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138 Revista Linha Direta - Especial 15 anos gestão C omo vimos na edição de agosto da Linha Direta , uma negociação com resultados perde-ganha, inexoravel- mente, se transforma em perde-perde e, mesmo as- sim, muitas pessoas ainda insistem em levar vantagem em tudo. Vou tentar esclarecer isso fazendo uma analogia com costumes e culturas. Por exemplo, você comeria um pastel feito com carne de gato? Tenho perguntado isso a muitas pessoas e, invariavelmente, recebo a mesma resposta: não! Quando, no entanto, pergunto se elas comeriam o mesmo pastel caso não soubessem que a carne era de gato, todas respondem que sim. A conclusão a que chego é de que o problema não está exatamente relacionado com o tipo de carne que está sendo usada no pastel, mas com o fato de se ter ou não a informação sobre a origem dessa carne. Na década de 1980, viajando a serviço, comi carne de cachorro – sem saber, naturalmente –, num elegante res- taurante em Seul, na Coreia. Quando o representante de minha empresa, um brasileiro que morava em Cingapura, informou-me ser de cachorro a carne que estava comendo e que tanto elogiava, não pude acreditar. Para confirmar o que falava, perguntou ao coreano que estava ao seu lado, que respondeu da seguinte maneira: “Sim. Aqui nós come- mos carne de cachorro. Vocês não consomem carne de por- co no Brasil?” Naquele momento, fiquei constrangido, por duas razões: primeiro, porque concluí que havia, mesmo, acabado de comer carne de cachorro; e segundo porque, realmente, o coreano tinha razão: o cachorro, pelo menos em tese, é mais limpo, mais asseado que o porco. Estou narrando este fato para tentar justificar que nossos valores culturais podem ser uma das causas para que as pessoas insistam em negociar visando ao resultado perde-- -ganha. Sem dúvida, é difícil construir um relacionamen- to duradouro, baseado na lealdade e na vantagem mútua, num país onde ainda há leis que não “pegam”; pessoas consomem sem pagar, e impunemente, produtos dentro dos supermercados; os princípios não têm valor (“O senhor sabe com quem está falando?”); as instituições mais res- peitáveis e seus representantes estão desacreditados; va- loriza-se demais a sorte como o caminho mais fácil para a riqueza (jogo do bicho, sena, quina, mega-sena, raspadinha etc.); e ser honesto é sinônimo de ser bobo ou ingênuo. Tais paradigmas culturais cegam as pessoas! Se quisermos, entretanto, estabelecer uma relação digna, saudável e duradoura, seja pessoal ou profissional, deve- mos começar quebrando esses paradigmas. É uma tarefa fácil? Não, claro que não é! Mas é imperativo, se quisermos construir relações duradouras. Costumes e culturas Carlos Pessoa Professor e especialista em Negociação e Gestão Estratégica www.carlospessoa.com.br Revista Linha Direta - Especial 15 anos

Costumes e culturas€¦ · riqueza (jogo do bicho, sena, quina, mega-sena, raspadinha etc.); e ser honesto é sinônimo de ser bobo ou ingênuo. Tais paradigmas culturais cegam as

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Como vimos na edição de agosto da Linha Direta, uma negociação com resultados perde-ganha, inexoravel-mente, se transforma em perde-perde e, mesmo as-

sim, muitas pessoas ainda insistem em levar vantagem em tudo. Vou tentar esclarecer isso fazendo uma analogia com costumes e culturas. Por exemplo, você comeria um pastel feito com carne de gato? Tenho perguntado isso a muitas pessoas e, invariavelmente, recebo a mesma resposta: não! Quando, no entanto, pergunto se elas comeriam o mesmo pastel caso não soubessem que a carne era de gato, todas respondem que sim. A conclusão a que chego é de que o problema não está exatamente relacionado com o tipo de carne que está sendo usada no pastel, mas com o fato de se ter ou não a informação sobre a origem dessa carne.

Na década de 1980, viajando a serviço, comi carne de cachorro – sem saber, naturalmente –, num elegante res-taurante em Seul, na Coreia. Quando o representante de minha empresa, um brasileiro que morava em Cingapura, informou-me ser de cachorro a carne que estava comendo e que tanto elogiava, não pude acreditar. Para confirmar o que falava, perguntou ao coreano que estava ao seu lado, que respondeu da seguinte maneira: “Sim. Aqui nós come-mos carne de cachorro. Vocês não consomem carne de por-co no Brasil?” Naquele momento, fiquei constrangido, por duas razões: primeiro, porque concluí que havia, mesmo, acabado de comer carne de cachorro; e segundo porque, realmente, o coreano tinha razão: o cachorro, pelo menos em tese, é mais limpo, mais asseado que o porco.

Estou narrando este fato para tentar justificar que nossos valores culturais podem ser uma das causas para que as pessoas insistam em negociar visando ao resultado perde---ganha. Sem dúvida, é difícil construir um relacionamen-to duradouro, baseado na lealdade e na vantagem mútua, num país onde ainda há leis que não “pegam”; pessoas consomem sem pagar, e impunemente, produtos dentro dos supermercados; os princípios não têm valor (“O senhor sabe com quem está falando?”); as instituições mais res-peitáveis e seus representantes estão desacreditados; va-loriza-se demais a sorte como o caminho mais fácil para a riqueza (jogo do bicho, sena, quina, mega-sena, raspadinha etc.); e ser honesto é sinônimo de ser bobo ou ingênuo. Tais paradigmas culturais cegam as pessoas!

Se quisermos, entretanto, estabelecer uma relação digna, saudável e duradoura, seja pessoal ou profissional, deve-mos começar quebrando esses paradigmas. É uma tarefa fácil? Não, claro que não é! Mas é imperativo, se quisermos construir relações duradouras.

Costumese culturas

Carlos PessoaProfessor e especialista emNegociação e Gestão Estratégicawww.carlospessoa.com.br

Revista Linha Direta - Especial 15 anos