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www.issuu.com/postaldoalgarve 8.072 EXEMPLARES Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO ABRIL 2015 n.º 79 D.R. Recursos patrimoniais versus sustentabilidade: o caso de Vila do Bispo p. 10 FNAC: cada vez mais um pólo cultural p. 5 Panorâmica: D.R. Americanah, uma obra de Chimamanda Ngozi Adichie p. 4 D.R. Grande ecrã: 59 anos de cinema em Faro p. 3 Espaço Alfa: A paixão pelos retratos a preto e branco D.R. p. 7 D.R. Letras e Leituras: Herberto Helder, in memoriam p. 11 D.R. Da minha biblioteca:

CULTURA.SUL 79 - 10 ABR 2015

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 10/04) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > GRANDE ECRÃ: 59 anos de cineclube em Faro > LETRAS E LEITURAS: Americanah, uma obra de Chimamanda Ngozi Adichie, por Paulo Serra > PANORÂMICA: Fnac: Cada vez mais um pólo cultural, por Ricardo Claro > ESPAÇO ALFA: O A paixão pelos retratos a preto e branco, por Tânia Guerreiro > DA MINHA BIBLIOTECA: Herberto Helder, in memoriam, por Adriana Nogueira

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Page 1: CULTURA.SUL 79 -  10 ABR 2015

www.issuu.com/postaldoalgarve8.072 EXEMPLARES

Mensalmente com o POSTAL

em conjuntocom o PÚBLICO

ABRIL2015n.º 79

d.r

.

Recursos patrimoniais versus sustentabilidade:

o caso de Vila do Bispo p. 10

FNAC: cada vez mais um pólo cultural p. 5

Panorâmica:

d.r.

Americanah, uma obra de Chimamanda Ngozi Adichie

p. 4

d.r.

Grande ecrã:

59 anos de cinema em Faro

p. 3

Espaço Alfa:

A paixão pelos retratos a preto e branco

d.r.

p. 7

d.r.

Letras e Leituras:

Herberto Helder, in memoriam

p. 11

d.r.

Da minha biblioteca:

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10.04.2015 2 Cultura.Sul

AGENDAR

A Memória é dos grandes.Não a memória de cada um

de nós, mas a Memória, a coisa colectiva que recorda o que ver-dadeiramente importa e é repo-sitório da identidade cultural de um povo.

Essa universalidade imaterial feita de vapores da imagem que nos deixam aqueles que são ver-dadeiramente marcantes e, mui-tas vezes, feita de um ideário co-lectivo transmitido de geração em geração em cumprimento do passar ao futuro a lembrança do que verdadeiramente não se pode jamais esquecer.

A Memória, esta, é dos gran-des, dos grandes factos e acon-tecimentos, dos grandes medos e temores, dos maiores perigos e lutas, das melhores e das pio-res personagens que povoaram esta nossa terra.

Aos verdadeiramente gran-des reservamos por acto qua-se compulsivo de criar um pa-trimónio identitário, que se vai construindo de mil peças, um lugar nela. Está reservado a estes enormes de todos os tempos, pessoas e factos, um espaço de relevo na tábua rasa da História e nela, sulcadas a ferro quente, ficam as marcas de quem e do que verdadeira-mente importa.

Muitos tudo fazem para ca-berem neste rol de eleitos, e tantas vezes falham miseráveis, outros simplesmente existem e pela simples existência, de um valor que muitas vezes têm por somenos, são verdadeiros pro-prietários de um lugar nos anais da suprema forma de existência.

Exemplos por direito deste direito à Memória, Herberto Hélder e Manoel de Olivei-ra são, hoje já não entre nós, aquilo que já eram antes, dig-nos nomes da nossa Memória colectiva.

A Memória é dos grandes Património Cultural Imaterial no Algarve:

Passado, Presente e Futuro

A cultura é hoje perspetiva-da como um processo de cons-tante produção de significados, como forma de construção de identidade social. Qualquer po-lítica cultural deve promover a reconstrução de uma identi-dade pelos grupos sociais, ou mesmo pelos indivíduos, aten-dendo às especificidades locais, aos seus públicos e formas de expressão culturais (incluindo as tradições).

A par das tendências globali-zantes e de uma uniformização de comportamentos e modelos de desenvolvimento associados a uma sociedade designada de pós-moderna, emergem as preocupações com o reconhe-cimento e salvaguarda das iden-tidades culturais locais.

Recorrendo às palavras de Luís Aires-Barros (1995:2) a pro-pósito do património construí-do “Quando o povo perde o seu património cultural, perde-se na memória do futuro, já que o seu passado não tem futuro e no presente não guardamos a sua memória”1.

No entanto, o Património

Cultural Imaterial (PCI) e as suas manifestações diferem do património móvel e imóvel em definição, mas também em formas de proteção. Podem ser incluídos no PCI: tradições e ex-pressões orais; expressões artís-

ticas e manifestações de caráter performativo; práticas sociais, rituais e festivais; conhecimen-tos e práticas relacionadas com a natureza e o universo; e sabe-res e técnicas tradicionais.

Por sua vez, os bens móveis e imóveis possuem três níveis de proteção: interesse nacional, pú-blico ou municipal, enquanto

que o PCI tem previsto no âm-bito do seu regime de proteção legal, o registo no Inventário Nacional do PCI, como a sua forma principal de salvaguarda (Dec. Lei n.º 139/2009 de 15 de Junho e Portaria n.º196/2010,

de 9 de Abril).Quando o PCI em processo

de inventariação não está em risco eminente de desapare-cimento ou ameaça a sua for-ma de proteção e salvaguarda traduz-se no registo em Inven-tário Nacional, mas quando há uma manifestação em risco de desaparecimento no curto ou

médio prazo, o regime jurídico de proteção legal denomina-se “salvaguarda urgente”.

Uma vez que estamos em pe-ríodo de grandes festividades re-ligiosas associadas à quadra Pas-cal, há que assumir que algumas

destas manifestações são hoje importantes marcos das dinâ-micas da identidade regional e local que importa salvaguardar.

O Algarve inclui várias ma-nifestações de Património Cul-tural Imaterial que é necessário registar, inventariar e salvaguar-dar. A consagração de Dieta Me-diterrânica como Património

da Humanidade pela UNESCO trouxe um grande impulso e outro olhar sobre este ‘novo património’, mas outros inte-ressará reconhecer e proteger.

Com o envolvimento direto da Direção Regional da Cultura do Algarve, para além do apoio à salvaguarda da Dieta Medi-terrânica, decorre durante este ano, o apoio técnico à inventa-riação e registo de quatro ma-nifestações: a Festa da Chouriça de Querença (Loulé), a Festa das Tochas Floridas de São Brás de Alportel, a Festa da Pinha em Es-toi (Faro) e na doçaria regional, o Dom Rodrigo em Lagos.

No âmbito do PCI incluem--se saberes, técnicas, objetos e lugares que as comunidades reconhecem como sua per-tença e que são transmitidos de geração em geração, sendo objeto de constante recriação e proporcionando um senti-do de continuidade e de iden-tidade. Este é um processo de toda a comunidade, pelo que, esperamos que seja o início de muitos outros registos que nos ajudem a preservar a memó-ria e a identidade futura do Algarve.

1 Aires-Barros, L. (1995) As grandes questões

do património cultural construído, SPPC (2), Évora

Os jovens e as conquistas de Abril

A pergunta que o J faz a alguns jovens desta terra vem muito a propósito, não só pelo facto de estarmos no mês de Abril, mas também como barómetro para

se perceber a importância da Re-volução e suas consequências na óptica desta geração.

É bem verdade que o valor da liberdade, da livre opinião ou da plural manifestação político--partidária, por exemplo, são um legado que não é questio-nado pelos nossos jovens, com alguma naturalidade, porque coabitam com eles desde que tomaram consciência. A ques-tão que se colocava era: será que as gerações mais novas têm co-nhecimento de que as liberdades

de Abril foram uma conquista e que estavam vedadas aos jovens, como eles, antes de 1974?

Pelo conteúdo das respos-tas, sim. Não é despiciendo, pois, que se continue a come-morar o 25 de Abril e as suas conquistas, no mínimo para que a sua mensagem possa ir chegando sempre às gerações subsequentes.

Acontece, porém, que as res-postas destes jovens reflectem uma profunda consciência po-lítica e social de então, mostran-

do-se agradecidos por serem beneficiários da Revolução. Mais. Alguns deles fazem o transporte dos valores de Abril para a situ-ação social actual do País, num raciocínio de exigência e incon-formismo, o que mostra uma geração crítica e atenta.

Não sabemos, pois, se esta amostra de seis respostas é uma demonstração de como pen-sam a globalidade dos jovens de Olhão, conquanto possamos ficar satisfeitos por aqueles que vamos auscultando.

Ricardo [email protected]

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

Carlos CampaniçoEscritor

d.r.

“SUSSURROS”Até 27 ABR | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - AlbufeiraSamantha Couto mostra um conjunto de pinturas no formato retrato de mulheres que usam véu para esconder a sua identidade

“CONCERTO PELA JAZZ’ARTE BIG BAND”25 ABR | 21h30 | Centro Cultural de LagosO repertório do concerto consistirá em standards e originais do jazz moderno assim como um arran-jo de “Era um Redondo Vocábulo” do emblemático cantautor Zeca Afonso

d.r.

Saberes, técnicas, objetos e lugares são transmitidos de geração em geração

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10.04.2015  3Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Salvaguardar o património cultu-ral imaterial é torná-lo viável e para tal há que atender à vida das pesso-as propriamente dita, aos contextos onde as manifestações se desenro-lam e a aspectos estruturantes das comunidades, nomeadamente a sustentabilidade económica, social e ambiental. Não sou eu que digo isto, é a “Convenção para a Salvaguarda do Património Imaterial”, adoptada pela UNESCO, em 2003, e transpos-ta para o regime jurídico português, em 2009.

No ano passado, em pleno Ano Internacional da Agricultura Fami-liar, mais ou menos por esta altura escrevi, neste mesmo jornal, sobre a necessidade de um enquadramento legislativo adequado para salvaguar-

dar práticas e saberes tradicionais no campo da produção alimentar que constituem, atualmente, património cultural imaterial (lembremo-nos da dieta mediterrânica, por exemplo). Vimos que esta questão se relaciona com a oportunidade dos produtos chegarem ao circuito comercial e posteriormente à nossa mesa. Numa pequena unidade familiar de explora-ção agrícola, guardada a quantidade suficiente para consumo próprio, o restante serviria para venda, de for-ma a garantir mais uns rendimentos, para juntar a, frequentemente, ma-gras reformas e/ou subsídios. Com isto estaríamos não só a garantir a transmissão de saberes e usos tra-dicionais mas também a reproduti-bilidade de variedades autóctones, vegetais e animais, que nos servem de alimento, e também de comidas, cheiros e sabores de outros tempos. Saberes e sabores já por si muito frá-geis face a uma hegemonização do gosto.

Vamos dar uma volta pelo cam-po, aqui, nos algarves - o que vemos? Entre paisagens muito belas, vê-se, por exemplo, a fruta da época a apodrecer nas árvores ou no chão (enquanto que

espécimes similares são pagos a pre-ços altos nas grandes superfícies, sen-do frequentemente trazidos de longe e aumentando a pegada ambiental). E porquê? Entre outros factores, as pes-soas que têm pequenos excedentes não os podem vender sem terem o devido enquadramento fiscal que, feitas as contas, não lhes é vantajoso. E mesmo que cumpram todas as regras, se não podem vender os seus produtos a um preço justo, o mais provável é que dei-xem de os cuidar/cultivar de todo ou os

substituam por outros mais rentáveis, mais favoráveis às exigências do merca-do. Para não falar do enquadramento legal que preside à indústria artesanal de transformação alimentar - bem ver-dade que o mesmo serve para garantir que o consumo seja seguro, no entan-to também faz com que produtos feitos na porta ao lado, com todo o preceito, não cheguem à minha mesa - seja em casa, numa cantina ou num restaurante.

Talvez me esteja a escapar algo. Se ca-lhar não estou a ver corretamente todas

estas questões.No final de março, o Conselho de

Ministros aprovou um regime jurídi-co aplicável aos mercados locais de produtores, e passo a citar o comu-nicado, “que prevê a criação de mer-cados de proximidade, promovendo o desenvolvimento dos produtos lo-cais e do consumo local. Os sistemas agroalimentares locais estimulam a economia local e promovem a intera-ção social entre as comunidades rural e urbana, desempenhando funções que beneficiam os produtores, os consumidores, o ambiente e a eco-nomia local”.

Espero que esta legislação, cujo conteúdo efetivo se desconhece por ora, ajude a chegar ao meu prato as nêsperas do sr. José, os chícharos da dona Maria, as alcagoitas da dona Elvira, os maragotões do sr. Chico… (hipotéticos nomes de camponeses e, em simultâneo, agentes de patrimó-nio cultural imaterial) e consiga dar resposta a outros problemas que se colocam hoje no panorama da pro-dução alimentar familiar. E que, actu-almente, e de um ponto de vista mais alargado, também dizem respeito à gestão cultural. A ver vamos.

Grande ecrã

Outra vez o património cultural imaterial, outra vez os mercados

Luísa RicardoAntropóloga, sócia da AGECAL

d.r.

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO AN-TÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS16 ABR | LEVIAFAN - LEVIATHAN (LEVIA-TÃ), Andrey Zvyagintsev – Rússia 2014 (140’) M/12

23 ABR | OUTRO PAÍS: MEMÓRIAS, SO-NHOS, ILUSÕES..., Sérgio Tréfaut – Portu-gal 2000 (70’) M/1230 ABR | SELMA (... A MARCHA DA LI-BERDADE), Ava DuVernay – Reino Unido/E.U.A. 2014 (128’) M/12

59 anos de cinema em FaroO Cineclube de Faro celebrou

no dia 6 de Abril o seu 59º aniver-sário. Os filmes deste mês serão, assim, uma comemoração em jei-to de comédia, com o ciclo “A Rir Há 59 anos”, que teve início no dia 7 com “Viva a Liberdade”, de Ro-berto Andó. Destaque para a últi-ma sessão, dia 28, no Teatro das Figuras, com “O Circo”, de Charles Chaplin, a subir ao palco na com-panhia de Catherine Morisseau, pianista que colabora com a Ci-nemateca Portuguesa, que lhe en-comendou um trabalho original para acompanhar esta obra única.

Este mês há também uma no-vidade nas sessões para sócios que decorrem todas as 5ªs feiras, na sede do CCF, gratuitamente. Desta vez serão os próprios sócios responsáveis pela programação mensal. A estrear este novo for-mato teremos a associada Clarisse Rebelo que propõe uma jornada pelo mundo dos Filmes Musicais, começou a 9 de Abril, com “Va-mo-nos Amar”, de George Cukor.

O Fórum Cinema Sobre Tran-sição é outro dos destaques, a

partir de 10 de Abril, no Ginásio Clube de Faro. A abrir teremos “Economia da Felicidade”, um olhar sobre a falência do actual modelo económico e os encon-tros de comunidades que visam reconstruir economias a uma escala mais humana, ecológica e localizada.

Nota de especial destaque

merece a festa de aniversário do CCF, promovida em colaboração com o Palácio do Tenente, dia 11, com um cine-concerto da dupla britânica ‘Nagra’, num espectá-culo único de comunhão entre cinema e música, para celebrar o 59º aniversário deste que é um dos mais importantes e antigos cineclubes do país.

fotos: d.r.

Cineclube de Faro Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

CICLO “A RIR HÁ 59 ANOS”IPJ | 21.30 HORAS | ENTRADA PAGA14 ABR | “AMAR, BEBER E CANTAR”, Alain Resnais21 ABR | “O GRANDE KILAPY”, Zézé Gamboa 28 ABR | “O CIRCO”, Charles Chaplin

A TELA AOS SÓCIOS: “FILMES MUSICAIS” | 21.30 HORAS | SEDE CCF16 ABR “BIRD - FIM DO SONHO”, Clint Eastwood23 ABR | “A DIVA E OS GANGSTERS”, Jean---Jacques Beineix30 ABR | “ENSAIO DE ORQUESTRA”, Fede-rico Fellini

FÓRUM CINEMA SOBRE TRANSIÇÃO | GI-NÁSIO CLUBE FARENSE | 2130 HORAS 10 ABR | INTRODUÇÃO À TEMÁTICA “ECO-NOMIA DA FELICIDADE”24 ABR | SAÚDE, ALIMENTAÇÃO E AGRI-CULTURA “SEMENTES DA LIBERDADE”

SESSÃO ESPECIAL | CINEMA GLÓRIA | VILA REAL DE STO. ANTÓNIO | 21.30 HORAS10 ABR | “DEBAIXO DA PELE”, Jonathan Glazer

Page 4: CULTURA.SUL 79 -  10 ABR 2015

10.04.2015 4 Cultura.Sul

Uma questão de cabelo (e de cor): Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie

Na internet pode-se encon-trar um vídeo de uma TedTalk em que Chimamanda Ngozi Adichie narra como cresceu a ler histórias infantis e juvenis de crianças de cabelos louros e olhos azuis, que adoravam brin-car na neve, comer maçãs e fala-vam frequentemente do tempo e da sorte que tinham quando fazia um dia de sol. A ficção não podia ser mais gritantemente distinta da realidade desta auto-ra, traduzida agora em mais de 30 línguas, nascida na Nigéria em 1977, que foi estudar para os Estados Unidos aos dezanove anos. 

Mais tarde, os seus contos apareceram em diversas pu-blicações e receberam inúme-ros prémios. Os seus primeiros romances foram amplamente premiados: A Cor do Hibisco foi distinguido com o Com-monwealth Writers Prize 2005, finalista do Orange Broadband Prize 2004 e nomeado para o Man Booker Prize 2004; Meio Sol Amarelo venceu, em 2007, o Orange Broadband Prize, o Anisfield-Wolf Book Award e o PEN “Beyond Margins Award”.

Aqui interessa falar de Ame-ricanah, o mais recente e igual-mente aclamado romance. A história segue a vida adulta de uma nigeriana, Ifemelu, que vive na América e alcançou um certo estatuto na sua vida. Conseguiu uma bolsa em Princeton, tem uma relação com Blaine, pro-fessor em Yale, um homem que lhe é completamente dedicado, é conhecida pelo seu blog sobre questões de raça onde a sua voz é reconhecida como mordaz, in-teligente, divertida.

Mas esta mulher não está completamente satisfeita. Ao sentar-se num salão de cabelei-reiro especialmente dedicado a cabelo africano, com as jovens empregadas do salão a circular em seu redor, constatando (que é como quem diz invejando) a sua pronúncia, o seu sucesso, Ifemelu parece apenas refletir

no seu passado, mergulho esse que é motivado pela cisão que se afigura na sua vida, pois esta jovem nigeriana entretanto americanizada, mas só até certo ponto, decide deixar o estatuto que alcançou para voltar ao seu país natal. E dizemos america-nizada (daí o título do roman-ce: Americanah, com a ironia característica da voz da heroína e da autora patente na corrup-tela da palavra americana), até certo ponto, porque esta jovem continua presa às memórias da Nigéria, memórias essas que irão desfilar ao longo do resto do ro-mance, que nos apresenta a sua vida passada: a infância e adoles-cência na Nigéria, o seu namoro com Obinze, a vida dos seus pais, da sua tia, numa espécie de mo-saico da realidade nigeriana das últimas décadas. As dúvidas que rondam Ifemelu transparecem no próprio facto de para

encontrar esse salão africano, a protagonista tem de atravessar a zona de conforto onde reside para chegar a Trenton, uma es-pécie de subúrbio, o que reflete a intenção crítica social, cultural e racial do romance. Tal como Ife-melu faz no seu blog, ao escrever e lançar debates sobre questões de raça e de género, Chimaman-da dança na corda bamba con-seguindo manter um delicado

equilíbrio entre a lamechice de um romance que fala de uma paixão perdida na adolescência para mais tarde poder vir a ser reencontrada e as questões de identidade que atravessam esta mulher africana a viver num país estrangeiro.

Durante o decurso do que pa-recia uma adolescência absoluta-mente pacífica, no seio de uma família carinhosa e com uma

boa situação económica, a di-tadura deflagra na Nigéria, com consequências mais ou menos diretas e imediatas junto da sua família. O pai é despedido por-que se recusa a dirigir-se à sua chefe como “Mamã” conforme ela o obriga. A tia Uju, amante de um general e que vivia num apartamento subsidiado por essa figura da nação, de forma luxuosa sem ter de trabalhar, acaba por se ver sem chão. E assim, a posição económica dos pais decresce, enquanto o próprio país vive tempos con-turbados, que se traduzem em constantes greves no ensino e que motivam a partida de Ife-melu para os Estados Unidos da América apesar das dificuldades económicas que os pais atraves-sam e, por conseguinte, ela tam-bém, chegando a passar fome e, a certa altura, a ter de se prosti-tuir para conseguir alimentar-se.

Naturalmente que este não é um romance sobre os flagelos da escravatura, ou do apartheid, mas reflete como na contempo-raneidade o ser humano ainda continua a balizar-se por pre-conceitos e estereótipos. O pró-prio livro parece ter capítulos e capítulos em que se fala de ca-belo, onde se descrevem exaus-tivamente os tratamentos que o cabelo típico de uma mulher africana deve levar, aliás peno-sos. A questão do cabelo, mais do que a cor, e a forma como a mulher o usa, acaba por refletir a adaptação desta jovem nigeriana ao meio americano: Ifemelu vive e move-se na América, mas recu-sa-se a esticar o cabelo de forma a parecer mais ocidental, mais civilizada, para ser mais facil-mente aceite nos meios em que se move. Tal como a certa altura do romance se pode ler como a irrita particularmente o facto de

as empregadas do salão, do Mali e do Senegal, parecerem esperar dela, apenas por partilharem a mesma cor, uma espécie de sen-timento de irmandade, da mes-ma forma que a irrita, por outro lado, que outros se refiram a ela como africana, como se o conti-nente da África fosse todo um país. Mas corre-lhe nas veias o sangue africano ou nigeriano, e por isso mesmo Ifemelu boico-ta a sua relação perfeita com um homem negro perfeito, Blaine, como manifestação de um sen-timento maior de inadaptação ao país. Sentimento esse de não pertença que está também per-sonificado na relação de amor entre Ifemelu e Obinze que de-pois de tantos anos, e como se esse fosse também um dos pre-parativos para a sua partida de regresso à Nigéria, despindo a pele de mulher americanizada, que anseia apenas pela sua terra e pelo rapaz agora homem que nunca deixou de amar, ainda que a sua memória possa estar tão-somente envolta numa ne-blina romântica de idealismo e platonismo, que funciona como armadura contra a negri-tude que os envolve. O próprio Obinze acaba por tentar a vida em Londres mas vê-se reduzido a trabalho pesado, clandestino e mal pago, enquanto outro nigeriano que terá alcançado grande sucesso quando emi-grou (uma mentira que ele tenta alimentar a todo o custo até confessar a verdade ao seu amigo de juventude) lhe ten-ta arranjar um casamento por conveniência que lhe permita obter um visto de residência, o que acaba de forma desastrosa. Paradoxalmente, quando se vê obrigado a regressar à Nigéria, a posterior ascensão de Obinze reveste-se ainda de uma sombra duvidosa quanto à legalidade do seu trabalho, ainda que seja essa mesma obscuridade que permitem a aparência de uma vida perfeita, com uma casa pa-laciana, e uma mulher apostada em manter o luxo que acha ade-quado à sua existência.

Chimamanda é uma jovem escritora em ascensão com a sua própria voz, onde prima pelo seu espírito crítico e inteligente-mente divertido, e que nos dá a conhecer mais uma faceta des-se mundo imenso que muitas vezes nos reconhecemos a ver, perdidos que estamos na nossa imensa pequenez.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

Letras e Leituras

foto

s: d

.r.

A escritora Chimamanda Ngozi Adichie

Page 5: CULTURA.SUL 79 -  10 ABR 2015

10.04.2015  5Cultura.Sul

FNAC cada vez mais próxima dos algarvios

FNAC Faro e UAlg celebram protocolo que pretende gerar sinergias

fotos: ricardo claro

Panorâmica

Três meses e meio depois da abertura do espaço FNAC em Faro a estratégia da multinacio-nal para o Algarve está deline-ada e passa por reforçar de for-ma notória a proximidade com os algarvios, seja na nova FNAC farense, seja no espaço do Algar-veShopping.

Desejada durante anos na ca-pital algarvia, a FNAC não deixa por mãos alheias os seus crédi-tos e a filosofia de estabelecer em cada espaço FNAC uma relação de grande proximidade e cum-plicidade com os clientes assu-me um papel preponderante no posicionamento estratégico da empresa.

O primeiro passo foi dado re-centemente, referiu ao CULTU-RA.SUL José d’Orey, responsável pela FNAC farense, com a cele-bração de um protocolo com a Universidade do Algarve.

Uma parceria explicada ao CULTURA.SUL numa conversa em que a Universidade do Algar-ve esteve representada por Joana Lessa, sub-directora do curso de Design de Comunicação da ins-tituição, e onde a nota de realce vai para as vantagens que ambas as entidades vêem num estreitar de relações em prol do mútuo desenvolvimento e, muito em particular, em prol da cidade e da população universitária da Universidade do Algarve.

Muito mais do que os descon-tos e vantagens decorrentes, o protocolo agora celebrado para a população universitária, alunos e corpos docente e não docente da universidade, esta união estra-tégica avança com a disponibi-lização de estágios profissionais para os alunos da instituição de ensino superior regional na es-trutura da FNAC a nível regional e nacional e na criação de espaço para divulgação da produção de conhecimento da instituição.

Estágios profissionais integram parceria entre

a UAlg e a FNAC

José d’Orey destaca que neste momento já existe um estudan-te da universidade a estagiar na sede nacional da FNAC, na área de Comunicação, e que em bre-

ve outro aluno da instituição irá integrar a equipa da loja de Faro.

A professora Joana Lessa subli-nha, por seu turno, a importân-cia de mais esta parceria na área de estágios para a instituição de ensino, dando como exemplo o curso de Design de Comunica-ção. “Trata-se por um lado de acrescer ao portefólio de enti-dades e empresas com as quais temos parcerias na área dos está-gios curriculares de uma grande multinacional, proporcionando aos alunos uma experiência profissional numa grande ca-deia nacional durante o estágio

curricular e, por outro, permitir criar mais uma forma de integrar o conhecimento criado na uni-versidade no âmbito empresa-rial, levando os estudantes para as empresas, neste caso a FNAC, um olhar refrescado sobre as diversas questões com que se confrontam em meio laboral prático”.

Para a FNAC, refere José d’Orey, “é positiva a integração de estudantes nos seus quadros que têm uma postura menos cristalizada face à realidade e aos desafios que lhes são coloca-dos na esfera profissional”. “São

profissionais qualificados que transportam consigo conheci-mento, reflexão e inovação que o mundo universitário permite e desenvolve e que constituem uma mais-valia para as empresas que, como a FNAC, tentam sem-pre manter-se na vanguarda da oferta que disponibilizam”.

Divulgação do trabalhoda universidade juntoda população em geral

Já na área da divulgação da produção da Universidade do Algarve a aposta da FNAC e da

instituição académica passa por trazer a universidade e o know--how ali produzido para fora dos limites da instituição.

Além da criação de um área devidamente identificada no espaço FNAC de Faro para pu-blicações da Universidade do Algarve ou realizadas em parce-ria com a instituição académica, a FNAC disponibiliza o Fórum FNAC para apresentações de li-vros e de publicações variadas por parte da universidade.

Uma ferramenta importante quando se pensa que a FNAC de Faro espera 1,2 milhões de visitantes em 2015, o que pode representar uma visibilidade e uma divulgação de relevo do trabalho da universidade junto da população em geral.

Mesmo do ponto de vista da divulgação das iniciativas univer-sitárias este protocolo permite criar sinergias entre a universida-de e as cerca de 10.700 pessoas que integram a população uni-versitária e a população em geral que podem em muito potenciar o trabalho da instituição junto da comunidade, realça José d’Orey.

Queremos que nesta parceria como noutras que vamos esta-belecendo em permanência a FNAC seja um verdadeiro palco para o que se faz na região. Por isso mesmo, realça o responsável, das 400 iniciativas que prevemos realizar no Fórum FNAC em Faro, queremos que cerca de metade sejam desenvolvidas por agentes locais.

“Estamos em permanente di-álogo com a comunidade, quer através dos nossos clientes, quer através do meio associativo que no Algarve tem grande activida-de e importância e desejamos que a FNAC possa desempenhar um papel de relevo enquanto agente cultural de referência para Faro e para a região”, refere.

O certo é que a FNAC do Fó-rum Algarve é hoje um espaço incontornável em Faro e para o Sotavento algarvio, com uma ac-tividade cultural programada e consistente que permite falar de uma nova centralidade cultural na região.

Exactamente aquilo por que ansiavam aqueles que tanto es-peraram pela abertura deste es-paço na capital algarvia. A pro-messa de manter uma relação de proximidade e cooperação com a envolvente está assim a ser levada à prática num espaço que é hoje um destino obriga-tório para quem quer conhecer muito do que se faz de melhor a nível cultural no Algarve e no país.

Ricardo ClaroJornalista / [email protected]

Ficha Técnica:

Direcção:GORDAAssociação Sócio-Cultural

Editor: Ricardo Claro

Paginaçãoe gestão de conteúdos:Postal do Algarve

Responsáveis pelas secções:• Artes visuais:

Saul de Jesus• Espaço AGECAL:

Jorge Queiroz• Espaço ALFA:

Raúl Grade Coelho• Espaço Cultura:

Direcção Regionalde Cultura do Algarve• Da minha biblioteca:

Adriana Nogueira• Grande ecrã:

Cineclube de FaroCineclube de Tavira

• Juventude, artes e ideias: Jady Batista

• Letras e literatura: Paulo Serra• Momento:

Ana Omelete• O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot• Panorâmica:

Ricardo Claro• Património:

Isabel Soares• Sala de leitura:

Paulo Pires• Um olhar sobre o património:

Alexandre Ferreira

Colaboradoresdesta edição:Carlos CampaniçoLuísa RicardoRicardo SoaresTânia Guerreiro

Parceiros:Direcção Regional de Cultu-ra do Algarve, FNAC Forum Algarve

e-mail redacção:[email protected]

e-mail publicidade:[email protected]

on-line em: www.postal.pt

e-paper em:www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul

Tiragem:8.072 exemplares

José d’Orey e Joana Lessa explicaram ao Cultura.Sul a nova parceria

Page 6: CULTURA.SUL 79 -  10 ABR 2015

10.04.2015 6 Cultura.Sul

A arte e a ciência são mundos diferentes?Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg;Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Desde há muito tempo que a arte e a ciência andam interliga-das, sendo os primeiros grandes cientistas identificados na histó-ria também como artistas, como é o caso de Leonardo Da Vinci, considerado por White (2002) como o primeiro grande cien-tista da história da humanida-de. Leonardo afirmava o seguin-te: “Para uma mente completa, estude a arte da ciência, estude a ciência da arte; aprenda a obser-var, perceba que tudo se conecta a tudo” (Araújo-Jorge, 2004).

Nesta perspectiva da estreita ligação entre arte e ciência, já os gregos haviam designado Apo-lo como o Deus da Música e da Ciência e no juramento de Hipó-crates a medicina é considerada uma arte. E, por exemplo, as cer-ca de 600 pinturas e 1.500 gravu-ras descobertas nas cavernas de Lascaux, no sul de França, realiza-das antes de 10.000 aC, no perío-do paleolítico, tanto são referidas na história da ciência como na história da arte.

Este vínculo estreito entre ci-ência e arte parece ter existido até ao século XVI (Araújo-Jor-ge, 2004). No entanto, a cada vez maior especialização das várias áreas do conhecimento levou à perda de uma visão mais holística do saber e a um progressivo afastamento entre a arte e a ciência.

Em particular, com a criação das primeiras academias de ciên-cia, a partir do século XVI, come-çou a haver uma divisão entre os dois domínios no mundo acadé-mico. Ao contrário da Academia de Platão, na Antiguidade Clás-sica, em que a ciência, a arte e o desporto andavam interligados, as Academias de Ciências vieram promover uma clivagem entre a ciência e a arte. Entre 1568 e 1807 foram criadas cerca de 80

academias, tendo sido a primeira em Nápoles, em 1568. Nesta épo-ca, a que mais se destacou foi a de Roma, fundada em 1600, pois teve Galileu como um dos seus membros.

Desde então, as diferenças en-tre a arte e a ciência têm vindo a ser defendidas por diversos au-tores. A obra mais referenciada sobre a análise da separação en-tre arte e ciência é da autoria de Snow, que escreveu o livro “The two cultures” (1960). Este autor, na linha do dualismo cartesiano, que distinguiu entre o corpo e a mente, vem analisar a separação entre as artes e as humanidades, de um lado, e as ciências, do ou-tro, apresentando-as como “duas culturas” diferentes, opostas nos pressupostos, sendo a ciência considerada como racional e a arte como emocional.

Também tem sido salientado que a ciência procura aproxi-mar-se progressivamente duma “verdade” cada vez mais estável e constante na forma de explicar a realidade, enquanto a arte não tem nenhum compromisso com a verdade. Ou, conforme referia George Braque: “A arte está des-tinada a desconcertar, enquanto a ciência cria certezas” (Gante-fuhrer-Trier, 2005).

No entanto, a maior diferen-ça, para Thomas Kuhn (1962), seria que, enquanto os produtos da atividade artística do passa-do continuam a fazer parte da cena artística do presente, sen-do inclusivamente valorizadas, as obras científicas vão sendo ultrapassadas e desvalorizadas com o tempo.

Também Paul Valéry acentu-ava a diferença entre ciência e arte pelos produtos resultantes: “Ciência e arte são praticamente indissociáveis durante as fases de observação e de meditação (...) e separam-se definitivamente nos seus resultados” (Malysse, 2005), pois enquanto nas primeiras é esperado serem obtidos resulta-dos certos ou muito prováveis, nas segundas os resultados são muitas vezes incertos.

Não obstante todas as diferen-ças referidas, concordamos com Wilson, quando afirma que a arte e a ciência são os dois mo-tores da criatividade, mas erra-

damente são considerados tão diferentes como o dia da noite (2010).

Na mesma linha, Massarani, Moreira e Almeida (2006), ao procurarem responder à ques-tão “Para quê um diálogo entre ciência e arte?”, consideravam que ambas se nutrem da curio-sidade humana, da criativida-de, do desejo de experimentar. Neste sentido, o fazer artístico e o científico constituem duas faces complementares da ação e do pensamento humanos.

No seu livro “Centelhas de gé-nios. Como pensam as pessoas mais criativas do mundo”, M. Root-Bernstein e R. Root-Berns-tein (1999) sistematizam os estu-dos sobre o pensamento criativo, concluindo com a necessidade de articulação entre a ciência e a arte para o fomento da criati-

vidade, pois aprender a pensar criativamente numa área “abre a porta” para pensar criativamente nas outras.

Aliás, na história moderna, há vários casos de cientistas, inclusi-vamente vencedores de Prémios Nobel de medicina ou fisiologia, como são os casos de Roger Guil-lemin, Salvadore Luria ou Robert Holley, todos eles nascidos no sé-culo XX, que também desenvol-veram trabalhos no domínio da arte visual, sendo a criatividade necessária à produção científica e à produção artística que per-mite fazer a ponte entre os dois domínios. Tendo em conta esta realidade, Araújo-Jorge (2004) considera que as trajectórias do artista e do cientista podem ser semelhantes e, inclusivamente, complementares.

De acordo com Buss (2004),

“tanto a arte como a ciência são necessárias para o completo en-tendimento da natureza”, pelo que, conforme concluem De Meis e Rumjanek (2004), “não existem duas culturas; estamos inseridos numa única cultura e o que é preciso saber é como integrarmo-nos nela”.

Depois da voz e da escrita, a imagem tem uma importância cada vez maior nos processos de expressão e comunicação, pelo que a utilização da imagem visu-al é outro domínio em que pode ocorrer uma colaboração próxi-ma entre o cientista e o artista.

De acordo com a pintora Os-trower (1998), no seu livro “Sen-sibilidade e intelecto”, a imagem pode ser um bom instrumento para permitir estabelecer pon-tes entre a ciência e a arte, pois a imagem é universal.

Assim, a imagem pode ser uti-lizada como instrumento para o desenvolvimento do pensa-mento científico. No seu livro, “Guia de Arte”, Rowling (2006) apresenta dezenas de pinturas que podem ser utilizadas para descrever e abordar diversos te-mas de índole social e também científica. Por exemplo, o quadro “O triunfo da morte”, de Bruegel, ilustra o impacto da peste, per-mitindo a discussão sobre as te-orias do contágio, nos planos histórico e científico.

Várias vezes a arte se revelou essencial na ciência, através da utilização da imagem visual. Uma situação de “encontro” entre o cientista e o artista, é aquela em que o cientista pre-cisa da imagem para comuni-car sobre o seu trabalho, pois, conforme referia Leonardo da Vinci, no seu “Tratado de pin-tura”, “a mais útil das ciências será aquela cujo fruto seja mais comunicável” (Araújo--Jorge, 2004). Por exemplo, a história mostra-nos que, sem a percepção artística da pers-pectiva, Galileu certamente não teria feito a descrição da superfície da Lua em 1610, quando a observava com o recém-inventado telescópio, desenhando-a com crateras e sombras, em ângulos diferen-tes, de acordo com a posição do Sol, descrição que produ-ziu um importante impacto na visão cosmológica. Já no sécu-lo XVI, quando o estudo da anatomia era dificultado pela proibição de dissecar cadáve-res, haviam sido chamados artistas para colaborar com os cientistas, permitindo tornar compreensível e mais rigorosa a descrição da realidade.

Assim, através do poder da imagem, a arte tem sido es-sencial, em vários momentos históricos, para a introdução de novos pontos de vista na ciência.

Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um per-

curso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas

Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus

([email protected])

Desenho de Leonardo da Vinci, conhecido como o “Homem Vitruviano” (1490)

d.r.

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“BUSTOS DE PRESIDENTES DA REPÚBLICA”Até 17 ABR | Paços do Concelho de LouléExposição da totalidade dos Presidentes da Repúbli-ca, da autoria do barrista barcelense Joaquim Esteves, mestre que se notabilizou em termos artísticos, na olaria, figurado e na caricatura

“CONCERTO PELOS DIABO NA CRUZ”18 ABR | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroOs ‘reis’ do rock popular português vêm à capital algarvia para um concerto que irá difundir o pensa-mento de uma geração que se descobre a si mesma, no acto de se preparar para ‘o amanhã’

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10.04.2015  7Cultura.Sul

Momento

Guitar Hero

Foto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Penso que o meu fascínio e a minha paixão pela fotografia a preto e branco iniciou-se quando comecei a ver as fotografias anti-gas que tinha em casa, daquelas que se revela o rolo.

Cheguei inclusive a comparar imagens semelhantes do mesmo local ou de pessoas, uma a cores e outra a preto e branco e sempre achei que as fotos a preto e branco tinham “algo mais” do que as ou-tras, que eram diferentes.

Dentro das fotografias a preto e branco as que me dão mais prazer a nível pessoal são sem dúvida os retratos. Adoro executar estes tra-balhos. Para mim, ao observar este tipo de fotografias em oposição às de cores, parece que estas têm mais alma, que ganham vida.

Quando faço este tipo de tra-balhos, o meu objetivo é que o

resultado final mostre o má-ximo possível daquilo que a pessoa é e que de certa for-ma ela também deixe a sua “impressão digital” naquela imagem.

Um dos pontos mais im-portantes e no qual eu foco mais a minha atenção são os olhos, porque é através do olhar que a pessoa vai con-tar a sua história, transmitir mais emoção e dar charme à fotografia. E a minha função enquanto fotógrafa é captar essa mensagem e transmiti--la da melhor forma possível.

A paixão pelos retratos a preto e branco

Tânia GuerreiroMembro da ALFA

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10.04.2015 8 Cultura.Sul

Um olhar sobre o património Sala de leitura

Comunicar o Património II

Criatividade tem que atingir o público-alvo

d.r.

Nos dias vertiginosos que vivemos, onde tudo o que nos passa em frente dos olhos não pode durar mais do que meia dúzia de segundos sob pena de perdermos o interesse, somos bombardeados com uma quantidade enorme de informação, a qual não temos capacidade de processar. Hoje em dia, a concorrência des-medida pela nossa atenção é uma realidade, o que nos obriga, enquanto consumi-dores, a tomar uma de duas opções: desligar de tudo o que nos rodeia (tarefa só por si hercúlea e face aos estímu-los, de difícil execução) ou sermos extremamente selec-tivos e criteriosos com o que merece a nossa atenção.

Para conseguir captar a atenção do consumidor, a comunicação terá que o con-quistar, provocando uma reacção emocional, potenci-ando o sentimento de par-tilha de um bem comum. E é neste ponto que a elaboração da estratégia de marketing facilita a criação de uma co-municação mais efectiva e as-sertiva porque leva à reflexão sobre diversas dimensões do elemento patrimonial: a) o seu posicionamento na socie-dade, ou o que o torna dife-rente face a ofertas similares, o seu grau de atractividade ou a sua autenticidade; o produ-to a comunicar, o qual não se restringe ao elemento patri-monial em si mesmo, mas também os serviços e todas as actividades complemen-tares, que podem ir desde o edifício, as colecções, as pub-licações, sejam catálogos ou brochuras, até ao serviço de cafetaria ou mesmo os sani-tários, caso existam, devem ser pensados como um todo que é oferecido/disponibili-zado aos utentes, reforçando desta forma a sua presença e a sua marca; b) os pontos de acesso ao elemento deverão ser igualmente equaciona-dos, isto é, como é que se facilita o acesso do público ao elemento patrimonial, seja para visitá-lo (definição

de horários, identificação de percursos, sinalização, facili-dade de circulação para pes-soas com necessidades espe-ciais), seja para simplesmente obter informações (através do site, mediante contacto tele-fónico); c) a definição de uma política de Preços e Descontos deverá ser clara e transpar-ente, tendo em conta não só o meio onde o elemento está inserido, mas também a sua utilização como forma de cap-tação de novos públicos e/ou fidelização de utilizadores esporádicos, não esquecendo que se a definição dos custos de acesso/ingresso e dos diver-sos serviços complementares oferecidos, for desfasada do contexto onde o elemento patrimonial se integra, a eficácia da estratégia de mar-

keting fica comprometida; d) por último a Promoção, que consiste na adequação dos meios a utilizar na comuni-cação com os públicos alvo, públicos estes que se podem estratificar em perfis, devendo a comunicação adaptar-se, ao nível da imagem, linguagem e suportes, às particularidades de cada um dos perfis (visi-tante, fornecedor, mecenas).

Qualquer suporte de comu-nicação deve servir como um meio de promoção e reforço da marca para com o exteri-or, pelo que os recursos hu-manos são igualmente deter-minantes na criação de uma imagem coesa e coerente de marca/produto/serviço, pelo que no seu processo forma-tivo deverão adquirir conhe-

cimentos acerca dos valores patrimoniais e históricos do bem, mas também dos ob-jectivos da função que vão exercer e da entidade que tu-tela o elemento patrimonial, tornando-se assim na sua “primeira linha” de comuni-cação e valorização.

Nos últimos anos tem-se verificado uma crescente aposta na utilização de algu-mas ferramentas do Market-ing aplicadas ao Património Cultural. Contudo estas constituem-se ainda como acções isoladas, as quais ca-recem de integrar um plano devidamente estruturado, diminuindo a possibilidade de se atingirem os objectivos propostos.

É nosso desejo com estes artigos despertar o interesse

por esta área que coloca à nossa disposição um manan-cial de ferramentas bastante úteis que permitam alavancar o crescimento das nossas ins-tituições culturais, dotando-as de metodologias e processos de comprovada eficácia nou-tras áreas.

Não se pense contudo que há uma fórmula certa, com resultados garantidos! Exis-te sim, um conjunto de va-riáveis que, conforme sejam combinadas, podem resul-tar numa excelente acção de marketing. O que manda é a criatividade para atingir o pú-blico-alvo, de forma a atender os objetivos de comunicação do elemento patrimonial ou entidade que o tutele, com os recursos disponíveis.

Num sarau realizado em 2011, à conversa com João Caraça (então director do Ser-viço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian), debatí-amos um tema aparentemen-te inusitado: os benefícios da dança na política nacional. Isto porque, a propósito da inquietante obra por si co-ordenada, intitulada Ideias Perigosas para Portugal – pro-postas que se arriscam a salvar o país (Tinta-da-China), uma das 60 personalidades convi-dadas para dar o seu testemu-nho preconizava que todos os detentores de cargos polí-ticos deviam ser obrigados a aprender a dançar e a prestar exames regulares de aptidão nessa área.

Em finais de Oitocentos, Friedrich Nietzsche, influen-te filósofo alemão, já tinha colocado polemicamente a questão mas num plano divi-no, associando crença/verda-de, dança e religião ao afirmar que só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar. Transpondo para a política, e sabendo-se das velhas e no-vas “danças das cadeiras” (e de bastidores), e da (in)visível flexibilidade vertebral de não poucos indivíduos ligados ao universo partidário/governa-tivo (sobretudo na arte das cambalhotas, como diria o humorista José de Pina), seria, de facto, prudente e aconse-lhável que a classe dirigente soubesse dançar. Isso dissi-paria decerto eventuais dú-vidas a seu respeito. Se há ca-sos conhecidos de deputados e governantes que dançam e cantam em comícios, festas, jantares e afins (segundo al-guns, para fins eleitorais), por que não alargar essa prática ao efectivo exercício das suas funções? A dança seria então, nesta linha, sinónimo de ins-trução ecléctica, de amor à vida, de liberdade de espíri-to, de não renegação ou não

afastamento do mundo real e dos problemas das pessoas, de não submissão acrítica a interesses obscuros em que se enredam tantas decisões políticas que afectam a vida dos cidadãos.

Na educação grega (a “pai-déia”) a dança era matéria obrigatória na formação e autoc ontrole dos jovens: “os que honram melhor os deu-ses pela dança são também os melhores no combate”, e um homem verdadeiramen-te educado era aquele que sabia de política, de filosofia, de música… e de dança. Aliás, ao longo de séculos esta arte do corpo e do espírito acompa-nhou a evolução do homem facultando-lhe a opção pela autonomia, pela expressão espontânea de si mesmo e pelo instigante desafio de co-municar autenticamente com os outros – funcionando quer como estímulo à imaginação e criatividade, quer como pre-cioso veículo de socialização.

Hoje é residual a presença das artes performativas no sistema oficial de ensino, não obstante o esforço e perseve-rança de algumas escolas e docentes sensíveis e abertos a novas abordagens que ex-travasem a tradicional e ten-tadora “caixa disciplinar”, a sobrecarga obsessiva de ma-térias e obras, e as metodolo-gias retrógradas e ineficazes. Música, linguagem dramática/corporal e artes plásticas têm sofrido uma redução drástica nos programas e metas es-colares emanados das várias reformas de ensino, haven-do actualmente um acesso muito limitado a essas áreas, salvando-se a educação física e pouco mais.

Se as artes proporcionam ferramentas transversais que preparam melhor o indivíduo para a vida em sociedade e para o mercado de trabalho (como as antigas civilizações acreditavam), a iniciação/for-mação, trajecto e exercício da prática política em particular não deveriam ficar alheios a essa evidência e, assim, à aqui-sição e aperfeiçoamento de competências a nível da dan-ça. Caso contrário, há o sério risco de, daqui a algum tempo (?), a classe dirigente se resu-mir – isso sim perigosamente – às três tipologias básicas de

personalidade política (salvo honrosas excepções) certei-ramente identificadas pelo já aludido José de Pina no seu li-vro Nascido para mandar – guia prático para chegar ao poder em Portugal (Gradiva/Produções Fictícias): o verbo-de-encher, o espalha-brasas e o idiota útil (sendo que este capítulo inclui mesmo testes para cada leitor descobrir em que perfil encaixa).

A julgar por estudos recen-tes (como o realizado pela Universidade de Hertfordshi-re, no Reino Unido, em 2013), existe uma modalidade de exercício corporal ainda mais completa do que a natação: a dança, em particular o ballet clássico. A equipa de investi-gadores daquela instituição universitária comparou o de-sempenho de membros da famosa academia Royal Ballet com o de nadadores da selec-ção olímpica britânica e con-cluiu: os bailarinos apresenta-ram melhores resultados em sete das dez medidas de condi-cionamento físico em análise, mormente nos itens “equilí-brio psicológico”, “flexibilida-de” e “equilíbrio corporal”.

Tal como o estudo enfatiza no tocante à dança, também na política é preciso saber respirar bem fundo aprovei-tando o máximo possível da capacidade do diafragma; manter, a vários níveis, uma postura adequada, cultivando a verticalidade, a delicadeza e a elegância (o que implica também encolher a barriga); ter flexibilidade e garantir o equilíbrio das posições; refor-çar a agilidade e coordenação nos gestos; e não descurar a leveza, o bem-estar e a auto--estima.

A aclamada coreógrafa e dançarina alemã Pina Bausch (1940-2009) acreditava que se a Humanidade parasse de dançar estaria irremediavel-mente perdida. Dança e sal-vação/perdição, dança e fé/desilusão, dança e verdade/aparência – no fundo, diferen-tes faces dessa valsa insondá-vel e cativante que é a vida. E se a dança fosse a chance últi-ma, o grito derradeiro de um político para alguém acreditar nele ou nessa “grande porca” (como a apelidava Rafael Bor-dalo Pinheiro em 1900) cha-mada política?

Ideias perigosas: um político que saiba dançar

Paulo PiresProgramador culturalno Município de [email protected]

Para o meu amigo José Louro

Alexandre FerreiraLicenciado em PatrimónioCultural, UAlg

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Abril

Pedro [email protected]

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Alerg(r)ia

Os dias mais quentes do que o ano já leva convidam a passeios mais prolongados. O perfume que exala das flores campestres aro-matiza os caminhos que levam até ti. Apesar do estado de encanto que a brisa provoca, sei que à noite os meus olhos se emudecerão, e quererás saber porque lacrimejo. Tão sim-plesmente devido à elevada concentração de pólen no ar. Vicissitudes desta estação.

Poesia Em-Alta-VozAs noites de leitura de Poesia Em-Alta-Voz

com música, da Casa Álvaro de Campos em Tavira, prometem continuar, depois do su-cesso das primeiras sessões que em Abril re-

ceberam «Palavra Final» do Escritor SubZero e «Uma Oração Americana» com poesia dos Estados Unidos da América

Janela da ria

Nas manhãs, o horizonte mais limpo de nebulosidades abrange agora muito mais sul. Apetece abrir as janelas à brisa de leste enquanto se põe a mesa para o almoço. A hora já passa para a tarde quando o xarém no caldo dos vários peixes guisados se aco-moda no estômago. Depois na esplanada de beber café, limpam-se à beira-ria os olhares que estavam demasiado focados naquele cin-zento todo que anda por aí nos dias.

Pessoa(s) em Cena

A 17 de abril (sexta) pelas 21h45, a Casa Álvaro de Campos-Tavira recebe no seu foyer

a apresentação de «Pessoa(s) em Cena» - As cartas ridículas do Senhor Fernando e os sus-piros líricos da Menina Ofélia e Conversas entre Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, de Paulo Moreira.

Luísa Monteiro, escritora, docente e inves-tigadora pessoana regressa à Casa do poeta de Tavira, agora como editora na Redil Pu-blicações para falar sobre o livro com duas peças de teatro a partir de textos de F. Pessoa, seus heterónimos (e Ofélia Queirós), produ-zido pelo actor e encenador Paulo Moreira.

Abril

A 20 de abril de 1974, dias antes da revo-lução, Sophia Mello Breyner Andresen estava em Lagos e escreveu o poema Lagos I para o livro ‘O Nome das Coisas’:«(…)Os ditado-res — é sabido — não olham para os mapas /Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões /O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos /Jovens cor-pos mortos ao longo das extensões//(…) Na luz de Lagos matinal e aberta /Na praça qua-drada tão concisa e grega /Na brancura da cal tão veemente e directa /O meu país se

invoca e se projecta».No dia da revolução, Francisco Tavares

andava de megafone na mão. Quantas pa-lavras importantes centradas na liberdade terá dito! Mas a liberdade é sempre eféme-ra, e palavras ditas mesmo alto e bom som e para muita gente, leva-as também o vento - já ouvimos cantar esta verdade. No mes-mo dia Sophia, (provavelmente ainda em La-gos) munida de lápis na mão escreveu por linhas eternas: «Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres ha-bitamos a substância do tempo».

Andorinha

Despertei para a manhã clara ao som de agi-tadas ‘delichon urbicum’ de asa negra atare-fadas nas suas construções, e elas sim, voltam sempre nesta estação. Já tu verdadeiro ‘pássaro urbano’ (a alcunha que lhes deste) há muito que não migras até estas paragens de sul, en-volta que estás nas tuas desconstruções. Ao sair encontrei uma andorinha morta sobre o pas-seio. Mas por nenhuma destas razões se acaba o fado da Primavera.

fotos: d.r.

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“A ÚLTIMA SEMANA DO FASCISMO”24 ABR a 30 JUN | Biblioteca Municipal de LagosExposição de pintura de Manuela Caneco constituída por 14 obras originais, estruturadas em cinco séries: “Corrosão do Sistema”; “Repressão em Lisboa”, “Tor-tura”, “Luta” e “Emigração forçada e clandestina”

“CHEIO”23 ABR | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroPeça apresenta-se de modo a convocar o público a descobrir e explorar o processo de trabalho artístico do intérprete

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Recursos patrimoniais versus sustentabilidade:o caso de Vila do Bispo

Espaço ao Património

No âmbito da minha ati-vidade enquanto arqueólo-go da Câmara Municipal de Vila do Bispo, partilho aqui algumas genéricas reflexões sobre o vastíssimo e particu-larmente atual tema da “ges-tão patrimonial”.

Em boa verdade, trata-se de um depoimento estrita-mente pessoal, num modo de pensamentos “em voz alta”, com o qual apenas pretendo partilhar um certo “estado de alma” e algumas positivas experiências profissionais e sociais a barlavento, no ter-ritório da ‘sagrada finisterra vicentina’.

Tempos de euforia turística e de feiras do património!

Se por um lado atravessa-mos tempos particularmente difíceis – a crónica desculpa para uma ‘cultural’ carência de investimento na Cultura –, por outro, definem-se no horizon-te alguns sinais de positivas re-ações, nem sempre genuínas, mas ainda assim assinaláveis. Apregoa-se a racionalização dos recursos disponíveis e o investimento low budget, a va-lorização dos recursos endó-genos, o envolvimento social e a integração comunitária, a implementação de mode-los de gestão partilhada e de cooperação intermunicipal, a abertura à iniciativa privada... enfim! Todavia, reincide-se na perigosa tendência de se olhar o Património numa perspeti-va meramente económica, en-quanto recurso financeiro.

Com isto, o Património lá vai dando “um ar da sua gra-ça”, surgindo amiúde ‘empa-cotado’, como oferta turística, sendo parcamente alimentado a migalhas, na expectativa da criação de uma salvadora, mas raramente profícua, “galinha dos ovos de ouro”... “só para inglês ver”!

Material ou imaterial, o Pa-

trimónio, enquanto legado de autenticidade natural e de identidade cultural, apre-senta-se, na prática, como um conceito demasiadamen-te abstrato, tendencialmente confundido com o património de ordem económica, quanti-ficável em valor, traduzível em retorno financeiro.

Os tradicionais paradigmas civilizacionais e as clássicas po-laridades dos fluxos de viagens intercontinentais alteram-se globalmente. O velho conti-nente europeu apresenta-se hoje como um atraente novo mundo de (re)descobertas, massivamente procurado pelo seu longo passado, por um certo ‘exotismo’ cultural e pela aventura intercivilizacional.

Ao sabor da mesma corren-te, Portugal vive uma verda-deira euforia turística, fruto do reconhecimento e procu-ra internacional de atraentes valores culturais de históricas cidades como Lisboa, Porto, Coimbra, Évora… A imateria-lidade cultural do fado, do cante e da dieta mediterrâni-ca encontra-se reconhecida no ‘panteão’ do Património Uni-versal. Surgem desconcertan-tes expressões como “feiras do património”. Santuários natu-rais, como os Açores, expõem--se aos enxames dos low cost. O turismo cultural e o turismo de natureza estão na moda! Aos agentes culturais exige-se um certo “toque de Midas”, ou seja, a alquímica capacidade

de transformar o Património em receita financeira.

Se por um lado o turismo implica, inevitavelmente, um destrutivo impacto no Patri-mónio (sobretudo natural), por outro, o turismo poderá ser trabalhado como garante do próprio Património. Não se tratando de uma natural rela-ção simbiótica, o Património e o turismo podem conviver em harmónica valorização mútua. A fórmula do equilíbrio deve-rá residir na sustentabilidade! Entretanto, a montante, há que promover o conhecimen-to profundo e a investigação

sistemática, a única via para a estabilidade da partilha – dig-nificar no presente um passa-do com futuro.

Boas práticas de gestão patrimonial

em Vila do Bispo

No Algarve, a região de Vila do Bispo ainda preserva deter-minadas áreas intocadas pela ação humana, que, por tão genuínas e raras, são por isso bastante procuradas por visi-tantes de todo mundo, nelas reconhecendo a pureza da ori-ginal autenticidade da Nature-

za. Porém, quando se trata de turismo de natureza, enquanto recurso dificilmente renovável, impõe-se uma decisiva formu-lação estratégica, mais uma vez assente na sustentabilidade!

Do ponto de vista cultural, as paisagens de Vila do Bispo também revelam interessan-tes e diversificados discursos antropogénicos, designada-mente arqueológicos, histó-ricos e etnográficos, muitos dos quais revestidos de apre-ciável monumentalidade.

As paisagens constituem-se como palcos de realidades tão distintas como complemen-tares. A sua integrada leitura permitir-nos-á partilhá-las, de modo sustentável e sem pre-juízo para os diversos apon-tamentos nelas implantados: a biodiversidade, a geologia, as marcas paleontológicas, os vestígios arqueológicos, os monumentos históricos, os re-cursos do mar, as terras culti-vadas... a Cultura!

O potencial do património vilabispense encontra-se am-plamente reconhecido e a sua procura já é uma indomada realidade. No sentido de uma prudente partilha de todo este complexo paisagístico, urge a sua aquilatada leitura e o seu efetivo conhecimento. Importa ordenar e educar a sua fruição, sob o risco da sua irreversível perda e vulgarização enquan-to extensão de uma região há muito descaracterizada.

Num território substan-cialmente dependente do

turismo, o estratégico desen-volvimento de diferenciados produtos de natureza e de cultura, pela sua diversidade, qualidade e latente potencia-lidade, permitirá uma alterna-tiva oferta aos habituais fluxos da sazonalidade.

A mais desafiante missão do projeto autárquico que te-nho vindo a integrar, consiste na promoção de estratégias com impacto socioeconómi-co, orientadas pelo reconhe-cimento de diferenciadores fatores de identidade local, potenciáveis como vantagens competitivas.

Na região algarvia, o turis-mo constitui o principal gera-dor económico, o “fim último” da esmagadora maioria das atividades público-privadas desenvolvidas entre São Vicen-te e o Guadiana. Numa região estigmatizada pela massifica-ção turística, e no âmbito de um mercado extremamente competitivo, a fórmula do ‘su-cesso’ reside, necessariamente, na qualidade e na diferencia-ção da oferta.

Posto isto, e em suma, tor-na-se essencial o profundo conhecimento dos territórios e das diversas realidades ne-les existentes. A montante, a investigação permitirá deli-near os trilhos mais equili-brados, minimizando o ine-vitável impacto da fruição turística e da partilha de um inestimável bem comum, promovendo-o tal como é, sem perda da sua natural es-sência diferenciadora.

O Concelho de Vila do Bis-po, território extremo, peri-férico e de baixa densidade, tem vindo a cultivar a apro-ximação, o diálogo e a cola-boração entre as tutelas do ambiente, da cultura e do turismo, as universidades, a comunidade científica, as empresas de turismo de na-tureza, hoteleiras e de restau-ração, os técnicos municipais, a comunidade local, as ativi-dades tradicionais, os novos e os mais velhos, o público em geral, a sociedade…

Só assim faz sentido, só assim será possível a sus-tentável ‘exploração’ socio-económica dos recursos pa-trimoniais presentes neste precioso recanto do mundo, tido como naturalmente ex-cecional, e por isso mesmo cada vez mais procurado!

Ricardo Soares Arqueólogo na Câmarade Vila do Bispohttp://vila-do-bispo-arqueologi-ca.blogspot.pt/

O Passado no Presente – estratégias de comunicação arqueológica

fotos: ricardo soares

O trilho certo dos Homens do Futuro – educação e sensibilização patrimonial

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Da minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Na minha biblioteca tenho alguns livros de Herberto Helder (vá-rios de Poesia Toda, que nunca é toda), um poeta que come-cei a amar já tarde (já passava eu dos 30 anos), poeta preferi-do de algumas pesso-as que me são muito queridas, que me en-sinaram a descobri-lo e a lê-lo. Como pouco poderia acrescentar ao que tanto já foi dito e escrito aquando da sua recente morte, fica aqui uma seleção, pessoalíssima, da sua poesia.

disseram: mande um poe-ma para a revista onde cola-boram todos

e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque

nada se reparte: ou se de-vora tudo

ou não se toca em nada,morre-se mil vezes de uma

só morte ouuma só vez das mortes to-

das juntas:só colaboro na minha morte:e eles entenderam tudo, e

pensaram: que este não cola-bore nunca,

que o demónio o leve, e foram-se,

e eu fiquei contente de nada e de ninguém,

e vim logo escrever este, o mais curto possível, e de-pressa, e

vazio poema de senti-do e de endereço e

de razão deveras,só porque sim, isto é: só

porque não agora

(in Servidões, 2013)

[…]A minha morte agora é

uma alegria manual escre-vendo escrevendo as suas musas intoleráveis.

Mas o próprio poema é que escreve o seu poeta arranca-do à música, à cega e sobres-saltada beleza dos acentos.

[…]

(in Retrato em Movimento, 1967)

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.[…]

(in O amor em visita, 1958)

Dedicatória – a uma deva-garosa mulher de onde sur-gem os dedos, dez e queima-dos por uma forte delicadeza. Atrás, o monumento do seu vestido ocidental – erguido e curvo. E o vestido trabalhava desde o fundo e de dentro – como uma raiz branca – para o aparecimento da cabeça. A paisagem posterior é de livros, todos eles de costas voltadas, dominados pelas ardentes pancadas das suas letras.

[…]

(in Retrato em Movimento, 1967)

[…]Celebro a tecelagem, as

mãos som-bria-mente embebidas no tra-

balho. E por cimade tudo as pedrasrosas das cabeça, os cestos,

as liras, o pão.E em baixo o sangue bate

acen-den-do e apagan-do. E eu agora sei tudo, e

esqueçomuito devagar.[…]

(in Lugar, 1962)

Mulheres correndo, corren-do pela noite.

O som de mulheres corren-do, lembradas, correndo

como éguas abertas, como sonoras

corredoras magnólias. Mulheres pela noite dentro

levando nas patas grandiosos lenços brancos.

Correndo com lenços mui-to vivos nas patas

pela noite dentro. Lenços vivos com suas pa-

tas abertas como magnólias correndo, lembradas, patas

pela noite viva. Levando, lembrando,

correndo.

É o som delas batendo como estrelas

nas portas. O céu por cima, as crinas negras

batendo: é o som delas. Lembradas,

correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando.

As grandiosas patas bran-cas abertas no som,

à porta, com o céu lem-brando.

Crinas correndo pela noite, lenços vivos

batendo como magnólias levadas pela noite,

abertas, correndo, lem-brando.

De repente, as letras. O ros-to sufocado como

se fosse abril num canto da noite.

O rosto no meio das letras, sufocado a um canto,

de repente. Mulheres correndo, de por-

ta em porta, com lenços sufocados, lembrando le-

tras, levando lenços, letras – nas patas negras, grandiosamente

abertas. Como se fosse abril, sufo-

cadas no meio.

Era o som delas, como se fosse abril a um canto

da noite, lembrando.

Ouço: são elas que partem. E levam

o sangue cheio de letras, as patas floridas

sobre a cabeça, correndo, pensando.

Atiram-se para a noite com o sonho terrível

de um lenço vivo. E vão batendo com as es-

trelas nas portas. E sobre a cabeça branca, as patas

lembrando pela noite dentro. O rosto sufocado, o som

abrindo, muito lembrado. E a cabeça cor-

rendo, e eu ouço: são elas que partem, pen-

sando.

Então acordo de dentro e, lembrando, fico

de lado. E ouço correr, le-vando

grandiosos lenços contra a noite com estrelas

batendo nas patas como magnólias pensan-

do, abertas, correndo. Ouço de lado: é o som. São

elas, lembrando de lado, com as patas no meio das letras, o rosto

sufocado correndo pelas portas

grandiosas, as crinas brancas batendo. E eu

ouço: é o som delas com as patas negras, com

as magnólias negras contra a noite.

Correndo, lembrando, ba-tendo.

(in A Máquina Lírica, 1964)

(a carta do silêncio)Há às vezes uma tal vee-

mência no silêncio que urgeinquirir se a poesia não é

uma prática para o silêncio.[…]

(in Photomaton e Vox)

A última obra de Herberto Helder intitula-se ‘A Morte Sem Mestre’

d.r.

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“PINTURA DE ANNA CUMMING”Até 30 ABR | Casa dos Condes - AlcoutimA artista gosta de pintar a natureza que a rodeia, re-centemente começou a incluir a figura humana nas suas paisagens

«Só colaboro na minha morte» Herberto Helder (1930-2015)

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