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: SENADO FEDERAL CURSO DE I DIREITO ROMANO Abelardo Saraiva da Cunha Lobo EDIÇÕES DO SKNADO FEDERAL Volume 78

Curso de Direito Romano Senado Federal[1]

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  • :

    S E N A D O F E D E R A L

    CURSO DE

    I DIREITO ROMANO

    Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    EDIES DO SKNADO FEDERAL

    Volume 78

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  • CURSO DE DIREITO ROMANO

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  • Mesa Diretora Binio 2005/2006

    Senador Renan Calheiros Presidente

    Senador Tio Viana 1: Vice-Presidente

    Senador Antero Paes de Barros 2- Vice-Presidente

    Senador Efraim Morais 1- Secretrio

    Senador Joo Alberto Souza 2- Secretrio

    Senador Paulo Octvio 3 Secretrio

    Senador Eduardo Siqueira Campos 4l Secretrio

    Suplentes de Secretrio

    Senadora Serys Slhessarenko

    Senador lvaro Dias Senador Papalo Paes

    Senador Aelton Freitas

    Conselho Editorial

    Senador Jos Sarney Presidente

    Joaquim Campeio Marques Vice-Presidente

    Conselheiros

    Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga

    Raimundo Pontes Cunha Neto

  • Edies do Senado Federal Vol. 78

    CURSO DE DIREITO ROMANO Histria. Sujeito e Objeto do Direito.

    Instituies Jurdicas

    Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife, doutor em Direito, professor substituto de Direito Romano, Histria Geral do Direito e Direito Internacional Privado e professor catedrtico de Direito

    Romano da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, doutor em Jurisprudncia pelas Universidades de Buenos Aires e de

    So Marcos de Lima, vice-presidente do Congresso Cientfico Pan-Americano de 1924, natural do Maranho.

    Prefcio do professor Dr. Francisco de Paula Lacerda de Almeida,

    catedrtico de Direito Civil da Universidade do Rio de Janeiro.

    Braslia - 2006

  • EDIES DO SENADO FEDERAL

    Vol. 78 O Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997, buscar editar, sempre, obras de valor histrico

    e cultural e de importncia relevante para a compreenso da histria poltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do pas.

    Projeto grfico: Achilles Milan Neto Senado Federal, 2006 Congresso Nacional Praa dos Trs Poderes s/n- - CEP 70165-900 - DF [email protected] Http://www.senado.gov.br/web/conselho/conselho.htm

    Lobo, Abelardo Saraiva da Cunha. Curso de Direito Romano : histria, sujeito e objeto do

    direito : instituies jurdicas / Abelardo Saraiva da Cunha Lobo ; prefcio do professor Dr. Francisco de Paula Lacerda de Almeida. Braslia : Senado Federal, Conselho Editorial, 2006.

    LVI + 666 p. - (Edies do Senado Federal; v. 78) 1. Direito Romano. I. Ttulo. II. Srie.

    CDDir. 344

  • Sumrio

    Abelardo Lobo e o Romanismo Jurdico Latino-americano, por Pierangelo Catalano, da Universit de Roma La Sapienza

    pg.XJ

    PREFCIO do Professor Dr. Lacerda de Almeida

    pg. XXIX

    INTRODUO pg. 3

    LIVRO PRIMEIRO

    ORGANIZAO DO DIREITO ROMANO

    TTULO I Histria Externa e Interna do Direito Romano: Conceito de Leibnitz;

    Pomponius e Gaius pg. 21

    TTULO II Fontes do Direito Romano

    pg. 36

    TTULO III Perodos da formao e desenvolvimento do Direito Romano, com indicao dos grandes monumentos jurdicos e dos mais notveis

    jurisconsultos pg. 68

  • TTULO IV Escolas e controvrsias

    pg. 103

    TTULO V Codificao e evoluo do Direito Romano

    pg. 120

    TTULO VI Jus civilepapirianum Lex duodecim tabularum

    pg. 134

    TTULO VII Os editos dos magistrados - Edictum perpetuum

    pg. 163

    TTULO VIII As constituies imperiais. Cdigos gregoriano, hermogeniano e

    teodosiano pg. 177

    TTULO IX O Imperador Justiniano - Codificao justiniana

    pg. 201

    TTULO X Corpus Jris Civilis

    pg. 226

  • LIVRO SEGUNDO

    EXPANSO DO DIREITO ROMANO -CAUSAS DO SEU DESENVOLVIMENTO

    TTULO I Influncia do Cristianismo sobre as principais instituies jurdicas,

    desde o Imperador Constantino at Justiniano pg. 249

    TTULO II Edictum Theodoric. Breviarium Alaricianum. Lex Borgundionum. Brasilicas. Novellae Leonis

    pg. 316

    TTULO III Frum Judicum. Fuero Juzgo ou El libro de los Jueces

    pg. 337

    TTULO IV Lei de Ias Siete Partidas

    pg. 356

    TTULO V Descoberta de Amalfi. Escolas de Pvia, Ravena e Bolonha.

    Os glosadores pg. 373

    LIVRO TERCEIRO

    INFLUNCIA UNIVERSAL DO DIREITO ROMANO TTULO I

    Influncia do Direito Romano na formao das vrias legislaes pg. 413

  • TTULO II

    As Ordenaes Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Legislao posterior at 1822.

    O Cdigo Civil portugus pg. 480

    TTULO III

    O Direito Cannico e o Direito Germnico pg. 517

    TTULO IV

    O Direito Ibero-Americano pg 552

    TTULO V

    O Direito brasileiro. O Cdigo Civil brasileiro e o seu art. 1 pg 579

    Bibliografia de Abelardo Lobo pg. 635

    Programa de Curso de Direito Romano idealizado

    por Abelardo Lobo pg. 639

    Nota sobre o autor pg. 666

  • Nota para esta Edio

    M DOS primeiros projetos do Centro de Estudos de Direito Romano e Sistemas Jurdicos da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, fundado em 1981, foi a ree-dio, agora providenciada pelo Senado Federal, do Curso de Direito Romano de Abelardo Saraiva da Cunha Lobo.

    Na atividade daquele Centro de Estudos, no mbito do convnio UnB-AS-SLA {Associacione di Studi Sociali Latinoamerican), os encontros de professores italianos e brasileiros de Direito Romano sempre deram nfase, segundo o magistrio do Professor Pierangelo Catalano, concepo de Abelardo Lobo na viso unitria do Direito Romano "desde as leges regiae at a formao do Direito Ibero-Americano".

    Aspecto relevante da trajetria de Abelardo Lobo e da sua importncia reside, ainda, na ateno dispensada ao ius publicum. Tal circunstncia no passou desapercebida na pesquisa sobre o pensamento romanista brasileiro, realizada sob o palio do Intercm-bio Cultural Brasil-Itlia, Convnio entre o Consiglio Nazionale Delle Ricerche Dltalia (CNR) e o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).1

    Na parte do Direito Pblico Romano, anotou-se:

    "Abelardo Saraiva da Cunha Lobo publica o texto de sua confe-rncia no salo da Biblioteca Nacional, em 13 de julho de 1916, quando, cumprindo os Estatutos da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, d uma aula inaugural. [Abelardo Saraiva da Cunha Lobo, "Morphologia do direito romano. A magistratura e os grandes magistrados", Revista da Faculdade Livre de Direito da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 12:57-75, 1916]. Nesse texto de Abelardo Lobo, todo ele de direito pbli-co romano, h uma espcie de glosa de todo o incio do Digesto, com uma importante colocao sobre o texto atribudo a Ulpiano (o direito pblico consiste no que diz respeito s coisas sagradas, s do sacerdcio e s da ma-gistratura). Lobo afirma ser para lamentar que o eminente jurisconsulto, esquecendo a sbia tripartio de Gaius (Omne autem ius quo utimur, vel

    Ver Notcia do Direito Brasileiro. Nova Srie, n. 8, Braslia: UnB-Faculdade de Direito, 2001, onde se publica o histrico e uma amostragem da pesquisa com uma bibliografia brasileira de direito romano, a mais completa possvel at aquela data.

  • adpersonas pertinet, veladres, vel ad actiones), que abrange todo o direito romano, tivesse considerado o Ius Civile como matria exclusivamente de direito privado, quando certo que a rigorosa significao da expresso Ius Civile compreende a matria de um e de outro direito, pois que nele encontramos princpios reguladores das coisas sagradas, das dos sacerdo-tes e das dos magistrados. Tanto assim que Papinianus ensina que o Ius Civile o que provm das leis, dos plebiscitos, dos senatusconsultos, dos decretos dos prncipes e da autoridade dos jurisconsultos, e no h quem ignore que so estas as mais fecundas fontes do direito pblico e do direito privado dos romanos. Abelardo Lobo explica toda a histria das magistra-turas romanas a partir da administrao de justia por elas assumida. Esse texto de 1916 tem importncia pelo registro do fato de que a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro organizara em 1915 uma conferncia pblica, tambm proferida por Abelardo Lobo, intitulada Fisiologia do Direito Romano. A sstole e a distole, a qual se completava com essa de 1916: morfologia do direito romano. Para tanto, Abelardo Lobo utiliza-se de vrios textos do Digesto, referindo-se sempre ao livro de Pompnio para fazer o elogio dos jurisconsultos."2

    Por tudo isso, a reedio do livro de Abelardo Lobo, que j contava com o admirvel prefcio de Lacerda de Almeida e, agora, vem enriquecido pelas notas de Pie-rangelo Catalano, constitui motivo de grande alegria para os juristas brasileiros, indicando auspcios favorveis ao desenvolvimento do direito brasileiro em consonncia com as sua origens culturais.

    Somos gratos ao Senado Federal e ao seu Conselho Editorial por mais essa patritica contribuio s letras jurdicas.

    Braslia, 18 de setembro de 2006.

    Ronaldo Rebello de Britto Poletti Diretor do Centro de Estudos de Direito Romano e

    Sistemas Jurdicos da UnB Presidente da Unio dos Romanistas Brasileiros - URBS

    2 Ronaldo Poletti. "O direito pblico romano no Brasil". Parte da pesquisa sobre o pensamento romanista brasileiro. Braslia: UnB-Faculdade de Direito. Notcia do Direito Brasileiro, n.8, p. 98.

  • Abelardo Lobo e o Romanismo Jurdico Latino-Americano

    PIERANGELO CATALANO Universit di Roma 'La Sapienza'

    1. DESDE AS LEGES REGIAE AT A FORMAO DO DIREITO IBERO-AMERICANO

    ENTRO de cada sistema jurdico (por ex.: o sistema romanista) podem-se individualizar subdistines tambm base de elementos tnicos (por ex.: "direitos dos povos latinos" e "direitos dos povos germnicos")} Como sabido, discute-se muito a possi-bilidade de individualizar, no interior do sistema romanista, um "grupo" (ou "famlia jurdica") "ibero-americano", compreendendo' tambm Espanha e Portugal ou, antes, em razo de particulares

    Vedi J. CASTN TOBESAS, LOS sistemas jurdicos contemporneos dei mundo Occidental, Madridl956, pp. 31 ss. Ver H. EICHLER, "Die Rechtskreise der Erde", Estdios de derecho civil en honor dei prof. Castn Tobenas, IV, Pamplona 1969, pp. 307 ss.; ID., Gesetz und System, Ber-lim 1970, pp. 76 ss.; ID., "Codificacin de derecho civil y teoria de los sistemas de derecho", em Revista da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 68 (1973), pp. 243 ss.; este

  • XII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    condies geogrficas, econmicas, sociais epolticas da Amrica La-tina, um "grupo latino-americano".0 Em minha opinio, a segunda alternativa prefervel porque permite melhor compreender o pro-blema da penetrao (no s econmica, como tambm jurdico-poltica) dos Estados Unidos da Amrica, assim como a resistncia dos direitos dos pases latino-americanos?

    se baseia, em relao a algumas reas jurdicas", no "elemento determinante" lin-gstico. J. CASTN TOBENAS, op. cit., pp. 45-76, falava de "sistemas jurdicos de filiacin ibrica" (do qual faz parte o "grupo ibero-americano") nos quais no inclua Haiti: "pas latino-americano, que puede ser adscrito ai sistema francs"; analogamente F. D E SOLA CANIZARES, Iniciacin ai derecho comparado, Barcelona 1954, pp. 233 ss.

    3 Assim j CLVIS BEVILQUA no famoso Resumo das Lies de legislao comparada sobre o direito privado, II ed., Bahia 1897 (I ed. 1893), pp. 101 ss.; sobre Clvis Bevilqua, romanista e comparatista, ver brevemente S. MEIRA, Clvis Bevilqua. Sua vida. Sua obra, Fortaleza 1990, pp. 345 ss. Nesta linha deve-se mencionar H. VALADO, Le droit latino-amricain, Paris 1954; R. DAVID, Lbriginalit des droits de l'Amrique Latine, Paris s. d.

    4 Ver Diritto romano e universit deWAmerica Latina, volume speciale di Index, 4 (1973); R CATALANO, "Diritto romano e paesi latinoamericani", em Labeo, 20 (1974), pp. 433 ss.; ID., "II diritto romano attuale de'America Latina", em Lndex, 6 (1976), pp. 87 ss.; ID., "Derecho romano y pases latinoamericanos, em Revista General de Legislacin y Jurisprudncia, 79/6 (diciembre 1979), pp. 637 ss; ID., "Sistemas jurdicos, sistema jurdico latinoamericano e direito romano", em Direito e integrao, coord. J.F. PAIS LANDIM, Braslia 1981, pp. 18 ss. (ver tambm em Re-vista General de Legislacin y Jurisprudncia, 85/3 [septiembre 1982], pp. 161 ss.); ID., "Direito romano na Amrica Latina: difuso e atualidade", em Seminrios de Direito Romano, coord. J.F. PAIS LANDIM, Braslia 1984, pp. 13 ss.; H. A. STEGER, "Die Bedeutung des Rmischen Rechts fr die lateinamerikanische Universitt im 19. und 20. Jahrhundert", em lndex, 4 (1973), pp. 22 ss. (publicado em traduo castelhana em Universidades, 54 [Mxico 1973]; Latinoamrica, Anuario, 6 [Mxi-co 1973]; Revista de Ia Universidad Externado de Colmbia, 20/1 [Bogot 1979]); ID., "Universidad de Abogados y Universidad futura", em Index cit., pp. 59 ss., e as intervenes do "Primo incontro di studi latinoamericani", ibid., pp. 97, 98 s., 104 ss., 108 ss., 112 ss., 126 s.; ver tambm Lateinamerika, hrsg. v. G. SANDNER u. H.A. STEGER (= Fischer Lnderkunde 7), Frankfurt a. M. 1973, pp. 261 ss.;

  • Curso de Direito Romano XIII

    O romanista brasileiro Abelardo Saraiva da Cunha Lobo, no III volume do importante e original Curso de Direito Romano, editado no Rio de Janeiro em 1931, dedicou um ttulo inteiro ao "Direito Ibero-Americano", tratando porm, segundo o exemplo de Bevilqua, de todas as "naes latino-americanas", incluindo a Re-pblica do Haiti.5

    Em fins do sculo XIX, Clvis Bevilqua (seguindo o com-paratista francs Ernest Glasson) distinguia trs grupos de legislaes: aquelas em que as influncias romana e cannica so "quase nulas" (Inglaterra, Pases Escandinavos, Estados Unidos da Amrica e Rs-sia); aquelas que assimilaram o Direito romano "de um modo mais ou menos radical" (Espanha, Portugal, Itlia, Romnia); aquelas em que o elemento germnico e o romano acabaram por fundir-se "por quan-tidades quase iguais" (Frana, Alemanha, Blgica e Sua).6 Segundo Bevilqua "esses grupos contribuem, mais ou menos nitidamente, trs faixas que se estendem uma ao norte, outra ao centro e outra ao sul da Europa"1 e acrescenta: "Necessrio se faz que a esses seja aditado um quarto grupo, composto das legislaes dos povos latino-america-

    cfr. pp. 12 e 17 acerca do uso dos conceitos de "dependncia", "dominacin" e "penetracin" ("Abhngigkeit", "Fremdbeherrschung", "Entfremdung").

    5 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano. Histria, Sujeito e Objeto do Direito. Instituies jurdicas, III, Influncia universal do Direito Romano, Rio de Ja-neiro 1931, pp . 10-17; 171-200.

    6 Ver C. BEVILQUA, Resumo das Lies de legislao comparada sobre o direito privado cit., pp. 69 ss. Anloga classificao em C.L.M. DE OLIVEIRA, Curso de Legislao comparada, Rio de Janeiro 1903: no "grupo de legislaes em que o direito romano predomina" (pp. 229 ss.) recordada tambm a Grcia; naquele "em que se com-binam os elementos romano e costumeiro" (pp. 391 ss.) so considerados, alm da Austria-Hungria, tambm Srvia, Montenegro, Bulgria, Turquia (pp. 539 ss.); sucessivamente so dadas algumas noes sobre o Principado de Mnaco, sobre An-dorra e sobre San Marino (p. 552).

    7 C. BEVILQUA, Resumo das Lies de legislao comparada sobre o direito privado cit., p. 73 n. 1. Analogamente C. L. M. DE OLIVEIRA, Curso de legislao comparada, cit.

  • XIV Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    nos, dos quais no cogitou o sbio jurista francs, mas que se no po-dem logicamente incluir em qualquer das trs categorias enunciadas, porque, provindo elas de fontes europias aparentadas proximamente entre si (direito portugus e espanhol), modificaram diversamente esse elemento comum, por suas condies prprias, e pela assimilao dos elementos europeus de outra categoria, principalmente franceses. Epor desprender-se de pases novos, essencialmente democrticos, este quarto grupo apresenta certas ousadias fortes de quem no se arreceia do novo, e certas franquezas em que a liberdade espraiasse mais larga".8

    A definio de um "grupo latino-americano" (isto : das "legislaes dos povos latino-americanos", segundo as palavras de Be-vilqua) caracteriza, portanto, os estudos jurdicos comparativos no Brasil, desde o sculo XIX; e aqui o ponto de vista para a definio dos "grupos" de legislaes o de maior ou menor presena do "ele-mento romano".9 O mesmo ponto de vista comparativo encontramos no Curso de Direito Romano de Abelardo Saraiva da Cunha Lobo, editado no Rio de Janeiro em 1931: os primeiros dois volumes da obra examinam a "organizao" do Direito Romano e, portanto, a sua "expanso" (e as "causas do seu desenvolvimento");10 o terceiro vo-lume trata da "influncia universal do Direito Romano", com parti-cular referncia s codificaes modernas, traando as caractersticas do "direito ibero-americano" nesta perspectiva ("desde as leges regiae at a formao do Direito Ibero-Americano").u

    8 C. BEVILQUA, op. cit., pp. 73 s. 9 Sobre o critrio geogrfico de Bevilqua v. algumas observaes: A. SARAIVA DA

    CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano cit., III, pp. 10-17. 10 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano. Histria, Sujeito e Objeto do

    Direito. Instituies Jurdicas, I - II, Rio de Janeiro 1931. 11 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano III, Rio de Janeiro 1931, pp.

    171 ss. (pp. 201 ss. em particular sobre o direito brasileiro).

  • Curso de Direito Romano XV

    2 . ROMANISMO LATINO-AMERICANO

    O "grupo ibero-americano" (dentro do mais amplo "siste-ma romanista") foi caracterizado por Castn Tobenas como marca-damente "universalista" (em contraposio ao "esprito nacionalista que escraviza a Europa");12 tal aspecto universalista da mentalida-de dos juristas latino-americanos est delineado tambm por Ren DavidP

    A partir deste ponto de vista, percebe-se o relevo ideolgico e social do elemento bsico romanstico e, conseqentemente, da sua capacidade de resistncia.

    A continuidade entre o antigo direito romano e os direitos das novas repblicas hispano-americanas foi afirmada com fora, de maneira programtica, por Andrs Bello: "Herederos de Ia legis-lacin deipueblo-rey, tenemos quepurgala de Ias manchas que con-trajo bajo ei influjo malfico dei despotismo; tenemos despejar Ias incoherencias que delustran una obra a que han contribudo tantos siglos, tantos intereses alternativamente dominantes, tantas inspira-ciones contradictorias. Tenemos que acomodaria, que restituirla a Ias instituciones republicanas" (Discursopronunciado na instalao da Universidade do Chile, em 17 de setembro do ano de 1843.) A posio do grande jurista e humanista venezuelano prevaleceu sobre

    12 J. CASTN TOBENAS, LOS sistemas jurdicos contemporneos dei mundo occidental cit., pp. 61 ss.; cfr. 27 s.. Sobre o universalismo jurdico de Jos Castn Tobenas ver A. PAUL PEDRN, "Castn comparatista" em E.M. PALOMAR MALDONADO (editor), El pensamiento jurdico de Castn Tobenas, Universidad Pontifcia Comillas, Madrid 1991, pp. 295 ss.

    13 R. DAVTD, Uoriginalit de droits de 1'Amrique Latine cit., pp. 4 e s.; ver tambm T. ASCARELLI, "Diritti dell'Amrica Latina e dottrina ialiana", em Rivista trimestrale di diritto eprocedura civile (1949), agora em ID., Studi di diritto comparato in tema di interpretazione, Milano 1952, pp. 155 ss.

  • XVI Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    aquela dos adversrios do direito romano14 e indicou depois o cami-nho daquelas codificaes americanas em que coexistem elementos do direito napolenico e do direito hispnico e lusitano, e que so originais na adequao realidade atual e na ligao antiga tra-dio romana. Este caminho pode ser considerado como concludo no ano de 1917, com a entrada em vigor do Cdigo Civil brasilei-ro, elaborado por Clvis Bevilqua.

    Qualquer que seja a perspectiva, institucional e nacional ("republicana" ou "imperial"), o carter comum da doutrina roma-nstica americana a relao permanente e forte com o direito civil codificado. Na raiz deste fato est, em grande parte, a atividade cientfica (e poltica) desenvolvida por trs grandes romanistas do sculo passado: o venezuelano Andrs Bello, o brasileiro Augusto Teixeira de Freitas e o argentino Dalmacio Vlez Srsfield, que co-loram as bases da codificao do direito na rea latino-americana e a realizaram, em parte, num perodo que podemos individualizar entre 1832 (incio do ensino romanstico de Bello em Santiago de Chile) e 1871 (entrada em vigor do Cdigo Civil de Vlez Srs-

    field na Argentina)^. E conhecida a influncia do Cdigo Civil de

    14 Ver S. MARTNEZ BAEZA, "Bello, Infante y Ia ensefianza dei derecho romano. Una polmica histrica 1834", em Revista Chilena de Historia y Geografia, 132 (1964) pp.196 ss., II ed. Bogot 1981 (47 pp.); A. DE VILA MARTEL, "La ensefianza dei Derecho Romano en Chile. Desde sus orgenes hasta ei siglo XIX", em Romanitas, 10 (Rio de Janeiro 1970), pp. 181 ss.

    15 Sobre os estudos romansticos e a obra de codificao do direito civil feita por es-tas grandes figuras da histria jurdica (e poltica) da Amrica Latina existe uma ampla literatura. Limitar-me-ei a citar: H.E. YNTEMA,"Introduccin" a A. BELLO, Derecho romano {Obras completas de A. Bello, 14), Caracas 1959, pp. xi-lvi; H. HANISCH ESPNDOLA, "EI derecho romano en ei pensamiento y Ia docncia de don Andrs Bello", em Revista de estdios histrico-jurdicos, 3 (1978) pp. 149 ss. (e in Studi Sassaresi, s. III, 5, [1977-78], pp. 21 ss.); A. GUZMN BRITO, "Ensayo de una bibliografia sobre Andrs Bello considerado como jurista", em Archivio giuridico, 195 (1978), pp. 145 ss.; S.A.B. MEIRA, "O pensamento criador de Teixeira de

  • Curso de Direito Romano XVII

    Andrs Bello (promulgado no Chile em 1855, com entrada em vigor em 1857) sobre os cdigos civis dos pases do litoral do Oceano Pa-cfico (particularmente Equador, Colmbia, Nicargua, Honduras, El Salvador)16; da mesma forma conhecida a influncia do Esboo (do Cdigo Civil do Brasil) de Freitas (1860-1863) sobre o Cdigo Civil de Tristn Narvaja no Uruguai (1868) e sobre o Cdigo Civil de Vlez Srsfield (com entrada em vigor tambm na Repblica do Paraguai a partir de 1877), alm de que, indiretamente e em menor quantidade, no Cdigo Civil brasileiro de 1917.v

    Freitas", em Revista da Consultoria Geral do Estado, Belm, Par, 1 (1972) (re-pu-blicado em ID., NOVOS e velhos temas de direito cit. pp. 247 ss.); ID., Teixeira de Frei-tas o jurisconsulto do Imprio, Rio de Janeiro 1979 (2a edio revista e aumentada, Braslia 1983); A. DAZ BIALET, El derecho romano en Ia obra de Vlez Srsfield, 3 vol., Crdoba (Argentina), 1949-1952; V. TAU ANZOTEGUI, La codificacin en Ia Argentina (1810-1870). Mentalidad social e ideas jurdicas, Buenos Aires 1977; A. DAZ BIALET, "La transfusin dei derecho romano en Ia Argentina (S. XVI-XVIII) y Dalmacio Vlez Srsfield autor dei Cdigo Civil argentino (1864-1869)", em Studi Sassaresi, s. III, 5 (1977-78), pp. 251 ss.; A. LEVAGGI, "La formacin ro-manstica de Dalmacio Vlez Srsfield", ibid., pp. 317 ss.; J.M. CASTAN VAZQUEZ, La influencia de Ia literatura jurdica espanola en Ias codificaciones americanas, Real Academia de Jurisprudncia y Legislacin, Madrid 1984; S. SCHIPANI, La codificazio-ne dei diritto romano comune. Ristampa accresciuta (Studi su origine e attualit dei sistema romano, 2), Giappichelli, Torino 1999, pp. 279 ss.; 319 ss.

    16 Vedi L. MOISSET DE ESPANS, Derecho civil espanoly americano. Sus influencias recpro-cas, Crdoba (Argentina) 1973, pp. 8; 15. Sobre a distino entre cdigos civis dos Estados do Pacfico (ou seno dos Andes) e os cdigos civis dos Estados do Atlntico meridional, v. H. VALADO, Le droit latino-amricain cit., pp. 15 ss.

    17 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de direito romano cit., III, p. 218; H. VALADO Le droit latino-amricain cit., pp. 17 ss.; ID., "Teixeira de Freitas, jurista excelso dei Brasil, de Amrica, dei mundo", estr. da Lecciones y Ensayos, Universidad de Buenos Aires, Facultad de Derecho y Cincias Sociales, 1/2 (1961). Cfr. Cdigo civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por CLVIS BEVILQUA, I, 1940, rist. Rio de Janeiro 1979, I, pp. 15 s. e passim; PONTES DE MIRANDA, Fontes e evoluo do Direito civil brasileiro (I ed. 1928) II ed. Rio de Janeiro 1981, pp. 80 ss.; 456; S. MEIRA, "Andrs Bello e Teixeira de Freitas em face das codificaes civis do Chile e do Brasil", em Estudos em homenagem ao prof. Doutor A. de Arruda Ferrer Correia, Coimbra 1984 (separara 1989).

  • XVIII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    A prpria formao dos cdigos dos quais so autores Andrs Bello e Dalmacio Vlez Srsfieldpermite evidenciar algu-mas caractersticas do contedo: acentuadamente doutrinrio (do Cdigo Civil de Vlez Srsfield fazem parte integrante as notas)1* e mais fortemente romanstico, em muitos pontos, do que os pr-prios cdigos europeus.^ Por outro lado, no se deve pensar que tal romanismo fosse estranho conscincia jurdica comum; um ilustre estudioso argentino observou (referindo-se ao instituto ro-mano da herana jacente, no recepcionado pelo Cdigo Civil de Vlez Srsfield, porm introduzido na vida judiciria): "no solo nuestro Cdigo Civil es ei ms romanista de los cdigos modernos sino que, cuando se ha aparado de nuestra tradicin romanista, Ia vida jurdica, impregnada de ella, ha sido ms fuerte que aqul, y los princpios romanos han prevalecido sobre Ias normas legales que respondian a una doctrina extica a nuestro ambiente jur-dico". Andrs Bello tinha apresentado, com a usual rapidez de

    18 V. A. CHANETON, Historia de Vlez Srsfield, 1938, rist. Buenos Aires 1969, pp. 418 s. No obstante uma sentena da Corte Suprema de 1934, no se considera, geral-mente, que as notas tenham a mesma hierarquia normativa das "leyes": ver G.L. ALLENDE, "Sobre Ias Notas dei Cdigo Civil", in La Ley, Buenos Aires, 9 de agosto de 1971, t. 143, pp. 1-5; L. MOISSET DE ESPANS, "Reflexiones sobre Ias notas dei Cdigo civil argentino", em Studi Sassaresi, s. III, 5 (1977-78), pp. 445 ss.

    19 V. in generale L. MOISSET DE ESPANS, Derecho civil espanoly americano cit. Riguardo, in particolare, alie obbligazioni naturali, vedi ID., Obligaciones naturales y deberes morales. Estdio de derecho comparado, Crdoba 1968, pp. 4lss.; ID., LOS obligaciones naturales en ei derecho civil argentino, Crdoba 1967; ID., Obligaciones naturales y deberes morales, Academia Nacional de Derecho de Crdoba, Buenos Aires 1998, pp. 125 ss; cfr. L. DE GASPERI, El rgimen de Ias obligaciones en ei derecho latinoamericano, Buenos Aires 1960, pp. 79 s.; 131 s.

    20 E.R. ELGUERA, "La influencia dei Derecho Romano en nuestra vida jurdica", in Revis-ta de Ia Facultad de Derecho y Cincias Sociales de Ia Universidad Nacional de Buenos Aires, ano VII, Tercera poca, 30 (luglio-ottobre 1952) pp. 725 ss.; ID., "Influencia dei derecho romano en ei Cdigo civil argentino", in Studi in onore di Vincenzo Arangio-Ruiz, II, Napoli 1953, pp. 405 ss.

  • Curso de Direito Romano XIX

    sntese, o ambiente jurdico anterior codificao: "Los que Io miran [ei Derecho Romano] como una legislacin extranjera, son extranjeros ellos mismos en Ia nuestra" (artigo em El Arau-cano, n. 184, de21 maro de 1834).21

    A concepo, comum entre os romanistas latino-america-nos, do direito romano como "substancia viva dei derecho"12 tem multplices implicaes e conseqncias, seja no plano da pesquisa cientfica, seja no plano do ensino.

    3. TRADIO ROMANISTA BRASILEIRA: JOS DA SILVA LISBOA E AUGUSTO TEIXEIRA DE FREITAS

    No Brasil foi mantido por mais tempo o direito no codi-ficado e portanto o direito justinianeu como fonte de carter subsi-dirio20; e o prprio Cdigo Civil de 1917, art. 1.807, permitia argumentar que "o Direito Romano ainda lei federal nos casos

    21 Cfr. S. MARTNEZ BAEZA, "Bello, Infante y Ia ensefianza dei derecho romano" cit. (II ed.), pp. 29 ss.

    22 A expresso de M. SUSSINI, "Los estdios de Derecho romano", em La Ley, 88, Sec. doctrina, pp. 903 ss.: "Nuestra cincia, aunque histrica, no es cincia arqueolgica que deba operar sobre un cadver. El Derecho romano es substancia viva dei derecho de Ia mayor parte de los paises civilizados". Para uma viso mais ampla do pensamento deste autor, v. C. MOUCHET - M. SUSSINI, Derecho hispnicoy "common latu"en Puerto Rico, Buenos Aires 1953. Do ponto de vista da filosofia da histria que se inspira em Ortega y Gasset, H. VAZQUEZ, "Razn y presencia dei derecho romano en nuestros dias", em Boletin de Ia Facultad de Derecho y Cincias Sociales, Universidad Nacional de Crdoba, 35 (1971) pp. 59-81, conclui: "ei Derecho Romano existe en nuestros dias". V. Tambm as conferncias de O.A. GHIRARDI, M. MARTNEZ CASAS, A. DAZ BIALET, em I Encuentro Nacional de Profesores de Derecho Romano, con ei auspcio de Ia Universidad Nacional de Crdoba, Crdoba 1977 (particularmente na p. 39 a critica Scialoja).

    23 Ver S. A. B. MEIRA, "Sobrevivncia do Direito Romano no Brasil", em tudes offertes jean Macqueron, Aix-en-Provence 1970, pp. 487 ss. (republicado em Novos e velhos temas de direito, Rio de Janeiro 1973, pp. 169 ss.).

  • XX Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    omissos da legislao civil ptria"24. Paradoxalmente foi aqui, na primeira metade do sculo XIX, mais spera a discusso sobre o en-sino do direito romano 25''.

    A instituio de uma ctedra de direito romano tinha sido sustentada, na Assemblia Geral Constituinte e Legislativa, por um dos maiores juristas do Imprio do Brasil, Jos da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, segundo uma posio "liberal" caracterizada por um sentido catlico ejusnaturalista26: "Importa, pois, que os que devem influir nas classes menos instrudas venham fazer estudos e firmar o esprito do nosso sistema na Roma Americana" (discursos de 27 e 28 de agosto de 1823)27. Examinei em outra sede a idia de "Roma Americana"18.

    O romanismo de Augusto Teixeira de Freitas foi extrema-mente consciente; limitar-me-ei em citar uma frase: "no me podeis fa-zer maior honra, do que chamando-me romanista. Nas leis e doutrinas

    24 Ver A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de direito romano, cit., III, pp. 251 ss. 25 Ver Cmara dos Deputados, Os cursos jurdicos e as elites polticas brasileiras, Braslia

    1978 (escritos de A. WANDER BASTOS, J. DE ARRUDA FALCO NETO, N. PEREIRA, T. SAMPAIO FERRAZ JNIOR); cfr. a coletnea de textos: Senado Federal, O poder legislati-vo e a criao dos cursos jurdicos (de A. VALDEREZ AIRES NEVES DE ALENCAR), Braslia 1977 (v. "ndice temtico", p. 400).

    26 Ver J. DE ARRUDA FALCO NETO, " O S cursos jurdicos e a formao do Estado nacio-nal", em Os cursos jurdicos e as elites polticas brasileiras cit., p. 87. Sobre Jos da Silva Lisboa ver H. VIANA, Contribuio iHistria da Imprensa Brasileira (1812-1869), Rio de Janeiro 1945, pp. 359-446; F.. SAN TIAGO DANTAS, Figuras do Direito, Rio de Janeiro 1962, pp. 1-20. Bibliografias se encontram em A. PAIM, Cairu e o libera-lismo econmico, Rio de Janeiro 1968, e em A. PENALVES ROCHA (org.), Jos da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, Editora 34, So Paulo 2001.

    27 Dirio da Assemblia Geral, Constituinte e Legislativa do Imprio do Brasil, n. 62, pp. 648 ss.; n. 63, pp. 655 s. Cfr. As colees de textos: Senado Federal, O poder legis-lativo e a criao dos cursos jurdicos cit., p. 33; Congresso. Cmara dos Deputados, Criao dos Cursos Jurdicos no Brasil, Braslia 1977, p. 35.

    28 Ver P. CATALANO, "Imprio, povo, costumes, lugar, cidadania, nascituros (alguns ele-mentos da tradio jurdica romano-brasileira)", em Estudos de Direito constitucional em homenagem a Jos Afonso da Silva, coord. E.R. GRAU e S.S. DA CUNHA, So Paulo 2003, pp. 134 ss.

  • Curso de Direito Romano XXI

    do direito romano est depositada toda a filosofia do direito" ("Carta" de renncia presidncia do Instituto dos Advogados Brasileiros, 22 de outubro de 1857) 29. Por outro lado, este romanismo permitia conside-rar criticamente e ultrapassar as codificaes europias. Afirmou-se por exemplo: "Freitas fue un jurista cuyas ideas estaban en avance respecto de los juristas europeos. Fue ei precursor dei sistema de una parte gene-ral en ei Cdigo, antes queAlemania, y dela unificacin de Ias obliga-ciones civilesy comerciales antes que Suiza'i0. Teixeira de Freitas, como se sabe, reportava a idia de um "Cdigo Geral" aos ttulos 16 e 17 do livro I dos Digesta dejustiniano ("Carta" ao Ministro da Justia, Martim Francisco Ribeiro deAndrada, 20 de setembro de 1867)31.

    Tambm com Teixeira de Freitas o romanismo contribui unidade jurdica da Amrica Latina. Palavras de Pontes de Mi-randa: "A Amrica do Sul, podemos dizer, tem, praticamente, um direito: o que surge, trazido pela tradio ou elaborado pelo gnio legislativo de Teixeira de Freitas, nos quase cinco milheiros de ar-tigos do Esboo"32. O romanismo se desenvolveu no Brasil filtrado

    29 O texto da carta est reproduzido integralmente em S. MEIRA, Teixeira de Freitas cit. pp. 151-161. Tratava-se de interpretao do Corpus Jris em matria de status liber-tatis: v. S. MEIRA, op. cit, pp. 148-174.

    30 F. DE SOLA CANIZARES, Iniciacin alderecho comparado cit., p. 233, n. 2; cfr. H. VALA-DO, "Teixeira de Freitas" cit.

    31 Publicada recentemente em Revista de Direito Civil, Imobilirio, Agrrio e Empresarial, 1 (So Paulo, julho-setembro 1977) pp. 362 ss.; e em S. MEIRA, Teixeira de Freitas cit., II ed., pp. 352 ss. A este propsito devem ser lembradas tambm as seguintes duas obras de TEIXEIRA DE FREITAS, Regras de direito, Rio de Janeiro 1882; Vocabulrio jurdico com apndices ("I Logar e Tempo, II Pessoas, III Cousas, IV Fatos"), Rio de Janeiro 1883: aqui se atinge tambm a mxima distncia das noes concretas do an-tigo direito romano, como aquela depersona (Vocabulrio cit., pp. 306, 382, 387).

    32 PONTES DE MIRANDA, Fontes e evoluo do direito civil brasileiro, Rio de Janeiro 1981, p. 456; cfr. J.C. MOREIRA ALVES, "O romanismo de Pontes de Miranda", em Scienza giuridica e scienze sociali in Brasile: Pontes de Miranda, a cura di G. CARCATERRA, M. LELLI, S. SCHIPANI ("Roma e America. Collana di studi giuridici latinoamericani", 2), Cedam, Padova 1989, pp. 1 ss.

  • XXII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    pelo "germanismo"da Escola do Recife, da qual um dos expoentes Abelardo Lobo33.

    4. O CURSO DE DIREITO ROMANO DE ABELARDO LOBO

    Abelardo Lobo, ilustre jurista e patriota republicano, nas-ceu em So Lus (Maranho) em 1869 e morreu no Rio de Janeiro em 1933. Desde 1915, foi catedrtico de Direito romano na atual Universidade Federal do Rio de JaneiroM.

    O Curso de Direito romano de Abelardo Lobo pode ser considerado como uma sntese em ambos os planos supra menciona-dos: aquele da pesquisa cientfica e aquele do ensino.

    A obra, que leva como subttulo Histria. Sujeito e ob-jeto do direito. Instituies jurdicas, deveria ter constado de oito volumes. A morte interrompeu o trabalho quando tinham aparecido somente os trs volumes da Histria. No aqui o lugar para fazer uma anlise aprofundada sobre a estrutura deste Curso, que, como escreve Abelardo Lobo, percorre "o longo e difcil caminho...desde as ieges regiae at a formao do Direito Ibero-Arnericano"35. J os

    33 Ver C. BEVILQUA, Histria da Faculdade de Direito do Recife (I ed. 1927), II ed., Braslia 1977, p. 373; 377; cfr. J.C. MOREIRA ALVES, "O romanismo de Pontes de Miranda" cit., p. 10, a propsito da observao de Abelardo Lobo de que os quatro quintos dos artigos do Cdigo civil de 1917 "so produtos de cultura romana".

    34 Os trs volumes do Curso de Direito Romano de Abelardo Lobo foram impressos em 1931; os escritos menores foram reimpressos no volume Abelardo Lobo (Sentimento e ao). In Memoriam, Rio de Janeiro 1934, onde encontram-se os principais da-dos biogrficos; ver J. F. VELHO SOBRINHO, Dicionrio Biobibliogrfico Brasileiro, I, Rio de Janeiro 1937. Sobre a atividade cientfica de Lobo ver F. DE P. LACERDA DE ALMEIDA, "Prefcio" a A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano cit., I, pp. xi-xxxv, e o necrolgio do conhecido comparatista argentino E. MARTNEZ PAZ, "Abelardo Lobo (1869-1933). Romanista brasileno", em Revista de Ia Universidad Nacional de Crdoba, 20/3-4 (Mayo y Junio de 1933).

    35 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano cit., III, p. 201.

  • Curso de Direito Romano XXIII

    ttulos dos trs volumes deixam por outro lado intuir a vasta com-plexidade da obra: vol. I, Organizao do Direito romano; vol. II, Expanso do Direito romano. Causas do seu desenvolvimen-to; vol. III, Influncia universal do Direito romano.

    A complementaridade dos pontos de vista dos volumes I e II ("Organizao"e "Expanso") admite uma interessante interseo cro-nolgica: a organizao do direito romano realiza-se atravs da compi-lao de Justiniano; a expanso inicia-se com o imperador Constantino e a influncia do Cristianismo. As causas do desenvolvimento so vistas, alm da influncia do Cristianismo, nas legislaes do Ocidente e do Oriente (vol. II, tt. II), particularmente da Pennsula Ibrica (tt. III), e com referncia Ley de Ias Siete Partidas (tt. PV), bem como nas escolas de direito de Pvia a Ravena e Bolonha at os humanistas (tt. V). A influncia universal do direito romano considerada nas legisla-es dos vrios pases, em particular de Portugal (tt. I e II), no direito cannico e no direito germnico (tt. III); no direito ibero-americano e, notadamente, no direito brasileiro (tt. PVe V); tambm a matria do III volume cruza-se cronologicamente com a do volume II.

    Esta ampla viso histrica de direito romano, das leis regias ao direito ibero-americano, pressupe de maneira clara06 a re-flexo comparativa realizada, j no final do sculo XIX, por Clvis Bevilqua. Por outro lado, Bevilqua, autor do projeto de Cdigo civil de 1917, far referncia obra de Abelardo lobo 37.

    5. DIREITO ROMANO ATUAL DA AMRICA LATINA

    Confirma-se que a perspectiva (cientfica e didtica) lati-no-americana tem sua raiz profunda no romanismo e que, por ou-

    36 A. SARAIVA DA CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano cie, III, pp. 10 ss. 37 Vide C. Bevilqua, "Spengler e o direito romano" (1934), ora em ID., Obrasfilosficas,YA.

    da Universidade de So Paulo, vol. II, So Paulo 1976, pp. 229-241 (partic. p. 239).

  • XXIV Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    tro lado, o romanismo leva ao reconhecimento da autenticidade la-tino-americana. Por causa disso, ainda que falta dos instrumentos historiogrficos prprios da romanstica europia (ou talvez mesmo graas a tal falta...), so evitados os riscos de "niilismo" da escola crtica contempornea38 eprincipalmente os de rebaixamento do es-tudo do direito romano entre a "histoiregnrale du droit" (de mar-ca francesa39), ou a "antike Rechtsgeschichte" (de marca alem40) ou as "cincias histricas" (tentao italiana de origem essencialmente idealista). A discusso, tipicamente europia, sobre "Historisierung" ou "Aktualisierung" do direito romano41 superada na Amrica

    38 Uso a feliz expresso de S. RICCOBONO, "Nihilismo critico-storico nel campo dei diritto romano e medievale", em Annuario deWUniversit di Palermo, 1929-1930, pp. 17 ss. Com outros termos, uma adeso posio de Riccobono claramente formulata por A. DAZ BIALET, Valor actual dei derecho romano en los Estados Unidos, Crdoba 1947.

    39 Sobre esta experincia francesa v. A. FERNNDEZ BARREIRO, LOS estdios de derecho romano en Francia despus dei Cdigo de Napolen, Madrid 1970, pp. 72 ss., 90 ss., 108 ss. No que concerne aos aspectos didticos ver as observaes crticas de V. L. DA NOBREGA, Sub-sdio para fixar as diretrizes do ensino jurdico no Brasil, Rio de Janeiro 1962, pp. 20 s.

    40 Quanto experincia alem, significativo que Leopold Wenger (o qual pode ser considerado como o iniciador da "Antike Rechtsgeschichte") tenha, em 1947, acco-lhido a posio de Koschaker: "Ad pristinum statum dignitatis iurisprudentiam Ro-manam nec sagacissima interpolationum pervestigatio nec iuris classici redintegra-tio nec papyrorum vel titulorum cuneis incisis scriptorum studia nec historia iuris antiqui redigere possunt, sed renovatio tantum usus moderni pandectarum strenuo animo perfecta, quem fundamentum iuris universalis futurum esse homines com-munitatem omnium totius orbis terrarum gentium exspectantes sperare numquam desistent neque desinent": L. WENGER, "Qui status futurus sit iuris romani" (discurso de concluso), em Atti dei Congresso Internazionale di Diritto Romano e di Storia dei Diritto. Verona 27-29 settembre 1948, I, Milano 1953, p. XLVII; sobre o tema cfr. E. GENZMER, em ZSS, 80 (1950), p. 609.

    41 V., por exemplo, G. PUGLIESE, "Diritto romano e scienza dei diritto", em Annali delia R. Universit di Macerata, 15 (1941), o qual conclua: "Richiamare Ia dottrina romanistica ai suo compito istituzionale di fornire contributi alia teoria generale dei diritto, in un senso alquanto diverso dall'attualizzazione dei diritto romano proposta dal Koschaker, mi sembra il mezzo pi idneo per restituire alia nostra disciplina il suo interesse attuale" {pp. cit., p. 48). Tal posio corresponde s em parte quela latino-americana.

  • Curso de Direito Romano XXV

    Latina, de maneira implcita, pela afirmao vital segundo a qual o direito romano "substancia viva dei derecho".

    O romanista argentino Augustn Daz Bialet escreveu de maneira incisiva, com relao ao debate sobre o valor do direito romano: "Probada su recepcin definitiva, probado que l est en ei derecho actual, que es actual, que es Ia norma misma muchas veces, ya Ia discusin acerca dei valor dei Derecho Romano es ociosa, y Ia actitud metdica es estudiarle para captar su valor cientfico"42; e precisou: "La sistemtica relacin cientfica entre ei Corpus luris Civilis y Ias instituciones civiles dei Cdigo no son expresiones de una tradicin romanstica: sino Ia presencia realy organizada dei Derecho Romano en ei Cdigo Civil Argentino. [...] No sepue-de considerar ai Derecho Romano como un derecho histrico, pues esto, implica escindir un proceso cientfico constante tal cual es ei desarrollo unitrio de Ia cincia dei Derecho principalmente en ei derecho privado civil" 43.

    A forte conexo e a superposio das noes de "direito ro-mano", "romanismo", "direito atual", so portanto caractersticas do pensamento histrico-jurdico latino-americano, e elemento integran-te da sua originalidade (e da originalidade de todo o sistema jurdico latino-americano). No pretendo detectar uma concepo unitria do "direito"ou do "direito romano nos romanistas latino-americanos dos sculos XIX e XX; bvio que no existe uma tal viso unitria. Quero porm salientar que da grandeza espao-temporal da tradio romana (ou do romanismo) na Amrica, chega uma mensagem que

    42 A. DAZ BIALET, La recepcin dei derecho romano en Ia Argentina, Crdoba 1951, p. 53 ("Tercera Parte: Conclusiones sobre ei mtodo de interpretacin y Ia poltica jurdi-ca"); cfr. ID., "La crisis dei derecho y Ia crisis dei derecho romano", em Studigiuridici in memria di F Vassalli, I, Torino 1960, pp. 547 ss.

    43 A. DAZ BIALET, "La transfusin dei derecho romano en Ia Argentina" cit., pp. 281, 293.

  • XXVI Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    visa a eliminar, ou, pelo menos, considerar criticamente, as cristaliza-es (gostaria de dizer incrustaes) conceituais europias, posteriores s codificaes, que separam noes tais como direito romano ("hist-rico"), tradio romanstica e direito atuais

    No plano do ensino, a concepo do direito romano como "substancia viva dei derecho" implica uma forte ateno para o direito justinianeu. E, no fundo, uma maneira de afirmar, nova-mente, o fato de que, no final do sculo passado, Contardo Ferrini explicava aos alunos, apresentando as diferenas entre os ensina-mentos romansticos na Frana, na Alemanha e na Itlia: "Quem estuda, com critrios prticos, o direito romano, quem no o con-sidera como um resto arqueolgico, mas como organismo vivo, no pode deixar de preferir a forma esplndida do Direito romano cls-sico a substncia mais evoluda do Direito romano justinianeu, que ainda sentimos palpitar no fundo dos nossos institutos jurdicos, infundindo-lhes uma perene juventude"^.

    Vou apresentar somente algumas indicaes desta forte aten-o para o direito justinianeu no ensino do Direito romano na Am-rica Latina. Foi assinalada a utilizao para fins didticos, em vrios pases (Mxico, Costa Rica, Venezuela), da traduo em lngua caste-lhana da obra de Ortolan, Explicacin histrica de Ias Institutas dei emperador Justiniano (cuja segunda edio francesa tinha aparecido

    44 Ver A. DAZ BIALET, "Tendncias actuales dei estdio dei Derecho Romano", em Revista de Ia Sociedad Argentina de Derecho Romano, 10-11 (1963-65) pp. 59 ss.; cfr. supra n. 38. Para uma nova discusso, baseada na doutrina italiana, ver a rela-o de S. SCHIPANI, "Diritto romano e diritto attuale" (em Klio, 61 [1979] pp. 143 ss.) apresentada no Colquio sobre "Rmische Geschichte, Rmisches Recht und aktuelles Recht" organizado na Karl Marx Universitt de Leipzig em abril de 1977, em ocasio do aniversrio da fundao de Roma (cfr. Labeo 23 [1977] pp. 377 ss.; Index 7 [1977] pp. 225 ss.); ID., La codificazione dei diritto romano comune cit.

    45 C. FERRINI, Lezioni di Diritto romano (raccolte dagli studenti A. Chiavelli, A. Damia-ni, G. Reggiori), Pavia 1898-99, p. 5.

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    Curso de Direito Romano

    no ano de 1842); da obra foram publicadas edies recentes na Ar-gentina (1960; 1976).46 No Brasil, nos ltimos cem anos, apareceram numerosas tradues das Instituciones de Justiniano47. Em Braslia, o ensino romanstico denominado "Direito romano das Institui-es", observando que se trata daquelas "do imperador/Justiniano" (Anexo n 28 do Regimento Geral da Universidade de Braslia).

    Neste conjunto cientfico e didtico caracteristicamente latino-americano esconde-se tambm um grave perigo. O perigo que, seja por uma certa falta de ateno na didtica, seja por falta de pesquisa histrica, a "atualidade" do direito romano seja redu-zida, ainda que inconscientemente, ao fato de que a compilao justiniania o precedente (para muitas normas at imediato) dos cdigos da Amrica Latina, ou, pior, que o direito romano seja re-duzido a uma projeo no passado dos direitos positivos dos Estados burgueses dos sculos XIX e XX.

    AG V. G. LOBRANO, La ensenanzay Ia investigacin dei derecho romano en Ias universida-des latinoamericanas, trad. di F. Betancourt, Universidad Externado de Colmbia, Bogot 1976, pp.18 ss. (cfr. ID., em Index 6 (1976), Diritto romano e universit deWAmerica Latina, pp. 257 ss.; S. SCHIPANI, "Sull'insegnamento delle istituzioni", em II modello di Gaio nella formazione dei giurista, Milano, 1981, pp. 143 s.). Em geral sobre a obra de Ortolan v. A. FERNNDEZ BARREIRO, Los estdios de derecho ro-mano en Francia, cit., pp. 35 ss. epassim.

    47 A. COELHO RODRIGUES, Institutos do Imperador justiniano vertidas do latim para o portugus com perto de cinqenta notas extradas do 'Corpus Jris' e um apndice conten-do a ntegra do texto e da traduo das Novelas 118 e 127, Recife 1879-1881; S. Vam-pr, Institutos do Imperador Justiniano traduzidas e comparadas com o Direito Civil Brasileiro, So Paulo 1915; A. CORREIA, Institutas de Justiniano, em A. CORREIA-G. SCIASCIA-A.A. D E CASTRO CORREIA, Manual de Direito Romano, II ed., vol. 2, So Paulo 1955; C. Natalim de Oliveira, Institutas do Imperador Justiniano, So Paulo 1952; Instituies de Justiniano. Origem do Direito Brasileiro, trad. de S. RIBEIRO DE SOUSA e D. MARQUES, Curitiba 1979. Uma edio latina foi elaborada no sculo passado por um estudioso brasileiro, E. FERREIRA FRANA: Institutionum Iustiniani libri IV in usum academiarum Brasiliensium, Lipsiae 1858. Cfr., com referncia Antnio Coelho Rodrigues e em geral, J.C. MOREIRA ALVES, "Panorama da literatura romanstica no Brasil" in Index, 6 (1976), pp. 47; 51 epassim.

  • XXVIII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    O remdio definitivo est na projeo da "atualidade" do direito romano no futuro, superando a fragmentao dos direitos estatais: atravs das codificaes, alm das codificaes.^

    Eportanto necessrio, na didtica assim como na ativida-de cientfica (iurisprudentia), retornar s fontes; com as palavras de Teixeira de Freitas: "O Corpus luris deve ser a fonte vital, onde devemos beber sempre e sem descanso. "49 As fontes romanas unem professores e estudantes desde Vladivostok at Buenos Aires.

    48 Cfr. as perspectivas, entre si complementares, de S. SCHIPANI, "Dal diritto romano alie codificazioni latinoamericne: 1'opera di A. Teixeira de Freitas", em Studi Sas-saresi, s. III, 5 (1977-78) pp. 589 ss.; e de J.M. CASTAN VAZQUEZ, "La codificacin como un hecho actual", em Estdios de Derecho Civil (libro homenaje ai Dr. Luis Moisset de Espans), Buenos Aires 1980, pp. 571 ss. Ver tambm M. A. LAQUIS, "Desde Vlez hasta Ia actualidad. Lesin. Abuso dei derecho. Imprevisin" em La Ley, Buenos Aires, mircoles 12 de agosto de 1987; S. SCHIPANI, "Treinta anos de dilogo con los juristas latinoamericanos", em La Ley, Buenos Aires, mircoles 22 de setiembre de 2004.

    49 Na citata "carta" de 22 de outubro de 1857, reproduzida em S. MEIRA, Teixeira de Freitas, cit., pp. 142 ss. (partic. 150). Ver em geral o volume Augusto Teixeira de Freitas e il diritto latinoamericano, aos cuidados de S. SCHIPANI (Roma e America, Collana di studi giuridici latinoamericani, 1), Cedam, Padova 1988, partic. 546 ss.

  • Prefcio LACERDA DE ALMEIDA

    Catedrtico de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro

    ^EMPRE pensei e continuo a pensar que a qualidade proemi-nente no professor o amor cincia que ensina. Se a curiosidade, como disse algum, incentivo de todas as descobertas em qualquer das provncias do saber humano, o amor que d fora para conti-nu-las e lev-las a termo.

    Para tratar com perfeio qualquer assunto, disse MICHE-LET, preciso am-lo. Os trabalhos, as desiluses, os desfalecimentos que acompanham quase sempre as investigaes cientficas, so, verdade, fartamente compensados pelo prazer intelectual de haver realizado alguma coisa em prol da especialidade a que nos dedica-mos; mas o amor cincia que faz esquecer a labuta em que mou-reja o investigador, os insucessos, os desgostos, tudo, porque tudo ele sacrificou nas aras dessa religio, em que se vo as foras, a sade, e s vezes at a vida dada em holocausto aos avanos e aperfeioa-mento do saber.

    Exemplo edificante desse amor extremado disciplina que professa, no conheo igual nem mais completo do que aquele que

  • XXX Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    nos d a ns cultores do Direito o eminente autor do livro, que com jbilo estamos prefaciando, o Professor ABELARDO LOBO, que to grande lustre empresta a Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro.

    Tem, com efeito, o Professor ABELARDO LOBO verdadeiro culto pela cincia que ensina, e por isso que lhe tem entranhado afeto, dedica-lhe o melhor do seu esforo e o tempo, que no perde nos cuidados com uma sade precria e um organismo dbil e es-gotado.

    E tem fundamento o entusiasmo do ilustre catedrtico pela matria que ensina. Confesso que dos variados ramos em que se divide a nossa cincia, nenhum conheo que mais incite e desen-volva o esprito de investigao do que o Direito Romano.

    O carter de vetustez e veneranda antigidade em que o encontramos, cerca-o do nimbo da poesia que transfigura as coisas longnquas, sem que com isso alis perca a atualidade, que lhe reco-nhecemos como fonte de inspirao para cdigos atuais.

    E atual o direito romano ainda o , e pelo mesmo ttulo que as legislaes dos povos modernos, com a diferena porm, que daquelas o magistrado aplica a norma na crueza dos textos, ao passo que o Direito Romano, perdida a fora coativa como texto de lei, conserva ainda hoje no esprito que o anima todo o vigor, toda a mocidade como doutrina, e constitui a ganga, o substrato do pensa-mento jurdico moderno.

    Explicar a razo dessa permanncia, dessa eterna juven-tude do Direito Romano tem sido tema do quanto a respeito de sua influncia atravs da histria tm escrito os melhores autores.

    IHERLNG, um dos mais citados e que mais se dedicou ao assunto, reconhecendo ao Direito Romano o carter histrico, diz que, ao passo que na multido de leis e estatutos em que se dividiam

  • Curso de Direito Romano XXXI

    os povos depois das invases do sculoV, o Direito Romano conser-vava a unidade prpria do povo romano: o daqueles povos diferia e diversificava de um para o outro, de modo que bem se lhes podia aplicar em assunto de Histria o nome de Histria dos Direitos, competindo s ao Direito Romano o de Histria do Direito.

    Este carter de unidade e de universalidade, podemos acrescentar, porque uma coisa implica a outra, provm-lhe de duas qualidades que o distinguem de quaisquer outros a sua verdade e a beleza que lhe prpria.

    O Direito Romano, quanto ao primeiro predicado, expri-mia no seu tempo e ainda conservava na atualidade a verdade nas relaes jurdicas: ningum h que conhecendo-o ainda que per-functoriamente, no o admire, sentindo a impresso forte na verda-de jurdica que ele traduz de modo singular. O tino, a sagacidade, o bom senso dos seus velhos jurisconsultos fazia-os acertar sempre na diagnose do caso que lhes era sujeito, e, como a regra jurdica jaz nas entranhas do caso ex facto jus oritur , acontecia que, acertando eles com a regra, a expusessem com preciso e clareza, e, reunindo uma s outras, colecionando-as, chegassem a formar esse cabedal magnfico que se desenrola pelos ttulos seguidos das Pandectas, com especialidade pelos de verborum significatione e de regulis jris.

    E falo das Pandectas de preferncia a outras partes do Corpus Jris Civilis, para s mencionar a obra-prima do gnio ju-rdico de Roma, a qual atingiu aonde mal alcanam os nossos vos de juristas modernos, de modo a fazer jus ao epteto merecidamente alcanado de Razo escripta.

    A verdade jurdica que brilha nos modernos monumen-tos de legislao, nos nossos to decantados Cdigos, est em gr-men, ningum h que o desconhea, nos textos imortais do Direito Romano. Eis uma das razes da admirao, do culto, geralmente

  • XXXII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    prestado ao Direito Romano e do seu indisputado domnio desde a Antigidade at aos tempos atuais. O Direito romano a expresso altssima da verdade jurdica.

    O outro seu predicado, donde decorre a influncia perma-nente de que goza, e a sua pronta aceitao mormente entre a classe culta, vem de sua beleza, da beleza, que uma face da verdade, aqui, da verdade jurdica.

    Este aspecto do Direito Romano, isto , a sua beleza pr-pria e tcnica, que se traduz no modo elegante, correto e sbrio com que se expressavam os juristas mximos, principalmente no seu perodo ureo, no escapou ao insigne GIBBON, O qual no seu livro Decadncia e Queda do Imprio Romano (Decline and Fali of the Roman EmpireJ em um captulo dedicado Jurisprudncia romana, afirma "que foi SRVIO SULPCIO O primeiro a reduzir a multiplicidade e variedade dos casos a uma regra infalvel e lgica haurida nos preceitos de ARISTTELES e dos esticos, derramando sobre a massa a informao dos fatos luz da coordenao e da eloqncia".

    CH. BOUCAUD por sua vez afirma no seu Esboo de um Direito Cristo no Direito Romano que a obra dos jurisconsultos romanos em tirar o bloco informe e rude do Direito Quiritrio a figura quase humana do Direito Civil, tornara o Direito Romano o estudo histrico, a elegncia jurdica, comparvel a elegncia da arte grega, ao ponto de poder dizer DEMANGEAT no seu Curso de Direito Romano que as decises de Paulo e Papiniano excitam ainda hoje o entusiasmo que entre ns despertam as obras primas da estaturia grega.

    Pois destituda de razo, quer nos parecer, a censura de v. IHERING ao grande SAVIGNY, por haver este proposto a matria do Direito Romano sua forma, forma tcnica impecvel pela qual se

  • Curso de Direito Romano XXXIII

    exprimem os Papinianos, os Paulos, os Ulpianos. No este o nico valor, est bem visto, do Direito Romano: mas incontestavelmente o lado pelo qual a construo jurdica das Pandectas arrastou a admirao e o aplauso de quantos exultaram com a preciosa desco-berta de Amalfi.

    Seria trabalho ocioso e sem fim trazer colao aquilo que todos sabem textos (e so tantos!) em que resplandece, a par da verdade, essa elegncia no dizer, essa sobriedade inimitvel, prpria dos jurisconsultos romanos.

    Mas, no resistimos a tentao de indicar, ao menos, al-guns dos mais notveis. Comecemos pela definio de Lei:

    "Lex est commune praeceptum, virorum prudentum con-sulta, delictorum quae sponte vel ignorantia contrahuntur coercio, communis Reipublicae sponsio." E outro texto sobre o esprito das leis:

    "Nulla jris ratio aut aequitatis benignitas patitur quae sa-lubriter pro utilitate hominum introducumur, ea nos duriore in-terpretatione contra ipsorum commodum producantur ad severi-tatem."

    Essas qualidades f-las bem ressaltar o ilustre HEDEMANN no seu livro Einfuhrung in die Reschtswissenschaft, do seguinte modo:

    "A percia dos Jcts. romanos revela-se com especialidade no sentido da Lgica. Assim se explica a grande fora de argumentao, a admirvel segurana dos conceitos e a singular sobriedade que rei-na no Digesto. Assim se explica tambm o sucesso que o Direito Ro-mano alcanou exatamente nos sculos em que a Lgica dominava os espritos, e o por que sua estrela empalideceu na era do pedantis-mo fSchwarmzeitj e da inculcada civilizao (Aufklaerungj, que foi o sculo XVIII." A sobriedade singular dos grandes mestres do Direito Ro-

    mano, no ocioso repeti-lo, revela-se a cada passo nessas sentenas

  • XXXIV Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    curtas, lacnicas, que passaram a ser outros tantos axiomas na nossa cincia. Sirvam de exemplo:

    "Non omne quod licet honestum est."

    L. 144 D. de reg. jur. "Qual jus naturale attinet omnes domines acquales

    sunt".

    L. 32, D. eod.

    "In omnibus quidem maxime tamen in jure aequitas spectanda est."

    L. 90, D. eod.

    O Direito Romano um Direito para ns essencialmente histrico; os seus textos valem atualmente, dissemos, no como tex-tos de lei a aplicar, mas como regras superiores a estudar. Delas se poderia dizer como de outros se tem dito: valem, no ratione auc-toritatis, mas autorictatis rationis. E pelo mtodo histrico que este Direito ensinado; estudamo-lo agora como antigidade, como arqueologia, sim, mas, para apreender nele o elemento latente, o seu esprito, o qual ainda e sempre pelo estudo da Histria que havemos de descobrir.

    Triunfa, com efeito, e a est ela em toda a pujana, a escola de HUGO e SAVIGNY, diria melhor, a escola cujaciana, porque foi de CujciO para c que os estudos de Direito Romano tomaram a direo que podemos dizer definitiva.

    Como lei a aplicar o Direito Romano perdeu todo o va-lor; a sua autoridade como lei passou para os Cdigos modernos, herdeiros diretos de seu prestgio e poder. Mas, antes que operasse a transfuso do velho sangue romano para as veias dos organismos novos, prenhes de futuro desenvolvimento, eram os textos do Corpus Jris Civilis que interpretados e ajeitados s necessidades ocorrentes,

  • Curso de Direito Romano XXXV

    serviam de norma na idade mdia e ainda depois, de par com as Decretais e disposies de Direito Cannico, deciso das pendn-cias a que era mister aplicar a lei.

    Foi este o trabalho dos Glosadores, trabalho meritrio, o de acomodar o Direito Romano aos usos prticos, s necessidades da poca, em cujo proveito o transformaram, desfiguraram ou de-turparam, como entendem alguns, hoje neste perodo de escavaes arqueolgicas e reconstituies de civilizaes mortas.

    Digo que meritrio foi o trabalho dos Glosadores, e esta justia lhes fao com B. BRUGGI (como o mostrei em minhas "Lei-turas sobre a Posse", publicadas na Revista de Direito de Bento Faria); foram eles, os to desprezados e escarnecidos Glosadores, que pacientemente elaboraram a massa de que se formaram os cdigos modernos.

    Sim; o Direito que dizemos nosso, e cada pas reivindica como prprio decorre diretamente deles, obra deles. So os Glosa-dores com toda a sua ignorncia, com todos os seus erros, os prede-cessores, os pais do Direito Moderno.

    Exercem os cdigos atuais a funo de norma jurdica por excelncia; mas, nem assim perdeu o Direito Romano sua prstina e reconhecida importncia. Do seu estudo meramente histrico, mas no ocioso, decorrem princpios que ainda hoje, e talvez nunca como hoje, derramam torrentes de luz sobre os mais obscuros pro-blemas jurdicos; dele se pode dizer o que disse, no sei se HEINCIO ou HOFFMANN: "nunquam mihiplacuit antiquitatis studium nisi quod sublimioribus scientiis lumen praeferret".

    E realmente com esse intuito, mirando a utilidade que presta boa inteligncia e aplicao das leis atuais que o estudo de Direito Romano nunca perder de valor luz dos mtodos cujacia-nos renovados e amplificados pelos modernos pandectistas alemes.

  • XXXVI Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    Algumas vezes, porm, o mtodo puramente cientfico, quero dizer, a inteno de fazer arqueologia jurdica, de patente-ar como WALTER SCOTT em Ivanhoe, G. FLAUBERT em Salamb e SIENKWICZ no Quo vadisr' a reconstituio de uma poca morta, aqui a do Direito tal qual era vivido no Frum de Roma; algumas vezes, digo, tem esse mtodo trazido no pouco dano tradio que se ia formando no sentido em que a dirigiam os continuadores da 'glosa" e do "uso moderno das Pandectas " como eu mesmo tive oca-sio de mostrar em meus estudos sobre a Posse.

    O Direito Romano como coisa de contemplar e admirar, sem ulterior intuito (a Arte pela Arte), no passa de um prazer inte-lectual muito legtimo, como outros; mas, no esse o principal oficio, a soberana vantagem do estudo quela imorredoura sombra.

    No sei se farei com isso injustia (ignorncia talvez de minha parte), mas, sempre me pareceu que a escola cujaciana nas-ceu da influncia irresistvel do ressurgimento que nas cincias, nas letras e nas artes operou o sculo XVI, sculo com razo apelidado de Leo X, tal a estupenda magnificncia do reinado desse novo Mecenas.

    Essa florao admirvel nas letras com SCALIGERO, prn-cipe dos eruditos modernos, com ERASMO, o mais sapiente e elegan-te escritor daqueles tempos, sem falar de CERVANTES, MAQUIAVEL, ARIOSTO, TASSO e CAMES! Era a poca em que a arquitetura com BRAMANTE, a escultura com MIGUEL NGELO, a pintura com RAFAEL e o prprio MIGUEL NGELO, produziram provas imortais e inexce-dveis. Um perodo de renovao das coisas, o gosto pelas formas e produes da antigidade paga havia invadido todos os domnios do pensamento; queria-se viver contemporneo das grandes figuras gregas e romanas, e era natural que a obra mais gigantesca da civi-lizao romana o seu Direito enfeixado no Digesto e no Cdigo

  • Curso de Direito Romano XXXVII

    Justinianeu, chamasse a ateno dos eruditos para estud-la como se estuda um monumento desenterrado dos escombros nas grandes runas de Pompia.

    Os mesmos processos, os mesmos mtodos. Ento no bastava para serjurisconsulto a cincia chilra, as letras gordas dos glosadores; era mister no estacar como estes diante de um texto grego, declarando-o indecifrvel; ao contrrio, o jurisconsulto havia de ser humanista, co-nhecer os clssicos gregos e latinos, por em contribuio na inteligncia e comentrio dos textos os filsofos e oradores, os poetas, e dramaturgos, SNECA, PLAUTO, CCERO e TERNCIO, andar versado nesses assuntos e at fazer versos latinos, como os fazia ANTNIO GOUVEIA, esse jurista portugus, rival de CujCiO epor este tido em grande conta.

    E foram humanistas, literatos, homens de elegncia no es-crever e no dizer, os da escola cujaciana que ainda hoje revive nos es-tudos de Vico, de GRAVINA, de HEINCIO, to juristas como filsofos.

    Por a se v quo difcil se torna hoje escrever sobre aparte histrica (principalmente esta) do Direito Romano depois dos tra-balhos hodiernos dos von RANKE, MOMMSEN, BECKER, SCHWALGER, RUBINO, aos quais se poderia acrescentar GIRAUD, POU Y ORDINAS, PADELETTI e muito mais que seria fastidioso mencionar.

    E tanto mais para admirar e aplaudir o trabalho do Professor ABELARDO LOBO, que se aventurou em matria to cheia de embaraos e que exige to vasta e variada cultura.

    Comea o estudo histrico do Professor ABELARDO LOBO pe-las Fontes do Direito Romano, e desde logo surgem as dificuldades. Ao estudo das fontes fez preceder o insigne O. KARLOWA uma exposi-o da estrutura desse grande mecanismo que foi o governo de Roma, ou, melhor, do seu Direito Pblico. Depois de estudar a monarquia, o povo, sua distribuio em tribos, crias e gentes, o Senado, a urbe e a campanha, os plebeus e a reforma de Srvio Tlio, os comcios

  • XXXVIII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    e a fundao da Repblica, a criao dos tribunos e o decenvirato, entra ento na anlise das fontes, e comea pelas Leges regiae e Lei das XII Tbuas. Mas no possvel, pensamos, separar umas coisas das outras, e o prprio KRLOWA trata os magistrados, dapotestas e do imperium de envolta com os estudos das fontes.

    Razo tem pois o nosso eminente colega, DR. ABELARDO LOBO para entrar logo no estudo das fontes, visto como este estu-do inseparvel do da organizao do poder em Roma, e tem, ao demais, em seu apoio mtodo idntico seguido por G. HUGO, BER-RIAT SAINTPRIX e outros, que tratam promiscuamente das partes e da organizao do Estado Romano, ou pelo menos, supe sabidas as noes de Histria Romana necessria para a inteligncia do desen-volvimento da histria jurdica do grande povo.

    Ocupando-se da Histria Externa do Direito Romano, era natural indagar como se deva ela dividir: a clebre questo dos perodos histricos, se trs ou quatro ou cinco, como entende o nosso ilustre autor.

    Comearemos pela diviso de ORTOLAN, O qual s admite trs perodos: o real, o republicano e o imperial, como se influsse na feio do Direito o simples fato da organizao poltica, quando sabido que as instituies civis de qualquer povo resistem em regra s transformaes polticas. Real, republicano, imperial, engana-se quem for atrs da sonoridade aparente dos vocbulos.^

    Um trabalho surdo, ntimo, na formao do Direito o que de ordinrio se opera epode determinar perodos verdadeiros de seu desenvolvimento.

    S quem inteiramente hspede na Histria Romana ou, o que tanto vale, na Histria jurdica de Roma, deixar de ver

    1 Veja-se o fundamento desta assero em MOMMSEN, Hist. Rom. - 1, p. 78 (da trad).

  • Curso de Direito Romano XXXIX

    que a Repblica no trouxe alterao fundamental nas relaes de direito entre os romanos.

    E em pleno perodo rgio que se instituem os comcios por centrias, os quais substituem os comcios por tribos: h uma alterao muito mais profunda em outorgar o direito de voto aos que tm tantos sestrcios de preferncia aos que nada tm (capite sensij, do que em abolir as frmulas liberais do sufrgio e con-centrar todas as magistraturas na mo do Prncipe, como sucedeu imperando Augusto.1 Os reis medievais eram reis, mas eram alteza e no majestade, e entre os fidalgos o rei figurava como primus inter pares, sem ser preciso ir a Arago para ver os nobres falarem ao rei de chapu na cabea. Que diferena entre esses bons tempos e a baixeza dourada dos nobres de Lus XIVem Frana e de D. Joo V em Portugal.

    O defeito da classificao de ORTOLAN no escapou ao nos-so sbio colega, que apresenta igualmente a classificao de GIBBON, muito melhor, e a mais seguida, e com ela outras mais, igualmente notrias, concluindo por oferecer classificao de sua lavra, a qual nos parece melhor que todas, pois atende transformao que o Cristianismo veio operar nas instituies de Direito Civil, dada a este vocbulo a acepo que tinha entre os romanos. Sem falar no Edito Perptuo de Slvio Juliano, "sntese maravilhosa de um dos ramos do Jus Honorarium " que caracteriza o segundo perodo, na diviso do nosso ilustre colega, omitindo o terceiro perodo, o dos maiores jurisconsultos, o qual vai at Alexandre Severo, mencionar-mos somente um perodo que o nosso emrito romanista acrescenta aos quatro j conhecidos: o quinto, caracterizado pelo predomnio de novas idias religiosas, graas influncia do cristianismo.

    2 ORTOLAN - Hist. de Ia Legisl. Rom. n 36.

  • XL Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    Por grande que fosse a decadncia da cultura jurdica an-tiga, no se pode negar a transformao operada nos costumes, nas instituies, em toda a vida jurdica ao sopro regenerador da reli-gio de Cristo.

    Quem atribui a mera influncia dos esticos o esprito de elevada retido, o culto da verdade e da sinceridade nos contratos e outros lampejos da eterna justia que tantas vezes descobrimos nos textos do Direito Romano, no percebeu o trabalho surdo que as idias crists iam fazendo na alma das instituies ao ponto de transparecer claro em passagens como a definio do casamento, que MODESTINO qualifica de consortium omnis vitae, definio que honraria a qualquer dos padres ou doutores da Igreja.

    S quem no manuseou o interessante opsculo de TROPO-LONG, Influncia do Cristianismo Sobre o Direito Civil dos Ro-manos, ou esse outro livrinho precioso de BOUCAUD, Ensaio de um Direito Cristo no Direito Romano, negar a grande revoluo que no esprito dos textos, dos velhos textos romanos, operou a idia nova de igualdade dos homens, filhos todos do mesmo Pai Celeste, Onipotente e Misericordioso.

    As Institutas de LACTNCIO, que se podem comparar, quan-to aos fins que visavam, s Institutas de GAIO, mostram quo funda penetrara nos nimos a moral crist. Dedicadas ao Imperador Cons-tantino, as Institutiones Divinae de LACTNCIO continham captulos consagrados a Justia e ao Culto verdadeiro: realizando a transfuso do Direito Cristo no Direito Pago. O livro de LACTNCIO consi-derava o cristianismo menos uma metamorfose sobrenatural, que uma restaurao da simples Justia natural: por este ponto visvel o contato dos doutrinadores cristos com os moralistas pagos da esco-la estica. SNECAfoi chamado por algum "Padre da Igreja", ttulo honrosssimo para um pago.

  • Curso de Direito Romano XLI

    Para que insistir nos corolrios que do conceito estico de Justia pode tirar e deduzir a idia generosa da fraternidade hu-mana e da filiao celeste da nossa raa, idia que vinha alterar no sentido da caridade as relaes dos cnjuges e a autoridade paterna na famlia, idia que vinha aluir pela base a instituio odiosa da escravido, na qual assentava toda a vida econmica da Antigida-de, e substituir ao mesmo tempo o despotismo desenfreado do gover-no poltico pela noo inteiramente oposta do Prncipe, ministro de Deus para bem dos governados?

    Fez bem, portanto o ilustre autor do livro que prefacia-mos, em destacar, dando-lhe o merecido relevo, perodo to notvel da Histria do Direito Romano, como fez no ttulo 1 do 2o volume, perodo, cuja extenso embora se possa recuar a pocas anteriores, no deixa de ocupar posio das mais salientes, de modo a fazer poca nessa to estudada e debatida Histria do Direito Romano.

    Antes de aventurarmos juzo sobre a interessante parte do trabalho do Dr. ABELARDO LOBO relativo Lei das XIL Tbuas, seja-nos lcito, j que se trata do mais antigo monumento de Direito escrito entre os romanos, dizer algo em relao ao sentido em que se deva tomara expresso Direito escrito. Entende-se largamente o nosso ilus-tre colega sobre este interessante assunto, para concluir que o Direito escrito era o que materialmente conservava a forma escrita, e no o que dimanava da autoridade pblica, embora sem a forma escrita.

    Estou neste ponto com SAViGNY,para opinar, como opino, que o Direito no escrito o que se origina dos costumes e assim se mantm (consuetudo more utentium comprobataj, embora acidentalmente possa tomar a forma escrita, tais os costumes das Provncias Francesas chamadas por isso Provncias do Direito no escrito, Costumes, que foram depois reduzidos a textos por BEAUMANOIR, LOYSEL, MOLINEU, e outros, e apesar disso no deixou de ser o Direito Costumeiro. Apre-senta ao demais o Direito no escrito um interesse de ordem mais ele-

  • XLII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    vada como manifestao, que , da espontaneidade e da necessidade da norma jurdica, observada antes de ser adotada e imposta pelo le-gislador e acatada como obra legislativa pela opinio geral. E o que se pode ver em ACCARIAS, Dir. Rom., I, 22.

    O costume, diz SCIALOGIA, Inst. de Dir. Rom., constitui e primeira fonte do Direito na Histria. Nisto esto de acordo os autores da Historia do Direito e os de Direito Natural, de Enciclo-pdia Jurdica e de Introduo ao Estudo do Direito.

    No sei se entendi bem o ilustre colega na sua opinio sobre o carter nacionalista ou aliengena da famosa Lei das XII Tbuas, porque, ou se d crdito lenda da embaixada Grcia para estudar as leis de Slon e a traduo delas pelo exilado Efevo, e ento o grande monumento da jurisprudncia romana perde inteiramente o cunho de nacionalidade que o tornava to popular; ou, ao contrrio, temos de consider-lo uma consolidao dos antigos costumes e prticas ju-rdicas de Roma. Desfigur-lo porm, atribuindo-lhe elementos de vria origem o que nos no parece razovel.

    Quanto a indcios de Direito grego que se vem na Lei das XII Tbuas podemos dizer que no h lei nenhuma ou cdigo de leis que no revele alguma coisa dessa Justia universal e perene, de que todos os povos, mesmo os da mais remota antigidade, par-ticipam; era natural, pois, que na Lei das XII Tbuas lampejassem clares de justia, que j espelhavam, no Cdigo de Hamurbi e na legislao egpcia e oriental; mas da para consider-las fontes da obra dos Decnviros, vai, entendemos, imensa distncia; nem isso justificaria a tradio da ida dos jurisconsultos romanos Grcia, tradio to assoalhada e corrente.

    Tenho opinio firmada,3 e em meu esprito nada pode ainda abalar as duas razes igualmente sensatas e robustas que nos

    3 Tal tambm a de Pou Y ORDINAS, Hist. Ext. dei der. Rom., lio IV, p. 72.

  • Curso de Direito Romano XLIII

    d GIBBON na sua j citada obra: no possvel, diz o insigne histo-riador, que patrcios, com seus preconceitos e rancores de classe, con-sentissem numa misso Grcia para trazer de l um compndio de democracia, isto , a igualdade a que aspiravam os plebeus; no possvel, por outro lado, que a embaixada romana no o tivesse deixado rastro nos anais da Grcia, e todavia nenhum autor grego se encontra que a mencione} E, quanto ao contedo das Tbuas, no isso um plago de obscuridade e dvidas?

    Na invaso de Roma pelos gauleses as Tbuas desaparece-ram, e o que se sabe da legislao delas resultado de reminiscncias e do trabalho mais ou menos engenhoso dos reconstituidores deste monumento com materiais colhidos aqui e ali nos autores que im-perfeitamente lhe reproduzem o texto''.

    4 GIBBON 'S, Decline and Fali, Cap. XIV. 5 Ver a reconstituio em GRAINA, Orig., Liv. III, pag. 111 e seg. (edio de Veneza,

    1730); PELAT, Man. Jur. Synopt. e outros. curioso o que a tal respeito lemos em G. PUCHTA, Gesch, des Roem. Rechtes, LV. Diz ele: Se dermos a uma expresso de Cipriano (Ep. 2, 4 ad Don.) o sentido literal, teremos de aceitar que elas (as Tbuas) ainda existiam no III sculo, e foram vistas no Frum, o que alis provvel. De ento em diante desaparecem quaisquer vestgios" E em nota: "A passagem de ODOFREDO (1265) no Dig Vet., Liv. VI, dejust. -jur., de que "das duas ltimas Tbuas conserva-se alguma coisa no Latro em Roma, e era difcil de ler o que continham", baseia-se, sem dvida, na descoberta de outra velha Lei, um de cujos fragmentos aquele jurista conheceu superficialmente. O autor esquece que ainda no V sculo entre os anos de 462 e 466 as XII Tbuas eram explicadas em Narbona pelo jurista e poeta Leo, bisneto de Frontnio: con-fronte-se "Sidonii Apollinaris Elogium Narbonis" (carm. 23, pag. 466 e seg.) "sive ad doctiloqui Leonis aedes, quo bis sex tabulas docente jris, ultro Claudius Appius taceret, claro obscurior in decenviratu". Mais: que o Presbtero Salviano, o qual vivia so em avanada idade, em 496, na cidade de Marselha, fala das XII Tbuas, de modo a no se poder duvidar que estivessem en-to expostas no frum de Cartago. Compara-se SALVIANO, de Gubern. Dei, 8, 5: "intra Carthaginem vero apparere in plateis et compitis Dei servos sine contumelia atque exe-cratione vix licuit.

  • XLIV Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    Continuando no estudo das fontes, o ilustre Dr. Abelardo Lobo passa a tratar do Edito Perptuo e das Constituies Im-periais, antes de chegar a codificao justiniana. Nesta se estende ele, como era de prever, dedicando um captulo especial notcia do Corpus Jris Civilis, notcia bibliogrfica mui desenvolvida e curiosa em informaes, que em poucos autores se encontram to perfeita epacientemente coadunadas.

    O Edito Perptuo, assim chamado porque com ele se con-formavam os Pretores, a despeito da faculdade que lhes competia de reformar por interpretao prpria do Direito Vigente, o Edi-to, obra de Slvio Juliano, digo, no passava de consolidao dos editos preexistentes, tal foi a obra por excelncia do reinado de Adriano, obra que reunia a autoridade do Pretor, do Senado e do Imperador.

    O Edito Perptuo resumiu e sintetizou todas as matrias que haviam sido reguladas pelos editos dos Pretores e dos Edis Curuis.

    Percusecutione hoc quidem fuisse non putant, quia non et occisi sunt. "Sed in urbe illa non tam hominum fuerunt haec beneficia quam legum. "Interfici etiam indemnatum quemcumque hominem etiam XII tabularum decreta vetuerunt. In quo agnoscitur quod magna illic praerogativa dominicae religionis fuit, ubi ideo tantum servis Dei licuit evadere, quia pagano jure defensi sunt, ne christianorum manibus trucidarentur". Nesta passagem possvel, como presume DIRSKEN, assentar a seguinte narrao de um bispo marselhs em Balduno, Praef., Liv. II in leges Romuli et leges XII Tabula-rum (Basilia 1537): "udio ante annos octingentos scriptum abs quodam episcopo Marsiliensi librum fuisse, in quo, cum probare vult romanos a Grecis et Grecos a Judaeis suas leges repetisse, magnum XII Tabularum partem describit et recitat. Sed eum quoque librum hui habet supprit". Ainda menos precisa a narrativa de NICOLAU ANTNIO, Biblioteca hispan., vol. VI, 14, 350 (1, p. 518 da edio d 1788) "ante annum milesimum aut circiter dominus Petrus de Grafion coenobita erat in sancti Aemiliani, ut vocant, monasterio... Reliquisse hunc Petrum in eo monasterio nuntiatum nobis fuit, volunina duo Leges Gothorum et Regum inscripta, quorum prius LXIII, posterius auctor Legum XII Tabularum, quas omnes carmine latino comprehendit... Codex prae nimia vetaustate aliquot iam follis nom legitur.

    "Habemus id totum ex relationibus ad nos missis ab eodeum monasterio."

  • Curso de Direito Romano XLV

    Sua influncia foi grande na aplicao do Direito honorrio, o que quer dizer, da parte mais doutrinria e larga do Direito Romano.

    As Constituies Imperiais, j que falamos delas, ra-reiam no perodo anterior a Marco Aurlio; o Cdigo Justiniano conta mais de 1.700 desde o reinado daquele Imperador at Dio-cleciano, que instaurou no governo o poder absoluto dos impera-dores. S deste imperador existem, diz Van-Wetter, mil e duzentas constituies. Da em diante o Direito Romano obstrudo pelas leis dos imperadores, inclusive Justiniano com suas Constituies e Novelas.

    Sobre a codificao justiniania muito se tem escrito, e o nosso ilustre colega dedica-lhe pginas eruditas, abrindo espao neste importante trecho do seu trabalho ao estudo bibliogrfico do Corpus Jris Civilis.

    No nos estenderemos sobre este assunto, remetendo o lei-tor para a obra do Dr. Abelardo, neste ponto interessantssima. A ver o leitor como a codificao justiniania, dvida ao grande tra-balho Triboniano, dividiu a obra em duas partes, como j havia tentado Teodsio II: as Leges, que eram as constituies imperiais, e o Jus, constitudo pelas demais fontes, principalmente trabalhos dos jurisconsultos.

    E a diviso que alis se v no Corpus Jris, onde ocupam lugar distinto o Cdigo com as Novelas, e o Digesto ou Pandectas, que prima sobre a outra parte pelo valor cientfico e doutrinrio de seus textos, fonte fecunda do desenvolvimento do Direito durante todo o seu percurso da Idade Mdia at aos mais recentes produtos da cin-cia jurdica nos modernssimos Cdigos Civis das naes cultas.

    Aqui termina a primeira parte do trabalho do Dr. Abelar-do Lobo, para entrar na segunda, dedicada expanso do Direito Romano e s causas do seu desenvolvimento. E aqui que se revela todo o valor prtico da obra do ilustre professor.

  • XLVI Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    Em certo ponto da primeira parte, quando se ocupou da diviso da histria do Direito Romano em perodos, assinalou ele (vide obra cit., pg. 73) mais um perodo aos clssicos quatro, em que se costuma dividir, perodo que vai de Constantino at a morte de Justiniano, caracterizado, como sabido, pela influncia que pode-rosamente vinham exercendo sobre a mentalidade jurdica do tempo s idias empregadas pelos apstolos em nome e sob a inspirao do Salvador; era natural, dizemos, que o nosso ilustre colega desse a essa idia a expanso de que merecedora, mostrando como a Histria do Direito no decurso dos sculos e no mundo civilizado no mais que o desenrolar das teses mximas assentadas pelas doutrinas jurdica dos romanos sob a ao modificadora dos ensinamentos evanglicos de igualdade e fraternidade humana no seio daquele que o Pai comum de todas as criaturas e seu eterno regenerador.

    Com efeito, por mais que diversificassem as leis das diver-sas populaes brbaras que se estabeleceram no mundo romano, in-contestvel a influncia que sobre elas exerceu o Direito Romano, venerado como regra de valor supremo, de origem quase divina. E notvel o que se l nas crnicas que os chefes brbaros orgulhavam-se em adotar as maneiras romanas e aspiravam a um ttulo que os distinguisse de seus conterrneos, v. g. o de cidado romano ou de capito de alguma das legies.

    Os homens pertencentes a naes diversas, distinguiam-se por seus estatutos pessoais, isto , pela lei a que obedeciam, sendo certo que a lei romana subsistiu a par das leis brbaras (leges bar-baroruniy): assim entre os ostrogodos o Edictum Theodoricii, e o de Atalarico; entre os visigodos o Cdigo de Alarico (lex romana visi-gotorumj, e entre os borguinhes a lex romana burgundiorum, de modo que entre as populaes conquistadas havia as que obedeciam s leis brbaras e as que se regulavam pelas leis romanas.

  • Curso de Direito Romano XLVII

    Esta diversidade de direitos regendo povos da mesma nao subsistiu at aos tempos da poca moderna, e viu-se na Frana, que se dividia antes da Revoluo em provncias de di-reito escrito (Direito Romano) eprovncias de direito costumeiro (Coutumes).

    A preponderncia do Direito Romano na Pennsula Ibri-ca estendeu-se mesmo aps a conquista mulumana efuga dos chefes visigodos para as montanhas das Astrias.

    Apesar dos forais6 que prevaleciam em vrias provncias, as codificaes tentadas moldavam-se pelo tipo romano. E assim que tomaram este tipo o Cdigo de Eurico, o Brevirio de Alarico e o Fuero Juzgo,7 o qual realizou a unidade da legislao na Pennsu-la; o mesmo se pode dizer com relao s nossas Ordenaes, como fcil verificar do texto das mesmas, chegando a afirmar o Conse-lheiro Cndido de Oliveira que o direito costumeiro, que ento vi-gorava, no era em grande parte mais que uma frmula disfarada da lei cesrea arvorada em Direito comum.

    Portugal, com efeito, separado do reino de Leo em 1139, regeu-se por muito tempo pela legislao visigtica com as alteraes feitas na metrpole de que dependia, diz Cndido Mendes na In-troduo ao Cdigo Filipino. Essas alteraes eram o Fuero Real,

    6 De um retalho de jornal que guardo, extra o seguinte sobre os foros: "Mas que so foros?" Afonso o Sbio os definiu assim: as leis no podem ordenar coisa alguma que no tenha em si a fora e o poder, isto , trs coisas - o uso, o costume e o foro. Do tempo nasce o uso, do uso o costume, do costume o foro." No est bem observado?

    7 "Forus antiquus gothorum regum Hispaniae, olim liber judicum: hodie 'Fuero Juzgo nun-cupatos. " Auctore Alfonso Villadiego, Madrid 1600. a edio que conheo. Veja-se SACHEZ ROMAN, Derecho Civily Cdigos Espaholes, onde se l a crtica do Fuero Juzgo, tido em grande estimao por GUIZOT, Hist. de Ia Civil en Europe, lio 3a , onde lhe dedica um notvel trecho.

  • XLVIII Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    plantados pela lei das Sete Partidas, assim chamada em razo das sete partes em que est dividida*

    Esta lei, a mais clebre de tempo (1263), cujas disposies eram no fundo mais romanas que espanholas, diz um escritor mo-derno referido por Cndido Mendes, recebeu por isso a alcunha de "Leis Romanas traduzidas em espanhol".

    E o que, partindo de outro ponto de vista, reconhece o nosso insigne colega quando a tal respeito escreve:

    "Orientado pelo Digesto de Justiniano e pela Decretais de Gregrio IX, cuja diviso em sete partes adotou, Afonso X reali-zou a fuso do Direito Romano com o Direito Cannico aprovei-tando o vastssimo e prodigioso repositrio de jurisprudncia clssica dos romanos, e harmonizando-a com a indiscutvel autoridade das regras da legislao da Igreja, cuja observncia estava no prprio interesse da manuteno do trono".

    Aparte do escrito que recebemos para servir de guia a este Prefcio chega at a Lei das Sete Partidas. E natural que no desen-volvimento do Direito Romano na Pennsula, alcanassem as vistas do ilustre autor a codificao portuguesa em suas trs manifestaes, afonsina, manuelina efilipina. Assim ficaria o trabalho completo e fechado com chave de ouro.SA

    A pressa de terminar esta ligeira apreciao priva-nos de acompanhar a obra at o fim.

    8 Tenho a edio de Paris de 1861. Est dividida esta lei em sete partes, diz a glosa do Gregrio Lopes: "Habes excellentiam numeri septnarii", faz ele esta apologia do n. 7 e vai enumerando essas excelncias em nota ao Prlogo da Lei, onde declara: por quales razones este Libro es repartido em siete partes.

    8-A Vi, depois, que o trabalho do eminente romanista se desenvolve muito mais do que eu contava, porque, no s as Ordenaes como todo o direito antigo e moderno, da Eu-ropa, da Amrica, at do Japo e da China, e ainda mais o Direito Cannico, o Direito Germnico, o Direito Ibero-Americano e o prprio Direito Brasileiro, tambm foram estudados no III volume, destinado influncia universal do Direito Romano.

  • Curso de Direito Romano XLIX

    Antes disso porm, no deixamos de acentuar que em todo o decurso da Histria do Direito Romano at aos tempos modernos reinou sempre o combate entre o elemento tradicional manifestado pelo direito costumeiro de cada um dos povos abrangido pela mar montante do Imprio Romano, e o prprio Direito Romano, que quer dizer, a luta entre as liberdades regionais e a centralizao governativa que o modelo romano imprimiu na organizao pol-tica dos povos, favorecendo o despotismo dos monarcas, mais lidos nos Cdigo e Novelas que as Pandectas.9 Houve tempo at em que no se conhecia ao que parece outra forma de governo seno a de um Imprio romana, o que se v a ressurgir no Imprio de Carlos Magno e depois no sacro Imprio Germnico.

    A luta entre o elemento tradicional, isto , os usos e costu-mes nacionais, e a tendncia unitria e absorvente, vm de tempos remotos. Na Espanha explodiu em vrios movimentos sufocados pelo guante frreo do poder real, e ainda hoje bruxuleia nos resqucios dos fueros que simbolizam altivez, independncia da nao espa-nhola, mormente dos de Arago.

    Teria existido em Portugal o feudalismo que, de origem, alimentou essa desagregao e independncia entre os vrios ele-mentos da nao e os seus soberanos? E controvertido. Temos, sim, quem mostrasse a influncia funesta do Direito Romano em Portu-gal, como tivemos na Espanha. Joaqun Costa,10 o grande socilo-

    9 Sobre a influncia do Direito Romano na elaborao das nossas Ordenaes ver CN-DIDO MENDES, Dir. Civ. Ecl. Brasileiro, Rio 1866) Prlogo. Entre outras passagens: "A nova direo dada aos estudos de Dir. Romano por Cujcio no mesmo sculo (XVI), acelerando o movimento de propaganda das doutrinas polticas daquele Di-reito, doutrinas alis to em harmonia com a independncia pregada pelos protes-tantes, ecoou profundamente no corao dos reis e deu ganho de causa aos fatores do poder absoluto e do Direito Divino da realeza."

    10 JOAQUN COSTA, professor poltico e publicista espanhol, nascido em 1846, uma das mentalidades mais cultas da Espanha, especialmente no tocante a investigaes histricas, as quais aplicadas s cincias do Direito, de que foi um exmio cultor, se

  • L Abelardo Saraiva da Cunha Lobo

    go espanhol, encontra um mulo bem de sua estatura em Cndido Mendes deAlmeida,n o erudito senador do Imprio, o imortal con-tinuador das glrias do Maranho, sua terra natal}1

    Profundamente versado, mais talvez que o prprio A. Her-culano, na Histria da outrora herica terra dos Alburqueques, dos Pachecos e dos Nunlvares, Cndido Mendes, observador e crente, no se deixou deslumbrar pala elegantia jris, pelo aspecto formoso da construo cientifica romana: acompanha tristemente