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 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO FGV DIREITO RIO GRADUAÇÃO EM DIREITO ISABELA SAUD BUENO Criminalização dos Movimentos Sociais RIO DE JANEIRO, JUNHO DE 2010

Criminalização Dos Movimentos Sociais

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  • FUNDAO GETULIO VARGAS

    ESCOLA DE DIREITO FGV DIREITO RIO

    GRADUAO EM DIREITO

    ISABELA SAUD BUENO

    Criminalizao dos Movimentos Sociais

    RIO DE JANEIRO, JUNHO DE 2010

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    FUNDAO GETULIO VARGAS

    ESCOLA DE DIREITO FGV DIREITO RIO

    GRADUAO EM DIREITO

    ISABELA SAUD BUENO

    Trabalho de Concluso de Curso, sob a orientao da professora Lvia Frana, apresentado FGV DIREITO RIO como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em Direito.

    CRIMINALIZAO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

    RIO DE JANEIRO, JUNHO DE 2010

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    FUNDAO GETULIO VARGAS

    ESCOLA DE DIREITO FGV DIREITO RIO

    GRADUAO EM DIREITO

    CRIMINALIZAO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

    Elaborado por: ISABELA SAUD BUENO

    Trabalho de concluso de curso apresentado FGV DIREITO RIO como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em Direito.

    Comisso examinadora:

    Nome do orientador: Lvia Frana

    Nome do Examinador1:

    Nome do Examinador2:

    Assinaturas:

    Professor Orientador

    Examinador 1

    Examinador 2

    Nota Final:

    Rio de Janeiro, Junho de 2010

  • 4

    Dedicatria:

    Dedico aos meus pais em especial minha me Jamile por sempre acreditar em mim.

    Dedico tambm a todos os que lutam por direitos e que acreditam que podem transformar o nosso pas em um lugar mais justo.

  • 5

    Agradecimentos:

    Agradeo equipe da Justia Global por terem me proporcionado o melhor estgio que

    um aluno de Direito pode ter, em especial para a Renata, Sandra e Luciana que

    colaboraram para o meu desenvolvimento pessoal e profissional. Sem elas essa

    monografia no ia ser possvel.

    Agradeo tambm minha orientadora Lvia Frana, que religiosamente s teras me

    encontrava para me dar as ferramentas necessrias em construir esse trabalho de

    concluso.

    Agradeo aos meus amigos por estarem ao meu lado em especial Claricy que atura os

    meus melhores e piores momentos.

    Agradeo aos meus professores da FGV em especial Thamy Pogrebinschi por despertar

    em mim a paixo pela poltica e acima de tudo me fez entender que posso mais do que

    acredito.

  • 6

    RESUMO

    O trabalho tem como objetivo apresentar a temtica da criminalizao de defensores de direitos humanos e movimentos sociais. Tendo em vista os recentes acontecimentos de criminalizao ocorridos no Rio Grande do Sul contra os integrantes do MST se torna essencial a construo de um debate sobre o tema a fim de levantar questes e discutir

    formas de mitigar os eventuais danos causados pela criminalizao.

  • 7

    ABSTRACT

    This paper has the purpose to present the social movements and human rights defender criminalization theme. In view of the recent events happened in Rio Grande do Sul involving members of MST where they were treated as criminals. This theme becomes deeply important in order to bring up questions and debates forms to reduce the eventual damages caused by criminalization.

  • 8

    ABREVIATURAS

    CF/88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988

    DHS Direitos Humanos

    GTNM-RJ Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

    LSN Lei de Segurana Nacional

    MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    MP Ministrio Pblico

    MPF Ministrio Pblico Federal

    MPE Ministrio Pblico Estadual

    ONU Organizao das Naes Unidas

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................10

    1 Defensores de Direitos Humanos ....................................................................................12

    1.1 Criminalizao ............................................................................................................18

    2 Micro anlise da criminalizao Quais as faces da criminalizao?.........................31

    2.1 Judicirio e criminalizao ...........................................................................................33

    3 Estudo de Caso: MST RS.................................................................................................38

    3.1 Da participao do Ministrio Pblico no processo de criminalizao ........................39

    3.2 Da participao do Poder Judicirio .............................................................................42

    3.2.1 Carazinho ................................................................................................................43

    3.2.2 Coqueiros do Sul .....................................................................................................44

    3.3 Da Denncia de lideranas do MST pelo Ministrio Pblico com base na Lei de Segurana Nacional ..................................................................................................................45

    CONCLUSO.........................................................................................................................48

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................50

  • 10

    INTRODUO

    Esse trabalho tem como objetivo apresentar como produzida a criminalizao dos

    defensores de direitos humanos no Brasil. Para isso, vai ser desenvolvido o conceito de

    criminalizao e o contexto histrico no qual ele se intensifica na cena poltica, assim como

    vai ser definido e conceituado o que entende-se como defensores de direitos humanos.

    Para abordar o processo de criminalizao a que esto submetidos amplos setores sociais no

    Brasil preciso discutir, mesmo que de forma breve, a formao do Estado brasileiro e a

    articulao entre os poderes (executivo, legislativo e judicirio) na efetivao de estratgias

    que impedem as lutas sociais por ampliao de direitos. Alm disso, ser preciso observar

    como, sob a tica do neoliberalismo, estimulou-se o crescimento de prticas repressivas e

    punitivas unidas renegao dos direitos sociais.

    Na construo desse trabalho foram utilizadas 03 entrevistas com as pesquisadoras: Ceclia

    Coimbra, Vera Malaguti Batista e Fernanda Vieira. Essas entrevistas foram feitas para o

    Centro de Justia Global nos anos de 2009 e 2010. Essas entrevistas foram de fundamental

    importncia como ponto de partida para a anlise conceitual que enriquecem o debate sobre

    esse tema e fornecem para os defensores novas ferramentas de enfrentamento

    criminalizao.

    J para a construo do captulo 2 o objetivo foi identificar os atores envolvidos no processo

    de criminalizao e os tipos de violao. No captulo 3 relatado o caso emblemtico

    envolvendo a criminalizao dos integrantes do MST no RS. Esse caso foi escolhido para o

  • 11

    desenvolvimento desse trabalho por ter caractersticas prprias da Ditadura e a forma pela

    qual os integrantes foram tratados pelos integrantes do Ministrio Pblico, Judicirio e polcia

    Militar e Federal. Alm de alguns militantes terem sido enquadrados na Lei de Segurana

    Nacional1 pelo Ministrio Pblico Estadual, o qual pediu a extino do movimento social por

    consider-lo uma organizao terrorista.

    So diversas as formas de enfraquecimento que passam os defensores de direitos no Brasil

    desde ameaas de mortes como as execues, tambm carecem de recursos econmicos e

    sofrem o processo de criminalizao. Nesse sentido, torna-se esse trabalho tambm uma

    ferramenta importante para debater um problema que prejudica o fortalecimento da

    democracia no nosso pas.

    1 Dispositivo criado em 1983 pela Ditadura civil-militar brasileira como parte da doutrina de segurana nacional e do combate aos inimigos internos do regime.

  • 12

    1 Defensores de Direitos Humanos

    O processo de democratizao do Brasil que se iniciou aps a ruptura com o perodo ditatorial

    (compreendido entre os anos de 1964 1985) possibilitou um fortalecimento das foras de

    oposio da sociedade civil atravs das formas de organizao, mobilizao e articulao que

    permitiram importantes conquistas sociais e polticas. O grande marco desse processo foi a

    promulgao da Constituio de 1988.

    De acordo com Jos Afonso da Silva2 a Constituio de 1988 o resultado da luta pela

    construo de um Estado Democrtico no qual o exerccio dos direitos humanos fundamentais

    o grande valor a ser assegurado. De acordo com o autor a constituio que consagra os

    direitos individuais, ou seja: direitos vida, privacidade, igualdade, liberdade e

    propriedade (encontrados no art. 5 CF).

    No mesma linha de raciocnio, segundo Flavia Piovesan3 so a cidadania e a dignidade da

    pessoa humana (art. 1 , incisos II e III) os alicerces que fundamentam o Estado Democrtico

    de Direito brasileiro. Nesse sentido para a autora ocorre um encontro do princpio do Estado

    Democrtico de Direito e dos Direitos Fundamentais, tornando-se evidente que so os direitos

    fundamentais um elemento bsico para a realizao do principio democrtico, tendo em vista

    que so esses direitos que exercem a funo democratizadora na sociedade.

    No entender de Jos Afonso da Silva4:

    2 AFONSO DA SILVA, Jos. Poder Constituinte e Poder Popular; 1 ed. So Paulo; Malheiros Editores; p. 174

    3 PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional; 11 ed. So Paulo. Editora Saraiva 2010;

    4 AFONSO DA SILVA, Jos. Curso de direito Constitucional; 33 ed. So Paulo. Editora Malheiros; p. 93

  • 13

    (...) a primeira vez que uma constituio assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, no todos, que seria despropositado, mas os fundamentos, e entre eles, uns que valem como base das prestaes positivas que venham a concretizar a democracia econmica, social e cultural , a fim de efetivar na pratica a dignidade da pessoa humana.

    Percebe-se na anlise desses dispositivos o quanto importante a preocupao do constituinte

    em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como mandamento

    de justia social. Porm mais importante que assegurar esses direitos tornar-los efetivos, ou

    seja, tornar eles possveis na sociedade e no ser apenas uma ordem descritiva. Nesse sentido

    os defensores passam a ser protagonistas nessa busca pela concretizao de certas garantias

    no efetivadas. A pergunta que deve ser colocada quem so esses defensores e que papel

    eles representam atualmente na sociedade?

    Sabendo que inexiste acordo sobre uma definio universalizante do que sejam movimentos

    sociais, esse trabalho no vai buscar um conceito esttico e singular com relao aos atores

    sociais aqui representados. O objetivo expor as diversas formas de conceituaes sobre

    defensores/as de direitos humanos sem apresentar algo definitivo, pois parte-se do diagnstico

    que a luta pela realizao dos dhs est em constante movimento, da mesma forma em que

    ocorre com as atividades desempenhadas por esses atores. Dessa forma, entende-se que a

    definio de quem so os/as defensores/as de direitos humanos eminentemente poltica e

    transitria.

    Nessa tentativa de chegar a uma definio, fato que a forma pela qual buscam a

    conceituao sobre os defensores de direitos humanos bastante atual. No ano de 1998 ela

    ganha importncia internacional, com a ratificao de tratados e declaraes internacionais.

    Dada a sua novidade, pode ser um dos fatores que contribuem para que, o seu significado

    no seja compreendido integralmente pelo poder pblico e tambm pelo conjunto dos setores

    organizados na sociedade.

    Com a ratificao dos tratados internacionais somados aos esforos dos legisladores

    nacionais, estes colaboram para o conceito de defensor de direitos humanos ganharem

  • 14

    relevncia na sociedade brasileira. Essa possibilidade pode ser atribuda como efeito da

    ratificao de acordos e polticas internacionais que abordam a matria ou pela presso

    persistente dos movimentos sociais e grupos ligados luta pelos direitos humanos no Brasil.

    De acordo com o Relatrio do Centro de Justia Global5 uma compreenso forte que existia,

    at h pouco tempo, era que os defensores de direitos humanos seriam pessoas especialistas

    no tema ou que direcionavam a sua luta para a efetivao dos direitos civis e polticos.

    Conforme o Relatrio6:

    (...)no perodo da ditadura militar no Brasil (1964-1985), esses direitos, certamente, foram estrategicamente importantes, como tambm o foram na luta pela Anistia e na abertura democrtica do pas. Entretanto, no esto os direitos humanos restritos a garantia dos direitos civis e polticos. A partir do processo de democratizao advindo no Brasil na dcada de 1980 tolerou que fosse inserida em questo a efetivao de direitos econmicos, sociais e culturais, no tolerados durante os anos pesados da ditadura.

    Assim, os Movimentos Sociais Brasileiros se apresentam em diferentes configuraes, um

    setor est articulado atravs de grupos organizados de base, em redes em nvel regional e

    nacional, outros organizam pessoas e segmentos os mais diferenciados e sejam aqueles que se

    estruturam como redes ou juntando pessoas organizam os setores mais frgeis e explorados da

    sociedade brasileira, como: sem terra, assentados, pequenos agricultores, mulheres,

    quilombolas, indgenas, pessoas sem casa em reas urbanas, favelados, pessoas presidirias,

    adolescentes e jovens pobres e negros, homossexuais, travestis, entre outros.7 Todos estes

    grupos representam no apenas os Movimentos sociais organizados, mas tambm sua prpria

    existncia revela o teor dos principais problemas sociais presentes no Brasil.

    5 Centro de Justia Global. Na Linha de frente - Relatrio de Defensores de Direitos Humanos 2005-2009 (prelo).

    6 Centro de Justia Global. Na Linha de frente - Relatrio de Defensores de Direitos Humanos 2005-2009 (prelo).

    7 Movimento Nacional De Direitos Humanos. A criminalizao dos movimentos sociais no Brasil: Relatrio de casos exemplares. Braslia. 2006.

  • 15

    A tentativa desses setores em se organizar e reivindicar os seus direitos perante a sociedade

    proporcionam a maximizao do leque dos direitos, que, por sua vez, esto em constante

    transformao na sociedade.

    Dessa forma, o conceito de defensores/as de direitos humanos acompanha essa dinmica

    social com suas lutas e tenses. Ou seja, o que ocorria antes com o entendimento dos

    defensores/as de direitos humanos estava limitado a poucos espaos e grupos, agora como

    conseqncia das lutas, se tem uma viso mais expansiva o que possibilitou a incluso de

    grupos sociais, novos sujeitos e movimentos no rol dos defensores/as.

    Conforme o Relatrio do centro de Justia Global8:

    (...)A partir de iniciativas dos movimentos sociais, organizaes de direitos humanos e poder pblico, algumas medidas concretas esto sendo tomadas para popularizar no somente o conceito em relao aos defensores de direitos humanos na nossa sociedade, mas tambm a garantia e efetivao plena dos seus direitos e das suas atividades. Como exemplo, a constituio em 2004 do I Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), possvel pela demanda poltica dos movimentos sociais e de direitos humanos.

    Nesse sentido, o conceito de defensores de direitos humanos adotado pelo Programa

    Nacional de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) entende que9:

    Defensores dos direitos humanos so todos os indivduos, grupos e rgos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos.

    8 Centro de Justia Global; Relatrio de Defensores de Direitos Humanos 2005-2009. (prelo)

    9 Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos. Disponvel em: Acesso em: 29 de mai. 2010.

  • 16

    Em esfera nacional tambm pode-se enfatizar o Programa Nacional de Direitos Humanos

    nmero 3 (PNDH-3) difundido no final de 2009 e rene a temtica dos defensores dos direitos

    humanos no seu documento e em diversas recomendaes especficas para tornar mais forte a

    sua atuao e proteo.

    Tambm em esfera internacional essa temtica bastante difundida, tendo a Organizao das

    Naes Unidas (ONU) demonstrado com exatido que o trabalho dos defensores de direitos

    humanos de importncia fundamental para a promoo dos direitos humanos atravs do

    mundo e, por esta razo, estes defensores merecem proteo especial e permanente.

    Nesse sentido, a Assemblia Geral das Naes Unidas, na Resoluo 53/144, aprovou a

    Declarao dos Direitos e Responsabilidades dos Indivduos, Grupos e rgos da Sociedade

    para Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Individuais Universalmente

    Reconhecidos em 9 de dezembro de 1998. Em seu artigo primeiro a declarao afirma que10:

    Todas as pessoas tm o direito, individualmente e em associao com outras, de promover e lutar pela proteo e realizao dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a nvel nacional e internacional.

    Dois anos depois, em abril de 2000, a Resoluo 2000/61 da Comisso de Direitos Humanos

    das Naes Unidas, aprovada, estabeleceu o mandato de Representante Especial da Secretaria

    Geral sobre os Defensores de Direitos Humanos.

    Esses documentos enfatizaram o papel fundamental dos defensores de direitos humanos e

    criaram meios de monitorar que os governos respeitem e protejam seu trabalho. Estas

    Resolues da ONU poca no definiam exatamente o que vem a ser o defensor de direitos

    humanos. Por sua vez, Hina Jilani, ento representante especial da ONU para os Defensores

    de Direitos Humanos, nomeada em decorrncia da Resoluo 2000/61 da Comisso de

    10 Gabinete de Documentao e Direito Comparado, Portugal: Disponvel em : < http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/o-defensores-dh.html> Acesso em 20 de abril de 2010.

  • 17

    Direitos Humanos, em seu relatrio inicial sobre a situao dos defensores de direitos

    humanos submetido Assemblia Geral da ONU em 10 de setembro de 2001, optou por no

    estabelecer uma definio esttica e restritiva do defensor de direitos humanos.11

    Por parte da sociedade civil, a organizao de direitos humanos Front Line trabalha com a

    seguinte viso de um defensor dos direitos humanos12:

    Um defensor dos Direitos humanos uma pessoa que trabalha, de forma pacfica, por qualquer dos direitos consagrados na Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    No relatrio Defensores de Direitos Humanos no Brasil 1997-2001, produzido pela Justia

    Global em parceria com a Front Line, apresentam provisoriamente os defensores de direitos

    humanos como sendo:13

    Todos aqueles grupos ou pessoas que atuam por sua conta ou em organizaes no-governamentais, sindicados ou movimentos sociais em geral, para contribuir pela eliminao efetiva de todas as violaes de direitos e liberdades fundamentais dos povos e indivduos. Os defensores de direitos humanos podem ser membros de instituies governamentais ou no governamentais, incluindo os funcionrios pblicos () e tambm aqueles que trabalham na assistncia as vtimas de violaes de direitos humanos.

    11A/56/341, 10 de setembro de 2001. Human rights defender is a term used to describe people who, individually or with others, act to promote or protect human rights. Human rights defenders are identified above all by what they do and it is through a description of their actions and of some of the contexts in which they work.

    12 Front Line. Disponvel em: <

    http://www.dhnet.org.br/dados/relatorios/dh/br/jglobal/jglobal_frontline/apresentacao.htm> Acesso em 05 de maro de 2010.

    13 Na linha de Frente:Relatrio de Defensores de Direitos Humanos no Brasil, 1997-2001; Justia Global e Front

    Line, maio de 2002.p. 26

  • 18

    Pode-se concluir que essas definies abarcam aqueles que defendem uma extensa

    diversidade de direitos, compreendidos desde os direitos humanos civis e polticos, at os

    tambm direitos econmicos, sociais e culturais. O que pode se verificar de modo geral que

    essas conceituaes tm como um possvel objetivo de forma resumida ou detalhada, abranger

    uma variada gama de sujeitos no rol dos defensores, sem, no entanto, incorrer em impreciso

    no cerne da questo, a saber: contemplar aqueles que lutam pelos direitos humanos nesse

    momento.

    Portanto, no entendimento desse trabalho, os defensores de direitos humanos incluem todas as

    organizaes, movimentos e rgos da sociedade civil que lutam pela efetivao dos direitos

    consagrados pela declarao universal e que buscam a concretizao e tambm a criao

    coletiva de novos direitos sociais, econmicos, culturais e ambientais que ainda esto em

    construo. Por exemplo, os movimentos sociais e populares, sindicatos, associaes,

    comunidades quilombolas, indgenas e ribeirinhos fazem parte do que hoje entendido pelo

    conceito de defensores e defensoras de direitos humanos.

    1.1 Criminalizao.

    Neste item vo ser abordadas algumas estratgias de criminalizao. Para isso foi necessrio

    traar uma breve anlise histrica do conceito de criminalizao e o funcionamento do

    sistema penal para saber como foram construdos os mecanismos de controle. Tambm foram

    utilizadas as entrevistas da sociloga Vera Malagutti, da advogada Fernanda Vieira e da

    pesquisadora Ceclia Coimbra para o Centro de Justia Global cedidos para a construo

    desse trabalho.

    Apesar das garantias constitucionais e internacionais que so resguardadas aos defensores/as

    de direitos humanos, sabe-se que so inmeros os casos em que ocorrem as estratgias de

    criminalizao. Essas estratgias so revestidas pela atribuio de condutas criminosas a

    grupos sociais determinados. Essa especificidade se d na judicializao do protesto social.

  • 19

    De acordo com o entendimento da Organizao no Governamental Justia Global14, a

    judicializao ocorre quando transformam as questes sociais em caso a ser tratado na esfera

    das agencias de controle social (polcia e segurana interna), sendo, por isso, passveis de

    punio, coero e controle.

    Ainda conforme o Relatrio da Justia Global15:

    os setores populares e organizados da sociedade civil no Brasil vivem desde h muito tempo sob a vigilncia, a conteno e a violncia institucional. Nesse contexto, so vistas como as classes perigosas. Coimbra(2001) abordou esse processo histrico de construo de inimigos internos, fazendo a relao disso com concepo de segurana pblica adotada atualmente no Brasil e a conseqente militarizao de suas prticas.

    Nesse sentido, conforme aqueles quem tem uma viso de que os movimentos sociais esto em

    uma situao desfavorvel por estarem inseridos nesse contexto em que cada vez mais a

    imagem propagada desses indivduos de bandidos ou terroristas16 ocorre uma das tentativas

    de criminalizao ao tentar aprisionar esses defensores.

    Deste modo, importante delinear uma breve analise histrica sobre como se d a incidncia

    do conceito de criminalizao e conseqentemente o funcionamento do sistema penal para

    entender o seu desenvolvimento poltico e social. Esse caminho importante para alterar a

    conveno predominante em relao s condutas apresentadas como criminosas e tambm

    para demonstrar como as estratgias de criminalizao vm sendo de acordo com a histria

    transformadas.

    14

    Centro de Justia Global; Relatrio Defensores de Direitos Humanos; maio de 2010 (prelo)

    15 Centro de Justia Global; Relatrio Defensores de Direitos Humanos; maio de 2010 (prelo)

    16 Esse item vai ser melhor aprofundado mais adiante.

  • 20

    Para entender historicamente a violncia institucional importante fazer uma rpida

    apresentao da formao dos Estados na Amrica Latina e as suas caractersticas atinentes a

    negao dos direitos de amplas parcelas da populao, utilizando os conceitos de raa e

    classe.

    De acordo com Roberto Leher17 o processo de constituio das classes se estruturou a partir

    do prprio racismo na Amrica Latina. Portanto, so dimenses que no so separadas da

    realidade. E esse processo de expropriao na Amrica de uma forma geral, se deu de modo

    particularmente violento, de forma extremamente brutal. Ele constata que: Nessa tica, a

    reflexo que ns temos que fazer sobre a problemtica da violncia, da criminalizao hoje,

    na Amrica Latina, tem que incorporar necessariamente a problemtica raa, a problemtica

    classe como uma unidade dialtica.18

    Nesse sentido, Leher articula as categorias de raa e classe como fundamentais para o

    entendimento da formao nacional na Amrica Latina. A partir da independncia e a

    formao dos Estados nacionais na Amrica Latina, podemos ver que eles foram fundados

    negando cidadania poltica maioria da populao. Como ele mesmo afirma19:

    (...) se ns pegarmos um corte temporal, mesmo pegando o Brasil a partir da independncia, ns vamos ver que a histria brasileira uma histria de barbrie. Ou seja, o primeiro documento fundador do Brasil como nao independente tambm um documento de barbrie quando afirma que existem cidados quando a maior parte da populao, pela prpria definio jurdica da cidadania da primeira carta constitucional, era de no-cidados. Em outras palavras, a constituio dos estados na Amrica Latina uma constituio estatal e nacional em que a maior parte do povo no cabe.

    17 LEHER , Roberto. Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relao incompatvel. Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundao Bll, pp. 25-31, 2008.

    18 LEHER , Roberto. Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relao incompatvel. Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundao Bll, pp. 25-31, 2008.

    19 LEHER , Roberto. Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relao incompatvel. Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundao Bll, pp. 25-31, 2008.

  • 21

    Em outras palavras, nessas naes no cabem todos os povos. A maior parte da populao no

    Brasil, na Bolvia, no Equador, etc., de no-cidados, historicamente concebidos como no-

    cidados. Ou seja, desde o incio temos uma constituio nacional que no existe, obviamente,

    uma perspectiva universal, no tem uma perspectiva universalista nestes estados.

    Estruturalmente eles legaram a existncia da escravido, das populaes indgenas, dos

    camponeses pobres, que eram um outro invisvel, sob o ponto de vista dos direitos sociais.

    Nessa compreenso, entendem que foram os Estados estruturalmente formados por interesses

    particulares. Esses interesses privados podem ser observados no sentido em que eles

    expressam uma parte da populao, ou seja os interesses de uma parte do poder20.

    Invibilizados pelo falso universalismo liberal, quando procuravam afirmar direitos por meio de lutas sociais, o Estado afirmou todo o seu particularismo empreendendo dura represso. Todos os movimentos populares em defesa de ma formao nacional capaz de incluir todos os povos foram exemplarmente reprimidos como ousadias que no poderiam ser repetidas.

    No mesmo sentido para a sociloga Vera Malaguti Batista demonstra no seu livro O Medo na

    cidade do Rio de Janeiro Dois tempos de uma histria (2003), que o medo sobre o corpo

    negro foi instrumentalizado pela imprensa e os discursos mdicos e judicirios do sculo XIX

    como meio de defesa social contra as possveis rebelies negras. Assim, foi possvel a criao

    de uma polcia e um sistema repressivo e criminalizador que impusesse o terror s chamadas

    classes perigosas.

    Ao utilizar a histria para inquirir a atualidade, a autora pergunta se a idia de uma polcia

    movida pelo medo e o terror ainda estaria presente nos nossos dias.21

    20 LEHER , Roberto. Capitalismo dependente e direitos humanos: uma relao incompatvel. Segurana, Trfico e Milcias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundao Bll, pp. 25-31, 2008.

    21 Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro Dois tempos de uma histria. 2 Ed. Revan: Rio de Janeiro, 2003. p.192-193.

  • 22

    Seria essa a matriz discursiva da retrica da impunidade e das exortaes a uma eterna nova polcia? Uma polcia que inspire confiana s elites e que aos escravos infunda o terror? Parece que esse discurso faz obra, nesse sentido da eficincia: confiana para uns e terror para outros.

    A partir da leitura desses autores, pode-se entender que a violncia do Estado contra aqueles

    considerados no-cidados somado ao surgimento de dispositivos de punio e

    disciplinamento como considerada a priso andam do mesmo lado. Essas estratgias fazem

    parte dos mecanismos de controle que foram historicamente constitudos em relao aqueles

    que foram destitudos de qualquer cidadania poltica.

    Pela perspectiva da criminologia crtica que uma contribuio terica valiosa para entender

    o funcionamento da criminalizao no seu componente histrico e tambm atual. Os

    criminlogos crticos fornecem tambm ferramentas de anlise e conceituais para reverter o

    processo de criminalizao operada pelas diversas agncias de controle social.

    Para a sociloga Vera Malaguti Batista em entrevista concedida para o Centro de Justia Global22:

    (...)estudando a histria da criminologia desde a tradio clssica iluminista, sculo XVIII, os clssicos do Direito Penal vo fazer uma conceituao terica de que o crime aquilo acordado politicamente dentro daquela perspectiva liberal-contratual, de uma sociedade entre iguais, ou seja, a idia de contrato social. Ento, para o pensamento liberal clssico o crime algo que acordado contratualmente em um acordo poltico. Assim, o crime algo eminentemente poltico. A qualidade criminosa no est no ato em si, mas no que foi concebido como criminalizao. A criminalizao , portanto, uma relao social, que pode ser intermediada por um contrato ou por condutas criminalizantes.

    Segundo a anlise de Batista23, na era Roosevelt, meados do sculo XX, os socilogos norte-

    americanos, que viveram a constituio do Estado social dos EUA, definiram a

    22 BATISTA, Vera. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do Relatrio de Defensores de Direitos Humanos(prelo) da Justia Global em 10 de dez. 2009.

  • 23

    criminalizao primria e secundria. Criminalizao primria que o que est tipificado no

    cdigo e a secundria que so os efeitos do sistema penal sobre a identidade do individuo.

    Desse ponto de vista, no somente o sistema penal, o sistema educacional, o sistema

    manicomial que produz rtulos, e sim como eles so reproduzidos e incorporados sob forma

    de estigma sobre os indivduos e determinados grupos.

    Ainda de acordo com a Vera Batista se tem24:

    com o neoliberalismo est se vivendo outra fase, que pode ser expressa no conceito de barbrie proposto por Walter Benjamin e utilizado pelo filsofo Marildo Menegatti. Ele mostra que o capital hoje se reproduz de uma forma diferente. O trabalho tem um peso diferente na composio do capital. No existem mais aquelas iluses do pleno emprego Keynesiano, que fundaram o Estado de Bem-Estar Social. O trabalho hoje flexvel, precrio. Com isso, a criminalizao da pobreza pode ser banalizada.

    Nesse sentido, Vera Malaguti25 aponta que tanto o neoliberalismo como os pases comunistas

    produziram o encarceramento em massa o que conseqentemente levou ao Estado-penal,

    regido pela lgica punitiva policial e penitenciria. Essa lgica trouxe como conseqncia um

    dos principais fatores do aumento das aes de criminalizao contra a parcela empobrecida

    dos trabalhadores, precarizados e os negros das cidades. Para Batista, so esses os sujeitos

    preferenciais do sistema prisional atualmente.

    Na anlise de Vera a criminalizao dos defensores de direitos humanos e movimentos

    sociais, autorizada pela barbrie e fortalecida pela construo cautelosa do medo social em

    relao aos outros que so diferentes do modelo desejado, numa sociedade construda por

    interesses particulares muito fortes. A lgica do medo e da barbrie impulsiona estratgias de

    23 BATISTA, Vera. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do Relatrio de Defensores de Direitos Humanos(prelo) da Justia Global em 10 de dez. 2009.

    24 BATISTA, Vera. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do Relatrio de Defensores de Direitos Humanos(prelo) da Justia Global em 10 de dez. 2009.

    25BATISTA, Vera. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do Relatrio de Defensores de Direitos Humanos(prelo) da Justia Global em 10 de dez. 2009.

  • 24

    poder, cada vez mais, violentas e militarizadas e seletivas quando tratam determinados para

    tratar de determinados segmentos sociais que precisam ser afastados, escondidos ou mesmo

    exterminados.

    Flavia Flauzina26, seguindo Vera Malaguti, entende que sob o amparo poltico do

    neoliberalismo, o medo gerenciado para criar uma situao favorvel para a atuao do

    sistema penal - que so fortemente atreladas s prticas de direito penal de ordem privada.

    Assim, a agenda poltica amplia a reproduo das assimetrias estruturais e efetiva a

    administrao e eliminao dos segmentos indesejados pelo poder hegemnico. Para Flauzina

    as agncias da criminalizao secundria (mdia, judicirio, polcia, etc.) cumprem um papel

    decisivo na moldura da criminalidade. Ela afirma que:27

    Dos maus-tratos nas delegacias de polcia limpeza dos centros urbanos, caracterizados pela remoo de flanelinhas e camels, chegando s aes de grupos de extermnio que, pelos nmeros de sua interveno, institucionalizaram-se por dentro das agencias policiais, sendo, mesmo inconfessadamente considerados essenciais para a garantia da ordem -, a agenda do sistema penal dos tempos globalizantes vai sendo executada.

    Nesse mesmo sentido, Vera Malaguti analisa que os meios de comunicao privados

    cumprem um papel central na criao de consensos que permitem a criminalizao dos

    defensores de direitos humanos e movimentos sociais. Como ela mesma afirma28:

    -Eu acho que a imprensa o principal veiculo de condio dessa mentalidade que eu chamo de adeso subjetiva a barbrie. Eu acho que ela produziu uma discusso nica sobre a questo criminal, onde tem um monte de socilogo. A sociologia entrou de forma pesada nisso que vai dizer: olha a gente pode fazer a boa priso. Eu acho que a imprensa produziu um consenso que o que possibilita a expanso dessa

    26 FLAUZINA , Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 27 FLAUZINA , Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.p.99 28 BATISTA, Vera. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do Relatrio de Defensores de Direitos Humanos(prelo) da Justia Global em 10 de dez. 2009.

  • 25

    criminalizao. O MST, os movimentos sociais organizados, bvio, entram nesse bojo. A imprensa brasileira que monopolizada pela condio de monoplio, os que batalham com o monoplio eles no fazem outra pauta, eles reproduzem.

    Ainda pensando dentro dos marcos polticos e jurdicos do neoliberalismo, Fernanda Vieira, pesquisadora e advogada de movimentos sociais, chama a ateno para as diferentes estratgias de criminalizao da pobreza e dos movimentos sociais existentes no Brasil. Ela relaciona a resistncia do MST aos setores que controlam o grande capital no campo tambm conhecidos como os agronegcios investida de aes que visam deslegitimar e cercear as lutas desse movimento social29. Na sua viso esse combate contra ao MST visa desmobilizar um dos principais atores que continuam a impulsionar o protesto social diante da realidade desigual verificada no pas da seguinte forma30:

    -Aqui no Brasil no tem como a gente negar que o MST a espinha dorsal do movimento de protesto contra determinado setor do capital. Da toda uma organizao pra desmoralizar, para prender, para criminalizar. Mas eu acho que tudo isso tem a ver com esse dois setores: movimentos sociais e a pobreza. Acho que o mais impactante da pobreza no necessariamente a priso. Na pobreza pode haver extermnio, ento chega to intenso que ele permite o discurso do Estado de exceo. A pobreza pode se eliminar, diante dos movimentos camponeses pode-se estrangular esse movimento com priso, com aes judiciais. Voc vai ter movimentos de protesto como o movimento sindical criminalizado, voc vai ter o interdito proibitrio que era uma medida do setor rural hoje usado por empresas pra impedir que o sindicalista adentre no local de trabalho para convencer o seu colega de trabalho a fazer greve. Ento, voc tem hoje um processo de estrangulamento de mobilizaes de protesto que eram clssicas, que eram um direito clssico da concepo de democracia ter direito a greve. O capital est conseguindo impedir o direito a greve garantido na constituio, reduzindo a abrangncia da greve ao limite do aceitvel.

    Vieira indica o avano de prticas que visam restringir os direitos de associao e

    manifestao tanto dos trabalhadores, atravs de seus sindicatos no espao da cidade, como a

    perseguio existente contra os movimentos sociais no campo31. Essas prticas

    29

    VIEIRA, Fernanda. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 10 de fevereiro de 2010.

    30 VIEIRA, Fernanda. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos

    humanos(prelo) JG em 10 de fevereiro de 2010.

    31 VIEIRA, Fernanda. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos

    humanos(prelo) JG em 10 de fevereiro de 2010.

  • 26

    criminalizadoras, no estado do Rio Grande do Sul, foram confirmadas pela Comisso Especial

    de Direitos Humanos32 que visitou o estado em setembro de 2008 e lanou o relatrio em

    novembro de 2009 com recomendaes ao poder pblico estadual.

    interessante relacionar as estratgias de criminalizao com os efeitos sociais produzidos

    por essas prticas. As estratgias de criminalizao identificam algum indivduo ou grupo

    como criminoso, bandido ou fora da lei, para assim apresentar uma srie de imagens

    negativas sobre eles, o que permite deslegitimar suas aes e invalidar e inferiorizar as suas

    prticas.

    No por acaso, os setores mais empobrecidos que foram repetidamente associados

    marginalidade, buscam se apresentar como trabalhadores para acessar o mnimo de direitos,

    historicamente reservados queles que possuem uma carteira de trabalho. Essa reposta visa

    contrapor os prejulgamentos automticos criados pela criminalizao da pobreza que a

    destitui de qualquer cidadania poltica.

    J para a pesquisadora e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-

    RJ) Ceclia Coimbra, entende que criminalizar estabelecer que determinador grupo ou

    indivduo sejam infratores, que o sujeito est fora da norma imposta pela sociedade dita

    civilizada. Quando se fala da criminalizao estamos falando de movimentos que esto fora

    da lei. A lei formada dentro do contrato social e da democracia representativa burguesa33.

    Na analise da pesquisadora, Coimbra34:

    o termo criminalizao aplicado para aqueles que fogem de uma determinada norma. No somente o pobre que foge da norma, ao longo

    32 Comisso Especial de Direitos Humanos investida pela resoluo n 08/2008 do CDDPH em 12 de agosto de 2008.

    33 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    34 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

  • 27

    da historia da humanidade, existe uma continuidade de toda e qualquer segmento que se coloque como diferente, que questione os modelos vigentes, esses so tambm os considerados perigosos. Ento, quando se criminaliza alguma conduta est querendo dizer que essa conduta est excluda de uma sociedade dita civilizada. No momento em que se criminaliza est embutido nisso que determinado grupo esta indo contra as leis vigentes, o status quo. O entendimento reproduzido a partir disso : Se aquela pessoa a infringiu tem que obrigatoriamente ser penalizado por isso.

    Ceclia Coimbra afirma que junto com criminalizao esto presentes a desqualificao e a inferiorizao dos saberes e discursos dos movimentos sociais, setores populares e defensores de direitos humanos. A criminalizao acompanhada da desqualificao e da inferiorizao. Por exemplo35: Se voc enquadrado como um criminoso, por conseguinte voc tambm entendido como um desqualificado, a opinio dessa pessoa no pode ser levada em considerao e ela inferiorizada. Ou seja, o saber dela ignorado. Ento quando criminaliza a pobreza, esta desqualificando e inferiorizando a pobreza. Quando voc vai criminalizar algum movimento social tem o mesmo objetivo. Assim, as falas e praticas desse movimento no podem ser levados em considerao porque os discursos foram desqualificados36.

    Reafirmando essa idia, Coimbra conclui37: O primeiro passo para a criminalizao a desqualificao e a inferiorizao. E o efeito disso no dar credito para esse tipo de movimento ou organizao. Nesse sentido, o capitalismo tambm produz uma individualizao e culpabilizao quando38:

    Assim, existe um processo crescente de desqualificao no s o movimento social, mas individualiza-se e absolve-se todo o sistema. Por exemplo, quando desqualifica aqueles que no esto bem na escola. No a escola que tem uma serie de questes. Quando se inferioriza algum no mesmo momento existe uma desqualificao que absolve todo o sistema.

    35 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    36 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    37 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    38 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

  • 28

    Para a pesquisadora, aqueles movimentos sociais que esto mantendo a sua autonomia, estes sim esto sendo criminalizados, esto sendo desqualificados. Ou seja, no se pode dar credito para esses movimentos, afinal um criminoso. Como por exemplo, ocorre com os movimentos dos trabalhadores sem terras e sem tetos.

    Ceclia Coimbra retoma a viso crtica sobre os meios de comunicao privados expressados por Vera Malaguti. A esse respeito ela diz que39:

    Os grandes meios de comunicao elas so grandes empresas transnacionais, no existe essa imparcialidade, agente sabe como a noticia produzida. Como se produz realidade? Por exemplo: Voc produz hoje que o Rio est em guerra, uma realidade. E faz todo um aparato que estamos em guerra. A que serve isso? Serve para ter o apoio do publico no sentido de medidas duras e apoiar o extermnio.

    No seu livro Operao Rio o mito das classes perigosas, Coimbra trabalha como a criminalidade foi historicamente associada pobreza. Esses discursos ganham fora na dcada de 1990, atravs da poltica de segurana pblica, tal como a Tolerncia Zero, e dos meios de comunicao de massa, promovendo a criminalizao e as mais variadas formas de violao dos direitos humanos. Para essa poltica de segurana imprescindvel a lgica da guerra. Dessa forma, sempre esto sendo criados inimigos para serem combatidos atravs de uma viso militarizada da sociedade.

    Se hoje mais os suplcios pblicos com que se aplicava a lei do Talio olho por olho, dente por dente temos, atravs do silenciamento de uns e dos aplausos de outros, uma nova lei emergindo e funcionando eficazmente. Uma nova Lei do Talio que, ao arrepio das leis vigentes dos pases civilizados e com o beneplcito e o estmulo de suas autoridades, aplicada a todos os pobres, porque suspeitos e, portanto, culpados. Uma nova Doutrina de Segurana Nacional que apresenta como seu inimigo interno no mais os opositores polticos, mas os milhares de miserveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os

    39

    COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

  • 29

    milhares de sem teto, sem teto, sem casa e sem emprego que, vivendo miseravelmente, pe em risco a segurana do regime.40

    Dessa maneira, ainda de acordo com a pesquisadora41:

    a questo da criminalizao da pobreza e a produo da periculosidade vm de longe, ligadas ao modo capitalista como forma de controlar e disciplinar aquilo que pode vir a ser perigoso. No presente isso acaba sendo naturalizado. Nesse sentido, a grande funo da historia evidenciar que as foras que compe o presente no so imutveis. Essas coisas que esto no mundo no tm objetividade, se tornaram atravs das praticas sociais, no tem uma essncia. Isso fundamental para romper com as identidades opressivas que favorecem a criminalizao. Ao assinalar que os objetos, os saberes, os sujeitos, que esto no mundo e o prprio mundo so produes das praticas sociais. Ou seja, ns com as nossas praticas estamos produzindo esse mundo e podemos produzir outros mundos. Colocar a questo dessa forma ajuda a entender porque a pobreza sempre foi criminalizada.

    Para Ceclia Coimbra no neoliberalismo alguns sero selecionados como perigosos ou

    exterminveis. Nas palavras da pesquisadora:42Vivemos todos no Estado de exceo, aonde a

    vida de alguns vale menos que outras vidas. o que se v hoje nas polticas publicas que j

    nascem precarizadas e que interessa para o funcionamento do capitalismo.

    Ceclia Coimbra chama ateno para como na atualidade o processo de judicializao invade

    o cotidiano. O efeito concreto desse processo o encarceramento em massa atravs da poltica

    de tolerncia zero e a multiplicao de normas punitivas. De outro lado, algumas organizaes

    sociais apostam na lgica da judicializao, encaminhando e defendendo propostas que

    criminalizam condutas especficas. Sendo que a ampliao do direito penal acaba favorecendo

    40

    COIMBRA, Ceclia. Operao Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violncia urbana, a mdia

    impressa e os discursos de segurana pblica. Rio de Janeiro: Intertexto, 2001.

    41 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos

    humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    42 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos

    humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

  • 30

    o investimento em agencias de controle que passam a ser o local de mediao privilegiado na

    nossa sociedade43.

    A gente pode conter por vrias formas. Uma delas a priso. Cada vez mais a priso incha. Cada vez mais a gente judicializa o cotidiano. Sempre apelando pra leis duras, severas, dentro de toda uma poltica que vem sendo gestada e que vem sendo exportada pro mundo inteiro, est sendo globalizada, a chamada poltica de tolerncia zero. Onde voc criminaliza pequenas infraes. Onde tudo nesta sociedade vai ser criminalizado. Onde a gente vai apelar pra leis duras, severas, pra pena de morte, pra priso perptua. A gente mesmo pede mais leis, os prprios movimentos sociais. E eu acho que a gente enquanto movimento social tem que estar muito alerta a isso. A gente prprio pede a criminalizao de A, B e C. E, ao mesmo tempo, a gente contra esta lgica. Ou seja, como esta lgica poderosa, que ela penetra em ns, nos atravessa e nos constitui. Ento uma primeira conteno seria a priso. Hoje ns temos no Brasil quase quinhentas mil pessoas presas, fora aquelas que esto em medida de penas alternativas.44

    Portanto, entende-se em compreenso com os autores apresentados que o processo de

    criminalizao se expressa das mais variadas maneiras na atualidade. No entanto, a fora

    criminalizadora no est separada das prticas mais duras de represso e violncia

    institucional. Esses dois processos caminham juntos na atualidade como estratgias

    combinadas, visando neutralizar a luta dos defensores de direitos humanos.

    43

    COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

    44 COIMBRA, Ceclia. Entrevista concedida a equipe de pesquisa do relatrio de defensores de direitos

    humanos(prelo) JG em 20 de novembro de 2009.

  • 31

    2. Micro anlise da criminalizao Quais as faces da criminalizao?

    Para compreender como ocorre a criminalizao do direito de defender direitos (defensores ou

    movimentos sociais) basicamente foram analisados diversos processos judiciais, documentos

    confidenciais da Nova Repblica, documentos da Comisso Pastoral da Terra(CPT),

    entrevistas de lideranas do MST e do MAB. Essa anlise teve a temtica limitada pelos

    conflitos da luta pela terra no Brasil sendo preterida por apresentar elevados nmeros de

    violncia e por ser a m distribuio de terras uma questo que traz uma elevada

    conflituosidade.

    De acordo com dados do CPT os dados desse conflito so bastante expressivos: aonde se tm

    2.709 famlias, em mdia, anualmente expulsas de suas terras; 63 pessoas, em mdia,

    anualmente assassinadas no campo brasileiro; 13.815 famlias, em mdia, anualmente

    despejadas pelo Poder Judicirio e cumpridas pelo poder Executivo por meio das polcias; 422

    pessoas, em mdia, anualmente presas por lutar pela terra; 765 conflitos, em mdia,

    anualmente diretamente relacionados luta pela terra; 92.290 famlias, em mdia, anualmente

    envolvidas em conflitos por terra45.

    Ainda de acordo com a CPT:

    As prises, em regra geral, esto relacionadas a conflitos coletivos, envolvendo trabalhadores rurais sem terra, quilombolas, indgenas, atingidos por barragens, pescadores, trabalhadores rurais, entre outros. Relacionando o nmero de prises com o nmero de conflitos nos ltimos trs anos, vamos verificar que para 1538 conflitos registraram-se 438 prises em 2007, o que representou uma priso para cada 3,5 conflitos. Em 2008, em 1170 conflitos houve 168 prises, uma priso para cada 7 conflitos. Em 2009, 204 prises em 1184 conflitos uma priso para cada 5,2 conflitos.46

    45

    Comisso Pastoral da terra. Disponvel em Acesso: 01-06-2010

    46 Comisso Pastoral da terra. Disponvel em

    Acesso: 01-06-2010

  • 32

    Esses nmeros em especial os relacionados ao despejo pelo Poder Judicirio e o nmero de

    prises podem indicar a ocorrncia atualmente de uma perseguio por parte do Estado com

    relao a determinados grupos considerados perigosos, ou enquadrados como inimigos por

    travarem lutas com parte do poder poltico e econmico. As questes que ficam quando os

    nmeros so apresentados so: Ser que existe de fato a necessidade para a interferncia,

    como ocorre do Estado nesses conflitos? Possuem esses defensores tal periculosidade como

    so tratados?

    Diversos arquivos disponibilizados online pela Folha47 no dia 31-05-2010 mostram como o

    MST foi espionado durante toda a metade da dcada de 80 ps ditadura militar. Essa forma

    com que o governo lidava com os potenciais personagens que atentavam contra a forma de

    governo retrata uma manuteno de atitude repressiva do governo em relao aos

    considerados inimigos internos. Foram diversas as formas que o governo utilizava de conter

    o movimento desde infiltraes de agentes a interceptao de cartas e a construo da imagem

    do perigoso aqueles integrantes.

    Como ocorre ainda hoje com a vigncia no presente da Lei de Segurana Nacional (LSN) e do

    iderio do inimigo interno prprias do perodo da ditadura civil-militar permite visualizar a

    permanncia desses dispositivos e at mesmo a sua ampliao dentro do marco da chamada

    democracia brasileira ou no Estado Democrtico de Direito. No surpreende, mesmo que seja

    paradoxal, a existncia de novas estratgias de criminalizao contra os defensores de direitos

    humanos e a criao de espaos de exceo48. A utilizao de dispositivos jurdicos prprios

    do perodo de exceo, como os interditos proibitrios contra a livre associao e reunio de

    sindicatos e a Lei de Segurana Nacional contra militantes do Movimento dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra (MST), so bons exemplos da convivncia entre as formas de represso

    antigas e as modernas, que parecem no mais se excluir mutuamente.

    47

    PODER, FOLHA ONLINE, So Paulo 31/05/2010. Disponvel em < http://www1.folha.uol.com.br/poder/743061-governo-espionou-criticos-mesmo-apos-fim-da-ditadura-veja-documentos.shtml> Acesso em 01-06-2010.

    48 Agamben analisa o estado de exceo como novo paradigma de governo. Ver: AGAMBEN, G. Estado de

    Exceo. Coleo Estado de Stio. So Paulo: Boitempo, 2004.

  • 33

    Nesse sentido verificado que atualmente, ocorre uma forte manuteno das praticas

    repressivas do perodo da Ditadura e o elevado nmeros de conflitos no campo pode ser um

    indicio que existe uma opo de criminalizar os conflitos pela terra a fim de enfraquecer o

    movimento.

    2.1 Judicirio e Criminalizao

    Pesquisando a temtica da criminalizao pode se encontrar diversas formas de

    criminalizao dos defensores e defensoras de direitos humanos. Uma dessas formas visvel

    na judicializao do protesto social, na intimidao de defensores pela via judicial e as

    conseqncias que os processos de despejo judicial podem gerar. Saber ao certo em que

    momento o judicirio ator integrante desse processo pode ser difcil de precisar, porm, o

    que muito se discute atualmente a atuao das polcias Militar e Federal nos processos de

    despejo que se utilizam da violncia institucional para propagar a barbrie.

    Exemplo dessa pratica ocorreu no acampamento Oziel Alves II, localizado dentro de um

    complexo de fazendas, situado nas terras da Usina Cambahyba, no interior do estado do Rio

    de Janeiro. No dia de 24 de Janeiro de 2006 a Polcia Militar, em conjunto com a Polcia

    Federal, efetuou o despejo das famlias numa operao que destruiu casas, prenderam

    arbitrariamente acampados e agrediu trabalhadores. Normalmente esse o cenrio nas aes

    similares, e aonde se verifica um judicirio clere na hora de deferir liminares favorveis aos

    despejos e em contrapartida uma lentido para julgar Habbeas Corpus de lideranas presas

    arbitrariamente.

    Na anlise de diversos informes49 enviados pelo Centro de Justia Global para Organizao

    das Naes Unidas (ONU) em especial aquelas enviadas Relatora Especial da ONU sobre

    49

    Ofcio 15-06 JG; Ofcio 28-09; Ofcio 20-07;

  • 34

    defensores de Direitos Humanos pode-se verificar que essa arbitrariedade ocorre quando

    muitas lideranas so presas sob a acusao de cometer crimes, por exemplo, de crcere

    privado quando ocupam imveis pblicos ou privados a fim de reivindicar certos direitos.

    Muitas dessas ocupaes tiveram durao de duas e quatro horas e no foi verificado uso de

    armas pelos manifestantes. Nos casos envolvendo ocupao pode tambm verificar que ocorre

    um padro de como as policias agem, sendo sempre com bastante violncia e truculncia

    contra os manifestantes que muitas vezes se queixam das agresses morais ou fsicas.

    O que muito defendido pelos defensores e lideranas de movimentos sociais que existe

    uma parcialidade na Justia em casos contra grandes projetos econmicos ou quando a outra

    parte tem uma fora poltica o que acaba por intensificar o processo de criminalizao e em

    parte justificaria o elevado nmero de prises de defensores de acordo com os dados citados

    da CPT.

    Nessa perspectiva se torna importante mencionar o trabalho premiado do IPEA, do

    pesquisador Ivan Cesar Ribeiro que demonstra o favorecimento do poder locar e dos mais

    ricos nas decises judiciais. O trabalho discute duas hipteses opostas sendo elas a da

    incerteza jurisdicional a qual sugere que os juzes brasileiros tendem a favorecer a parte mais

    fraca nas aes judiciais como forma de fazer a justia social e a segunda hiptese que sugere

    que a forma de atuao das instituies polticas, regulatrias e legais subvertida pelos ricos

    e politicamente influentes em seu prprio beneficio, chamada essa situao de redistribuio

    do King John. 50

    De acordo com os resultados apresentados pela pesquisa:51

    50 RIBEIRO CESAR, Ivan. Robin Wood versus King John: Como os juzes locais decidem casos no Brasil? So Paulo, 2006; p.4.

    51 RIBEIRO CESAR, Ivan. Robin Wood versus King John: Como os juzes locais decidem casos no Brasil? So Paulo, 2006; p.2.

  • 35

    a) Os juzes favorecem a parte mais poderosa. Uma parte com poder econmico ou poltico

    tem entre 34% e 41% mais chances de que um contrato que lhe favorvel seja mantido do

    que uma parte sem poder;

    b) Uma parte com poder apenas local tem cerca de 38% mais chances de que uma clusula

    contratual que lhe favorvel seja mantida e entre 26% e 38% mais chances de ser favorecido

    pela Justia do que uma grande empresa nacional ou multinacional, um efeito aqui batizado

    de subverso paroquial da justia.

    c) Nos Estados Brasileiros onde existe maior desigualdade social h tambm uma maior

    probabilidade de que uma clusula contratual no seja mantida pelo judicirio. Passando-se,

    por exemplo, do grau de desigualdade de Alagoas (GINI de 0,691) para o de Santa Catarina

    (0,56) tem-se uma chance 210% maior de que o contrato seja mantido.

    Ou seja de acordo com a pesquisa, no leva a acreditar que seja aplicvel a hiptese da

    incerteza jurisdicional majoritariamente, o que leva a acreditar em contrapartida que certos

    juzes no buscam realizar a justia social pelo contrrio, privilegiam a parte mais poderosa na

    resoluo do litgio.

    Ainda conforme a pesquisa com relao as desigualdades econmicas e sociais52:

    Os ricos podem se apropriar dos ativos e da renda dos mais pobres subvertendo a Justia, atravs de contribuies polticas, subornos ou mesmo do uso de manobras polticas e legais que faam prevalecer seus interesses. Essa situao teria mais chances de ocorrer, segundo Glaeser et al (2003), em sociedades com maior nvel de desigualdade social, isso devido ao papel que a desigualdade tem no modelo desses pesquisadores. A habilidade de punir o juiz, quando este decide contra o interesse da parte mais forte em uma ao judicial, seria maior quanto maior fosse a desigualdade social - ao final, a Justia tende a ser subvertida nessas sociedades mais desiguais.

    52

    RIBEIRO CESAR, Ivan. Robin Wood versus King John: Como os juzes locais decidem casos no Brasil? So

    Paulo, 2006; p.4.

  • 36

    J com relao ao poder poltico, na anlise do pesquisador53:

    A proposio terica de Glaeser et al (2003) leva em considerao no apenas o poder econmico, mas tambm uma varivel definida como poder poltico, ou seja, a habilidade de punir o juiz caso ele decida contra os interesses da parte mais forte. Essa habilidade de punir pode ser considerada mais efetiva quando exercida por uma parte local, com maiores chances de ter conexes sociais com o prprio juiz da causa ou com pessoas em posio para punir esse juiz. O modelo de Glaeser et al (2003) tambm sugere que sociedades mais desiguais iro aumentar a habilidade que uma parte com grande poder poltico tem de impor essas punies.

    Essas afirmaes podem ser questionadas na medida em que tem os juzes brasileiros

    prerrogativas institucionais de garantia ao cargo como a vitaliciedade que podem inibir a

    possibilidade de punio do juiz. Porm no se pode esquecer as formas de investidura da

    carreira e a possibilidade de promoes quando se fala em se tornar um juiz de segundo grau.

    Ou seja, pode ser que essa afirmao esteja apontando para o fato que essas punies estejam

    ligadas a possibilidade do juiz de primeiro grau vai ter de se tornar de segundo grau quando

    decidir em conformidade com os interesses dos mais fortes ou de um poder local.

    Nesse sentido a pesquisa abarca a compreenso existente de que o Judicirio tambm faz

    parte desse processo de violncia institucional com relao a determinados grupos, como por

    exemplo, os movimentos sociais que lutam pela terra. Nessa compreenso sabendo que o

    direito de propriedade em sua maioria uma luta dos movimentos sociais contra os

    latifundirios, multinacionais, transnacionais e Estado. Ou seja de um lado um poder mais

    forte economicamente ou politicamente e de outro lado um poder sem grande expresso.

    Nesse cenrio em que o poder punitivo maximizado no so poucas as imputaes

    criminosas aferidas aos defensores, integrantes de movimentos sociais. Sendo os mais comuns

    os crimes de: interdito proibitrio, seqestro, incitao ao crime, formao de quadrilha,

    ameaa a ordem publica. Quando levados a priso uma grande reivindicao desses

    defensores que muitas vezes os autos de priso carecem de justificativas e na maioria so

    arbitrrios. Outro problema levantado por lideranas de movimentos sociais a possvel 53

    RIBEIRO CESAR, Ivan. Robin Wood versus King John: Como os juzes locais decidem casos no Brasil? So

    Paulo, 2006; p.4.

  • 37

    seletividade da justia no julgamento de Habbeas Corpus quando existem exemplos que

    podem demorar de 1 a 2 meses para um defensor e em contrapartida casos envolvendo grande

    empresrio ou poderoso local esse tempo cai para 1 ou 2 dias.

    Somado a falta de fora desses movimentos frente a grandes projetos econmicos ou

    polticos, ocorrem as tentativas de estigmatizar a luta pela terra criando a imagem do

    bandido, terrorista, perigoso. Assim, decises judiciais favorveis a essa fora poltica

    ou econmica so legitimadas e aceitas pela sociedade como forma de punir esses elementos

    com elevado potencial ofensivo a ordem nacional.

  • 38

    3. Estudo de Caso: MST RS

    Nesse capitulo vai ser apresentado um caso emblemtico de criminalizao ocorrida no Rio

    Grande do Sul contra o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Esse caso teve

    grande repercusso nacional e internacional aonde teve um pedido de solicitao de medidas

    cautelares para a Conveno Interamericana de Direitos Humanos da Organizao dos

    Estados Americanos (OEA). Outro fator relevante para entender a importncia do caso

    compreender como foi a atuao dos poderes Executivo e Judicirio com relao ao

    movimento social que passou a ser considerado como um movimento criminoso.

    O que se entende como ponto de partida da constituio do Movimento dos Trabalhadores

    Sem Terra (MST) foi a realizao do I Encontro Nacional dos Sem Terra em Cascavel no

    Paran, entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1984. Dessa reunio o movimento conseguiu tirar

    importantes concluses como: a ocupao de terra uma ferramenta fundamental e legtima

    das trabalhadoras e trabalhadores rurais na luta pela democratizao da terra. Os objetivos

    foram definidos como sendo: a luta pela terra, a luta pela Reforma Agrria e um novo modelo

    agrcola, e a luta por transformaes na estrutura da sociedade brasileira e um projeto de

    desenvolvimento nacional com justia social54.

    Desde ento o MST, conhecido por ser o maior movimento social da Amrica Latina, tem o

    seu valor de luta contra as concentraes de Terra no Brasil reconhecimento internacional por

    promover um debate de enfrentamento contra as desigualdades sociais, porm dentro do seu

    pas renegado e construdo uma imagem de criminalidade em torno dos seus membros alm

    de sofrer com a violncia institucional por parte do Estado ou de milcias privadas

    constitudas no campo.

    54Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Disponvel em: Acesso em 04-06-2010.

  • 39

    Um exemplo de como esse no reconhecimento do movimento ocorre nacionalmente foram s

    aes de criminalizao ocorridas nos anos de 2007, 2008 e 2009 no Rio Grande do Sul.

    3.1 Da participao do Ministrio Pblico no processo de criminalizao:

    Existem no estado do Rio Grande do Sul aes do Ministrio Pblico Estadual (MPE-RS) e

    do Ministrio Pblico Federal (MPF) que tem como principal objetivo solicitar a extino do

    MST. Alm de trazerem um conjunto de medidas institucionais por parte do Estado que

    passam a caracterizar esses movimentos sociais de movimentos criminosos. As aes de

    criminalizao do MST como vai ser demonstrado a seguir envolvem diversos poderes, tais

    como: o executivo, legislativo e judicirio estadual, empresas de comunicao e empresrios

    do agronegcio.

    Em 25 de junho de 2007, o Conselho Superior do Ministrio Pblico do estado do Rio Grande

    do Sul55 instaurou um procedimento administrativo investigatrio n.16315-0900/07-9 para

    levantamento de dados sobre as atividades do MST no estado a fim de adotar providncias

    na rea de atuao do rgo56.

    Aps seis meses de investigao secreta, os promotores de justia apresentaram um relatrio

    constitudo basicamente por depoimentos de fazendeiros, de representantes da Polcia Militar

    estadual (Coronel Waldir Joo Reis Cerutti) e de documentos apresentados pelo Instituto

    Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), Ministrio do Desenvolvimento

    Agrrio, Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, Ministrio da Educao e

    reportagens da Revista Veja. Por meio destas supostas provas, o relatrio caracterizou o MST 55Segundo o Regimento Interno do Conselho Superior do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul, este rgo da Administrao Superior e de execuo do Ministrio Pblico, com atribuio de fiscalizar e superintender a atuao do Ministrio Pblico e de seus rgos, bem como a de velar por seus princpios institucionais. composto pelo Procurador-Geral de Justia, do Corregedor-Geral do Ministrio Pblico, como membros natos, e de nove Procuradores de Justia. Informaes disponveis na pgina eletrnica do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul: http://www.mp.rs.gov.br/legislacao/id646.htm.

    56 Procedimento administrativo n. 16315-0900/07-9 no mbito do Conselho Superior do Ministrio Pblico do estado do Rio Grande do Sul

  • 40

    como organizao criminosa, que estaria buscando a estruturao de um Estado paralelo,

    conforme indica trecho do relatrio57:

    A estratgia confrontacional adotada pelo MST reflete-se em seu modelo de organizao e em sua estratgia prtica de atuao. O movimento estrutura-se como um Estado paralelo, contando com instituies internas, que regem todos os aspectos das vidas dos militantes que residem nos acampamentos.

    (...)

    O problema que a adeso a um tal iderio gera justamente o da falta de compromisso com a democracia, vista como burguesa e insuficiente. O no-reconhecimento da democracia como um valor universal da organizao social, somando ao controle autoritrio e por vezes violento que o MST tem sobre seus militantes, enseja necessria preocupao quanto aos riscos democracia advindos da atuao do movimento.58

    Por que o relatrio foi utilizar depoimentos de fazendeiros e de reportagens da Revista Veja e

    ainda servirem como provas para elaborar o relatrio? Ser que entender o movimento como

    uma organizao criminosa no deveria se embasar de provas mais contundentes?

    O relatrio tambm caracterizou o MST como movimento de carter paramilitar, porque

    disporia:

    (i) de uma organizao interna hierarquizada, que emula em alguns pontos a estrutura estatal;

    (ii) de uma pauta de aes que privilegia o combate e a criao de espaos territoriais onde a fora pblica no possa ingressar;

    (iii) de uma estratgia de atrito prolongado contra o Estado e os empreendedores privados (matando eles no cansao);

    57

    Procedimento administrativo n. 16315-0900/07-9 no mbito do Conselho Superior do Ministrio Pblico do estado do Rio Grande do Sul

    58 Procedimento administrativo n. 16315-0900/07-9 no mbito do Conselho Superior do Ministrio Pblico do

    estado do Rio Grande do Su, pgina 84

  • 41

    (iv) de uma percepo de que as instituies pblicas (Poder Judicirio, Brigada Militar) e os empreendedores privados (produtores rurais, meios de comunicao) so oponentes do movimento;

    (v) de um panteo de cones inspiradores do movimento, a maior parte ligada a movimentos revolucionrios ou de contestao aberta ordem vigente;

    (vi) de uma fraseologia agressiva, abertamente inspirada nos slogans dos pases do antigo bloco sovitico (ptria livre, operria, camponesa);

    (vii) de um controle rgido sobre os acampados, no s na obrigatoriedade de tomar parte nas aes de confronto, como inclusive na liberdade de ir e vir.59

    Com base no relatrio produzido pelos promotores, o procurador de justia e integrante do

    Conselho Superior do Ministrio Pblico, Gilberto Thums sustentou em reunio do Conselho

    Superior a necessidade de desmascarar o MST, por tratar-se, segundo ele, de uma

    organizao criminosa, com ntida inspirao leninista, que se utiliza de tticas de guerrilha

    rural. O procurador Thums defendeu ainda a necessidade de interveno do Ministrio

    Pblico em trs escolas da regio, coordenadas pelo movimento, porque os estudantes de 7 a

    14 anos de idade estariam aprendendo a defender o socialismo, a desenvolver a conscincia

    revolucionria e a cultuar personalidade do comunismo como Karl Marx, Ho Chi Minh e Che

    Guevara. Alm disso, o procurador props a desativao e remoo dos acampamentos

    situados nas regies de conflitos permanente.60

    O que parece estranho nesse relatrio que apesar de imputar ao movimento o carter

    paramilitar e de guerrilha o relatrio no cita se existem armas para esse fim, quais

    armamentos pesados que esses indivduos fazem uso, o que de fato poderia indicar alguma

    periculosidade a esses integrantes. Ou seja, que tticas de guerrilha rural so essas defendidas

    pelo Procurador?

    59

    Procedimento administrativo n. 16315-0900/07-9 no mbito do Conselho Superior do Ministrio Pblico do estado do Rio Grande do Sul

    60 Procedimento administrativo n. 16315-0900/07-9 no mbito do Conselho Superior do Ministrio Pblico do

    estado do Rio Grande do Sul

  • 42

    Apesar da falta de substancialidade do voto do Procurador, o mesmo foi submetido a

    julgamento pelo Conselho Superior do Ministrio Pblico em 3 de dezembro de 200761, com

    aprovao, por unanimidade, das seguintes propostas apresentadas pelos promotores de

    justia, que elaboraram o relatrio investigativo:

    i) que o referido expediente [o processo administrativo n. 16315-09.00/07-9] tem carter confidencial, nos termos do inciso II, do pargrafo 1, do artigo 3 do Provimento 31/2004; ii) designar uma equipe de Promotores de Justia para promover ao civil pblica com vistas dissoluo do MST e a declarao de sua ilegalidade; iii) adoo de medidas cabveis com vista suspenso das marchas, colunas, ou outros deslocamentos em massa de sem-terras; (...) iv) interveno do Ministrio Pblico nas trs escolas referidas a fim de tomar todas as medidas que sero necessrias para a readequao a legalidade, tanto no aspecto pedaggico quanto na estrutura de influncia externa do MST; v) desativao dos acampamentos situados nas proximidades da Fazenda Coqueiros, onde a possibilidade de conflitos mais evidente, bem como de todos os acampamentos que estejam sendo utilizados como base de operaes para invaso de propriedades;

    Assim, o Conselho Superior do Ministrio Pblico do estado do Rio Grande do Sul

    determinou aos promotores de justia de diversas comarcas o ajuizamento de aes civis

    pblicas com objetivo de dissoluo do MST, declarao de sua ilegalidade, impedimento de

    marchas, colunas, caminhadas e afins, investigao e processamento criminal das lideranas

    do movimento, e desocupao de assentamentos com uso da fora policial.

    Para dar cumprimento s aes acima em junho de 2008, foram ajuizadas aes civis pblicas

    contra o MST.

    3.2 Da participao do Poder Judicirio no processo de criminalizao:

    61

    Conselho Superior do Ministrio Pblico, Ata n. 1.116, de 3 de dezembro de 2007

  • 43

    Nessa perspectiva ganha o Poder Judicirio papel importante por legitimar as aes propostas

    pelo Ministrio Pblico por tomar as seguintes medidas:

    3.2.1 Carazinho

    O juiz da comarca de Carazinho, Orlando Faccini Neto, em 16 de junho de 2008, deferiu o

    pedido do Ministrio Pblico e determinou a desocupao imediata dos dois acampamentos

    do MST no municpio de Coqueiros do Sul com a utilizao de fora policial.62

    O juiz da comarca de Carazinho, em 17 de junho de 2008, concedeu liminar, em sede de ao

    civil pblica, autorizando a desocupao de dois acampamentos do MST, no municpio de

    Coqueiros do Sul, formado por cerca de 160 famlias, com a utilizao de forma policial.63

    Para cumprir esta ordem judicial, a Brigada Militar realizou mais duas desocupaes

    truculentas de centenas de pessoas que ocupam a rea desde 2004, as quais foram cedidas por

    seus proprietrios aos trabalhadores. Durante o despejo os policiais militares destruram os

    barracos, o posto de sade, a escola e as hortas comunitrias e plantaes, alm de soltarem as

    galinhas e os porcos para impedir que os trabalhadores pudessem recuper-los. Naquele dia,

    repetiu-se o descompasso entre o nmero de famlias e o efetivo da polcia militar deslocado

    para consumar a ordem de despejo. Eram mais de 600 policiais para a retirada de 300 pessoas,

    incluindo crianas, mulheres, homens e idosos.

    Todas as famlias foram deslocadas de forma violenta para uma rea de risco s margens da

    BR-386, uma rodovia federal, o que seguramente, configura um risco de vida, principalmente

    aos idosos e as crianas, em virtude do grande quantidade de veculos que trafegam no local. 62

    Sentena do juiz da comarca de Carazinho, Rio Grande do Sul

    63 Sentena do juiz da comarca de Carazinho, Rio Grande do Sul.

  • 44

    Alm disso, a Brigada Militar, mais uma vez, impediu a presena da imprensa e de

    autoridades no local, evitando a documentao e o registro de mais uma ao violenta que

    colocou em risco vida de centenas de pessoas.

    Esta ltima investida da Brigada Militar reflete, em grande medida, a estratgia de

    perseguio ideolgica do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul e de membros do Poder

    Judicirio na implementao das atrocidades que constam no relatrio aprovado pelo

    Conselho Superior da entidade em dezembro de 2007.

    3.2.2 Coqueiros do Sul

    No dia 17 de janeiro de 2008 o MST-RS realizou no assentamento na Fazenda Anoni, seu 24.

    Encontro Estadual. Na ocasio estavam reunidas 1.200 trabalhadores e trabalhadoras de

    diferentes regies do Estado e, aproximadamente, 200 crianas. Em 14 de janeiro de 2008, os

    participantes do encontro realizaram uma ocupao simblica e pacfica de um dia na Fazenda

    Guerra64, no municpio de Coqueiros do Sul.

    Trs dias aps este fato, foram surpreendidos, durante a madrugada, por uma enorme

    contingncia de policiais militares que possuam um mandato de busca e apreenso para

    ingressar na Fazenda.65 A autorizao expedida pela Justia Estadual visava recuperao de

    alguns objetos que teriam supostamente desaparecidos da Fazenda Guerra, durante a

    manifestao. A denncia de furto dos objetos foi apresentada pelo proprietrio da Fazenda

    Guerra. Os objetos eram: um rdio de carro, um anel, uma mquina fotogrfica e a quantia de

    duzentos reais.

    64

    Fazenda Anoni a primeira rea que foi destinada para um assentamento de reforma agrria no Rio Grande

    do Sul e, por isso, representa para todos os integrantes do MST um espao simblico de luta e de esperana.

    65 Parte das informaes aqui expostas foram obtidas em correspondncia eletrnica enviada pelo mandato

    do Deputado Dionilso Marcon, em 26 de maio de 2010. Disponvel em http://www.al.rs.gov.br.

  • 45

    A tamanha desproporcionalidade da ao pode demonstrar que o objetivo dos policiais era

    ingressar no assentamento fora para realizar a diligncia e a possibilidade de um conflito

    poderia ser inevitvel gerando um clima de terror e medo entre os participantes do encontro,

    uma vez que desde a madrugada presenciavam a chegada de um grande aparato policial, com

    vrios nibus e caminhes de cavalaria da polcia de choque.

    Os policiais solicitaram a listagem completa dos passageiros que tinham chegado ao local em

    17 nibus. Aps a vistoria os policiais no encontraram qualquer um dos supostos objetos.

    Esses fatos demonstram como atuam conjuntamente os poderes do Executivo e Judicirio que

    permitem a criminalizao quando deferem liminares, desocupaes e so executados de

    forma violenta pelas polcias do Estado.

    3.3 Da denncia de lideranas do MST pelo Ministrio Pblico Federal com base na Lei de Segurana Nacional

    Alm das aes civis pblicas ajuizadas pelo Ministrio Pblico Estadual, o Ministrio

    Pblico Federal se baseou na Lei de Segurana Nacional66 Lei n. 7.170/83 para apresentar

    denncia contra lideranas do MST de assentamentos prximos a Fazenda Coqueiros, no

    municpio de Coqueiros do Sul.

    A Lei de Segurana Nacional foi promulgada em plena Ditadura Civil-Militar no Brasil

    (1964-1988), sendo a primeira verso datada de 1967 (que transforma em legislao a

    doutrina da segurana nacional, fundamento do Golpe de Estado utilizado pelas Foras

    Armadas), uma segunda verso de 1969 e a terceira e ltima verso, em 14 de dezembro de

    1983. Esta lei define os crimes contra a segurana nacional, a ordem poltica e social e

    estabelece seu processo e julgamento. Os tipos penais nela previstos criminalizam condutas

    contrrias ao Regime de Exceo que pretendiam o restabelecimento do Estado Democrtico

    66

    Denncia do Ministrio Pblico Federal no mbito do Inqurito policial n. 2007.71.18.000178-3/RS

  • 46

    a exemplo: formao de associaes ou grupos que lutassem pela derrubada do Regime

    Militar, espionagem contra o governo, propagandas para alterao da ordem poltica vigente,

    etc.

    O Ministrio Pblico Federal, ressuscitando legislao que havia sido tacitamente revogada

    com a nova ordem constitucional e democrtica, indiciou integrantes do MST como incursos

    nos seguintes artigos:

    Art. 16 - Integrar ou manter associao, partido, comit, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudana do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaa. Pena: recluso, de 1 a 5 anos. Art. 17 - Tentar mudar, com emprego de violncia ou grave ameaa, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito. Pena: recluso, de 3 a 15 anos. Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqestrar, manter em crcere privado, incendiar, depredar, provocar exploso, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo poltico ou para obteno de fundos destinados manuteno de organizaes polticas clandestinas ou subversivas. Pena: recluso, de 3 a 10 anos. Art. 23 - Incitar: I - subverso da ordem poltica ou social; (...) Pena: recluso, de 1 a 4 anos.

    Segundo a denncia, os grupamentos dos quais faziam parte os acusados constituram um

    Estado paralelo, com organizao e leis prprias, nos quais era negada autoridade aos poderes

    constitudos da Repblica Federativa do Brasil. Os denunciados resistiram ao cumprimento de

    ordens judiciais, desprestigiaram o Poder Judicirio e ignoraram a legitimidade da Brigada Militar

    para fazer cumprir a lei. Negaram vigncia, portanto, a smbolos essenciais do Estado de Direito. E

    mais, a denncia alega sem trazer qualquer comprovao, a existncia de indcios de que

    organizaes estrangeiras, tais como a Via Campesina e as FARC Foras Armadas Revolucionrias

    da Colmbia, estariam apoiando os acampamentos do MST 67

    67

    Denncia do Ministrio Pblico Federal no mbito do Inqurito policial n. 2007.71.18.000178-3/RS

  • 47

    No dia 11 de abril de 2008, o juiz da Vara Federal de Carazinho recebeu e acatou a denncia

    do Ministrio Pblico Federal68:

    Segundo o magistrado, a Lei de Segurana Nacional prev delitos que lesem ou exponham a

    perigo a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrtico,

    a Federao e o Estado de Direito, ou a pessoa dos chefes dos poderes da Unio. Em

    conseqncia, para o juiz, os membros do MST acampados prximos Fazenda Coqueiros

    integram um grupamento que tem o por objetivo atentar contra o Estado de Direito, por meios

    violentos, saqueando e depredando, por inconformismo poltico e para obteno de fundos para a sua

    manuteno, incitando subverso da ordem social, luta violenta contra as classes sociais e

    integrando organizao militar com finalidade combativa.69

    A ao do MPF foi impetrada contrariamente as concluses do inqurito penal da Polcia

    Federal que investigou o MST durante todo o ano de 2007, e concluiu inexistirem vnculos do

    movimento com as FARC, presena de estrangeiros realizando treinamento de guerrilha nos

    acampamentos e inexistir a pratica de crimes contra a segurana nacional.

    Esses so alguns fatos que comprovam a criminalizao do MST no Rio Grande do Sul que

    no atual governo ganhou um impulso ao passar por diversos poderes .

    Os fatos acima expostos demonstram que autoridades brasileiras tm sido responsveis por

    aes violentas e arbitrrias contra famlias de trabalhadores rurais em acampamentos do

    MST. A situao torna-se de maior gravidade porque as aes dos agentes estatais de

    segurana pblica esto agora respaldadas por uma determinao interna do Conselho

    Superior do Ministrio Pblico estadual e posteriormente, por decises do Poder Judicirio,

    que passaram a qualificar o MST como crime organizado e imputar a seus integrantes

    crimes contra segurana nacional.

    68

    Deciso do Juiz da Vara Federal de Carazinho no mbito do Inqurito policial n. 2007.71.18.000178-3/RS

    69 Idem

  • 48

    CONCLUSO

    No entendimento desse trabalho cumprem os defensores de direitos humanos um papel

    fundamental para o fortalecimento da luta pela igualdade e contribuem, atravs de sua

    resistncia, para o avano de direitos no pas. Com isso, incomodam e desafiam poderes

    polticos e econmicos responsveis pela manuteno da desigualdade, ficando eles prprios

    sujeitos a uma vastssima gama de violaes.

    Na elaborao desse trabalho foram analisadas algumas formas de criminalizao dos

    defensores e defensoras de direitos humanos. Uma dessas formas visvel na judicializao

    do protesto social e na intimidao de defensores pela via judicial. O sistema de justia

    tambm contribui para a criminalizao quando inverte a posio dos defensores de direitos

    humanos em processos judiciais, passando da condio de vtimas para a de rus.

    Na pesquisa desse trabalho tambm foi verificado que os movimentos sindicais seguem sendo

    criminalizados quando mobilizados em relao aos interesses dos trabalhadores. Para impedir

    a organizao e greves so expedidos interditos proibitrios e aes judiciais que restringem

    os direitos de greve.

    Tambm foi compreendido a criao de territrios de exceo como justificativa para

    combater grupos que atentam contra o Estado democrtico de direito e o que vem sendo

    banalizado no pas. Assim, qualquer ao dos movimentos sociais como marchas, passeatas e

    ocupaes de terras transformam-se em matria de defesa nacional e militarizao desses

    espaos pelas foras policiais e por outros agentes pblicos.

    Diante desse quadro algumas solues propostas para mitigar os efeitos da criminalizao e o

    elevado nmero de conflitos no campo so: a) Criao de uma Comisso Estadual de

    Mediao de Conflitos Agrrio; b) Recomendar Brigada Militar que adote o Manual de

    Diretrizes Nacionais para Execuo de Mandatos Judiciais de Manuteno e Reintegrao de

  • 49

    Posse coletiva da Ouvidoria Agrria Nacional; c) Garantir s crianas dos acampamentos do

    MST acesso aos direitos humanos educao, sade e alimentao adequada; d)

    Responsabilizar os agentes do Estado que se utilizam do cargo de poder para cometer crimes

    de tortura e arbitrariedades contra os movimentos sociais; e) Criar espaos de dilogos entre

    os movimentos sociais e a sociedade a fim de construir uma imagem positiva desses

    movimentos, ou seja alterar a percepo de como eles so vistos para reconhecer o seu valor e

    suas lutas.

  • 50

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    AGAMBEM, Giorgio. Estado de exceo. Coleo Estado de Stio. So Paulo: Boitempo, 2004.

    AFONSO DA SILVA, Jos. Poder Constituinte e Poder Popular; 1 ed. So Paulo; Malheiros Editores; 2007.

    AFONSO DA SILVA, Jos. Curso de direito Constitucional; 33 ed. So Paulo. Editora Mal