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Língua Portuguesa - Redação Lista 1 Pág. 1 de 19 Colégio Integral – 9º ano – 1º bimestre - 2013 1 Leia este texto. O padre, o estudante e o caboclo Há muitos anos, o acaso uniu, na rabeira de uma tropa de mulas que percorria o interior de Minas Gerais, um padre, um estudante e, a transportar as malas e os livros dos dois, um caboclo observador. No lento trotar das mulas, sob o sol do sertão, padre e estudante debatiam sem chegar a qualquer conclusão. No fim da tarde, estacionaram ao lado de um casebre e pediram licença à mulher que os atendeu para pernoitar ali, oferecendo poucas moedas em troca de água, lugar para pendurar as redes e algum alimento. A pobre mulher concordou, enfiou as moedas rapidamente no bolso da saia e, um minuto depois, trazia aos hóspedes uma jarra de água e o único alimento existente no casebre: um miserável pedaço de queijo, que não dava para alimentar um quarto de homem. Sem saber como dividir o queijo entre os três, o padre, certo de que, com sua oratória, poderia enganar os outros dois, propôs o seguinte: que dormissem e, ao amanhecer, aquele que contasse o sonho mais bonito, certamente inspirado por Deus, ganharia o direito de comer o queijo. Todos concordaram e, cobertos pela poeira da estrada, foram dormir. No meio da noite, contudo, ouvindo o padre e o estudante roncarem, o caboclo levantou da rede, aproximou-se do armarinho em que a mulher guardara o queijo e o engoliu. Quando amanheceu, enquanto tomavam o café ralo que a mulher lhes ofereceu, o padre, que sonhara a noite toda com o queijo, foi o primeiro a relatar seu sonho. Disse que, auxiliado por anjos, subira por uma escada cheia de enfeites dourados até o céu. O estudante, por sua vez, contou que, mal havia dormido, já se encontrou em pleno Paraíso, aguardando pelo padre que, tinha certeza, chegaria em poucos minutos. Era a vez do caboclo falar. Com os olhos presos ao chão, numa voz mansa, ele disse: “Sonhei que via o senhor padre e o moço lá no céu, rodeados dos anjos e dos santos. E que eu tinha ficado aqui, sozinho e morto de fome. Então, subi no telhado e gritei com toda força pra vosmecês: ‘E o queijo?! Não vão comer o queijo Conto COMPREENDENDO O GÊNERO Conto 1

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Colégio Integral – 9º ano – 1º bimestre - 2013

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Leia este texto.

O padre, o estudante e o caboclo

Há muitos anos, o acaso uniu, na rabeira de uma tropa de mulas que

percorria o interior de Minas Gerais, um padre, um estudante e, a transportar as

malas e os livros dos dois, um caboclo observador. No lento trotar das mulas, sob o

sol do sertão, padre e estudante debatiam sem chegar a qualquer

conclusão.

No fim da tarde, estacionaram ao lado de um casebre e pediram licença à

mulher que os atendeu para pernoitar ali, oferecendo poucas moedas em troca de

água, lugar para pendurar as redes e algum alimento. A pobre mulher concordou,

enfiou as moedas rapidamente no bolso da saia e, um minuto depois, trazia aos

hóspedes uma jarra de água e o único alimento existente no casebre: um miserável

pedaço de queijo, que não dava para alimentar um quarto de homem.

Sem saber como dividir o queijo entre os três, o padre, certo de que, com

sua oratória, poderia enganar os outros dois, propôs o seguinte: que dormissem e,

ao amanhecer, aquele que contasse o sonho mais bonito, certamente inspirado por

Deus, ganharia o direito de comer o queijo. Todos concordaram e, cobertos pela

poeira da estrada, foram dormir.

No meio da noite, contudo, ouvindo o padre e o estudante roncarem, o

caboclo levantou da rede, aproximou-se do armarinho em que a mulher guardara o

queijo e o engoliu.

Quando amanheceu, enquanto tomavam o café ralo que a mulher lhes

ofereceu, o padre, que sonhara a noite toda com o queijo, foi o primeiro a relatar

seu sonho. Disse que, auxiliado por anjos, subira por uma escada cheia de enfeites

dourados até o céu. O estudante, por sua vez, contou que, mal havia dormido, já

se encontrou em pleno Paraíso, aguardando pelo padre que, tinha certeza, chegaria

em poucos minutos.

Era a vez do caboclo falar. Com os olhos presos ao chão, numa voz mansa,

ele disse: “Sonhei que via o senhor padre e o moço lá no céu, rodeados dos anjos e

dos santos. E que eu tinha ficado aqui, sozinho e morto de fome. Então, subi no

telhado e gritei com toda força pra vosmecês: ‘E o queijo?! Não vão comer o queijo

Conto

COMPREENDENDO O GÊNERO

Conto 1

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pra mó da gente seguir viagem?!’. E vosmecês responderam, felizes da vida: ‘Pode

comê o queijo, caboclo! É todo seu! Aqui no céu não precisamos de queijo!’. Fiquei

tão feliz, e tudo pareceu tão de verdade, que levantei da rede e comi o queijo...”.

Luís da Câmara Cascudo

Fonte: http://educacao.uol.com.br/cultura-brasileira/padre-estudante-caboclo.jhtm

Agora, responda.

1. Como a crônica, o conto é um texto curto que pertence ao grupo dos

gêneros narrativos ficcionais. Caracteriza-se por ser condensado, isto é, apresentar

poucas personagens, poucas ações e tempo e espaço reduzidos.

a) Quais são as personagens envolvidas nessa história?

b) Onde acontecem os fatos narrados?

c) Há, no conto, expressões que indicam o tempo em que se desenrolam as

ações. Que expressões são essas?

d) Em que tempo ocorrem as ações narradas?

2. Do mesmo modo que a crônica, o conto pode ter tanto narrador-observador

quanto narrador-personagem. Que tipo de narrador apresenta o conto lido. Justifique

essa afirmação.

3. Enquanto na crônica as personagens são, em geral, mostradas de forma

superficial, no conto elas apresentam maior profundidade de tratamento, o que lhes

confere características psicológicas mais complexas.

a) Quais são as principais personagens do conto?

b) Descreva-as psicologicamente.

c) Explique a diferença existente entre o caboclo e os outros dois personagens.

4. Nos gêneros narrativos, a sequência de fatos que mantêm entre si uma

relação de causa e efeito constitui o enredo. Um dos mais importantes elementos que

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Enredo e conflito Enredo é o conjunto, ou melhor, a sucessão de acontecimentos de uma narrativa de ficção ou mesmo de um simples fato. É conhecido por muitos nomes: intriga, ação, trama, história. Ele é construído obedecendo às leis da causalidade e temporalidade, isto é, cada fato da história tem uma causa que desencadeia novos fatos, em termos práticos, um fato anterior causa o que vem depois. Observe a sequência de fatos desta narrativa:

1 – Um homem caminha à noite por uma estrada escura, 2 – seus olhos estão atentos ao menor movimento, 3 – seus ouvidos ao menor ruído, 4 – ele está a muitos quilômetros de sua casa e só conseguirá chegar até lá caminhando. 5 – A qualquer momento ele poderá ser assaltado. 6 – Na rua não há mais ninguém. Caminha sozinho, tendo por testemunha a luz da Lua e das estrelas. 7 – Ele tem que chegar a sua casa. Os fatos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 nos dão o enredo da história: um homem (personagem)

que precisa chegar a sua casa. Nesse exemplo, podemos notar com facilidade o elemento estruturador do enredo: o conflito. No caso, o conflito do homem com o ambiente.

Sem o conflito não há a história. E mesmo se houvesse uma história, sem conflito, não despertaria interesse nenhum. Teríamos histórias sem graça porque faltaria a elas o que lhes dá vida e movimento. O conflito possibilita ao leitor criar expectativa frente aos fatos do enredo.

Além do conflito que mencionamos (entre o personagem e o ambiente), podemos encontrar nas narrativas, os conflitos morais, religiosos, econômicos e psicológicos; este último seria o conflito interior de uma personagem que vive uma crise emocional.

compõem o enredo é o conflito. Leia o boxe abaixo e, a seguir, identifique o conflito

do conto “O padre, o estudante e o caboclo”.

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O enredo clássico

Um enredo clássico apresenta a seguinte sequência:

Introdução ou apresentação: geralmente

coincide com o começo da história; é o

momento em que o narrador apresenta os

fatos iniciais, as personagens e, às vezes, o

tempo e o espaço (um homem caminha à

noite por uma estrada escura).

Complicação (ou desenvolvimento): é a

parte do enredo em que é desenvolvido o

conflito. Rompe-se o equilíbrio do estado

inicial; surge(m) o(s) conflito(s)e começas a

ocorrer os acontecimentos, as ações nos

episódios, que, encadeados, conduzem a

narrativa a um ponto máximo de tensão. (...) seus olhos estão atentos ao menos

movimento, seus ouvidos ao menor ruído,

ele está a muitos quilômetros de sua

casa e só conseguirá chegar até ela

caminhando. A qualquer momento ele

poderá ser assaltado. Na rua não há

mais ninguém. Caminha sozinho, tendo

por testemunha a luz da Lua e das

estrelas (...)

Clímax é o momento culminante da

história, ou seja, aquele de maior tensão,

no qual o conflito atinge o seu ponto

máximo de tensão, resultante da

convergência dos vários conflitos vividos

pelas personagens. (...) Ele tem que chegar a sua casa (...)

Desfecho (ou conclusão): é a “solução” do

conflito, que pode ser surpreendente,

trágica, cômica etc. e corresponde ao final

da história e é ele quem traz um equilíbrio

para a história novamente.

5. A estrutura do enredo do conto

tradicional convencionalmente apresenta

as seguintes partes: apresentação,

complicação, clímax e desfecho. Leia o

boxe lateral para obter mais informações

sobre isso.

a) Qual é a Introdução do conto

lido?

b) E qual é o clímax?

c) O desfecho da história é trágico,

surpreendente ou cômico? Explique.

6. Observe a linguagem do conto

lido. O conto apresenta variedades

linguísticas diferentes. Analise estas

variedades e explique o que elas revelam

para os leitores.

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Os gêneros narrativos ficcionais apresentam em comum dois elementos

essenciais: o tempo e o espaço. O tratamento que esses elementos recebem, porém, varia de um gênero para outro. No romance, por exemplo, tais elementos costumam ser mais detalhados, tratados com profundidade. No conto, geralmente, são apresentados de forma mais contida, reduzidos ao essencial.

Os fatos de uma narrativa relacionam-se com o tempo em três níveis:

Época em que se passa a história A época em que se passa a história constitui o pano de fundo para o

enredo. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, a época é a segunda metade do século passado. Nem sempre a época da história narrada coincide com o tempo real em que ela foi publicada.

Tempo cronológico É o tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo. É o

tempo ligado ao enredo linear, ou seja, à ordem em que os fatos ocorrem. Chama-se cronológico porque pode ser medido em horas, meses, anos, séculos. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, os fatos acontecem aproximadamente em dois dias.

Tempo psicológico É o tempo que transcorre numa ordem determinada pela vontade, pela

memória ou pela imaginação do narrador ou de uma personagem. De acordo com esse tempo, os fatos podem ou não aparecer em uma ordem linear, isto é, coincidente com o tempo cronológico.

A TÉCNICA DO FLASH-BACK Nas narrativas que empregam o tempo psicológico, é muito comum o narrador

lançar mão dessa técnica, que consiste em voltar no tempo. Um célebre exemplo de flash-back, em nossa literatura ocorre no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em que o tempo presente para o narrador-personagem Brás Cubas tem como referência a sua condição de morto. Essa condição lhe permite voltar ao passado recente – contar como morreu, por exemplo –, e voltar ao passado mais distante e contar fatos de sua infância e juventude. Veja um trecho:

Conto

COMPREENDENDO O GÊNERO

O TEMPO

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Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar métodos diferente: a primeira é que não sou um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo [...}

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos...

(São Paulo: Ática, 1992. p. 17.)

Os fatos de uma narrativa relacionam-se com o espaço em dois níveis:

O espaço físico ou geográfico É o lugar onde acontecem os fatos que envolvem as personagens: uma

rua movimentada, uma cidade, um cinema, uma escola, um cômodo de uma casa etc. O espaço pode ser descrito detalhadamente ou suas características podem aparecer diluídas na narração. No conto acima, o espaço físico são as montanhas de Minas e o casebre em que pernoitam.

O espaço social (ambiente) É o espaço relativo às condições socioeconômicas, morais e psicológicas

que dizem respeito às personagens. O espaço social situa as personagens na época, no grupo social e nas condições em que se passa a história. Ele pode, ainda, refletir os conflitos vividos por elas ou ainda fornecer pistas para o desfecho. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, o espaço social é determinante: a condição da mulher que os recebe, a qual, a troco de poucas moedas, oferece apenas água e um único pedaço minúsculo de queijo.

Leiamos agora este conto de Moacyr Scliar. Procure observar a construção do espaço e do tempo nesta história.

Piquenique

Agora é como um piquenique: estamos no Morro da Viúva, homens, mulheres

e crianças, comemos sanduíches e tomamos água da fonte, límpida e fria. Alguns

estão com os rifles, embora isto seja totalmente dispensável – temos certeza de que

nada nos acontecerá. Já são cinco da tarde, logo anoitecerá e voltaremos às nossas

casas. As crianças brincaram, as mulheres colheram flores, os homens conversaram

e apenas eu – o distraído – fico aqui a rabiscar coisas neste pedaço de papel. Alguns

me olham com um sorriso irônico, outros com ar respeitoso; pouco me importa.

Encostado a uma pedra, um talo de capim entre os dentes, e revólver jogado a um

lado, divirto-me pensando naquilo que os outros evitam pensar: o que terá

acontecido em nossa cidade neste belo dia de abril, que começou de maneira

O ESPAÇO

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normal: as lojas abriram às oito, os cachorros latiam na rua principal, as crianças iam

à escola. De repente – eram nove horas – o sino da igreja começou a soar de

maneira insistente: em nossa pequena cidade este é o sinal de alarme, geralmente

usado para incêndios. Em poucos minutos estávamos todos concentrados frente à

igreja e lá estava o delegado – alto, forte, a espingarda na mão.

Ele era novo em nossa cidade; na verdade, nunca tivéramos delegado.

Vivíamos em boa paz, plantando e colhendo nossa soja, as crianças brincando, nós

fazendo piqueniques no campo, eu tendo os meus ataques epilépticos. Um belo dia

acordamos e lá estava ele, parado no meio da rua principal, a espingarda na mão;

esperou que uma pequena multidão se formasse a seu redor, e então anunciou que

fora designado para representante da lei na região. Nós o aceitamos bem; a seu

pedido, fizemos uma cadeia – uma cadeia pequena mas resistente. Construímo-la

num domingo, todos os cidadãos, num só domingo, e antes que o sol se pusesse

tínhamos colocado o telhado, comemos os sanduíches feitos por nossas mulheres e

bebemos a boa cerveja da terra.

Às seis horas da tarde olhei para o delegado, de pé diante da cadeia, o rosto

avermelhado pelo crepúsculo; naquele momento, tive a certeza de que já o vira

antes, e ia dizer a todos, mas em vez disto soltei um grito, antes que o ar passasse

por minha garganta eu já sabia que seria um grito espantoso e que depois cairia de

boca na rua poeirenta, me debatendo; que as pessoas se afastariam, temerosas de

me tocarem e se contaminarem com minha baba viscosa, e que depois acordaria

sem me recordar de nada. Permaneceria a confusa impressão de já ter visto o

homem alto em algum lugar e isto eu diria ao doutor e o doutor me responderia

que não, que não o vira, que isto era uma sensação comum a epilépticos. Restaria

um dolorimento pelo corpo, um entorpecimento da mente. Então eu sairia ao

campo, e recostado numa pedra, um talo de capim entre os dentes, escreveria ou

rabiscaria coisas várias. Dizem – as pessoas supersticiosas – que tenho o dom da

premonição e que tudo quanto escrevo após uma convulsão é profético; mas

ninguém jamais conseguiu confirmá-lo, pois escrevo e rasgo, rabisco e rasgo. Os

pedacinhos de papel são levados pelo vento, depois caem na terra úmida e

apodrecem.

Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num pedacinho

de papel amarelado que ficou preso entre as pedras e onde se lê “... no jornal”. É

minha letra, eu sei, mas quando o escrevi? E que queria dizer? Foi há muito tempo,

é certo, mas antes da chegada do delegado? Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU

FRENTE À IGREJA: um homem alto, espingarda na mão, falou-nos; lembrou o dia

em que chegara, não há muito tempo. “Aqui cheguei para proteger vocês...” Todos

de pé, imóveis, silenciosos. Mas eu estava sentado; numa cadeira, na calçada do

café, que fica fronteira à igreja. E entregava-me ao meu passatempo: lápis e papel.

Mas não escrevia: desenhava, o que também faço muito bem. Do meu lápis surgiu

o rosto impassível do homem alto. Fui informado há pouco que um grupo de

bandidos se dirige à nossa cidade. Devem chegar aqui dentro de uma hora. Sabem

que a agência bancária está com muito dinheiro... Era verdade: a soja fora

vendida, os colonos haviam feito grandes depósitos durante a semana.

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É minha obrigação defendê-los. Entretanto, conto com a ajuda de todos os

cidadãos válidos... Naturalmente, anotei algumas destas frases: senti nelas o peso

do histórico. As pessoas cochichavam entre si, assustadas.

Vão para casa – concluiu o homem alto. Armem-se e voltem. Espero-os aqui

dentro de meia hora. As pessoas se dispersaram e eu vi rostos apreensivos,

crianças chorosas, as mulheres murmurando aos ouvidos dos maridos.

A praça ficou deserta. Apenas o homem alto parado na praça, o rosto

iluminado de frente pelo sol forte, e eu oculto na sombra projetada pelo toldo do

café. Cinco minutos depois, chegou o primeiro cidadão; era o barbeiro; quando

surgiu na praça eu já sabia o que ele diria; que o delegado o perdoasse, mas que

era chefe de família, tinha muitos filhos; e eu já sabia que o delegado ia desculpá-

lo, recomendando que fosse para o Morro da Viúva com sua família onde estaria

seguro. Mal o barbeiro se fora, e o farmacêutico aparecia, gordo, os olhos

esbugalhados, a testa molhada de suor; que o delegado compreendesse... O

delegado compreendia e também ao dono do bar e ao lojista que surgiram depois.

O último foi o gerente do banco; este tentou levar o delegado consigo, mas foi

repelido brandamente; antes de sair correndo, gritou: Delegado, o cofre está aberto;

se não conseguir atemorizar os ladrões, pelo amor de Deus, entregue o dinheiro e

salve a sua vida! O delegado fez que sim com a cabeça e o homem partiu.

Foi então que o delegado me viu. Creio que só nós dois estávamos na cidade,

à exceção dos cães que farejavam a sarjeta.

O homem alto ficou a me olhar por uns instantes. Depois atravessou a rua a

passos lentos. Postou-se diante de mim, o homem com a espingarda na mão.

- O senhor não tem ajudante – eu disse – sem parar de rabiscar.

- É verdade – ele me respondeu. – Nunca precisei.

- Mas precisa agora.

- Também é verdade.

- Aqui me tem.

Tênue sorriso.

- Tu és doente, meu filho.

- Por isso mesmo – digo-lhe. – Quero provar que sirvo para alguma coisa.

É então que ele vê o retrato em minhas mãos; seu rosto se contrai, ele

avança para mim, arranca-me o papel: - Me dá isto, rapaz, não quero que se

lembrem de mim depois – ele diz, e eu vou protestar, vou dizer que ele não faça

isto, mas aí o seu rosto está diante de mim – onde? onde? – e sinto o grito fugir do

meu peito, e nada mais vejo.

Quando acordo estou amarrado a um cavalo que sobe lentamente o morro. Lá

em cima, entre as pedras, toda a população da cidade: desmontaram-me,

espantados, me desamarram; alguns me olham de maneira irônica, outros me

fazem perguntas. Por fim me deixam em paz.

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Fico sentado a ouvir o que dizem: o telegrafista está explicando que tentou mandar

um telegrama à guarnição, sem resultado, porém. Na certa, eles cortaram os fios.

Foi então que os cinco tiros ecoaram nos morros. Levantamo-nos todos,

ficamos inteiriçados, à escuta, um grande silêncio caiu sobre a região.

- Vamos até lá – ouvi a voz, com grande surpresa, pois era a minha própria.

Todos se voltaram para mim. Eu continuava sentado, um talo de capim entre os

dentes.

O gerente do banco se aproximou.

- Está louco? Prometemos voltar quando soassem os sinos ou às seis da tarde!

Não respondo. Fico quieto a rabiscar. O sol vai se pondo agora, e os sinos não

soaram. Estão todos alegres, pois é melhor ficar pobre do que morrer. Breve

desceremos e todos não cabem em si de ansiedade: o que encontraremos em

nossa cidade? Divirto-me pensando no que encontraremos; sei que quando

chegarmos será como se eu já tivesse visto tudo (o que, segundo o doutor, é

comum em minha doença): a rua vazia, as portas do banco escancaradas, o cofre

vazio. Acho também que na estrada, muito longe, vai um homem alto a cavalo,

com os alforjes cheios de notas. Talvez sejam três ou quatro, mas é certo que o

homem alto vai rindo.

(SCLIAR, Moacyr. Histórias Divertidas – Para Gostar de Ler – vol. 13. São Paulo: Ática, 2005)

Agora, responda.

1. A narrativa começa com a frase: “Agora é como um piquenique: estamos no

Morro da Viúva...”

a) A quem se refere o sujeito oculto nós?

b) Quem é o personagem-narrador incluído neste nós?

c) Com que expressão apositiva ele se define?

2. No conto “Piquenique”, podemos perceber um conflito, ou seja, um fato que

desestabilizou a rotina dos moradores da pequena cidade na manhã do dia em que o

conto está sendo narrado.

a) Qual é este fato?

b) Qual a reação dos moradores a ele?

3. No segundo parágrafo, o personagem-narrador apresenta a cidade onde

ocorre a narrativa:

a) Como ele a apresenta?

b) Como ele se apresenta neste contexto?

c) Considerando a descrição da cidadezinha, podemos dizer que há também um

segundo momento de desestabilização da rotina da cidade: qual é?

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4. Releia o terceiro parágrafo e responda:

a) “Às seis horas da tarde...” – refere-se às 18 horas do dia do piquenique do

primeiro parágrafo? Justifique.

b) “naquele momento, tive a certeza de que já o vira antes...” – especifique a

referência do pronome o.

5. Ainda no terceiro parágrafo, há um longo trecho em que há uma descrição

de um ataque epiléptico e da reação das pessoas a ele:

a) O trecho fala de um ataque epiléptico específico, ou seja, que estava

acontecendo naquele momento da narrativa ou dos ataques que o personagem

costumava ter?

b) Que recurso linguístico foi usado para que o leitor fizesse essa interpretação

do ataque?

c) Como as pessoas reagiam a estes ataques?

d) Em relação ao delegado, qual a impressão que o narrador tinha sobre o

home alto e como o médico a interpretava?

e) Após o ataque epiléptico, como o personagem-narrador se sentia e qual

atitude tomava habitualmente?

6. Volte ao quarto parágrafo:

a) Explicite a referência das palavras destacadas em:

“Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num

pedacinho de papel amarelado...” e

“Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU FRENTE À IGREJA:”

b) Relacione o fato de o papel estar amarelado com a resposta dada na questão

5 letra e acima.

c) No momento em que o delegado discursava para o povo na praça, onde

estava e o que fazia o protagonista do conto?

7. Releia o sétimo e o oitavo parágrafos e conclua como reagiram as pessoas

da cidade à notícia dada pelo delegado e como o delegado reagiu à atitude delas.

8. Do nono ao décimo nono parágrafos, apresenta-se a cena do diálogo entre o

protagonista do conto e o antagonista. Releia-os e responda:

a) O que irritou o delegado?

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b) O que há em comum entre esta cena e aquela descrita no início do terceiro

parágrafo?

9. Releia do 20º ao 26º parágrafo:

a) Levante uma hipótese sobre o que aconteceu com o personagem-narrador

entre o ataque epiléptico iniciado no 19º parágrafo e a sua chegada ao morro.

b) Explicite a interpretação ingênua que a população deu ao fato contrapondo-

a àquela feita pelo protagonista do conto.

c) O que possibilitou ao protagonista esta interpretação mais realista?

10. Retire de cada parágrafo abaixo um exemplo de que o autor deixou pistas

que antecipavam o final:

a) 3º parágrafo:

b) 4º parágrafo:

c) 7º parágrafo:

d) 21º parágrafo:

11. Discuta a afirmação: no conto lido, além do conflito estabelecido pela

notícia dada pelo delegado, podemos dizer que há outro interno ao personagem-

narrador.

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Apresentamos, a seguir, o início de dois contos de escritores brasileiros. Escolha um deles e dê continuidade à narrativa.

Trecho 1

Ouvi primeiro o ruído de cascos pisando a grama, mas continuei

deitado de bruços na esteira que havia estendido ao lado da barraca.

Senti nitidamente o cheiro acre muito próximo. Virei-me devagar, abri

os olhos. O cavalo erguia-se interminável à minha frente. Em cima dele

havia uma espingarda apontada para mim e atrás da espingarda um

velhinho de chapéu de palha, que disse logo o seguinte: [...]

(Piroli, Wander. In: Malcom Silverman. O novo conto

brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 203.)

Trecho 2

Era um pequeno marinheiro com sua blusa de gola e seu gorro,

na rua deserta que a madrugada já tornara lívida. Talvez não fosse tão

pequeno, a solidão da rua é que o fazia menor entre os edifícios.

Aproximou-se de uma grande porta e bateu com os nós dos

dedos. Ninguém abriu. Depois de uma pausa, voltou a bater. [...]

(Braga, Rubem. Os melhores contos. São Paulo: Global,

1985. p. 51.)

Ao produzir seu texto, siga estas orientações:

a) Tenha em mente que seu conto será lido por colegas, professores, familiares e

amigos;

b) Antes de escrever, imagine o conflito, ou seja, a situação problemática que as

personagens viverão, e como ocorrerá sua superação. Além disso, planeje a

organização dos fatos, estruturando o enredo em partes (introdução, complicação,

Conto

PROPOSTA DE PRODUÇÃO TEXTUAL 1

Instruções

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clímax e desfecho) ou encontrando uma maneira

de subverter essa estrutura. Aproveite que a

introdução já está feita e capriche nos demais

elementos.

c) Ao redigir, empregue a variedade padrão da

língua ou outra, dependendo de quem é o

narrador. Faça inicialmente um projeto e, antes

de passar seu conto a limpo, revise-o

cuidadosamente, seguindo as orientações do

boxe (Avalie seu conto). Refaça o texto quantas

vezes achar necessário.

Avalie seu conto

Observe:

se seu conto é uma narrativa

ficcional curta;

se apresenta poucas

personagens, poucas ações e

tempo e espaço bem reduzidos;

se o enredo está estruturado em

introdução, complicação, clímax e

desfecho (ou se subverte

intencionalmente essa estrutura);

se a linguagem empregada está

de acordo com o perfil do narrador

e das personagens.

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Referência: CEREJA, W. R. , MAGALHAES, T.C. Todos os textos, 8ª série. 2ª Ed. reform. São Paulo: Atual, 2003.

O Peru de Natal

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida

cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós

sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade:

gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades

econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser

desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no

medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas

felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira,

coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos

desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades

do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente

do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança

dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu

sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram

lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada

pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais

por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer

o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de

fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a

minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os

tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos;

desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha,

uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei,

de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta

parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais

falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando

exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem

de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me

salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se

realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado.

Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um

nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina:

ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo.

Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa

dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se

abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas

"loucuras":

Conto EXEMPLOS COMPLEMENTARES

Conto 2

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— Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia

solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar

ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a

gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda

essa parentada do diabo...

— Meu filho, não fale assim...

— Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-

que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra

desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de supetão

uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã,

as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha

aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de

festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por

causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já

não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios

finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos

pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do

peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda

provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo

era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém

sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E

havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com

bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que

havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na

casa da Rose, muito minha companheira. [...]

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num

desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era

loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando

muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus

desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até

que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem

mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me

lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa

aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada.

E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos

dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo

que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo

o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da

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ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido

numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim,

que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais.

E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em

cada um o que a cotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão

de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de

burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um

Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo!

"É louco, mesmo!" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira

naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e

principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja.

Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no

prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada da mamãe cortou o espaço

angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da

Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que

eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando.

Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou

no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a

torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos

desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta

que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é

que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a

imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra

sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A

carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das

farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela

intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de

noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma

incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era

manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que

gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o

partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de

vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa,

insuportavelmente obstruidora.

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— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me

interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que

inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que

hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu

pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de

tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi

não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi

diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos

comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se

sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão

pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação

agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém,

puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador,

completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever

“felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um

amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande

amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família,

o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo,

mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra

nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa

que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer

mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que

uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois

vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de

"bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de

meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de

contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas

garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa,

porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose,

prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a

uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia

e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora,

Rose!...

(Mario de Andrade. In: Herberto Sales, org. Antologia escolar de contos brasileiros. Rio de

Janeiro: Ediouro. p. 69-76.)

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Mário de Andrade (1893-1945), nasceu em

São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela

música e literatura. Seu interesse pelas artes

levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com

Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna,

que rasgou novas perspectivas para a cultura

brasileira. Sua obra, essencialmente brasileira,

reflete um nacionalismo humanista, que nada

tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada

em temas folclóricos é, geralmente, considerada

a sua obra-prima.

A moça rica

A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão

velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho de cavalo;

depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma

lamparina.

Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara

galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito

rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com

espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros,

saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos

todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos

nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do Sertão e uma canção

antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era

uma canção triste.

Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a

adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da

adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E

amaria o rapaz de suéter e sapado de basquete, que costuma ir ao Rio, ou

(murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um

automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre

flaubert, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar

nem com motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.

obstruente: bloqueadora.

reles: comum, sem importância, insignificante.

incandescente: em brasa.

sublime: grandioso, majestoso, extraordinário.

fagueira: suave, agradável, doce.

gabar: elogiar perante todo o mundo, vangloriar-se,

tentando impressionar.

Conto 3

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Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu

viajava a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu

adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na

manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-

dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando

e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as

duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pela escura e

suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar

fino da manhã.

E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu

fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com

calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com

vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia,

deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos.

Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou

da minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a

ponta do Boi até perto da lagoa.

De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata

sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.

Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu

disse: “Não é isso”. Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa.

Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus

muito alegre; no dia seguinte, foi-se embora.

Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns

camarões vivos para isca; e o relincho diante de um cavalo me fez lembrar a moça

bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem

ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto

adiantasse alguma coisa.

(BRAGA, Rubem. Os melhores Contos de Rubem Braga. São Paulo: Global, 1985, p. 39-40)

batelão: canoa pequena.

choça: cabana, habitação humilde e pobre.

resfolegar: respirar com esforço e/ou ruído.