e as estratégias dos atores que produzem o cotidiano desse espaço social. Mostra o quanto a vida dos que se utilizam desse espaço é marcada por violências e opressões e mostra todas as estruturas que se desenvolvem para estrangular direitos e oprimir os que dela sobrevivem;

Abuso e exploração sexual de crianças – outra temática que levará o leitor a questionamentos que mexem com os valores e concepções que são inerentes ao desenvolvimento sexual e social das crianças e dos adolescentes, chega a transmitir as redes que se constituem como formas de rentabilidade econômica em detrimento à própria condição humana;

Discriminação racial e social – outra abordagem que permeia a produção de Shirley Castilho, que coloca de forma

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magistral a realidade dos que vivem sob as marcas da exclusão e nesse caso, leva-nos a pensar o quanto a sociedade ainda está centrada em formas nitidamente discriminatória;

As drogas: os usuários e vendedores – esta questão social é levantada com o poder de nos conduzir e visualizar a realidade bem em frente de nós, é uma viagem sob os domínios que muitos jovens passam e são submetidos e que acabam muitas vezes suas vidas de forma precoce;

A exclusão do mercado de trabalho – o desemprego é outro quadro pintado na leitura e que pode ser identificado e levado ao entendimento de que este é um fator fortemente decisivo à realidade dos que passam por essa exclusão e não podem obter às vezes outras formas de sobrevivência;

Violência policial – quantas das vezes a sociedade já presenciou cenas desse cotidiano e que produz verdadeiro mal-estar para uma instituição que poderia estar agindo de forma mais competente. É a composição de mais uma personagem que oprime a realidade social das crianças e adolescentes em situação de rua e que às vezes estes estabelecem formas de domínio que vão além das regras sócio-intitucionais;

A vida do portador de HIV – é estarrecedor a construção que Shirley Castilho desenvolveu nessa questão social, pois nos remete a uma problemática que está presente e é vivenciada tanto nas ruas quantos nos ambientes mais privados. Demonstra a dor, a angustia dos que vivem sob esse signo da doença;

Gangues de rua – uma problemática que os centros urbanos estão vivenciando e passando, onde as formas de organização

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social não institucionalizada aparecem como uma das respostas às estruturas conservadoras e a associação à falta de políticas que enfrentem as suas causas;

Os preconceitos – é notório que o estereótipo da exclusão social, da raça, das doenças e de outras situações vivenciada demarcam a profunda condição que a sociedade ainda precisa reverter no seu dia a dia, são práticas que passam às vezes despercebidas, mas que não escaparam a sensibilidade de Shirley Castilho. Enfim, Confissões de uma Criança de Rua coloca-nos em outras questões polêmicas que o leitor vai poder observar, debater e quem sabe intervir de forma diferenciada a partir dessa obra. Shirley Castilho escreveu esse livro para provocar a alteração de uma realidade, onde acredito que esta perspectiva deva ser absorvida nas nossas intervenções enquanto cidadãos, se quisermos que as Tatianas e seus amigos tenham consigo a esperança de uma sociedade melhor.

Boa leitura!

Ari de Sousa Loureiro Professora da Universidade Federal do Pará,Coordenador do Observatório de Assistência Social da Universidade Federal do Pará. Coordenador da Pesquisa da situação de crianças de rua nos anos 1992,1998 e 2003.

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Odia amanheceu nublado. As pessoas acomodadas em suas realidades, sem questionar as diferenças, sem brigar pelo sol. Olho a minha volta e vejo pessoas chorando. No canto esquerdo da sala, a vela velha amarelada ilumina o rosto de minha mãe, que agora está feliz, apesar do semblante cansado. Meus irmãos choram, meu pai lamenta, mas eu não tenho lágrimas para somar a deles. Estou seca, uma sensação estranha que todos observam sem entender, mas eu entendo. Sei que agora ela vai estar melhor do que nós, o sofrimento acabou.

Quando olho para ela sinto saudade, vontade de estar dormindo em seus braços e sei que logo estarei, pois me condenei a isso.

De repente uma dor fina percorre meu corpo e me arrepia. Meu pai me olha espantado querendo falar alguma coisa, talvez pedir perdão, mas seus lábios não se movem, apenas o olhar vazio se manifesta demonstrando seu desespero em saber que precisará sustentar a casa sozinho.

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Àquele dia durou uma vida toda porque lembrei de toda a minha vida, e principalmente do sorriso dela(mãe) ao me contar da vaga que arrumou na escola do bairro para mim. E olha que não era em nenhuma paga pelo governo, mas de uma Organização Não-Governamental, que lutava para colocar crianças na escola e teve a brilhante ideia de montar uma turma especial à noite, dando oportunidade para muitas crianças como eu, que não tinham condições de estudar no período normal. Pena que ela durou pouco. A pressão da imprensa e de instituições que condenavam a iniciativa da ONG, acusando-a de incentivar o trabalho infantil, levou ao encerramento do turno. Com o fim da turma especial, parei de estudar. Tudo que aprendi foi ler, escrever e fazer algumas contas. Nada de história e geografia. Só fui descobrir que morava no Norte, quando houve uma enchente no sudeste e saiu no jornal. Aí me perguntei: “Eu moro em que região?”. Uma professora me respondeu e nunca mais esqueci. Diziam que eu era inteligente porque guardava as coisas na cabeça e não tirava. Também descobrir que o Brasil fica na América do Sul. Eu gostava tanto de geografia e nem sabia. Tantas coisas que eu queria aprender e não aprendi. Tanta sede de saber e tudo isso foi negado ou trocado pelas bandejas de pastéis, que eu era obrigada a vender para sobreviver.

Lembrei-me também do dia em que sai de casa para tentar ser feliz longe daquelas lamúrias, dos porres do meu pai, das reclamações de minha mãe, que sempre queria tudo e não tinha nada; das brigas dos meus irmãos por um pedaço maior de pão, e tantas outras coisas que nem vale a pena falar.Aqui começa a minha viagem a uma vida que nunca pensei viver, mas

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comprei o bilhete errado e paguei caro por este erro. Meu desabafo é minha história retratada nessas páginas brancas, que ganharam cor quando descobrir que ainda poderia ser feliz, mesmo tendo decretado, inconscientemente, minha sentença de morte.

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“Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. ” (Art. 19 do Estatuto da Criança e Adolescente)

A fuga

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Eu tinha onze anos, mas aparentava ter oito, no máximo nove. Meus seios nem estavam em formação. Os cabelos lisos pareciam alisados artificialmente devido à falta de cuidados. Shampoo era artigo de luxo. Usava no máximo um sabão de côco, mas quando não tinha ia sabão grosso mesmo. A pele clara era manchada pelo sol de tanto que eu andava. No meu corpo, as marcas de ferida de uma catapora mal curada. Não tinha tempo para ficar doente, precisava trabalhar, mas eu tinha um coração limpo e o sonho de ter uma vida melhor.

Minha vida nunca foi fácil, desde que eu abrir os olhos e percebi que estava nesse mundo, me vi sem saída para uma vida digna. Cresci rodeada pela miséria. Cada um era mais pobre que o outro. A fome em casa doía tanto que já fazia até parte da família. O feijão no prato sumia entre o suco ralo. Carne, só em dias de festas. Bolo então, nem pensar. Tudo que comíamos era feijão com arroz e farinha, mas às vezes, até a farinha era difícil parar na mesa. A única coisa sagrada era o pão. Pelo menos um pedacinho comíamos todos os dias, mesmo porque o padeiro era amigo da comunidade e distribuía pão para os

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mais humildes. Minha família era uma das premiadas.Lembro do sorriso da minha mãe quando avistava de longe o padeiro. Era a única vez que ela sorria no dia. Vai gostar de pão assim na América do Sul, hoje posso falar bonito, mas antes substituía o América do Sul por um palavrão daqueles bem cabeludos. O pobre aprende desde cedo a chamar palavrões. Não conheço um pobre que nunca tenha falado um nome feio, sempre está na ponta da língua. E mesmo que a mãe ou o pai repreenda, o moleque teima e fala. Eu mesmo confesso que tinha uma lista de palavrões guardadas em minha cabeça. Um para cada situação, mas presenteava os mais populares para o meu pai, esse sim merecia ouvir todos e até os que não foram inventados.

Meu pai é a pior espécie de ser humano que eu conheci na vida. Nasceu e se criou na pobreza e herdou o mau-caráter dos tios, que foram assassinados ainda na adolescência, depois que fugiram da cadeia por terem cometido uma série de assaltos e estupros.

Filho de lavrador, conheceu a enxada antes da chupeta. Chegou a roubar para dar o que comer para nós. Também foi preso e abusado sexualmente na prisão, o que talvez tenha piorado seu juízo. Mas verdade seja dita: meu pai nunca foi chegado ao trabalho. Fingia que procurava emprego, mas o que ele fazia mesmo era cometer pequenos furtos e dizia para minha mãe que era dinheiro de “bico”. “Bico de quê?”. Ele não respondia.

Sua rotina era dormir, comer e dormir.

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Enquanto eu e minha mãe estávamos na lida, ele roncava no chão como um bicho, dava até medo. Se ninguém o incomodasse ele virava o dia até a noite dormindo. Mas minha mãe, às vezes, o acordava aos gritos, aí ele batia nela e ia para a rua e só chegava de manhã, com o cheiro de cana podre. Isso quando não adormecia na beira de uma vala próximo de casa. Eu não tinha nem pena. Parecia que ele nem era meu pai de tão nojento.

Posso dizer que foi este homem, que me deu seu sangue inconscientemente através do sêmen, que me fez escrever a triste história de minha vida.

O assédioEu comecei notar seus olhares estranhos para mim quando um dia o flagrei escondido atrás da cortina, que imitava uma porta, me observando tomar banho. Logo que o vi, peguei a toalha rasgada e me cobrir. Não sei por que, mas fiquei com vergonha, não queria que ele me visse. Como pode um pai espiar a própria filha. Eu tinha apenas 11 anos. Seu costume de ficar me olhando o tempo todo me incomodava, não era olhar de pai, era olhar de monstro. Um olhar seco, fixo em mim que me arrepiava de medo.

Um dia estava trocando de roupa na cozinha e ele me agarrou por trás. Pedi para parar e ele tampou a minha boca com a mão e tentou rasgar minha calcinha de bichinhos animados. Dei um chute na perna dele e peguei uma faca para impedir que ele se aproximasse de mim. Mesmo com minha reação ele ainda justificou que estava fazendo

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apenas um carinho de pai e que eu havia o interpretado mal. Ameacei contar para a mamãe e ele disse que quebrava eu e ela. E eu sabia que ele faria, então fiquei calada.

Os dias se passavam e ele continuava a me cercar. Vigiava-me o tempo todo. Eu sentia asco dele, queria vê-lo morto. Pedia para Deus para ele sair e nunca mais voltar. Odiava minha mãe por não ter coragem de abandoná-lo. Ela era cega de amor por ele. Eu sabia que mesmo que eu falasse alguma coisa seria ignorada. Talvez as surras que ela levava dele tivessem penetrado sua alma e a fizesse escrava daquela situação.

Foi depois dessas perseguições em casa que decidi me aventurar no mundo. Vi que ali não teria mais condições de viver, pois o meu pai era um homem sem alma, doente. Contar para a minha mãe não adiantaria, e também eu tinha medo, medo da sua reação. Ela, coitada já sofria muito com a miséria e a falta de fé.

Vivíamos na comunidade de Primavera, um bairro pobre, onde as ruas eram de piçarra e tinha muitos buracos que pareciam crateras, o que impedia o trânsito de veículos e até de pessoas. Quando chovia era pior, pois alagava tudo. Nesse bairro não havia água tratada e nem luz elétrica. A água vinha de um poço comunitário e a luz chegava nas casas através de uma ligação clandestina da rua principal. Na comunidade tinham quatro banheiros, que serviam mais de 200 famílias, quando não dava para esperar a vez na fila do banheiro, usava-se o balde de plástico para fazer as necessidades fisiológicas e jogava-se no meio da rua. Em cada casa havia um balde de plástico.

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Em algumas tinha até dois baldes, mas na minha só havia um. Ainda bem que eu sofria de prisão de ventre, isso era legal, pois eu passava até três dias sem precisar do balde. Também quando precisava, tinha que lavá-lo. E isso era ruim, pois tinha que andar com aquele balde fedorento até o poço, onde enfrentava uma fila interminável. Quando eu chegava na fila com aquele cheiro insuportável todos se afastavam de mim. Só faltava colocar um anúncio na testa: “saiam da frente, eu caguei”. Sem esgoto e com as fezes sendo despejadas em frente das residências a incidência de doenças no local era grande. Muitos amigos morreram antes de completar 10 anos por conta dessas condições. Eu mesma vivia doente, mas acabei pegando anticorpos e passei a conviver sem problemas com as fezes.

Enquanto os moradores driblavam a miséria, contando moedinhas, as notícias no jornal apontavam políticos corruptos, gente que ganhava dinheiro do povo.

O melhor da Comunidade Primavera eram as festas. Mesmo com toda a pobreza, o povo dançava ao som do brega de Zé Tomé com as garrafas de cachaças. Eles também eram solidários entre si. Um ajudava o outro. Quando Rosivaldo estava desempregado, Raimundo doava um quilo de carne. Maria emprestava açúcar de Maroca, que fervia a água para Raimundinha no seu fogão à lenha. Assim o povo vivia. Todos ali adoravam falar da vida alheia e se vendiam para qualquer político que aparecesse dando oferecendo qualquer benfício, isso por conta do desemprego.

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A minha rua, em especial, era um verdadeiro comércio. Tinha de um tudo para vender. Da roupa usada a animais silvestres. As famílias cresciam e se multiplicavam. Havia casa onde moravam mais de 10 pessoas. Só na minha residiam seis: eu, meu pai, três irmãos e minha mãe, que sustentava a todos com suas lavagens de roupa. Eu também ajudava vendendo pastéis, já que meus irmãos eram muito pequenos. Meu pai nunca trabalhou de carteira assinada, só fazia raros *bicos, mas se achava no direito de gastar o pouco dinheiro que conseguia com drogas e bebidas, se especializou na malandragem.

Além de não ajudar nas despesas em casa, meu pai chegava porre e batia na minha mãe. Ela nunca o denunciou. Amava-o demais e por isso perdoava suas agressões físicas e suas falhas de caráter.

Minha mãe era uma pessoa calada, nunca conversava comigo, a não ser para pedir alguma coisa. Sabia que todo o seu mau humor era gerado pelo meu pai, de quem nunca quis se separar, mesmo quando ele duvidava da paternidade dos filhos. “Ele está porre, quando passar o efeito da bebida vai me pedir desculpas e tudo ficará bem, vocês vão ver”, desculpava-se com a gente. Apesar de tudo, ninguém pode acusá-la de não tentar ser feliz ao seu lado.

Chegou a fazer várias correntes na igreja que frequentava para ele mudar: “A Corrente da Família”, “A Corrente do Amor Próprio”, “A Corrente do Progresso”, ” A Corrente do Milagre Familiar”, “ A Corrente da Libertação”... Há! Eram tantas as correntes que até perdi a conta e esqueci os nomes. Mas tudo foi em vão, pois nem Deus ela

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conseguiu convencer de que meu pai era bom. Para a minha mãe a igreja era sua única amiga, e o pastor, cansado de ouvi-la, era seu confidente, que vivia dizendo que sua vida não mudava porque ela tinha pouca fé. Um dia a minha mãe pegou tudo que ganhei com a venda dos pastéis e quase todo o dinheiro da lavagem da roupa e aplicou na fé. O resultado foi uma semana pedindo comida na vizinhança e três dias de fome. E o pior é que o pastor disse a ela que seu sacrifício não tinha sido completo, por isso Deus não a abençoou. Eu sinceramente não entendi e até pensei: “Quem sabe se ela doasse tudo que havia ganhado da lavagem de roupa Deus a ajudasse”.

Como sua fé era pouca, ela resolveu apostar na sorte e passou a ser cliente da fábrica de sonhos, comprando bilhetes para participar de sorteios milionários. A cada cupom uma lista de ilusões, a cada sorteio uma esperança e mais uma decepção.

Seu mau humor amedrontava e aumentava a cada sorteio que ela não era contemplada. E nós, seus filhos, éramos suas maiores vítimas, pois não conseguíamos nem dormir com seu choro, e olha que, às vezes, era até mais escandaloso do que quando o papai amanhecia na rua.

Depois dessa invertida sem lucros ela apelou para a fama, e começou a escrever para programas de televisão, àqueles que ganham audiência exibindo a miséria alheia. Foram centenas de cartas; muitas das quais a ajudei redigir.

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Mandamos nossa história para a “Porta do Milagre”, “O Seu Sonho é Realizado Aqui” “A Vida de Princesa”, “Pare de Sofrer” “Pobreza Nunca Mais”, “Fique Rico em um Minuto” e outros, e outros que prefiro nem lembrar o nome, mas ela nunca foi escolhida para participar de nenhum.

Depois de contabilizar todos os prejuízos, ela viu que o que dava mesmo certo era lavar roupa e fazer pastéis. Abandonou os sonhos e enfrentou a nossa realidade, mas ela sofreu muito, pois acreditava que o dinheiro podia mudar o meu pai, se iludia a pensar que ele bebia e se drogava por conta da miséria.

Coitada, tudo estava contra ela, além disso, meu pai ainda penhorava as poucas coisas que tínhamos em casa. Até o botijão de gás chegou a parar na casa do Zédo do Ferro, um dos traficantes mais temidos de Primavera. Ainda fui falar com ele para devolver o botijão, mas ele mandou eu ir para casa e ficamos por muito tempo cozinhando em um fogão à lenha.

A nossa casa era de madeira. Tinha 3 metros de largura e 8 de comprimento. Nesse espaço havia dois compartimentos divididos por um lençol. Em um ficava a sala e a cozinha, no outro; a cama de meus pais, duas redes e um colchonete, onde eu dormia com meu irmão mais velho. Não tínhamos televisão, ferro elétrico, sofá e nem geladeira, mas bebíamos água gelada quando se podia comprar gelo.

Quando chovia era um desespero só porque parecia que a casa ia cair

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sobre nossas cabeças. Mamãe nos colocava debaixo da mesa e nos abraçava forte até a chuva passar. Depois tínhamos que ajudá-la a tirar água para fora, pois sempre alagava. Eu odiava a chuva, odiava tudo. E foi por não aguentar a viver mais naquele inferno que fugir para outro inferno. Foi o início do meu fim, mas pensei, naquele momento, que seria a minha salvação.

Antes de partir fiquei meditando sobre como seria minha vida longe de todos. Imaginei que sairia na rua e logo alguém me acolheria, ou arrumaria um emprego de babá, garçonete ou outra coisa qualquer, mas teria uma vida melhor sozinha do que junto à minha família. O que eu não queria era vender pastéis, há isso eu não queria mesmo. Odeio pastéis. Odeio todos os tipos de pastéis, principalmente os sem recheio.

Eu passei quase três meses escolhendo o momento certo de abandonar tudo. Fugia do meu pai que sempre me assediava, fugia do mau humor de minha mãe que me irritava, fugia dos olhares pidões dos meus irmãos que me incomodava, mas eu não encontrava coragem para sair de casa.

Ensaiei várias fugas, me preparei várias noites para partir, mas na hora “H” não conseguia me mover. Minhas pernas tremiam, meu coração acelerava, sentia frio na barriga, tinha medo do escuro e acabava desistindo, tentando me convencer que precisava aceitar meu destino. Mas isso tudo passou quando conheci Nastácia, uma garota de programa. Ela engravidou de um chefe de gangue e se mudou para

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o bairro onde eu morava para criar seu filho. Ouvi dizer que o pai da criança matou um integrante de uma gangue rival e estava fugido. Àquela história me atiçou a curiosidade, procurava sempre saber mais sobre a estranha grávida.

Minha mãe ficou aflita quando soube da nova vizinha e me alertou: “não chegue perto daquela moça Tatiana, ela não presta!”, falou enquanto apontava para Nastácia.

Minha Mãe

Minha mãe sempre foi muito preconceituosa. Ela não acreditava que as pessoas pudessem mudar, talvez porque meu pai era seu exemplo vivo. Mas como eu tinha o dom de desobedecer. O alerta me animou a procurá-la para oferecer meus pastéis. Foi aí que conheci Nastácia, uma moça bonita, de pele clara, cabelos longos e loiros, olhos verdes, pernas grossas, e nariz batata.

Ela não era gorda e nem magra, mas tinha cintura e um sorriso tímido. Depois da primeira visita, passei a frequentar sua casa para oferecer pastéis. Minha mãe descobriu e disse que Deus me castigaria. Ela sempre metia Deus em tudo, usava seu nome e o do diabo para me convencer a fazer o que achava certo, mas no caso de Nástacia não lhe dei atenção. Todos os dias eu levava pastéis em sua casa e foi com a compra diária de pastéis que ela conquistou minha amizade. Acredito que nem comia todos, mas queria me agradar. “Quando terminar de vender, volte aqui para a gente conversar, eu me sinto tão só”, dizia

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Nastácia, com ar de quem queria ser minha amiga. Eu até que gostava, pois não tinha amigas.

As meninas da minha idade estudavam na hora que eu trabalhava e dormiam na hora que eu estudava, então era difícil conciliar o horário. Nos fins de semana eu ajudava minha mãe lavar roupa para fora e sempre precisava vender mais pastéis porque o movimento era maior. Isso também me magoava muito, porque sentia vontade de estar com meninas da minha idade e não podia. Nas poucas horas de folga eu brincava sozinha com uma boneca de pano, que minha mãe havia feito de uns recortes de tecido velho, mas o meu sonho mesmo era ter uma boneca do meu tamanho, daquelas que falam quando a gente aperta, mas isso eu nunca pude ter.

Nosso natal era triste. Só ganhávamos presentes em época de campanha eleitoral. Era quando os políticos distribuíam senhas para doarem bonecas de plásticos quase descartáveis, mas nem sempre pegávamos as senhas. Houve natais que passei xingando o tal Papai Noel, aquele velhinho que diziam que doava presentes para as crianças, mas em minha casa ele nunca apareceu. Talvez porque não entrasse em baixadas com medo das famosas balas perdidas. Mas voltando a Nastácia.

A gente virou confidente. Eu contava a ela tudo que sofria em casa e ela me revelava suas aventuras pelo mundo do crime, das drogas e da prostituição, sempre enfatizando que era honesta e tinha uma profissão. “Garota de programa é uma profissão como outra qualquer,

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não posso ter vergonha disso, é um trabalho honesto, pois não roubo e não mato, apenas vendo a única coisa que tenho: meu corpo”, falava enquanto se exibia no espelho. “É, você tem razão”. Eu dizia sem entender direito o que era ser uma garota de programa. Nastácia me explicava que garota de programa eram meninas que faziam companhia para pessoas solitárias. Eu achava até bonito e cheguei a admirar o trabalho dela.

Eu não entendia muito bem o que ela queria dizer, mas achava bonito ter orgulho da profissão, apesar de eu não saber direito, naquela época, o que era ser uma garota de programa, mas acreditava ser um ofício prazeroso e lucrativo, pois a Nastácia saia sempre bem bonita e voltava muito feliz, com a bolsa cheia de dinheiro. Eu cheguei até a dizer a ela: “Quando eu crescer quero ser que nem você”; e ela ria da minha ingenuidade.

Um dia saí para vender pastéis e soube que a casa de Nastácia havia sido invadida por uma gangue, que levou tudo que estava dentro. Desesperada, ela mandou me chamar. Fui ao seu encontro e ela me confidenciou entre lágrimas: “Não posso mais ficar aqui Tatiana, eles descobriram meu paradeiro e agora preciso fugir para preservar a vida do meu filho, que nem nasceu e está ameaçado. Você não quer vir comigo e começar uma vida nova? Parar de fugir do seu pai e estudar em uma escola normal?”, interrogou.

Eu fiquei encantada com sua proposta e não soube dar a resposta na hora. Só que ela não quis esperar e me pressionou: “Estou indo embora

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agora, se você quiser, venha, senão adeus e fique aí nessa miséria”, falou enquanto pegava sua mochila com roupas e caminhava rumo à porta de saída. Eu pedi que ela esperasse e fui em casa. Decidi em instantes que àquela era a hora de eu partir! Peguei uma sacola de supermercado e coloquei as minhas roupas, minha boneca de pano, uma sandália que ganhei de um político, e um pedaço de espelho quebrado, eu adorava espelhos.

No meio de tanta miséria ainda sobrava espaço para a minha vaidade, mas naquele momento minha preocupação era driblar a atenção de minha mãe, que estranhou me ver cedo em casa. Disse a ela que queria mais pastéis para vender em outra feira. Ela ficou feliz e encheu uma vasilha de plástico que eu usava para armazená-los e mandou me apressar; dei um beijo em meus irmãos e seguir sem deixar pistas ou cartas de despedidas, apenas algumas lágrimas no chão do quarto, e o dinheiro da venda dos pastéis em cima da cama.

Abandonar tudo foi difícil, doeu muito, mas eu acreditei que àquela era a minha única chance de mudar de vida, só não conseguia enxergar que mudança teria, mas como estava iludida com a proposta do novo, me deixei levar pela aparência da boa amiga e tive uma grande surpresa.

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O primeiroinferno

“Nenhuma criança ou adolescente poderá ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Àquele que submeter a Criança ou adolescente à prostituição ou exploração sexual pode pegar de quatro a dez anos de reclusão, além de multa” (Art. 5º e 244-A do Estatuto da Criança e Adolescente- o último artigo foi acrescido pela Lei nº. 9.975/2000)

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Cheguei à casa de Nastácia e disse que estava pronta. Ela sorriu, me deu as mãos e garantiu que eu não me arrependeria. Eu ainda chorei e confidenciei que estava com medo. Ela disse para eu não ter medo que cuidaria de mim como se eu fosse sua irmã caçula. Eu achei bonito sua promessa e até gostei de ter uma irmã mais velha, me senti mais segura e segui sem olhar para trás.

Pegamos um ônibus e descemos em um lugar estranho. Depois entramos em outro ônibus, que deu a volta por toda a cidade. Eu até dormir de tanto que demorou. Não sei ao certo, mas passamos mais de 2 horas dentro desse último ônibus.

A gente desceu em um lugar deserto e andamos por quase trinta minutos até chegar em um terreno cheio de gente. Era uma recente invasão. Essa invasão ficava próximo a um município vizinho da cidade onde eu morava, mas não lembro o nome.

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Ela chegou nesse lugar deserto e disse para um cara de barba branca, com uma enxada na mão que era viúva de um homem chamado Zilu. Mentiu dizendo que o filho que esperava era desse tal Zilu. Os coordenadores da invasão acreditaram e nos abrigaram em uma barraca, e deram comida. Eu estava muito cansada da viagem e dormir. No dia seguinte arrumaram um lote para Nastácia construir um barraco. Sua gravidez mobilizou as pessoas da invasão a ajudarem levantar a casa que em uma semana estava pronta. As paredes eram entremeadas de papelão e madeira. Na casa não havia nada, nem água, luz ou banheiro.

Nos primeiros dias longe da minha família eu chorava todas as noites e Nastácia me batia pedindo para eu parar. Arrependia-me de ter fugido e pensava no desespero da minha mãe ao ver que anoitecia e eu não voltava. Nastácia chegou a me amarrar do lado de fora dizendo que chamaria um cachorro gigante para me comer se eu não parasse de chorar. Eu achei melhor calar o bico e me conformar. Depois ela até maneirou comigo e pediu desculpas.

Nós morávamos em um cubículo, onde a sala se transformava em quarto de noite e havia uma pequena área que ela chamava de cozinha. O banheiro coletivo ficava longe da casa e sempre estava ocupado. Minhas necessidades fisiológicas eram feitas em sacos plásticos, os quais guardava dentro de casa para jogar no lixo no dia seguinte. Pensava sozinha: “troquei o balde pelo saco plástico”.

A vida com Nastácia nunca foi fácil, mas a gente não passava fome

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porque mesmo grávida ela fazia programas. E foi com o dinheiro desse trabalho que ela comprou cama, fogão e televisão. A televisão era minha maior paixão. Via todos os desenhos que sempre quis ver e não podia, pois na minha casa não tinha televisão.

Com o passar dos dias as pessoas na invasão começaram a indagar a origem do dinheiro de Nastácia, que mentia dizendo vender produtos de beleza. Ninguém desconfiava o que ela vendia.

Na invasão existiam evangélicos de um lado e católicos de outro, que viviam numa guerra fria disputando almas. Mas os dois lados discriminavam a profissão de Nastácia. Eu não entendia o por quê.

A outra face

Em menos de um mês Nastácia mudou seu comportamento comigo e voltou a se mostrar como no início. Proibiu de eu ver televisão e começou a mandar eu lavar roupa, cozinhar, limpar a casa, tudo com muito carinho. Ela dizia: “querida faz um bife para mim”; “amorzinho lava essa roupa aí que estou muito cansada”; “filhinha dá uma varrida na casa” e assim ela ia me sugando, com seus adjetivos falsos e seu carinho forçado. Ela sabia que eu estava acostumada a trabalhar e me trouxe de propósito para lhe servir como uma obediente escrava branca.

Quando reclamava de cansaço ela dizia que me amarraria do lado de fora. E olha que eu pensei que meu pai era ruim. Os vizinhos viam

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como eu sofria e não faziam nada. Apenas comentavam.

Depois de meses sofrendo na mão de Nastácia, decidi cobrar a promessa de uma vida melhor. Um dia driblei o medo e perguntei: “Nastácia, você disse que eu teria uma nova vida e tudo que me deu até agora foi trabalho e mais trabalho, chego a ficar mais cansada aqui do que quando estava lá em casa. Queria saber quando você vai arrumar escola para mim?” disse calmamente, quase soletrando as palavras. Ela, imediatamente, respondeu em tom alto que eu não poderia fazer cobranças. “Eu estou grávida, não vê? Não posso correr atrás de nada para você agora, mas quando o bebê nascer vou procurar uma vaga numa escola, mas agora pare de reclamar e me faça um chá, que estou ficando enjoada”. Era com desculpas de mal-estar que ela se esquivava das conversas e das cobranças, sempre me enrolando.

Como se não bastasse me explorar com afazeres domésticos, um dia se aproximou carinhosamente e me ofereceu sociedade em um negócio. “Tive uma ideia fantástica para a gente ganhar dinheiro: vamos vender churrasco. Eu compro a carne, você assa e vende, e nós repartimos o lucro”, disse entusiasmada. Eu também me animei, mas a história foi diferente, pois ela fazia umas contas absurdas que no final afirmava que não havia lucro, só prejuízo. Eu não entendia o que era ter lucro, mas sabia que vendíamos muito churrasco naquela invasão.

Aos poucos fui percebendo que Nastácia estava ficando pior que minha mãe. Seu mau humor me dava medo, e quando eu disse que queria voltar para a casa ela ameaçou entregar-me à gangue que a

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perseguia. “Vou dizer que você me ajudou a fugir, eles vão ficar com tanta raiva que matarão toda a sua família, você dúvida?” ameaçava. Minha covardia a ajudou a me manter presa até o nascimento de seu filho.

Quando Marcos nasceu tudo piorou. Eu cheguei, Deus que me perdoe, a odiar àquele menino, porque além das tarefas domésticas, que me deixavam exausta, e da venda de churrasco, que crescia a cada dia, eu tinha que passar a noite tentando convencê-lo a dormir, mas ele não se calava, queria leite materno, que Nastácia se recusava a dar por conta da sua vaidade. Eu desejava imensamente ter peitos para poder enganá-lo, mas não havia nem sinal dos caroços. “Será que não basta o estrago que ele fez no meu corpo, agora quer destruir meus seios, Ah! Isso eu não vou permitir”, falava sem se preocupar com a criança, cada vez que eu lembrava que seu filho queria mamar.

O trabalho pesado e as noites sem dormir me fizeram adoecer e aí descobri até onde vai a maldade humana. Nastácia me maltratou mais ainda. Ela queria a todo custo que eu me levantasse da cama, isto é, de um colchonete que chegava a ser mais fino que o lençol de lã, para trabalhar. Alguns vizinhos perceberam meu sofrimento e denunciaram os maus-tratos para um tal de Salve Criança.

Salve CriançaO pessoal desse lugar foi até a casa que eu morava com Nastácia, mas não conseguiu entrar, pois ela disse que eu estava dormindo e não poderia me incomodar. Pediu que eles retornassem a visita mais tarde. Como percebeu que não havia convencido os agentes do Salve

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Criança me aconselhou a mentir. E prometeu que tudo mudaria, me pediu desculpas e até chorou dizendo estar arrependida. “ Eu não sei por que faço isso. Você é tão criança, mas é que essa história de filho, a gangue atrás de mim, tudo acabou me perturbando, mas juro que nunca mais acontecerá de novo”, prometeu.

Eu fiquei emocionada porque nunca ninguém havia me pedido desculpas, então achei que ela queria mesmo mudar, mas tudo não passou de teatro, só para que o pessoal do Salve Criança não a perturbassem mais.

No dia seguinte, eles retornaram a casa e me viram deitada na cama, coberta de todos os cuidados possíveis. Uma moça jovem, educada e bonita aproximou-se de mim, perguntou meu nome e pediu que eu contasse um pouco da minha vida ao lado de Nastácia.

Eu fiz o que combinamos e afirmei que Nastácia era minha madrinha e que meus pais haviam morrido. “Ela é tudo para mim”, disse, convencendo-a de que estava bem. Repeti exatamente o que Nastácia pediu para eu falar. A moça educada foi embora satisfeita, e Nastácia ficou tão feliz por tudo ter dado certo que deixou eu voltar a ver televisão, e passou até a cozinhar para mim, mas a comida dela era horrível, ela usava alho em excesso e àquilo me enjoava. Em casa tudo que a minha mãe usava na comida era sal, não porque ela queria, mas porque o dinheiro não dava para comprar temperos, então me acostumei a comer comida apenas com sal. Não gostava de nada temperado, principalmente com alho.

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Depois de uma semana de vida mansa, a minha querida “madrinha” tirou a máscara e assumiu seu papel original de bruxa e madrasta má. Tudo voltou a ser como antes, só que eu havia decidido fugir.

Deixei Nastácia sair, fiz o Marquinhos dormir, peguei minha velha sacola de plástico e dei adeus aquela vida, mas a primeira tentativa não deu certo, Nastácia me flagrou e me deu uma surra de cabo de vassoura, que doeu mais que a sandália velha de minha mãe. Eu chorava, curava as minhas feridas e voltava a planejar novas fugas. A punição não fazia eu desistir. Algumas feridas não chegavam a cicatrizar, pois quando estavam sumindo, novas surgiam. Era o sinal da minha rebeldia. Mas eu não desistia de fugir de Nastácia.

Violência Doméstica

Depois de várias tentativas frustradas, vi que precisaria de ajuda para sair daquela invasão. E fui buscá-la com uma vizinha, uma das testemunhas dos maus-tratos. “Eu não quero confusão com vizinho, por isso não denunciei essa mulher, mas acho horrível o que ela faz com você, menina”, desculpava-se Dona Amélia, uma senhora sem voz, que apanhava do marido e ainda o tratava com carinho. Lembrava até minha mãe. Mas Dona Amélia não era a única ali que apanhava do marido. Conheci várias senhoras que viviam se escondendo para não mostrar o rosto, com vergonha de assumir a agressão. Algumas cobriam as lesões com a mão para ir a feira. As mentiras para justificar os hematomas visíveis eram muitas. Desde cair da escada até ser assaltada. O comum entre elas é que nenhuma denunciava o companheiro.

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Lembro de uma vizinha, a dona Helena. Uma senhora com costumes modernos, cheia de vontades, que sempre gritava mais alto que o marido, mas quando ele bebia, sua voz sumia. Só ouvíamos os gritos. As brigas de dona Helena com seu marido Teodoro chegou a parar nas páginas de jornais. Ele esfaqueou ela por duas vezes e ela chegou a queimar parte do corpo dele quando ele estava dormindo, mas nenhum denunciava o outro.

Depois das brigas, eles ainda desfilavam pela rua aos beijos. Era um amor doentio e o motivo das brigas sempre era o ciúme. Mas como tudo tem limite, um dia Teodoro chegou em casa tarde da noite e não encontrou a mulher. Aí ele foi na venda do senhor Chico, que vendia apenas cachaça e lá ele bebeu todas as garrafas da prateleira. A dona Helena chegou junto com o sol e foi recebida com uma faca. O marido enfurecido, não perguntou nada, foi logo a esfaqueando, só que a facada dessa vez foi no rosto. Ninguém nunca se metia na briga dos dois, mas dessa vez, um grupo de garotos que não era do bairro presenciou a cena e foi acudir dona Helena. Eles chamaram um carro da polícia que passava na hora pelo local e a levaram até o Pronto Socorro.

O marido foi preso em flagrante, mas como das outras vezes, ela dizia que não iria dar queixa, ele nem se preocupava, ficava até rindo. “Quero ver aquela vagabunda ter coragem de me denunciar”, dizia. Mas para sua surpresa, Helena deu a queixa ainda no hospital. Foi só ela se recuperar do golpe, que ela mandou chamar a polícia. “Dessa vez eu quero que ele seja preso, que ele pague por ter tentado me

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matar, disse ao policial”. Helena explicou que sua mãe havia tido um derrame e foi acudi-la e ficou no hospital com ela até de manhã, pois seu pai trabalhava como vigia e só podia ficar com a mulher quando deixasse o serviço, mas seu marido não pediu explicações e foi logo tirando conclusões precipitadas e por sorte não a matou.

Quando Helena saiu do hospital sentiu na pele a discriminação das vizinhas. “Agora o pobre está lá na cadeia”, dizia a vizinha Antônia, que era outra vítima da violência doméstica. “Quando ele sair vai ser pior, ele vai acabar com ela”, murmuravam na venda de seu Raimundo Bode, única mercearia da invasão. Mas dona Helena se manteve firme e mesmo com o rosto deformado, ela prometeu reconstruir a vida longe do marido. “Eu o amo, mas agora acabou. Eu não quero mais ele mesmo”, dizia a quem viesse lhe interrogar.

Eu aplaudir a atitude de dona Helena, apesar de eu não conseguir entender as outras mulheres. Será que elas gostavam de apanhar? Eu não sei, mas parecia que sim, porque depois das discussões e das surras, as vítimas e seus algozes saiam de mãos dadas como se nada houvesse acontecido. Algumas vítimas pareciam ficar ainda mais apaixonadas. Dona Amélia, a vizinha que eu mais conversava, justificava as surras que levava do marido de forma estranha. “Se ele me bate é porque me ama, se não me amasse, me deixaria de lado, não ligaria para mim”. Eu ficava impressionada e pensava: Se surra for prova de amor, prefiro nunca ser amada por ninguém”. Mas depois de analisar aquelas mulheres da invasão concluir: “Meu pai deve amar muito a minha mãe”.

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Mesmo com todo esse estranho amor rondando a invasão, queria fugir para bem longe dali. Voltei a cobrar a promessa de ajuda de dona Amélia, que insistia fechar os olhos para as agressões que eu sofria na casa de Nastácia. Muitas pessoas são assim, covardes, preferem testemunhar um massacre, uma morte, a ajudar um inocente. Mas Dona Amélia me surpreendeu, depois que eu contei minha história, decidiu me ajudar a fugir. “O que vai ser de você menina quando sair daqui? Vá para sua casa, por pior que seja sua situação estará perto de seus pais”, disse Dona Amélia. “ Se a senhora me ajudar a sair daqui, vou procurar meus pais, eu prometo”, menti. Era claro que não voltaria para a minha casa de novo, mas precisava convencer Dona Amélia me ajudar.

Depois dela pensar muito, ela me chamou e planejamos a fuga.

Na hora da fuga Nastácia chegou e tentou impedir mais uma vez, mas àquela frágil senhora ameaçou chamar a polícia para prendê-la e ela então deixou eu partir. Acredito que ela não sentiu a minha falta, pois escravas brancas havia em abundância naquela invasão.

“Obrigada Dona Amélia, que Deus lhe dê mais paz e menos amor”, disse, pensando nas surras que ela levava do marido. Não sei se ela entendeu, mas ela sorriu e me desejou boa sorte. Já Nastácia, com o filho na mão, saltava ódio pelo olhar com a minha partida.

Na primeira noite que escapei das garras de Nastácia pensei mesmo

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em voltar para a casa, mas lembrei de toda àquela miséria. Pensava no meu pai que vivia me assediando, nos pastéis que teria que voltar a vender e na saudade que doía que sentia da minha mãe, que mesmo com seu jeito calado, me amava e deveria estar sofrendo muito com a minha ausência. Mesmo com o coração dividido, preferi arriscar minha sorte e sai daquela invasão sem rumo, à procura de um emprego que eu não fosse mais explorada.

Sem destino

No primeiro dia longe de Nastácia me sentir livre, feliz, solta, sem precisar dar satisfação a ninguém. Era uma liberdade mágica que me encantou e me assustou nos primeiros momentos, mas queria esquecer da minha família, do fedor da minha casa, de tudo e, principalmente, de Nastácia e do seu filho chorão, que sofria de insônia. Eu não sabia para aonde ir, onde dormir e o que comer, e como voltaria a ver televisão, mas nada me importava porque sentia que algo de bom aconteceria, ledo engano.

Depois de caminhar por mais de 5 horas sem destino, encontrei um grupo de meninos e meninas que viviam na rua, e eu me juntei a eles. “ Hei? O que vocês fazem para comer?”, perguntei. Uns me olharam de forma estranha, mas uma menina me respondeu: “A gente se vira, pede em restaurantes restos de comida e dinheiro no sinal de trânsito, por quê?”, interrogou a garota de cabelos cacheados e blusa rasgada, que tinha mais ou menos a mesma idade que eu.- É que eu fugi agora da casa de uma mulher que me batia muito e

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agora não sei o que fazer. Posso ficar com vocês? Perguntei meio sem jeito e com medo também, mas a menina respondeu que sim, e aí passei a noite com eles. Brincamos na praça, pedimos dinheiro no sinal e compramos lanche. Foi divertido, mas eu não queria ficar na rua. Na minha cabeça, aquela seria a minha única noite na rua. A minha ideia era procurar emprego logo cedo. Estava animada e pensei: “dormirei na rua apenas esta noite, amanhã conseguirei um emprego”. Só que as coisas não aconteceram como eu previ.

Adormeci na praça e no dia seguinte saí em busca de emprego, bati na porta de várias casas e todos me negaram abrigo. No final do dia voltei a procurar a turma que eu havia passado a noite, mas não os encontrei. Aí fiquei sozinha. De dia procurava emprego e de noite dormia a onde desse. Só comia quando conseguia algum dinheiro no sinal de trânsito.

Pedi dinheiro no sinal com uma turma é legal, mas sozinha era meio estranho. Muitos motoristas fechavam o vidro quando eu me aproximava, outros aceleravam o carro. Eu nem chegava a falar nada, apenas olhava para eles e me jogavam umas moedas e diziam: “vai embora”. Todos me tratavam muito mal, raro era aquele que dava a esmola e sorria. Passei semanas vivendo assim, mas não desistir. O que eu não podia era voltar para a casa.

A busca por emprego continuou. Decidi arriscar em bares e restaurantes. Pensei em me oferecer para lavar louças por um prato de

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comida e um canto para dormir. Até ensaiei um texto, olhando no meu espelho quebrado treinei caras e bocas dizendo: “Senhor, sou esperta, posso lavar e cozinhar, tudo que eu quero é um lugar para dormir e um prato de comida”. E assim segui para mais um dia em busca de trabalho, só que minha interpretação não me rendeu nenhum papel de coadjuvante nos bares que procurei. Enquanto isso acumulava experiência nas ruas, dormindo em bancos de praças, em frente a supermercados, em postos de gasolina, em terminais rodoviários e onde mais meu corpo pedia.

Eu tinha medo da noite e preferia andar até ficar bem cansada, quando não aguentava mais é que adormecia em qualquer ponto.

Quando caía à tarde e o céu escurecia parava e pensava: “mais um dia na rua”. Àquela situação era desesperadora. Eu chorava sem parar enquanto as pessoas passavam por mim como se eu não existisse.

Ah! Como lamentei ter saído de casa, como tive medo, mas precisava ser forte, não podia desistir.

A SopaNas minhas caminhadas conheci várias pessoas que moravam na rua, gente que me contava suas histórias, e gente humana que se preocupava com pessoas como eu.

Lembro de um casal jovem que distribuía sopa e pão às sextas-feiras em frente a uma igreja. Eu era sempre a primeira a estar na fila. Eles

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traziam um panelão de sopa e distribuíam em copos de plásticos. Repetia dois, três copos, mas eles reclamavam justificando que precisavam alimentar mais pessoas. Eu confesso que ficava chateada com sua atitude, mas entendia. O certo é que eu só comia alguma coisa que prestava nas sextas-feiras, nos outros dias era o que sobrava do lixo: como fruta estragada, pão adormecido, e comida azeda, isso quando eu comia. Pior era quando uma dessas comidas mexia com a minha barriga, aí meu intestino não escolhia lugar nem hora de funcionar. Eu que tinha prisão de ventre me curei e o pior é que não havia balde e nem sacos plásticos. Muitas vezes passava dias cagada porque não tinha como me lavar.

Certa vez cheguei a ser chutada como uma bola por um policial à paisana, quando me viu utilizando o canteiro da praça como banheiro. Explicar nessas horas nem vale a pena, porque eles não entendem mesmo. Sai com a calça toda manchada de merda e fui me lavar em um banheiro de um restaurante popular, que havia tanta gente, que ninguém me viu entrar.

Viver na rua não é para qualquer um. Não tinha onde dormir, onde fazer minhas necessidades e as roupas que eu usava não eram lavadas, só batia a poeira. Eu tinha apenas duas calcinhas. Uma estava tão suja que o dálmata do desenho ficou negro, mas ainda assim era mais divertido do que ficar em casa passando fome e vendo meu pai me cercando.

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Técnica para comer

Depois de três meses na rua desenvolvi uma técnica para conseguir comida. Fazia igual aos cachorros. Me aproximava de uma alguma pessoa que estava comendo e ficava olhando para ela fixamente até ela se sensibilizar e me pagar um lanche. Mas nem sempre isso dava certo.

Lembro de um casal onde os fitei de longe e pensei comigo: “é esse”. Aproximei-me e comecei a olhar para o grande hambúrguer que eles comiam. A moça pediu para o namorado me expulsar, e ele, como seu bichinho de estimação, a obedeceu, chegando a me ameaçar. “Saia daqui moleca senão acabo com você”. Tinha também àqueles donos de lanches que mandavam os seguranças me afastarem, mas no geral a fixação no lanche alheio dava certo. Um casal de namorados sentou-se à mesa em frente ao carro de lanche, aí eu fiquei olhando e a garota disse: “ você quer comer menina?” eu respondi sim e ela mandou me servirem um lanche igual ao dela. “Agora coma e não me olhe mais desse jeito, por favor”, pediu a moça.

Sensibilizei meus alvos na maioria das vezes. Quando não conseguia nada, tomava bastante água para enganar a fome. Essa técnica aprendi em casa com minha mãe. Quando não tinha nada, ela dizia: “Vamos beber água antes de comer porque a comida é pouca”. Eu odiava a água, mas tinha que tomar. A mamãe fazia da água, às vezes, o prato principal. Chegamos a almoçar água e farinha de mandioca; água e bolacha salgada; água e limão e tantas receitas com água que ela inventava.

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Meu primeiro Emprego

“É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. É vedado o trabalho noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte, assim como trabalho perigoso, insalubre ou penoso. Também é proibido o trabalho em locais que não permitam a freqüencia à escola ” (Art. 60 e incisos II e IV do Art. 67 do Estatuto da Criança e Adolescente)

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Em meio a tanto sofrimento chorava lembrando da minha mãe e dos meus irmãos, não tinha saudade do meu pai. Não recordo quantas vezes caminhei de volta para a casa, mas antes que eu pudesse chegar, parava e pensava: “Não posso desistir agora, preciso continuar tentando encontrar uma saída para a minha vida!” E mesmo passando fome tinha fé que encontraria uma luz e encontrei, ou melhor, achei que havia encontrado.

Foi um dia cinzento que me levou até o Bar do Seu Raimundo. Eu fiquei mirando no seu lanche e ele me ofereceu um igual. Aí eu aproveitei e disparei o texto (àquele que eu havia decorado para arrumar emprego) e ele aceitou minha proposta. Eu dei um pulo que quase bati a cabeça no teto e o abracei forte em agradecimento, mas acho que ele não gostou do abraço porque me empurrou, mas tudo bem, eu estava feliz e pensava: “agora a minha vida vai mudar, já tenho um emprego!”

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Seu Raimundo parecia ser alegre, mas sua família era meio esquisita. A esposa, uma senhora beirando seus 60 anos, andava de cadeira de rodas segurando nas mãos um espelho para retocar a maquiagem, como se alguém a notasse. As filhas do casal eram fúteis, mimadas e se achavam privilegiadas pelo fato de serem brancas, e olha que tinham o discurso de serem contra o racismo.

Elas reclamavam de tudo e sempre estavam insatisfeitas. Sua mãe as repreendia exaltando: “Minhas filhas vocês não podem reclamar da vida, nasceram brancas, são abençoadas e tem um futuro garantido, não precisarão ficar mendigando emprego como essa menina aí”, falava olhando e apontando para mim. Eu achava àquilo ridículo porque eu também era branca e não tinha nenhum beneficio por causa da minha cor, muito menos privilégio.

Nos primeiros dias tudo foi quase uma maravilha. Eu lavava os pratos, cozinhava, limpava o chão, o banheiro e dormia numa rede dentro do bar depois que Seu Raimundo fechava. E o mais legal de tudo é que no bar havia uma televisão quase do meu tamanho, só que raramente eu podia ver desenhos. O único problema é que, às vezes, demorava muito para os clientes irem embora e eu tinha que ficar brincando na praça até o último freguês sair. Pior era quando algum porre amanhecia com uma garrafa de cachaça no colo e eu acabava tendo que amanhecer com ele, só que na rua, na praça em frente ao bar.

Seu Raimundo não se importava em amanhecer. Ele nunca sentia sono. Também com a mulher que tinha não dava mesmo vontade de

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dormir. Ela vivia brigando com ele por tudo, até pela formiga dentro do pote de açúcar. Eu nunca vi Seu Raimundo e sua esposa Cleonice se darem um beijo. Eles amanheciam na porrada e anoiteciam do mesmo jeito, pior que cão e gato.

Quando comecei a brincar na praça percebi que as crianças normais iam embora cedo porque tinham aula pela manhã. Só ficavam perambulando por lá mendigos, casais de namorados e crianças de rua. Foi aí que conheci Fabiana, Lucas, Milho, Simão e outros que haviam fugido de casa e da exploração do trabalho infantil. O quarteto em especial não saía da porta do bar esperando sobras de comida dos fregueses para fazerem sua única refeição do dia. Eu mesma separava alguns restos de comida para dar a eles, pois sabia o quanto doía uma fome.

Depois que conheci o quarteto entendi o que a mulher do Seu Raimundo queria dizer com a palavra privilégio. Eu era uma privilegiada, pois estava trabalhando, comendo e morando em uma “casa” enquanto que Fabiana, Lucas, Milho e Simão estavam na rua. Eu sentia pena deles e lembrava do tempo que eu estava na rua. Aí eu conversava comigo dizendo: “Vou me esforçar bastante para nunca ser despedida. Depois eu falo com seu Raimundo para ele me colocar em uma escola de noite, e quando eu crescer mais um pouco peço que ele me pague um salário, e quando ficar maior ainda pedirei que ele assine a minha carteira de trabalho, que vou tirar quando ficar bem velha”, pensava enquanto lavava os pratos no bar.

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Eu ficava horas distraída pensando no meu futuro. Imaginava minha mãe me entregando o meu diploma de Segundo Grau (hoje Ensino Médio). Ela sonhava com isso. Quando fecho os olhos até vejo ela dizendo: “Minha filha, o importante na vida é ter o Segundo Grau. O Segundo Grau é tudo na vida de uma pessoa. O curso de datilografia também é importante para crescer na vida”. Pela falta de televisão e sem acesso a informação, minha mãe não sabia que o computador havia aposentado a máquina de escrever e que o Segundo Grau passou a ser chamado de Ensino Médio. Talvez ela nem acreditasse que existisse Internet e que as pessoas podem se falar e se vê através de uma máquina, semelhante à televisão. Mas o que minha sabia mesmo é que queria me ver vencer. No bar do seu Raimundo eu acreditava que estava no caminho certo.

Meus primeiros Amigos de Rua

Eu pensava: “enquanto eu estou no caminho certo, meus amigos da Praça 68 estão no caminho errado, sem esperança de ter o Segundo Grau.

Eles eram crianças como eu. A Fabiana tinha 12 anos, o Lucas 9, Milho era o mais velho, tinha 13 anos, mas parecia o menor, devido seu porte físico; já Simão, com 10 anos era o mais robusto da turma.

Fabiana havia fugido de casa por causa do padrasto que queria fazer com ela o que o meu pai queria fazer comigo. Lucas perdeu os pais em um acidente de carro e fugiu da tia Carolina, que o amarrava na beira da cama para ir trabalhar. Tratava-o como um cachorro, pois ela odiava criança. Milho

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começou a usar drogas por influência do pai e acabou fugindo quando viu seu pai ser assassinado por um traficante. Já Simão fugiu de casa porque não aguentava passar fome com seus 7 irmãos. “Eram tantos que nem deram falta por mim”, dizia rindo. Mesmo com problemas, eles brincavam, se divertiam.

Cada vez que eu ia almoçar tentava me esconder porque não suportava vê-los me olhando. Seu Raimundo não deixava eu repartir minha comida com eles e isso me magoava. Resolvi compensá-los, ensinando-os a ganhar comida fácil com àquela técnica que inventei.

Um dia os chamei e contei como eles poderiam comer de graça: “Prestem atenção: vocês devem ficar olhando fixamente para o objeto de desejo, isto é, a comida. A pessoa vai ficar tão mal, mais tão mal que vai acabar te oferecendo a própria comida ou outro prato mais barato. Então vamos ensaiar.” dizia, enquanto segurava uma pedra e fingia que estava comendo. Eles ficavam me olhando, atentos aos meus gestos.

Não foi difícil, mas tive que dá um exemplo prático para convencerem que eu estava certa. “Esperem aí. Vocês estão vendo aquele homem ali com àquele sanduíche?” - Sim, responderam. “Então, prestem atenção:” disse enquanto me posicionava para ficar olhando melhor meu alvo. Tinha que ter uma posição confortável, pois nem sempre essa técnica dava certo. Às vezes as pessoas comiam até o dedo e nem ligavam de eu ficar olhando para elas. No final iam embora e jogavam em cima de mim uma moeda que não dava para comprar um bombom. Mas com aquele homem deu certo.

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O meu tempo recorde para conseguir êxito era de 10 minutos e esse cidadão me pagou um lanche em menos de 5. Os meninos da Praça 68 ficaram impressionados. No outro dia era bonito de se vê o quarteto em sincronia olhando para a comida dos fregueses da lanchonete. Os primeiros resultados foram satisfatórios, mas depois o dono mandou os seguranças os expulsarem do lugar. Mas eu falei: “não desistam, procurem outro lugar”. E foi assim que eles ficaram meus amigos.

A minha vida só era divertida fora do bar, pois lá eu trabalhava muito, e o pior é que nem toda a noite conseguia dormir. O tempo foi passando e a minha situação piorando. Tinha semanas que eu ficava duas, três noites sem dormir porque não havia aonde, quando muito cochilava no banco da praça, olhando sempre se o bar ia fechar. Eu odiava àqueles fregueses que ficavam bebendo até tarde, torcia para irem embora.O velho Raimundo até que tinha pena de mim algumas vezes, mas justificava: “Se tivesse lugar para você dormir em casa, você dormia, mas não tem, e eu não posso fazer nada minha filha”, lamentava quando me via adormecer no banco da praça.

Quando a consciência pesava, ele mesmo me chamava para ir dormir lá dentro porque eu perdia a hora. Eu não tinha o direito de reclamar, “estava de favor”, como minha mãe dizia. Apesar de eu não ganhar salário eu era feliz, pois comida não faltava. Fazia três refeições por dia: café, almoço e janta, e ainda via televisão de vez em quando.O pior defeito de um ser humano é cometer erros e achar que está certo. Era o caso do Seu Raimundo, ele me explorava e ainda se achava bom por ter me “acolhido”. Ele dizia para os fregueses do bar: “Acolhi

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essa menina aqui, onde ela tem de um tudo e ainda pode brincar na praça até tarde”, gabava-se. Se tudo para ele era ter um prato de comida azeda e uma rede imunda para deitar, imagino o que era não ter nada. Fora isso tinha a mulher e as filhas que viviam me olhando como se eu tivesse lepra e nunca se aproximavam de mim. Isso também me magoava.

O assédio

A minha vida no Bar foi ficando difícil. Como se não bastasse toda a exploração que eu sofria com os afazeres domésticos, Seu Raimundo resolveu me assediar. Começou por me observar tomando banho pela fechadura da porta do banheiro. Meu Deus como ele era nojento! Eu era uma criança e meus seios estavam começando a se formar. Eu não tinha nem 12 anos.

A cada dia o assédio passou a ser mais evidente. Ele já não fazia questão de esconder seus desejos por mim. No começo fingia que não percebia, depois não deu para ignorar.

Um dia quando estava deitada na rede, que eu armava dentro do bar, próximo ao balcão, percebi uns passos e fingir estar dormindo. Sabia que não podia ser ladrão, era ele, o Seu Raimundo, que se aproximava de mim. Continuei fingindo e sentir suas mãos gordurosas tocarem minha calcinha e aí despertei e o repreendi, perguntando: “o que o senhor está fazendo?” Ele segurou minha mão e tapou minha boca, tentando me violentar. Lembrei-me do meu pai e senti nojo, e não sei como tive forças de empurrá-lo com o meu pé e ainda lhe

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ameaçar: “Vou contar tudo para sua esposa e suas filhas”, disse. Ele imediatamente mudou o olhar e pegou uma faca de pão que estava em cima do balcão e sem que eu tivesse tempo de me defender ele feriu minha mão. Eu dei um grito tão alto que a mulher e as filhas desceram as escadas correndo. Seu Raimundo ainda disse enquanto saia que o golpe era um alerta. Foi minha primeira cicatriz. “Da próxima vez que você me ameaçar vou fazer um golpe bem maior que este, ouviu menina?”, disse e foi embora com a prova da agressão e mandando a mulher e as filhas se recolherem, mentindo que eu tinha gritado por ter visto um rato.

Logo eu, que estava costumada a dormir ao lado desses camundongos. Mas o golpe doeu tanto que passei o resto da noite chorando, não apenas de dor pelo corte, que não foi muito grande, mas por sua atitude covarde. “Preciso arrumar outro emprego”, pensei.

No dia seguinte sua esposa viu o corte em minha mão e perguntou o que tinha acontecido. Eu inventei que havia me cortado ao preparar o frango. Ela nem ligou. Aliás, ela não tinha olhos para mim. Eu era uma coisa dentro de sua casa, que não podia dormir antes das onze horas e precisava acordar antes das 6 horas para fazer o café antes que ela saísse para fazer fisioterapia.

Nos dias seguintes Seu Raimundo me tratou com frieza. Ele fechava o bar cedo e ia dormir. Enquanto eu não conseguia pregar os olhos com medo dele voltar.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente

Andava na Praça distraída e recebi de um menino quase da minha idade um papel que dizia que teria bolo e suco em uma casa que ficava próximo à Praça para quem assistisse a uma palestra sobre “Direitos da Criança e Adolescente”. Eu me perguntei: “Que Direito?”. Eu não sabia o que eles queriam dizer com direitos e deveres.

Dever de casa eu só fazia quando ia para escola. Aí fiquei pensando que seria alguma armação para pegar crianças que fugiram de casa e entregar para os pais e no meio do caminho desistir de ir, mas pensei no bolo. Ah! Fazia tanto tempo que eu não comia um pedaço de bolo, as palavras em letras de forma no papel me incentivavam a ir. Estava escrito: “CRIANÇAS E ADOLESCENTES VENHAM COMER BOLO ACOMPANHADO DE UM DELICIOSO SUCO, QUE SERÁ DISTRIBUIDO GRATUITAMENTE NO CONSELHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NESTA TARDE. MAIS ATENÇÃO: SÓ GANHARÁ BOLO QUEM ASSISTIR A PALESTRA SOBRE O ECA.

Eu fiquei me perguntando, mas que droga de Eca é esse? O fato foi que a palavra gratuita me empurrou para esse tal Conselho, apesar de eu não querer nenhum conselho, afinal estava quase com 12 anos e podia muito bem mandar na minha vida e não teria conselho nenhum que me fizesse mudar de ideia.

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Quando cheguei à porta dessa casa chamada Conselho vi um monte de amigos meus lá, ansiosos pelo bolo. Eu logo perguntei para uma moça de saia marrom e blusa branca, com cara de doida, que estava distribuindo uns livrinhos para as crianças: “Cadê o bolo? Estou com fome e preciso voltar para o trabalho”, disse. Ela me olhou assustada e perguntou: “Você trabalha a onde?” Aí eu fui muito esperta e não respondi, disse que não interessava, vai que aquela moça com cara de doida leva a minha mãe lá. Ou pior: leva o meu pai, aí não ia prestar mesmo.

Como ela viu que eu fiquei desconfiada me convidou para entrar e disse que já me daria o bolo. Mas ela entrou e voltou com um livrinho e eu falei que não queria livrinho algum, queria bolo. “Já vamos servir, você sabe ler?”, perguntou curiosa e eu respondi que sim, lógico, claro, evidente. “Então leia esse livrinho que é muito bom”, falou sorrindo. Eu peguei o livrinho só para garantir um pedaço bem grande de bolo, pois se eu recusasse ela poderia me dar um pedacinho só para se vingar de mim.

Depois de quase 20 minutos, ela mandou eu e os meus colegas entrarem para assistir a tal palestra. Aí eu fui, pensando apenas no bolo e no Seu Raimundo que deveria estar me procurando.

Quando entrei na sala vi uma mesa enorme com vários bolos inteiros e jarras de sucos de todas as marcas. Tinha bolo de chocolate, de laranja, de

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abacaxi e até de macaxeira. Eu fiquei doida quando vi tanto bolo reunido, queria um pedaço bem grande de cada. Enquanto eu fitava os bolos, uma moça pegou um microfone e começou a falar, mas eu nem prestei atenção. Ela só falava em Eca, Eca, Eca e Eca. Ela falou tanto nesse Eca que eu parei um momento de olhar para o bolo para saber quem era esse Eca que ela falava tanto, e foi justamente na hora que virei a cabeça para prestar atenção na fala que ela disse que o livrinho que estavam dando lá na frente era o tal Eca. “Guardem esse livro como se fosse ouro, pois nele está escrito tudo que vocês tem direito e seus deveres como cidadão. Não deixem ninguém maltratar vocês, lutem pelos direitos e cobrem das autoridades a proteção que vocês tem direito”, disse a moça.

Por um instante esqueci o bolo e pensei, mas que proteção que eu tenho direito, de quem vou cobrar? Como? Parei e olhei o livrinho e o abri por um momento, justamente na hora que a moça gritou que a gente podia se servir. Eu nem acreditava naquilo. Eu podia me servi, eu podia comer todos aqueles bolos, tirar o pedaço que eu quisesse, do tamanho que eu quisesse. Ah! Foi louco, sai correndo e fui em direção ao bolo de chocolate e tirei uma grande fatia. Eu comi bem rápido e fiquei ali mesmo, perto da grande mesa para garantir meu lugar e pegar mais bolos. Eu comi dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez ou mais pedaços de bolo. Comi tanto que cheguei a passar mal e ainda escondi outro pedaço na minha calcinha para comer mais tarde.

Eu sai daquele Conselho sem pegar nenhum conselho, mas levei

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aquele livrinho, que era muito bonitinho. Cansada de comer tanto bolo, eu sentei na praça e o abri. Poxa! O livro era muito legal, cheio de figurinhas e só dizia coisas boas que a gente era obrigado a fazer. Eu só não entendia porque tudo que estava escrito naquele livrinho não era cumprido. Se fosse lei, deveria ser cumprido.

Uma das partes do livro que li e gostei foi quando dizia que as pessoas precisavam respeitar as crianças e que isso era lei. Eu não sabia o que era lei, mas entendia que quem não cumpria a lei ia parar na cadeia. Eu adorei aquilo. Resolvi guardar o livrinho igual como a mulher falou, como se fosse ouro e para mim aquele livrinho era um pedaço de ouro. Voltei para o comércio de seu Raimundo mais confiante.

Quando Cheguei lá, ele logo perguntou: “ Onde você estava sua pivete, tem um monte de louças para você lavar”, perguntou enfurecido. Dessa vez eu não fiquei calada: “Olhe Seu Raimundo, se o senhor ficar falando assim comigo mando o Eca lhe prender, viu?”. Ele me olhou estranho e disse: “ Pensa que eu tenho medo desses seus amigos pivetes, vá trabalhar que é e não me encha o saco”, falou.

Aí eu pensei: como o seu Raimundo é burro, não sabe nem quem é o Eca. Passou-se uma semana e ele voltou a me perseguir, dessa vez fazendo chantagem:

-Se você não brincar comigo sua pivetinha vai dormir na rua. E aí, o que me diz?”. Eu cuspi nele, disse que ele não estava me respeitando

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e que iria colocá-lo na cadeia. Ele avançou para cima de mim e eu coloquei o livrinho em seu rosto, e menti dizendo que eu havia lido tudo e que sabia todos os meus direitos, falei igual a moça do Conselho. Ele pegou o livro da minha mão, deu uma olhada e não sei por que, mas ele ficou com medo e me expulsou delicadamente de seu bar. “Não apareça mais aqui sua pivete”, disse.

Eu peguei minha sacola, que vivia arrumada, e fui embora. Disse para mim mesma que nunca me prostituiria e que poderia viver longe dali, mesmo voltando a sentir fome e mesmo correndo o risco de nunca chegar a concluir o Segundo Grau.

Eu morria de medo do inferno, minha mãe dizia que meninas prostitutas iam direto para lá e isso eu não queria! Tinha pesadelos horríveis só de imaginar o inferno, àquele fogo queimando meu corpo, o olhar medonho do diabo, eu sentia pavor!

Naquela época eu ainda acreditava nessas crenças, apesar de eu ter tido uma vida espiritual meio perturbada por causa da minha mãe, que vivia mudando de religião e me levando para conhecer cada uma delas. No final das contas o medo do inferno foi o que prevaleceu, pois em uma das igrejas que frequentei tinha um pastor que falava gritando e tremia quando mencionava o nome do diabo. Eu cheguei até ver pessoas possuídas por ele e ficava nervosa só em pensar na possibilidade de conhecer esse anjo malvado pessoalmente.

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O que me deixou triste quando sair do Bar do Seu Raimundo foi lembrar no quanto eu sofri para conseguir esse emprego. E o meu Segundo Grau? E o meu curso de datilografia? E o sonho de minha mãe? Foi horrível pensar que estaria acabando com todas as minhas possibilidades, mas sair de casa para me livrar do meu pai, não poderia cair nas garras de um velho imundo como o Seu Raimundo.

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Nas ruas

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” (Art. 4º do Estatuto da Criança e Adolescente)

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Depois de brigar com Seu Raimundo, peguei minha velha sacola de supermercado com minhas roupas, minha boneca de pano e meu espelho quebrado e me juntei aos meus amigos.

Fabiana, Lucas, Milho e Simão me apoiaram e me ensinaram a malandragem para sobreviver nas ruas sem correr risco, o que era impossível. Eles eram crianças boas, só faziam pequenos furtos, mas tudo para comer. O único que se drogava da turma era Milho, que trabalhava como avião de traficante. Voltar às ruas me entristeceu, mas com os meus novos amigos acabou ficando divertido. A calçada da praça eu já conhecia. No Bar do Seu Raimundo eu sempre dormia no chão, pois a rede que eu usava estava começando a desfiar e o chão era mais seguro. Então do bar para a praça não teve muita diferença. A minha única preocupação era com a comida, mas podia usar àquela técnica. Eu também pensava que ficaria na rua por pouco tempo, pois a minha experiência de bar deveria valer para convencer as pessoas a me darem um novo emprego.No primeiro dia longe do Bar do Seu Raimundo senti uma fome tão

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grande que me dava raiva. Odiava sentir fome. Não entendia porque sentia fome e nem sabia direito por que precisava comer.

Para mim era irracional: comia e depois tudo ia para fora. Mas eu só pensava em comida. Sonhava de dia andando com pratos de macarrão, com bolos, tortas, feijão com carne, churrasco. Eu era louca por comida, meus amigos também. Faziam tudo para comer.

Quando eu conseguia alguma coisa para comer, ficava feliz e pegava o livrinho para ler. Ele era tão legal. Nele dizia que crianças tinham direito ao lazer, a educação e tantas outras coisas que eu não tinha acesso.

Pensando no que o livrinho dizia, resolvi tirar férias e aproveitar as primeiras noites na rua para brincar com meus amigos. O livrinho dizia que eu tinha esse direito e era lei, então para não ir para a cadeia, eu cumpri a lei e passei a brincar.

Brincava de pira-esconde, de roda, de pega-ladrão e outras brincadeiras que eu aprendi na rua.Eu não me importava em adormecer sobre a brisa fria, acariciada pelo vento leve, que afastava os mosquitos do meu corpo, achava legal. Sempre ao anoitecer pensava em minha mãe e na minha comida que deveria estar sendo repartida entre meus irmãos. Os dias foram passando, mas eu nunca consegui esquecer da minha família, apesar de querer muito esquecê-los, porém de vez em quando vinha à lembrança em minha mente e eu chorava de saudade, mas

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sabia, no meu íntimo, que tinha feito a coisa certa, só descobrir muito mais tarde que estava totalmente enganada.

Nas ruas a situação começou a ficar ruim. Eu decidi acabar com as férias e voltar a procurar emprego, mas eu não conseguia nada. Fiz algumas modificações no meu texto para ver se sensibilizava as pessoas a me darem um emprego, mas não deu muito certo.

Teve uma senhora que me tratou tão mal, mais tão mal que nem que eu viva cem anos vou esquecê-la. Eu cheguei em seu bar e disse: “Sou esperta, sei lavar, cozinhar, passar, posso ficar até três noites sem dormir que eu aguento”. Ela imediatamente respondeu que odiava brancos e que eu era uma marginal, que nunca poderia conviver com pessoas da sua classe. Eu fiquei com tanto ódio dessa mulher, mais com tanto ódio, que joguei uma pedra em seu bar e sai correndo. Depois fiquei pensando: “vai ver ela não me deu o emprego porque eu sou branca, talvez se fosse negra igual a ela teria o emprego”.

Eu na verdade não conseguia entender as pessoas. Umas achavam que ser branca era o máximo, outras preferiam ser negras. Eu queria mesmo é ter nascido sem cor, assim todos gostariam de mim.

Mesmo com as portas na cara continuava firme na busca por um emprego. Eu era a única ali que se preocupava em arrumar emprego. Os meus amigos Simão, Milho, Lucas e Fabiana roubavam, serviam de ponte entre traficante e viciado e garantiam a comida, mas eu não queria entrar nessa.

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Tudo por um hambúrguer

Depois de quase três meses na rua, comecei a sentir na pele a realidade e ver o que eu tinha feito da minha vida. As minhas técnicas para comer não funcionavam mais. Eu não conseguia arrumar emprego, mas sabia que eu poderia ganhar dinheiro vendendo meu corpo, igual como fazia a Nastácia, mas não queria, tinha medo, principalmente de ir para o inferno.

Comecei a bater na casa das pessoas para pedir comida, algumas me expulsavam, outras me davam algum resto de comida estragada. Meus amigos me negavam ajuda porque eu não queria participar dos furtos. Mesmo com muita dificuldade eu sempre conseguia alguma coisa para comer, mas teve um dia que não consegui nada, amanheci pensando em várias maneiras de me alimentar; a fome doía. Era uma dor insuportável, aonde chegava a pensar em comer grãos de terra. Abordava as pessoas na rua pedindo dinheiro para comer, e elas me ignoravam, dizendo que eu queria usar drogas e eu nem sabia direito o que era a droga, apesar de ver meus amigos usarem, mas não entendiam o que aquilo significava e o que fazia com a pessoa e nem porque todos discriminavam os que usavam.

Nesse dia maldito encontrei dentro de mim uma pessoa que não queria conhecer. Alguém capaz de tudo para se alimentar. Cheguei a roubar pão de mendigo, a arrancar lanche de crianças menores que eu, a roubar idosos. Meus amigos de rua eram egoístas quando se tratava de comida.

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Ninguém repartia nada porque tudo era pouco. Depois do meu primeiro furto, houve o segundo, o terceiro e aí peguei a prática. Fui até chamada para participar do aniversário de Fabiana, que faria 13 anos.

Com o dinheiro de um assalto, compramos bolo e refrigerante e cantamos parabéns. Enquanto Fabiana comemorava seu aniversário com Simão, Milho e Lucas eu voltava ao passado, lembrando dos meus aniversários em branco. Nunca tive uns parabéns para você, nem bolos, bem balões, nem presentes, apenas um beijo de minha mãe, que dizia todo ano a mesma coisa: “ano que vem a gente faz uma festinha para você”. Eu sai de casa e nunca tive uma festinha de aniversário. Eu só comia bolo quando algum político aparecia na rua fazendo festa. Eu fiquei com inveja de Fabiana, que estava comemorando seu aniversário e o meu estava perto de acontecer. Eu não queria comemorar meu aniversario na rua. Queria uma festa, com balões e convidados.

Depois do aniversário de Fabiana, fiquei doente, tive febre e diarreia e todos os meus amigos se afastaram de mim. Acho que comi bolo demais. Procurei uma farmácia e falei com um farmacêutico e pedi remédios para a minha fraqueza, ele me deu uma injeção e dinheiro para comer. Depois de dois dias estava pronta para o crime. Mas a polícia descobriu nossa turma e prendeu o quarteto, só sobrou eu, que escapei porque estava na farmácia. Fiquei com medo de roubar de novo e passei a pedir comida na rua, mas ninguém me deu. Voltei a bater na porta das pessoas e só recebi nãos. Tentei roubar uma senhora e ela me bateu com a sombrinha, eu sai correndo e fui parar em frente a um carro de cachorro quente e ali fiquei chorando.

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Eu estava dois dias sem comer e nem a técnica da água funcionava mais. Esse tempo foi o suficiente para eu perder o medo do inferno e me trocar por um hambúrguer. Uma atitude impensada, movida exclusivamente pelo ímpeto da fome.

Lourival, o dono do carro de cachorro quente me viu chorando e se aproximou. Eu pedi comida e ele disse que só me daria se eu o deixasse “brincar comigo”. A fome era tanta que não pensei mais em nada, nem na cara feia do diabo. “Ele não deve ser mais ruim do que a fome que sinto agora”, pensava.

A minha primeira experiência sexual foi horrível, senti nojo de mim e dele, um homem jovem que não teve piedade de uma criança faminta, que estava se tornando mulher por necessidade, não por opção ou vontade. Eu nunca esquecerei àquela tarde, em que no desespero da fome saí enlouquecida e me deixei ser usada por um dono de carrinho de cachorro-quente. Esse homem sem alma ainda me disse: “Você vai gostar”. Ele, no auge do seu egoísmo, me serviu o lanche e me levou para trás de um muro pinchado, onde cobrou pelo seu gesto de “solidariedade”. Daquele dia em diante sabia que não passaria mais fome, mas teria que ser dele. E foi assim que ingressei na prostituição.

O caminho sem volta

Eu pedia o lanche, comia e ia para trás do muro pinchado, a testemunha do crime. Depois de alguns meses comendo cachorro-quente e hambúrguer, senti vontade de mudar de cardápio e provar

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outras comidas, como filé, por exemplo. Lembrei de um dia que fiquei esperando o resto de comida de um restaurante e vi um garçom servir a um cliente um filé a parmegiana, àquele prato não me saiu da cabeça e jurei que o comeria a qualquer custo. E comi, comi quando conheci o Tato.

Era o dia do meu primeiro aniversário longe de casa. Estava completando 12 anos e fui para frente de um restaurante tentar conseguir comida. Não queria passar fome naquele dia e nem comer lanche e dormi com o Lourival.

Do lado de fora, o vidro frio, assim como as pessoas que estavam ali, incomodava a minha pele, mas era preciso encostar meu rosto para observar melhor o ambiente. De repente percebi um olhar atencioso. Não liguei e continuei imóvel. Os seguranças estavam distraídos com a televisão, que exibia o telejornal e não haviam percebido a minha presença. Eu tinha que fazer alguém me enxergar antes que começasse a novela e comecei a fitar um rapaz, elegantemente atraente.

Esse homem magro, estatura média, traços fortes, aparentando uns 35 anos e de sorriso fácil levantou-se da cadeira e saiu do restaurante, vindo em minha direção. Ele se aproximou de mim e perguntou o que eu queria, e por que o olhava tanto. Eu expliquei que não estava olhando apenas para ele, mas para todos ali no restaurante. Ele riu e perguntou se eu queria comer, respondi sim. “Então peça que eu pagarei”, disse enquanto observava meu corpo em formação. Eu fiquei alguns segundos sem falar e pensei: “vou pedir o filé a parmegiana,

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ele deve ter dinheiro”. Ele interrompeu meu pensamento: “então, o que quer?”. E eu pedi meio envergonhada o prato que tanto desejava. E ele se assustou dizendo que esse prato era muito caro. Eu na ânsia de saciar meu desejo exclamei: “Mais hoje é meu aniversário, será que não posso nem comer o que eu quero num dia tão especial para mim!”, disse olhando firme em seus olhos. Ele sorriu e respondeu: “ Ah, já que é seu aniversário, então vou pagar o filé a parmegiana, mas me diga uma coisa: você sabe que prato é esse?”, perguntou em tom de curiosidade. E eu respondi: “claro!”

Naquele restaurante não tinha o tal prato e então fomos para outro. No caminho ele disse que havia gostado de mim e queria me dar um presente. Paramos em uma loja e ele comprou um lindo vestido e um par de sapatos. Eu aceitei sem qualquer pudor, meus trapos estavam rasgados e eu não queria passar meu aniversário com àquelas roupas sujas, impregnadas de poeira. E como vi que ele tinha dinheiro me atrevi a fazer um outro pedido: “ Será que o senhor pode comprar uma calcinha do dálmatas também. É que estou com uma toda rasgada. Faz quase um ano que tenho apenas duas calcinhas e uma já não dá para usar mais, por favor”, disse envergonhada. Ele sorriu e pediu que a vendedora escolhesse seis calcinhas, mas lá não tinha calcinhas dos dálmatas, só da branca de neve. Eu aceitei, qualquer calcinha era melhor do que eu estava usando.

Mesmo suja, vestir as roupas e seguimos para um belo restaurante e ele pediu o meu filé a parmegiana. Ah! Foi lindo. Eu não conseguia prestar atenção em nada que àquele moço falava, só pensava no filé.

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Quando o garçom trouxe o prato fiquei tão emocionada, que cheguei a lacrimejar, enquanto que Tato ria da minha ingenuidade. Eu comi devagar, queria degustar cada pedacinho dele. Estava delicioso. Eu na verdade não sabia o que era o tal filé a parmegiana, só tinha visto de longe e achei bonito, mas comê-lo foi o máximo. Depois de comermos, ele me levou para conhecer seu apartamento. Eu então pensei: “Ele vai querer cobrar pelo almoço e pelas roupas, mas eu pago, já me dei até por um hambúrguer, acho justo o sacrifício pelo meu filé”. Mas ele não me queria apenas por uma noite, alias, ele não me queria para ele, queria eu para seus clientes. Queria lucrar comigo.

Quando chegamos no seu apartamento o fiz um pedido. “O senhor não tem ai um bolo”. Ele respondeu: “Não, não tenho, mas posso pedir pelo telefone. É seu aniversário e como todo aniversário não pode faltar bolo né?”, interrogou. “ É, é que que nunca tive um bolo no meu aniversário e como essa noite foi maravilhosa, gostaria de encerrá-la com um bolo e um parabéns para você. Sei que estou abusando, mas por favor, me faça esse último desejo”, disse quase chorando. Ele não respondeu, pegou o telefone e encomendou um bolo.

Enquanto o bolo não chegava eu fiquei observando o ambiente. Seu apartamento era imenso, tinha dois conjuntos de sofá, cozinha com armário, som digital, televisão grande e vários banheiros com descargas. Me deu até vontade de cagar.

Na parede havia quadros estranhos, com cores que se misturava com imagens, eu achava horrível, mas ele dizia que era arte. “Se arte for isso,

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eu também posso ser artista”, disse. Tato riu. Eu perguntei se ele morava sozinho, mas ignorou a resposta. Ofereceu-me uma bebida, eu recusei, queria mesmo era ver televisão. Ele ligou. “O que você quer ver?”, perguntou. “Desenho, será que está passando desenho agora?”, respondi com essa pergunta. E para a minha surpresa estava. Ele me explicou que tinha um canal mágico que passava desenho 24 horas. Fiquei encantada. Ele me deixou à vontade. Depois de alguns minutos o bolo chegou. Eu chorei quando vi o bolo. Ele era grande, daria para eu comer por um mês e ainda tinha cobertura de chocolate.

Tato bateu parabéns e eu assoprei a vela e chorei por meia hora, imaginando o quanto os meus irmãos adorariam provar daquele bolo. Tato tentava me consolar, pedindo para eu parar de chorar, mas eu não conseguia. Lembrava de Fabiana, Lucas, Simão e Milho, que estavam presos e de tantas outras crianças que sonhavam em comer aquele bolo. Acho que nem minha mãe e nem meu pai comeram um bolo daquele na sua vida e eu com aquele bolo todo para mim, não era justo, não era justo eu comer o bolo sozinha. “Pare de chorar Tatiana, se não quiser comer todo o bolo, pode dar para quem desejar, mas pare de chorar, por favor,” pediu Tato; e depois que eu me acalmei da emoção de ver aquele bolo, ele começou uma conversa estranha.

Usando de sua malícia, Tato prometeu me tirar da rua e me dar vida nova, com um “emprego digno” e escola.

Eu pensei ali que Deus tinha resolvido me ajudar e cheguei a chorar emocionada quando ele me disse àquilo. Até me distrair do desenho

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e dos pedaços de bolo que estavam na minha mão.Tentando limpar minhas lágrimas, ele se aproximou e reforçou que não queria transar comigo, que me respeitaria e explicou o que eu teria que dar em troca da sua “ajuda”.

-“Eu sei que você é menina de rua, que se troca por um prato de comida, como estava disposta a fazer hoje, mas você é bonita e pode ganhar mais que comida, pode até ficar rica se for boazinha e fazer o que eu mandar”, disse, enquanto passava a mão na minha cabeça e limpava meu rosto, completamente manchado da cobertura do bolo. Eu perguntei: “o que queres que eu faça?”. “Quero que more aqui e saia com pessoas selecionadas, clientes que eu tenho cadastrado e que pagam muito bem. O dinheiro dará para você comer mais de três filés a parmegiana por dia...”

Enquanto ele falava ficava pensando em como seria comer três filés a parmegiana por dia e morar em um apartamento daqueles.

Sempre sonhei em morar em prédio. Quando passava perto de um me imaginava subindo e descendo de elevador. Àquela era minha chance, pensei. Teve uma hora que eu não conseguia mais escutá-lo tão concentrada estava em meus pensamentos.

Imaginei por alguns segundos que eu poderia mesmo ter uma vida melhor. E sem o deixar concluir seu texto decorado disse sim, que aceitava sua proposta, mesmo sem saber direito qual era. Assinei um contrato com o diabo disfarçado de anjo.

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Naquela noite não aconteceu nada. Eu vi televisão deitada no seu confortável sofá até adormecer. No dia seguinte fui acordada por uma terrível realidade que começaria a viver. Um homem aparentando mais de 60 anos, de cabelos brancos apareceu na minha frente e começou a me agarrar. Perguntei quem ele era e obtive uma resposta grosseira: “Não precisa saber quem eu sou sua estúpida, só tem que fazer o que eu quero”, disse enquanto me segurava forte pelo braço. Ali percebi que o jogo havia começado e fiz com aquele senhor, sem nome, meu primeiro programa da agência do Tato.

Depois de cumprir a tarefa, o senhor foi embora sem me pagar.

Eu perguntei pelo dinheiro e ele disse que tudo estava acertado com Tato. Quando Tato chegou cobrei a minha parte e ele falou que não tinha, pois àquele programa tinha sido sem lucro. “Como sem lucro?”, interroguei, lembrando dos churrascos que eu vendia para Nastácia. Ele explicou cinicamente: “estava devendo uma grana para este cara e resolvi pagar assim. Desculpe; no próximo você terá sua parte”, disse enquanto saía, com a mesma frieza da sua central de ar.

Eu me senti tão humilhada que decidi ir embora daquele apartamento. E a surpresa foi quando tentei abrir a porta e percebi que estava trancada. O Tato havia me trancado. Fiquei com medo, lembrei das coisas que a mamãe falava sobre maníacos, que matavam crianças e resolvi me esconder atrás do sofá, assim quando ele chegasse, eu sairia sem que ele percebesse, mas ele demorou muito e acabei saindo do esconderijo para beber água. Nesse momento um homem magro,

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de cabelos compridos e olhar desconfiado entrou no apartamento gritando o meu nome e antes que eu pudesse voltar a me esconder ele me pegou pelo braço e me agarrou, começando ali uma sessão de espancamento combinada com sexo. Eu gritei de dor e quanto mais eu gritava mais excitado o cliente de Tato ficava, pensei que morreria ali. Quando o serviço acabou, ele saiu do apartamento me deixando amarrada. Acreditei que morreria na mão daquele homem ou que o Tato viria concluir o trabalho.

Já era madrugada quando Tato apareceu. Ele estava embriagado e acredito também drogado. Ele não ligou para o meu choro nem para as minhas reclamações. “ Pare de falar sua puta”, falou e ainda me deu vários chutes na barriga. Depois de me espancar, me desamarrou e me violentou sexualmente. “ Você quer mais sexo é, pois você terá”, disse Tato, enquanto me violentava.

Depois da agressão, eu cobrei dinheiro e ele me disse: “O que você quer mais? Não tem casa e comida? Eu te tirei da rua e agora o que você quer? Falou olhando para mim. Eu fiquei muda e ele continuou: “Então fica quieta senão eu acabo com você garota”, ameaçou.

Eu estava totalmente apavorada e fiz várias promessas, não só a Deus, mas a todos os santos e olha que minha mãe dizia que a gente não podia adorar imagens, mas naquele momento apelei para tudo. Prometi ir de joelhos nua até o altar da igreja de Nossa Senhora das Dores; prometi doar pão e sopa para o resto da vida quando ficasse rica; prometi perdoar meu pai e até voltar a vender pastéis sem recheio.

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Mas nada adiantava, parecia que Deus e todos os santos haviam me esquecido. Desejei voltar até para a casa de Nastácia, só para sair dali. Eu sentia o cheiro da morte se aproximar e o calor do fogo do inferno. Eu não poderia morrer naquele momento, pois eu acreditava que o meu lugar ao lado do demônio era certo, pois havia me prostituído e nada que eu fizesse me livraria do inferno. Mas minhas promessas não deram em nada. Depois de algum tempo vi que era prisioneira daquele homem e que nunca conseguiria me livrar dele, cheguei até a sentir falta de Seu Raimundo.

Seus clientes eram violentos e sempre me batiam. Eu nunca recebia nada por isso, e ainda era obrigada a tirar fotos e fazer vídeos nus, sorrindo e me exibindo de forma sensual. Mas tarde soube que ele vendia as fotos para pedófilos na Internet.

Um dia um grupo de rapazes quis me conhecer e pagou muito bem para o Tato me levar para um sítio. Eu saí de olhos vendados e fui jogada no porta mala do carro. Ao chegar ao sítio fui colocada como uma coisa no chão. “Está aí ela, não a maltratem muito rapazes, a quero viva e sem muitos aranhões de manhã”, disse Tato, enquanto dava uma ré no seu carro importado.

Ele vivia de explorar meninas como eu. Descobri durante estar no seu apartamento que havia pelo menos cinco crianças sendo forçadas a fazerem programas para ele. As crianças eram meninas e meninos que viviam nas ruas. Com falsas promessas, ele os atraia para seu apartamento e as comercializava. Soube mais tarde que Fabiana havia sido inaugurada na

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prostituição por ele e que ela conseguiu fugir porque houve uma denúncia anônima. Essa denúncia salvou sua vida, mas Tato continuou agindo, só que em outro bairro. Ele vivia se mudando e morava em vários lugares ao mesmo tempo.

O sítio que ele me levou para seus clientes se divertirem era também de sua propriedade. O sitio ficava num lugar isolado da cidade, coberto de verde, com árvores frutíferas que cercavam uma bonita casa, construída na parte alta do terreno. Não havia vizinhos por perto. Era um lugar de grandes fazendas, que tinham mais de 60km de distância uma das outras, por isso, os vizinhos não se conheciam. Eu estava sozinha com os loucos.

Quando vi os rapazes percebi que ali seria mesmo o meu fim e quase foi. Eles eram todos estranhos, espécie de humanos que eu nunca havia visto antes.

Um loiro tinha furos pela cara e em cada furo um brinco, até na língua havia brinco. O outro era totalmente tatuado, horrível, uma coisa do outro mundo e olha que eu não havia conhecido o outro mundo e nem pretendia. O outro mundo que falo é o inferno, porque acho que se houver inferno, a aparência dos vivem deve ser igual à daquele rapaz que eu vi. Os outros dois, além de terem tatuagem e brincos pelo corpo, tinham cabelos em pé, suspensos. Acho que eles usam gel para sustentar as pontas. O quarteto formava um conjunto de horror. Ah! Eles eram todos brancos e não deveriam ter mais de 20 anos cada um e aparentavam ter dinheiro, porque Tato cobrava caro pelos programas.

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Eu não sabia ao certo a quantia, mas via ele com muitas notas verdes na mão dos clientes que iam me visitar e para ele me deixar por uma noite toda com aqueles loucos devia ter cobrado bem caro. Quando eles se aproximaram de mim fiquei apavorada, me deu medo, e cheguei a me recusar a participar da orgia, mas com a ameaça de uma faca no pescoço decidi ficar boazinha. Enquanto eles cumpriam seu ritual, eu chorava arrependida de ter pagado tão caro pelo filé a parmegiana. Eles me amarraram em uma árvore e fizeram barbaridades comigo, coisas absurdas que eu nunca nem imaginava que existia.

Em um momento na noite eles pararam a anarquia para se drogarem. E me soltaram para eu fumar com eles. Fingir gostar e pedi para ir ao banheiro, ou melhor, ir à mata, eles deixaram. Foi aí que aproveitei e fugir. Eu corri tanto, mas tanto que só parei quando não tinha mais fôlego. Eu não fazia ideia para onde estava indo, só sabia que queria ficar longe daqueles malucos e, principalmente, do Tato. No meio da fuga, acabei tropeçando em um pedaço de árvore e cai batendo a cabeça no chão e desmaiei.

O sol me despertou pela manhã. Toquei meu rosto e vi que estava ferida e fiquei imóvel por mais algumas horas. Não sabia o que doía mais, se a fome ou o ferimento. De repente a chuva caiu e eu tive que sair para procurar abrigo. Depois de correr alguns metros avistei de longe a estrada e fiquei ali tentando pegar uma carona. Carros, caminhões, ônibus, tudo passava, mas ninguém parava e continuei andando. Andei tanto que minhas pernas doíam. Depois

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de mais de duas horas andando vi uma praça e percebi que estava me aproximando de uma cidade de beira de estrada e apressei os passos. Eu não calculei as horas do percurso, mas ainda era noite. De repente os pingos de chuva que vinham me acompanhando durante toda a viagem engrossaram e eu corri, corri até não aguentar mais, quando parei vi que estava próximo de um supermercado fechado, onde havia uma cobertura grande. Eu me apressei para chegar até lá, pois estava chovendo forte. Ao me aproximar vi um garoto encolhido, batendo os dentes de frio. Encostei-me perto dele porque também estava com frio e começava a bater os dentes, acabamos nos abraçando, mesmo sem nos conhecer ou falar qualquer palavra.

Depois que a chuva amenizou a gente se apresentou, ficamos conversando por um longo período. Eu contei um pouco da minha vida e porque estava fugindo e ele me contou sua história.

A história de Nenén

- Meu nome é Nenen, sai de casa aos 11 anos para morar na rua com meus amigos. Era divertido, eu não apanhava e tudo que eu ganhava com a venda dos bombons podia gastar comigo, não precisava dar para ninguém. Mas só o começo foi legal, depois foi ficando perigoso.

Eu me viciei e não conseguir mais viver sem àquele mesclado. Aí a minha vida mudou drasticamente. Passei a roubar, a enganar e até participei de um assassinato. As minhas aventuras pelo mundo do crime e da droga me deixaram marcas. Cheguei a ser baleado,

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esfaqueado, preso, internado, e lamentei muito ter abandonado meus estudos. Mas o que mais me dói hoje não é apenas a falta dos meus pais e dos meus irmãos, mas a falta de alguém que pudesse me tirar desse inferno. Mas ninguém apareceu. As Ong’s que trabalham com crianças pobres próximo ao meu bairro não conseguem atender a todas que precisam, e eu fui uma das excluídas. Isso também me revolta.

Durante essa vida louca que conquistei, me envolvi com prostitutas e peguei doenças graves como: herpes, gonorréia e a pior de todas, a maldita Aids. Aids aos 15 anos de idade! Você sabe o que significa isso? Você sabe o que eu estou sentindo? Se importa com os meus sentimentos? Conhece alguém que pode me ajudar a não enlouquecer? Conhece?”

Quando ele me disse aquilo fiquei apavorada, logo pensei: “Meu Deus, eu o abracei e ele está com Aids, devo ter me contaminado”. Enquanto ele falava, eu me afastava. Ele, então, percebeu minha repulsa e parou de falar e começou a gritar: “Essa doença não passa com abraço e nem com o ar, então não fique com medo de mim menina”, disse enfurecido. Eu tentei me desculpar, dizendo que não estava com medo, mas ele não acreditou. “Quer saber de uma coisa, eu vou embora, não preciso de você. Aliás, eu não preciso de ninguém. Odeio você, odeio essa porra de governo que só serve para fazer campanhas enganosas, pois eu nunca fui beneficiado com nada, apenas com as praças que servem de cama quando eu consigo dormir”.

Depois de despejar isso na minha cara, ele foi embora. Eu me sentir muito mal, mas estava com medo da sua doença ter me contaminado

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e não conseguir disfarçar.Eu saí dali e me joguei num chafariz de uma praça, tentando me limpar do abraço, se é que se podia limpar. Depois caminhei molhada para me enxugar, mas meu pensamento era só naquele menino. Eu não imaginava, naquele momento, o que era, de fato, ter Aids, o que era a Aids. Tinha ouvido falar de alguma coisa a respeito, mas não sabia como se transmitia, só sabia que matava, depois de deixar a pessoa com a aparência de caveira.

O pastor

Depois que a chuva parou, voltei para a estrada e consegui uma carona até o centro, onde eu conhecia e me sentia mais segura. Lá, continuei a minha vida. Os dias se passaram e eu esqueci daquele garoto doente, voltei a minha rotina na rua. Depois de semanas sem dormir direito com medo de ser encontrada pelo Tato, pedindo restos de comida em restaurantes, ouvi falar de um pastor evangélico que ajudava crianças de rua.

Quem me apresentou esse pastor foi Marquinho, um garoto de 13 anos que conheci na porta de um restaurante fazendo a mesma coisa que eu, pedindo comida.

Marquinho saiu de casa porque não aguentava mais ver seu pai espancando sua mãe, que apanhava porque merecia, já que ela não conseguia deixar a vida de prostituição. Ele tinha mais dois irmãos, e ajudava no sustento da casa carregando caixas de mercadorias na

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feira, e colhendo garrafas de cervejas para vender. Sua mãe conseguiu o benefício do Programa Bolsa-Escola (um dinheiro que o governo destina a famílias carentes para que a criança deixe de trabalhar para estudar) e Marquinho voltou a estudar, mas o dinheiro que o governo dava era usado em bebidas e drogas pelos seus pais. Na sua casa, a comida era pouca e por causa disso ele deixou de estudar e fugiu, passando a viver na rua.

Ele me falou que quando estava sem nada para comer, ia a uma igreja na Praça dos Amores, onde tinha um pastor que lhe dava comida e conversava com ele. Eu pedi que ele me levasse a esse pastor porque era bom conhecer alguém que pode te dar comida quando não se arruma nada. Minha mãe sempre dizia que era bom fazer amizades com pessoas que podem te ajudar.

Aí combinamos e fomos até a igreja. Ao chegar na igreja assistimos o culto e quando terminou fomos falar com o pastor. Marquinho logo se adiantou e me apresentou: -Pastor, essa aqui é minha amiga Tatiana, ela quer conversar com o senhor, tem um cara a perseguindo”.

Enquanto Marquinho adiantava o assunto, o pastor pediu para eu sentar, chamou um missionário e mandou ele nos servir um lanche. Poxa, eu amei aquele pastor. Ele me deu dois pães careca com manteiga e um suco delicioso e eu nem precisei transar com ele. Aquilo era o máximo. Depois que eu comi, ele pediu para eu contar a ele a minha história. Tipo: como cheguei a parar na rua e por que eu me prostituía. Aí contei tudo, desde o início.

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Enquanto eu falava, ele fazia caras e bocas. Ora ele ria, ora pensava. Marquinho, do meu lado, só fazia rir, parecia que eu estava contando uma grande piada. É que ele não tinha mais paciência para ouvir a minha história, porque todo mundo que eu conhecia, eu falava tudo sobre mim. Mas o pastor me ouviu com atenção. Depois que eu terminei, ele passou a mão na minha cabeça carinhosamente e disse que eu deveria perdoar meu pai e me aconselhou a voltar para casa, pois estaria mais protegida do Tato.

-Com sua família você estará mais segura-, disse o pastor, que em seguida fez uma longa oração, tão longa que quase dormir, sem se falar que eu falei amém umas dez vezes antes da oração terminar.

Depois da oração eu e Marquinhos fomos embora. Marquinho me deixou sozinha para ir encontrar com uma namorada e eu fiquei perambulando pela rua, pensando no que o pastor havia dito.

O dia estava amanhecendo e eu não conseguia dormir, não por falta de sono, mas por medo de ser encontrada pelo Tato ou por qualquer outro explorador. Como eu estava cansada de sofrer, vi que voltar para a minha casa seria a melhor opção. Nesta mesma noite voltei a encontrar Marquinho e falei para ele que havia decidido voltar para a casa.

- Vou voltar para a casa amigo.

Ele não gostou da minha decisão e disse que eu me arrependeria. Desejei a ele boa sorte e partir.

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Depois daquele dia nunca mais o vi. Soube mais tarde que ele havia sido assassinado pela polícia, que o confundiu com um assaltante. Coitado, seus pais o condenaram a esse fim.

De volta ao inferno

Era tarde quando caminhei rumo a minha casa. No caminho lembrei-me das raras vezes que minha mãe me fez carinho, sentia o cheiro dos meus irmãos e até saudade daquela rua fedida.

Ao me aproximar de casa, enxerguei minha mãe e corri para abraçá-la, pensei que seria recebida com festa, afinal estava muito tempo fora de casa, mas quando ela me viu, ao invés de um abraço me deu uma surra de cinto de quase meia hora. Fiquei totalmente machucada, com hematomas por todo o meu corpo, que mal conseguia me mexer. Eu não entendi a sua reação e me revoltei, principalmente com os sinônimos que ela usou para me chamar de prostituta. Meus irmãos me olhavam com desprezo e medo. Quando meu pai chegou em casa e me viu indagou com raiva: “Me diga sua puta, com quantos homens você se deitou? Me diga?”.

Eu não respondi e ele avançou em cima de mim e continuou o espancamento que minha mãe havia começado, mesmo vendo que eu já estava bastante machucada.

Vi ali que a minha família me odiava e que eu não havia feito falta para eles. Prometi para mim mesma que fugiria na primeira oportunidade

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que tivesse. De noite, minha mãe veio curar minhas feridas e tentar me consolar justificando sua atitude bárbara. “Minha filha, você quase matou a gente de tanta preocupação, queria que a gente te recebesse com flores? Você precisava de um corretivo, agora vê se você não apronta de novo, ouviu?”, falou enquanto passava remédio nos meus machucados.

Seus remédios poderiam cicatrizar as feridas externas, mas dentro de mim não havia nada que pudesse apagá-las, estava muito magoada.

Depois de uma semana em casa, vi que nada havia mudado e que a miséria continuava a mesma, que meu pai ainda se drogava e minha mãe cultivava o seu mau humor como uma planta rara. Por um momento pensei que poderia ganhar dinheiro me prostituindo para ajudá-los, mas meu pai não deixou. Ele se aproveitou de uma saída de minha mãe e me estuprou na frente de meus irmãos menores. Foi horrível. Depois dessa cena, fugi de casa e prometi não voltar mais. Eu tinha raiva da minha família, tinha nojo do meu pai e odiava a minha mãe por não conseguir se livrar dele. Decidi que nunca mais voltaria àquele inferno.

Uma vizinha ainda me chamou quando me viu indo embora. -Espere Tatiana, não faça isso com seus pais de novo. Da última vez que você fugiu, eles ficaram doidos. Sua mãe chorava todas as noites e seu pai também”, disse dona Clotilde, uma vizinha que me viu crescer até os 11 anos.- Dona Clotilde, meu pai me violentou na frente dos meus irmãos.

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Eu o odeio. Quero que ele morra. Aqui é um inferno e inferno por inferno, prefiro o que eu estava. Pelo menos lá quem me maltrata não tem meu sangue. Diga a minha mãe que a odeio também e que nunca mais ela me verá. Falei aquilo e corri. Corri para bem longe de casa.

Soube mais tarde que enquanto eu caminhava, minha mãe chegava em casa e ficou sabendo pela vizinha o que havia acontecido. E pasmem: ela ainda defendeu meu pai, dizendo que era eu que não prestava, que eu era o fruto ruim daquela família.

Meu pai disse que eu havia inventado tudo e meus irmãos, as testemunhas do crime, não falaram nada. Talvez eles nem tivessem consciência do que havia acontecido. Minha mãe consolou meu pai, que chorou por semanas depois que eu parti. Soube também que minha mãe disse que nunca mais queria me ver na vida e que eu merecia não ter nascido.

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“ Àquele que vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida sofrerá a penalidade da lei com a detenção de seis meses a dois anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave ” (Art. 243 do Estatuto da Criança e Adolescente)

Drogas, Amor e

descobertas

Drogas,

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De volta às ruas, comecei uma vida de prostituição, onde combinei drogas e bebida. Em pouco tempo me transformei em uma viciada e olha que eu não tinha nem 13 anos completo.

Tudo começou quando conheci Ripa, um garoto de 16 anos que servia de avião para os riquinhos que queriam comprar droga.

Lembro do nosso primeiro encontro nitidamente. Ele me viu na praça pedindo comida e se ofereceu para pagar um lanche. Eu pensei: “vai querer fazer um programa comigo”, mas ele queria me namorar. Eu aceitei o lanche. Enquanto eu comia, ele ficava me olhando, dizia que eu era bonita. Depois do lanche, passeamos juntos e eu contei para ele toda a minha a vida, igual como fazia com qualquer pessoa que se aproximava de mim.

Não sabia por que tinha esse costume de contar a minha vida para todo mundo, mas me fazia bem repetir a minha história.

No meio da conversa, ele me pegou pela cintura, me jogou na grama

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da praça e me deu um beijo, perguntando em seguida se eu queria namorar com ele. Eu fiquei surpresa com sua audácia, mas gostei, e disse sim. Foi o tal do amor à primeira vista. A gente se apaixonou perdidamente e ele me apresentou a maconha.

Ripa foi a minha primeira paixão e o começo também de uma vida de vícios. Ele pediu para eu fumar com ele como prova dos meus sentimentos. “Quero que prove que gosta de mim, vamos fumar juntos?”. Eu não consegui resisti e acabei fumando, mas achei ruim o cheiro, depois ele começou a insistir para eu continuar e quando percebi estava refém das drogas, assim como ele.

Àquela erva, misturada com pasta de cocaína, dava uma sensação legal e não parei mais. Morria por um mesclado.

A história de Ripa é muito triste, ele queria ser um doutor, não um avião, mas a vida o levou a traçar outros caminhos. Um dia, quando ele estava totalmente bêbado e dominado pelas drogas ele me contou como tudo começou.

Ripa, queria ser doutor

-Sabe Tatiana, meu nome verdadeiro é Vinicius de Moraes, minha mãe colocou esse nome em homenagem a um cantor que nem sei bem direito quem é, mas o pessoal sempre me chamou de Ripa, talvez por causa do meu porte físico, quase esquelético.

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Eu era um bom aluno, estudei até a 4ª série, mas a tecnologia tirou o emprego do meu pai e ele, tanto por sua idade, quanto pela sua cor, não conseguiu mais trabalho. E como se não bastasse a dor de perder o emprego, o qual dedicou sua vida, ele ainda teve toda a sua indenização roubada. O golpe o levou a cama de um hospital. Ele sofreu uma parada cardíaca e quase morreu. Minha mãe disse que sustentaria a casa e que ele não precisaria se preocupar. Mas as lavagens de roupa não davam para nada, e a prestação da casa foi ficando atrasada.

A casa que a gente morava tinha sido financiada por um banco e fazia mais de dois anos que eles não recebiam nada. Sempre chegava cartas com propostas de acordo, mas não havia como negociar, pois não tínhamos como pagar. Minha mãe chorava, meu pai consolava e eu perguntava o por quê de tanto choro e eles diziam que tudo estava bem.

Um dia vários homens fardados chegaram em casa e mandaram a gente sair com nossas coisas. Os vizinhos fizeram protestos, queimaram pneus e os fardados foram embora, mas depois eles voltaram e colocaram a gente na marra para fora de casa, meu pai não suportou o choque e teve um enfarte fulminante e morreu.

Os anos de trabalho não lhe deram direito nem a um enterro digno. Minha mãe pediu ajuda a prefeitura, que pagou o caixão e o mandou para um cemitério público alagado, mas não deixou a gente velar o corpo.

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Sempre calada, mas forte, minha mãe pegou eu e meus dois irmãos menores e começou a bater na porta de parentes para conseguir abrigo, mas todos nos desprezaram. Aí ela arrumou um lugar na rua para ficarmos.

Os poucos móveis que sobraram foram vendidos para a gente comer. No começo comíamos em restaurantes populares, depois começamos a mendigar solidariedade. Era muito triste vê-la chorando tentando nos consolar de que Deus nos ajudaria a sair das ruas.

Imagina só: eu tinha uma casa, estudava, tinha um pai legal e de repente estava dormindo na rua. Eu era uma criança, mas não podia brincar porque a minha vida não tinha graça. Minha mãe ainda bateu na portas de alguns políticos, mas os gabinetes dos vereadores da cidade se fecharam para ela, até o presidente do centro comunitário a ignorou.

Como não dava para lavar roupa na rua, mamãe começou a reparar carro para ganhar alguns trocados, mas mal dava para comer.Enquanto ela fazia ponto em frente a um banco, eu reparava meus irmãos Cleo,de 5 anos e Mauricio, de 3.

Quando os moleques me davam uma folga, eu ficava rodeando a área onde a gente se instalou. Olhava para o céu e pensava em mil maneiras de ajudar minha família. Aí um dia conheci o Macaco e o Boca de Siri, que se tornaram meus amigos e me contaram como ganhavam a vida. “Tem uma maneira legal de você ajudar sua família, venha

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com a gente”, disse Macaco. Ele me levou em um lugar pavoroso, sem iluminação, onde a gente precisava atravessar uma ponte de madeira quebrada para chegar à casa de Jiló, o dono de ponto de drogas, que me arrumou um “emprego” de avião. Avião é o moleque que compra a droga na boca e leva para o cliente discretamente. Eu aceitei o serviço e fiz àquilo por quase um ano, mas nunca me animei a experimentar àquela coisa. Tinha medo de me viciar.

Mas minha opinião mudou quando um dia a polícia me flagrou com a droga de um cliente. Eu tentei explicar que ela não era para mim, e sim para uma outra pessoa, mas eles não quiseram me ouvir e me deram muita porrada, me prenderam e fizeram um cara na cadeia me estuprar. Depois que descobriram que eu era de menor, me soltaram.

Eu era apenas um garoto de 14 anos e só queria ajudar minha mãe a sobreviver, mas depois daquela violência, me revoltei e quando eu saí dali resolvi cheirar e foi aí que tudo começou. Fiquei viciado e comecei a assaltar as pessoas. Com o dinheiro dos assaltos tirei minha mãe da rua e aluguei um barraco em uma nova invasão.

Eles estavam felizes, pensavam que eu tinha arrumado um emprego legal, mas não, eu estava trilhando o fim da minha vida normal. O pior foi que eu me viciei em ganhar dinheiro fácil, e mesmo quando pintou um emprego bom eu recusei.

O Boca de Siri me dizia que emprego para ganhar salário mínimo era coisa de gente otária e eu acabei entrando na dele. Em um desses meus

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assaltos a polícia me prendeu, mas eu saí logo, pois ainda era de menor. Eu confesso que adorava àquela vida e estava feliz porque minha mãe havia voltado a lavar roupa para fora e eu tinha conseguido montar uma barraca de bombons para os meus irmãos menores. Pelo menos fome eles não passavam mais. Então, eu pensava: “um da família tem que se sacrificar”. Mas a vida não foi um mar de rosas por muito tempo.

Eu fui traído pelos meus dois amigos, Boca de Siri e Macaco. Eles me convidaram para assaltar uma loja e me deixaram sozinho.

Os PMs me pegaram e me deram três tiros, mas eu sobrevivi. Depois disso não quis mais conversar com a dupla, mas eles não gostaram do meu desprezo e me esfaquearam quando eu estava distraído na barraca de bombons dos meus irmãos. Levei várias facadas, mas ainda restava vida para mim.

Eles não ficaram satisfeitos e mandaram um outro cara me acertar. Esse cara, o Cabeça de Porco, me deu um tiro nas costas, que por pouco não me deixou aleijado. Resolvi mudar de bairro e agora não faço mais assalto, só sou avião. Mas o que eu queria ser mesmo era doutor, qualquer um doutor, faria qualquer coisa por um DR. Sabe Tatiana, acho bacana ser chamado de DOUTOR. Já pensou eu, de paletó e gravata?

Poderia ser um doutor advogado, um doutor médico, um doutor engenheiro, mas eu queria ser doutor, queria que a minha mãe olhasse para mim e tivesse orgulho, não vergonha como ela mesmo diz, pois no fundo ela sabe que meu emprego é uma grande farsa.

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A gente vê as pessoas falando em honestidade, solidariedade, em tantas coisas legais, mas quando a ferida é na gente, tudo muda. Por isso que eu sempre digo: falar é fácil, mas o difícil é ser honesto e decente quando você vê sua família passando fome. E olha que minha mãe tentou me colocar naqueles programas do governo que se ganha dinheiro para criança estudar, mas nunca conseguiu. Nem nas entidades financiadas pelas Ong’s que cuidam de crianças carentes houve lugar para mim e para os meus irmãos. Tudo foi negado para gente, então só restou as ruas, as drogas e o crime. Ninguém escolhe ser marginal, as coisas acontecem no nosso destino.

Quem diria, eu que queria ser doutor, agora sou quase um assaltante profissional e ainda nem comecei a votar. Tenho um curriculo de crimes nas costas.

A gente vê tanta gente enriquecendo por cuidar de carentes, por fazer solidariedade, mas isso tudo é, no fundo, uma grande farsa, uma lavagem de dinheiro, porque não há solidariedade quando se ganha um gordo salário para fazer o “bem”.

Eu não queria ser marginal Tatiana! Não queria! Eu sou na verdade uma vítima desse sistema governamental que só consegue fazer o rico ficar mais rico e o pobre miserável. Mas quando pensei que tudo tinha acabado para mim, conheci você! E agora estou amando pela primeira vez, e quero mudar de vida! Quero sair da rua, quero parar de fumar, de beber, quero casar! Quero ter filhos! Quero ser normal, entende? Quero ser normal!”

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A confissão de Ripa veio entre lágrimas. Nós nos abraçamos e compartilhamos a mesma dor, pois no fundo éramos pessoas boas, que queriam apenas ter uma vida diferente da dos nossos pais. Dali em diante, passamos a ser um só.

Sem ajuda para mudar

Depois de ouvir a história de Ripa e de olhar para dentro de mim, refletir sobre minha vida e no que havia vivido nos últimos anos. Vi, naquele momento, que não conseguiria mais deitar com nenhum homem, que não fosse ele. Senti, pela primeira vez, que alguém me amava mesmo, um amor que nunca pensei que existisse.

Ainda naquela noite dormimos abraçados sobre a grama de uma praça recém-inaugurada pelo governo municipal. Eles adoravam inaugurar praças.

No dia seguinte a gente procurou alugar um quarto, mas ninguém nos deu crédito. Fomos na Prefeitura pedi ajuda para sair da rua e os guardas nos expulsaram. A gente tentou argumentar, mas eles não nos deram ouvido. Eu gritei: “ O prefeito não diz que é amigo da Criança, então quero que ele prove agora isso, chamem o prefeito! Chamem o prefeito!” gritávamos, mas os guardas não o chamaram. Resolvemos dar plantão ali. Eu acreditava nas pessoas, acreditava que o prefeito pudesse nos ajudar, pois ele sempre dizia na televisão que era amigo da criança e fazia tanta coisa para ajudar tantas crianças, que eu via nele nossa tábua de salvação.

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Mas nem eu e nem o Ripa conseguiu chegar perto dele. Vai ver foi até melhor assim porque não suportaria mais uma decepção, pois para mim àquele prefeito era um ídolo.

Depois de tentarmos sem sucesso todas as formas para sair da rua acabamos desistindo. Resolvemos então formar uma dupla de assaltantes só para conseguir dinheiro para mudar de vida. Nossa intenção era boa, pelo menos eu acreditava nisso naquela época.

Começamos a assaltar pessoas na rua, imitando com o dedo um revólver debaixo da roupa. Era divertido, mas depois foi ficando perigoso. A polícia nos prendeu e fomos internados numa casa para recuperação de menores. Afastado de Ripa, me sentir muito infeliz. Depois de algum tempo saí e voltei a me viciar, dessa vez para fazer programas. Eu já não conseguia me deitar com outro homem sem estar totalmente drogada.

Depois de semanas sem saber do paradeiro do Ripa, o avistei de longe quando estava entrando no carro de um cliente. Não pensei duas vezes e corri ao seu encontro, enquanto o cara me xingava de tudo que não prestava. A gente se abraçou, se beijou e se amou muito. Decidimos ali que nunca mais iríamos nos separar.

Eu prometi que não me venderia mais e ele que não roubaria, mas o vício foi difícil de deixar. Estávamos refém da maconha, da pasta de cocaína e da pior das drogas, o álcool.

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-Vamos deixar essa vida Tatiana, vamos ser pessoas normais, voltar a estudar e construir um lar? Ele me perguntava com lágrimas nos olhos. Eu também queria muito ser diferente, mas sabia no fundo que não conseguiríamos, pois a sociedade nos negava essa chance.

Mesmo sem certezas, fomos à luta. Contei sobre o pastor que conheci e decidimos pedir ajuda a ele. Caminhamos de mãos dadas até a igreja, com o coração cheio de esperança. Ao chegar na igreja vimos logo o pastor e contamos que queríamos viver decentemente, só precisávamos de credibilidade, o pastor nos aconselhou e emprestou R$ 20,00 para comprarmos bombons e vendermos nos ônibus. Era o começo de um negócio. Estávamos felizes. Gastamos R$ 10 nos bombons e R$ 10 em drogas, mas o importante foi nossa intenção em mudar. Começamos a vender bombons e o lucro era gasto todo com drogas, mas a gente conseguia preservar o capital, já era o começo, pois em outra época não deixaríamos nem o capital.

A gente vivia grudado um no outro. Entravámos nos ônibus, não em todos, só em alguns, onde os motoristas eram solidários com a gente. O texto era simples: um resumo da nossa vida e de nossa intenção. Ao contrário dos garotos que falavam: “poderíamos estar roubando, matando, mas quero trabalhar”, a gente dizia: “Estamos tentando deixar de roubar, de se drogar, e queremos sair das ruas para construir uma família, nos dei uma chance de melhorar, comprem nossos bombons”. Isso era o bastante para convencer os passageiros. Alguns chegavam até a chorar.

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Nesse nosso pequeno negócio conhecemos de perto a solidariedade humana. O olhar carinhoso de pessoas que diziam que acreditavam na gente e nos desejavam boa sorte. Havia pessoas que davam até mais do que pedíamos pelos bombons.

Quando a gente descia do ônibus, o Ripa me pegava no colo e me rodava. Ele estava feliz, eu também estava. A gente fazia mil planos. Estávamos começando a acreditar que nosso destino estava mudando.O dinheiro que a gente ganhava vendendo bombons era pouco, mas já dava para pagar a comida. Eu deixei de fazer programas e o Ripa parou de assaltar, a única coisa que nos perseguia era o vício, que não conseguíamos parar.

Andando pelas ruas, ouvi falar em uma casa onde faziam tratamento para pessoas pararem de usar drogas. Eu convidei o Ripa para irmos até lá. Quando a gente se aproximou, Ripa diminuiu os passos e ao chegar na porta me convenceu a não entrar, afirmando que poderia ser uma armação da polícia para prender viciados.

- Você não está vendo que é uma armação para prender viciados, vamos embora daqui Tatiana-, disse Ripa, me puxando pelo braço.

Eu ainda insistia:- Vamos entrar, quem sabe eles dão uma fórmula mágica para a gente parar de sentir vontade de cheirar. Já pensou em quanto dinheiro poderemos economizar se pararmos de usar drogas? A gente pode até alugar uma casa e comprar um fogão. Imagine eu cozinhando para

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você. Imagine nunca mais precisar dormir no sereno. Vamos Ripa, pode ser nossa chance.

Ripa ignorou todos os meus argumentos e me puxou para longe dali. Ele na verdade não acreditava que a gente pudesse parar com as drogas, mas eu acreditava. Depois daquele dia, não insisti mais em conhecer a tal casa que cura viciados. Voltamos a vender bombons como antes , sem falar em parar de fumar.

Não sei bem o que aconteceu, mais depois do dia que fomos a casa que cura viciados, o Ripa passou a consumir mais drogas do que antes, eu cheguei a me arrepender. Estimulada por ele, chegamos a gastar até parte do dinheiro do capital dos bombons. Mas a gente não brigou porque eu era tão viciada quanto ele.

-Não adianta Tatiana, a gente não vai conseguir nunca deixar essa droga, o que temos que fazer é ganhar mais dinheiro, porque o dinheiro que a gente ganha é pouco demais, não dó paro comer e fumar. Ou a gente come ou a gente fuma”, dizia Ripa.

E foi assim que eu e Ripa oficializamos a droga como nossa companheira. Mesmo usando drogas, a gente trabalhava vendendo bombons nos ônibus e dormíamos na grama de uma praça, que a gente forrava com um lençol, comprado com nosso dinheiro. Esse lençol, junto com dois cobertores era guardado por um comerciante. Quando a gente chegava, pegávamos o lençol e fazíamos a nossa cama e ficávamos embrulhadinhos olhando as pessoas passarem. Nós

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éramos quase invisíveis, raramente alguém prestava atenção na gente. O guarda municipal que fazia a segurança da praça era um cara legal e sempre nos protegia de bandidos e até da polícia. Nós éramos felizes.

Só que um dia esse guarda legal não apareceu e um grupo de garotos nos acordaram aos pontapés. Eles estavam de carro, usando roupas limpas e bonitas, mas pareciam mais drogados que nós.

Eu e o Ripa não tivemos tempo de reagir porque eles amarraram nossos braços e queimaram nossos lençóis. Pior: ainda ficaram ameaçando de nos queimar também. A gente pensou que fosse morrer. Eles ficaram quase uma hora brincando com a gente. Depois de cansarem, entraram no carro, aumentaram o som e foram embora. De manhã, o comerciante que guardava os nossos lençóis nos viu amarrado e foi nos ajudar.

- Seu Anselmo eles queimaram nossos lençóis. Eles queimaram tudo, disse chorando e inconformada.- Eu vou encontrar aqueles caras e matá-los, falou Ripa revoltado.

O comerciante, sempre calado e de pouca conversa, se comoveu com nossa situação e decidiu nos ajudar, convidando-nos para dormir no comércio. A gente nem acreditou.

-Vocês podem ficar dormindo no fundo do comércio, não tem cama e nem rede, mas tem um chão limpinho, e eu vou comprar novos lençóis para vocês. É melhor do que ficar no sereno. Pelo menos aqui nenhum

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filho de papai vai maltratá-los e vocês vão correr menos risco. Sabe, eu tenho pena de vocês, vejo os dois abraçadinhos dormindo nessa praça velha e suja, não custo nada ajudar, então se vocês quiserem o lugar é de vocês, mas eu não quero saber de drogas lá, entenderam?” Alertou o comerciante. -Fique tranquilo, não terá droga alguma. O o senhor é muito bom, Deus te abençoe”, disse, pulando em seu pescoço para lhe dar um beijo. Ele sorriu e nos desejou boa sorte.

-Tá vendo Ripa, ainda existe gente boa no mundo, ainda existe. Ripa me abraçou feliz e nós saímos radiantes para vender bombons, pois sabíamos que quando voltássemos teríamos um lugar para dormir.

Na parada de ônibus, a gente ficava toda hora se beijando, pois nem sempre os motoristas paravam. Passou o primeiro ônibus e o motorista não parou, passou o segundo e ele ainda nos xingou, o terceiro quase nos atropelou; o quarto arrancou quando íamos entrar, mas o quinto se solidarizou e nos convidou para vender nossos bombons.

-Entrem crianças, o ônibus é de vocês, disse o motorista.

Eu sorri feliz agradecida. Parecia que tudo ia bem, mas de repente, a gente identificou entre os passageiros o Boca de Siri e o Macaco, os ex-amigos e eternos inimigos de Ripa. Quando eles nos viram não pensaram duos vezes, levantaram de suas cadeiras, puxaram o revólver da cintura e começaram atirar sem parar. Vários passageiros saíram feridos, inclusive o bondoso motorista. Eu levei dois tiros, um na perna

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e outro no braço. Ripa levou três, um na barriga, no rosto e no peito. Ele morreu. A minha vida e meu sonho haviam acabado ali. Boca de Siri e Macaco tentaram fugir, mas foram perseguidos por um carro de polícia, onde os policiais se vingaram pelas vítimas, matando-os. No jornal, a manchete dizia que houve reação e os policiais apenas de defenderam, mas várias testemunhas afirmaram que eles não reagiram e foram executados em público.

Sem documentos, eu e o Ripa fomos separados na hora que a ambulância chegou no ônibus para socorrer as vítimas. Eu ainda estava acordada, apesar do ferimento, mas minha vista estava nublada, e mal pude ver quando Ripa, totalmente desacordado, foi colocado em outra ambulância, depois disso não me lembro de nada.

Soube mais tarde que enquanto eu estava sendo operada para ser retirada as balas, Ripa era enterrado como indigente. Imaginem a minha dor ao saber que o meu amor foi jogado em uma vala. Ele tinha apenas 16 anos de idade e sua ambição era casar comigo e formar uma família, e isso foi lhe negado.

Quando acordei da operação perguntei por ele e ninguém sabia me informar, me disseram apenas que uma das vítimas, um rapaz magro, não havia sido identificado e foi enterrado como indigente. Eu logo soube que eles falavam de Ripa e disse que eu era sua esposa, mas ninguém ligou para o que eu disse. Depois dessa tragédia tentei

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me matar tomando uns compridos na enfermaria do hospital, mas os médicos chegaram a tempo e fizeram uma lavagem estomacal e consegui sobreviver. Eu passei noites chorando, pensando no conto que o comerciante cedeu paro agente dormir e que nem conseguimos estrear.

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“Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável à criança ou adolescente, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum. ” (Art. 130º do Estatuto da Criança e Adolescente)

O recomeço

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Depois de quase um mês de internação voltei às ruas. Sem destino, sem projeto e sem vontade de viver. Passava os dias com meus pensamentos fixados em Ripa. Lembrava da sua história, dos seus sonhos, dos seus irmãos, da sua mãe. Queria avisá-los do que aconteceu, mas não sabia onde encontrá-los, não deu tempo dele me contar.

Voltei ao comércio de seu Anselmo e contei o que aconteceu e ele disse que eu poderia ficar lá, mas eu agradeci e preferi as ruas. Lá eu ia lembrar do Ripa o tempo todo.

O recomeço foi difícil. Eu andava falando sozinha. Em todo canto via o Ripa e isso me transtornava. Foi ai que decidi pedir ajuda às drogas porque somente com elas eu poderia suportar tanta dor. Só que existia outro problema: dinheiro. Eu não tinha dinheiro para comprar, mas lembrei do homem que era dono de uma Boca e fui até lá e me ofereci para ser avião. Ele topou e passei a trabalhar. Era melhor do que me prostituir. Só que a rotina de ir à Boca e levar para os clientes a droga começou

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a me encher.

Além de eu gastar todo o dinheiro que eu ganhava com a maldita, estava cada vez mais viciada e ficava angustiada quando não conseguia fumar ou cheirar o suficiente para me satisfazer. Essa foi à única herança que Ripa me deixou: o vício, a fissura pela droga.

Chorava todos os dias, pois eu queria sair daquela vida e não conseguia, não tinha forças. Tentei por uns dias parar de me drogar, mas entrava em crise de abstinência. A droga me levou a dependência física, que é o resultado da adaptação do organismo, independente da nossa vontade. Essa dependência e a tolerância se manifestavam ora isoladamente, ora associadas, somando-se à dependência psicológica.

Cada vez que eu tentava parar de fumar tinha múltiplas alterações somáticas. Meu corpo não suportava a síndrome da abstinência e eu entrava em estado de pânico. Sob os efeitos físicos da droga, o organismo não tem um bom desenvolvimento.

A dependência psicológica era a pior, pois eu sentia um impulso irrefreável, tinha que fazer uso das drogas para evitar o mal-estar. Eu ficava louca, tinha delírios quando não fumava, por isso nunca tive sucesso quando tentei parar de fumar sozinha. Eu achava que não conseguia por uma falha de caráter e não por um problema orgânico, do qual eu não tinha controle, pois não bastava apenas a minha força de vontade, que não era muita.

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A História de Gabriela

Embriagada e dominada pelo vício vivia de um lado para o outro. Nessa minha vida conheci tantas crianças como eu, que morriam antes de começar a votar. Uma delas foi Gabriela, uma garota linda que se aproximou de mim para pedir ajuda depois que havia apanhado de um cliente. Ela saiu de casa e estava começando na prostituição. Com quase 14 anos, Gaby, como gostava de ser chamada, já era uma malandrinha, roubava para comer e se prostituía por qualquer moeda. Eu contei a ela tudo que se passou comigo, pedi que procurasse o pastor e voltasse para a sua casa. Nem eu acreditava que estava dando àquele conselho a ela, mas meu coração me fez fazer àquilo.

Diferente do que aconteceu comigo, Gaby saiu de casa porque os pais não queriam que ela namorasse um garoto negro. Ela ficou revoltada e decidiu fugir para se prostituir, mas eu sentia que ela ainda tinha jeito, pois estava na rua pouco menos de dois meses e não tinha se viciado em nenhum tipo de droga, além do sexo. “ Já que não pude ser do amor da minha vida, serei de qualquer um que pagar. E meus pais vão ter orgulho de mim por isso”, falava.

Depois daquele dia não a vi mais, mas ela não me saiu do pensamento.

Totalmente dominada pelas drogas, fui procurar o pastor para pedir ajuda e ele me disse que uma menina chamada Gaby havia estado com ele. Então eu pensei: “ela voltou para casa”. O pastor tentou me

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convencer de tentar mais uma vez voltar para a minha família, mas a surra da última recepção ainda doía. Na verdade a minha conversa com aquele pastor não adiantou muito, pois eu nem conseguia ouvir direito o que ele dizia, tão louca estava para fumar. No primeiro instante que ele virou as costas eu sai correndo da igreja e voltei às ruas. De volta à rotina, continuei de plantão no meu ponto esperando clientes para buscar drogas.

Nessa minha vida de ir e vir acabei conhecendo uma moça chamada Rosalva. Ela queria comprar drogas para o namorado e estava com medo de ser pega pela polícia, então pediu para eu comprar sua encomenda e levar em seu apartamento que me daria uma gorjeta bem gorda. Eu não vi problema algum no pedido e fui ao seu encontro. Ao chegar no seu apartamento ao invés de pegar a droga e me pagar, pediu para eu entrar. Não entendi sua atitude, mas entrei. Ela então me apresentou para um rapaz meio esquisito, dizendo que ele era seu namorado.

-Então Gustavo, ela não é linda?, interrogou enquanto apontava o dedo para mim. Ele confirmou e completou: “precisa apenas de um banho de loja”.

Aí eu perguntei em voz alta: “O que é que vocês querem comigo? Eu vou embora, afirmei”. Eles pediram para eu me acalmar e disseram que eu poderia ganhar muito dinheiro se transasse com americanos. Aí eu expliquei que já havia saído dessa vida e que não queria fazer mais

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isso, mas a Rosalva me ofereceu R$ 100 pelo programa. Eu nunca tinha recebido mais que R$ 30. E ela me disse ainda que se eu transasse sem camisinha receberia R$ 150. Aí eu fiquei entusiasmada e aceitei fazer os programas com os americanos para poder comprar mais drogas.

Como eu era viciada e eles sabiam disso, trocavam o dinheiro pela cocaína, mas não era pouco não, era muito, dava para cheirar até dois dias. Aí fui fumando, transando e chegou um dia que aceitei transar sem camisinha para ganhar mais, foi quando cometi o maior erro da minha vida. Depois da primeira transa sem camisinha eu me acostumei e perdi o medo de pegar doenças.

A minha parceria com esse casal me aproximou ainda mais das drogas. Mais eles queriam muito mais de mim. Esse casal me convidou para morar fora do país e eu aceitei.

Eles tiraram meu passaporte com documentos falsos e aumentaram a minha idade para eu viajar para a França. Só que no dia que a gente ia embarcar a Polícia Federal, que estava atrás deles há muito tempo os prendeu, mas eu conseguir fugi ao entrar num banheiro masculino, o homem que estava dentro do banheiro achou estranho me ver lá. E antes que ele pudesse falar, eu disse que transaria com ele se me ajudasse a sair dali sem a polícia me ver.

-O que você fez de errado menina?, perguntou o homem. Eu respondi que estava apenas fugindo dos meus pais e que eles haviam colocado a polícia atrás de mim.

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Mentir é a primeira lição que a gente aprende na rua. Àquele homem do banheiro me ajudou e eu saí, mas ele não quis transar comigo. Até achei estranho ele não cobrar pelo favor, já que eu vivia em um mundo onde nada era doado.

Depois voltei para a minha vida de avião, só que o dinheiro que eu ganhava com os programas estava me fazendo falta. A quantidade de drogas que eu fumava não fazia mais efeito. Eu sempre tinha que usar em quantidade maior e eu não tinha dinheiro para isso.

Ficava enlouquecida porque eu não conseguia dormir, comer, só pensava na droga. Então comecei a transar por maconha, cocaína e até por moedas.

Meu corpo de menina, que exaltava minhas curvas estava sendo sugado pela droga. Não entendia porque emagrecia tão rápido.

-Se aquelas gordas soubessem que droga emagrece, tenho certeza que haveria um monte delas viciadas”, pensava. Mas essa era uma tese minha, não sei até hoje se há alguma comprovação sobre isso. Eu só posso afirmar que cheguei a perder, no mínimo, dois quilos por semana. Também eu não comia quase nada, mas bebia muita água.

Quando estava deprimida e não tinha o que fazer pegava o velho livrinho que falava sobre os direitos da criança e lia; mas não conseguia entender por que nenhuma daquelas coisas legais que estavam escritas eram cumpridas. Eu tinha a direito à escola, mas não estudava, tinha

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direito à saúde, mas não era atendida, tinha direito à proteção, mas estava na rua. Eu não sabia de quem cobrar todas aquelas coisas que o livrinho dizia que eu tinha direito.

Andava na rua e via as pessoas me olharem com nojo e desprezo. Eu pensava: “Elas deveriam ser todas presas”, pois estão desobedecendo a lei que está escrita no livrinho. Maldito livrinho, acho até que escreveram isso para enganar a gente, pois até agora eu não vi nada daquilo na prática.

Enquanto eu andava na rua observando a atitude das pessoas, avistei uma moça de longe e fui até ela pedir dinheiro para comprar comida, ela mandou eu ir embora, me chamou de pivete, marginal, cheira cola e outros adjetivos. Eu falei para ela que chamaria a polícia para prendê-la, pois ela não cumpria o que estava escrito no livrinho e ela riu.

-Que livrinho você está falando sua pivete, vá embora daqui, senão quem vai chamar a polícia sou eu”, disse a moça e foi embora.

Eu avistei de longe um carro da polícia e fui até lá, mostrei o livrinho e exigi que eles prendessem a moça que me desrespeitou, mas os policiais me olharam de forma estranha e curiosa, e depois pegaram o livrinho da minha mão e disseram:

-Sabe o que a gente faz com o direito de pivetes como você? (Me

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olharam com desprezo, arrancaram o livrinho da minha mão e o rasgaram em pedacinhos na minha frente). É é isso. Apontaram com o dedo para os restos do livrinho e seguraram firme no meu braço como se fossem quebrá-lo e completaram:

- Agora vá embora senão a gente vai te levar para o juizado de menor sua cheira cola pilantra”, disseram isso e soltaram meu braço me empurrando para o chão, onde cai, mas levantei e sai correndo.

Eu sai dali sem destino. Meu sangue fervia. Estava com ódio daqueles policiais. Eu gostava tanto daquele livrinho. Ele era tão bonitinho, tão pequenininho e tinha um monte de figuras legais.

Tinha crianças sendo levadas para a escola, crianças brincando, crianças comendo, crianças sendo atendidas por médicos, crianças sorrindo, só não tinha crianças na rua.

A brutalidade contra o meu livrinho me deprimiu mais ainda.

No fundo do poço

Eu estava totalmente entregue às drogas que nem pensava em comer, tomar banho ou dormir, só queria fumar, fumar, e cheirar. Como estava sempre cheirando mal, não conseguia clientes para fazer programas e comecei a roubar na praça onde vivia. Lembrei-me de como eu assaltava com o Ripa, usando o dedo debaixo da roupa para imitar um revólver, e foi assim que conseguir fazer mais vítimas.

Depois de alguns furtos e muitas drogas, fui reconhecida por uma vítima

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e acabei presa. Quer dizer, acabei sendo levada por uns policiais, que no caminho da delegacia decidiram fazer eu pagar o crime de outra maneira.

-Eles vão soltar a pivetinha em dois dias, então vamos fazer ela aprender a se comportar como gente”, disse um dos policiais.

Eles me levaram para um lugar ermo, rasgaram a minha roupa, me jogaram no chão e me estupraram, um por um, me obrigando a fazer coisas horríveis e cada vez que eu reclamava, eles me batiam. Depois de desmaiar com tanta violência, os homens da lei me deixaram lá, sem roupa, sem nada e foram embora, com certeza orgulhosos da farda que lhes dava poder, e até os fazia se sentir um pouco Deus, porque acreditavam que tinham o direito de tirar a vida de quem os incomodassem.

A solidariedade humana

Quando eu acordei, e vi que estava nua fiquei desesperada e comecei a chorar. Não sabia o que fazer e nem para onde ir?No meio do choro, ouvi uns passos e tentei me cobrir com as mãos. O som dos passos ficava cada vez mais forte e eu pensei que fossem os policiais que haviam voltado para me matar, mas era um anjo vestido de azul.

Dona Ritinha, a bela senhora que me acolheu naquele dia e me levou para sua casa. Ela perguntou: “ O que fizeram com você menina”? –

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Eu respondi: “Foram os policiais que me violentaram”. Ela me deu sua mão e me levou até sua casa, onde eu tomei um banho, vesti uma roupa de sua filha falecida e tomei um café quente com torradas. Há, aquele foi o café mais gostoso que eu havia tomado nos últimos meses.Tudo é precioso para aquele que foi, por muito tempo, privado de tudo.

Dona Ritinha perdeu a única filha num acidente de carro, onde havia quatro pessoas, sendo sua filha a única vítima fatal. Ela foi cuspida do veículo porque não estava usando o cinto de segurança. Com a morte da filha, Dona Ritinha viveu outra tragédia em sua vida: viu o marido se matar com um tiro por não suportar a perda da filha. Depois de passar meses internada em uma clínica de recuperação, a bondosa senhora voltou a viver sozinha, acompanhada apenas de dois cachorros.

Quando me viu caída no chão teve dó e se afeiçoou a mim. Eu fiz o que sempre costumava a fazer: contei a ela toda a minha história. Ela ficou chocada. Impressionada com tudo que eu havia passado, me convidou para morar com ela e prometeu me proteger daquele dia em diante.

Mesmo com seu carisma e diferente de todos que haviam feito a mesma promessa para mim, pensei muito antes de responder.

Eu não acreditava mais nas pessoas. Lembrei de Nastácia que havia prometido me ajudar; lembrei do Seu Raimundo que me acolheu, do

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Tato que me explorou, da Rosalva que queria me levar para fora do país, e tantos outros que apareceram na minha vida, mas Dona Ritinha disse que com ela seria diferente.

-Você vai encher essa casa de alegria e me fazer voltar a viver, então aceite ficar comigo e me faça ser feliz novamente. Eu vou te ajudar, prometeu Dona Ritinha.

Eu decidi me dar outra chance e pagar para ver. A abracei e aceitei sua hospitalidade, prometendo para mim mesma que mudaria de vida, que tentaria ser uma pessoa normal e voltaria a estudar para realizar o sonho de Ripa, e ser uma doutora.

A Traição

Os dias se passaram e a bondosa Dona Ritinha cuidava de mim dedicadamente. Eu estava feliz porque comida não faltava, tinha televisão e eu podia ver meus desenhos sem precisar trabalhar. Ela nunca mandou eu lavar um prato, mas eu não consegui ficar quieta, pois estava refém das drogas e não suportava mais ficar sem elas.

Um dia Dona Ritinha saiu para fazer compras e esqueceu sua bolsa em cima da mesa de jantar. Eu não tive escrúpulo e roubei parte do seu dinheiro para comprar cocaína.

Saí da casa, peguei um ônibus e fui na Boca que eu servia de avião. Lá, encontrei alguns amigos e contei onde estava morando.

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-O endereço está aqui (dei um papel com o nome da rua e o número da casa). Quando eu ligar, quero que levem a droga até lá, porque não posso ficar saindo para não levantar suspeitas na senhora que me abrigou”, avisei e fui embora.

Quando cheguei na casa de Dona Ritinha ela já havia chegado e perguntou sobre o dinheiro que havia sumido de sua bolsa e a onde eu estava. Eu menti dizendo que havia pegado o dinheiro para fugir, mas no meio do caminho fui roubada e resolvi voltar e fiz um teatro pedindo que ela me perdoasse e nunca me deixasse só no mundo. Ela me abraçou e disse para eu ficar despreocupada que nada me aconteceria em sua casa.

O carinho de dona Ritinha me comovia a cada dia, mas estava seca, sem sentimentos, só havia revolta dentro de mim, principalmente quando lembrava da maneira como perdi o Ripa. Queria mesmo melhorar. Mas antes que eu tivesse tempo de tentar, fui surpreendida com uma grande surpresa: o chefe da Boca mandou três marginais invadirem a casa de Dona Ritinha e roubarem tudo.

Os marginais chegaram na casa e a amarram em uma cadeira e fizeram o mesmo comigo para não levantar suspeita. Na hora da operação um dos caras ainda piscou para mim. De repente vi Dona Ritinha passando mal, pedi que eles a desamarrassem, mas eles gritavam: “ deixa a velha morrer”.

Dona Ritinha olhou para mim com aquele seu olhar de piedade, preocupada comigo e disse: “Que bom que eu não vou morrer sozinha, você foi um

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presente de Deus na minha vida, não deixe que eles te machuquem, se cuida meu amor”, disse quase soletrando as últimas sílabas.

Suas gentis palavras me fizeram chorar. Ainda tentei acalmá-la, dizendo que tudo terminaria bem, mas ela começou a sentir falta de ar e dores no peito muito forte. Eu pedi ajuda, mas os caras nem ligaram e saíram correndo com tudo que haviam roubado da casa. Antes de partir eles ainda me soltaram e disseram: “obrigado pela dica”. Dona Ritinha ouviu e me olhou surpresa e antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela arregalou os olhou tentando sugar o ar e morreu.

Quando a vi com sua cabeça solta sobre o ombro me desesperei. Eu já a amava e havia provocado sua morte. O remorso é a única dor da alma, que nem a reflexão nem o tempo atenuam.

Eu a desamarrei e lhe pedi desculpas. “Meu Deus o que eu fiz? Dona Ritinha volte, me perdoe, eu a amo, me perdoe”, disse em vão. Ela já não estava mais ali para me escutar.

Minutos depois vizinhos da redondeza entraram na casa e me acusaram de ter mandado invadir a casa dela.

-Foi você sua pivete que fez isso com a dona Ritinha. Nos vamos mandar te prender”, disse uma mulher que nunca havia visto antes. Outra ainda falou: “Fuja se puder porque a tua cara a gente não vai esquecer”.

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Eu fiquei com medo e mesmo sentindo muito ter que abandonar Dona Ritinha ali, sai correndo. Os vizinhos ainda me jogaram pedra e o que doía mais era o remorso.

Eu fiquei muito mal, me senti culpada, pois traí uma pessoa que me acolheu, a única que não me explorou, que me tratou como gente. Eu não me perdoava pelo que fiz e passei a usar mais drogas do que antes.

A lembrança de Dona Ritinha cuidando de mim, me dando comida, atormentava meus dias. Eu me sentia a pior pessoa do mundo. Nem as estrelas eu conseguia encarar, estava manchada de vergonha e aí fui procurar novamente o Pastor, o único que eu ainda confiava e que eu acreditava que poderia me ajudar.

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“As entidades que mantenham programas de abrigo poderão, em caráter excepcional e de urgência, abrigar crianças e adolescentes sem prévia determinação da autoridade competente, fazendo comunidação do fato até o 2º dia útil imediato, devendo garantir os direitos e garantias dos atendidos e comunicar as autoridades todos os casos de adolescentes portadores de moléstias infecto-contagiosas” (Art. 93º, inciso I e XVI, do Estatuto da Criança e Adolescente)

O resgate

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Cheguei à igreja na hora da pregação. “A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Essa é uma frase de Charles Chaplin, que pode se aplicar a vida. Fiquem com Deus e até amanhã”, despediu-se o Pastor.

Esperei todos saírem do culto e fui falar com o ele, que sempre perguntava se eu havia comido. Eu me aproximei e disse que estava com fome, me adiantei à pergunta de rotina. Ele chamou um obreiro e pediu que ele trouxesse alguma coisa para eu comer.

Enquanto eu esperava o lanche, o pastor pediu licença para ir ao banheiro. Aí fiquei pensando: “Conheço o pastor a tanto tempo, ele sempre me ajudou e até hoje não sei o seu nome, poxa, fico até com vergonha de perguntar”.

O pastor sem nome chegou e com ele veio meu lanche. Um copo de suco e um pão careca com manteiga. Era só isso que eles nos davam,

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mas para crianças como eu o seu lanche era como se fosse um filé à parmegiana. Aliás, eu até enjoou só em lembrar desse prato, pois foi por causa dele que quase eu morri. Hoje eu odeio filé à parmegiana.

O pastor voltou, me deu um beijo na cabeça e sentou-se ao meu lado com aquele sorriso torto.- Conte minha filha o que aconteceu de novo com você?- Eu não sei por onde começar, estou tão envergonhada pastor, tão triste comigo. Falei aquilo e comecei a chorar. Depois de passado a crise de consciência, revelei a ele o por que do meu desespero. Ele me reprovou veemente e disse que eu estava doente e precisava de tratamento.

Enquanto conversávamos entrou na igreja Gaby e sua mãe Letícia. Gaby me abraçou e disse que estava salva. Eu não entendi, mas depois percebi que ela havia voltado para sua casa e estava ali para agradecer os conselhos do pastor. Sua mãe me olhava com desprezo e disse para eu me afastar de sua filha.

O pastor a repreendeu: “Olhe senhora, foi essa moça aqui que trouxe sua filha para falar comigo e é por isso que sua filha teve uma nova chance, então não despreze alguém que lhe ajudou a ter sua filha de volta”.

A senhora ignorou o pastor, pegou Gaby pelo braço e foi embora. Mesmo com a arrogância da mãe, Gaby sorriu ao ser levada quase que a força. Aí pensei: “Se ela voltar para as ruas não ajudarei ela a

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sair mais”, joguei essa praga inocentemente por conta da arrogância de Dona Letícia. Às vezes os pais acabam empurrando os filhos para um caminho sem volta.

Depois daquele episódio, o pastor saiu comigo em seu luxuoso carro e me levou para uma Casa. -Para aonde a gente vai? Perguntei preocupada e já pensei: “Meu Deus, será que o pastor vai me estuprar e cobrar todos os atrasados, pois devo muito a ele. Todos meus lanches serão pagos hoje?”. Mas ele interrompeu meus pensamentos e disse:

-Se acalme. É uma surpresa, você vai gostar. Por um momento pensei que aquele bondoso pastor fosse me estuprar. Já havia passado por tantas situações que não me surpreenderia com mais alguma novidade, mas graças a Deus, eu estava enganada. Depois de 10 minutos no carro paramos na frente de uma casa.

-Está vendo essa casa aí Tatiana? Falou ao apontar para uma Casa Cor-de-Rosa e verde, cheia de flores na frente,parecia até uma igreja de tão linda que era.

-Estou, disse.

-Vou pedir para cuidarem de você aí. Nessa Casa há pessoas muito boas, que se preocupam com crianças e adolescentes como você, e eles vão te ajudar a ser uma pessoa melhor. Eu logo dei um pulo e disse que não queria ficar ali, tive medo.

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-Você precisa tentar Tatiana, precisa querer ser uma pessoa melhor, precisa querer mudar. Eu não posso fazer nada por você se você não quiser. Você não tem nem 14 anos completo e já fez tanta coisa errada, já passou por tantos labirintos, chegou a hora de você se encontrar e encontrar seu caminho, sua estrada para a felicidade. Acabe com essa vida de malandragem antes que seja tarde demais. Ou você quer ter o mesmo destino do seu namorado Ripa?- Não, isso não.

- Então, estou lhe apresentando a porta para você pisar em asfalto, não deseje sujar seus pés de lama, entre e mude de vida.

Eu fiquei com medo, mas sabia que o pastor tinha razão.-Está bem, eu vou tentar. Aí eu entrei.

Logo na entrada uma moça bonita e sorridente me olhou com carinho. O pastor pediu para eu esperá-lo em uma sala e foi falar com uma senhora. Depois de 20 minutos, ele voltou sorrindo.

- Venha Tatiana, aqui será sua nova casa.

Eu não sorri e pensei: “será que vou me acostumar a ficar trancada”, mas aí lembrei que ali deveria ter muita comida, me alegrei, mas pensei que também seria difícil conseguir drogas.

O pastor falava comigo e eu não ouvia, apenas observava aquele novo lugar. A Casa foi a maior que conheci.

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Havia vários quartos e muitas crianças. As portas eram pintadas de azul e outras de rosa, mas havia uma porta bem grande da cor verde bandeira. Não sei por que, mas gostei mais da ala verde, porque lá tinha flores, muitas flores.

O pastor me deixou ali, me deu um beijo na testa e disse a uma senhora de cabelos curtos e esbranquiçados: “Essa mocinha é muito especial para mim. Ela precisa muito da ajuda de vocês, não a deixe se perder de novo. Cuidem dela, por favor”.

A senhora respondeu que cuidaria de mim como se fosse sua filha. Depois ele se voltou para mim, segurou forte em minha mão e falou olhando dentro dos meus olhos: “Não perca essa oportunidade Tatiana. Essa pode ser sua última chance”. Eu sorri para ele e respondi: “eu não vou lhe decepcionar mais”.

Ele me deu um beijo e se despediu. Antes dele passar pela porta de saída, gritei: “Como é mesmo o seu nome?”. Ele respondeu: Luiz. Eu sorri e dei adeus. “ Luiz, que nome lindo. Luiz vem de luz, esse pastor é a luz da minha vida, pois ele sempre esteve comigo nos momentos mais difíceis. Àquela foi à última vez que vi aquele pastor, mas o guardei para sempre em meu coração. Essa Casa era financiada por uma Instituição Internacional, eles ajudavam crianças drogadas a se recuperar e eu seria o próximo desafio da instituição.

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Os lucros malditos

Nessa Casa havia duas alas: uma de crianças em recuperação (a ala direita, pintada da cor azul) e outra de crianças aidéticas em recuperação (a ala esquerda, àquela de cor verde, cheia de flores). Na semana que entrei fui submetida a uma série de exames.

Tiraram quase todo o meu sangue. Acho que aquela foi a primeira vez que fiz exame de sangue, mas já conhecia as agulhas porque a minha mãe nunca deixou de me vacinar. Tomei todas as vacinas mandadas pelo governo. Só faltou a do sarampo porque no posto do bairro que eu morava não havia essa vacina. Ali ninguém se vacinou contra o sarampo, mas eu não havia pegado até aquele momento sarampo.

Além dos exames de sangue, fiz exame do xixi, do coco, do peito, da cabeça, do braço, da perna. Ah! Eu fiz tantos exames que pensei que fosse morrer. Eles chamaram isso tudo de check-up. Eu só não entendia por que eu precisava daquela checagem, não estava sentindo nada, além de um cansaço.

Enquanto eu esperava o resultado me instalei na área rosa. Depois de alguns dias descobri que estava com o pulmão comprometido por conta do cigarro, tinha todos os tipos de verme, piolho, infecções intestinais e urinárias; e o pior de tudo, estava grávida.

Novos exames foram feitos por conta da gravidez, e depois do resultado desses últimos exames fui encaminhada para a ala esquerda, àquela

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pintada de verde, onde a assistente social me deu a mais dolorosa notícia que havia recebido em minha vida:

-Você precisa ser forte Tatiana, pois sua vida vai mudar drasticamente depois dessa conversa”, avisou a assistente social.

Eu me assustei e a pressionei para falar logo o que queria. Depois de me olhar, passar a mão na cabeça, andar pelo quarto da Casa, ela sentou ao meu lado, segurou minha mão e revelou: “Você é portadora do vírus HIV, é uma soropositiva, está com Aids”. A última palavra ecoou na minha mente como um tambor e fiquei em transe por alguns segundos.

Enquanto ela falava lembrei-me imediatamente de Nenén, o garoto que conheci em frente ao supermercado, e do meu desprezo por ele.

Então pensei: “Deus me castigou”. Imaginei que todo mundo se afastaria de mim, que estava condenada a uma vida de solidão, pensei imediatamente em me matar, comecei ali um choro compulsivo, fiquei completamente descontrolada mesmo sem saber o que significava ter Aids. Mas a bondosa assistente social me deu um calmante, me abraçou e tentou me convencer que a doença não era o fim da minha vida, mas o começo de uma nova vida, onde eu tinha que cuidar de outra vida que estava para nascer.

-O mais importante agora é começar o pré-natal, pois quanto mais cedo você iniciar os procedimentos para evitar a transmissão do HIV

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para o feto, maior é a chance dele nascer saudável. E você teve sorte, pois descobriu ser portadora no início de uma gravidez, o que diminui o risco de contágio. Se você tivesse que enfrentar o caos do Sistema Público de Saúde, que sempre demora em realizar teste anti-HIV para gestantes, poderia ter o destino de muitas mães, que descobrem estar infectada, depois que não há jeito de evitar a transmissão para o feto, condenando à morte muitas crianças antes mesmo de nascer.

Ela ainda explicou: “Só para você entender melhor, o vírus da Aids, o HIV, pode ser transmitido para o recém-nascido em três momentos: durante a gravidez, no parto ou na amamentação”.

Quando escutei a última palavra, interrompir: “Quer dizer que não poderei amamentar meu filho?”.

A assistente social baixou o olhar e o suspendeu sutilmente, respondendo a minha pergunta com certo constrangimento.

-Você, Tatiana, poderá sentir o prazer de ver sua barriga crescer, de cuidar do seu filho, de dar carinho, amor, mas para preservar a vida dele não poderá amamentá-lo, pois não existe dúvida da transmissão do vírus por este ato, infelizmente. Mas volte a sorrir, você é uma pessoa de sorte.

Nós somos financiados por uma instituição internacional, comprometida com a vida, que garante às mães portadoras de HIV todas as condições para alimentar adequadamente o filho, usando para isso nosso banco de leite.

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A assistente social então continuou: “Isso, só para você saber, é um dos grandes problemas do Brasil, pois a maioria das portadoras do HIV são pobres e não tem condições de alimentar o filho com um leite adequado. Como estamos acostumados a atender casos iguais ao seu, temos aqui um banco de leites, que é fruto de uma campanha promovida pelo Estado para incentivar a doação de leite materno de mães saudáveis. É claro que nem sempre dá para atendermos a todos que precisam, mas garantimos, pelo menos, aos primeiros dias de vida do bebê leite materno. Então não se preocupe, que para o seu filho não faltará nada”.

Eu lagrimei, e interroguei: “Se ele está dentro de mim como não será infectado?”. A assistente social respondeu: “O tratamento que pode evitar que o bebê não tenha aids é feito com o remédio AZT, distribuído gratuitamente na rede pública de saúde. Quanto mais cedo a gestante soropositiva iniciar o tratamento, maiores as chances de a criança nascer sem o HIV.”

Querendo me deixar confortável, ela ainda me explicou outros detalhes: “A transmissão do vírus da mãe para o filho é responsável pela maioria dos casos de aids em crianças. O tratamento da gestante HIV + aumenta em até 70% a chance de o bebê nascer sem o vírus, então você tem muita chance de ter um filho lindo e saudável. Agora descanse. Nós cuidaremos de vocês”.

Aquelas palavras gentis não me confortaram. Eu fiquei muito mal por dias, semanas; e não conseguia pensar no filho que estava esperando. Eu só pensava na morte, no tempo que me restava de vida.

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O quarto que eu fiquei na Casa tinha uma janela em forma de lua minguante, onde dava para uma rua bastante movimentada, onde passava ônibus.

Depois da notícia da Aids não sai mais daquela janela. Olhava as pessoas, o trânsito, e tudo estava normal, só eu estava diferente.

Lembrei da minha infância pobre, dos raros sorrisos, da minha mãe, dos meus irmãos e até do meu pai. “Como reagiria minha mãe ao saber que estava com essa doença do inferno?” Ela me odiaria, meu pai então nem se fale. Ele me mataria de porrada antes de eu morrer da doença. E meus irmãos, sempre calados e com fome, talvez falassem alguma coisa.

Pensei também em Ripa e agradeci a Deus por ele ter morrido. Eu não suportaria ter o desprezo dele, pois tenho certeza que ele me abandonaria quando soubesse.

Tem momentos na vida que não deveriam existir. Aquele foi um que eu gostaria de apagar para sempre da minha. Mas eu precisava saber mais sobre a doença, precisa saber como havia contraído algo tão ruim. E a gravidez? Eu nem imaginava o que significava estar grávida e quem era o pai? Como saber, se deitei com tantos homens.

O Início de uma Nova Vida

Depois de semanas procurei o médico da Casa e pedi que ele esclarecesse algumas dúvidas.

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-Doutor Saulo quero saber quanto tempo tenho de vida? Quanto me resta? Quais os sintomas que terei? O que vai acontecer comigo? Ficarei igual a uma caveira?Como eu peguei essa doença? Não existe qualquer possibilidade de cura? Eu posso passar essa doença para alguém pela voz, pelo toque, pelo olhar? Me explique, por favor o que vai ser de mim agora, o que essa doença pode me causar?

-Calma Tatiana, com tantas perguntas até me perdi por onde começar, mas antes de tudo quero lhe deixar tranquila quanto ao item contágio. A aids não passa com o beijo, com o toque, com o abraço, muito menos com o olhar.

Ele então, pacientemente, pediu que eu me acalmasse e começou a me explicar tudo, desde a descoberta da doença.

- Aids foi descoberta em 1981, de lá pra cá, muito se evoluiu no conhecimento dessa doença e (por isso) ela própria tem modificado suas manifestações e sua história natural.

Ele falava, me olhava e parava, depois continuava:

- No início, a AIDS levava ao óbito num curto espaço de tempo. Hoje em dia, devido às novas estratégias terapêuticas não somente contra o HIV, mas também contra os agentes específicos das infecções oportunistas (muitas vezes as responsáveis pela morte dos pacientes), o tempo de vida após o contágio se estendeu consideravelmente. Foi descoberto, por exemplo, que a infecção pelo HIV não é o mesmo

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que AIDS, sendo dividida didaticamente em três fases distintas: a fase aguda ou síndrome de soroconversão, a fase assintomática e a fase sintomática.

Somente a fase sintomática é considerada como AIDS propriamente dita, pois é nesse momento que as infecções oportunistas começam a se apresentar e danificar o paciente, ou seja, você começa a ficar mais vulnerável às doenças. No seu caso, você está na fase aguda-, disse, passando a mão na minha cabeça. Depois ele parou, pediu para uma enfermeira me trazer um copo com água e continuou a explicação.

-Para se ter uma ideia, na ausência de qualquer intervenção terapêutica, a média do tempo entre a fase aguda e a fase sintomática é de cerca de 10 anos, apesar de haver uma diferença muito grande de um indivíduo para o outro. Apenas um pequeno número de indivíduos desenvolve AIDS logo após o contágio. Cerca de 4% vão desenvolvê-la após três anos de infecção e 50% após dez anos. Mais há casos, cerca de 10% a 15% dos infectados por HIV, que mesmo após 20 anos não desenvolvem a doença. A idade de contágio influência na velocidade de progressão da doença, sendo os mais velhos os mais prejudicados, mas esse não é o seu caso. Então, se você fizer o tratamento adequado pode viver muito tempo e até esquecer que tem essa doença, falou sorrindo, mas eu não achava graça.

O olhei chorando e ele me acariciou:- Acho que por hoje basta de informação.- Não doutor, quero saber como eu peguei essa doença.

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-Bem, os meios de transmissões da Aids são muitos, mas o principal é a via sexual. Você pode ter pego ao transar sem camisinha com seu parceiro ou por injetar droga na veia. Ou até mesmo pelo contato com....- Espere, eu não preciso ouvir mais nada. Eu já sei como eu peguei essa maldita.-Sabe, e como foi?-Eu transei sem camisinha com alguns gringos. Eles pagavam mais para quem não usava camisinha e fiz isso muitas vezes. O médico suspirou fundo, olhou para mim com dó e disse:-Então você tem sua resposta. Infelizmente esse é o meio mais comum de transmissão da aids. Você nunca poderia ter feito isso. -Mais eu sou viciada em droga e precisava de dinheiro para bancar meu vício, disse coçando minha cabeça como se estivesse cheia de piolho.- Me diz uma coisa Tatiana: você nunca ouviu falar em Aids, como se pegava. Não sabia que existia camisinha?- Ouvi falar em Aids, mais muito superficialmente, pensava que ela só era transmitida por homens gays. Não sabia que mulher transando com homem podia pegar essa doença.-Que absurdo! Disse o médico, impressionado com a minha ignorância.- Mas eu ouvi falar em camisinha e achava até engraçado encapar o pinto, só não sabia que era obrigatório.-Camisinha não é obrigatória para transar com um parceiro, desde que esse parceiro seja confiável e que ambos tenham a certeza de que estão limpos, entende Tatiana?

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- Agora sim, mas antes não. Eu conheci um cara legal chamado Ripa, nós nunca transamos de camisinha, e olha que ele sabia que fazia programas de vez em quando.-Ele sabia e mesmo assim manteve relações com você sem camisinha?- É, ele me amava.-Mas isso não é prova de amor, é loucura. Onde está seu namorado? Ele pode estar contaminado.-Não doutor, ele não está contaminado. Ele está morto. Foi assassinado por ex-colegas do crime.- Que pensa, mas sinto informar que ele poderia estar infectado e provavelmente por você.- O senhor quer dizer que eu passei Aids para o Ripa?- Se ele não mantinha relações com outras pessoas, não era de grupos de risco e não injetava droga pela veia, com certeza você o contaminou. Faz quanto tempo que ele morreu?- Uns dois meses.- É Tatiana, o homem da sua vida estava condenado à morte de qualquer maneira, mas não pense nisso agora. Vamos esquecer esse assunto.

Ele terminou de falar e me mandou ir deitar, mas eu insistir que ele me falasse mais sobre a Aids. Então, ele parou, pensou e voltou a comentar:

-Só para você ficar mais tranquila, um estudo realizado na Europa em 51 centros de referência dentro de 17 países, com 7.300 pacientes HIV positivos estudados de 1994 a 1999, procurou avaliar a ação da associação de drogas anti-retrovirais (contra o HIV) eficientes,

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na prevenção do surgimento de infecções oportunistas, o que pode aumentar ainda mais o tempo de vida dos pacientes e novos estudos vem sendo desenvolvidos, pode ser que daqui a algum tempo encontrem até a cura para a Aids.

Eu dei um pulo da cadeira e perguntei: “ O senhor acha mesmo que pode haver cura para a Aids?”. Ele respondeu: “ Claro que sim, tudo é possível, o que você precisa é não pensar nisso e procurar se cuidar e cuidar do filho que vai ter. Não pense em morte agora, você está gerando vida, não vai morrer tão cedo, não de Aids”, disse o médico acarinhando minha cabeça, enquanto eu chorava compulsivamente, dessa vez não apenas por ter a doença, mas pela possibilidade de ter passado ela para o Ripa.

Em meio a tanta dor, eu estava me tornando mulher. Seria mãe, mãe de um filho que eu não tinha a ideia de quem era o pai e que ainda corria o risco de nascer com Aids.

Como encarar meu filho e dizer: “Eu não sei quem é seu pai!” Como confessar a ele meus erros? Como explicar o que foi minha vida e aonde eu cheguei? Como eu poderia ser mãe? Eu não tinha esse direito. Não poderia me punir a ponto de proliferar uma raça suja que nem a minha. O que seria dele? Se sobrevivesse.

Interrogava-me diariamente, imaginando que ele poderia ser mais um marginal como eu, porque tudo que eu havia feito não tinha dado em nada, só consegui me prejudicar, não fiz nada certo.

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Os lucros que eu tirei foram doenças e uma gravidez totalmente indesejada aos 14 anos de idade.

A notícia da Aids e da gravidez me deixou muda e seca. Parecia que haviam sugado todas as minhas emoções. Eu não ria, nem chorava, só ficava horas olhando para o nada, tentando entender tudo que eu havia feito, tentando encontrar desculpas para todos os meus erros. A minha introspecção me deixou sem apetite, só desejava fumar, mas estava em tratamento para me livrar das drogas, usando outras drogas.

O Diário

Um dia a assistente social me deu um caderno de presente que batizou de diário. Ela disse que ele poderia ser uma boa companhia, já que me recusava a conversar.

-Toda menina na sua idade tem um diário e você vai gostar de ter um, escreva o que sente, o que pensa, desabafe, não tenha medo, estamos aqui para te ajudar e quando o caderno acabar, me avise que compro outro”, disse a assistente social.

Eu olhei aquele caderno e não falei nada, nem obrigada. Mas gostei de ter um caderno, fazia tempo que eu não via um. Comecei ali a escrever algumas coisas do que eu sentia. Fiz alguns poemas sem saber se eram poemas.

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Os poemas de Tatiana

Canto Triste

Pingos de chuva vem limpar meu corpoCarícias do vento me consolam

Mas a dor é infinita e maltrata como uma feridaMaldição de nascença, destino traçado.

Coragem para fugir do pecado,Sangue nas veias,Sorriso forçado,

Língua presa,Vontade de morrer!

Solidão de viver ao teu lado,Homem cruel!

Medo de denunciarRaiz maior que a dor

SedeFomeFebre

SangueTudo pronto para

Morrer em teus braçosFilho do demônio

Neta do diaboHomem que se alimenta do sangue do seu sangue

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Merece ser queimado!Eu não sei meu destino nesse mundo desgraçado, que permite

Uma criança viver para morrer antes de crescer.

Maldição!

Cinzas da noite, claridão da luaChoro de criança, luz de vela

Maldição!Sorriso fechado, grito sufocado,

Maldição!Sombras do destino,

Filha sem pai,Sem caminho,

Amargura e dorTormento, amor

LucidezMentiraLoucuraBruxaria

Maldição!Luar escuro

Céu em lágrimasLuz em chamas

EclipseIlusão

Maldição!

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FeitiçariaSolidãoPaixão

EmoçãoMaldição!

Solidão da noite

Cai à noite e eu ainda estou ali,O vento dispersa meus cabelos para eu sorrir

Minhas mãos estão sujas da terraMeus pés cansados da caminhada,

A comida não chegou.Felipe está com fome,Mariana com febre,

Rita choraAntônio sai às ruasEu fico a esperar…Passam-se as horas,

Nada aconteceAmanhece.

Ainda estamos sem comerA fome passa.

Mais um dia sem nadaMais uma noite a esperar

Que Antônio volteCom alimento.

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De repente, uma dor invade meu coraçãoNo rádio uma notícia de última hora:

“Mais um morto nas ruasPor tentar arrumar comida para o seu lar.”

As lágrimas não descemAs mãos estremecemMeus filhos ao redorPerguntam pelo pai

Que foi embora e não volta maisAgora a escolhaQuem vai sair

Se arriscarNessa cidade, onde

Não há perdãoPara o negro, o pobre

E o velho.Seremos os próximos.

Criança de Rua

Sorriso fácil, brincadeira não recomendadaMenina-mulher, criança roubadaSonhos estraçalhados, desabafoCarinha de anjo, rosto marcado

Vida de menina, vida sem rumoHistórias pra contar, versos para formar

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Monte de ilusões, verdades e mentirasFlores e caixões

Sonho de uma vida, fartura de emoçõesSofrimento de estar viva, solidão

Vontade de morrer, de acabar com tudoVontade de viver e esquecer do mundo

Vontade de partir e quebrar o muroVontade de sorrir e voltar a ser criança

Brincar com a esperança e abraçar o estatuto.Sinônimo de confiança.

O certo é que o diário despertou em mim um novo dom, o de escrever, e isso me ajudou a esquecer das drogas e ser forte para continuar o tratamento, que foi longo e doloroso.

Com esse caderno também comecei a me comunicar com o Ripa, mandava cartas para ele. Parece até coisa de gente maluca, mas eu acreditava que ele vinha de noite olhar meu diário só para ler o que eu havia escrito.

A escolha

Mesmo com tanto incentivo, ajuda psicológica e social não queria ter o meu filho. Tinha medo dele nascer doente e decidi tirar. Eu chamei a assistente social e a psicóloga e expliquei que eu

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queria abortar, que não tinha condições de ter um filho, ainda mais condenada à morte. Mas elas enfatizaram que meu filho tinha todas as chances de nascer saudável e que eu poderia dá-lo a adoção se não quisesse criá-lo. “Eu não quero ter filho para dar. Prefiro tirar!!!” gritei. Aí a assistente social me convenceu que eu não tinha o direito de tirar a vida do meu filho. “Mesmo que você seja a mãe, não pode negar a vida a esse ser que está se formando em seu ventre. Você não sabe Tatiana, mas ele já faz parte de você, daqui a alguns meses ele mexerá e logo estará em seus braços. Não cometa mais uma loucura na sua vida”, disse calmamente a assistente social, enquanto me convencia que eu precisava seguir o pré-natal rigorosamente para garantir a saúde do bebê.

Eu pensei, pensei. Imaginei-me com ele e vi que a assistente social tinha razão e foi aí que decidi tê-lo, lutar e ser, pela primeira vez na vida, responsável e cumprir as orientações médicas.

Com o passar dos meses, eu olhava o meu corpo se transformar, minhas curvas ficando arredondadas, meus seios inchados, meu quadril duplicando; tudo mudou em mim, até bochecha passei a ter. Eu estava odiando tudo aquilo e não suportei ficar dentro daquela instituição, também sentia a falta das drogas e isso era o que mais me deixava enlouquecida, a vontade de fumar. O tratamento que eu fazia não fazia efeito. Queria minha liberdade de volta, queria sentir a brisa acariciar meu corpo, queria ficar só, sem ninguém para ficar toda hora dizendo o que eu deveria ou não fazer. Foi aí que abandonei tudo e fugi.

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O Preconceito

Deixei todos dormirem e sai bem devagar, levando comigo apenas minha sacola e o meu diário, que havia passado a fazer parte da minha vida. Caminhei por mais de 3 horas e cheguei a uma praça, onde tinha o rio como cenário. Fiquei ali a meditar. E pensei em tudo que havia me acontecido até aquela data. “Meu Deus, como eu errei”, conclui.

Olhava o céu e via as estrelas sumirem dando lugar às nuvens carregadas de chuva. Os pingos começavam a molhar meu corpo, sentia frio, fome e vontade de chorar e cheirar. Adormeci sob a chuva. Amanheci sob o sol. Era outro dia, mas a vida era a mesma. Algumas pessoas vinham falar comigo, eu as repreendia, gritava e pedia que se afastassem. Resolvi mudar de lugar.

Havia cansado das praças, queria ficar próximo de algum supermercado. Eu adorava supermercado. Sonhava com o dia em que entraria num e encheria aqueles carrinhos com tudo que eu tinha vontade de comer.

Enquanto caminhava ouvi uma voz gritando por mim. Parei e olhei. Era Raquel, uma amiga que vivia na rua. Ela perguntou para onde eu estava indo, eu expliquei que estava à procura de um supermercado para montar meu pouso. Ela me acompanhou.

-Por que você está triste Tatiana? Estava sumida. Onde foi parar? Te prenderam?”. Eu respondi que não e contei o que havia acontecido comigo. Sem disfarçar, ela fugiu da minha companhia como se eu

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fosse contaminá-la com meu olhar. E assim todos os meus “amigos” foram se afastando de mim. Cada um que descobria a minha doença contava a outro, e foi aí que conheci o verdadeiro significado da palavra PRECONCEITO.

Eu pensei que preconceito só se sentisse de preto ou de pobre, mas vi que doenças como a Aids fazem as pessoas criarem repulsa. É muito triste. E o pior é que um dia eu me comportei como eles, sem imaginar que eu viveria esse papel.

Passando por uma loja de eletrodomésticos vi um noticiário da televisão sobre a Aids. A repórter dizia: “ Bate recorde o número de crianças e adolescentes contaminadas pelo vírus da Aids. Em sete anos mais de 100 mil pessoas morrerão vítimas da doença”.

Rapidamente contei no dedo quando anos eu teria e o resultado foi 21 anos. Aí pensei: “vou morrer aos 21 anos”. Aos 21 anos meu filho terá 6 anos. Ele ficará órfão aos seis anos.

Depois dali fiquei pensando nas crianças órfãs e desejei muito visitar um abrigo. Mas quem me levaria lá? Eu era uma pessoa completamente sozinha, sem sombra. Com o passar do tempo descobrir na solidão minha mais nova amiga. Era o silêncio da noite que estava mais próximo de mim. De dia também, pois mesmo com o barulho dos carros e com a pressa

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das pessoas que passam por mim quase que me atropelando eu me sentia num deserto.

É incrível como a gente pode se tornar invisível. É triste ver o ser humano ignorar o ser da sua mesma raça e não sentir remorso por isso.

Sentada em frente a um grande supermercado 24 horas, acompanhava a rotina dos funcionários daquela empresa. Via pessoas ricas e pobres se cruzarem nos imensos corredores. Todos com pressa, imersos em sua própria arrogância, presos em seu egoísmo.

A atual condição moderna nos leva a um mundo individualizado, onde as pessoas estão cada vez mais centradas em si mesmas. A nova geração já vem moldada a esse estilo egoísta, e o que vemos em todas as camadas sociais é uma raça mecanizada se proliferando.

Ser autossuficiente passa a ser uma obrigação do indivíduo, que começa a refletir sobre essa necessidade. Eu tinha medo de ver meu filho crescer num mundo onde não havia chance para crianças como eu. Mesmo com tantos projetos sociais, a miséria e a exclusão eram grandes. Eu era a prova viva dessa realidade.

Em meio a essa minha reflexão surgiu um garoto de aproximadamente 3 anos me pedindo ajuda. Ele havia se perdido da mãe. Eu o olhei e não falei nada. Não conseguir dizer nada. Ele começou a chorar e eu o mandei embora. Até que um guarda o pegou e o levou para longe de mim. Depois pensei que aquele menino poderia ser meu filho, mas não era.

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Nesse mesmo dia, uma menina se aproximou. O nome dela era Luka e tinha 12 anos. Ela me contou que estava a fim de fumar um mesclado. Eu disse a ela que sabia onde conseguir, mas só contaria se me pagasse um. Ela topou. Então fomos à Boca e depois fumamos juntas.

A gente começou a conversar. Eu mostrei meus poemas para ela e ela não entendeu nada. Pensei: “vou parar de escrever, vai ver não dou para a coisa”.

De repente ela começou a falar: “Não quero mais fumar perto da galera do rio, eles acabam com todo o meu baseado”, dizia enquanto tragava a erva maldita misturada com pasta de cocaína.

-Você está grávida de quantos meses?” Perguntou ao observar minha barriga. Disse que não sabia e não sabia mesmo.

-Eu odeio esse filho. Eu odeio tudo que ele fez com o meu corpo, mas agora não dá para tirar, então vou tê-lo”, desabafei.

-Mas você vai ter esse filho na rua?” Perguntou preocupada. - Não sei. Eu não sei de nada”, falei sem vontade.

Como não dei muita atenção, ela foi embora. Aquela droga me devolveu a vida, vontade de me levantar e andar. Como estava grávida e gorda não conseguia fazer muitos programas. Tinha alguns clientes que gostavam de sair com garotas grávidas, mas a maioria não queria. Escondi que estava com Aids e consegui ter novos amigos.

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O meu vício me levou novamente ao mundo do crime e como não tinha dinheiro para comprar droga passei a assaltar ônibus. Entrava nos coletivos e escolhia uma vítima bem frágil, tipo senhora idosa, mocinha tímida, pessoas que demonstrassem vulnerabilidade e roubava a bolsa. Às vezes a bolsa só tinha vale-transporte. Passei semanas fazendo isso até conhecer Laranja.

As gangues

Laranja era um dos líderes de uma gangue de rua. Ele vivia em guerra com a Unidos do Morro Azul, a UMA. O combate era na madrugada de domingo, sempre às 2 da manhã. Eu acompanhava de perto. Vi muitos integrantes do nosso lado e do outro lado morrerem. As casas da rua Nova, onde acontecia o combate, eram apedrejadas. Os carros destruídos e até inocentes viravam vítimas. Naquela guerra ninguém era perdoado.

Laranja gostava de mim. Eu nem sabia por que, mas ele gostava. Sempre estava preocupado com a minha saúde.

Os garotos da gangue eram meninos normais, isto é, estudavam em escolas pagas pelo governo, tinham comida em casa, e pais quase perfeitos. Eu não entendia qual a graça que eles encontravam em brigar.

Laranja me explicou que a guerra entre as gangues era uma disputa de força, orgulho de meninos, de mostrar quem era o mais forte,

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igual a partidos políticos, onde um quer ser melhor que o outro, só que partidos tem projetos, filosofia, ideologias e as gangues só tinham arma e vontade de ver sangue.

Às vezes uma gangue rival matava um inocente de um bairro para declarar guerra a outro bairro. Aí a gangue do bairro atingido se vingava e era morte atrás de morte. A polícia não dava conta, e eles contavam muito com a justiça, pois sabiam que nada aconteceria. A maioria era de menor.

Quando os integrantes das gangues chegavam a maior idade saíam do grupo e traçavam outros caminhos. Alguns viravam assaltantes barra pesada, outros donos de venda de drogas, mas alguns chegavam até fazer faculdade. O futuro dos integrantes das gangues era realmente imprevisível.

Do grupo do Laranja havia 12 meninos, mas eu cheguei a conhecer de perto apenas quatro: Laurinho, de 13 anos, Maminha, de 14 anos, Xuxinha, de 13 anos e Zeca, de 15 anos. Cada um tinha uma história interessante. Laurinho, filho de pais separados, morava com o pai porque a mãe era alcoólatra. O pai, por outro lado, trabalhava muito e não tinha tempo de dar atenção a ele e por conta disso passou a faltar aulas para beber com amigos. Nas ruas ele conheceu Xuxinha, que lhe apresentou Laranja e outros meninos. Foi assim que ele ingressou na RSN (Revoltados da Semente Negra), a gangue chefiada por Laranja. Com Maminha a história não foi muito diferente. Filho de mãe solteira, ele não tinha muita coisa para fazer sozinho em casa e encontrou na

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rua e na filosofia da RSN seu novo sentido de vida. Já Zeca era um garoto incompreendido pelos pais, que só falavam com ele gritando e nunca prestavam atenção no que ele dizia ou queria, resultado: encontrou na RSN a resposta para suas ansiedades.

Xuxinha era o de mais sorte. Até dinheiro do governo ele ganhava, só que sua mãe o usava para benefício próprio. Ela deixava de comprar comida para gastar com roupas e batons, a revolta de Xuxinha foi levada às ruas. Quanto a Laranja, o mentor da RSN, a história é impressionante. Ele era o primeiro aluno da turma, inteligente e educado. Decidiu mudar radicalmente depois que ficou doente e teve que tomar remédios à base de corticóide e engordou drasticamente. O apelido de gordinho, baleia e outros adjetivos o fizeram se revoltar e ele criou a sigla, que logo ganhou adeptos. Sua primeira vítima, um garoto da escola, teve repercussão.

A prisão de integrantes de gangue era constante, mas a polícia não dava conta, pois sempre surgiam novos grupos.

Pingo de Luz

A salvação para esses meninos surgiu com a criação de uma Organização Não-Governamental chamada “Pingo de Luz”. A On’g, fundada por uma jornalista Amiga da Criança, que havia sido integrante de uma gangue, mobilizou a opinião pública.

Ela criou, com a ajuda da Prefeitura, um estúdio ao ar livre, com espaço

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para ensinar a tocar instrumentos musicais, desenhar e pintar. O estúdio era montado em uma praça duas vezes na semana e o material usado para ensinar as crianças em situação de risco era trazido pelos próprios instrutores, artistas voluntários e amantes da arte. O material descartável era doado pela Prefeitura, e de vez em quando o prefeito visitava o local, o que incentivava os aprendizes.

Os meninos da RSN e da UMA trocaram a guerra pela arte e depois de aprenderem a tocar violão, bateria, baixo e teclado montaram duas belas bandas. Eles também pintavam. Pintavam de tudo, mas o tema principal era a vida de gente pobre que lutava para melhorar e nunca saia do mesmo lugar, igual a dos meus pais. As telas de RSN e UMA eram lindas, uma melhor que a outra. Eles continuaram rivais, mas a disputa não era pelo território, mas sim pelo público. Depois a RSN e UMA se enfrentaram num concurso de artes plásticas, houve empate e os dois grupos tiveram que expor seus trabalhos no mesmo salão, e sem briga.

O público amou o trabalho e soube que eles foram convidados para expor até na Europa.

A On’g não tinha apoio de empresas privadas e nem do governo do Estado, vivia de pequenas doações, mas depois do sucesso das bandas RSN e UMA e de suas telas, a Pingo de Luz ganhou notoriedade e recebeu prêmios de instituições ligados à causa da Infância e Adolescência, e passou a ter apoio de instituições internacionais. A ideia migrou para outros bairros e muitas gangues foram se

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desfazendo. O governo economizou munição.O projeto da Pingo de Luz foi incorporado a um programa municipal de recuperação de crianças em situação de risco, e o governo alugou vários espaços na cidade para sediar o projeto. As gangues que existiam nos bairros onde o projeto foi implantado desapareceram.

Se o poder público investisse mais em pessoas e instituições comprometidas com a vida, muita coisa poderia ser diferente hoje. Mas o grande problema é que falta incentivo para boas ações.

A Pingo de Luz também tinha outra frente de trabalho: encaminhava crianças em situação de risco para abrigos. Foi aí que conheci o meu novo lar. Depois da mudança de vida com meus amigos da UMA e RSN eu pedi para a jornalista da Pingo de Luz me levar para conhecer um orfanato. Ela disse que só me levava se eu prometesse que voltaria a me cuidar e aceitar em morar em uma casa especializada em tratar de adolescentes como eu. Eu aceitei.

O orfanato

A jornalista da Pingo de Luz era uma pessoa linda. Seu nome é Elerita, um nome um tanto estranho, mas rima com vida e era isso que ela passava para as pessoas que conhecia. A Elerita tinha 30 anos e nunca havia casado, apesar de ter tido alguns namorados. Depois que saiu das drogas aos 20 anos, ele voltou a estudar e se formou em jornalismo, fundando em seguida a Pingo de Luz. Dedicada a mudar a vida das pessoas, ela esqueceu da dela, mas acho que ele era feliz mesmo sem

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ter uma família, pois seus dentes viviam à mostra.A gente foi para orfanato. Ao chegar na porta, ela me abraçou forte e disse que aquele lugar era santo, porque havia muitos anjos. Eu sorri e entrei na sua frente.

Logo de cara vi uma menina moreninha, que sorriu e correu ao me ver. Depois veio outras crianças que se aproximaram de mim. Mas antes que eu pudesse me aproximar delas, veio uma mulher gorda, com um óculos maior que a cara e me interrogou:

-Quem é você? Antes que eu pudesse responder, Lerita se apresentou e me apresentou, explicando o motivo da visita. Mas aquela senhora pediu para a gente esperar, que iria falar com sua superiora, depois de alguns longos minutos eles nos deixaram entrar.

Lerita ficou conversando com uma senhora mais magra e de cabelos curtos, enquanto eu entrei em um imenso jardim, onde havia dezenas de crianças, uma de cada cor, de cada jeito, de todos os tamanhos. Tinha até meninas da minha idade e mais velhas que eu. Mas me aproximei de crianças menores de cinco anos. Não tentei conversar, só observei suas inquietudes, suas alegrias e suas tristezas. Teve uma, em especial, que me chamou a atenção. Ela tinha um olhar como o meu, os cabelos lisos como o meu, a pele clara como a minha e uma tristeza que saltava os olhos. Era uma das poucas que não brincava. Devia ter mais ou menos uns 9 anos. Eu me aproximei dela e tentei conversar, mas ela não falava nada.

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- Oi, meu nome é Tatiana e você, como se chama? Fala comigo, quero ser sua amiga. Tudo foi em vão, ela não respondia. Apenas me olhava. De repente escutei a Lerita me chamando e fui ao seu encontro. Aí perguntei sobre aquele menina que eu tentava manter diálogo e ela perguntou a senhora magra de cabelos curtos, que contou que aquela menina havia ficada assim desde que sua mãe havia lhe abandonado.

- O pai é um drogado e está preso por ter matado um traficante e a mãe ficou em depressão depois da prisão do marido e abandonou a filha em casa. A criança estava sozinha há quase uma semana quando fomos avisados pela polícia, que soube do caso através de uma vizinha.

A moça contou que a menina não queria vir, dizia que estava esperando a mãe voltar.

-Essa menina está aqui há mais de um ano e a mãe nunca apareceu para vê-la, mas até hoje ela espera pela mãe, contou. -Que história triste meu Deus, disse chorando.-É minha filha, é uma história muito triste. -Vamos embora Tatiana, temos um compromisso agora.

Ela agradeceu a senhora e fomos embora, mas eu fiquei pensando naquela menina triste.

A gente pegou um táxi com destino a uma casa que cuida de crianças aidéticas, uma casa sem alas. A Casa “Sonho de Viver”. No caminho revi toda a minha vida e de repente a jornalista disse: “chegamos”.

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- Aqui será seu novo lar, disse Lerita na porta da casa.- Aqui tem alas?Perguntei?- Não, porque todos aqui são iguais a você.- São todos doentes?- Doentes é uma palavra forte, eles são todos portadores do vírus HIV. Ao chegar nessa casa vi tantas crianças que nem acreditei que todas elas tinham a mesma doença que eu. E algumas eram pequeninhas que dava pena. Muitas pegaram a doença dos pais. Lá, decidi que lutaria para meu filho nascer. Continuei meu pré-natal e voltei ao tratamento para me livrar das drogas.

O novo amor

Nessa Casa, as pessoas encaravam a Aids como mais uma doença, sem preconceito. A coordenadora, Maria Alice, me animava dizendo que meu filho nasceria saudável, bastava eu não me descuidar do remédio AZT.

Mesmo com todos os meus problemas de saúde, eu não parava de pensar nas drogas. Queria fumar a qualquer custo, cheguei a fugir da Casa Sonho de Viver por muitas vezes para me prostituir por droga, mas depois eu parava e pensava que poderia estar matando meu filho. Cheguei até a enganar alguns clientes dizendo que eu era saudável para transar sem camisinha para ganhar um pouco mais. Passei Aids para muita gente e tenho remorso por isso.

Quando me sentia mal, voltava a procurar ajuda na Casa Sonho de

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Viver, que ao invés de me reprimir, me recebia de braços abertos. Em uma dessas voltas, conheci Gustavo, um jovem de 19 anos que havia pegado Aids por injetar droga na veia. Ele se apaixonou por mim e eu por ele. Foi algo arrebatador. Até maior que o meu amor pelo Ripa. “Assumo teu filho, vamos ficar juntos”, dizia.

A nossa paixão mudou meu modo de ver a vida e voltei a acreditar que era possível ser feliz, pois tinha nas minhas mãos a chance de formar uma família e de lutar pela vida do meu filho.

Gustavo estava com a saúde debilitada e sempre era internado. Como não tínhamos muito tempo, resolvemos nos apressar e realizar um sonho comum: casar em uma igreja.

Os coordenadores da Casa Sonho de Viver adoraram a ideia e nos ajudaram. Com doações e apoio de um padre realizamos uma bonita cerimônia, com direito a tudo. Meu sonho de menina de casar na igreja, com véu, grinalda e aquela música linda que a gente escuta nas novelas estava realizado, só faltou a minha mãe, mas acho que ela não se orgulharia de mim. O padre que nos ajudou era também um missionário que lutava pelos menos favorecidos. Ele contribuía com a Casa Sonho de Viver e ajudava meninos e meninas em situação de risco.

O casamento

O vestido de noiva ganhei de Lerita, que nunca deixou de me visitar. Minha barriga ainda era pequena e meu vestido ficou lindo. Gustavo

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usava pela primeira vez na vida um paletó. Na igreja, só havia pessoas da Casa Sonho de Viver e representantes de instituições ligadas à causa da Infância, Adolescência e Aids, além de alguns repórteres. Mesmo com os bancos quase vazios, eu estava feliz e entrei radiante. Gustavo estava também muito feliz, mas me confessou, mais tarde, que sentiu falta da sua família. “Queria que meus pais me vissem casando”, disse de cabeça baixa após a cerimônia.

Seus pais o desprezaram depois que descobriram que ele havia contraído a Aids. O único parente que Gustavo tinha contato era seu irmão caçula, Humberto, que sofria em vê-lo se despedindo da vida. Enquanto eu não queria nem de longe contato com a minha família.

Tem certos momentos que descobrimos em pessoas que não tem nada a ver com a gente um amor maior que de parentes, e isso nos dava calor e coragem para enfrentar os obstáculos que era viver com o vírus da Aids.

Depois do nosso casamento, outros casais soropositivos se animaram a assumir o relacionamento. A Casa Sonho de Viver construiu um bloco para casais soropositivos, por isso continuamos na casa, recebendo todo o tratamento para controlar a doença e eu para garantir a saúde do meu filho. O coquetel que tomávamos era caro e fora da Casa Sonho de Viver seria difícil conseguir o remédio, mesmo o governo garantindo a sua gratuidade.

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Quando eu ficava pensando na nossa situação, lembrava da assistente social relatando sua revolta em não poder ajudar outras pessoas soropositivas. Então, concluía: “Como temos sorte”, pois muitos portadores do HIV não conseguem um abrigo, nem leito em hospitais, ou muito menos coquetel para se tratarem.

A Casa Sonho de Viver abrigava apenas 100 pessoas. Essa era a única instituição que mantia casais e incentivava a união entre os portadores, pois acreditava que com amor era possível suportar o tratamento e a doença. “ A vida a dois é mais fácil, um ajuda o outro. Sozinho é mais difícil”, dizia Maria Alice, que também era portadora do HIV.

Maria Alice fundou a Casa Sonho de Viver com o dinheiro que recebeu do seguro de vida do seu marido, Antônio Armando, que morreu de Aids. Ele passou a doença para ela. A descoberta veio junto com o laudo médico no dia que o marido morreu. O choque a fez querer morrer, mesmo porque quando o marido faleceu ela estava grávida de sete meses, mas com ajuda dos seus amigos Hélio, Sônia e Maurinho, ela teve forças para continuar a lutar. Sem saber da doença, Maria Alice não pode se cuidar e seu quarto filho, André, nasceu com o vírus. Foi ele a inspiração para ela fundar a casa Sonho de Viver, que abraça a causa de de crianças com o vírus HIV. André está hoje com cinco anos de idade, mas tem uma saúde debilitada.

A Casa também desenvolve um trabalho para incentivar a adoção de crianças. As saudáveis, que ficavam órfãs são todas adotadas rapidamente, mas as portadoras do vírus crescem na Casa sem direito a um lar, devido o preconceito.

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Os casais que visitam a Casa até se apaixonam por crianças soropositivas, mas não as adotam. “A gente quer um filho que cuidem da gente quando ficarmos velho e não um que a gente tenha que cuidar para a vida toda”, justificavam.

Eu estava completamente feliz. Gustavo amava meu filho e me deu muita força durante a gravidez.

A vida e a morte

Mesmo com todas as minhas loucuras, idas e vindas, tudo ocorreu tranquilo na hora do parto. Meu filho nasceu saudável. Enquanto eu comemorava a saúde de Felipe, Gustavo caminhava para o fim de sua vida. “Meu filho, você é meu filho, entendeu?”, dizia Gustavo enquanto levantava Felipe nos braços. Ser pai era seu maior sonho e ele realizou, pois adotou Felipe em seu coração.

Toda a nossa felicidade acabou quando Gustavo começou a piorar de uma hora para a outra. Estava dada a largada para o fim de sua vida. Uma febre insistente o deixou de cama. Ele precisava ser internado, mas não havia leito. Chegaram a pagar um médico para examiná-lo. Foi diagnosticado uma tuberculose renal. “Vocês precisam levá-lo para ser examinado em um hospital. Ele precisa de cuidados urgentes”, disse o médico.

Os coordenadores da Casa corriam contra o tempo para conseguir

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leito para Gustavo nos hospitais públicos. Mas todas as vias levavam somente a desculpas. “Está lotado”, diziam os diretores. Começamos a viver ali uma grande batalha contra o tempo e a morte, onde a saúde publica era nossa maior inimiga.

Durante toda a minha vida senti ódio de várias coisas que aconteceram comigo, até de mim mesma. Senti ódio do meu pai, da minha mãe, das pessoas que me exploraram e das que me ajudaram, mas nada foi parecido com que eu sentir do governo, dos políticos, da sociedade e dos responsáveis que estavam me tirando à última chance de ser feliz. Gustavo precisava de leito e a Casa Sonho de Viver não tinha condições de pagar um hospital particular.

A busca nos hospitais públicos não deu em nada. Maria Alice promoveu campanhas, debates em televisão, passeatas para aumentar o número de leitos para pessoas aidéticas, e só depois da mobilização da opinião pública é que surgiu um leito para o meu amor. -Conseguimos Gustavo! Conseguimos um leito para você, meu amor.- Eu não sei se vai dar tempo, Tatiana, estou muito fraco, sem forças. Me prometa, me prometa que mesmo que eu morra você não fugirá mais daqui e cuidará do nosso filho, me prometa Tatiana.

Eu fiquei olhando em seus olhos fundos e vermelhos, marcados por uma imensa olheira e disse que prometia, mas não deixei ele terminar de completar a frase e fui buscar ajuda para levá-lo ao hospital. Naquele mesmo dia ele entrou no hospital, foi atendido, mas não resistiu e morreu horas depois.

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-Não, não, nãaaaaaaaaaaaaaaaaaaaao. Eu quero o Gustavo, eu quero... Fiquei destruída com a notícia.O leito chegou tarde. Não deu tempo de salvar sua vida. Uma pneumonia interrompeu o sonho dele ver Felipe crescer.

A diretora do hospital explicou que havia apenas 12 leitos para portadores de HIV, só que os ocupantes eram soropositivos em estado grave, que geralmente saíam do hospital para o cemitério. Então era preciso torcer pela morte para salvar uma outra vida. Isso era absurdo. Eu não entendia.

Depois de mais essa tragédia na minha vida, eu decidi que não me apaixonaria mais.

Cheguei na Casa e olhei meu filho dormindo. Aproximei-me de seu berço e disse: “seu pai morreu, mataram seu pai. Seu pai foi assassinado por este sistema governamental que não prioriza a saúde, que não dá importância para a vida. Então para que serve as estradas? As praças? As escolas? Se o mais importante é deixado de lado”, chorei por horas meditando essas palavras.

O velório de Gustavo não teve grande repercussão, nem muitas lágrimas, também não precisava, as minhas enchiam todo o lugar. Os pais dele ficaram escondidos de longe, vendo o caixão com o corpo do filho ser enterrado. Seu irmão Humberto ainda se aproximou e lamentou a perda. Nos jornais, apenas umas notinhas no canto de

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página de uma coluna esquecida pelo leitor, nada que valesse uma manchete, afinal de conta o governo era o maior patrocinador da imprensa.

Morrer de Aids era comum. O aidético não tinha direito de reclamar, pois procurou pela doença. Essa era a filosofia de muita gente que vivia dentro e fora do governo. Eu sabia, eles preferiam guardar leitos para os com chance de viver do que para os condenados a morrer.

Depois do choque, resolvi viver pelo meu filho e lutar para não ter o mesmo fim que Gustavo. Encabecei uma campanha “Direito de Viver”. Saía nas ruas toda a sexta-feira vestida de preto, com pessoas iguais a mim e puxava um coro: “Temos o direito de lutar pela vida, o governo tem obrigação de nos ajudar, somos cidadãos”.

A campanha ganhou adeptos e em cada semana aumentava o número de seguidores. Eram poetas, escritores, jornalistas, filósofos, professores, estudantes e até donas de casa.

A campanha foi parar na grande imprensa local e em pouco tempo em rede nacional. Logo surgiram dezenas de políticos que aproveitaram o momento para se beneficiar, mentindo dizendo que estavam elaborando projetos para mudar o tratamento aos portadores do HIV. Se estavam pensando em projetos eu não sei, mas depois do impacto na mídia, um deputado apresentou um projeto de lei que obrigava o governo a garantir a mesma quantidade de leitos para portadores do HIV, sem dar preferência para pessoas sem o vírus. Esse projeto foi

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aprovado por uma diferença de 3 votos, depois de uma longa briga, porque mais de cinco reivindicavam a paternidade da ideia. “Todos tem o mesmo direito perante a lei”, gritava em voz alta, com a mesma intensidade da minha dor pela perda de Gustavo. Sei que muitas vidas foram salvas depois da campanha e isso me fez um pouco mais feliz, pois sabia que Gustavo estaria orgulhoso de mim.

Enquanto trabalhava nesse projeto pela vida, tinha sucesso no tratamento para sair das drogas e comecei a desenhar, a pintar e escrever.

Na Casa Sonho de Viver havia uma equipe que fazia um trabalho de aproximar as famílias dos aidéticos e eles foram atrás da minha família para tentar uma reconciliação.

Eu estava começando a mudar de vida e até via a possibilidade de retornar a minha casa. Queria voltar a ver minha mãe, meus irmãos e até o meu pai. Olhava para Felipe e me arrependia de tudo que eu fiz e do risco que coloquei sua vida quando me recusei a seguir o tratamento. Estava feliz e descobrir no seu sorriso um motivo para lutar pela vida, que me escapava dos dedos.

Depois de quase dois anos de tratamento conseguir me livrar das drogas. Meu filho estava com quase três anos e falava suas primeiras frases.

Mas os dias se passavam e eu não conseguia me distrair da minha

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doença incurável, apesar de não ter nenhum sintoma. Via as pessoas com quem eu conversava morrerem ao meu lado. Uma gripe os matava, pois quando a pessoa tem esse vírus o sistema imunológico fica totalmente comprometido e qualquer doença paralela pode ser fatal. Sentia que podia morrer a qualquer hora, foi aí que resolvi visitar minha família para me despedir. Queria olhar para eles pela última vez.

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A volta ao lar

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Ao entrar no bairro percebi um silêncio e vi também que nada havia mudado por ali. Que as ruas continuavam em poças de lama e que minha casa não tinha evoluído, igual a última visita. Mas naquela manhã havia bastante gente nela. Aproximei-me e vi meu pai chorando, meus irmãos reclamando sobre a falta de comida e minha mãe agonizando no quarto que estava quase desmoronando em cima dela.

Dessa vez não houve surra e nem violência, também não teve abraços, beijos ou festa com a minha chegada. Minha mãe estava com dengue e não tinha arrumado leito nos hospitais públicos. Percebi que tudo que eu havia feito tinha sido em vão, que nada havia mudado na minha vida e nem na vida da minha família, que todo o dinheiro que ganhei vendendo meu corpo foi consumido em drogas, e que eu tinha perdido até o direito de criar meu filho, pois estava condenada a uma doença sem cura.

Minha mãe segurou minha mão quando me viu e disse: “Tatiana, você está aqui. Como pedi a Deus que você viesse. Me perdoe filha. Eu não

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pude te salvar, mas eu te amo e senti muito a tua falta. Estou muito doente, sem forças, cuida dos teus irmãos, eles vão precisar de ti”.

Aquela foi a primeira e última vez que minha mãe havia declarado seu amor por mim. Minha mãe sempre foi muito calada, não gostava de falar das suas intimidades, do seu passado, mas nesse dia ela decidiu se abrir para mim.

-Eu nunca gostei de falar do meu passado, porque ele é triste. Eu sai de casa aos 13 anos porque havia ficado grávida e tive medo da reação dos meus pais. Sem noção de nada, peguei algumas roupas, uma foto de minha mãe com meu pai, eu e meus oito irmãos com um palhaço, que veio em um circo fazer temporada no interior que a gente vivia, lá em Mãe do Rio. A gente morava em um município de beira de estrada e não foi difícil conseguir carona para Belém. Quando cheguei aqui, a primeira pessoa que conheci depois do caminhoneiro, foi seu pai, que vendia frutas na rua.

Eu estava com fome e fiquei olhando aquelas frutas frescas. Ele falou o preço delas e eu expliquei que não tinha dinheiro. Ai ele fez um gracejo e me deu um saco cheio de frutas, convidando-me para um passeio. Aceitei. Ele me mostrou a cidade e eu contei o que havia acontecido. A gente logo se apaixonou e fomos viver em uma área de invasão, que ele acabara de pegar. Sem pensar duas vezes disse que me assumia com barriga e tudo e ai a gente se juntou, mas meu sonho era casar”...

Enquanto minha mãe falava, meu pai observava de longe chorando

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e ela continuava. Ela queria desabafar, a sua história estava trancada, ela precisava contar e prosseguiu.

- Depois da gente se ajeitar na invasão tive Caroline e depois veio você e em seguida seus irmãos”. Eu então interrompi, perguntando a onde estava Caroline? Eu não sabia que tinha uma outra irmã e aí ela me contou.

-Quando a sua irmã nasceu eu e seu pai começamos a brigar. Ele sentia ciúmes de mim e toda vez que olhava para Caroline queria me bater como se eu o houvesse traído. O amor que sentia por teu pai era tão grande, mas tão grande que fui capaz de cometer a maior loucura da minha vida... Ela parou e começou a chorar. Depois de uma longa pausa, continuou.

-Eu dei a sua irmã para uma vizinha criar. Uma vizinha que estava indo embora para São Paulo. Também a gente não passava bem, éramos mais pobres do que somos hoje e sua irmã era muito pequena,também tinha medo dela não vingar. Mas se eu pudesse saber a onde ela está? Como ela está? Vivo com esse peso em minha vida até hoje e toda vez que eu te olhava forte, trabalhando, via que ela podia ser uma companhia para você. Procure ela para mim Tatiana, a vizinha que a levou chamava-se Luna Ataíde Moreira, eu tenho uma foto dela na caixa de documentos. Eu chorei emocionada, limpei as lágrimas de minha mãe, olhei para meu pai e ele não disse nada. Meus irmãos só pensavam em comer.

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Minha mãe tocou meu rosto com carinho e disse: “Filha, não me abandone mais e saiba que eu a amo muito e sonhei com sua volta para casa”. Adormeci em seu colo. Mas aquela noite foi horrível, minha mãe piorou e foi levada para uma emergência em um posto de saúde recém inaugurado na comunidade, mas era feriado e só havia um médico de plantão, que não conseguia atender a demanda de feridos que chegava a toda hora. Eu estava com minha mãe quase desmaiada em meus braços e os meus gritos por socorro se misturavam aos gritos de pessoas feridas por faca, tiro, garrafa. Em meio a tanto desespero, vi minha mãe morrer e eu não podia fazer nada, não tinha como reagir.

Como reagir sem dinheiro? Como exigir o cumprimento de seus direitos como cidadão diante da morte de alguém que se ama?

Quando uma enfermeira percebeu que a situação de minha mãe era realmente grave, ela chamou um médico, que a olhou no corredor do posto, dando o parecer final: “ Ela está morta, vamos cuidar daquele ali. (apontou para um rapaz que cuspia sangue no início do corredor) que ainda tem vida”. Depois ele se voltou para mim e disse: “Eu sinto muito”, sem emoção na voz.

Eu não tive reação naquele momento. Parecia que eu não estava lá. A morte de minha mãe no corredor daquele hospital não havia chegado a minha consciência.

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Como ele poderia dizer que minha mãe havia morrido de forma tão fria. Será que ele não pensou em mim? Será que ele não tinha mãe? Tive vontade de matá-lo, mas a notícia da morte dela foi mais forte do que a maneira que chegou. Eu havia perdido todas as chances de entendimento e de arrependimento. Ela estava morta e eu não conseguia chorar, só havia ódio em meu coração e no meu olhar.

O sistema de saúde pública tem uma doença pior que a Aids: os governantes. Perdi meu amor por causa da falta de leitos e perdi minha mãe pelo mesmo motivo, mas a falta não era somente de leitos, mas de sensibilidade dos homens que mandam em nosso país. Isso era mais revoltante e mais doloroso do que ver minha mãe morrer por falta de atendimento médico. Um toque do meu irmão caçula no ombro me trouxe a realidade daquele dia nublado. “Mana, por que você não chora? É nossa mãe”, disse. E de repente eu não estava mais no hospital, estava em casa, havia passado o velório todo lembrando de tudo que havia acontecido comigo e das coisas que ela me disse antes de morrer. Eu segurei na mão de Nelito e disse: “Eu gastei todas as minhas lágrimas com todos os meus erros, me perdoe”.

Meu pai nunca me pediu perdão. Depois do enterro pedi que ele parasse de beber e se drogar para cuidar dos meus irmãos. Contei que não podia fazer nada, pois estava com Aids e ainda tinha um filho para criar. Ele me expulsou de casa e me proibiu de voltar, dizendo para os meus irmãos que eu estava amaldiçoada e que eles não poderiam

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chegar perto de mim. Saí dali arrasada, nem a morte de minha mãe me abalou mais que o desprezo e o nojo de meu pai e meus irmãos. Depois daquele dia, voltei a minha realidade sem me preocupar com o destino deles e nem em encontrar a minha irmã Caroline. A minha missão era cuidar de Felipe.

Ao Chegar a Casa, desabei; e ali sim chorei por horas, dias, semanas e meses a morte de minha mãe. A anestesia havia passado e não conseguia me perdoar de tê-la abandonado, de ter me afastado dela por tanto tempo.

Uma doutora

Depois de três meses, voltei a escrever mais um capítulo da minha vida no pequeno diário, que estava no terceiro volume. “Sei que vou morrer daqui a alguns anos, ou daqui a alguns meses, mas vou deixar registrado, em um livro, toda a minha história. Tomará que ele sirva para orientar tantas crianças que como eu cresceram antes do tempo e atropelaram a sorte, cometendo erros incorrigíveis”, escrevia, enquanto pensava.

Meu filho cresceu rápido. Para mim tudo estava acelerado. Eu voltei a estudar com a ajuda de uma empresa privada, que tinha um projeto social, que ajudava crianças e adolescentes soropositivos a continuar viver. Como tinha pressa, fiz supletivo e concluir em um ano o ensino fundamental e o médio, depois me dediquei ao vestibular num cursinho montado especialmente para portadores do vírus HIV.

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Depois de meses de muito estudo e dedicação, o resultado: o locutor da rádio narrava meu nome como uma das aprovadas no curso de Direito. Era o sinal que eu precisava para saber que tinha o consentimento de Deus para lutar pelos meus projetos, e pela minha vida. Foi uma das minhas maiores alegrias. A primeira depois da morte de Gustavo e de minha mãe.

Eu estava realizando um dos meus maiores sonhos e o maior sonho de Ripa: seria em breve uma doutora. Consegui concluir o curso de Direito em uma Universidade Federal, apesar do preconceito da classe e até dos professores. Durante a faculdade contei com o apoio de uma Organização Não-Governamental que trabalhava para encaminhar aidéticos para a universidade. E garantir seus direitos perante a instituição.

Minha formatura foi bela e um exemplo para portadores do Vírus HIV. Antes de mim ninguém se animava a estudar na Casa Sonho de Viver, mas eu provei que poderia ter uma vida normal mesmo estando condenada à morte.

Quando recebi meu diploma disse: “Esse diploma eu dedico ao primeiro amor da minha vida, Ripa e também ao Gustavo”, olhando para o teto concluir: “ Ripa, esse diploma é para você, foi por você que conseguir! Agora eu sou uma doutora! Agora eu sou doutora!!!” gritei. As pessoas me olhavam surpresa, sem entender o que eu queria dizer, mas eu sabia.

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Com o diploma na mão, passei a defender pessoas que sofriam de preconceitos por terem o vírus da Aids e a trabalhar como voluntária em uma On’g que se dedicava a tirar crianças da rua. Eu ia a campo em um carro, levando além de comida, carinho.

Eu reconhecia no rosto de cada criança minha própria imagem. E foi emocionante ver como eu tinha evoluído e o que havia perdido. O que mais me doía era não ter sido encontrada por nenhuma instituição que me arrancasse da rua a tempo de ser salva sem lesões. Mesmo assim, estava feliz com o meu trabalho de voluntária e como advogada. Nessa On’g conseguimos tirar mais de 100 crianças da rua e devolvê-las a seu lar, sob uma fiscalização dos órgãos de proteção à criança, que impedia os pais de cometerem maus tratos e abuso sexual.

Meu filho crescia feliz, longe dos riscos da rua, da miséria e isso me deixava confortável para continuar viva.

Palestra sobre a vida

A minha história se espalhou pelo mundo.Coordenadores de uma Instituição Internacional ficaram surpresos com a história da minha vida e me convidaram a dar palestras na Europa, nos Estados Unidos e até no Japão. Queriam que eu falasse sobre as experiências que eu tive quando vivi na rua. Eu fiquei emocionada com a proposta e aceitei.A minha primeira palestra antes de viajar ao mundo foi realizada na antiga praça onde eu vivi parte da minha infância. Os produtores montaram um grande parque, com barracas para coletar doações de comida, roupas e

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brinquedos. A divulgação na grande imprensa; em outdoors, cartazes e folderes atraiu centenas de crianças, pais, instituições e empresas comprometidas com a causa. Esse grande espetáculo foi pensado por uma Instituição Internacional, que viu na minha palestra um incentivo para tantas crianças mudarem de vida. O tema da palestra foi: “Confissões de Uma Criança de Rua”. Eu nunca vou esquecer a primeira palestra que dei na minha vida, tendo meu filho ao meu lado.

A praça estava completamente lotada. Todos queriam me conhecer, inclusive as crianças. E foi sob aplausos e o sorriso aberto de meu filho que comecei a contar a minha história. Soube até que meu pai esteve presente nesse dia e que ele se envergonhou de tudo que me fez. Também descobri que Seu Raimundo apareceu com a família e que a sua mulher pediu o divórcio depois que soube o motivo da minha saída do bar e que suas filhas o desprezaram pela atitude.

Aproveitei aquele momento para fazer um apelo a mulher que havia levado a minha irmã Caroline, mesmo sem ter qualquer expectativa de encontrá-la. No final terminei dizendo: “Os médicos que me acompanham hoje dizem que eu sou forte e que viverei ainda por muito tempo, mas eu não sei até quando conseguirei resistir. Eu só sei que não vou desistir de lutar pela vida e por tantas crianças que vivem hoje em situação de risco, nas ruas das grandes cidades, sem chance de escrever uma história diferente da minha. Eu darei minha vida pela vida dessas crianças, darei meu sangue

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para salvá-las delas mesmas e assim me sentirei feliz e capaz de olhar para o meu filho e dizer que eu conseguir ser salva, mesmo sem salvar minha vida”, terminei entre lágrimas.

Soube que muitas crianças conseguiram sair das ruas depois que me ouviram, que muitos pais mudaram seus comportamentos com seus filhos, que muitas instituições e governos passaram a observar mais de perto a criança em situação de risco, e que parlamentares responsáveis usaram de seu poder para elaborarem projetos e criar leis em beneficio às crianças. E o melhor de tudo: Tato foi denunciado por uma de suas vítimas e acabou preso. Eu estava feliz, pois havia cumprido meu papel.

A vida em um livro

Depois de rodar o mundo contando minha vida e retratá-la, depois em um livro com o mesmo tema da palestra, decidi tirar férias para me dedicar ao meu filho.

Com o dinheiro das palestras e da venda dos livros consegui comprar uma casa bem grande, com vários quartos. Eu sempre quis ter uma casa enorme, daquelas que a gente se cansa só de andar da sala para a cozinha. Meu filho crescia sob os meus olhos febris e eu morria sob seu olhar carinhoso.

Vi muitas pessoas que eram saudáveis, isto é, não tinham o maldito vírus, morrerem antes de mim. Tinha momentos que pensava que eu era imortal ou que o tal vírus havia se apaixonado por mim, pois não tinha intenção de me destruir, queria apenas abrigo em meu corpo.

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“A criança e o adolescente tem direito a liberdade, que consiste em ir e vir; opinião e expressão, crença e culto religioso, brincar, praticar esportes e divertir-se, participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação” (Art. 16 do Estatuto da Criança e Adolescente).

Um novo amor

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Passeando um dia na praça com meu filho Felipe conheci um rapaz chamado Eduardo. Ele havia lido meu livro e se aproximou para pedir um autógrafo. - Oi.Eu sabia que você era bonita, mas não tanto, elogiou.

Eu abri um sorriso, autografei seu livro e fui embora. Quando estava me afastando ele gritou meu nome e pediu que eu parasse. Eu obedeci e pensei: “O que será que ele quer comigo agora?”. Ao se aproximar falou ofegante: “Será que a gente pode se conhecer melhor? Trocar telefones?” Perguntou. Eu sorri novamente e aceitei ficar mais um pouco na praça para a gente conversar.

Andamos toda a praça, visitamos uma exposição que havia próximo dali e conversamos sobre vários assuntos, entre eles, o amor. Foi aí que percebi que Eduardo estava me cantando e me despedi. Não queria começar mais uma relação, tinha medo de não dar certo, lembrava dos amores que tive e das fatalidades, preferi recusar e fui embora sem deixar pistas do meu paradeiro.

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Depois de uma semana Eduardo apareceu em minha casa e me surpreendeu no jardim.

-Como descobriu meu endereço?, perguntei assustada. Ele confessou que pagou uma propina para um funcionário da editora que havia produzido meu livro. Insistiu para sermos amigos. Eu ainda recusei sua amizade, mas a persistência foi tanta que acabei cedendo. Depois de três meses acabamos concluindo que tínhamos muita afinidade e que estávamos nos apaixonando. Começava ali uma nova história de amor. Ele me confessou que era um advogado egoísta e preconceituoso e ficou impressionado com a minha história e tinha muita curiosidade em me conhecer.

Depois de um tempo, me confidenciou que passou a ter um olhar diferenciado para as crianças na rua.

-Antes eu as ignorava, mas hoje eu não consigo passar por uma sem me aproximar e oferecer ajuda, sempre lembro do seu livro. Acho que até estou começando a mudar minha maneira de ser, disse enchendo-se de orgulho. Eu fiquei feliz, pois consegui plantar alguma coisa boa na minha vida.

O assédio de Eduardo me perturbava e pedi um tempo para pensar. Eu vivia sempre sozinha com meu filho e sentia medo de morrer e deixá-lo sem proteção, sabia que precisava encontrar alguém para cuidar dele, mas tinha medo de amar novamente.

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Depois de quase seis meses de persistência, de flores, telefonemas e promessas de amor eterno eu acabei me deixando envolver pelo seu charme e aconteceu nosso primeiro beijo. Eu logo perguntei preocupada: “Você não tem medo de mim, de se contaminar?”. Ele respondeu sorrindo: “Não posso ter medo do amor e eu a amei desde o dia em que conheci seu livro e sua vida”, disse, enquanto me abraçava.

Daquele dia em diante começamos a namorar, mas combinamos nunca fazer amor. Ele brincava com meu filho e comigo. E sempre dizia que queria se casar, mas eu evitava o assunto. Um dia ele me encostou a parede, segurou minha mão e disse olhando nos meus olhos: “Quero casar com você Tatiana, quero você. A gente pode ter uma relação segura. O preservativo foi inventado para isso. Não tenha medo de me machucar, pois te querer e não poder te ter é pior do que qualquer doença”, falou olhando em meus olhos. Eu fiquei sem voz. Ele me beijou, mas não conseguiu arrancar nenhuma resposta positiva.

É incrível a nossa capacidade de amar. E eu que pensei jamais voltar a sentir amor por alguém, estava completamente entregue àquela paixão, que era maior do que as anteriores, talvez porque eu estava sendo amada e amando alguém diferente de mim. Concluí também que o amor tem várias faces e que podemos amar sempre, em intensidade cada vez maior. Depois de muito relutar contra meus sentimentos decidi casar. Eu que havia sido de tantos homens me guardei até o dia do matrimônio para ele. Queria sentir o gosto de me entregar somente após o sim. Eu achava lindo casar virgem, sempre pensei que casaria virgem, mas o destino não permitiu.

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Seus pais e seus amigos o desprezaram, pouca gente compareceu ao nosso casamento, mas ele não se importou. “ Tudo que eu preciso é de você”, dizia. Na primeira noite senti medo. Era como se fosse a minha primeira vez. Estava tão receosa de contaminá-lo que pensava antes de cada toque. Ele, como um soldado de guerra, se entregou a mim sem medo da morte e me devolveu vida. A gente transava de camisinha e não deixamos de sentir prazer por isso.

Estávamos entregue um ao outro e sabíamos que não conseguiríamos mais nos separar.

Quando a imprensa descobriu nossa união começou uma série de reportagens sobre heróis do amor, falando de pessoas sadias que se envolviam com soropositivas. Eduardo nunca se importou em dar depoimentos sobre sua decisão em se unir comigo. “ Sou feliz com ela, não a troca por nenhuma”, dizia. Eu me orgulhava.

Foi com muito amor e determinação que enfrentamos os obstáculos, lutando contra os preconceitos, contra a desigualdade social, a discriminação e a recuperação de tantas crianças que viviam em situação de risco e de abandono. Passamos a ser voluntários da vida e das crianças de rua.

O perdão

Depois de nos fortalecer vimos que poderíamos ser mais útil à sociedade e decidimos, juntos com um grupo de pessoas, fundar

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uma Organização Não-Governamental que batizamos de “Enap”, que significa “Ensinando Amar o Próximo”, porque as pessoas precisavam aprender a amar umas as outras. Essa era nossa filosofia.Depois de um ano de casados decidimos adotar um filho soropositivo. A opção foi por uma linda menina que havia ficado órfã na Casa Sonho de Viver. Quando a vi, logo pensei: “ É ela. Será ela”; e foi. A adotamos e demos o nome de Vida, porque era isso que ela significava para nós. Eduardo se apaixonou pela Vida.

Com o passar dos anos comecei a ter vários problemas de saúde e cheguei a ser internada em um hospital particular ( eu já podia pagar por esse luxo, já que o sistema público continuava o mesmo). Sentia que meu tempo estava acabando, mas com a força e o amor de Eduardo conseguia me levanta. Ele, às vezes, era mais frágil do que eu. “Não sei o que será de mim se você se for, não posso imaginar a vida sem você Tatiana. Eu a amo demais”, dizia sempre que eu adoecia.

A paixão de Eduardo por mirn era tão grande que ele tentou várias vezes transar sem o preservativo. “Quero me contaminar do seu amor”, brincava. Mas eu não achava graça. Ele precisava estar bem para cuidar dos nossos filhos, falo nossos, porque o Felipe passou a ser dele também.

Apaixonados pela vida, passávamos horas falando sobre projetos e futuros. Eduardo adorava planejar as coisas comigo. Eu achava engraçado falar de futuro porque tinha uma vida com data de vencimento, mas ele preferia esquecer da minha doença.

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De vez em quando eu flagrava o Eduardo chorando. Ele fingia que estava tudo bem, mas sabia que eu poderia morrer a qualquer momento. E cada vez que eu tentava consolá-lo, ele ficava pior.-Eu nunca vou abandonar você, meu amor. Mesmo quando estiver em outra esfera, você me terá, pois eu já não me pertenço, não sofra por mim. Eu sou feliz. Você me fez ser feliz. Não me importo com o adeus, dizia para ele quando o via sofrendo.

-Eu te amo demais Tatiana.Lute sempre pela vida, lute por nós, não morra nunca, viu? Fazia eu prometer. Eu prometia e me sentia realizada por ser tão amada

Um dia estávamos sentados na varanda de casa. Eu com a cabeça encostada em seu ombro, Vida dormindo no carrinho e Felipe nos rodeondo com perguntas sobre a minha doença. Eu nunca escondi do meu filho que eu era portadora do vírus HIV. Ele também nunca teve medo ou vergonha de mim.

De repente ouvimos uns passos, Eduardo me deu um beijo, se levantou e foi ver quem era. Curiosa, segui atrás dele e antes que eu pudesse perguntar sobre a visita, vi diante dos meus olhos o rosto abatido de meu pai e o sorriso aberto de meus irmãos, já adolescentes e uma moça mais velha junto com eles. Fiquei surpresa e feliz, sorri e os convidei para entrar, perguntando logo em seguida quem era a estranha, que se apresentou por Caroline.

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Era ela, minha irmã. Como era linda a Caroline. Ela me contou em poucos minutos que era artista plástica e vivia em São Paulo com o marido Samuel e soube de nós através dos jornais. Caroline se formou em artes plásticas, casou-se com um empresário bem sucedido e teve dois filhos. Ela estava melhor que eu, pois não tinha nenhum vírus. Aquilo me deu uma pontada de inveja e por alguns segundos pensei que minha mãe poderia ter cortado a minha sorte se tivesse me dado quando era criança para alguma família com menos dificuldade financeira do que a nossa, já que eu era branca e tinha cabelos lisos. Rico adora crianças pobres brancas, de cabelo liso,mas a minha sorte foi outra e agora tenho que aceitá-la. Mas voltando ao meu pai.

Ele sentou-se ao meu lado, baixou a cabeça, chorou por alguns minutos e me pediu perdão por todos os seus erros, afirmando que havia se livrado das drogas e que estava trabalhando de carteira assinada, mas era infeliz.

-A gente não passa mais fome minha filha. Teus irmãos estudam e eu ainda recebo do governo um salário por isso, mas eu não consigo viver com esse remorso. Preciso que me perdoe Tatiana. Será que você consegue me perdoar por todo o mal que te causei?, disse entre lágrimas.

Eu olhei em seus olhos e sentir sinceridade, arrependimento e dor e vi que não poderia morrer com nenhuma mágoa, então o abracei em

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resposta à sua pergunta e o convidei para morar comigo. Meus irmãos e minha irmã Caroline se aproximaram e me abraçaram. Eduardo e meu filho Felipe se uniram nesse longo abraço, que selou ali minha completa felicidade. Estava com minha família e eles não tinham mais medo de me abraçar, pois haviam sido flechados pelo vírus do amor.

Eu estava completamente feliz e mesma sentindo a vida fugir entre meus dedos não conseguia ficar triste por ter que partir, pois cumpri meu papel. Sei que meus filhos ficarão bem quando eu não estiver mais aqui, sei que sempre terão um pai amigo e que nunca se esquecerão de mim, da minha história e da minha luta por uma vida melhor.

Meu pai se mudou para minha casa junto com meus irmãos. Caroline sempre vinha nos visitar. Eu estava realizada.

Em uma das minhas internações falei com Eduardo sobre o recomeço.

-Eduardo, prometa que não desistirá da vida e de ser feliz, que sempre cuidará dos nossos filhos e que eu serei uma doce lembrança.

- Por que está dizendo isso Tatiana?

-Eu só quero que viva. Ele me abraçou chorando e pediu para eu lutar. Não sei, mas acho que a gente sente quando a hora está chegando. Eu tinha saudades antecipadas da vida que não poderia viver, mas tentava não pensar nisso, pois sabia que Eduardo sempre estaria ao meu lado e continuaria escrevendo minha história em meu diário.

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Tatiana morreu dois anos depois. Eduardo construiu um museu com suas memórias e passou a se dedicar a Felipe e Vida, que viram na mãe um exemplo de luta. Depois de dois anos, Eduardo casou com Letícia, que teve uma linda menina, a qual recebeu o nome de Tatiana em homenagem a seu grande amor.

Essa história é fruto de uma pesquisa, que combina ficção e fatos reais.

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