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Lei 13.964/2019 Coordenação: Gabriel Habib Adriano Sousa Costa Alessandra Leal Brasil Álvaro Antanavicius Fernandes Américo Bedê Junior André Mauro Lacerda Azevedo Bruno Gilaberte Bruno Montenegro Ribeiro Dantas Carlos Eduardo de Araújo Rangel Carlos Eduardo Pellegrini Cleopas Isaías Santos Cristiano Jomar Costa Campidelli Daniel Diamantaras de Figueiredo Décio Alonso Gomes Denis Sampaio Diogo Mentor de Mattos Rocha Fábio Roque Araújo Fernando Cocito Fernando Hugo Miranda Teles Filipe Maia Broeto Flávio Milhomem Francisco de Aguilar Menezes Francisco Sannini Franklyn Roger Alves Silva Gabriel Habib Gustavo Senna Henrique Hoffmann Leonardo Schmitt de Bem Luis Brodt Luíza Borges Terra Marcelo Lebre Marcelo Rodrigues da Silva Márcio Alberto Gomes Silva Márcio Schlee Gomes Marcos Paulo Dutra Murillo Ribeiro de Lima Orlando Faccini Neto Paulo Freitas Paulo Sumariva Pedro Rabello Mariú Pietro Chidichimo Junior Renato Kramer Rogério Greco Ruchester Marreiros Barbosa Thiago Grazziane Gandra Victor Augusto Estevam Valente Wilson Luiz Palermo Ferreira PACOTE ANTICRIME TEMAS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS 2020

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Lei 13.964/2019

Coordenação:

Gabriel Habib

Adriano Sousa CostaAlessandra Leal Brasil

Álvaro Antanavicius FernandesAmérico Bedê Junior

André Mauro Lacerda AzevedoBruno Gilaberte

Bruno Montenegro Ribeiro DantasCarlos Eduardo de Araújo Rangel

Carlos Eduardo PellegriniCleopas Isaías Santos

Cristiano Jomar Costa CampidelliDaniel Diamantaras de Figueiredo

Décio Alonso GomesDenis Sampaio

Diogo Mentor de Mattos RochaFábio Roque Araújo

Fernando CocitoFernando Hugo Miranda Teles

Filipe Maia BroetoFlávio Milhomem

Francisco de Aguilar MenezesFrancisco Sannini

Franklyn Roger Alves Silva

Gabriel HabibGustavo SennaHenrique HoffmannLeonardo Schmitt de BemLuis BrodtLuíza Borges TerraMarcelo LebreMarcelo Rodrigues da SilvaMárcio Alberto Gomes SilvaMárcio Schlee GomesMarcos Paulo DutraMurillo Ribeiro de LimaOrlando Faccini NetoPaulo FreitasPaulo SumarivaPedro Rabello MariúPietro Chidichimo JuniorRenato KramerRogério GrecoRuchester Marreiros BarbosaThiago Grazziane GandraVictor Augusto Estevam ValenteWilson Luiz Palermo Ferreira

PACOTE ANTICRIME

TEMAS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS

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A PRISÃO DECORRENTE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA NO TRIBUNAL DO JÚRI E A LEI Nº 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO

DE 2019: UM OLHAR A PARTIR DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Álvaro Antanavicius Fernandes1 e Luíza Borges Terra2

Sumário: 1. Delimitação do problema – 2. Estrutura processual penal acusatória, prisão provisó-ria e presunção de inocência: considerações a partir da Constituição Federal: 2.1. Notas prévias; 2.2. As prisões decorrentes da pronúncia e da sentença condenatória recorrível; 2.3. A prisão em segunda instância: o HC nº 84.078/MG, o HC nº 126.292/SP e as Ações Diretas de Constitucio-nalidade nº 43 e nº 44; 2.4. A prisão decorrente da sentença condenatória no Tribunal do Júri e a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 – 3. Presunção de inocência e soberania dos vereditos: uma necessária resolução de um conflito (só) aparente – 4. Considerações finais – Bibliografia.

1. DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA

Um rigor desnecessário aplicado a alguém, por sua simples condição de suspeito do cometimento de um crime, sempre foi, é e sempre será ilegítimo.3 A questão da prisão preventiva (sem pena), por isto, é um dos temas mais de-licados no âmbito do processo penal, tendo em vista que está umbilicalmen-

1. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

2. Advogada. Professora de Pós-Graduação da UNIFIL. Vice-Presidente da ANACRIM/PR. Doutoranda em Direito Penal Econômico pela Universidad Pablo de Olavide.

3. MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. Tomo III. Buenos Aires: Ad Hoc, 2015, p. 378.

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te vinculado a um dos mais sagrados direitos do homem: a liberdade.4 Esta, por isto, somente poderá ser restringida a partir de um devido processo penal (Constituição Federal, art. 5º, LIV), invariavelmente observados os princípios e normas constitucionais aplicáveis – lembre-se que o processo penal, no dizer de HENKEL, consiste no Direito Constitucional aplicado.

Pois bem. No Tribunal do Júri, cabe ao juiz-presidente, ao proferir sentença condenatória, decidir sobre a decretação (ou não) da prisão do acusado (Có-digo de Processo Penal, art. 492, I). Esta prisão, eventualmente decretada, será sempre preventiva, imposta como medida de cautela (subordinada, portanto, aos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, tal como qualquer outra porventura infligida previamente à produção da coisa julgada), notadamente por força do princípio constitucional da presunção de inocência.5

4. Falar de “ser livre” ou de “liberdade” significa fazer alusão a um momento absolutamente decisivo e essencial – o próprio e constitutivo modo de ser – da pessoa humana. (MIRAN-DA, Jorge. MEDEIROS, Rui. Constituição portuguesa anotada. Tomo I. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 637).

5. Pode-se, dentre infinitas outras, citar decisão proferida pelo SUPREMO TRIBUNAL FE-DERAL, cujo relator foi o Ministro CELSO DE MELLO, dispondo que “a prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressu-postos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício su-ficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.” Conforme constou do voto, “a prisão cautelar não pode – nem deve  – ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar – que não deve ser confundida com a prisão penal – não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal” (STF, HC nº 85.538/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe 05.06.2013). Segundo constou da decisão, “a prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, para-doxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Cons-tituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como culpado, qualquer que seja o ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O prin-cípio constitucional do estado de inocência, tal como delineado em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário.”

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CAP. 3 • A PRISÃO DECORRENTE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA NO TRIBUNAL DO JÚRI E A LEI Nº 13.964

Sem embargo, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (HC 118.770 ED/SP) vem há algum tempo entendendo, por alguns de seus membros, não violar “o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apela-ção ou de qualquer outro recurso.” Segundo o Relator do caso acima apontado, Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, é constitucionalmente prevista a sobera-nia dos veredictos expedidos pelo Tribunal do Júri (art. 5º, inciso XXXVIII, c), não sendo permitido aos tribunais, portanto, substituir a decisão adotada pelo órgão colegiado. Por tal razão, não haveria que se falar em violação ao princí-pio da presunção de inocência ou da não culpabilidade quando se está a falar de execução provisória da condenação, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso, especialmente diante da impossibilidade de que o Tribunal venha a reapreciar os fatos e provas. A responsabilidade penal do réu já estaria assentada soberanamente pelo Júri.6

Tal entendimento, deveras polêmico, é agora (teoricamente) respaldado pelo disposto na lei recente (o vulgarmente denominado “Pacote Anticrime”), a qual prevê expressamente o imediato cumprimento da decisão condenatória exarada pelo Conselho de Sentença se presente o requisito temporal.

A questão que surge é: a previsão legal encerra a discussão ou a automática restrição da liberdade a partir da condenação pelo júri deve (ainda) ser discutida a partir dos princípios constitucionais, em especial da presunção de inocência? Este é o problema que se propõe ao desenvolvimento nas linhas que seguem.

2. ESTRUTURA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIA, PRISÃO PROVISÓRIA E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: CONSIDERA-ÇÕES A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

2.1. Notas préviasPreviamente à Constituição Federal de 1988 (e algum tempo após, pelo

menos em legislação infraconstitucional), subsistiam quatro possibilidades de prisão “sem pena” no Código de Processo Penal: a prisão em flagrante (verda-deira medida pré-cautelar prevista nos arts. 301 e seguintes), a prisão preventiva (prevista no art. 312), a prisão decorrente da pronúncia (art. 408, § 1º ) e a prisão decorrente da sentença condenatória recorrível (art. 393, I). Em seguida, a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, veio a instituir a prisão temporária, cujos requisitos estão bem delineados no diploma – mas isto não se quer aqui discutir. Tais modalidades de prisão – à exceção, em princípio, do flagrante delito – pos-

6. STF, HC 118.770 ED/SP, 1a Turma, Rel. Ministro ROBERTO BARROSO, DJe 13.06.2018. Se-gundo o relator, Ministro ROBERTO BARROSO, esta seria a orientação firmada no julgamen-to do ARE 964.246-RG, em que foi relator o Ministro TEORI ZAVASCKI. No mesmo sentido:

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suíam (e possuem, no caso de hipóteses remanescentes) inegáveis pontos de tensão com a ordem jurídico-constitucional então estabelecida.

Centrando a análise nas duas últimas, já revogadas, dispunha o art. 408, § 1º, do Código de Processo Penal, em sua redação à época em que publicada a Constituição Federal, que “na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositi-vo legal em que incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura.” Tal dispositivo legal, com o advento da da Lei nº 9.033, de 2 de maio de 1995, recebeu nova redação unicamente para suprimir a compulsória anotação do nome do réu no rol dos culpados, remanescendo, contudo, a obriga-toriedade do recolhimento ao cárcere como decorrência automática da decisão.

Já o art. 393, I (também do Código de Processo Penal), igualmente em sua redação vigente à época em que publicada a atual Carta Política, estabelecia, como efeito da emissão da sentença condenatória recorrível, “ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, assim como nas afian-çáveis enquanto não prestar fiança.”

Partia-se de uma teórica necessidade de segregação, presumindo-se a pos-sibilidade de fuga caso encaminhado o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri ou se condenado por qualquer crime inafiançável. Assim, ditas espécies de pri-são eram impostas como um efeito direto da pronúncia ou da sentença con-denatória recorrível, conforme o caso, salvo se presentes primariedade e bons antecedentes – ver a Lei nº 5.941, de 22 de novembro de 1973.7

Para além disso, admitia-se, mesmo após a vigência da Constituição de 1988, a prisão após uma condenação em segunda instância. Isto ocorria ao ar-gumento de que o manejo de recursos aos tribunais superiores somente poderia trazer à discussão questões jurídicas. Dizia-se, ainda, que, consoante o art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038/1990, os recursos extraordinário e especial são recebidos no efeito devolutivo, pelo que com o julgamento da apelação estariam exauridas as instâncias ordinárias criminais.8

Note-se, contudo, que a Constituição Federal de 1988 veio a instituir um sistema processual acusatório, conforme constata-se do teor do art. 129, I – se-gundo o qual é função institucional do Ministério Público, dentre outras, “pro-mover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” –, e igualmente em face de outros dispositivos que integram o rol dos direitos fundamentais – contraditório e ampla defesa, excepcionalidade da prisão preventiva, publicida-

7. CRUZ, Rogério Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, p. 55.

8. Dentre muitas decisões, ver, como exemplo: STF, HC 74.983, Rel. Ministro Carlos Velloso, j. em 30.06.1997.

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de dos atos processuais, etc., são, pois, princípios estabelecidos que claramente demonstram a opção pelo sistema processual de partes.9

Na esteira da adoção do sistema acusatório, o art. 5º, LVII, passou a dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de senten-ça penal condenatória”, inserindo expressa previsão, no Brasil, do princípio da presunção de inocência. A sedimentação deste postulado (da presunção de ino-cência), vale sublinhar, representa acima de tudo um “ato de fé” no valor ético do ser humano,10 constituindo-se em uma das principais linhas orientadoras do processo penal em um Estado de Direito. É por meio dele que melhor se concretizam os objetivos de justiça e a proteção dos direitos fundamentais de uma pessoa acusada que, ao final, pode vir a ser declarada inocente.11 Em outras palavras, utilizando termos empregados por ALBERTO BINDER, o processo penal prévio a uma eventual condenação constitui a garantia mais básica, ou uma fórmula sintética que marca o ponto de máxima vigência de todas garan-tias penais e processuais penais constitucionalmente previstas.12

A inserção do princípio, é evidente, haveria de produzir reflexos no cam-po processual penal, especialmente no âmbito das prisões cautelares (embora não só), considerando-se a notória incompatibilidade de muitos dispositivos do Código de Processo Penal com a nova ordem constitucional estabelecida. Por isto, ainda que possivelmente com alguma demora, a jurisprudência passou a observar a mudança.

Examinar melhor tal questão (e sua superação) como ponto importante à obtenção de uma resposta ao problema proposto é tarefa para o item subsequente.

2.2. As prisões decorrentes da pronúncia e da sentença condenató-ria recorrível

Inicia-se pela prisão decorrente da pronúncia, definida esta como a decisão processual interlocutória (e não sentença, porquanto não põe termo ao processo, senão que apenas encerra uma fase procedimental) de cunho declaratório em que

9. FERNANDES, Álvaro Antanavicius. O procedimento do júri no Brasil: proposta de um novo modelo conforme o sistema processual de partes. “In” Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. Organização de Leonel Gonzáles. Santiago: Centro de Estudios de Justicia de las Americas, 2017.

10. SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. Volume I. Lisboa: Editoral Verbo, 1994, p. 71-72. Ver também NEVES, Antonio Castanheira. Sumários de Processo Criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1968, p. 26.

11. VILELA, Alexandra. Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 92.

12. BINDER, Alberto M. Introdución al derecho procesal penal. Buenos Aires: Ad Hoc, 1999 (reimpressão em julho de 2000), p. 123.

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o Juiz julga admissível a acusação e torna imprescindível o julgamento pelo Tri-bunal do Júri.13 Na lição acertada de VICENTE GRECO FILHO, a função do juiz no momento da pronúncia seria obstar que alguém que não deva ser condenado o seja em face de um julgamento soberano, cumprindo àquele, então, impedir a submissão a julgamento popular daquele que não deva sofrer a repressão penal.14 Trata-se de uma decisão interlocutória mista, de natureza jurídica similar à da decisão que recebe a denúncia. Isto porque, segundo MARIA LÚCIA KARAM, tratam-se ambas de decisões nas quais é exarado um juízo positivo sobre a admis-sibilidade da imputação. Contudo, no caso do procedimento para apuração dos delitos dolosos contra a vida pretendeu-se (acertadamente ou não) que o controle sobre a acusação se realizasse com maior rigor, seja pela maior repercussão social do processo, seja porque – sendo o Conselho de Sentença formado, em regra, por pessoas sem formação técnica – se entendeu que deveria haver maior cautela com o escopo de obstar o prosseguimento de casos penais temerários.15

Todavia, com a pronúncia impunha-se, em regra, o compulsório recolhi-mento do réu ao cárcere. Tal determinação legal era objeto de severa crítica doutrinária, acertadamente afirmando MARIA LÚCIA KARAM inexistir qual-quer razão justificadora no sentido de que tal decisão viesse a constituir novo tí-tulo legitimador de uma diversa constrição cautelar. Além disso, diz ela, a regra legal evidentemente funcionava em desfavor do princípio da excepcionalidade da prisão provisória, tornando esta uma imposição automática, reservada a li-berdade unicamente a réus primários ou para casos de crimes “afiançáveis”.16

A sentença, por sua vez, é a decisão pela qual o juiz julga o mérito da preten-são penal, resolvendo-a em todas as etapas possíveis: imputação da existência do fato e da autoria, e ainda o juízo de adequação ou valoração jurídico-penal

13. MARQUES, José Frederico. A Instituição do Júri. São Paulo: Saraiva, Volume I, 1963, p. 261.14. FILHO, Vicente Greco. Questões polêmicas sobre a pronúncia. “In” Tribunal do Júri: Estudo

sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. Coordenação Rogério Lauria Tucci. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 119.

15. KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, presunção de inocência e prisões provisórias. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 47-48. Prossegue a autora: “Por isso, em tal procedimento, o pronuncia-mento do juiz sobre a admissibilidade da demanda se faz em duas etapas: a primeira, como em qualquer espécie de procedimento, quando da propositura da ação, em que o controle é mais limitado, porque feito apenas com base nas provas apresentadas no inquérito policial ou em outras peças de informação que acompanhem a petição inicial, e a segunda, feita ao final da instrução preliminar, quando, produzidas as provas sob o contraditório, conhecida a defe-sa. Disporá o juiz de elementos mais seguros para determinar se efetivamente a acusação se manifesta de forma séria e idônea.” (KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, presunção de inocência e prisões provisórias. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009, p. 48).

16. KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, presunção de inocência e prisões provisórias. Rio de Janei-ro: Lúmen Juris, 2009, p. 48.

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da conduta.17 Como visto acima, também a sentença condenatória, mesmo que passível de recurso, implicava no dever de recolhimento do réu à prisão. E, aqui, igualmente urgia que se viesse a trilhar o caminho da inconstitucionalidade da imposição do recolhimento automático ao cárcere.

Sem embargo, a jurisprudência era no sentido de refutar tal entendimento, vacilante em proceder a uma renovada interpretação conforme a (nova) Cons-tituição. Tanto é que, precisamente quanto à sentença condenatória recorrível, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA veio a editar a conhecida Súmula nº 09, segundo a qual “a exigência de prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.”

Aos poucos, porém, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL começou a se-dimentar o entendimento de que “a prisão cautelar só se legitima quando se evidencia a sua necessidade cautelar, não cabendo inferi-la exclusivamente da gravidade em abstrato do delito imputado.”18

Em momento posterior, a mesma Suprema Corte reconheceu “que a prisão decorrente de sentença condenatória meramente recorrível não transgride o princípio constitucional da não-culpabilidade, desde que a privação da liberda-de do sentenciado – satisfeitos os requisitos de cautelaridade que lhe são ineren-tes – encontre fundamento em situação evidenciadora da real necessidade de sua adoção.” Conforme assinalado, “a privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe – além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) – que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.”19

Finalmente, por certo ante os sucessivos questionamentos acerca da (in)constitucionalidade, foi editada a Lei nº 11.689, de 09 de junho de 2008, que ex-pressamente revogou o disposto no art. 408, § 1º, do Código de Processo Penal, introduzindo um novo rito para apuração dos delitos dolosos contra a vida. Foi igualmente editada a Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que alterou o pro-cedimento comum, na qual revogado o disposto no art. 594 do Código adjetivo.

Ao fim, então – e tal é relevante para as ponderações postas na sequência –, o que se percebe das lições doutrinárias e das decisões acima transcritas é que

17. PACELLI, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011, p. 571.

18. STF, HC 69.818/SP, 1a Turma, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJe 27.11.1992.19. STF, HC 89754, 2a Turma, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, DJe 27.04.2007.

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toda a transformação legislativa ocorreu com o propósito de adaptar a legis-lação aos ditames constitucionais, em especial ao princípio constitucional da presunção de inocência, vedando-se, em regra, a imposição da prisão sem pena, ressalvadas as hipóteses de cautelaridade. Em síntese: toda prisão (por culpa) fica condicionada à expedição de um decreto condenatório definitivo que venha a declarar a prática, pelo réu, da conduta penalmente censurável.

2.3. A prisão em segunda instância: o HC nº 84.078/MG, o HC nº 126.292/SP e as Ações Diretas de Constitucionalidade nº 43 e nº 44

Como se sabe, sempre existiu discussão acerca da possibilidade da prisão após a condenação em segunda instância. No passado admitida, veio após a con-solidar-se no SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por meio da decisão proferida no HC nº 84.078/MG – proferida em 05 de fevereiro de 2009 –, o entendimento de que é inconstitucional a chamada execução provisória da pena. Conforme a Suprema Corte, a adoção do princípio constitucional da presunção de inocência faz com que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente possa ser decretada a título cautelar. Segundo expressamente consignado, “nas demo-cracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualida-de, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.”20

Assim, como bem adverte ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, a partir desta de-cisão, passou-se a não mais admitir a prisão decorrente de acórdãos condena-tórios proferidos em segunda instância se pendentes decisões de recursos inter-postos aos tribunais superiores.21 Ao que se percebe da transcrição posta no pa-rágrafo anterior, o pronunciamento fundou-se nos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência.

Tal entendimento vigorou até 17 de fevereiro de 2016 quando foi, então, proferida decisão no HC nº 126.292/SP, embrião de um novel entendimento, na qual foi dito que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferi-do em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirma-do pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.” No decorrer do voto pro-

20. STF, HC 84.078/MG, Tribunal Pleno, Rel. Ministro EROS GRAU, DJe 26.02.2010.21. CRUZ, Rogério Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Salvador: Editora

Juspodivm, 2017, p. 272.

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ferido pelo Ministro TEORI ZAVASCKI, ainda que ressalvada a necessidade de que sejam mantidas reservas de dúvidas quanto ao comportamento contrário à ordem jurídica em momento anterior à sentença condenatória, foi dito que “a execução provisória de acordão penal condenatório proferido em grau de ape-lação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.”

Recentemente, contudo, quando do julgamento das Ações Diretas de Cons-titucionalidade nº 43 e nº 44, tornou o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL a exarar pronunciamento no sentido da constitucionalidade do art. 283 do Có-digo de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Em um momento inicial, insta sublinhar, de forma contrária ao que se poderia esperar frente a garantia constitucional da presunção de inocência, as liminares postuladas nestas ações foram indeferidas, remanescendo, assim, a possibilidade de execução antecipada de pena.22 Ao final, entretanto, quando do julgamento do mérito, entendeu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como referido, entendeu pela impossibilidade de determinação do cumprimento de pena na ausência do trânsito em julgado.

É bem verdade que a decisão foi tomada pelo apertado placar de seis vo-tos contra cinco e que um decreto judicial, ainda que proferido por uma Corte Suprema, não pode ficar imune a críticas. Todavia, a análise dos votos proferi-dos pelos onze ministros, com acurada cautela, permite concluir que a posição majoritária efetivamente reflete a melhor interpretação a partir do princípio da presunção de inocência, já objeto de análise no decorrer deste texto.23

22. A liminar votada teve um placar de seis a cinco, prevalecendo a posição de que após a segun-da instância deveria iniciar a execução antecipada da pena e a aguardar executando a pena o resultado dos recursos e decisões dos órgãos colegiados superiores.

23. Quanto aos votos vencidos, estariam estes a revelar indisfarçável preferência por quatro linhas discursivas – a sistematização é formulada por MAURÍCIO DIETER –, a saber: (a) uma primeira pretende que a garantia do estado de inocência antes do trânsito em julgado constitua mero princípio passível de relativização com o propósito de satisfação de outros interesses de falsa equivalência. Supõe-se, assim, a viabilidade de uma norma ante certas circunstâncias a fim de obter uma suposta “adequação constitucional”. Ocorre, contudo, que o direito fundamental consistente em não ser preso senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é regra que não possui qualquer exceção, não sendo por ou-tra razão que a prisão processual tem natureza jurídica distinta; (b) uma segunda tende a subordinar a presunção de inocência a um vetor decrescente, conforme avança o processo. Assim, à medida que o rito avança, mitigada ficaria aquela presunção. O ponto de partida consistiria em uma conveniente confusão entre inocência e não-culpabilidade. Uma vez que as decisões de primeiro e segundo graus venham a afirmar, ainda que em momento prévio aos eventuais recursos aos Tribunais Superiores, a reprovabilidade da conduta imputada, o acusado já não seria (tão) presumivelmente inocente; (c) uma terceira tem por base a “von-tade da sociedade” (da zona sul do Rio de Janeiro), justificando medidas urgentes a partir de

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2.4. A prisão decorrente da sentença condenatória no Tribunal do Júri e a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019

Agora, o art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela nova lei, passou a estabelecer que o Juiz, em decorrência da sentença penal condenatória, “mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição de mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento dos recursos que vierem a ser interpostos.”

Tal determinação, contudo, particularmente com relação à parte em que pre-vista a prisão imediata a partir da quantidade da pena, demanda algumas reflexões.

Em primeiro lugar, percebe-se que todas as prisões revestidas de “automati-cidade” (decorrente de pronúncia e de sentença condenatória recorrível, e igual-mente a derivada de uma condenação em segunda instância), anteriormente previstas em lei, tiveram sua inconstitucionalidade atestada em decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência. Em alguns casos, houve superveniente legislação revogando expressamente dispositivos que as previam. Isto foi, com minúcias, examinado nos itens precedentes, razão pela qual surge

uma situação excepcional. Tratar-se-ia de um censurável retrocesso, aprofundando-se a cri-se de legitimidade por que passa o Poder Judiciário quando se desloca o fundamento de sua autoridade para o terreno movediço da opinião pública. Renuncia-se ao que está legalmente posto em nome de um combate à corrupção, etiquetando-se os opositores de “inconsequen-tes profissionais pró-impunidade”, ou “sombras anacrônicas que impedem a aurora de uma nova ética juridicamente tutelada”; e (d) uma quarta tem por base a manipulação dos nú-meros para justificar as convicções reveladas. Mera coleta de dados, organizada na intimi-dade do próprio gabinete, a qual, sem embargo, ignorou “qualquer baliza metodológica para fundamentar a afirmação triunfante de que a “criminalidade” responde mecanicamente às decisões do Supremo Tribunal Federal.” Buscam-se dados para confirmar opiniões, ao invés de emprega-los para formulá-las. Conclui ele, ao fim do texto: “Em conclusão, é possível afirmar com bastante segurança, que não há muita ciência por trás da tentativa de ignorar a exegese dos direitos fundamentais como limite à violência estatal. Em sentido oposto, o voto do Ministro Celso de Mello, em sua exposição linear, didática e teoricamente coerente, deve servir de modelo para decisões futuras em matéria penal, ao demonstrar a força da razão técnica diante das pretensões punitivas, concretizando a vocação do Direito como fronteira do arbítrio: que o voto do decano possa iluminar a sombra do punitivismo populista por muito tempo ainda. É preciso estar atento e forte: muito em breve, embalados por esses ou outros argumentos, seremos confrontados com novas tentativas de legitimar o retrocesso em matéria de direitos humanos. E nesse embate, a posição intransigente em favor do direi-to à inocência plena antes do trânsito em julgado de sentença condenatória não deve ceder um milímetro sequer. Os incomodados que busquem uma Constituição para chamar de sua.” (DIETER, Maurício Stegemann. Breve taxionomia da argumentação inconstitucional. “In” Boletim IBCCrim nº 326, Janeiro de 2020).

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a pergunta: por qual razão a prisão determinada a partir da condenação pelo Tribunal do Júri não estaria a ferir o aludido princípio? Este um ponto para o qual não se tem resposta, devendo-se, atentar, contudo, para a necessidade de uma coerência mínima na interpretação da lei com o fim de propiciar uma maior segurança jurídica.

Outra questão: o Tribunal do Júri é um órgão de primeiro grau. Recen-temente, defenderam alguns a possibilidade de prisão em segunda instância – execução provisória da pena – com substrato no argumento de que os recursos aos tribunais superiores não se podem discutir questões de fato. Tal entendi-mento restou fulminado ante a decisão acerca da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, ponto já acima analisado. Assim, se isto (pri-são em segunda instância) não se mostra possível mesmo diante dos (improce-dentes) argumentos levantados pelos defensores da medida, como sustentar a possibilidade jurídica da prisão em primeira instância quando se sabe que até o mérito pode ser revisto?24

Mais um problema: um determinado acusado vem a ser condenado pelo Tribunal do Júri, sendo a ele imposta uma pena, por exemplo, de dezesseis anos de reclusão. Ao examinar o recurso, entende a segunda instância por revisar o apenamento para fixar uma sanção privativa de liberdade de quatorze anos de reclusão, por exemplo. Já não caberia, então, aquela prisão “automática”, que teria sido, em concreto, equivocadamente imposta.

Assim, cabe indagar: como apagar, em tais hipóteses, os nefastos efeitos que se produziram a partir do equívoco judicialmente reconhecido? Poder-se--ia argumentar que a pena continuaria a ser cumprida em regime inicialmente fechado e que haveria detração do tempo cumprido. Contudo, crê-se que tal raciocínio não desconstrói a necessidade de observância de um devido processo legal, sendo certo que não se defere ao Juiz-Presidente escolher o momento em que o réu irá iniciar o cumprimento da pena imposta. Este é, evidentemente, fixado em Lei, em seu sentido amplo.

Uma hipótese diversa, mas na mesma linha: réu é condenado ao cumpri-mento de idêntica pena (dezesseis anos), determinando-se sua prisão. Sobre-vém recurso defensivo com base no art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, sendo determinada a realização de novo julgamento ante o acolhimento das ponderações lançadas na inconformidade, advém julga. O réu é, na nova solenidade, absolvido. Tal hipótese não é, pois, pouco frequente. De fato, em um determinado processo que tramitou perante a 2a Vara do Júri da Comar-

24. No sentido do texto: JÚNIOR, Aury Lopes. ROSA, Alexandre Morais da. Prisão obrigatória no júri é mais uma vez inconstitucional. “In” https://www.conjur.com.br/2020-jan-31/limite--penal-prisao-obrigatoria-juri-vez-inconstitucional?fbclid=IwAR26K-fIH2_1HCZBrxoRa-pfDFoWwaPbDK2GSc0C22xJWdG90PmE3cquuB9Q. Acesso em 30.01.2020.

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ca de Porto Alegre (processo nº 001/2.10.0050282-0) imputava-se ao réu o co-metimento de um crime doloso contra a vida, vindo ele a ser condenado pelo apertado placar de quatro votos conta três. Reconhecida a nulidade da sessão de julgamento pelo Tribunal de Justiça ao julgar a inconformidade manejada pela Defensoria Pública, restou expedido juízo absolutório em nova solenidade, inclusive em atenção ao pedido formulado pelo Ministério Público.25

Neste caso o réu teria ficado (indevidamente) recolhido ao estabelecimento prisional no período compreendido entre a primeira condenação e a anulação do julgamento, o que fere os mais basilares direitos fundamentais. A injustiça está feita. E não será reparada, pois não há como e quem pague esta conta.

Finalmente, com relação ao requisito temporal, já foi dito que a gravidade do fato é algo que em nada afeta a presunção de inocência, não podendo justificar, ausente uma necessidade demonstrada concretamente, a imposição da prisão. Em outros termos, presume-se o acusado de um homicídio tão inocente como aquele a quem se imputa o cometimento de um furto, por exemplo, somente passível sua condução ao cárcere caso presentes os requisitos de cautelaridade.

Restaria enfrentar, então, o argumento da soberania dos vereditos com substrato derradeiro para justificar a determinação legal. Tal análise é tarefa para o item seguinte.

3. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E SOBERANIA DOS VEREDITOS: UMA NECESSÁRIA RESOLUÇÃO DE UM CONFLITO (SÓ) APA-RENTE

Aqueles que defendem a prisão como efeito da sentença condenatória re-corrível (execução antecipada ou, nos termos empregados na Lei, provisória) o fazem invocando o princípio constitucional da soberania dos vereditos (Cons-tituição Federal, art. 5º, XXXVIII, “c”). Com efeito, conforme consta no voto proferido pelo Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO no julgamento referido acima, quando da delimitação do problema, em se tratando do julgamento de julgamento pelo Tribunal popular, deve-se dar especial atenção “ao princípio constitucional da soberania do Júri, acho que deve prevalecer a sua decisão.”

Vejamos se realmente é assim.A soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição Federal),

em breve definição, consiste na autoridade plena que qualifica a decisão profe-

25. Tratando-se, no caso concreto, de um homicídio simples, a pena imposta foi de seis anos de reclusão em regime semiaberto. Não se cogitaria, assim, da prisão imediata ante o simples acolhimento da pretensão acusatória. Mas e se fosse diferente, apurando-se delito cuja pena imposta viesse a superar os tais quinze anos?

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rida pelo Tribunal do Júri, deferindo-se aos jurados a prerrogativa de decidir, conforme a melhor prova do processo, na direção que entenderem mais justa e coerente. Noutras palavras, pode ser vista como a impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa, tratando-se de uma garantia do acusado que se traduz no direito fundamental de ser julgado por seus “pares”, vedando-se a reforma da decisão por juízes técnicos.26

Não é a soberania dos vereditos (e nem poderia ser), contudo, absoluta. O art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal, permite rediscutir o mérito da decisão naqueles casos em que for “manifestamente contrária à prova dos autos”, assim considerada aquela que não encontra nenhum amparo da prova, que se mostra aberrante, insustentável, completamente divorciada dos elemen-tos probatórios que integram o processo. Neste passo, é evidente que não se pode chegar ao extremo de, invocando o postulado em análise, pretender-se vedar o reexame da matéria pela instância superior, mesmo porque certo que dito princípio constitucional deve coexistir com outros que obviamente lhe vem a limitar.27

A este respeito, aliás, já decidiu o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (HC nº 67.271-0-SP) que a soberania dos vereditos caracterizadora dos julgamentos expedidos pelo Tribunal do Júri não exclui a recorribilidade de suas decisões, sendo assegurada com a devolução dos autos para novo julgamento se cassada a decisão recorrida.28 Em outra decisão, foi igualmente apontado, que “não há afronta à norma constitucional que assegura a soberania dos vereditos do tri-bunal do júri no julgamento pelo tribunal ad quem que anula a decisão do júri sob o fundamento de que ela se deu de modo contrário à prova dos autos.” Ao que constou, o “sistema recursal relativo às decisões tomadas pelo tribunal do júri é perfeitamente compatível com a norma constitucional que assegura a so-berania dos veredictos”, representando “importante medida que visa impedir o

26. FILHO, Pedro Paulo. Grandes Advogados, grandes julgamentos. Campinas: Millennium Edi-tora, 2003, p. 06.

27. Neste aspecto, é certo que a Constituição Federal, no “caput” do art. 5º, assegura o respeito ao direito de liberdade, que somente pode ser sacrificado a partir de casos excepcionais. Correto dizer, igualmente, que a mesma Lei prevê o princípio da presunção de inocência (ou princípio da não-culpabilidade), de forma que somente mediante uma condenação definitiva lastreada em prova robusta pode-se vir a pensar na prevalência do juízo con-denatório. Por fim, ninguém pode pretender discutir que o princípio constitucional da soberania dos veredictos deve ser lido em harmonia com o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição.

28. STF, HC nº 67.271-0-SP, Rel. Ministro CARLOS MADEIRA, DJe 02.06.1989. No mesmo sentido: STF, HC nº 142621 AgR/PR, 1a Turma, Rel. Ministro ALEXANDRE DE MORAES, DJe 29.09.2017, e STF, HC nº 130690 AgR/SP, 1a Turma, Rel. Ministro ROBERTO BARRO-SO, DJe 24.11.2016.

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arbítrio.”29 Realizado o segundo julgamento, mantida a decisão, nenhum outro recurso poderá ser interposto, possuindo inteira aplicabilidade ao caso, então, o princípio da soberania dos vereditos. Mas, ainda assim, com ressalvas.

Isto porque subsiste a possibilidade de que as decisões proferidas pelo Tri-bunal do Júri venham a ser objeto de modificação a partir da propositura da revisão criminal, sem que se tenha por afetada, de modo absoluto, a soberania dos vereditos. Perceba-se, como acima já referido, que observar dita soberania dos vereditos não implica reconhecer sua absoluta imodificabilidade, cumprin-do apontar que quando a lei prevê a possibilidade de propositura de revisão criminal não faz qualquer ressalva quanto às decisões proferidas pelo Tribunal Popular. E isto, no caso, é feito por juízes técnicos.

Daí porque se deve lembrar, com amparo em lição de ADA PELEGRINI GRINOVER, ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO e ANTONIO SCA-RANCE FERNANDES, quando afirmam que a soberania dos veredictos é pre-ceito estabelecido como garantia do acusado, podendo ceder diante de norma que visa exatamente a garantir os direitos de defesa e a própria liberdade.30 SCARANCE FERNANDES, em outra oportunidade – mas tratando do mesmo tema – afirma ser “firme a orientação na doutrina e na jurisprudência de que o Tribunal de Justiça, pode, em sede de revisão criminal, absolver o réu condena-do pelo Tribunal do Júri, com o argumento de que a revisão criminal é garantia implícita da Constituição e, entre as duas garantias, deve prevalecer a mais favo-rável à liberdade, no caso a garantia da revisão sobre a garantia da soberania dos veredictos.”31 Assim sendo, as decisões proferidas pelo Tribunal do Júri, uma vez acobertadas pela coisa julgada material, são passíveis de eventual impugnação pela via da revisão criminal naquelas hipóteses previstas no art. 621 do Código de Processo Penal.

Determinar o imediato – embora provisório – cumprimento da pena priva-tiva de liberdade constitui providência que somente poderia, em tese, ser aceita se restasse possível partir de uma premissa consistente na infalibilidade da deci-são proferida pelo Conselho de Sentença. Contudo, sabe-se que não é assim. O erro potencial, aliás, constitui um dos pressupostos justificadores do duplo grau de jurisdição. A prisão do réu, assim, diz GIACOMOLLI, não é decorrência necessária da decisão condenatória, tampouco da quantidade de pena aplicada. Ela somente deve ser decretada quando presente a necessidade, que se eviden-cia pela presença dos requisitos da prisão preventiva. Neste ponto, se a decisão

29. STF, HC 88.707/SP, 2a Turma, Rel. Ministra ELLEN GRACIE, DJe 16.10.2008.30. GRINOVER, Ada Pelegrini, FILHO, Antonio Magalhães Gomes, FERNANDES, Antonio

Scarance. Recursos no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 249.31. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012,

p. 182.

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condenatória permite afirmar a presença do “fumus comissi delicti”, não basta, contudo, ao encarceramento provisório, sendo indispensável a demonstração da necessidade da prisão com base em elementos concretos – “periculum liber-tatis” (CPP, art. 312). Em regra, se o réu permaneceu em liberdade no decorrer do processo, a ele se deve deferir aguardar o julgamento em estado de liberdade, salvo a existência de algum motivo concreto havido em meio à solenidade que venha a justificar a segregação cautelar após a condenação.32

Por outro lado, aguardar-se o trânsito em julgado para que se dê efetivo cumprimento às determinações sentenciais, incluindo-se eventual cumprimen-to de pena privativa de liberdade, não implica violação qualquer à constitucio-nalmente prevista soberania dos vereditos. A decisão, ainda que somente após o trânsito em julgado possa produzir os seus efeitos, ainda assim permanece com o status de “soberana” no sentido exato em que acima foi examinado. Certa-mente por isto, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA exarou recente entendi-mento de que “a sentença condenatória do Tribunal do Júri não é prontamente exequível. A sua execução provisória está condicionada ao exaurimento da ju-risdição ordinária. Portanto, será viável somente após o julgamento do respecti-vo Tribunal de apelação que mantenha a condenação do Conselho de Sentença. Esta é a hermenêutica que coaduna a questão jurídica discutida à tese definida pelo STF no ARE 964.246-RG.”33

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, surge inarredável uma conclusão no sentido da in-viabilidade jurídica da execução provisória da sentença penal condenatória. Qualquer norma, tal qual a ora em análise, que pretenda instituir algo nesse sentido é flagrantemente inconstitucional, tendo em vista inequívoca violação ao princípio da presunção de inocência. Aliás, ao longo deste texto pretende-se demonstrar a circunstância de que todas as prisões automaticamente impos-tas nos termos da legislação pré-Constituição Federal de 1988 foram revoga-das exatamente com substrato da impossibilidade de que alguém seja levado ao cárcere na ausência de um título condenatório definitivo. Não há, agora, de se retroceder para rever entendimentos acertados adotados pelo Poder Judiciário.

Que não se venha, importante realçar aqui, com o argumento de que a de-cisão exarada pelo Conselho de Sentença é revestida de um manto de soberania e por isto justificada estaria a imediata privação da liberdade. Não. Referida soberania, como visto, é algo instituído para funcionar como uma garantia do

32. GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal. Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 106.

33. STJ, RHC 93520/RS, 5a Turma, Rel. Ministro JORGE MUSSI, DJe 21.02.2019.

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acusado, jamais em seu desfavor. Por tal razão, não pode servir de substrato para imposição de medidas restritivas de direitos de qualquer natureza, espe-cialmente a sagrada garantia da liberdade. Que a Constituição não constitua um simples caderninho com muitas coisas escritas. Que se aguarde, pois, a pro-dução da coisa julgada penal, pois somente ai definitivamente formada a culpa. Que se produzam, a partir de então, os efeitos próprios da condenação.

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CAP. 3 • A PRISÃO DECORRENTE DA SENTENÇA CONDENATÓRIA NO TRIBUNAL DO JÚRI E A LEI Nº 13.964

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A LEI Nº 13.964/2019 E A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA DECORRENTE DAS CONDENAÇÕES DO TRIBUNAL POPULAR DO JÚRI

Américo Bedê Junior1 e Gustavo Senna2

PRENÚNCIO

“Conheço muitas razões pelas quais eu morreria, mas não conheço nenhuma pela qual eu mataria”

(Mahatma Gandhi).

“Esse é nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante, e a primeira vez é sempre a última chance.

Ninguém vê onde chegamos, os assassinos estão livres, nós não estamos”

(Renato Russo).

O presente texto tem por objetivo analisar a possibilidade de execução pro-visória da pena decorrente de condenação oriunda do Tribunal do Júri, que foi instituído pela Lei nº 13.964/19. Para tanto, antes é necessário percorrer alguns caminhos, partindo da Constituição Federal.

1. Juiz Federal. Professor da Faculdade de Direito de Vitória e da Escola de Estudos Superiores do MP-ES.

2. Promotor de Justiça no ES. Professor da Faculdade de Direito de Vitória e da Escola de Es-tudos Superiores do MP-ES.

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AMÉRICO BEDÊ JUNIOR E GUSTAVO SENNA

Pois bem. A Constituição Federal de 1988 inaugura seu artigo 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, destacando o direito à vida a todos os brasileiros e estrangeiros que aqui no Brasil residem, dispondo: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

E essa localização no caput do artigo 5º da CF não foi feita sem razão, uma vez que a vida representa o direito mais relevante de todo homem, pois sem vida sequer existe dignidade da pessoa humana3, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, inc. III). Sem vida não há liber-dade, mas apenas um vazio, já que todos direitos do homem partem do seu direito básico e sagrado de viver, do que se conclui ser a existência humana o pressuposto elementar de todos os demais direitos4. Daí porque estamos diante de um bem intrinsecamente importante, como observa Ronald Dworkin, pois “seu valor é independente do valor daquilo que as pessoas apreciam, desejam ou necessitam, ou do que é bom para elas”5, devendo, desse modo, ser respeitado e protegido por tudo que significa na sociedade6.

Portanto, é inquestionável que o bem jurídico vida reclama uma proteção eficiente por parte do Estado. Nessa linha, qualquer atentado injustificado con-

3. RUSSO, Luciana. Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 91.4. Nessa linha, confira-se o pensamento de Paulo Gustavo Gonet Branco: “A existência huma-

na é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na Constitui-ção e que esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito a vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse” (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 441).

5. DWORKING, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 99.

6. “Seja qual for sua forma ou configuração, a vida de um único organismo humano exige respeito e proteção devido ao complexo investimento criativo que representa e a nosso as-sombro diante dos processos divinos ou evolutivos que geram novas vidas a partir das que as antecederam, diante dos processos de uma nação, comunidade ou língua através dos quais um ser humano irá absorver e dar continuidade a centenas de gerações de culturas e formas de vida e valor, e, por último, quando a vida mental inicia-se e florescer, diante do processo interior de criação e discernimento por meio do qual uma pessoa irá fazer-se e refazer-se, um processo misterioso e inevitável do qual todos participamos e que é, portanto, a mais poderosa e inevitável fonte de empatia e comunhão que temos com cada uma das outras criaturas que se defrontam com o mesmo desafio assustador. O horror que sétimos diante da destruição intencional de uma vida humana reflete nosso sentimento comum e inarticulado da importância intrínseca de cada uma dessas dimensões do investimento feito” (DWOR-KING, Ronald, ibid., p. 116-117).

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CAP. 4 • A LEI Nº 13.964/2019 E A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

tra esse bem merece uma efetiva punição, pois configura um ataque intolerável ao bem jurídico mais relevante do homem. Com efeito, a morte violenta de uma pessoa cometida por outra pessoa é algo muito grave. Interrompe-se não só uma vida, mas também são sepultados sonhos, não só daquele que foi assassi-nado, mas de todos que estão ao seu redor, em especial seus familiares.

Por isso que Nelson Hungria destacava que “o problema da criminalidade é, antes de tudo, o problema da prevenção e repressão do homicídio”7, arrematando:

O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada.8

Logo, considerando a importância da tutela da vida e partindo-se da pre-missa de que a sua eliminação violenta é digna de tutela penal9, a indagação que o presente ensaio busca fazer é como o Estado, em especial a justiça criminal, está respondendo aos ataques intoleráveis à vida humana cometidos pelo pró-prio homem. Existe efetiva punição em relação àqueles que, revelando desprezo por esse bem jurídico intrinsecamente valioso, matam seus semelhantes sem qualquer justificativa constitucional?

Já respondendo a essa indagação, em terras brasileiras infelizmente devemos reconhecer que não. É uma triste constatação, mas na atualidade esse crime atroz, que causa repulsa e terror, parece ter se banalizado na mente e nas ações de algu-mas pessoas, muito por conta de uma escandalosa e grave impunidade, represen-tada não apenas pelo baixíssimo índice de elucidação desses crimes no Brasil10,

7. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V. Arts. 121 a 136. 3 ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1955, p. 26-27.

8. Ibid., p. 25.9. Só por isso é fácil notar como se afigura inimaginável as teses abolicionistas, que na vi-

são de Ferrajoli configura uma utopia regressiva: “O paradoxo, na verdade, está exatamente nas doutrinas abolicionistas de inspiração progressista, vez que o direito penal representa o maior esforço realizado para minimizar e disciplinar o arbítrio e a prepotência punitiva. O abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e humanitários – configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que projeta, sobre pressupostos ilusó-rios de uma sociedade boa ou de um Estado bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal – com seu complexo, difícil e precário sistema de garantias – que constitui, histórica e axiologicamente, uma alternativa progressista” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 317).

10. Somado à tragédia das mortes propriamente ditas, outro dado alarmante ajuda a entender como nossa violência não só permanece alta como segue aumentando em muitos estados: a

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