Da Epistemologia Da Interpretação à Ontologia Da Compreensão

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OpresenteartigotemporobjetoafilosofiahermenêuticapropostanaobradeHans-­‐GeorgGadamer.Suaposiçãopartedospreconceitosgeradospelohomemacercadoobjetoaserinterpretado,eaíseintroduzemumcírculoquevaidotextoaointérpreteeregressanovamenteaotextoparaencontraremcadamovimentocircularumelementoqueenriqueceainterpretação,atéalcançarumafusãodehorizontes,naqualointérpreteassimilaoconteúdodotexto,fazendo-­‐opartedesimesmo,massemfazercomqueotextopercasuaprópriaautonomia;édizer,ohomeminterpretaotextoapartirdesuaprópriahistória,tempo,cultura,circunstância,apartirdeseuhorizonte,paratrazeratéeleoessencialdohorizontedotexto.Nessesentido,opresentetextobuscatambémaproximaratesegadamerianacomaspráticascotidianasdosjuristas,examinando,paraessefim,algunscasosjulgados.

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 111-142 Lenio Luiz Streck e Maiquel ngelo Dezordi Wermuth DOI: 10.12957/dep.2015.11159 | ISSN: 2179-8966

    Da Epistemologia da Interpretao Ontologia da Compreenso: Gadamer e a tradio como background para o engajamento no mundo (ou: uma crtica ao juiz solipsista tupiniquim) From the Epistemology of Interpretation to the Ontology of Comprehension: Gadamer

    and the Tradition as Background to the Engagement in the World (or: Criticism on the

    Solipsist Brazilian Judge)

    Lenio Luiz Streck

    Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ps-doutor pela Universidade de Lisboa. Professor titular do Programa de Ps-Graduao em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS, na rea de concentrao em Direito Pblico. Professor permanente da UNESA-RJ, de ROMA-TRE (Scuola Dottorale Tulio Scarelli), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices) e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Procurador de Justia do Estado do Rio Grande do Sul aposentado. Advogado. Email: [email protected].

    Maiquel ngelo Dezordi Wermuth

    Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Ps-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJU. Professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJU. Professor dos Cursos de Graduao em Direito da UNIJU e da UNISINOS. Email: [email protected].

    Artigo recebido em 9/05/2014 e aceito em 11/11/2014.

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    Resumo

    O presente artigo tem por objeto a filosofia hermenutica proposta na obra de

    Hans-Georg Gadamer. Sua posio parte dos preconceitos gerados pelo

    homem acerca do objeto a ser interpretado, e a se introduz em um crculo que

    vai do texto ao intrprete e regressa novamente ao texto para encontrar em

    cada movimento circular um elemento que enriquece a interpretao, at

    alcanar uma fuso de horizontes, na qual o intrprete assimila o contedo do

    texto, fazendo-o parte de si mesmo, mas sem fazer com que o texto perca sua

    prpria autonomia; dizer, o homem interpreta o texto a partir de sua prpria

    histria, tempo, cultura, circunstncia, a partir de seu horizonte, para trazer

    at ele o essencial do horizonte do texto. Nesse sentido, o presente texto

    busca tambm aproximar a tese gadameriana com as prticas cotidianas dos

    juristas, examinando, para esse fim, alguns casos julgados.

    Palavras-chave: Hermenutica. Interpretao. Crculo hermenutico.

    Interpretao jurdica.

    Abstract

    The present paper has as the object the hermeneutic philosophy proposed in

    the works of Hans-Georg Gadamer. His position has the prejudice generated by

    men about the object to be interpreted as basis, and then it is introduced in a

    circle which goes from the text to the interpret and back to the text to find one

    element that enriches the interpretation, in each circular movement, until it

    reaches a fusion of horizons, in which, the interpret assimilates the content of

    the text, making it part of himself, however, without causing the text to lose

    its own autonomy; it is the same to say that the man interprets the text from

    his own history, time, culture, circumstance, from his own horizon, to bring to

    himself the essence of the horizon of the text. In this sense, the present text

    aims at approaching the gadamerian thesis according to daily practice of the

    jurists, by examining some already judged cases.

    Keywords: Hermeneutics. Interpretation. Hermeneutic Circle. Juridical

    Interpretation.

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    1. A Verdade Contra O Mtodo: a importncia da tradio na hermenutica

    filosfica gadameriana

    1.1 Gadamer e o problema do mtodo: crticas hermenutica de

    Schleiermacher e Dilthey e a retomada do crculo hermenutico

    heideggeriano

    Desde Descartes, a Filosofia Moderna era orientada pela questo do

    mtodo, ou seja, pelo estabelecimento de regras para a direo do

    pensamento. O mtodo era considerado enquanto uma rota certeira para

    alcanar a certeza absoluta. Nesse contexto, a abolio da especificidade do

    sujeito e da generalidade da cultura do investigador se impunha: acreditava-se

    em uma suposta universalidade, comum a todos os sujeitos, que somente

    poderia ser encontrada na razo.

    Em virtude disso, o mtodo cientfico ento gestado considerava as

    questes relativas ao passado, tradio, como sinnimos de ignorncia.

    Focava-se, com otimismo, o futuro. O entendimento, aqui, pressupunha o

    afastamento da tradio. Ou seja, o racionalismo cientfico, em sua busca pelo

    mtodo, se distancia do mundo que o precede. Como observa Crtes (2006, p.

    282), sua assertividade repousa sobre um insulamento da conscincia que, ao

    encapsular a subjetividade num suposto reino de pureza e controle

    procedimental, tambm promoveu um divrcio da realidade.

    Nesse aspecto, Gadamer (1983) sustenta que o essencial nas cincias

    do esprito no a objetividade, mas sim a relao habitual com o objeto, por

    meio do ideal da participao (Teilhabe) nos enunciados bsicos da experincia

    humana. Isso, nas cincias do esprito, o verdadeiro critrio para aferio do

    contedo ou da ausncia de contedo de suas doutrinas. E o modelo do

    dilogo possui um significado estrutural para essa forma de participao, dado

    que o dilogo est caracterizado pelo fato de que nele ningum, por si s,

    contempla o que acontece nem afirma que domina, sozinho, o assunto. Pelo

    contrrio, cada pessoa toma parte conjuntamente na verdade que se obtm

    em comum. Quer dizer: Gadamervai questionar a autoridade do mtodo, ao

    mostrar que a verdade, ao invs de ser revelada pelo mtodo, por ele

    obscurecida. Na contramo dessa perspectiva, o filsofo vai voltar-se

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    justamente tradio que, para ele, tem uma justificativa que est alm do

    fundamento racional e, em grande parte, determina nossas instituies e

    atitudes.

    Em Gadamer, no possvel a ciso entre a tradio e a razo. Tudo

    aquilo que definido como racional, sempre definido dentro dos padres da

    tradio. Como escreve o autor,

    vivemos dentro de tradies, e essas no so um campo parcial de nossa experincia do mundo nem uma tradio cultural que consta apenas de textos e monumentos, transmitindo um sentido constitudo pela linguagem e historicamente documentado. Ao contrrio, o prprio mundo experimentado na comunicao que se nos oferece (traditur) constantemente como uma tarefa infinitamente aberta. No nunca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos. Toda vez que experienciamos algo, sempre que suplantamos a falta de familiaridade, sempre que se produzem iluminaes, conhecimento, assimilao, realiza-se o processo hermenutico de insero na palavra e na conscincia comum. A prpria linguagem formulada em monlogo, prpria da cincia moderna, s conquista a realidade social por essa via (GADAMER, 2012, p. 55).

    Isso significa dizer que a tradio , na perspectiva gadameriana, uma

    fora vital inserida na cultura. No possvel furtar-se tradio ao realizar

    uma investigao cientfica: estamos sempre inseridos nela. O modus operandi

    filosfico gadameriano perpassa, portanto, pela recuperao e pelo resgate de

    ideias reprimidas e esquecidas. E aqui um alerta mostra-se imprescindvel para

    a compreenso da postura do autor: Gadamer esclarece que sua hermenutica

    pouco diz a respeito de suas aplicaes e orientaes prticas. A sua

    preocupao real filosfica. Logo no prefcio segunda edio de Verdade e

    Mtodo o filosofo adverte: o que est em questo no o que fazemos, o

    que deveramos fazer, mas o que nos acontece alm do nosso querer e fazer.

    (GADAMER, 2012a,p. 14).

    No percurso desenvolvido em Verdade e Mtodo, Gadamer dialoga com

    outros autores que tambm se debruaram sobre o tema da hermenutica

    filosfica, como Schleiermacher e Dilthey. Claro que, para Gadamer (2012a),

    Dilthey mais avanado que Schleiermacher porque se distancia da

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    interpretao psicolgica, ou seja, seu foco est longe dos significados

    subjetivos e parte em direo a uma categoria mais ampla, a vida. Em Dilthey,

    o entendimento humano est inextricavelmente ligado ao passado. E a

    categoria da vida utilizada pelo autor justamente para mostrar que as

    interpretaes no presente esto sempre conectadas sua histria, ao seu

    passado.

    Nesse rumo, convm salientar que, na hermenutica

    filosficagadameriana, o todo da cultura humana deve ser compreendido

    como envolvido num acontecer da historicidade de um sentido que nunca

    recuperamos em sua plenitude. Diante disso, torna-se possvel asseverar que

    Gadamer acertou com esse seu projeto a mais coerente interpretao de

    como devemos compreender a condio humana na histria e na natureza.

    (STEIN, 2011, p. 23).

    justamente aqui o ponto no qual reside a ruptura: a fenomenologia

    hermenutica heideggerianae a anlise da historicidade do Dasein buscavam

    uma renovao geral da questo do ser, ou seja, estavam alm da busca por

    uma mera teoria das cincias do esprito ou uma superao das aporias do

    historicismo. Heidegger responsvel pelo redespertar da questo do ser, com

    o que ultrapassa toda a metafsica tradicional.

    Gadamer e seu mestre, Heidegger, fazem uma ruptura com o esquema

    sujeito-objeto tpico da filosofia da conscincia e seu cogito, dado que o

    compreender no mais uma mera homogeinizao entre o conhecedor e o

    conhecido sobre a qual se assentava o mtodo das cincias do esprito1. A

    partir de ento, passa-se a compreender que

    a adequao de todo conhecedor ao conhecido no se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que recebam seu sentido da

    1 Nesse sentido, Crtes (2006, p. 281) menciona que a hermenutica gadameriana rejeita a pretenso de verdade contida no mtodo cientfico porque entende que a conscincia subjetiva no o fiat inaugural da empresa cognoscente.Quer dizer, no existe um cogito absoluto ou uma razo transcendental que, instalados como princpios primeiros da inteligibilidade do mundo, ou declara penso, logo existo;ou estabelece a crtica aos limites da razo para, a priori da experincia, definir todas as condies de possibilidade do conhecer, do juzo esttico ou do agir moralmente orientado. Para Gadamer, essas atitudes tericas so insuficientes como fundamentos da inteligncia compreensiva, pois, na medida em que desconhecem a historicidade da conscincia e (pior ainda) ignoram o carter histrico das suas prprias incurses epistmicas, acabam promovendo uma fuga metafsica que imagina ser capaz de se despojar dos apelos da realidade e da tradio, desenraizando a conscincia do mundo.

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    especificidade do modo de ser que comum a ambos. E esta caracterstica consiste em que nem o conhecedor e nem o conhecido esto simplesmente dados onticamente. Eles se do historicamente, isto , possuem o modo de ser da historicidade. (GADAMER, 2012a, p. 350).

    Em linhas gerais, portanto, pode-se dizer que a contribuio de

    Heidegger foi demonstrar que as condies que tornam o pensamento possvel

    no so autogerados, mas so estabelecidos bem antes de nos engajarmos em

    atos de introspeco, ou seja, que ns j estamos envolvidos no mundo bem

    antes de nos separarmos do mundo teoricamente para procurar entend-lo

    filosoficamente. Quer dizer: em nuestra relacin com la tradicin

    pertenecemos a una comunidad interpretativa que est continuamente en un

    proceso de formacin y de cambio. (ROLDN, 2012, p. 26).No h, portanto,

    terminantemente, qualquer possibilidade de ciso entre sujeito e objeto.

    Logo, o pertencimento do intrprete ao seu objeto de investigao

    agora obtm um sentido que pode ser demonstrado concretamente por meio

    da hermenutica:

    O Dasein, que se projeta para seu poder-ser, j sempre sido. Este o sentido do existencial do estar-lanado. O fato de que todo comportar-se livremente com relao ao seu ser no possa remontar para alm da facticidade desse ser constitui o ncleo central da hermenutica da facticidade e sua oposio investigao transcendental constitutiva da fenomenologia de Husserl. (GADAMER, 2012a, p. 353.)

    Gadamer passa ento a analisar a significncia do crculo hermenutico

    para Heidegger, como um preldio sua prpria tomada de posio. Com

    efeito, sempre existe uma verso parcial do crculo hermenutico em operao

    nos entendimentos cotidianos do mundo, e isso no passa despercebido pelo

    filsofo, que d importncia a essa especie de dialctica continua

    enelmovimiento de comprensin que va de la parte al todo, y viceversa.

    (ROLDN, 2012, p. 25).

    O autor adverte para o fato de que quem busca compreender sempre

    est sujeito a erros de opinies prvias que no se confirmam nas prprias

    coisas. Logo, elaborar projetos corretos e adequados s coisas, que como

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    projetos so antecipaes que s podem ser confirmadas nas coisas, , ento,

    a tarefa constante da compreenso, que s vai alcanar sua verdadeira

    possibilidade quando as opinies prvias com as quais se inicia a tarefa no

    forem arbitrrias. Em virtude disso, faz sentido que o intrprete no se dirija

    diretamente aos textos a partir da opinio prvia que lhe prpria, mas

    examine expressamente essas opinies quanto sua legitimao, ou seja,

    quanto sua origem e validez. (GADAMER, 2012a, p. 356).

    Portanto, imprescindvel compreender que diante de qualquer texto,

    no tarefa do intrprete a insero direta e acrtica de seus prprios hbitos

    extrados da linguagem. Pelo contrrio, deve-se reconhecer que a tarefa do

    intrprete alcanar a compreenso do texto somente a partir do hbito da

    linguagem da poca e de seu autor. Alerta Gadamer (2012a, p. 357) que

    de modo algum podemos pressupor como dado geral que o que nos dito em um texto se encaixe sem quebras nas prprias opinies e expectativas. Ao contrrio, o que me dito por algum, numa conversa, por carta, num livro ou de outro modo, encontra-se por princpio sob a pressuposio de que o que exposto a sua opinio e no a minha, da qual eu devo tomar conhecimento sem precisar partilh-la. Todavia, essa pressuposio no representa uma condio que facilite a compreenso; antes, representa uma nova dificuldade, na medida em que as opinies prvias que determinam minha compreenso podem continuar completamente desapercebidas.

    Nesse rumo, salienta Gadamer (2012a, p. 358) que a tarefa da

    hermenutica se converte por si mesma em um questionamento pautado na

    coisa em questo. Em outras palavras, afirma o autor que compreender

    estar em relao, a um s tempo, com a coisa mesma que se manifesta atravs

    da tradio e com uma tradio de onde a coisa possa me falar. (GADAMER,

    2006, p. 67).

    1.2 A reabilitao da noo de preconceito: a tradio como background para

    o engajamento no mundo

    Nesse ponto, importante observar como o autor reabilita a noo

    positiva de preconceito. Gadamer destaca que o Iluminismo enfatizou apenas

    a acepo negativa de preconceito, negligenciando a positiva. O preconceito

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    fundamental do Iluminismo, para o filsofo, justamente o preconceito contra

    o prprio preconceito, que acaba por despotenciar a tradio. Segundo ele,

    somente a partir do carter essencialmente preconceituoso de toda

    compreenso que permite que o problema hermenutico seja levado sua

    real agudeza. (GADAMER, 2012a).

    Portanto, na hermenutica gadameriana, todos os julgamentos esto

    inextricavelmente condicionados pelos pr-julgamentos, ou seja, os

    julgamentos so possveis, no por uma razo neutra e abstrata, mas sim por

    um conjunto de envolvimentos pr-refletidos com o mundo que est por trs

    dos julgamentos e, de fato, o tornam possvel.Uma condio para fazer

    julgamentos refletidos e estimativos sobre o mundo justamente a posse de

    preconceitos. Sem pr-julgamentos, portanto, no possvel falar em

    julgamentos.

    Do exposto, pode-se asseverar que os preconceitos esto presentes em

    todos os entendimentos, uma vez que estamos irremediavelmente incrustados

    na linguagem e na cultura. Em razo disso, Gadamer (2012a, p. 368) vai

    sustentar que os preconceitos de um indivduo, muito mais que seus juzos,

    constituem a realidade histrica de seu ser. Logo, o autor entende que se

    quisermos fazer justia ao modo de ser finito e histrico do homem,

    necessrio levar a cabo uma reabilitao radical do conceito de preconceito e

    reconhecer que existem preconceitos legtimos.

    A questo que se coloca, nesse ponto, sobre como saber se um dado

    preconceito legtimo. Para Gadamer (2012a) isso s possvel por meio da

    reabilitao da autoridade e da tradio.

    Em Gadamer (2012a, p. 371), a autoridade no tem nada a ver com

    obedincia: ela est relacionada a conhecimento e reconhecimento. Assim, a

    autoridade genuna do professor, ou qualquer outra pessoa em posse da

    autoridade real, no acontece por mrito do investimento do poder social,

    mas sim da habilidade de levantar questes e fazer com que certos tpicos

    paream cruciais, importantes e merecedores de considerao. Logo, se

    algum tem pretenses autoridade, esta no deve ser-lhe outorgada; antes,

    autoridade e deve ser alcanada. Isso porque ela repousa sobre o

    reconhecimento e, portanto, sobre uma ao da prpria razo que, tornando-

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    se consciente de seus prprios limites, atribui ao outro uma viso mais

    acertada. Quer dizer: autoridade no tem nada a ver com obedincia, mas

    com conhecimento.

    Gadamer (2012a, p. 372), ento, constri o seu conceito de tradio:

    aquilo que tem validade sem precisar de fundamentao. Disso se extrai que a

    tradio no simplesmente um processo que a experincia nos ensina saber

    e governar; a linguagem! Portanto, ignorar a tradio como um oposto da

    razo ignorar que a razo pode, em si, ser uma caracterstica justamente da

    tradio. Aquilo que definimos como racional sempre definido dentro dos

    padres da tradio. Em outras palavras, a razo justamente aquilo que

    transmitido na tradio. Segue-se disso que o que satisfaz nossa conscincia

    histrica sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado. O

    passado s aparece na diversidade dessas vozes. isso que constitui a essncia

    da tradio da qual participamos e queremos participar.

    Nessa perspectiva, o tempo deixa de ser considerado enquanto um

    abismo a ser transposto porque separa e distancia e passa a ser o

    fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas razes.

    Reconhece-se, ento, a distncia de tempo como uma possibilidade positiva e

    produtiva do compreender. Antes de um abismo devorador, portanto, o

    tempo est preenchido pela continuidade da herana histrica e da tradio,

    em cuja luz nos mostrada toda a tradio. (GADAMER, 2012a, p. 393).

    Em Gadamer, portanto, o compreender no meramente um

    comportamento reprodutivo, mas tambm e sempre produtivo: quando se

    logra compreender, compreende-se de um modo diferente. (GADAMER,

    2012a, p. 392).Ou seja, a compreenso no apenas um mtodo por meio

    do qual a conscincia histrica se aproxima do objeto eleito para alcanar seu

    conhecimento objetivo. A compreenso, antes, um processo que tem como

    pressuposio estar dentro de um acontecer da tradio: a compreenso se

    mostra como um acontecer, razo pela qual, do ponto de vista filosfico a

    tarefa da hermenutica consiste em perguntar pelo tipo de compreenso e de

    cincia esta que movida em si mesma pela prpria mudana histrica.

    (GADAMER, 2012a, p. 408). Aqui convm salientar que o ttulo originrio da

    obra mestra de Gadamer, segundo Stein (2002), era Compreender e

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    Acontecer, o que justificaria melhor o subttulo da obra, Traos

    fundamentais de uma hermenutica filosfica.

    Com efeito, na perspectiva gadameriana, a tradio considerada

    enquanto parte de um background para o nosso engajamento no mundo. Ao

    lado dos preconceitos, a tradio nunca pode se transformar em um objeto de

    investigao: estamos inseridos na tradio e jamais seremos capazes de

    encontrar um ponto fora dela para testar sua validade.

    Mas ateno: no se deve confundir pr-juzos (ou preconceitos) no

    sentido de que fala Gadamer com preconceitos no sentido vulgar. Pre-juzos

    esto ligados Vorverstndnis (pr-compreenso). Opinies, subjetividades,

    ideologias so preconceitos em sentido vulgar. Gadamer no trata desses

    preconceitos.2

    Outro ponto central no desenvolvimento da teoria gadameriana a

    WirkungsgeschichteBewusstsein (conscincia da histria efeitual):

    A conscincia da histria efeitual em primeiro lugar conscincia da situao hermenutica. No entanto, o tornar-se consciente de uma situao uma tarefa que em cada caso se reveste de uma dificuldade prpria. O conceito de situao se caracteriza pelo fato de no nos encontrarmos diante dela e, portanto, no dispormos de um saber objetivo sobre ela. Ns estamos nela, j nos

    2No so raros os autores que cometem o equvoco de tachar a hermenutica filosfica, nos termos propostos nesse texto, de relativista. Um desses crticos Daniel Sarmento (2009), para quem a hermenutica irracionalista por apostar na pr-compreenso como limite para o decisionismo judicial, uma vez que, segundo ele, em uma sociedade plural e fragmentada como a brasileira, por exemplo coexistem mltiplas vises de mundo disputando um mesmo espao. Prope ento o autor no o abandono da pr-compreenso na hermenutica constitucional, mas a sua filtragem por meio de uma racionalidade crtica que tome como premissa a ideia de todos os indivduos merecem ser tratados como livres e iguais. Sarmento olvida-se do fato de que a hermenutica filosfica no comporta regionalismos (como, por exemplo, hermenutica constitucional) justamente por ser filosofia, razo pela qual no admite modos diferentes de interpretar (seja o direito civil, o direito penal, constitucional, etc), sendo justamente neste ponto que reside o carter de universalizao da hermenutica e no de regionalizao. Ademais, a crtica de Sarmento parece no compreender um dos pontos nodais da proposta da hermenutica filosfica: a existncia de dois vetores de racionalidade, um apofntico e outro hermenutico, que radica na distino entre compreender e entender, sendo o primeiro de nvel hermenutico-estruturante e o segundo de nvel lgico-argumentativo. Por fim, Sarmento no compreende que o rechao do mtodo pela hermenutica filosfica no traduz ausncia de racionalidade. Pelo contrrio, como evidencia Streck (2012, p. 487-488), exatamente porque o mtodo (no sentido objetivista da palavra) morreu que, agora, exige-se maior cuidado no controle de interpretao [...]. Frise-se: o mtodo morreu porque morreu a subjetividade que sustentava a filosofia da conscincia (locusdo sujeito solipsista Selbstschtiger). Ora, o mtodo soobra diante da superao do esquema sujeito-objeto. Mtodo no sinnimo de racionalidade. Longe disso! E nem necessrio lembrar que a obra Verdade e mtodo pode (ou deve) ser lida como verdade contra o mtodo, o que significa admitir a possibilidade de verdadesconteudsticas (no apoddicas, claro).

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    encontramos sempre numa situao cuja elucidao tarefa nossa. Essa elucidao jamais poder ser cumprida por completo. E isso vale tambm para a situao hermenutica, isto , para a situao em que nos encontramos frente tradio que queremos compreender. Tambm a elucidao dessa situao, isto , a reflexo da histria efeitual, no pode ser realizada plenamente. Essa impossibilidade porm no defeito da reflexo, mas faz parte da prpria essncia do ser histrico que somos. Ser histrico quer dizer no se esgotar nunca no saber-se. (GADAMER, 2012a, p. 399).

    Desse modo, o compreender, em Gadamer (2006, p. 71), significa

    operar uma mediao entre o presente e o passado, desenvolver em si

    mesmo toda a srie contnua de perspectivas na qual o passado se apresenta e

    se dirige a ns. Em sntese, ento, pode-se asseverar que a distncia temporal

    um importante elemento hermenutico para uma melhor e diferente

    compreenso das coisas, que resulta justamente do contato do texto com

    novos horizontes histricos que so posteriores ao de sua produo.

    O ponto de inflexo, portanto, no terico-abstrato, mas prtico-

    concreto, ligado realidade de onde se busca a inspirao e para onde

    convergem as possibilidades abertas pelo ingresso da razo prtica, onde est

    em jogo no o exato, mas o contingente, o mutvel e o varivel, prprio do

    acontecer humano na sociedade. A isso Gadamer (2012a) vai denominar

    fuso de horizontes, termo chave na sua lxica3.

    Segundo o autor (2012a, p. 399-400), horizonte o mbito de viso que

    abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado

    ponto, de modo que ter horizontes significa no estar limitado ao que h de

    mais prximo, mas poder ver para alm disso. A pessoa que possui

    horizontes, portanto, sabe valorizar corretamente o significado de todas as

    coisas que pertencem ao horizonte, no que concerne a proximidade e

    distncia, grandeza e pequenez. Disso resulta que a elaborao da situao

    hermenutica significa ento a obteno do horizonte de questionamento

    correto para as questes que se colocam frente da tradio.

    3 Como assevera Roldn (2012, p. 25), lahermenutica no es un mtodo, como lo es el recurso de laciencia como tal. Se trata de labsqueda de verdadenel que elpasado y el presente se encuentranen continua mediacin. Dicho de otro modo, y en figura creada por elmismoGadamer: consiste enlafusindel horizonte del texto y el horizonte dellector.

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    importante ressaltar que essa viso global oferecida ao falante pela

    linguagem. A capacidade de usar a linguagem, decorrente do processo de

    aculturao, faz com que a pessoa adquira ao mesmo tempo um horizonte,

    ou seja, uma viso panormica a partir de uma determinada perspectiva de

    anlise do universo. O conceito de horizonte, ento, serve para expressar a

    amplitude superior da viso que uma pessoa que est tentando entender algo

    precisa ter.

    Nessa linha de raciocnio, assume relevncia o fato de que o horizonte

    nunca fixo, mas mutvel com o passar do tempo. Essa mutao no

    tributria do peso da experincia acumulada, mas de um processo paulatino

    de expanso.

    Em razo disso, o entendimento sempre uma fuso de horizontes,

    ou seja, um horizonte pode sempre ser colocado em contato com outro, sem

    obliter-lo, mas fundindo-se com ele. Nessa lgica, o entendimento no o

    ato de um sujeito ativo que projeta um significado sobre um objeto inerte,

    morto. Pelo contrrio, presente e passado tem horizontes que podem ser

    juntados produtivamente, ou seja, a viso global do passado faz uma

    declarao, por meio do texto, no presente. Desse modo, o evento do

    entendimento representa uma negao do presente e do passado.

    Portanto, com o termo fuso de horizontes, Gadamer pretende

    demonstrar que o ponto no o obscurecimento do horizonte do passado,

    mas mostrar como esse horizonte foi adotado e pode ser expandido no

    presente. Isso, na sua tica, uma questo de no expor as fraquezas do

    passado a fim de justificar a necessidade de que sejam substitudas pelo

    presente, mas trazer tona o sentido segundo o qual o presente nada mais

    seno o passado em um novo formato (GADAMER, 2012a).

    Feitas essas consideraes acerca do resgate da tradio como condio

    de possibilidade para que a fuso de horizontes e, consequentemente, o

    entendimento ocorra, torna-se necessrio, para atingir os objetivos do

    presente trabalho, investigar como Gadamer trabalha com o problema

    hermenutico da aplicao. Isso porque, como salientado no introito, o

    objetivo da presente investigao justamente questionar o solipsismo

    jurdico a partir da hermenutica filosfica gadameriana. Logo, a

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    apliccatioassume curial relevncia para o enfrentamento da questo, razo

    pela qual o tema com o qual se ocupa o captulo que segue.

    2. GADAMER E O PROBLEMA HERMENUTICO DA APPLICATIO: um aporte

    para a crtica ao solipsismo judicial tupiniquim

    2.1 A applicatio gadameriana: interpretar compreender; compreender

    aplicar

    Na velha tradio hermenutica, o problema hermenutico da aplicao

    era dividido em trs etapas. Trata-se da compreenso (subtilitasintelligendi),

    da interpretao (subtilitasexplicandi) e da aplicao (subtilitasapplicandi).

    Nessa tradio, esses trs momentos que deviam perfazer o modo de

    realizao da compreenso.(GADAMER, 2012a, p. 406). Ou seja, partia-se do

    pressuposto de que em primeiro lugar preciso conhecer, para depois

    interpretar e somente ento estar em condies de aplicar.

    O romantismo j havia reconhecido a unidade interna entre a

    interpretao e a compreenso, ou seja, de que a interpretao no um ato

    posterior e ocasionalmente complementar compreenso, dado que

    compreender sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretao a

    forma explcita da compreenso. (GADAMER, 2012a, p. 406). No entanto, essa

    fuso de compreenso e interpretao acabou por expulsar totalmente do

    contexto da hermenutica a questo da aplicao.

    Aqui se apresenta, portanto, a inovao gadameriana: reinserir a

    questo da aplicao no problema hermenutico, dada a compreenso de que

    sempre ocorre algo como uma aplicao do texto a ser compreendido

    situao atual do intrprete. Isso representou um passo alm da

    hermenutica romntica, considerando como um processo unitrio no

    somente a compreenso e interpretao mas tambm a aplicao. E isso no

    visto como um mero retrocesso hermenutica tradicional que distinguia as

    trs subtilitataee sim como um movimento de guinada rumo constatao de

    que a aplicao um momento to essencial e integrante do processo

    hermenutico como a compreenso e a interpretao. (GADAMER, 2012a, p.

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    406-407). Segundo Streck (2012, p. 285) isso significa que no interpretamos

    para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. Desse modo,

    interpretar explicitar argumentativamente o (j sempre) compreendido.

    Isso significa que, em Gadamer (2012a, p. 408), a compreenso no

    um mtodo por meio do qual a conscincia histrica poderia se aproximar do

    objeto eleito para alcanar seu conhecimento. Pelo contrrio, um processo

    que tem como pressuposio estar dentro de um acontecer da tradio. Por

    isso o engate realizado pelo autor entre o significado da tradio na

    conscincia histrica e a anlise heideggeriana da hermenutica da facticidade.

    O objetivo era demonstrar, aqui, que a prpria compreenso se mostrou

    como um acontecer, e do ponto de vista filosfico a tarefa da hermenutica

    consiste em perguntar pelo tipo de compreenso e de cincia esta que

    movida em si mesma pela prpria mudana histrica.

    Aqui que se verifica o ponto nodal, consistente na passagem de uma

    epistemologia da interpretao para uma ontologia da compreenso, como

    bem observado por Streck (2012, p. 283-284) quando refere que

    compreender no produto de um procedimento (mtodo) e no um modo

    de conhecer. Isso significa romper com as diversas concepes que se

    formaram sombra da hermenutica tradicional, de cunho objetivista-

    reprodutivo, cuja preocupao de carter epistemolgico-metodolgico-

    procedimental, cindindo conhecimento e ao, buscando garantir uma

    objetividade dos resultados da interpretao.4

    Na esteira de Streck (2012, p. 284), a inexistncia de um mtodo

    fundamental metamtodo ou metacritrio do processo hermenutico

    faz com que toda opo metodolgica apresente-se como arbitrria, o que

    viabiliza interpretaes discricionrias (ad hoc). De encontro a esta

    perspectiva, a hermenutica filosfica gadameriana (e, por bvio, a

    heideggeriana) servem para elucidar o fato de que compreender um

    existencial, ou seja: no um mtodo. No pode ser um mtodo e no pode

    4 De acordo com Streck (2012, p. 294), interpretar compreender. E compreender aplicar. A hermenutica no mais metodolgica. No mais interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. A hermenutica no mais reprodutiva (Auslegung); , agora, produtiva (Sinngebung). A relao sujeito-objeto d lugar ao crculo hermenutico.

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    ser dividido em partes. Compreender no um modo de conhecer, mas um

    modo de ser. (STRECK, 2012, p. 291)5.

    A partir do giro hermenutico gadameriano, portanto, a hermenutica

    jurdica no mais pode ser compreendida como um mero conjunto de mtodos

    ou critrios que objetivam o estabelecimento da verdade, das certezas. Nesse

    rumo, convm salientar que no sendo a hermenutica mtodo, e sim,

    filosofia, o processo interpretativo no depender da linguagem entendida

    como terceira coisa que se coloca entre um sujeito e um objeto. A linguagem,

    nessa perspectiva, perde o carter de ferramenta e passa a ser concebida

    como condio de possibilidade e constituidora do mundo, como

    experincia do mundo.(STRECK, 2009, p. 222).

    A linguagem, ento, no mero instrumento, j que o entendimento, na

    perspectiva gadameriana, no configura um mero fazer, ou seja, uma atividade

    que persegue objetivos como, por exemplo, a produo de signos por meio

    dos quais uma pessoa comunica sua vontade s outras. O entendimento

    prescinde de ferramentas justamente porque um processo da vida, onde se

    representa uma comunidade de vida. (GADAMER, 2012a, p. 575).

    Do at aqui exposto, Stein (1996, p. 74) extrai trs teses que considera

    fundamentais para a compreenso datomada de posturagadameriana. A

    primeira tese reza que o objeto hermenutico determinado

    linguisticamente, ou ainda, o objeto hermenutico constitudo pela

    lingualidade; a segunda, defende que o processo hermenutico, o processo

    de compreenso e interpretao tambm determinado pela linguagem; a

    terceira,por fim, sintetiza que a linguagem forma o horizonte de uma

    ontologia hermenutica.Logo, na hermenutica filosfica de Gadamer no

    h espao para a dicotmica relao epistemolgica sujeito-objeto, na qual o

    sujeito se contrape a um objeto entendido como simples presena. Isso

    porque a linguagem totalidade, no interior da qual o homem, o Dasein, se

    localiza e age. (STRECK, 2009, p. 210).

    5 Na mesma linha, Streck (2009, p. 201) refere que porque estamos no mundo h uma compreenso que se antecipa a qualquer tipo de explicao. Temos uma estrutura do nosso modo de ser que a interpretao. Por isto, sempre interpretamos. O ser humano compreender. Ele s se faz pela compreenso. Ele s se d pela compreenso. Compreender um existencial, que uma categoria pela qual o homem se constitui.

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    A linguagem, aqui, passa a ser compreendida como totalidade, como

    abertura para o mundo, e, mais do que isso,

    constituinte e constituidora do saber, e, portanto, do nosso modo-de-ser-no-mundo, o que implica as condies de possibilidades que temos para compreender e agir. Isto porque pela linguagem e somente por ela que podemos ter mundo e chegar a esse mundo. No h coisa alguma onde falta a palavra. Somente quando se encontra a palavra para a coisa que a coisa uma coisa. (STRECK, 2009, p. 202).6

    No caso especfico do texto jurdico, portanto, o conhecimento do

    sentido do texto e a sua aplicao a uma determinada situao concreta

    especfica no representam dois momentos distintos, mas um processo

    unitrio. Segundo Gadamer (2012a, p. 429), o jurista sempre tem em mente a

    lei em si mesma, mas o seu contedo normativo deve ser determinado em

    relao ao caso em que deve ser aplicado. Logo, para determinar com

    exatido esse contedo no se pode prescindir de um conhecimento histrico

    do sentido originrio e somente em virtude disso que o intrprete jurdico

    leva em conta o valor posicional histrico atribudo a uma lei em virtude do ato

    do legislador. Ocorre, porm, que o intrprete no pode prender-se ao que

    informam os protocolos parlamentares sobre a inteno dos que elaboraram a

    lei: imprescindvel que ele admita que as circunstncias foram mudando,

    precisando assim determinar de novo a funo normativa da lei.

    Isso significa que, em Gadamer (2012a, p. 432-433), a tarefa da

    interpretao sempre consistir na concretizao da lei, ou seja, em sua

    aplicao em cada caso concreto. O juiz, aqui, responsvel pela

    complementao produtiva do direito que se d na aplicao. No entanto, o

    juiz tambm se encontra sujeito lei como qualquer outro membro da

    comunidade jurdica. Daqui resulta que a ideia de uma ordem judicial implica

    que a sentena do juiz no surja de arbitrariedades imprevisveis, mas de uma

    ponderao justa do conjunto. Nesse passo, somente a pessoa que tenha se 6 No mesmo sentido: a centralidade da linguagem, isto , sua importncia de ser condio de possibilidade, reside justamente no fato de que o mundo somente ser mundo, como mundo, se o nomearmos, dizer, se lhe dermos sentido como mundo. No h mundo em si. O mundo e as coisas somente sero (mundo, coisas) se forem interpretados (como tais). Apagar (um)a linguagem, ou seja, esquecer as condies de sua surgncia, de sua nome-ao, no faz as coisas (como tais) desaparecerem. (STRECK, 2009, p. 203-204).

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    aprofundado na plena concreo da situao que estar em condies de

    realizar essa ponderao de um modo justo. Para o autor, exatamente isso

    que faz com que exista segurana jurdica em um estado de direito, dado que,

    assim, podemos ter uma ideia daquilo com que estamos s voltas. Diante

    disso,

    a princpio, qualquer advogado ou conselheiro est capacitado para aconselhar corretamente, ou seja, para predizer corretamente a deciso do juiz com base nas leis vigente. Claro que esta tarefa da concreo no se resume a um mero conhecimento dos artigos dos cdigos. Precisamos conhecer tambm a judicatura e todos os momentos que a determinam se quisermos julgar juridicamente um caso determinado. No obstante, a nica pertena lei que se exige aqui que a ordem jurdica seja reconhecida como vlida para todos, sem exceo. Por isso, a princpio, sempre possvel conceber como tal a ordem jurdica vigente, o que significa reelaborar dogmaticamente qualquer complementao jurdica feita lei. Entre a hermenutica jurdica e a dogmtica existe, pois, uma relao essencial, na qual a hermenutica detm a primazia. A ideia de uma dogmtica jurdica perfeita, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentena como simples ato de subsuno, no tem sustentao (GADAMER, 2012a, p. 433) [grifou-se].

    Feitas essas consideraes, abordar-se-, na sequncia, o papel crtico

    que a teoria gadameriana assume quando cotejada com a realidade das

    prticas jurdicas brasileiras, ainda eivadas de solipsismo, tanto no que se

    refere quimera da subsuno, quanto no que diz respeito

    discricionariedade/arbitrariedade judicial tupiniquim.

    2.2 Com Gadamer, contra o solipsismo jurdico tupiniquim

    Como se procurou demonstrar no tpico precedente, a applicatio

    hermenutica gadameriana trata justamente da impossibilidade da subsuno

    do particular no geral, uma vez que, para o autor, como se evidencia do

    excerto acima, a existncia de uma dogmtica jurdica perfeita que viabilizaria

    a resoluo de todos os casos por meio da mera subsuno no passa de uma

    quimera. Alm disso, a distncia entre a generalidade da lei e a situao

    jurdica concreta que projeta cada caso concreto insupervel, ou seja, as

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    circunstncias mudaram desde a promulgao da lei, de modo que isso deve

    ser levado em considerao pelo intrprete quando da sua aplicao ao caso

    concreto.

    Na prtica, no entanto, isso no (ainda) evidncia no cotidiano jurdico

    brasileiro. Como ressalta Streck (2012, p. 278-279), no pas, mesmo que os

    juristas das mais diferentes filiaes tericas afirmem peremptoriamente que

    a interpretao deve ocorrer sempre em cada caso, a realidade das prticas

    jurdicas demonstra justamente o oposto. Com efeito, impera um certo

    ceticismo hermenutico no qual, alm da discricionariedade que ser

    abordada na sequncia h uma completa ausncia de fundamentao das

    decises, em um quadro no qual o caso concreto passou a servir de libi

    para qualquer deciso, proferida segundo a subjetividade (vontade) do juiz ou

    tribunal.

    H, evidentemente, no pas um processo de construo, pelos juristas,

    de pautas gerais, assim como verbetes doutrinrios e jurisprudenciais que

    objetivam a resoluo de casos futuros de modo que se deixe de considerar

    suas singularidades/especificidades e as smulas vinculantes se afiguram,

    aqui, talvez como o melhor exemplo disso. Esses enunciados pretendem

    abarcar, de antemo, todas as possveis hipteses de aplicao, olvidando-se

    do fato de que absolutamente impossvel definir aplicaes da lei em

    abstrato, porque isso seria retornar ao mito do dado (metafsica clssica).

    (STRECK, 2013, p. 68).

    Outro bom exemplo da estandartizao do direito brasileiro na seara

    jurisprudencial pode ser buscado no tratamento dispensado pelos Tribunais

    ptrios questo da insignificncia nos crimes contra o patrimnio. No caso

    do Supremo Tribunal Federal, um acrdo paradigmtico no que se refere

    formao da jurisprudncia da Corte acerca do tema de relatoria do Ministro

    Celso de Mello (Habeas Corpus n 84.412, DJ. 19.11.2004): na discusso acerca

    de furto no valor de R$25,00, o Ministro estabeleceu critrios norteadores

    para o reconhecimento da bagatela, como a mnima ofensividade da

    conduta do agente, a ausncia de periculosidade social da ao, o baixo grau

    de reprobabilidade do comportamento e a inexpressividade da leso jurdica

    provocada.

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    Ocorre que com o advento da Lei 11.033/04, que alterou o artigo 20 da

    Lei n 10.522/2002, passou-se a discutir a possibilidade de aplicao do que se

    convencionou chamar de princpio da insignificncia no mbito dos crimes

    fiscais, bem como de alguns crimes contra a administrao pblica,

    considerando-se que a norma fiscal determinou o arquivamento dos autos da

    execuo fiscal de dbitos inscritos na dvida ativa da Unio de valor

    consolidado igual ou inferior a R$10 mil. Diante disso, o STF passou a

    considerar que o desinteresse da Unio em executar tais dbitos fiscais

    demonstra a irrelevncia penal dos comportamentos fiscais, razo pela qual

    essa faixa de valor passou a ser adotada como parmetro para a aplicao da

    insignificncia nos crimes fiscais.

    Estudo empreendido sob a coordenao do Prof. Pierpaolo Cruz Bottini,

    da Universidade de So Paulo, analisou os julgados envolvendo o tema que

    chegaram ao Supremo Tribunal Federal, dentro do perodo compreendido

    entre os anos de 2005 a 2009, mapeando os critrios e os principais

    argumentos utilizados pela Corte para justificar a reconhecimento ou no da

    insignificncia. A referida pesquisa demonstrou que nos

    crimes patrimoniais, em 60% dos casos em que os bens estiveram na faixa

    entre 0 a 100 reais a insignificncia foi reconhecida. Quando, porm, a faixa

    desse valor aumenta (101 a 700 reais), essa proporo praticamente se

    inverte: o instituto da insignificncia para crimes patrimoniais no

    reconhecido a partir desse ltimo patamar nos casos estudados. J nos crimes

    fiscais, o estudo apontou que a insignificncia reconhecida na totalidade

    dos casos de valores na faixa de 3001 a 5000 reais [...] provavelmente em

    decorrncia da incidncia do art.20 da Lei de Execuo Fiscal. (BOTTINI, 2012).

    As ementas a seguir transcritas, oriundas de dois recentes julgados do

    Supremo Tribunal Federal, demonstram a diferena de tratamento do tema (o

    que revela tambm a tradicional seletividade que orienta a interveno

    punitiva no Brasil):

    Habeas Corpus. Descaminho. Tributos no pagos na importao de mercadorias. Habitualidade delitiva no caracterizada. Irrelevncia administrativa da conduta. Parmetro: art. 20 da Lei n 10.522/02. Incidncia do princpio da insignificncia. Atipicidade da conduta. Ordem

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    concedida. A eventual importao de mercadoria sem o pagamento de tributo em valor inferior ao definido no art. 20 da Lei n 10.522/02 consubstancia conduta atpica, dada a incidncia do princpio da insignificncia. O montante de tributos supostamente devido pelo paciente (R$ 1.645,26) inferior ao mnimo legalmente estabelecido para a execuo fiscal, no constando da denncia a referncia a outros dbitos congneres em nome do paciente. Ausncia, na hiptese, de justa causa para a ao penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante no pode ter relevncia criminal. Princpios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da interveno mnima que regem o Direito Penal. Inexistncia de leso ao bem jurdico penalmente tutelado. Precedentes. Habitualidade delitiva no caracterizada nos autos. Ordem concedida para o trancamento da ao penal de origem. (HC 96852 / PR PARAN, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento: 01/02/2011, rgo Julgador: Segunda Turma).

    Penal. Habeas corpus. Furto (CP, art. 155, caput). Bem avaliado em R$ 150,00 (celular). Princpio da insignificncia. Inaplicabilidade, no obstante o nfimo valor da res furtiva: Ru reincidente e com extensa ficha criminal constando delitos contra o patrimnio. 1. O princpio da insignificncia incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condies objetivas: (a) mnima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ao, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da leso jurdica provocada; 2. A aplicao do princpio da insignificncia deve, contudo, ser precedida de criteriosa anlise de cada caso, a fim de evitar que sua adoo indiscriminada constitua verdadeiro incentivo prtica de pequenos delitos patrimoniais. 3. In casu, consta da sentena que ...o acusado possui antecedentes criminais, sendo bi-reincidente, valendo salientar ainda que o promotor, na data de oferecimento da denncia, requereu ao juiz a juntada da ficha de antecedentes criminais do paciente e informou que ele estava cumprindo pena em regime semiaberto e, durante o cumprimento, praticou novo delito, comportamento que evidencia indiferena em relao aos valores sociais e de justia. 4. Deveras, ostentando o paciente a condio de reincidente e possuindo extensa ficha criminal reveladora de crimes contra o patrimnio, no cabe a aplicao do princpio da insignificncia. Precedentes: HC 107067, rel. Min. Crmen Lcia, 1Turma, DJ de 26/5/2011; HC 96684/MS, Rel. Min. Crmen Lcia, 1Turma, DJ de 23/11/2010; e HC 108.056, 1 Turma, Rel. o Ministro Luiz Fux, j. em 14/02/2012. 5. Ordem denegada. (HC 111611 / MG - MINAS GERAIS,Relator(a): Min. LUIZ FUX, Julgamento: 08/05/2012, rgo Julgador: Primeira Turma).

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    V-se que no primeiro caso, o ru acusado de descaminho foi absolvido

    em razo da irrelevncia administrativa da conduta luz do art. 20 da Lei.

    10.522/02, o que deu azo aplicao do princpio da insignificncia, ainda

    que o valor dos tributos por ele sonegados alcanassem o patamar de R$

    1.645,26. No se questionou, no acrdo, os efeitos sociais deletrios

    decorrentes da sonegao tributria. J no segundo caso, o princpio no foi

    aplicado ao ru acusado do furto de um celular no valor de R$ 150,00, sob o

    argumento de que era reincidente na prtica de crimes contra o patrimnio.

    Ademais, estava cumprindo pena em regime semi-aberto quando da prtica do

    delito, o que demonstra, segundo o acrdo, a sua indiferena em relao aos

    valores sociais e de justia. Afinal, como refere Streck (2009a, p. 305), la ley

    es como la serpiente; solo pica a los descalzos.

    Do mesmo modo, algumas reformas legislativas parecem consubstanciar

    e legitimar a insero de pautas gerais no ordenamento jurdico

    brasileiro: por exemplo, o art. 285-A, inserido no Cdigo de Processo Civil por

    meio da Lei n 11.277/2006, prev que quando a matria controvertida for

    unicamente de direito e no juzo j houver sido proferida sentena de total

    improcedncia em outros casos idnticos, poder ser dispensada a citao e

    proferida sentena, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. A

    questo : existem, na prtica, os tais casos idnticos? Parece que a pauta

    geral estabelecida pelo artigo em questo serve justamente para esconder as

    singularidades de cada caso concreto em nome de uma suposta eficincia

    jurisdicional. (E isso sem questionar a aberrao jurdica estabelecida pelo

    pargrafo segundo do dispositivo em questo, que prev o estabelecimento do

    contraditrio apenas em sede recursal (!), em clara afronta ao Texto

    Constitucional).

    O estabelecimento dessas pautas gerais,

    sob pretexto do esclarecimento dos significados de clusulas abertas, princpios e/ou conceitos indeterminados (ou, ainda, textos vagos e ambguos), podem, sob o jugo do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia, servir a esse desiderato, no se diferenciando de qualquer raciocnio dedutivo. Corre-se o risco, por exemplo, de transformar princpios em regras. E pautas gerais e as smulas vinculantes so exatamente

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    isso podem vir a substituir a prpria obra do legislador. (STRECK, 2012, p. 283).

    As pautas gerais, conceitos-chave, smulas vinculantes, etc, apenas

    demonstram que h uma profunda vinculao dos juristas ao paradigma da

    filosofia da conscincia. Acredita-se, ainda, na possibilidade de uma

    interpretao que se d in abstrato, como se a lei fosse um mero objeto.

    Olvida-se, aqui, que, no caminho desbravado pela hermenutica filosfica, h,

    sempre, um processo de concreo, que a applicatio, momento do acontecer

    do sentido, que ocorre na diferena ontolgica. No h textos sem normas;

    no h normas sem fatos. impossvel, pois, falar em uma interpretao

    sem relao social, pois no caso concreto que se dar o sentido, que

    nico, irrepetvel. (STRECK, 2012, p. 288). Isso significa que, sem

    compreenso, no h interpretao, e tudo isso ocorre em crculo, ou seja, do

    todo para a parte e vice-versa, sem a mediao de categorias abstratas-

    universalizantes das quais se possam fazer dedues ou subsunes. Em

    outras palavras: no h ciso entre interpretar e aplicar, porque no h

    conceitos (ou atribuies de sentido) sem coisas. (STRECK, 2012, p. 478).

    Da mesma forma que a hermenutica gadameriana no tolera a mera

    subsuno, o processo hermenutico tambm no autoriza atribuies

    discricionrias de sentido pelo intrprete. Em sua obra mestra, Gadamer

    (2012a) nega a subjetividade humana como controladora do significa

    lingustico, em um movimento claramente anticartesiano. Nessa tica, nega-se

    que o poder do pensamento que garante o significado lingustico, o que

    sempre um produto da interao dialgica humana.

    Afinal, ningum sabe porque a linguagem muda. Isso porque ela est

    alm da compreenso da obstinada subjetividade humana. Com efeito, a

    linguagem muda de acordo com as infinitas trocas dialgicas que ocorrem no

    contexto da tradio e da histria, e essas mudanas esto alm do controle

    dos indivduos. como se a linguagem nos falasse, e no o oposto, dado que

    as regras gramaticais e o nus da tradio lingustica chegam sempre antes, ou

    seja, esto sempre nos seus devidos lugares bem antes de ns, indivduos,

    ingressarmos na arena lingustica.

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    Com efeito, na perspectiva gadameriana o interpretar no significa

    reproduzir sentido, mas sim dar sentido, ou seja, no possvel captar a

    essncia dos textos jurdicos como se eles contivessem conceitos em si

    mesmos: o processo interpretativo sempre encontra limites, visto que a

    hermenutica filosfica no comporta e/ou autoriza atribuies discricionrias

    de sentido segundo a vontade/ conhecimento do intrprete (STRECK, 2012,

    2013).

    E aqui uma outra crtica pode ser estabelecida ao establishment jurdico

    brasileiro, dado que nosso ordenamento jurdico apresenta inmeras portas

    para que a discricionariedade/arbitrariedade (e at mesmo truculncia) do

    julgador encontrem guarida. Com efeito, alguns dispositivos legaisdispersos

    pelos nossos Cdigos abertamente consolidam o paradigma da filosofia da

    conscincia como orientador da tomada de decises pelo juiz.

    Um claro exemplo disso a Lei de Introduo s Normas do Direito

    Brasileiro (LINDB), que preconiza, em seu art. 4, que quando a lei foi omissa,

    o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpios

    gerais do direito. No mesmo sentido, o art. 126 do Cdigo de Processo Civil

    reza que o juiz no se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou

    obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe- aplicar as normas legais;

    no as havendo, recorrer analogia, aos costumes e aos princpios gerais de

    direito. No art. 335 do mesmo Cdigo l-se que em falta de normas jurdicas

    particulares, o juiz aplicar as regras de experincia comum subministradas

    pela observao do que ordinariamente acontece e ainda as regras da

    experincia tcnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. O art. 3 do

    Cdigo de Processo Penal tambm apresenta redao similar: a lei processual

    penal admitir interpretao extensiva e aplicao analgica, bem como o

    suplemento dos princpios gerais do direito.

    Esses dispositivos representam claramente uma compreenso

    equivocada do papel desempenhado pelos princpios. Enquanto os princpios

    constitucionais se apresentam na contemporaneidade enquanto obstculos

    discricionariedade, na salvaguarda da Constituio, os vetustos princpios

    gerais do direito acabam assumindo um papel diametralmente oposto, pois

    funcionam como mecanismos autorizadores/legitimadores da arbitrariedade

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    judicial, em um quadro no qual no h espao para a tradio, e no qual cada

    deciso acaba por estabelecer uma espcie de grau zero de sentido. Sobre o

    tema, Streck (2013, p. 48) refere que

    no se pode confundir ou tentar buscar similitudes entre os princpios constitucionais e as referidas clusulas gerais (abertas). So coisas absolutamente distintas. Alis, seria incompatvel com a democracia que uma Constituio estabelecesse, por exemplo, princpios (sic) que autorizassem o juiz a buscar, em outros espaos ou fora dele, as fontes para complementar a lei.7

    Em que pese isso, h no imaginrio das prticas jurdicas brasileiras uma

    forte tendncia a considerar que, com base nos dispositivos acima

    mencionados, o juiz pode decidir de modo solipsista, ou seja, conforme os

    ditames da sua conscincia. Streck (2013, p. 24-25) recorda que ilustrativo

    disso o voto proferido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justia

    Humberto Gomes de Barros no Agravo Regimental em Recurso Especial n

    279.889/AL (julgado em 03/04/2001, DJ 11/06/2001), quando menciona que:

    No me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justia, assumo a autoridade da minha jurisdio. [...] Decido, porm, conforme minha conscincia. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse o pensamento do Superior Tribunal de Justia, e a doutrina que se amolde a ele. fundamental expressarmos o que somos. Ningum nos d lies. No somos aprendizes de ningum.

    Nesse rumo, conscincia, subjetividade, sistema inquisitrio e poder

    discricionrio acabam por representar variaes de um mesmo tema. Um

    7 O autor (2013, p. 48-49) segue: como se a Constituio permitisse que ela mesma fosse complementada por qualquer aplicador, revelia do processo legislativo regulamentar (portanto, revelia do princpio democrtico). Isso seria uma autorizao para ativismos, que, ao fim e ao cabo, desguam em decisionismos. Ou seja, qualquer tribunal ou a prpria doutrina poderiam construir princpios que substitussem ou derrogassem at mesmo dispositivos constitucionais, o que, convenhamos, um passo atrs em relao ao grau de autonomia que o direito deve ter no Estado Democrtico de Direito.

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    perfeito retrato dessa realidadeencontra-se no documentrio Justia (2004),

    da diretora Maria Augusta Ramos. Na primeira cena do filme, a cmera

    posicionada em uma sala de audincias do Foro Central do Rio de Janeiro

    presencia um interrogatrio cujo roteiro parece ter sido concebido por

    Kafka. O ru, em uma cadeira de rodas, uma perna amputada e a outra

    seriamente comprometida por um problema nas artrias, responde s

    perguntas do juiz, atnito diante da acusao pela prtica de furto mediante

    escalada (!). O fato de ter sido preso em flagrante pela polcia torna

    despiciendo afirmar tratar-se o acusado de um homem jovem, pobre e negro,

    que estava passando pelo local onde trs elementos essa a expresso

    utilizada pelo prprio ru haviam acabado de furtar uma residncia. Ou seja,

    era muito provvel para os agentes policiais que um homem jovem, pobre e

    negro, ainda que preso a uma cadeira de rodas, fosse o autor do crime de furto

    qualificado pela escalada do muro da residncia (e aqui revela-se um excelente

    exemplo do que, para Gadamer, traduz um preconceito inautntico).

    O juiz, na referida cena, do alto da sua torre de marfim na expresso

    de Batista (2002) , aps interromper arbitrariamente a narrativa do ru com

    um sinal de pare com a mo esquerda e um lacnico t bom, dita para o

    escrevente a verso oficial dos fatos que integrar os autos do processo.

    Aps perguntar ao acusado o que voc faz da vida, o magistrado traduz a

    trgica histria do acusado, permeada por arbitrariedades e violncia policial,

    da seguinte forma: que no verdadeira a acusao (ponto e vrgula) que no

    praticou o fato narrado na denncia (ponto e vrgula) que no conhecia os trs

    elementos que passaram correndo.

    E o encerramento apotetico da cena, antes de aparecer com letras

    garrafais no centro da tela a palavra que d nome ao documentrio, ocorre

    quando o juiz finalmente se d conta da situao do acusado: ao pedir ao

    magistrado autorizao para transferncia para um hospital, visto que estava

    em uma cela superlotada (79 presos) do xadrez, onde sequer conseguia

    evacuar sem ser humilhado pelos companheiros de cela porque precisava se

    arrastar pelo cho , o ru inquirido pelo juiz: o que voc tem, t doente?.

    Aps tomar cincia do estado de sade do ru e mais: saber que ele j se

    encontrava naquele estado quando da sua priso em flagrante o juiz

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    Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 111-142 Lenio Luiz Streck e Maiquel ngelo Dezordi Wermuth DOI: 10.12957/dep.2015.11159 | ISSN: 2179-8966

    salienta a necessidade de recomendao mdica para que ele possa deferir a

    requerida remoo para um hospital, premiando os espectadores com a frase:

    isso assunto mdico, no assunto de juiz.

    Aqui reside o ponto fundamental: o juiz no tem, luz da hermenutica

    filosfica, qualquer possibilidade de decidir com base no seu livre

    convencimento. Isso porque ele s pode decidir com base no sentido do

    direito que projetado pela comunidade poltica, ou seja, toda deciso deve

    se fundar em um compromisso que sempre pr-compreendido e que passa

    pela reconstruo da histria institucional do direito, bem como pela

    colocao do caso julgado dentro da cadeia da integridade do

    direito.(STRECK, 2013, p. 108). Logo, o ato interpretativo no produto nem

    da objetividade plenipotenciria do texto e tampouco de uma atitude

    solipsista do intrprete: o paradigma do Estado Democrtico de Direito est

    assentado na intersubjetividade. (STRECK, 2012, p. 264).

    Nesse rumo, a deciso jurdica no se apresenta como um processo de

    escolha do julgador das diversas possibilidades de soluo da demanda. Pelo

    contrrio, a deciso se d como um processo em que o julgador deve

    estruturar sua interpretao como a melhor, a mais adequada de acordo

    com o sentido do direito projetado pela comunidade poltica. (STRECK, 2013,

    p. 108).

    Portanto, a grande tarefa da hermenutica filosfica em terraebrasilis,

    em tempos de cada vez maior protagonismo judicial na busca pela

    concretizao de direitos, justamente estabelecer as condies para o

    fortalecimento de um espao democrtico de edificao da legalidade,

    plasmado no texto constitucional.(STRECK, 2013, p. 21). Como se procurou

    demonstrar ao longo do presente trabalho,a hermenutica surge e a

    contribuio gadameriana nesse sentido inestimvel exatamente para

    superar eventuais assujeitamentos do objeto. No mais se admite, em um

    Estado que se diz Democrtico de Direito, que a subjetividade do juiz

    prepondere em relao ao texto da Constituio. No fosse assim, todas as

    lutas pela implantao desse modelo de Estado perderiam o seu sentido.

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    Consideraes Finais

    A obra de Hans-Georg Gadamer assume posio central em qualquer

    discusso acerca da hermenutica filosfica, particularmente no que tange

    hermenutica jurdica. Isso porque todo o percurso filosfico transcorrido pelo

    autor passando pelo resgate da noo positiva de preconceitos, pela

    discusso acerca da importncia da tradio, da histria efeitual e da fuso de

    horizontes desgua na questo da applicatio, onde se verifica um terreno

    frtil para a construo de uma crtica contundente forma como as prticas

    jurdicas se estruturam/desenvolvem no Brasil.

    Como se procurou demonstrar no presente trabalho, a tarefa da

    interpretao, segundo a perspectiva gadameriana sempre consistir em

    concretizao, ou seja, em aplicao. Se interpretar compreender,

    compreender aplicar. No se torna possvel, nesse marco terico, considerar

    o sujeito afastado ou cindido do seu objeto. Pelo contrrio: objeto e sujeito

    so constitudos pela palavra e, por meio dela, recebem a atribuio de sentido

    a o aspecto hermenutico da filosofia.

    Na hermenutica jurdica, as coisas no se passam de modo diferente. O

    juiz, responsvel pela complementao produtiva do direito, no pode, ao

    compreender/aplicar a lei, amparar-se em arbitrariedades, solipsismos,

    concepes particulares de mundo em uma palavra decidir conforme a sua

    conscincia. Pelo contrrio, o julgador, como qualquer outro membro de uma

    determinada ordem jurdica, encontra-se sujeito lei e, em razo disso, sua

    deciso sempre deve ser o resultado de uma compreenso adequada ao

    sentido do direito projetado por aquela comunidade poltica. E no

    esqueamos do fato de que o ato de decidir possui responsabilidade poltica.

    Mais do que isso, como fica claro em Verdade e Consenso (STRECK, 2012),

    decidir no o mesmo que escolher. Juiz no escolhe. Decide. E o faz no

    segundo sua subjetividade. a que entre a hermenutica filosfica.

    Isso se apresenta, na perspectiva gadameriana, justamente como

    condio de possibilidade para que haja segurana jurdica em um Estado de

    Direito. Ou seja: a hermenutica gadameriana no admite qualquer forma de

    decisionismo. Em razo disso, o jurista no pode jamais interpretar a lei de

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    acordo com a sua vontade, afinal, interpretar no significa reproduzir sentido,

    mas sim dar sentido.

    A partir do giro ontolgico-lingustico, o intrprete no mais senhor

    do texto, como no paradigma da filosofia da conscincia. O cogito e as

    manifestaes da vontade do intrprete perdem seu espao. Da epistemologia

    da interpretao, passa-se ontologia da compreenso. Isso significa dizer que

    o compreender no mais e no pode ser compreendido como um

    resultado de um procedimento, mas sim como um modo de ser.

    E aqui a teoria gadameriana revela sua importncia: em Gadamer, o

    interpretar ser justamente o explicitar, de modo argumentativo, o (desde

    sempre) compreendido. Ou seja, a pr-compreenso assume a posio de

    condio de possibilidade para a tomada de decises. De acordo com a

    perspectiva desenvolvida ao longo do trabalho, pode-se afirmar que preciso

    ouvir a voz da tradio, adaptando-a aos valores atuais. Afinal, nas lies de

    Gadamer, a conscincia histrica no se limita a escutar beatificamente a voz

    que lhe chega do passado; ela reflete sobre essa voz, a fim de recoloc-la no

    contexto em que ela se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos

    que lhe so prprios.

    Nesse marco, uma deciso que esteja efetivamente comprometida com

    o sentido do direito projetado por uma determinada comunidade poltica

    precisa dar-se conta da sua insero histrico-social, ou seja, do acontecer de

    determinado grupo emaranhado na sua tessitura social prpria. exatamente

    neste espao que ingressa a fenomenologia hermenutica, onde o

    compreender se revela como operar uma mediao entre o presente e o

    passado, dizer, como o desenvolvimento, em si mesmo, de toda a srie

    contnua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a ns.

    Portanto, ao levar-se em considerao o fato de que, a partir da

    Constituio da Repblica de 1988, estabeleceu-se na sociedade brasileira uma

    mudana significativa de concepes acerca do mundo circundante sendo

    que um dos mais significativos est grafado logo no incio do seu texto, ao

    assinalar que a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado

    Democrtico brasileiro, oficialmente instalado no Brasil a partir da sua

    promulgao , revela-se o ncleo do desafio trazido com a nova Carta:

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    instalar o aprendizado da memria no horizonte histrico onde se projetar a

    pr-compreenso para a movimentao do crculo hermenutico, tendente

    atribuio de sentido aos princpios, valores e regras insculpidas no texto

    constitucional. No se trata de abandonar a memria da experincia aprendida

    at o momento, mas de utiliz-la para a definio de novos componentes,

    fundamentos, objetivos e diretrizes a serem instalados na sociedade (agora

    democrtica), por meio do vis de sustentao assegurada pelo direito, que

    perde o status de mero plus para assumir a posio de espinha dorsal.

    nesse movimento trplice do fenmeno de instalao de uma

    sociedade democrtica, sustentada pelo direito, que se projetar o crculo

    hermenutico de produo do sentido dos pilares projetados pelo legislador

    constituinte. Aqui, uma tarefa constante que se impe justamente aquela

    que impede uma assimilao precipitada do passado com as prprias

    expectativas de sentido. Isso condio de possibilidade para que se possa

    ouvir a tradio tal como ela pode fazer-se ouvir em seu sentido prprio e

    diferente, lembra Gadamer.

    Aqui, ingressa no cenrio a mensurao com o aprendizado construdo a

    partir das experincias humanas do passado, que irradiam os seus efeitos no

    presente. Afinal, o horizonte do presente apresenta-se em um processo de

    constante formao: estamos obrigados a pr prova constantemente todos

    os nossos preconceitos. Este um aspecto fundamental: a hermenutica

    jurdica que se molda aos desafios e necessidades dos novos e atuais tempos

    dever dar-se conta dessa imbricao com o passado, de onde busca a

    aprendizagem para demarcar as questes a ela relacionadas no presente, a fim

    de se desenhar os alicerces para o futuro.

    Nessa perspectiva, o horizonte do presente no se forma margem do

    passado, j que compreender repise-se sempre o processo de fuso

    desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos. A fuso se d

    constantemente na vigncia da tradio, na qual o velho e o novo crescem

    sempre juntos.

    Portanto, por meio da mediao da linguagem e do crculo

    hermenutico desenhado a partir de Gadamer, que se dever preparar

    fenomenologicamente o caminho, com a (re)valorizao da dimenso prtica

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    da retrica oferecendo a possibilidade de instaurao de um ambiente no qual

    os problemas da realidade so resolvidos concretamente, no interior desta

    mesma realidade e no numa instncia superior, de cunho ideal como se

    reflete a partir da obra de Streck, naquilo que denominado de Crtica

    Hermenutica do Direito.

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