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Deborah Urbach Malheiro
As UPPs e os Direitos: Uma análise sobre os impactos das políticas públicas em favela carioca
Dissertação de Mestrado.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências sociais da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Maria Sarah da Silva Telles
Rio de Janeiro Agosto de 2013
Deborah Urbach Malheiro
As UPPs e os Direitos: Uma análise sobre os impactos das políticas públicas em favela carioca
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maria Sarah da Silva Telles Orientadora
Departamento de Ciências Sociais – PUC-Rio
Prof. Luiz Antonio Machado da Silva UERJ
Prof. Marcelo Tadeu Baumann Burgos Departamento de Ciências Sociais – PUC-Rio
Profa. Mônica Herz Coordenadora Setorial do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2013
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Deborah Urbach Malheiro
Possui graduação em Comunicação Social pelo
Instituto de Comunicação Social da PUC-Rio
(2009), mestrado em Ciências Sociais pelo
Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio (2013)
Ficha Catalográfica
CDD: 300
Malheiro, Deborah Urbach As UPPs e os direitos: uma análise sobre os impactos das políticas públicas em favela carioca / Deborah Urbach Malheiro ; orientadora: Maria Sarah da Silva Telles. – 2013. 137 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2013. Inclui bibliografia 1. Ciências Sociais – Teses. 2. UPPS. 3. Direitos. 4. Favelas. 5. Políticas públicas. 6. Pobreza. l. Telles, Maria Sarah Silva. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. III. Título.
Agradecimentos
Primeiramente, gostaria de agradecer a todo Departamento de Ciências Sociais da
PUC. Fazer o curso de mestrado em uma área diferente da minha formação, que é
em jornalismo, certamente foi um grande desafio que eu não teria cumprido com
tanto êxito se não fosse todo o auxílio prestado pelo departamento- no que são
incluídos professores, secretárias e demais funcionários. Obrigada pela
oportunidade.
Um agradecimento especial à minha orientadora Sarah por toda a paciência,
diálogo e confiança. Sei que não foi fácil orientar alguém que passou 6 meses em
um lugar longínquo como Israel, portanto, obrigada. Aproveito o ensejo para
agradecer os professores Marcelo Burgos e Luiz Antônio Machado, a quem
dedico muita admiração.
Gostaria de agradecer à Clarice, minha melhor amiga e, certamente, uma das
maiores incentivadoras de meu trabalho, bem como Alê e João, outros amigos que
admiro pela imensa capacidade intelectual, além de outros aspectos.
Todas as meninas com quem eu fiz a graduação em jornalismo e com as quais
aprendi muito também: Dai, Dantas, Bibi, Ju, Palominha, Fernandona, Tchu e BF.
E um agradecimento especial a Fernandinha, que além de ter feito a graduação
comigo, agora é minha parceira nas ciências sociais também.
Todo o Reage Socialista, onde eu me interessei por política de fato. Amo fazer
parte do PSOL e possuir companheiros de luta tão combativos e especiais como
Neck, Carla, Pedro, Bruno, Gustavo, Maíra, Daniel, Carol e outros tantos.
À Flavinha, minha amiga do mestrado, que me ajudou tanto durante o curso. E a
todos meus amigos em Israel: Darren, Tyrone, Dan e Nitai. Nunca me esqueço de
vocês.
Por fim, à minha família, que foi- e é- essencial na minha vida e em todas as
minhas escolhas. Minha tia Tatá, minha vó Cocote e meu irmãozinho Dani. E à
minha mãe, sempre, sempre, a pessoa mais importante da minha vida.E ao meu
amorzinho Ben, por fazer meus dias mais felizes há 4 anos e meio.
Resumo
Malheiro, Deborah Urbach; Telles, Maria Sarah da Silva. As UPPs e os
direitos: uma análise sobre os impactos das políticas públicas em
favela carioca. Rio de Janeiro, 2013. 137p. Dissertação de mestrado.
Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
A presente dissertação possui como objetivo analisar quais impactos as
políticas públicas têm a capacidade de produzir no que concerne à afirmação de
direitos dentro de favelas situadas na cidade do Rio de Janeiro. Em especial, serão
investigadas as consequências que o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) estão trazendo para os locais contemplados com a medida. Embora seja
anunciado como um grande sucesso, tal política pública apresenta resultados
positivos no que diz respeito à redução de conflitos armados, porém é necessário
refletir mais profundamente, questionando se o projeto repete uma lógica de
pacificação da barbárie ou se pretende caminhar em outra direção.Para tal intento,
o trabalho será dividido em três capítulos, que contarão com explanações e
análises sobre os três nortes principais em que essa dissertação se apoia: as
favelas, as políticas públicas e os direitos.
Palavras-chave
UPPS; direitos; favelas; políticas públicas; pobreza.
Abstract
Malheiro, Deborah Urbach; Telles, Maria Sarah da Silva. (Advisor) The
"UPPs" and the Rights: An analysis about the impact of public policies on
the favela in Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013. 137p. MSc. Dissertation.
Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The current dissertation aims to analyze which are the impacts that public
policies can produce in the affirmation of rights in the favelas located in the city of Rio
de Janeiro. Especially, it will be investigated the consequences that the project called
“Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) are bringing to the places contemplated
with the program. Even though it is announced as a great success, this public policy
presents positive results in which concerns the reduction of firearms conflicts, but it is
necessary to reflect more deeply, asking if the project repeats a logic of pacifying the
chaos or if it intends to go on another direction. To this purpose, the work will be
divided in three chapters, that will contain explanations and analyses about the three
main basis in which this dissertation supports itself: the favelas, the public policies and
the rights.
Keywords
UPPS; rights; favelas; public policies; poverty.
Sumário
Introdução 10 1. As Favelas na Cidade do Rio de Janeiro 14
1.1. Favela: Imagens e Representações 14 1.2. A História das Favelas no Rio de Janeiro: Mais de um século de tensões e resistências 23 1.3. O Controle Exercido por Traficantes em Favelas no Rio 36 1.4. Milícias: O Crime Organizado Projetado e Incorporado por Agentes do Estado 43
2. A Importância das Políticas Públicas no Desenvolvimento da Qualidade de Vida nas Favelas Cariocas 55
2.1. Introdução: A Definição de Política Pública 55 2.2. A Participação Popular nas Políticas Públicas: Conscientização e Mobilização 59 2.3. As Políticas Públicas nas Favelas Cariocas 75
3. A Normatização e os Direitos dentro das Favelas Cariocas 103
3.1. Pontos Relevantes sobre a Normatização das Atividades Ocorridas dentro das Favelas 103 3.2. Considerações sobre a Questão da Informalidade e seus Reais Impactos na Organização Societal nas Favelas Cariocas 110 3.3. O Acesso aos Direitos 115 3.4. O Acesso à Cidade: Observações sobre o Processo de “Enobrecimento” Urbano nas Favelas do Rio de Janeiro 121
4. Conclusão 126 4.1. Os Impactos já Observados das Políticas Públicas na Afirmação de Direitos em Favelas Cariocas 126 4.2. Os Impactos em Curso das Políticas Públicas: Uma Análise sobre o Presente e o Encaminhamento de Perspectivas Futuras 129
Referências bibliográficas 134
Lista de Tabelas Tabela 1: Homicídios Dolosos por Cem Mil Habitantes (1985-2006) 33 Tabela 2: Número de favelas com logradouros reconhecidos (2000-2008) 105 Tabela 3: Indicadores Socioeconômicos das Comunidades do Complexo da Penha, 2010 117
Lista de gráficos Gráfico 1: Quantitativo de Milicianos. O diagrama ilustra quem são os milicianos 49 Gráfico 2: Indicadores de Qualidade Urbana, Rio de Janeiro, 1991 69 Gráfico 3: Civis mortos pela polícia (Autos de Resistência). Estado do Rio de Janeiro, 1997/2008 82
Introdução
O Rio de Janeiro é uma cidade cuja dinâmica espacial se difere da maioria
dos municípios brasileiros. Nesta metrópole, as favelas estão espalhadas por todos
os lugares, seja muito perto de locais ricos ou afastadas nas áreas popularmente
chamadas de "subúrbios". Nem todos os municípios brasileiros repetem esta
mesma lógica, e em muitos há uma separação espacial entre lugares com
diferentes graus de estratificação socioeconômicos. Por décadas, as favelas foram
identificadas como espaços pobres e violentos e, portanto, segregadas dos outros
bairros através de diversas fronteiras simbólicas, que impediam uma real
integração.
Atualmente, o panorama mudou. Com o projeto das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), muitas comunidades ganharam policiamento permanente, o
que reduziu o controle armado de grupos criminosos, como a milícia ou o tráfico
de drogas. Embora a maioria das favelas ainda não tenha sido contemplada com a
medida, é inegável que esta política pública trouxe impactos, tanto para os
moradores dos locais que receberam as UPPs, quanto, principalmente, para a
sociedade carioca de uma maneira geral.
No entanto, há um ponto ainda pendente na discussão sobre as iniciativas
necessárias para melhorar a qualidade de vida dos moradores de favelas: a questão
dos direitos. Muito embora a segurança pública seja um deles, é inviável que as
políticas públicas apenas foquem neste aspecto, não levando em conta o acesso a
serviços básicos que a população residente nestes lugares deveria obter, mas não
obtém ou os recebe com qualidade precária. A razão e as origens deste cenário é a
motivação primeira da presente dissertação.
O trabalho procura investigar os impactos dos projetos governamentais na
afirmação dos direitos, sejam eles relativos à regulamentação de propriedades ou à
melhoria da qualidade do serviços, como a coleta de lixo ou a existência de esgoto
tratado, por exemplo. Postula-se aqui a premissa de que há obrigação por parte do
governo em promover projetos que tragam resultados positivos para os moradores
de favelas. Não apenas a curto prazo, mas também pensando nas consequências
deixadas para outras gerações e para a cidade como um todo.
11
Para tanto, a dissertação é dividida em três capítulos, a fim de produzir
conteúdo substantivo para a conclusão, em que serão analisados os impactos
propriamente ditos. O primeiro dá conta de explicar o que é favela.
Primeiramente, é essencial que se defina o objeto de estudo. Por isso, o capítulo se
inicia com uma discussão sobre as representações e imagens confeccionadas sobre
as favelas, a fim de apontar qual o cenário existente nas comunidades cariocas
atualmente. As favelas estão em constante mutação, e é importante compreender
quais são as mudanças em curso. A posteriori, é apresentado um histórico do
surgimento das favelas, contando com breves explanações sobre algumas políticas
públicas aventadas durante os mais de 100 anos de aparecimento das mesmas. Por
fim, é essencial explicar as origens e modos de atuação das duas modalidades de
quadrilhas organizadas que controlavam (e ainda controlam) estas áreas. Então, há
um subtópico dedicado à análise das ações de narcotraficantes e outro destinado a
explicar as diretrizes das milícias.
Já o segundo capítulo possui como objetivo definir a ideia de política
pública, postulando seus principais objetivos e também as etapas necessárias para
a realização da mesma. É importante também diferenciar o que são e representam
ações pontuais de intervenção em territórios, como por exemplo as operações do
Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) nas favelas, de um projeto
governamental, que conta com planejamento e análise de impactos. Muito embora
toda medida efetuada gere consequências, o que esta dissertação pretende analisar
são os resultados das políticas públicas, não de ações randômicas que não contam
com diretrizes definidas. Estas devem integrar um objetivo maior, para que sejam
contribuições, e não desperdício de tempo e recursos.
Neste mesmo capítulo, é elaborada uma reflexão sobre a relação entre a
população e as políticas públicas postuladas pelo governo para os moradores de
favelas. A intenção é mostrar se há (ou não)canais abertos para a participação, e
como os mesmos funcionam. É pertinente ressaltar que as ações governamentais
devem estar alinhadas com as demandas e necessidades das pessoas, e, para tanto,
a consolidação de uma relação de confiança e diálogo entre o poder público e o
povo é fundamental.
12
Por fim, ainda no segundo capítulo, é realizada uma análise sobre as UPPs,
elencando seus principais objetivos, a origem de sua formulação, consequências e
questões e problemas que podem ser identificadas até o presente momento. São
utilizados depoimentos colhidos em trabalho de campo e também os resultados de
pesquisas já finalizadas. Ao se fazer um balanço preliminar do projeto das UPPs, é
notável a existência de desafios de diversas naturezas permeando a política
pública. Portanto, se faz necessário um debate sobre os mesmos, a fim de
diagnosticar possíveis caminhos para a melhoria do projeto.
No terceiro capítulo, é abordado o tema dos direitos dentro das favelas
cariocas. A formulação de políticas públicas muito implica neste aspecto, pois é
de alçada do governo prover serviços públicos de qualidade e implementar
medidas que tentem suprir o vácuo e a ineficiência histórica que o Estado
promoveu nestes espaços.
Obviamente, em locais do Rio onde o poder público exerceu uma presença
maior, o processo de normatização e a aplicação das leis aconteceram de maneira
diferente. Então, no primeiro tópico do capítulo, são investigados estes contrastes
e os seus reais impactos na organização das práticas sociais dos moradores de
favelas. Através de uma discussão que envolve os efeitos da regularização
fundiária, se pretende questionar qual o real papel das leis e do Estado nestes
espaços- e a quem interessa que as favelas possuam normas.
Nos dois outros tópicos que compõem o capítulo, é abordada a situação
dos serviços básicos oferecidos pelo governo nas favelas e o processo de
“enobrecimento” que ocorre atualmente nos territórios em que a UPP está
presente. A primeira análise objetiva oferecer um panorama da precariedade de
acesso a direitos enfrentada pelos moradores de favelas no passado, e como esta
questão está sendo tratada pelo poder público nos dias de hoje. Ademais, é
profícuo investigar as consequências que a privação ou a má qualidade de serviços
possa vir a causar nas pessoas deixadas à margem destes acessos.
Já no quarto e último tópico, o debate versa em torno de um dos temas que
mais têm sido levantados por pesquisadores que estão estudando as UPPs: o
direito à cidade. Na medida em que as favelas contempladas com o projeto se
13
tornam mais seguras, também começam a atrair investimentos imobiliários e os
preços de compra, venda e aluguel das propriedades sofre vertiginoso aumento. A
regularização de serviços como água, luz, TV a cabo e Internet, que antes eram
oferecidos de modo ilegal, por vezes ganham um custo que muitos moradores não
podem arcar. Este processo é denominado “enobrecimento” ou “gentrificação” e
estudar o fenômeno ajuda a levantar problemáticas em torno da questão do direito
à cidade.
Por fim, a conclusão é dividida em duas partes. A primeira é dedicada à
análise dos impactos – que já podem ser observados - das políticas públicas na
arena dos direitos. Portanto, tratará mais sobre projetos governamentais que já
foram concluídos, e cujos resultados já estão visíveis para o trabalho do
pesquisador. O segundo tópico pretende apontar quais os impactos das políticas
públicas que estão sendo implementadas nos dias de hoje, com especial destaque
para as UPPs. Estas consequências ainda se encontram em processo de avaliação,
por isso talvez será mais complicado indicá-las. No entanto, a pesquisa
apresentará questionamentos em aberto, o que poderá servir como sugestão para
estudos futuros.
1. As Favelas na Cidade do Rio de Janeiro 1.1. Favela: Imagens e Representações
É importante começar uma dissertação, especialmente esta, que se
debruçará sobre a análise de um local que comporta muitos nomes diferentes, com
um ensaio que pretende conceitualizar e discutir as diversas definições de favela.
Ainda mais pertinente é buscar o entendimento de como estas imagens e
representações foram construídas e consolidadas ao longo dos anos. E, também,
quem as formatou ou contribuiu para a formação das mesmas.
Como preâmbulo inicial para o começo de discussão, vale citar Machado
(2002), em um fragmento em que o autor já inverte um pressuposto que é muito
aventado quando a palavra “favela” vem à tona:
Antecipando os contornos gerais do argumento, devo dizer de início que
compartilho inteiramente da perspectiva que sustenta aquela tese, ou seja, que o
analista não pode definir a favela ou, de resto, qualquer configuração social a
partir das características, meios ou recursos que lhe faltam (mas é bom não
esquecer que a percepção social pode fazê-lo e frequentemente o faz), sendo esse
um dos aspectos do “problema da favela” a investigar.1
Portanto, na busca por definições, primeiramente é preciso a desconstrução
de conceitos e estereótipos prévios. Como Machado frisou certeiramente, o modo
como um pesquisador estuda a favela não pode possuir o mesmo viés daquele que
a enxerga sob uma ideia pré-agendada, fruto de uma simples “percepção social”.
A análise se inicia com um debate terminológico. Existem muitas palavras
para se tratar de favela. A mesma pode ser chamada segundo o politicamente
correto atualmente, que ensina a falar em "comunidade". Ou ainda ser referida
como "morro", geralmente quando uma antítese com o "asfalto" é aventada.
Geralmente, apenas em trabalhos acadêmicos ou livros o termo “favela” é
utilizado. O fato de existirem muitas palavras não pode ser considerado um mero
acaso. Indica que há uma disputa conceitual acontecendo por trás de tantos nomes.
E é importante se perguntar quais são as origens em que repousam estas
1 MACHADO, Luiz Antônio. A Continuidade do “Problema da favela”. In: Cidade: História e
Desafios. Lúcia Lippi Oliveira (Org). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. P.223
15
definições.
Como ilustração dessa problemática, há, por exemplo, o depoimento do
jovem cineasta Bruno Duarte, de 26 anos, que trabalha na Agência de Redes para
Juventude, uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público)
que atua em 7 favelas na cidade do Rio de Janeiro. Segundo ele, o treinamento
para trabalhar na instituição começa com o coordenador do projeto, Marcos
Vinicius Faustini, ex-secretário de cultura de Nova Iguaçu, postulando que, para o
exercício do trabalho, as favelas serão renomeadas de "territórios". De acordo com
Faustini, definir outra palavra é importante porque a pretensão da agência é não
reproduzir as duas imagens que seriam predominantes acerca deste conceito: ou as
favelas sendo enxergadas como local da falta, da ausência, ou como um espaço
romantizado, idealizado como tranquilo e com uma visão privilegiada do alto do
morro. Assim como a OSCIP postula, no site da UPP Social, projeto promovido
pela prefeitura carioca em favelas pacificadas, também estes espaços são
chamados de “territórios”.2
O preâmbulo acima expressa bem a discussão conceitual que permeia a
análise das favelas. Para iniciar a reflexão, é essencial definir com clareza o que
vai ser tratado e como nomear este objeto de estudo.
Provavelmente, não será possível postular e disseminar aqui uma
conceitualização fechada, que se esgote em ela própria. Isso acontece pelo fato de
"favela" ser alvo de uma disputa conceitual histórica, como já foi comentado.
Seria mais simples se a explicação se resumisse à etimologia da palavra, que
corresponde ao nome popular de uma planta da espécie Cnidosculos Quercifolius.
Em 1897, este vegetal encobria o morro que posteriormente passaria a se chamar
Morro da Providência, mas que, a época, era conhecido como Morro da Favella,
justamente pela abundância da tal planta. Apenas na segunda década do século
XX, a palavra passou a nomear todas os locais onde eram erguidas habitações
precárias sobre morros no Rio de Janeiro.
A origem da palavra "favela", no entanto, não é suficiente para abrigar
todas as significações que, atualmente, já estão embutidas no nome. Ao longo do
2 Site da UPP Social: www.uppsocial.org
16
tempo, essa palavra passou a designar locais pobres, mas não necessariamente
sendo erguidos sobre morros. Na própria cidade do Rio, por exemplo, uma das
"favelas" mais conhecidas é a Cidade de Deus, na Zona Oeste, que contém becos
e vielas, mas não está no alto de um monte. É interessante observar como o
significado do nome extrapolou sua etimologia genuína. Pensar em favela não é
mais falar da planta do final do século XIX, mas sim se remeter a muitos outros
conceitos, que da história original talvez só conserve a ideia de pobreza. Todos os
outros significados foram se acoplando à medida que as favelas foram crescendo e
o seu fenômeno emergindo em outros lugares, tanto dentro do Brasil quanto fora
do país.
A respeito do fato de “favela” estar se consolidando como uma palavra
internacionalmente conhecida, é profícua a observação de que alguns nomes em
português, como "feijoada" ou " caipirinha" não contém uma tradução exata em
outras línguas, sendo consideradas então "produtos" genuinamente nacionais. No
caso de "favela" a palavra contém até uma versão, em inglês, por exemplo, se
chamaria de "slums", em francês seria “bidonville”, mas esse nome já está tão
internacionalmente compartilhado que muitos estrangeiros acabam não traduzindo
o conceito, e se referem àquelas habitações que consideram precárias no Rio
utilizando a palavra em português mesmo. Esta é uma das expressões da dimensão
que as favelas obtiveram nos últimos anos. Obviamente, o problema é que nem
sempre o reconhecimento da existência de determinado fenômeno urbano traz
consigo melhorias para a vida dos moradores do local.
Enfim, atualmente, não existem mais plantas da espécie Cnidosculos
Quercifolius nas favelas, que estão adensadas em uma grande quantidade de casas,
lojas ou as chamadas “biroscas”. Áreas verdes, com árvores e jardins, são
escassas. Estes espaços estão em constante mutação, e não poderia ser diferente
quando se trata de processos sociais. É um exercício árduo de imaginação pensar
que o conceito de favela não iria extrapolar a imagem de um vegetal que encobria
os morros há mais de 100 anos. Naturalmente, estes locais sofreram diversas
modificações, e, provavelmente, vão continuar nessa dinâmica por quanto tempo
existam.
17
Muitos autores e cientistas sociais também procuraram definir e discutir o
conceito de “favela” a fim de compreender melhor o que é este objeto de estudo.
Por exemplo, para Marcelo Burgos (2007), a definição de favela perpassa por
aquilo que esta à margem da cidade, portanto poderiam se enquadrar nesta
categoria qualquer bairro ou conjunto de habitações que estão "fora" daquilo que
se imagina como ideário de determinado local. No caso do Rio de Janeiro, por
exemplo, há espaços extremamente desenvolvidos e modernos, como os bairros
do Leblon ou Ipanema, na Zona Sul, que ajudam a construir um ideal de cidade
que não comportaria lugares mais empobrecidos. Por sua vez, estes locais pobres,
independente de sua forma, sejam eles em morros ou asfaltos, seriam chamados
de "favelas". Não importa tanto o modelo com que as casas estejam dispostas ou
as peculiaridades de cada território, contanto que sua paisagem contenha
habitações identificadas como "pobres". Automaticamente, a classificação que se
reserva a estes espaços é "favela".
Para os sociólogos Anthony Leeds e Elizabeth Leeds (1978), a palavra
"localidade" contempla de forma eficaz os lugares conhecidos como favelas. De
acordo com os autores, as localidades se caracterizam por serem pontos de
interação, onde uma complexa teia de interações é tecida. São também sistemas
altamente flexíveis de adaptação humana. Nas palavras de Leeds: "As localidades
são quase sempre caracterizadas por uma certa autonomia em relação aos
organismos e instituições externas, por uma certa habilidade em se relacionar com
estes como corpos independentes.”3
Ademais, um importante ponto ressaltado por Burgos é o fato de como a
chamada "cultura da violência" modificou a conceitualização de favela. Os altos
índices de criminalidade registrados nestes espaços a partir da década de 80, e que
tem a sua expressão mais pungente no domínio que traficantes ou milicianos
começaram a exercer sobre os territórios, definitivamente produziram um estigma
negativo. Claramente, esta representação acabou por se estender aos moradores
das favelas, que passaram a sofrer forte discriminação devido à associação
imediata destes indivíduos com criminosos.
3 LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. P.36. Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
18
É pertinente lembrar que durante muitas décadas de existência das favelas
não havia índices altos de violência nos locais. Inclusive, pode-se afirmar que
estava presente no imaginário das pessoas certa romantização e idealização acerca
da ideia de morar no morro, considerado um local tranquilo e com uma bela vista
para o resto da cidade. Este conceito está muito bem identificado na música do
compositor Cartola, gravada em 1974. Dizem os versos: "Alvorada lá no morro
que beleza/ Ninguém chora não ha tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol
colorindo, é tão lindo, é tão lindo/ E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo." A
canção e sua visão idealizada sobre o espaço representam uma das maneiras de
significar a favela e é uma das muitas contribuições importantes para a formação
do conceito.
A constituição de uma imagem sobre determinado objeto é uma
construção coletiva. Mesmo que a visão seja fruto de apenas um indivíduo, há
crenças sociais compartilhadas embasando e estruturando de alguma forma este
recorte. No caso específico da busca por uma definição de "favela", esta é uma
das barreiras encontradas ao longo do percurso. Claramente, há uma produção de
imagens em torno de todos os objetos possíveis de conceitualização, entretanto, no
caso das favelas, muitos estereótipos, representações e estigmas, algumas vezes
totalmente distintos, estão envolvidos. Este fato dificulta ainda mais uma
conceitualização hermética.
Pode-se afirmar que diversos atores sociais contribuem para a elaboração
das imagens em torno da favela. Estes são os moradores do local e também de
outros bairros na cidade do Rio, a mídia, o governo, as ONGs e instituições
estrangeiras que atuam em trabalhos dentro da comunidade, os políticos que
exercem influência no espaço, os pesquisadores e acadêmicos e outros que de
alguma forma estejam envolvidos com a questão. Estas imagens produzidas
tendem a ser diferentes, já que cada sujeito possui uma experiência e uma
memória acerca do objeto. Patrícia Birman (2008) completa: “Contudo, não
encontramos unanimidade em relação a essas identificações. De certo modo, todos
os atores participam, contra ou a favor, das controvérsias relativas às políticas de
19
governo e aos fundamentos identitários que permitem a sua efetivação”. 4
Ademais, há muitas vezes interesses escusos em torno da constituição de
determinado estereótipo em torno das favelas. Por exemplo, seria no mínimo
ingênuo considerar que há neutralidade na forma com que a grande imprensa
noticia os fatos ocorridos nestes espaços. A verdade é que todas as representações
produzidas, não importa qual ator social as esteja construindo, contém
parcialidade, pois são frutos de histórias ou ideias que possuem alguma parcela de
subjetividade ao fim e ao cabo. Valladares (2005) também questiona a produção
de determinadas imagens acerca das favelas:
Porque será, então, que as mudanças recentes, mais do que evidentes e
confirmadas pelo próprio recenseamento, não parecem abalar os defensores dos
dogmas? Como explicar essa resistência? Haveria algum interesse em fazê-los
perdurar? Até que ponto sua persistência no imaginário coletivo traria benefícios
às favelas e aos seus habitantes? É verdade que o “turismo social” depende de
uma imagem exótica, é verdade que os jornalistas, a mídia e escritores preferem,
sem dúvida, essa imagem um tanto fascinante de um universo que seria marginal,
diferente e com especificidades locais.5
E, dentro dessa discussão, sobre os interesses ou intenções na produção de
determinadas imagens sobre a favela, vale destacar o uso da palavra
“comunidade”. Tal termo, cunhado como sinônimo de favela, principalmente pela
mídia ou por atores externos ao local (embora moradores comumente o utilizem
também), carrega em si uma espécie de eufemismo. Como a palavra “favela” ou
“favelados” ganhou uma conotação pejorativa nas últimas décadas, é evitado a
utilização do termo, com o objetivo de se “suavizar” o discurso.
Muito embora essa tentativa possa vir com uma intenção ingênua, é
importante pensar até que ponto a utilização de “comunidade” não serve apenas
para mascarar a real imagem que as pessoas possuem sobre as favelas. Trocar
“favela” por “comunidade” no momento do discurso não modifica a percepção. A
mudança pode se estabelecer no plano da linguagem, mas não significa
necessariamente que as representações se modificaram. A identificação com os
traços negativos existentes nas favelas é capaz de permanecer, mesmo se a pessoa
chamar estes espaços de “comunidades”. (BIRMAN, 2008).
4 BIRMAN, Patrícia. Favela é Comunidade? P.104/105 In: Vida Sob Cerco: Violência e Rotina
nas Favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 5 VALLADARES, Licia. A Invenção da Favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. P.158.
20
O conceito de fato social, postulado pelo pensador francês Emile
Durkheim na obra As Regras do Método Sociológico (1895), dialoga com a busca
por definições a que este tópico se propõe a realizar. De acordo com o sociólogo,
os fenômenos sociais se impõem aos indivíduos, tendo natureza coercitiva. Então,
seria complicado falar em constituições conceituais que se abstenham de conteúdo
social e subjetivo. Nas palavras de Durkheim:
Esse fenômeno (o social) é um estado de grupo, que se repete nos indivíduos
porque se impõe à eles. Ele esta em cada parte porque está no todo, o que é
diferente de estar no todo por estar nas partes. Isso é sobretudo evidente nas
crenças e práticas que nos são transmitidas inteiramente prontas pelas gerações
anteriores; recebemo-las e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra
coletiva e secular, elas estão investidas de uma particular autoridade que a
educação nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a
imensa maioria dos fenômenos sociais nos chega dessa forma.6
Portanto, é importante mencionar que essas reproduções acerca da favela
são constituídas por diversas ideias, muitas delas conceitos pré-concebidos que,
como ressalta Durkheim, são transmitidas aos indivíduos geralmente através da
própria educação. Robert Dahl, em seu clássico livro Poliarquia: Participação e
Oposição, obra que data de 1972, também afirmava que as chances de exposição e
uma consequente absorção de determinada ideia dependiam do fato da mesma
estar presente ou não no ambiente em que o sujeito convivia e crescia. Ademais,
se os portadores de certa crença exercem uma forte influência na pessoa durante o
processo de socialização, maiores são as possibilidades de o indivíduo adquirir a
mesma ideia.
Para dificultar mais o caminho acerca da busca pelas representações e
imagens das favelas cariocas, há o inegável fato de as mesmas possuírem uma
historia tortuosa e cheia de conflitos, mas que não deve de maneira alguma ser
apreendida em linhas gerais, sem levar em conta suas nuances e particularidades.
Cada local identificado como “favela” comporta sua própria memória. E é comum
a formação destes tais conceitos pré-concebidos e homogêneos, baseando-se
somente em situações de violência ocorridas em determinados contextos. Mas,
para uma análise profícua, é necessário um olhar que se aprofunde na
problemática e não apreenda partes como regras gerais para o todo.
6 DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. P.9. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
21
Este assunto será mais bem detalhado no próximo tópico. Todavia, quando
se trata de abordar a trajetória que as favelas possuem em mais de 100 anos do
surgimento do primeiro espaço reconhecido como tal, é de relevância ressaltar que
as mesmas carregam diversos acontecimentos importantes e marcantes ao longo
de sua história. Elas já foram classificadas pelo poder público como "aberração
social nociva"7 na década de 50, e seus moradores sofreram com as transferências
e tentativas de remoção, frequentemente através do uso da força, praticadas neste
período. Um dado interessante levantado e divulgado no livro A Sociologia do
Brasil Urbano (1978), de Elizabeth Leeds e Anthony Leeds, dá conta que, de
acordo com uma pesquisa realizada, já naquela época, existia um estigma negativo
associado aos moradores de favelas no Rio. Mitos acerca da vida nestes espaços
também eram comuns.
Portanto, nas décadas de 1940 e 50, as favelas sequer eram locais
considerados violentos e já existia a produção de imagens pejorativas. Então, é
esperado que esta reprodução negativa permaneça e aumente após o crescimento
dos índices de criminalidade a partir dos anos 1980. Em sua obra, Leeds
argumenta que a favela é vista como um problema porque sua população é
enxergada dessa forma, sendo tachada de "bandidos" ou "viciados". Os
pesquisadores postulam tal ideia em 1978, ou seja, antes ainda de muitos locais
perecerem com o domínio de traficantes ou milicianos. Essa caracterização
pejorativa, baseada na estereotipagem e generalização das pessoas que habitam
estes espaços, se perpetuou ao longo das décadas.
A clivagem entre "morro" e "asfalto" proposta pelo escritor Zuenir
Ventura, em uma de suas mais conhecidas obras, o livro Cidade Partida, de 1994,
é uma das expressões desse maniqueísmo imagético construído durante o acúmulo
de tempo. Uma ideia é considerada maniqueísta quando classifica objetos de
acordo com antíteses. E foi isso que ocorreu no Rio de Janeiro. Os moradores das
favelas eram (e ainda são) vistos negativamente, ou como bandidos ou
colaboradores da violência. Já o "morro" é enxergado através do viés do oásis da
pobreza e ausência. Em oposição direta a isso, há o "asfalto", com seus habitantes
reproduzidos sempre como, ou vitimas da violência, ou simplesmente do medo
7 LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. P.222. Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
22
causado justamente por aqueles que moram no "morro". O fragmento abaixo
comenta um pouco esta questão:
O processo de produção dos espaços de favela foi historicamente marcado pela
oposição entre eles e o “asfalto”, tanto do ponto de vista das representações
quanto das práticas. Essa oposição evidencia, de forma eloquente, a distância que
se estabeleceu entre a “cidade formal” e a “cidade real”, constituindo dois
mundos distintos: enquanto na cidade temos casas, na favela temos barracos;
enquanto na cidade temos ruas, na favela temos becos; na cidade temos
fornecimento legal de energia elétrica, e na favela, gatos de luz; na cidade temos
TV a cabo; na favela, a “gatonet”. É uma série infindável de oposições que
enfatizam a falta: de forma, de ordem, de regras morais.8
Obviamente, não se pode afirmar que todas as pessoas possuem estas
visões sobre os habitantes das favelas ou de outros bairros no Rio. Se, por um
lado, há uma produção negativa de estigmas, geralmente relacionada com a
problemática da violência, por outro existe a visão das comunidades sendo
enxergadas pelo viés da cultura e do entretenimento. Entretanto, nem sempre isto
garante que as reproduções construídas virão a ser positivas, como ressalta
Marcelo Burgos:
Positiva ou negativamente, a favela é presença permanente na produção cultural
da cidade, na musica, na literatura, nas artes plásticas, no cinema, no esporte, etc;
e as escolas de samba e, de certa maneira, os clubes de futebol, se convertem em
instituições sociais definidoras de um padrão de sociabilidade possível: contato
físico através de identidades coletivas comuns, mas distância social na vida real.9
O argumento utilizado por Burgos ilustra com clareza o fato de que os
moradores de outros bairros podem até construir uma convivência
"compartilhada" com os habitantes das favelas quando estão, por exemplo, em
uma praia, ou no desfile de um bloco de carnaval ou escola de samba. Entretanto,
isto não significa necessariamente que a estigmatização pejorativa se encerra, na
verdade, só através do processo de conhecimento do "outro" seria possível a
produção de uma imagem diferente. Estar em lugares comuns pode ser
considerado um movimento positivo, mas por si só não garante que as
reproduções já concebidas irão se modificar.
8 CUNHA, Neiva, MELLO, Marco. Novos Conflitos na Cidade: A UPP e o Processo de
Urbanização na Favela. Revista Dilemas, vol.3, n.4, jul/set, 2011.P.25. 9 BURGOS, Marcelo. Favelas: Uma Forma de Luta pelo Direito à Cidade. P.12. Disponível
online em CESEC: www.ucamcesec.com.br
23
É preciso frisar, no entanto, que esta sensação de estranhamento ao "outro"
é uma via de mão dupla, e não contempla apenas moradores de áreas ricas ou de
classe média em relação a habitantes de locais pobres. Há também uma construção
de imagens negativas que advém dos moradores de favela em face dos que moram
no "asfalto". No entanto, dentro de uma dinâmica urbana, a maioria das pessoas
sai de suas comunidades para trabalhar ou no próprio bairro em que reside ou em
outros da cidade do Rio. Muitas ofertas de emprego estão fora das favelas.
Portanto, os habitantes são, através dessa migração pendular, "forçados" a
conhecerem e conviverem em áreas diferentes das de costume. Fato mais difícil é
a observação do movimento contrário: nativos do Rio possuírem a iniciativa de
visitar uma favela. Há um forte movimento de turistas, principalmente de outros
países, em locais como a Rocinha, o Santa Marta ou o Vidigal. Entretanto, esta
curiosidade de conhecimento, que move os estrangeiros, não é tão disseminada
entre as pessoas que moram na cidade. Certamente, é um dos fatores para que a
ideia do Rio como "cidade partida" continue povoando o imaginário popular.
Novamente, essa dissertação não possui como pretensão definir uma
significação hermética de "favela". O objetivo do conteúdo elencado acima foi,
através do estudo de suas representações, esclarecer e compreender mais o objeto
de estudo. É importante dizer que uma coisa apenas existe sob o olhar de quem a
enxerga. Então, seria ingênuo procurar uma "pureza" sobre aquilo que será
abordado. E investigar a "favela" sob o olhar de diferentes imagens ajuda a
compreender este objeto de maneira mais profunda. A análise densa, condensada
em vários vieses, é o que se pretende.
1.2. A História das Favelas no Rio de Janeiro: Mais de um século de tensões e resistências.
O primeiro espaço reconhecido como favela data de 1897 e é hoje
nomeado Morro da Providência, estando localizado no Centro da cidade do Rio de
Janeiro, perto da área portuária. Sua primeira população foi de soldados oriundos
da Guerra de Canudos, conflito ocorrido na Bahia. Desde o seu surgimento, estes
espaços não eram vistos com bons olhos pelo governo, sendo rotulados como
lugares sujos e de disseminação de doenças e pestes. No início do século XX, o
então prefeito da cidade, Pereira Passos (1902-1906), promoveu uma reforma para
24
retirar os cortiços, popularmente conhecidos como "cabeças de porco", da
paisagem carioca, já que os mesmos destoavam do ideal citadino europeu que o
político pretendia implementar no Rio.
Inicialmente, eram os cortiços os alvos das políticas de remoção.
Posteriormente, quando as favelas passaram a se proliferar, as leis passaram a
identificar estes territórios como o lócus principal de pobreza e doenças. Neste
período, foram sancionadas normas que vedavam a aparição das favelas e que,
obviamente, impediam qualquer tipo de melhoria naquelas já existentes. Licia
Valladares (2005) comenta este momento e explica um dos fatores responsáveis
pela construção social de favela como uma moléstia urbana:
A favela passa, então, a ocupar o primeiro lugar nos debates sobre o futuro da
capital e do próprio Brasil, tornando-se alvo do discurso de médicos higienistas
que condenam as moradias insalubres. Para ela se transfere o postulado ecológico
do meio como condicionador do comportamento humano, persistindo a percepção
das camadas pobres como responsáveis pelo seu próprio destino e pelos males da
cidade (...).10
Embora nesta época as favelas fossem um fenômeno recente, pode-se
afirmar que a política higienista contra a pobreza era inaugurada. Os alvos deste
tipo de medida eram tanto aqueles que moravam nas favelas como os que
habitavam os cortiços. De acordo com Valladares (1991):
Fazendo uso de um discurso ideológico dualista, as classes dominantes como que
dicotomizavam o mundo: de um lado o mundo do trabalho, da moral, da ordem;
de outro, um mundo às avessas- amoral, vadio, caótico - que deveria ser
reprimido e controlado para não comprometer a ordem. A cada um destes mundos
correspondia um espaço: ao primeiro, a fábrica; ao segundo, o cortiço e a rua.
Nesse sentido a expressão “classes perigosas” se referia basicamente àqueles fora
do universo fabril; mais especificamente àqueles que eram criminosos,
delinquentes ou simplesmente vagabundos e desordeiros que viviam entre o
cortiço e a rua, tentando impor a desordem. 11
Entretanto, é inegável que as habitações construídas sobre os morros,
geralmente em áreas centrais da cidade, ofereciam algumas vantagens para os seus
moradores. Primeiro, o aspecto financeiro: construir uma casa na favela era
indubitavelmente mais barato do que em qualquer outra região do Rio. Embora na
10
VALLADARES, Licia. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro,
Editora FDV, 2005. 11
VALLADARES, Licia. Cem anos pensando a pobreza urbano no Brasil. In: Boschi, Renato.
(Org.). Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro:
Rio Fundo Editora, 1991, v. 1, p. 87.
25
periferia talvez os preços se equivalessem, a proximidade com o trabalho também
é um fator essencial para explicar o que atraiu muitas pessoas a ocuparem outros
morros. Somado ao fato do aluguel ser mais baixo, havia o aspecto da não
necessidade de gasto com transporte, dada a proximidade entre a casa e o trabalho
das pessoas. Ademais, a possibilidade de criação de redes sociais era maior
quando se vivia na favela, e este pode ser considerado um fator importante para a
atração de novos moradores, principalmente aqueles recém-chegados ao Rio.
É importante lembrar que, durante todo o século XX, a metrópole carioca
recebeu muitos migrantes, principalmente da Região Nordeste, em um movimento
conhecido como "Êxodo Rural". Embora tenham chegado à capital com
esperanças de uma vida melhor, grande parte dessas pessoas se deparou com a
falta de infraestrutura urbana da cidade, visivelmente não preparada para receber
tantos migrantes. A solução encontrada foi, portanto, morar nas favelas. E este
processo não foi um fenômeno exclusivo da capital carioca, podendo ser
observado em outras metrópoles, como São Paulo e Belo Horizonte. As
características desta situação são sumarizadas por Valladares (1991):
O grau e o ritmo do crescimento da urbanização ultrapassavam de muito o do
desenvolvimento industrial, e a dinâmica da indústria de transformação na criação
de empregos era insuficiente para atender ao crescimento demográfico.
Compunha ainda este quadro o crescimento desmesurado do setor terciário e o
agravamento geral das condições de vida nas cidades, decorrente da incapacidade
de se suprirem as necessidades básicas de uma população cada vez maior. 12
Mike Davis (2006) complementa lembrando que as favelas não são
habitações que surgiram exclusivamente no Brasil, mas sim em praticamente
todos os países do mundo. Davis elenca algum dos fatores que ajudam a
compreender a proliferação das favelas:
Como resultado, o crescimento urbano rápido no contexto do ajuste estrutural, da
desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da
produção em massa de favelas. Um pesquisador da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) estimou que o mercado habitacional formal do Terceiro Mundo
raramente oferece mais de 20% do estoque de residências e assim, por
necessidade, as pessoas recorrem a barracos construído por elas mesmas, a
12
VALLADARES, Licia. Cem anos pensando a pobreza urbano no Brasil. In: Boschi, Renato.
(Org.). Corporativismo e desigualdade: a construção do espaço público no Brasil. Rio de Janeiro:
Rio Fundo Editora, 1991, v. 1, p. 94/95.
26
locações informais a loteamentos clandestinos ou às calçadas.13
Em um contexto como esse, de déficit habitacional e crescimento
populacional, é compreensível entender porque o surgimento de favelas não foi
um fenômeno isolado, mas sim algo que passou a proliferar em toda a cidade do
Rio. Entretanto, como foi mencionado, o governo começou a promover medidas
para a remoção das mesmas. No Código de Obras promulgado em 1937, surge o
primeiro de muitos apelos para a eliminação das favelas e a sua substituição por
"núcleos de habitação de tipo mínimo". Diz o artigo 349 desta lei, contido no
capítulo XV intitulado “Extinção das Habitações Anti-Higiênicas”: "A formação
das favelas, isto é, do conglomerado de dois ou mais casebres regularmente
dispostos ou em desordem, construídos com materiais improvisados e em
desacordo com as disposições desde Decreto não será absolutamente permitida."
No entanto, assim como outras legislações vigentes no Brasil, havia
exceções nas leis direcionadas para a construção de novos casebres. Embora fosse
proibido erguer habitações com materiais "improvisados", o uso de madeira nas
edificações era permitido. Isto leva à conclusão de que, na prática, existiam
brechas na legislação.
O primeiro projeto proposto como solução para a favelização foi a
transferência das pessoas para os chamados Parques Proletários, ideia do governo
do presidente Getúlio Vargas, no início dos anos 40. Foram construídos conjuntos
habitacionais em alguns bairros, como Gávea, Leblon e Caju. No entanto, após o
fim do mandato de Vargas em 1945, a ideia dos Parques foi esvaziada. Não houve
continuidade por parte do governo seguinte e muitos moradores retornaram aos
seus locais de origem. Vale frisar também que apenas uma pequena parte dos
habitantes de favelas, 4 mil em um universo de 130 mil, tinham sido transferidos
para os Parques. Portanto, o programa estava longe de ser um projeto com uma
escala ampla, se apresentando mais como uma medida paliativa.
É interessante observar o protagonismo do governo federal em sua
tentativa de remover as favelas. Se hoje as políticas públicas direcionadas para
estes espaços são, em sua larga maioria, de cunho municipal ou estadual, nas
13
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. P.27.
27
décadas de 30 e 40 era o mandato presidencial que promovia tais medidas.
Expressão desta tendência é a pressão populacional, em meados dos anos 40, para
que o governo federal "entrasse" nas favelas para checar se poderiam haver
possíveis "ameaças comunistas" vindas de seus moradores. 14
No entanto, este protagonismo dependia, obviamente, de quem estava no
poder. Enquanto Vargas buscou algum tipo de alternativa para as favelas e
implementou os Parques Proletários, o governo seguinte, de Gaspar Dutra, de
1945 a 1949, foi marcado pela ausência de políticas para as comunidades, o que
explica o esvaziamento da ideia dos complexos habitacionais. Nesta mesma
época, o então prefeito do Rio, Mendes de Moraes, criava em 1947 uma comissão
com o objetivo de extinguir as favelas. Este descompasso e falta de integração
entre políticas federais, estaduais e municipais acompanha todo o processo de
crescimento das favelas, inclusive no que tange às legislações que regem as
mesmas. Enquanto o prefeito promulga uma lei com determinado âmbito, o
presidente aprova outra que promove brechas nesta mesma medida. Este fato, é
claro, dificulta a efetivação e perpetuação de qualquer política pública.
Apesar da criação da comissão aventada por Mendes Moraes, como
lembram Anthony Leeds e Elizabeth Leeds (1978), o governo começa a conceder
as primeiras declarações admitindo a urbanização das favelas e não a remoção das
mesmas. É inédito também o fato destes espaços passarem a representar uma
questão de alcance nacional, e não mais um fenômeno restrito à cidade do Rio. As
favelas passam a ser comparadas com outros tipos de habitações pobres existentes
em diferentes estados, mostrando que o crescimento urbano desordenado e o
déficit de moradia não foram problemas exclusivamente cariocas.
É importante frisar que não havia qualquer incentivo para a construção de
novos casebres, apenas tentativas parcas de prover algumas garantias para quem já
estava nos locais. Em 1956, é criado o SERFHA (Serviço Especial de
Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas). A filosofia do órgão seria
a de não ofender a "dignidade" dos moradores de comunidades, tentando integrar
14
Neste período vigia no Brasil uma ditadura, chamada de Estado Novo, promovida pelo
presidente Getúlio Vargas através de um golpe do estado. Havia um terror por parte de
determinados segmentos da população de que o comunismo se alastrasse no país. Acreditava-se
que muitos comunistas eram moradores de favelas ou se utilizavam das mesmas para se esconder.
28
as ações municipais, que estavam muito desorganizadas, nestes espaços. A
contribuição da comissão foi a constituição de associações nas favelas que, junto
ao SERFHA, conseguiram chegar ao poder público e promover melhorias.
Entretanto, o órgão chega ao fim em 1962 e suas funções passam para a
responsabilidade do Serviço Social das Favelas, mostrando mais uma vez a
descontinuidade de projetos e ações nestes lugares.
Em 1960 é promulgado um novo Código de Obras na cidade do Rio, que,
apesar de editado, está em vigor até os dias de hoje. Esta lei permite a demolição
dos casebres sem a necessidade de intimação prévia, expressando toda a
arbitrariedade do poder público. Previa também a coibição da "exploração da
favela pela cobrança de aluguel", em uma clara tentativa de cercear os direitos dos
moradores.
Na esteira de decretos direcionados às comunidades, é interessante
observar também outra medida, de 1963, que proibia a venda de bebidas
alcoólicas nas chamadas "biroscas" (ou bares) dentro das favelas. Esta lei era parte
do programa do governo da Guanabara15
, de Carlos Lacerda e Negrão de Lima,
cujo norte era coibir a construção de relações sociais nestes espaços. Caso
houvesse uma integração efetiva entre os moradores, focos de resistência às
políticas de remoção apareceriam com mais facilidade. Outra tentativa de conter o
caráter combativo das pessoas foram intervenções nas associações de moradores,
no intuito de desmobilizar possíveis lutas.
Em 1964, ganha mais força a ideia de erradicação das comunidades com a
criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). A construção maciça de novas
casas no Brasil seria suficiente para resolver, como era chamado à época, o
"problema da favela". E algumas foram mesmo removidas para conjuntos
habitacionais, dando origem a bairros como a Vila Kennedy e a Cidade de Deus,
ambos na Zona Oeste do Rio, muito longe, aliás, dos pontos de trabalho e do
Centro da cidade. Entretanto, é pertinente notar que a Cidade de Deus acabou por
se tornar outra "favela", embora tenha sido projetada para o contrário. A pobreza e
15
Nesta época, o município do Rio era uma cidade-estado, cujo nome era Guanabara. A mesma
abrigava o Distrito Federal, antes da construção de Brasília. O estado da Guanabara permaneceu
vigente entre 1960 e 1975.
29
a precariedade de serviços acompanha a transferência das comunidades. A
paisagem geográfica pode se modificar de morro para ruas planas, mas o estigma
dos moradores permanece o mesmo. Anthony Leeds e Elizabeth Leeds postulam
(sobre os habitantes transferidos): “Sua única solução é o retorno, ou a criação de
novas favelas em outro lugar.”16
Ou seja, remover não resolvia a questão, apenas
deslocava o problema. No entanto, transferia a pobreza para longe dos olhos dos
turistas que visitavam a Zona Sul.
Descontinuidades e contradições marcam estes anos em que as favelas
vivem à mercê de governos que ora agem a favor de urbanizações, ora em prol de
remoções. Expressão disso é que, enquanto Vila Kennedy e Cidade de Deus se
estabeleciam como moradia para as pessoas transferidas de suas casas, obras de
urbanização in loco aconteciam em outras comunidades, como Vila da Penha,
Jacarezinho, Rocinha e Salgueiro (GRYNSZPAN; PANDOLFI: 2002).
Alguns serviços começam a serem oferecidos nas favelas que não estavam
sendo removidas. Em 1963, a Comissão Estadual de Energia é criada e os
habitantes de favelas são obrigados a pagar pela instalação do equipamento de
eletricidade e pela conta de luz, gerando uma reação negativa entre os moradores,
que viam na medida uma chance da extensão do controle estatal sobre as
comunidades. No ano de 1968, mais um projeto que previa a urbanização das
favelas é constituído, mas desta vez com reação favorável por parte dos
habitantes. A Companhia de Desenvolvimento Comunitário (CODESCO)
pretendia implementar a regularização, pavimentação e iluminação das ruas,
instalação de redes de água, esgotos e eletricidade, auxílio financeiro e mínima
supervisão de reconstrução de casas (geralmente com ajuda própria), além da
administração da venda de terras que tinham sido expropriadas pelo Estado.
Havia motivos, no entanto, para se acreditar em tentativas de controle por
parte do Estado sobre os moradores de favela. Em 1964, os militares promovem
um golpe que instaura uma ditadura no Brasil. Consequentemente, as liberdades
civis são reduzidas drasticamente e um longo período de obscurantismo se inicia.
O resultado prático é o aumento da repressão e violência por parte da polícia, no
16
LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. P.242. Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
30
país como um todo e nas favelas também.
No que concerne às favelas, uma política que de fato indica essa tendência
repressora acontece no ano de 1967, quando o governo decide reconhecer apenas
uma associação de moradores como corpo representativo oficial da favela.
Embora houvesse estas medidas, veladas ou não, de cerceamento, em 1963 a
Federação das Associações de Favelas da Guanabara (FAFEG) é constituída. Esse
órgão conseguiu, nos anos 60, organizar um pouco o movimento dos moradores
que eram contrários às remoções promovidas pelo Estado, mas não sem a geração
de conflitos com o governo.
Entretanto, em 1964, a resistência da FAFEG no Morro do Pasmado
encontra soldados armados com revolveres, o que inibe mobilizações futuras. Em
1968, o movimento ainda tenta combater as transferências das favelas, através do
slogam “Urbanização sim, remocão nunca”. Apesar da militância apresentar força,
a ação da associação é reduzida drasticamente em 1969, quando muitos membros
são presos e as atividades públicas do órgão são praticamente encerradas. Este
fato pode ser considerado um dos símbolos do controle e violência exercidos
pelos militares na época.
Em 1968, mais remoções são efetuadas, desta vez com a ajuda de um
órgão intitulado de Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área
Metropolitana do Grande Rio de Janeiro (CHISAM). Vale ressaltar que a política
de remoções de favelas foi um fenômeno brutal na cidade do Rio. Só entre 1965 e
1979, 139 mil pessoas tiveram que abandonar suas casas.17
Neste período, as
comunidades da Catacumba, Macedo Sobrinho e Praia do Pinto, todas na Zona
Sul, são transferidas. Com a resistência dos moradores, a polícia se utiliza de
artefatos como tratores e até incêndios criminosos para forçar as pessoas a
abandonarem suas casas. De acordo com Anthony Leeds e Elizabeth Leeds
(1978), as remoções trazem "profundas desestruturações da organização de vida
daquelas pessoas". Entre os problemas, estão o declínio da renda e o aumento das
despesas com transporte.
17
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. P.110
31
É pertinente observar que outro fator marcante durante o crescimento e
estabelecimento das favelas no Rio é a prevalência de trocas eleitorais entre
moradores de favelas e políticos. Esta tendência, segundo Anthony Leeds e
Elizabeth Leeds, é observada desde a existência dos Parques Proletários, nos anos
1940. Ou seja, além das visíveis clivagens apresentadas pelas esferas federais,
estaduais e municipais no que concerne às políticas públicas, há também o
problema dos canais encontrados para a busca de melhorias. Se não há integração
e o mínimo de coerência nas medidas oferecidas pelo governo, é natural que haja
a procura de outras formas de resolução dos conflitos. Como foi visto, entre as
décadas de 1930 e 60, os problemas eram abundantes nas favelas. Portanto, um
sistema de trocas e favores políticos, que se perpetua até hoje, foi estabelecido.
Leeds comenta esta questão na passagem abaixo, mostrando claramente qual era o
cenário das políticas públicas nas favelas nestes anos:
Dada a falta generalizada de resposta e responsabilidade governamentais, os
moradores da favela são forçados a continuar a procurar a melhoria de sua
condição através dos canais racionalmente elaborados, paternalistas,
individualistas, para a obtenção de favores e para a satisfação de interesses
através da troca de benefícios.18
A partir da metade dos anos 1970 é inaugurado um período de inércia do
poder público no que concerne à questão das favelas no Rio. Se antes havia
enérgicas tentativas de remoção, elas cessam e cedem lugar a uma espécie de
reconhecimento tácito destes tipos de moradias. Leis municipais autorizam
melhorias nas favelas, e com isso os serviços como luz, água e esgoto chegam
parcamente em algumas áreas. Entretanto, é importante frisar a posição
intermediaria que estes espaços ocupavam: não havia intervenções maciças por
parte do Estado no sentido de prover urbanização, educação, cultura e saúde. O
acesso a serviços ainda é muito precário. Se no passado, mesmo que
negativamente, as favelas eram enxergadas pelo poder público, nos anos 1970 se
tornaram quase invisíveis, o que ajuda a explicar a escalada de violência
observada na década de 1980. É claro que o domínio do tráfico não se iniciou de
súbito, houve condições para que isto acontecesse.
18
LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. P.247. Rio de Janeiro,
Zahar, 1978.
32
Expressão dessa tendência de invisibilidade é a Constituição de 1988, que,
embora muito positiva para a diversidade e o reconhecimento de minorias, não
tratava diretamente da questão das favelas. Por outro lado, a Constituição Estadual
do Rio, de 1989, postulava algo no que concernia às comunidades pobres na
cidade. A mesma previa a urbanização, regularização fundiária e titulação destas
áreas, e, notório frisar, sem a remoção dos moradores, salvo quando as condições
físicas e geográficas pusessem em risco a vida dos mesmos.
A descontinuidade e desorganização das políticas voltadas para as favelas
não é um problema exclusivo da primeira metade do século. Esta questão
permanece muito atual e aparece na promulgação da Lei Orgânica de 1990. Se a
Constituição de 1989 previa remoções apenas em caso de risco, esta última
legislação já regula essa hipótese, dizendo que transferências podem sim serem
autorizadas, mas não seriam realizadas de modo sumário. Os moradores de áreas
afetadas seriam assentados em locais próximos ao trabalho ou ao antigo local de
residência. A observação de que todas as leis, em algum momento, apresentam
brechas e fragmentos, mais uma vez se faz pertinente.
Esta questão será abordada detalhadamente no próximo tópico, mas por
ora é pertinente lembrar que a história das favelas se modifica muito a partir do
crescimento dos índices de violência nestes espaços. Se antes era a diferença
arquitetônica daquelas casas construídas sobre morros que chamava mais a
atenção da sociedade, nos anos 1980 em diante a criminalidade se tornará a
principal tônica da discussão sobre favelas. E é ate possível compreender esta
percepção generalizada a partir do momento que a mídia, agora totalmente
canalizada no aparelho de televisão, transmite todas as notícias acerca do assunto.
No entanto, não era apenas um estardalhaço sensacionalista realizado pela
imprensa: as taxas de violência de fato cresceram na cidade do Rio, gerando este
sentimento de medo e um gradual processo de culpabilização sobre as favelas e
seus moradores.
Nos anos 80 e 90, as taxas de homicídio na cidade escalaram valores
próximos a 80 mortes por 100.000 habitantes, índice que colocava o Rio como um
dos lugares mais violentos do país. A tabela abaixo fornece um panorama da
situação:
Rio de Janeiro Boston Chicago Dallas Detroit Los Angeles Miami
1985 32,9 15,2 22,2 30,2 58,2 24,4 33,9
1986 36,1 18,3 24,8 34,1 59,1 25,6 37,3
1987 40,0 13,2 22,8 32,0 62,8 24,3 33,2
1988 45,8 16,0 22,0 36,0 57,9 21,6 ND
1989 57,9 17,1 24,8 35,2 60,0 25,5 34,6
1990 24,9 30,5 44,4 56,6 28,2 36,0
1991 63,3 19,6 33,1 48,8 60,3 29,3 34,8
1992 64,4 12,6 33,5 37,2 58,8 31,0 35,6
1993 67,3 16,9 30,0 30,0 57,7 30,3 35,3
1994 73,2 14,7 32,8 27,4 54,3 23,7 32,2
1995 66,8 16,5 29,0 25,2 48,0 23,7 30,5
1996 55,5 10,1 27,7 19,5 43,6 19,7 34,4
1997 51,2 7,4 26,5 18,5 48,2 15,9 28,5
1998 37,9 5,8 24,5 21,9 44,5 11,7 23,8
1999 42,2 5,3 22,2 16,3 43,4 11,5 17,4
2000 46,7 6,6 21,9 19,4 41,6 14,8 18,2
2001 41,3 11,0 22,9 19,7 41,3 15,6 17,7
2002 45,7 10,1 22,1 15,8 41,8 17,1 17,1
2003 42,9 6,6 20,6 18,4 39,4 13,4 19,4
2004 43,9 10,5 15,5 20,2 42,1 13,4 17,9
2005 39,5 13,1 15,8 16,6 39,9 12,7 14,0
2006 40,2 13,3 16,4 15,0 47,3 12,4 19,6
Tabela 1: Homicídios Dolosos por Cem Mil Habitantes (1985-2006)
34
A associação destes dados com a situação precária em que as favelas se
encontravam, sem políticas públicas adequadas e sendo paulatinamente
controladas por traficantes, foi apenas questão de tempo.
Apesar da criminalidade, outro fato pertinente que aconteceu nos anos 90
nas favelas foi o retorno dos projetos de urbanização. Em 1992, o Plano Diretor da
Cidade é editado, e as medidas de remoção ficam afastadas. Em 1995, surge o
programa intitulado de Favela-Bairro, projeto de autoria do então prefeito do Rio,
Cesar Maia (1993-1996). Este programa será melhor analisado no próximo
capítulo, mas tinha como objetivo promover melhorias nas comunidades, como
asfaltamento de ruas, implantação de redes de esgoto, construção de creches, e
outras políticas a fim de "urbanizar" a favela, ou, em outras palavras, fazer com
que estes espaços se assemelhassem mais com outros bairros do município.
Porém, o escopo do Favela-Bairro se encerra nestas medidas, não possuindo
nenhuma interferência na questão habitacional, que era aspecto bastante grave na
época. Apesar desta falha e dos ares de maquiagem que o projeto detinha, é
importante considerar seus benefícios para os moradores.
Os anos 2000, no que concerne aos projetos voltados para a favela, talvez
possa ser considerado o período mais complicado de todos. De 1998 a 2006, o Rio
foi governado quatro anos por Anthony Garotinho e, no período subsequente, por
sua esposa, Rosinha Garotinho. Basta dizer que, em boa parte deste tempo, o
comandante da Polícia Civil era o ex-deputado Álvaro Lins, que em 2009 foi
preso acusado de receber suborno do crime organizado. Este dado oferece um
panorama de como estava a situação da Segurança Pública. Não raro comércios
fecharam por conta de ordens proferidas por traficantes, levando medo e terror
dentro e fora das favelas19
. As políticas para estes espaços foram resumidas ao
GPAE (Grupamento Policial para Áreas Especiais), um projeto até interessante
em sua formulação, mas implementado em poucas favelas e não obtendo
19
Pode-se citar como exemplo o episodio ocorrido em 30 de setembro de 2002, em que lojas em
Cordovil, Tijuca, e até Ipanema fecharam. Escolas públicas e particulares também tiveram suas
atividades suspensas. Outra situação ocorreu em 18 de outubro de 2006 na Penha, em que o
comércio fechou e moradores atearam fogo em caixotes e bloquearam a passagem de carros como
forma de protesto. Informações das fontes Estado de São Paulo e G1.
http://www.estadao.com.br/arquivo/cidades/2002/not20020930p20112.htm e
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,AA1315211-5598,00-
TRAFICO+FECHA+COMERCIO+E+PROVOCA+PROTESTOS+NA+PENHA.html
35
continuidade. De qualquer forma, não houve medidas que buscassem trazer para
as favelas direitos básicos, como educação e saúde de boa qualidade e cultura
acessível. O GPAE apenas previa uma ocupação policial, nos moldes
comunitários, em uma ideia bastante similar ao que são hoje as Unidades de
Policia Pacificadora (UPPs).
Se até 2006 a questão das favelas estava sendo tratada apenas como um
problema da polícia, o cenário se modifica com o início do mandato do atual
governador Sergio Cabral, em 2007. Após um começo de gestão que parecia não
diferir muito do governo anterior, com ações enérgicas calcadas na atuação do
Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) para suprimir o crime nas
comunidades, um novo projeto foi criado em 2008. Esta medida, intitulada de
Unidades de Policia Pacificadora (UPPs), consiste na realização de ocupações
policiais permanentes nas favelas que antes possuíam domínio de traficantes ou
milicianos. Estes criminosos, por sua vez, seriam expulsos, presos ou até mortos
em caso de confronto. O primeiro lugar que recebeu uma unidade foi a
comunidade Santa Marta, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, em dezembro de
2008.
Até a presente data dessa dissertação, existiam 30 UPPs na cidade. Esta
política pública vem obtendo alguns bons resultados, embora muitas questões
ainda precisem serem melhor elucidadas e planejadas, como pretendo mostrar
adiante. É importante ressaltar que, atualmente, esta medida, junto com a UPP
Social20
, tem sido o principal projeto implementado nas favelas do Rio.
Embora tenha começado sem muito alarde, assim que os primeiros índices
de violência foram reduzidos em áreas com UPPs, esta tem sido apontada como a
solução para quase todos os problemas que assolam o Rio, como a criminalidade,
o tráfico e a milícia. Mas é sempre pertinente lembrar que esta é uma política
muito recente, cujos resultados ainda estão sendo analisados. É impossível
20
Projeto idealizado em parceria com a prefeitura e através do Instituto Pereira Passos (IPP), que
está sendo desenvolvido em paralelo com o principal. Vale ressaltar que o mesmo tem data de
término. Segundo o site oficial do projeto (www.uppsocial.org), “ Uma vez que as comunidades
pacificadas tenham acesso aos serviços em qualidade compatível com o resto da cidade, ou que
existam estruturas institucionais para o acesso desses territórios às políticas públicas de forma
rotineira e contínua, a UPP Social não será mais necessária e poderá deixar de existir nesses
territórios.”
36
enxergar, agora, as consequências a longo prazo das ocupações.
Entretanto, em 2014, a cidade será uma das sedes da Copa do Mundo, e,
em 2016, receberá os Jogos Olímpicos. Sem desmerecimento dos benefícios que a
UPP possa estar trazendo, é difícil enxergá-la como um projeto desinteressado.
Como foi visto anteriormente, as favelas possuem um histórico de "incômodo"
com o poder público. Mais ainda depois que ganharam as manchetes do mundo
todo com episódios de violência. É importante questionar quais são as diretrizes
dessa medida, que parece, em sua formulação, repetir uma lógica policialesca,
apesar de ser notável sua diferença para com as ações comandadas pelo BOPE.
Para o estudo das favelas, é necessário conhecer suas origens e história.
Aqui foi exposto, de forma breve, os principais fatos acerca da trajetória destes
tipos de moradia e de seus principais atores. No entanto, é ainda necessário
destacar como estes espaços se tornaram controlados por criminosos a partir dos
anos 1980.
1.3. O Controle Exercido por Traficantes em Favelas no Rio
Apesar de hoje ser extremamente popular, comum e movimentar altas
quantias de dinheiro e recursos, o tráfico de drogas nem sempre foi um negócio
rentável na cidade do Rio de Janeiro. Até a década de 1980, na verdade, o maior
mercado informal constituído na metrópole era o jogo do bicho. Apenas no final
dos anos 1970 é que o consumo e, consequentemente, o tráfico de narcóticos,
principalmente de cocaína, começa a crescer. Com este aumento, se nota a
formação de redes de quadrilhas que se auto intitulam "comandos", cujo maior
expoente, na época, era a facção chamada Comando Vermelho (CV).
De acordo com o que postula o sociólogo carioca Michel Misse (2007) no
artigo Mercados Ilegais, Redes de Proteção e Organização Local do Crime no
Rio de Janeiro21
, o surgimento da rede de quadrilhas chamada Comando
Vermelho acontece no início dos anos 1980. É importante ressaltar que o grupo
foi formado na prisão Candido Mendes, em Ilha Grande, Angra dos Reis, estado
21
MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de
Janeiro. Estudos Avançados (USP.Impresso), v. 21, p. 139-157, 2007.
37
do Rio, por um conjunto de presos comuns em contato com os presos políticos. A
ascensão do crime organizado acontece concomitantemente ao declínio da
ditadura no país. Se antes da década de 80, o sistema carcerário abrigava
majoritariamente aqueles considerados “subversivos" ou "comunistas" pelos
militares, o cenário se modifica a partir do crescimento dos índices de violência.
Os presos políticos são anistiados com o fim da ditadura e os meliantes comuns
passam a majoritariamente compor o quadro penitenciário no país. Os anos 90 são
marcados por um aumento significativo da população carcerária.
Michel Misse também assinala que, entre 1984 e 1986, o Comando
Vermelho exercia com tranquilidade o monopólio do controle da venda de drogas
no Rio. Este panorama começa a mudar a partir de 1987, quando conflitos e
guerras fragmentam a rede de quadrilhas. Em meados dos anos 1980 é criado o
Terceiro Comando (TC), facção que tinha por objetivo rivalizar com o Comando
Vermelho e assumir pontos de venda de drogas no Rio. Já na década de 1990,
também dentro de presídios, é constituído um terceiro grupo, chamado Amigos
dos Amigos (ADA), que logo se alia ao Terceiro Comando a fim de tentar
diminuir o poder do Comando Vermelho.
No início da década de 2000, o Terceiro Comando é extinto, porém uma
dissidência da quadrilha forma o Terceiro Comando Puro (TCP), facção que
permanece em atividade até os dias de hoje. Vale frisar que os grupos Comando
Vermelho e Amigos dos Amigos também continuam existindo, embora não com o
mesmo poder que possuíam há 10 anos.
Para entender o funcionamento destas redes criminosas, é necessária uma
explicação sobre a dinâmica da venda de drogas em favelas no Rio. Como já foi
visto, estes espaços pereceram durante anos com políticas públicas ineficientes,
que ora propunham remoções para os moradores, ora proviam obras de
urbanização. Entretanto, estes locais não eram reconhecidos como parte integrante
da cidade e o Estado permanecia ausente ou ineficaz em diversas áreas
importantes para o desenvolvimento da qualidade de vida, como educação, saúde,
cultura e segurança. Com um cenário como esse, em que o poder público não
contempla serviços básicos, não é difícil compreender porque estes territórios se
tornaram espaços de fácil acesso para a instalação de pontos de vendas de drogas,
38
as chamadas "bocas". Obviamente, não só moradores locais compravam as
drogas, mas principalmente usuários de muitos outros lugares da cidade.
O "dono" do ponto de venda de drogas é nomeado "gerente".
Acompanhado desta figura, começa a se processar uma hierarquia de
"funcionários". Existe uma pessoa que controla o dinheiro e realiza as contas da
boca, sendo considerado o mais próximo ao gerente, pois para exercer este cargo é
obrigatório contar com a confiança do mesmo. Depois, há os vendedores menores,
que controlam outros pontos de venda, e, por fim, os "olheiros" do tráfico,
geralmente jovens ou crianças que se posicionam em locais estratégicos da favela
e lançam sinalizadores caso a polícia esteja subindo o morro. Adolescentes
também podem se tornar próximos à venda ilegal de drogas através da realização
de pequenos favores aos traficantes, como comprar comida ou levar recados. Este
contato, até ingênuo em alguns casos, os leva às vezes a começarem a participar
da cadeia de funcionamento do tráfico, sendo possível que os mesmos, em um
primeiro momento, se transformem em "olheiros" e depois ascendam de posição.
Como qualquer hierarquia, claro que a mesma pode ser modificada. Se
alguém morre, por exemplo, é substituído. E é interessante observar o grau de
rotatividade presente no tráfico de drogas: como prisões, assassinatos e
desaparecimentos são fatos relativamente comuns, há uma necessidade latente de
cooptação de novos "membros". E muitos destes acabam sendo jovens de 13, 12,
até 11 anos fascinados com a possibilidade de poder aqui representada na figura
do traficante empunhando armas, comprando bens de consumo e obtendo
prestígio junto às mulheres na favela.
A socióloga Silvia Ramos, no artigo Trajetórias no Tráfico: Jovens e
Violência Armada em Favelas Cariocas, que data de 2011, coletou depoimentos
que comprovam a mistificação causada por essa possibilidade de conquista fácil
de dinheiro e sexo. O primeiro é da mãe de um traficante, e o seguinte, de um
técnico que trabalhava em um projeto na favela:
O menino não tem nada, onde cair morto, mas sabe quantas mulheres ele tem?
Quantas ele quiser. Dependendo da arma, mais mulher tem.
Não tem mais essa remuneração, eles conseguem assim comprar um tênis, mas
não arrumam mais do que isso, o que eles conseguem hoje, e é demais, é a
39
atenção dessas meninas. Elas ficam loucas, arma e cordão de ouro.22
A favela controlada pelo tráfico possui vários pontos de venda de drogas,
cada um com seu respectivo "dono". O chamado "comando" é, então, a rede
formada por estes traficantes através de acordos tácitos e precários (Michel Misse,
2007:149). E a maioria destes criminosos responde às ordens dos líderes da
quadrilha, que se encontram geralmente cumprindo pena em presídios de
segurança máxima como Bangu I, II e III, todos localizados na cidade do Rio.
Este contato acontece através de aparelhos de celular que, apesar de, obviamente,
serem proibidos, entram com facilidade nas prisões cariocas.
É essencial apresentar em que exatamente consiste este domínio territorial
exercido por criminosos nas favelas cariocas. Os traficantes, muitos deles
nascidos e criados nas comunidades em que vendiam drogas, construíram um
poder paralelo nesses locais. Ostentando armas a todo tempo em que se
movimentam pelas ruas e becos, intimidam moradores que não querem colaborar
com o "movimento", nome popular do tráfico. Caso as pessoas telefonem para a
polícia para denunciar algo, ou forneçam algum tipo de informação, são
penalizadas, senão com castigos corporais e torturas, com a morte dependendo da
situação.
Ainda utilizando o artigo de Silvia Ramos, a socióloga oferece um
panorama da situação da cidade do Rio quando muitas comunidades estavam sob
o controle de traficantes de drogas:
A cidade se tornou um caso raro, com poucos paralelos no mundo, em que áreas
desenvolvidas, abastadas e reguladas por normas democráticas, conviviam lado a
lado com áreas sob controle de grupos armado, onde predominavam – e ainda
predominam em muitos locais- ditaduras de traficantes ou milicianos, que impõe
normas na base das armas e onde liberdade de expressão, o direito de ir e vir, o
direito de reunião e outros não estão assegurados.23
22
RAMOS, Silvia. Trajetórias no Tráfico: Jovens e Violência Armada em Favelas Cariocas.
Disponível online em: http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-iiii/artigos-
tematicos/trajetorias-do-traficojovens-e-violencia-armada-em-favelas-carioca. P. 50 23
RAMOS, Silvia. Trajetórias no Tráfico: Jovens e Violência Armada em Favelas Cariocas.
Disponível online em: http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-iiii/artigos-
tematicos/trajetorias-do-traficojovens-e-violencia-armada-em-favelas-carioca. P. 45
40
É essencial lembrar que muitos policiais eram coniventes com o domínio
imposto pelos criminosos. As operações de repressão dentro da favela até
existiam, e às vezes havia apreensão de grandes quantidades de drogas e armas.
Entretanto, ocorriam casos dos bens confiscados serem devolvidos dias depois
para os traficantes.
A partir de fóruns de debates com 150 moradores de favelas, os sociólogos
Luiz Antônio Machado da Silva e Márcia Leite escreveram um artigo24
em que
apresentam algumas destas falas trazidas nas discussões. E um dos depoimentos
mais contundentes e recorrentes dá conta justamente da revolta das pessoas em
face do comportamento da polícia. Segundo os moradores, a corrupção dessa
instituição seria ainda pior que a ação dos traficantes, porque os últimos já estão
por definição fora da lei, enquanto a polícia é um braço do Estado e, portanto, é
esperado outra atitude.
Aliás, a polícia é vista de maneira amplamente negativa pelos moradores
de favelas. Os traficantes, apesar de também terem suas ações enxergadas com
desagrado e reprovação, são às vezes julgados de forma melhor que os policiais.
Como muitos dos criminosos são naturais da própria comunidade, os habitantes,
em caso de um conflito dentro da favela, se sentem mais a vontade em dialogar
com eles, já que os mesmos estariam mais abertos a "negociações".
Outro ponto apontado pelos moradores é que os traficantes, embora ajam
com crueldade, detém uma rotina e um repertório de ações mais previsível. Já os
policiais costumam aparecer somente nas operações, que, obviamente, acontecem
sem qualquer aviso anterior. E, nestas situações, acontecem as trocas de tiros e as
consequentes interrupções de cotidiano, que parecem incomodar bastante os
habitantes. Ademais, os abusos dos policiais para com as pessoas também é
considerado mais imprevisível, enquanto os traficantes, por já conhecerem os
moradores, só agiriam com maldade com aqueles que de fato fizessem algo
"errado". Por outro lado, qualquer um poderia estar sujeito às ações policiais
violentas.
24
O artigo se intitula Violencia, Crime e Policia: O que os favelados dizem quando falam destes
temas? e consta no livro Vidas sob Cerco: Violencia e Rotina nas Favelas do Rio de Janeiro,
Editora Nova Fronteira, 2008.
41
Obviamente, não é possível generalizar os policiais. Esta instituição possui
milhares de membros, e seria no mínimo irresponsável afirmar que todos são
coniventes com o tráfico ou praticam algum tipo de corrupção. Também é
importante ressaltar que não é somente uma atribuição da polícia garantir que as
favelas contem com segurança.
Enfim, pode-se dizer que uma soma de fatores contribuiu para que os
traficantes conseguissem construir um poder paralelo nas favelas. Este cenário
começou a se desenhar no fim da década de 1980, e consolidou-se nos anos 90 e
2000. É notório lembrar que não se pode afirmar que havia uma total ausência do
Estado nestes espaços, já que este se fazia presente (mesmo que precariamente)
em algumas áreas, mas os moradores estavam, em primeira instância, sob o jugo
dos traficantes.
E isto era expresso de diversas maneiras, como já foi comentado.
Remetendo novamente à pesquisa de Luiz Antônio Machado e Márcia Leite,
segundo os habitantes a liberdade era muito cerceada enquanto os criminosos
dominavam as favelas. Por exemplo, não era sequer permitido pronunciar a
palavra "terceiro" em locais controlados pelo Comando Vermelho, porque
corresponderia a uma alusão à facção Terceiro Comando. Ou, ao contrário,
utilizar uma peça de roupa vermelha quando o Terceiro Comando estava no poder.
Além destas pequenas restrições de liberdade cotidiana, havia questões
mais graves envolvendo a falta do Estado nesses espaços. Um dos maiores
problemas era no caso da ocorrência de conflitos entre os moradores da favela.
Estes poderiam ser de naturezas diversas, como roubos, brigas entre marido e
mulher ou até discussões em bares. Já que os traficantes exerciam controle no
local, as pessoas não podiam procurar a delegacia ou a polícia para a resolução de
conflitos. Era o chamado "Tribunal do Tráfico" que ditava as punições para os
envolvidos. As "penas" variavam entre pagamentos em dinheiro, castigos
corporais, torturas e até mortes em determinados casos. Os corpos eram enterrados
em cemitérios clandestinos ou queimados, para evitar a identificação e dificultar o
trabalho da polícia.
42
Outra observação interessante assinalada pelos moradores foi a percepção
de que os traficantes "antigos", ou seja, aqueles que iniciaram a venda de drogas
nas favelas, eram mais benevolentes que os "novos", os recém ingressados no
crime. De acordo com os habitantes, a responsabilidade desta situação seria o
fator idade. Como cada vez mais cedo os adolescentes estariam integrando o
"movimento", o destemor de perder a vida seria maior. A brutalidade das ações,
consequentemente, também.
Por fim, é necessário ressaltar a fragilidade deste poder paralelo exercido
pelos traficantes. Embora possuam um amplo repertório de ações violentas e até
aterrorizantes algumas vezes, não há uma organização consistente embasando seu
controle. Como foi visto, as redes de quadrilha apresentaram muitas
fragmentações ao longo de suas trajetórias. Traições entre líderes, assassinatos em
presídios e o surgimento de novas facções são alguns dos fatos que permeiam a
existência destes grupos. O funcionamento do tráfico destoa muito da organização
apresentada por outro tipo de poder paralelo, as milícias, que serão analisadas no
próximo tópico.
Como última observação, vale frisar que há também outros atores sociais
envolvidos no suporte do domínio destes criminosos. A entrada nas favelas das
armas e drogas utilizadas pelos traficantes só é possível se outras pessoas
"cooperarem" com o processo. É necessário lembrar que, atualmente, o tráfico de
drogas consiste em um negócio globalizado, que possui fronteiras muito além das
brasileiras. É uma cadeia criminosa com “filiais” em diferentes países do mundo,
como postula Alba Zaluar (1998):
Na atividade altamente rendosa do tráfico de drogas, grandes organizações com
vínculos internacionais comandam o atacado da comercialização desse tão
valorizado bem. No varejo, pequenos traficantes (os únicos presos e
identificados) realizam lucros extraordinários: com a venda de apenas 200 gramas
de cocaína pagam um quilo ao “matuto” ou intermediário que a deixou em
consignação. Dos 500% de lucro, a metade vai para o dono da boca, 30% para o
gerente e 20% para o vapor e os aviões. Entender como o ilícito e o ilegal se
enraízam no setor informal para comandar um exército de empregados e sócios
menores é fundamental.25
25
ZALUAR, Alba. A Globalização do Crime e os Limites da Explicação Local (versão 2. In:
Santos, José Vicente Tavares dos (org.). (Org.). Violências no Tempo da Globalização. São Paulo.
P. 58/59.
43
Portanto, pode-se afirmar que a consolidação deste controle perpassa
outros fatores muito além das ações praticadas por jovens de 18, 19 anos
empunhando armas dentro de determinada comunidade. Há uma estrutura por trás
do trafico, e isso ajuda a explicar as razões do mesmo ter-se mantido no poder
durante tantos anos. E, notório lembrar, continuar exercendo domínio em várias
áreas na cidade do Rio. As UPPs não acabaram com o tráfico de drogas. Talvez
possa se falar em enfraquecimento de redes de quadrilha de narcotráfico, mas não
em fim.
1.4. Milícias: O Crime Organizado Projetado e Incorporado por Agentes do Estado
Como foi visto, o domínio dos traficantes em favelas no Rio tinha como
característica o uso da força e de métodos de terror, mas não possuía um alto grau
de organização. Já um outro tipo de quadrilha criminosa, que também exerce
controle em comunidades e surge a partir dos anos 2000, apresenta bases mais
fortemente consolidadas. São as chamadas "milícias", grupos formados
majoritariamente por agentes (ou ex-agentes) do Estado, como bombeiros,
policiais, militares ou agentes penitenciários.
Para a compreensão deste fenômeno, será utilizado como documento base
o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a Investigar a
Ação de Milícias no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, que representa uma
compilação das apurações realizadas sobre o assunto. Este texto foi entregue pela
Assembleia Legislativa do Rio no final de 2008 e, portanto, só contém
informações até a data citada. Obviamente, outros dados mais atualizados serão
inseridos ao longo da análise.
Esta CPI, instaurada em 2008 e que teve como relator o deputado estadual
Marcelo Freixo (PSOL-RJ), representou uma contribuição de suma importância,
pois publicizou o fenômeno das milícias. É importante ressaltar, na verdade, que a
mesma só veio a acontecer após o episódio de tortura sofrido pelos jornalistas do
periódico "O Dia", em 2008, na favela Jardim Batam, em Realengo, Zona Oeste
44
do Rio26
. O projeto proposto por Freixo já existia, mas apenas com a comoção
popular causada pela tragédia é que a CPI foi aprovada. Nada, entretanto, reduz o
mérito da investigação, que foi responsável pelo indiciamento de 218 pessoas,
sem contar os parlamentares acusados.27
Como um preâmbulo inicial, será destacada aqui uma declaração sobre o
conceito de crime organizado concedida pelo procurador Antônio Jose Campos
Moreira, do Ministério Público, à Comissão Parlamentar de Inquérito. De acordo
com o procurador: "Não há crime organizado sem que haja um braço no Estado –
braço na polícia, braço no poder político, braço, inclusive, nas esferas de Poder
Judiciário, de Ministério Público." Esta definição, primeiramente, ajuda a
entender porque o tráfico pode ser compreendido como crime organizado, já que
de fato há participação de agentes do Estado. Ademais, também se pode
classificar as milícias segundo esta conceitualização.
As milícias são, portanto, redes de quadrilhas que praticam o crime
organizado. Para o sociólogo e professor da UERJ Ignácio Cano, existem cinco
características principais destes grupos que os diferenciam dos demais:
1. Controle de um território e da população que nele habita por parte de
um grupo armado irregular;
2. O caráter coativo desse controle;
3. O ânimo de lucro individual como motivação central;
4. Um discurso de legitimação referido à proteção dos moradores e à
instauração de uma ordem;
5. A participação ativa e reconhecida dos agentes do Estado.
26
O sequestro dos jornalistas aconteceu em 14 de maio de 2008. Os três profissionais tentavam
realizar uma reportagem sobre a atuação da milícia na região quando foram capturados pelos
criminosos e submetidos a horas de torturas físicas e psicológicas. 27
Os parlamentares são: Deputado Estadual Natalino José Guimarães (ex-DEM); vereador no Rio
de Janeiro, Jerônimo Guimarães Filho, “Jerominho” (PMDB); vereador, no Rio de Janeiro,
Josinaldo Francisco da Cruz, “Nadinho de Rio das Pedras” (DEM); vereador no Rio de Janeiro,
Andre Ferreira da Silva “Deco” (PR); vereador, São Gonçalo, Geiso Pereira Turques, “Geiso do
Castelo” (PDT); vereadora eleita pelo Rio de Janeiro, Carmen Glória Guinâncio Guimarães,
“Carminha Jerominho ” ou “Carminha Batgirl” (PTdoB); e vereador eleito Cristiano Girão Matias,
“Girão" (PMN).
45
Sobre o primeiro aspecto, pode-se afirmar, no que concerne ao controle do
território, as milícias possuem diretrizes bem próximas ao tráfico: o objetivo é
exercer o domínio em uma área, geralmente nas favelas, de maneira que a
autoridade passe a ser representada pelos criminosos, e não pelo Estado. Para tal
intento, são utilizados métodos de terror, e é neste sentido que acontece o caráter
coativo. O controle, obviamente, não é exercido de forma amigável, caso fosse
desta forma, seria acordo, e não domínio. Os moradores são obrigados, portanto, a
pagar uma taxa mensal para que os milicianos "protejam" a comunidade. Se não o
fazem, são ameaçados sutil ou diretamente. Podem ocorrem punições como
castigos corporais, tortura e até morte se os habitantes não concordarem com a
imposição.
É essencial lembrar que esta "proteção" é apenas uma desculpa torpe para
que os criminosos recebam dinheiro. Na prática, os moradores pagam a fim de não
sofrerem represálias dos próprios milicianos. Não é como se houvesse uma
ameaça e um grupo se oferecesse para ajudar. Embora as milícias tentem legitimar
sua atuação com base nesse discurso, afirmando que protegem as favelas do
tráfico, isto é uma falácia, pois o pagamento é apenas em benefício dos
criminosos.
E esta é a terceira característica importante sobre as quadrilhas: a
motivação maior é o lucro individual. Embora, no caso do tráfico, este também
seja um dos pontos principais, há outro fator que ajuda a compreender o porquê
dos jovens ingressarem na venda de drogas. O traficante representa uma imagem
de poder, e conta com símbolos importantes para tal: armas, mulheres e dinheiro.
Já se tratando das milícias, o motivo é mesmo a arrecadação de dinheiro e, para
isso, existe toda uma estrutura organizada para que o "negócio" funcione. As
formas de lucro, que começaram com a cobrança das taxas de "proteção",
rapidamente evoluíram para outros serviços. Nos espaços em que atuam, os
milicianos possuem o controle direto da venda de gás, água, TV a cabo e também
dominam o sistema de transporte alternativo (vans).
O discurso de legitimação definitivamente difere o tráfico de drogas da
milícia. Enquanto o primeiro não possui meios de justificar seu controle armado
nas favelas, já que por definição comercializar drogas é ilegal, o segundo constrói
46
um discurso no sentido de representar um "mal menor". Como foi visto, a
população do Rio acompanhou durante as décadas de 1980 e 90 o crescimento do
narcotráfico e o consequente domínio de criminosos em certas áreas. Devido às
diversas guerras entre facções e a violência com que os traficantes agiam, formou-
se, com razão, vale frisar, um sentimento de medo generalizado em relação aos
mesmos. Valendo-se desta condição, e do fato da cidade estar, no início da década
de 2000, sem nenhum projeto de segurança pública que estivesse realmente
funcionando, os milicianos conseguiram construir um discurso de legitimação de
sua presença, como se os mesmos estivessem promovendo a paz e a ordem nas
favelas.
Expressão de que os milicianos não eram vistos como criminosos foram
declarações concedidas por políticos em favor destes grupos armados. Em 2007, o
então prefeito do Rio César Maia as rotulou como “comitês de autodefesa
comunitários” e as classificou de “mal menor” se comparadas ao tráfico de
drogas.28
Já em 2006, o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes (que iniciava sua
carreira política na época), em entrevista ao RJ TV, telejornal da Rede Globo,
defendeu a atuação da milícia em face ao controle dos traficantes. Nessa época,
esses grupos ainda não eram conhecidos por essa denominação, mas sim por
"polícia mineira". Eduardo Paes afirma:
Eu vou dar um exemplo, que as pessoas sempre me perguntam como recuperar
essa soberania (do Estado). Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. É um bairro que a tal
da "polícia mineira", formada por policiais, por bombeiros, trouxe tranquilidade
para a população. O Morro São Jose do Operário, um dos mais violentos desse
estado, é agora um dos lugares mais tranquilos. Vila Sape, ali em Curicica. Ou
seja, com ação de inteligência, tem como fazer com que o Estado retome a
soberania nessas áreas. 29
É notório ressaltar, inclusive, a maneira com que o atual prefeito se refere
às milícias, "a tal da polícia mineira", demonstrando total falta de conhecimento
sobre as mesmas e suas respectivas ações que, já nessa época, eram violentas. Em
Rio das Pedras, por exemplo, comunidade localizada na Zona Oeste da cidade, a
28
Notícia disponível no portal O Globo, no seguinte endereço:
http://oglobo.globo.com/rio/milicias-avancam-pelo-corredor-do-pan-2007-4541223 29
Vídeo disponível no site YouTube, através do endereço
www.youtube.com/watch?v=nRBInXHeo8Y
47
milícia agia com truculência e terror desde os anos 90.
Além de produzirem esse discurso de legitimidade, que até Eduardo Paes
aceitou, os milicianos se diferem dos traficantes porque são, essencialmente,
membros (ou ex-membros) do Estado. O tráfico de drogas conta, claramente, com
a participação de atores que são agentes do Estado mas, majoritariamente, seus
participantes não ocupam nenhuma posição pública. Já no caso da milícia, são
policiais, bombeiros, militares e agentes penitenciários. Muitos destes atores
buscam, através do domínio que exercem como milicianos, ocupar cargos
públicos como vereadores ou deputados.
Enquanto que, ao receber o suborno de criminosos o policial tenta ao
máximo não ser reconhecido, no caso do miliciano o mesmo faz questão de ser
identificado como membro do Estado. Isto ajuda a formação da legitimidade da
presença do mesmo na favela, porque constrói a ideia de que a área está sendo
controlada não por uma quadrilha, mas sim por agentes estatais. Além disso, os
moradores ficam ainda mais desamparados no caso de quererem realizar uma
denúncia contra a milícia, já que não desejam reclamar da polícia para a própria
polícia. Por fim, o domínio destes criminosos também acaba não envolvendo
guerras ou trocas de tiros na favela, como era de praxe no controle do tráfico,
porque não haverá operações policiais onde um grupo de membros do Estado
esteja presente, mesmo que esta atuação seja completamente irregular.
Claramente, esta busca por identificação não exclui o fato de que muitas
atividades praticadas por milicianos acontecem de forma clandestina. Para o
morador, que está aterrorizado pela presença do grupo armado, o criminoso pode
até se declarar policial ou agente do Estado, mas para a sociedade de forma geral,
muitos preferem o anonimato. Principalmente nos dias de hoje, já que as ações das
milícias estão condenadas publicamente, seus membros costumam possuir ação
mais discreta. No início, longe dos holofotes, a tentativa de se afirmar como
Estado era mais frequente.
A origem deste fenômeno, que é consolidado e denominado de “milícia”
nos anos de 2005/06, repousa sobre diversos fatores. O primeiro que pode ser
apontado, já citado aqui, foi o contexto caótico em que estava a segurança pública
48
na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Com muitas favelas dominadas pelo
tráfico de drogas, pode-se até afirmar que, de início, houve uma tentativa genuína
de policiais tentando proteger os moradores destes criminosos. Entretanto, no
momento de se estruturar a organização desta alternativa, começou o viés
"empresarial" da iniciativa, e a partir desta mudança a formação de uma quadrilha
de crime organizado é configurada. O ânimo de lucro individual, através de
obrigar os habitantes de certo local a consumirem os serviços prestados pela
milícia, desvirtua qualquer tentativa de proteção sem interesses escusos.
Outro fator que pode ser apresentado como embrião do nascimento de
milícias foi a exploração de transporte alternativo, principalmente na Zona Oeste
do Rio. Esta área, carente de opções de qualidade para a locomoção, obteve um
grande crescimento do número de vans que realizavam ou trajetos onde não havia
ônibus ou prestavam um serviço de melhor eficácia, mais rápido, por exemplo.
Logo, trabalhar com transporte alternativo se tornou uma atividade muito lucrativa
na região, gerando a formação de grupos de interesse. Já com o serviço das vans
funcionando, muitos membros destas "panelinhas" decidiram realizar a exploração
de outros ramos, e iniciaram assim o controle de comunidades.
Ademais, a escolha pela segurança privada é uma opção que muitos
brasileiros e cariocas fazem desde os anos 1990. O medo de assaltos, sequestros e
outras sortes de crime é o que motiva esta busca. Com um Estado ainda tateante
em projetos que de fato ofereçam segurança pública de qualidade para a
população, esta parece ser uma alternativa razoável, dependendo do caso.
Entretanto, sem o desmerecimento daqueles que realizam este tipo de trabalho
com honestidade e competência, este também pode ser considerado um aspecto
gerador do fenômeno das milícias. Esta ideia de privatização da segurança
pública, que tanto já é percebido nas classes mais altas, parece ter chegado nas
camadas mais pobres. Porém, no primeiro caso, há uma escolha (simbolizada pela
assinatura de um contrato), não é compulsório pagar pelo serviço. Já na segunda
situação, as pessoas são obrigadas a contribuir monetariamente com a "proteção",
o que retira o rótulo de segurança privada, assegura a denominação em milícia e
resulta na submissão do território ao poder paralelo.
49
É importante também citar outro aspecto: a ação das milícias muito se
assemelha ao modus operandi de grupos paramilitares de extermínio que atuam
em diversas cidades brasileiras, principalmente em periferias. Dentro do estado do
Rio, por exemplo, seu principal foco de atividade é na Baixada Fluminense.
Como surgiram antes das milícias, podem ser consideradas, portanto, "embriões"
do que é hoje este grupo criminoso.
O número de comunidades controladas por milícias no estado do Rio, vale
frisar, não apenas na cidade, era de 171, no ano de 2008, segundo dados da
Subsecretaria de Inteligência. Na tabela abaixo, que está contida no Relatório da
CPI das milícias e também data de 2008, há um panorama de quem são os
membros destes grupos:
Gráfico 1: Quantitativo de Milicianos. O diagrama ilustra quem são os milicianos
É necessário ressaltar que um grande número de civis integram estas
quadrilhas. Estes podem ser os próprios moradores das favelas, que acabam
decidindo participar das milícias. Outra explicação é que ex-bombeiros ou
50
policiais também acabam fazendo parte do índice de civis, justificando seu
número elevado.
Majoritariamente, as milícias atuam em bairros da Zona Oeste do Rio,
como Campo Grande, Praça Seca e a área de Jacarepaguá, que abrange
localizações como Anil, Curicica, Gardênia Azul, Rio das Pedras e Tanque.
Segundo o que foi apurado pela CPI, a maioria das comunidades controladas por
estes grupos não possuía domínio de traficantes anterior à entrada das redes de
quadrilhas. Dos 171 lugares em que as milícias estavam presentes em 2008, ano
do Relatório, 119 não possuíam facções criminosas, o que representa 70%.
Como já foi comentado, o modus operandi da milícia não se diferencia do
tráfico em muitos aspectos. Há a presença de homens armados todo o tempo nas
áreas controladas e ocorre a intimidação daqueles que não querem colaborar, ou
seja, pagar a taxa de "proteção". Comerciantes que não concordam têm suas
mercadorias saqueadas e moradores são punidos com castigos corporais, torturas e
mortes. Tal como os traficantes, os corpos são colocados em cemitérios
clandestinos, a fim de tentar dificultar a atuação da policia.
Entretanto, como já foi visto, as milícias possuem um grau de organização
e sofisticação maior em relação ao tráfico. E neste ponto a penetração de agentes
do Estado é fundamental. Enquanto no tráfico, como atividade ilegal que é, não
há, pelo menos reconhecido publicamente, políticos envolvidos nas ações, a
milícia possui deputados e vereadores eleitos para, assim, perpetuarem seu
controle.
Há vários exemplos que corroboram a existência de currais eleitorais em
áreas de atuação de milicianos. A região de Campo Grande, na Zona Oeste do
Rio, é controlada por um grupo que se denomina "Liga da Justiça" (cujo símbolo,
aliás, é um morcego, tal como o Batman). Os políticos Jerônimo Guimarães, o
Jerominho, e Natalino Guimarães coordenavam a milícia na região nos anos 2000.
Atualmente, ambos estão presos em decorrência das investigações da CPI das
milícias. Entretanto, bem antes disso, nos anos de 2000 e 2004, Jeronimo foi
eleito vereador pelo PMDB, com 20.560 e 33.373 votos, respectivamente. Deste
último pleito, grande parte dos votos, 20.072, foram oriundos de apenas cinco
51
zonas eleitorais, todas situadas em Campo Grande.
Natalino Guimarães, irmão de Jerônimo, possui situação similar. Foi eleito
deputado estadual em 2006 pelo DEM com 49.405 votos, dos quais 27.474 foram
advindos também de apenas cinco seções eleitorais, todas na Zona Oeste. Estes
números não podem ser interpretados como mera coincidência. Além da
concentração anormal de votos, a informação de que ambos os políticos
coordenam uma milícia na região aponta para a formação de currais eleitorais
nestas áreas.
Prática comum no início do século no Brasil, no período conhecido como
República Velha, os currais eleitorais são caracterizados como um fenômeno
ocorrido nas áreas em que há coação por parte de determinado político em busca
de votos. Para assegurar sua eleição, esta figura, que, na época, era o "coronel",
intimida os moradores de certa região a votar no mesmo. Além das ameaças, é
comum haver "troca de favores" entre as partes. O político oferece dinheiro,
cargos, empregos, e a pessoa cede seu voto.
Tal como ocorria no período da República Velha, em que o lema dos
coronéis era "para os amigos pão, para os inimigos pau", os milicianos praticam
perseguição política contra aqueles que não colaboram com suas atividades.
Noticiado no relatório da CPI, um exemplo dessa situação aconteceu em 2004
quando um morador de Gardênia Azul, chamado Juvaldo Gomes de Oliveira,
conhecido como Chico Palavrão, foi morto com um tiro a mando do vereador
Cristiano Girão (PMN-RJ) já que se negou a colocar uma placa do candidato no
muro de sua casa. Sua mulher, sem contar com nenhum tipo de proteção policial,
se negou a depor e o caso foi arquivado.
As milícias surgiram no início dos anos 2000 e pode-se afirmar que
atuaram com certa discrição e contando com a leniência do poder público até o
ano de 2008, em que o episódio de tortura dos jornalistas e a subsequente CPI
instaurada conferiram muita visibilidade a estes grupos. A partir dessa exposição,
o governo do Rio implementou o Disque Milícia, em que as pessoas podem
telefonar, anonimamente, e denunciar as práticas criminosas destas quadrilhas. Os
órgãos de inteligência da polícia também passaram a adotar uma postura mais
52
combativa e muitos dos líderes milicianos, como Jerônimo Guimarães e Natalino
Guimarães foram presos.
Por fim, alguns outros “chefes” foram assassinados, em crimes com todas
as características de execuções. Por exemplo, em 2007, o inspetor da polícia Felix
Tostes, apontado como o líder da milícia em Rio das Pedras, foi alvejado com 30
tiros quando saia da casa de uma amiga na Barra da Tijuca. Já em 2009, o acusado
deste crime, o deputado Nadinho de Rio das Pedras, foi vítima de um atentado na
porta de casa. Ele chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu aos
ferimentos.
As ações de combate às milícias forçaram as mesmas a mudarem um
pouco seu perfil a partir de 2008. A pesquisa intitulada No Sapatinho: A Evolução
das Milícias no Rio de Janeiro (2008-2011), publicada em 2012 e escrita pelos
sociólogos Ignácio Cano e Thais Duarte, ambos do Laboratório de Análises da
Violência (LAV-UERJ), apresenta as novas tendências evolutivas destes grupos.
Segundo este documento, dois aspectos do modus operandi das milícias se
modificaram substancialmente neste período de 4 anos: o discurso de legitimação
e a participação de agentes públicos.
Se antes da exposição, havia a tentativa de construir uma fala que
justificasse o controle e a presença dos milicianos nas favelas, isto não ocorre
mais dado que a opinião pública condena qualquer tipo de defesa destes grupos.
Inclusive, a declaração concedida por Eduardo Paes em 2006 se tornou um
instrumento para que seus opositores políticos o criticassem bastante,
principalmente no período eleitoral. Na esteira deste processo de clamor popular
contra as milícias, vale destacar ainda o filme Tropa de Elite 2, dirigido por José
Padilha e lançado em 2010, que trouxe aos cinemas o modus operandi destas
quadrilhas. Portanto, em um cenário como esse, os discursos públicos de
legitimação foram abandonados, embora dentro das comunidades as milícias
ainda tentem justificar sua presença argumentando que realizam a manutenção da
ordem nas favelas. Vale frisar que há parcelas de moradores que sempre
concordam com as ações por elas praticadas.
53
Basicamente pelas mesmas razões, também não há mais uma participação
tão maciça de agentes públicos nestes grupos. Primeiramente, muitos foram
presos ou mortos em conflitos internos. Os que ainda fazem parte das milícias não
mais desejam terem seus nomes publicamente revelados, então realizam funções
não tão "expostas". A solução encontrada foi, portanto, cooptar civis para fazerem
as patrulhas e as vigilâncias dentro destas comunidades. Entretanto, não por acaso,
a saída de policiais dos postos de "segurança" ocasionou uma mudança nas
práticas milicianas, como atesta a passagem abaixo, extraída da pesquisa No
Sapatinho:
Nesse sentido, é interessante observar que as milícias talvez estejam se afastando
do modelo de domínio territorial exercido pelo trafico, baseado na ostensividade,
e evoluindo na direção do controle social aplicado pelos grupos de extermínio,
que não controla os acessos e intervém de forma discreta, embora extremamente
violenta.30
Por fim, é importante frisar que, apesar das ações da polícia no sentido de
investigar e prender os milicianos, estes continuam controlando diversas áreas da
cidade do Rio. Apenas uma, das trinta Unidades de Polícia Pacificadora já
instaladas no município, foi direcionada para uma favela que antes possuía
domínio de uma milícia. Não por uma mera coincidência, o local escolhido foi o
Jardim Batam, em Realengo, onde os jornalistas de O Dia foram torturados em
2008. É claro que o controle do trafico é aterrorizante e deve ser extinto, mas as
milícias exercem uma presença totalmente irregular também e igualmente
violenta. Ambos os casos se constituem como poderes paralelos.
É sempre necessário questionar quais são as diretrizes de determinada
política pública. No caso da relação milícias e UPPs, se nota que as ocupações
ainda não chegaram de forma ampla na Zona Oeste, em bairros como Campo
Grande e Jacarepaguá. A opção adotada até agora pelo governo de não
enfrentamento em áreas controladas por milicianos não é profícua. Tanto estes
grupos quanto as facções que realizam o tráfico de drogas são formas de crime
organizado, e devem ser tratadas com o mesmo rigor. Como foi visto, ambas
trazem inúmeras desvantagens para aqueles que vivem sob seu jugo. Pensar em
uma política pública eficaz perpassa pela compreensão de que a cidade do Rio
30
CANO, Ignácio, DUARTE, Thais (Coordenadores). No Sapatinho: A Evolução das Milícias no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, 2012.
54
ainda possui varias áreas controladas por facções criminosas, de características
diferentes, mas que em comum possuem o projeto de substituir a autoridade do
Estado Democrático de Direito nos espaços em que atuam.
2. A Importância das Políticas Públicas no Desenvolvimento da Qualidade de Vida nas Favelas Cariocas 2.1. Introdução: A Definição de Política Pública
A elaboração de um projeto governamental advém, geralmente, de uma
necessidade ou um problema em que uma parcela, ou até mesmo toda sociedade,
está imersa. As medidas que presidentes, governadores e prefeitos deliberam para
a população, junto, obviamente, do Congresso e da Câmara dos Deputados e
Vereadores, são intituladas de políticas públicas. Embora às vezes só atinjam
diretamente certo nicho de pessoas, se bem elaborados e executados os projetos
apresentam consequências para a sociedade como um todo.
Para que a medida seja realizada, primeiramente o problema deve ser
inserido na pauta. O fato de determinada demanda entrar na agenda
governamental e poder ser alvo de uma política pública depende de diversos
fatores, dentre os quais se pode destacar a urgência da questão, os índices ruins
apontados através de pesquisas ou estatísticas, uma comoção causada por alguma
situação em que o problema se tornou demasiadamente exposto, pressão
midiática, o fato do projeto fazer parte da plataforma de campanha de determinado
candidato ou, simplesmente, a tentativa de consolidar uma proposta que está
escrita na Constituição do país.
Dentre estes aspectos citados, vale frisar que grandes tragédias costumam
gerar questões de debate para a arena das políticas públicas. Um exemplo fora do
contexto de favelas, mas que expressa bem o processo, foi o episódio ocorrido na
escola Tasso da Silveira, em Realengo, Zona Oeste da cidade do Rio. No dia 7 de
abril de 2011, um ex-aluno do colégio, Wellington Menezes, entrou no local
atirando a esmo em estudantes dentro das salas de aula. Doze crianças foram
mortas e treze ficaram feridas na ocasião, e a tragédia só não possuiu
consequências ainda piores porque um dos alunos conseguiu avisar um policial,
que interrompeu a ação do atirador. A comoção causada pelo fato, e a busca por
culpados, produziu uma grande discussão sobre a segurança dentro das escolas, já
56
que Wellington entrou no lugar com uma arma de fogo sem problema algum.
Entretanto, até a presente data de realização dessa dissertação, nenhuma política
pública tinha sido elaborada no sentido de atender a essa demanda. Os pais das
vítimas ainda lutam e protestam por essa questão.
Apesar de, nessa situação, não ter surgido um projeto governamental, o
episódio acima retrata bem a entrada de determinada demanda na agenda pública.
A partir de uma tragédia, se começa a refletir sobre políticas públicas para o
assunto em pauta. Certamente, é ilusório pensar que todos os fatos envolvendo
mortes poderiam ser evitados através de ações governamentais, mas é também
profícuo compreender que um planejamento mais eficaz na agenda de políticas
públicas aumenta muito as chances de prevenção de algumas tragédias.
É importante destacar que, no Brasil, a imprensa exerce um papel muitas
vezes decisório na entrada de certo problema na agenda pública. É através dela
que vários debates e demandas ganham visibilidade. Inclusive, muitos meios de
comunicação acabam por se comportarem como verdadeiros “serviços de
utilidade pública”, como alguns veículos gostam de se autodenominarem. Isso, na
prática, significa que a população possui um canal aberto para denunciar
problemas, geralmente do seu próprio bairro, ou sugerir pautas, gerando um índice
de participação popular maior que pode até ser considerado positivo. Entretanto, a
outra face desse jornalismo visto como "serviço de utilidade pública" é a
transformação da mídia em uma espécie de quarto poder, como se a imprensa
possuísse os mesmos instrumentos do Estado no sentido de realização de
mudanças.
Parcelas da população brasileira estão convictas de que as chances da
elaboração de uma política pública são maiores se determinado problema
"aparecer no jornal", principalmente na televisão. E, a bem da realidade, o fato
dessa premissa ser verdadeira em muitas situações só expõe a fragilidade do
Estado brasileiro. No entanto, esse é outro debate, que não será abordado aqui. O
essencial é destacar a relevância que a mídia possui no momento de uma questão
entrar na agenda pública. Quando se trata de projetos na área de segurança
pública, a tendência é ainda maior, já que casos de violência costumam gerar
muita comoção popular e são também explorados exaustivamente por alguns
57
veículos de comunicação, o que aumenta a visibilidade dos mesmos.
No que concerne à responsabilidade pela elaboração das políticas públicas,
há três esferas de poder encarregadas pelas mesmas, a federal, a estadual e a
municipal. Cada uma deve desenvolver projetos de acordo com a sua alçada, ou
seja, existem políticas cujo alvo é a população como um todo, e, portanto,
responsabilidade do executivo, e outras, mais localizadas, que são de encargo dos
governadores ou prefeitos. O ideal é que haja uma articulação e uma integração
entre os projetos, pois ações isoladas, mesmo que bem elaboradas, podem se
perder e se esvaziarem caso não existam outras iniciativas que as acompanhem e
complementem.
Como foi visto, a história do desenvolvimento das favelas muito ensina
sobre essa questão. Os moradores dessas localidades pereceram durante muitas
décadas com medidas desordenadas das esferas federal, estadual e municipal.
Muitas vezes, eram aplicados ao mesmo tempo projetos que se contradiziam,
como iniciativas de remoção e urbanização ocorrendo simultaneamente. Em
outras ocasiões, o problema era a desorganização das ações. A falta de cooperação
entre as esferas de poder, em parte motivada pelas aspirações individuais de
políticos cujo norte é apenas garantir uma reeleição dificulta a perpetuação e a
eficácia das políticas públicas brasileiras.
E, na esteira dos problemas que muitas vezes impedem os projetos
governamentais de obterem os resultados desejados, claramente está a falta de
continuidade de certas iniciativas. O personalismo permanece um aspecto muito
forte na cultura política nacional. Então, é uma prática comum interromper uma
medida que estava obtendo resultados positivos, mas que pertencia à gestão
anterior, para a implementação de uma diretriz às vezes totalmente diferente.
Nestes casos, os mais prejudicados são os alvos da política pública, que, além de
eventualmente acabarem perdendo algum benefício, também passam a enxergar o
governo com desconfiança e incredulidade. Este sentimento, aliás, é o pior dos
conselheiros nas eleições, pois produz uma ideia de que nenhum dos candidatos é
competente, baseado na premissa de que "todo governo é igual".
58
Exemplos de falta de continuidade de políticas públicas não faltam. Se
atendo ao contexto das favelas cariocas, pode-se citar as dezenas de iniciativas de
urbanização, que ora asfaltavam uma rua, construíam uma praça, ora cessavam as
obras de acordo com o desejo do prefeito no poder. Não havia um investimento
constante no projeto. Mesmo se tratando das Unidades de Polícia Pacificadora,
medida iniciada em 2008 e que está em expansão na cidade, sem indícios de
interrupção, há sérias dúvidas por parte de moradores se as ocupações vão
continuar em 2016, depois da realização dos Jogos Olímpicos no Rio. Vale
lembrar também que esta política é anunciada sempre como o resultado da união
das esferas federal, estadual e municipal. O problema é que tanto a presidente
Dilma Rousseff (PT), quanto o governador Sergio Cabral (PMDB) e o prefeito
Eduardo Paes (PMDB) possuem uma aliança política, baseada na afinidade de
seus partidos. Portanto, é profícuo o questionamento do que acontecerá com as
UPPs se uma destas figuras deixe o poder. O futuro de determinada política
pública pode depender exclusivamente das aspirações individuais daqueles que
ocupam os cargos executivos, o que, obviamente, privilegia uma pessoa, e não o
que é mais interessante para a população como um todo.
Uma característica fundamental da política pública é o seu planejamento e
tempo de duração. Por exemplo, costumam ocorrer nas favelas, desde de que os
índices de violência nestes espaços cresceram, as chamadas "operações" da polícia
militar ou do BOPE. Estas incursões, com o objetivo de apreender drogas e
capturar criminosos, é um tipo de intervenção pontual dentro de um território, mas
não pode ser nomeado de política pública. É uma medida governamental, já que o
mesmo concede as ordens para que as operações aconteçam, mas não se espera
consequências a longo prazo destas ações, o foco é apenas resolver os problemas
do momento. Portanto, neste caso, pode-se afirmar que existe uma intervenção do
Estado, mas não que o mesmo gestou e está executando uma política pública
quando sobe as favelas com carros blindados.
Por fim, é necessário ressaltar que a política pública pode ser considerada
um dos tipos de contatos entre a população e o Estado. Embora nem sempre a
elaboração e execução das mesmas contenha a participação popular, é inegável
que um projeto governamental ao menos representa alguma forma de mediação,
59
de tentativa de resolução de problemas.
Robert Dahl postulava em sua obra clássica, Poliarquia: Participação e
Oposição, de 1972, que uma das características dos regimes democráticos é a
contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos.
Obviamente, se for levado em conta as diferentes sociedades que o mundo possui,
esse grau de intervenção e resposta do Estado para com a população pode variar
bastante, mesmo se forem considerados só os sistemas democráticos. No caso
específico das favelas cariocas, como com outros problemas sociais que o Brasil
possui, se percebe um Estado ainda muito omisso, em muitas situações incapaz de
solucionar com eficácia as questões. Este esvaziamento é claramente expresso
com a carência de políticas públicas eficientes para os moradores de comunidades
pobres, por exemplo. Entretanto, como lembrou Dahl, o regime democrático, por
definição, pressupõe responsividade do governo para com os cidadãos. E é
necessário compreender que a política pública é um instrumento essencial para
que a sociedade consiga caminhar na direção da resolução de suas mazelas.
2.2. A Participação Popular nas Políticas Públicas: Conscientização e Mobilização
É importante considerar que a esfera pública não pode ser constituída apenas
pelas instituições estatais, por mais que existam atividades de natureza exclusiva
do Estado, como é a segurança pública. As organizações da sociedade civil
contribuem para formar a parte não estatal do Estado e o auxiliam na formulação
de políticas e na sua fiscalização, para evitar abusos, corrupção, maus gastos e
potencializar seus efeitos através do diálogo. Evidentemente que não se faz aqui a
defesa da abertura de prerrogativas por parte dos agentes públicos, mas sim de
oferecer maior transparência de suas ações para aqueles que são a origem da
razão de ser dos entes públicos. Afinal, no Estado de Direito Democrático, o
poder emana do povo e o contrato social existe em função do bem comum.31
Preâmbulos Iniciais sobre a Questão:
Como o objetivo dessa dissertação é analisar as políticas públicas
(principalmente as UPPs) para favelas cariocas, enfocando a arena dos direitos,
faz-se necessária uma explicação sobre estas medidas. Após a definição do que é
um projeto governamental, levantam-se hipóteses de porque, no caso das
31
SANTOS, Rafael, SERAFIM, Luiz Carlos. Algumas Considerações Sobre Controle Social da
Segurança Pública na Perspectiva das Políticas Públicas em um Estado do Século XXI. Cadernos
de Segurança Pública, Ano 4, Número 3, Maio/2012.
60
comunidades no Rio, ao menos, não há uma inserção popular maior no curso das
políticas públicas. Claro que esta pergunta poderia ser estendida para qualquer
outra iniciativa visando uma diferente parcela da população, já que os projetos
governamentais (não importando sua natureza) devem estar sempre sendo
acompanhados pelo povo, não apenas dentro das favelas, mas é preciso se ater ao
foco da dissertação. Portanto, será discutido algumas elucubrações sobre a relação
do povo com o Estado, através do viés das políticas públicas.
Como já foi visto, as políticas públicas são medidas planejadas e
executadas pelo governo baseando-se, teoricamente, em anseios da população. No
entanto, vale frisar, podem haver muitas diferentes gradações de intervenção
popular durante este processo. Embora as pessoas sejam o foco e as beneficiadas
com determinado projeto, às vezes existem casos das mesmas serem escutadas
desde a gestação da política até a avaliação de impactos, e outras situações em que
não há consulta à população em nenhum momento. De que forma este cenário vai
ser composto e desenhado, dependerá, obviamente, de quem são os planejadores
da iniciativa, bem como quem é o alvo da mesma, também.
Não se pretende aqui de forma alguma generalizar esta questão, mesmo
porque uma consulta rápida à história mostrará que em vários momentos da
trajetória do país houve mobilização popular maciça em torno de determinados
assuntos32
, mas pode ser observada também a tendência de apatia do povo
brasileiro em face das políticas públicas e de problemáticas políticas de maneira
geral.
Vários cientistas sociais refletiram sobre esta questão. Por exemplo, na
obra A Cidadania Ativa, lançada em 1991, Maria Victoria Benevides elenca e
refuta diversos pressupostos aventados para explicar a apatia do povo brasileiro
em relação a questões políticas. A primeira destas premissas versa sobre um
suposto despreparo que a população possuiria no momento de opinar e participar
de um modo mais atuante em certas áreas. Criticando este argumento, a cientista
social afirma que os parlamentares e políticos em geral, antes de assumirem seus
32
Como exemplos mais recentes, pode-se citar o movimento Diretas Já, de 1983 e 1984, que
exigia o fim da ditadura e a restauração da democracia no país, e o Movimento dos Caras
Pintadas, de 1992, em que milhares de estudantes foram as ruas pedir o impeachment do então
presidente Fernando Collor, acusado de chefiar um esquema de corrupção.
61
cargos públicos, também eram membros da sociedade civil, portanto não há nada
garantindo que necessariamente eles sejam mais competentes do que o povo para
tomar decisões. Em outras palavras, a entrada de determinado indivíduo no poder
não o transforma, de uma hora para outra, em uma pessoa mais capacitada.
Obviamente, isto vai depender da trajetória e do acúmulo de experiências
políticas de cada um.
Além disso, de acordo com Benevides, se existe falta de informação,
combater este problema não seria uma tarefa tão complicada, e a mídia teria papel
fundamental neste processo de fornecer dados e notícias que ajudem a população
a formular sua opinião ou voto a respeito de determinado assunto. O problema
dessa afirmação é que é necessário também pensar em que tipo de imprensa existe
hoje no Brasil. Mesmo que os veículos de comunicação forneçam informações, é
sempre profícuo refletir se o que esta sendo passado e a forma como aquilo está
sendo transmitido são realmente confiáveis.
Então, em resumo, a crítica que Benevides está promovendo com este
argumento é sobre o abismo que tende a ser construído entre membros do governo
e a sociedade civil brasileira, sendo que a última é frequentemente caracterizada
como incompetente em face dos políticos. Essa ideia de imobilismo33
permeia
todo o imaginário popular nacional, que costuma depositar toda sua confiança
naqueles que estão no poder, como se os mesmos fossem supra capacitados.
O sociólogo francês Alexis de Tocqueville, em sua obra clássica A
Democracia na América, de 1835, já ressaltava a característica dos cidadãos
americanos em depositarem toda sua confiança àqueles que estão no poder,
enxergando o papel do Estado como órgão regulador. Embora Tocqueville postule
o associativismo como forma de interação entre o povo e o governo, é notável seu
discurso no sentido de sustentar que os indivíduos atribuem aos políticos a
habilidade de tomar decisões.
33
Enquanto eu redigia essa dissertação, em junho e julho de 2013, manifestações com diversas
bandeiras diferentes aconteciam em muitas cidades brasileiras e levavam milhares de pessoas às
ruas. Estes protestos foram encarados com bastante perplexidade por parte do governo, que parecia
não esperar que movimentos populares voltassem a acontecer no Brasil. É importante frisar que a
maioria das pessoas que foram às manifestações não pertencia a partidos políticos ou movimentos
sociais e a organização dos protestos aconteceu majoritariamente através de redes sociais, via
Internet.
62
Voltando às hipóteses aventadas por Benevides para explicar a falta de
participação do povo brasileiro no que concerne às questões políticas, outra
afirmação que a autora considera é o fato de que a população tende a estar mais
suscetível a pressões do poder econômico e de grupos mais organizados, no
sentido de se afastar da mobilização por causa destes tensionamentos. No entanto,
refutando a premissa, a cientista social argumenta que na esfera parlamentar os
lobbies ocorrem com maior frequência. Os políticos não estariam menos
suscetíveis do que o resto da população, muito pelo contrário. E ainda haveria um
agravante de que, na esfera parlamentar, esses acordos, quando feitos de maneira
escusa ou ilegal, tendem a ficar encobertos, enquanto na sociedade civil os grupos
que exercem pressão seriam mais facilmente identificados.
Por fim, vale analisar as considerações postuladas por Robert Dahl em
Poliarquia sobre mobilização popular. Nesta obra, o autor afirma que a psiquê
humana não impele invariavelmente as pessoas privadas de igualdade a buscar a
mesma. Diz ainda que se determinada população comparar sua situação com o
panorama passado, e o atual for melhor, tende a apreender a percepção que não
está mais em um estado de desigualdade. Argumenta também que um grupo
excluído pode compreender que sua situação é parte inerente da realidade, e,
portanto, manter baixas suas reivindicações.
Na mesma linha de pensamento, Edson Nunes argumenta em A Gramática
Política do Brasil, obra de 2003, que a situação de classe não necessariamente
leva à ação coletiva e ao conflito político. Nas palavras do autor:
No capitalismo moderno a ação concertada de indivíduos depende de vários
fatores, tais como a posição do grupo na matriz da estratificação social, acesso ao
uso de recursos políticos, grau de satisfação das necessidades econômicas,
arranjos dominantes para a agregação e intermediação de interesse, e assim por
diante.34
Estas hipóteses ajudam a iluminar uma questão importante: existem
diversos fatores, de diferentes naturezas, que explicam a falta de participação
popular na gestação e execução de políticas públicas no país. Os aspectos vão
variar de acordo com o caso estudado.
34
NUNES, Edson. A Gramática Política no Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.P.22.
63
Não se pode, por outro lado, responsabilizar somente a apatia da
população em algumas situações. Regimes fechados, por exemplo, não permitem
que haja contestação pública e, portanto, mobilização popular. No entanto,
considerando que o Brasil é uma democracia, há chances de participação por parte
do povo. Mesmo assim, o problema é que a relação entre o Estado e a população
ainda não possui estreitamento, diálogo e interação em vários casos. A análise da
situação das favelas cariocas trará um retrato interessante desta situação.
A Relação entre o Estado e os Moradores de Favelas:
Para se compreender melhor a eficácia ou o fracasso de políticas públicas
em determinado local, é necessário, primeiramente, entender como acontece a
relação entre o Estado e os principais afetados pelas medidas do governo que, no
caso das favelas cariocas, são os moradores destes locais. Na parte inicial deste
capítulo, foram elencados alguns pressupostos que tentam explicar a falta de
participação do povo brasileiro na arena política. Entretanto, é essencial discutir
como estas premissas se aplicam no caso específico que esta sendo trabalhado.
Como será visto com detalhes no próximo tópico, existem canais de
participação popular dentro da favela. Além das associações de moradores, há
organizações que mobilizam jovens em torno de certas questões, rádios
comunitárias, fóruns de debates, etc. Dado que também, no passado, houve
mobilização por parte dos habitantes em prol de melhorias e, principalmente,
contra as iniciativas de remoção, seria esperado que as políticas públicas
designadas para estas áreas contassem com uma participação ativa dos moradores.
Afinal, para a eficácia dos projetos governamentais, é imprescindível que tanto o
governo quanto a população caminhem na mesma direção, em uma relação de
confiança e diálogo.
No entanto, não é esse panorama que vem se desenhando nas últimas
décadas. Após muitos anos insistindo na política das remoções, cujo norte era
totalmente autoritário, o governo implementou outras iniciativas nas favelas, mas
que continuaram fazendo o mesmo movimento "de cima para baixo", ou seja, sem
contar com a participação e opinião das pessoas, que são as mais interessadas no
sucesso das políticas.
64
Um exemplo dessa situação é o projeto das UPPs. Como bem foi
ressaltado por Luiz Eduardo Soares35
, a ideia das ocupações nasceu não a partir do
perecimento dos moradores de favela sob o controle de criminosos, mas sim a
partir do desejo de empresários que queriam investir na cidade do Rio, agora mais
visada por causa da realização da Copa do Mundo, em 2014, e dos Jogos
Olímpicos, em 2016. Mas, com a situação de violência que o município
experimentava, tais investimentos seriam impossíveis. Então, foi a partir dessa
necessidade que as UPPs surgiram. A citação abaixo corrobora a motivação
empresarial do projeto:
Uma quarta singularidade da UPP refere-se ao amplo apoio que ela vem
recebendo do empresariado e que, na verdade, também está relacionado com o
apoio da grande mídia.O programa da UPP foi concebido e implementado em
meio ao processo de transformação do Rio de Janeiro em palco de grandes
eventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016,
e com isso o empresariado também vem ganhando maior protagonismo na gestão
da cidade. Nesse contexto, especialmente os setores do empresariado ligados à
economia do petróleo, ao capital imobiliário, e às indústrias do turismo,
comunicações e serviços em geral começam, gradualmente, a aderir à UPP,
enxergando nela uma oportunidade para aumentar o controle sobre territórios da
cidade até então entregues à lei do mais forte. Nesse caso, as favelas localizadas
no que convencionou chamar de cinturão olímpico, que inclui toda a Zona Sul e
parte das Zonas Norte e Oeste da cidade, têm despertado especial interesse, seja
por sua importância para a logística de eventos como a Copa e as Olimpíadas,
seja por seu apelo para o mercado imobiliário.36
Atualmente, há mais interação entre a população das favelas e os gestores
públicos responsáveis pelo projeto, mas, no início, não houve consulta alguma.
Muitos habitantes ainda não acreditam que a polícia vai permanecer nestes
espaços após 2016, o que expressa perfeitamente a falta de diálogo existente entre
o governo e os moradores das favelas, o seu público-alvo.
Portanto, é utópico pensar que, nos dias de hoje, as políticas públicas para
favelas estão contando com a participação dos moradores. Alguns aspectos
ajudarão a compreender e explicar melhor a questão.
Como Benevides postulou, há uma crença generalizada de que os
35
Esta fala aconteceu no Seminário Internacional Segurança Pública, Direito e Justiça, ocorrido na
Fundação Getúlio Vargas no dia 3 de outubro de 2012. 36
BURGOS, Marcelo, PEREIRA, Luiz, CAVALCANTI, Mariana, BRUM, Mario, AMOROSO,
Mauro. O Efeito UPP na Percepção dos Moradores de Favelas. In: Revista
Desigualdade&Diversidade, Nº 11 ago/dez 2012, P.55.
65
indivíduos que estão no poder são "mais competentes" para tomar decisões do que
a sociedade civil. Tal pensamento é muito disseminado no Brasil, até mesmo nas
camadas com nível cultural e educacional elevado, e nas favelas essa visão
também encontra ecos. Embora nem sempre essa ideia seja explicitada pelos
moradores (mesmo porque às vezes a percepção não é consciente), esse pode ser
considerado um fator influente para explicar porque a participação popular não
atinge níveis mais altos. O descrédito histórico que o governo depositou nessas
áreas e reservou aos seus habitantes produziu efeitos perversos, e a falta de
confiança que as pessoas têm na ação coletiva e em suas próprias atuações como
propulsores dos movimentos é reflexo disso. Não é apenas possuir dificuldade em
acreditar na participação popular, mas também em enxergar a sua própria
presença como um dos fatores preponderantes e essenciais para que a mobilização
aconteça. A consequência direta deste aspecto é que as pessoas passam a delegar a
responsabilidade das decisões que afetam suas vidas apenas para aqueles que
estão no poder, não considerando a importância das suas próprias ações.
Outra premissa que Benevides aventa também se relaciona com a situação
dos moradores de favelas. A autora afirma que há uma maior suscetibilidade por
parte da sociedade civil em ceder a pressões de grupos econômicos ou políticos.
Este pressuposto remonta a um tipo de prática que existe desde a década de 1940
nestes espaços. É o clientelismo, que não é caracterizado exatamente por ser um
lobbie, mas assim como este ultimo é uma distorção da forma como a relação
entre membros do governo e a população deveria acontecer.
De acordo com a definição de Edson Nunes (2003), clientelismo é a
relação estabelecida entre um patron- ator político que possui contato com o
mundo exterior e recursos econômicos externos- com um cliente, indivíduo que
necessita de alguma coisa. Essas trocas se assentam em critérios pessoais e não
universalistas e incluem promessas de retornos e garantias futuras.
Ainda segundo Nunes, o problema do sistema clientelista é o tipo de
relação que o mesmo acaba gerando entre a população e o Estado. Essa prática
substitui o lugar de canais universalistas de representação, além de fornecer um
mecanismo, mesmo que ilegal, para que o indivíduo consiga ter uma demanda
atendida sem ter que se sujeitar aos procedimentos padrões.
66
Dessa maneira, as relações sociais permanecem necessitando da
pessoalidade, e a hierarquização continua permeando a ligação entre o Estado e o
povo. Em suma, os brasileiros enalteceriam a autoridade pessoal e o uso do
“jeitinho” para conseguirem ter seus problemas resolvidos ou a fim de angariarem
alguma regalia.
Ainda de acordo com a análise de Nunes, a operação do clientelismo está
repousada em uma rede que envolve partidos políticos e burocracia, onde o uso do
aparelho estatal é fundamental para o bom funcionamento da mesma. Essa prática
se apoia diretamente na criação de empregos para aqueles que são da base
eleitoral do governo, bem como na promoção de privilégios para esses mesmos
indivíduos. É importante lembrar que, em uma sociedade patriarcal como a
brasileira, é comum que a rede de favores e benefícios se estenda também a
membros da família daqueles que estão na máquina estatal. Assim, o sistema
clientelista não fica restrito apenas aos que estão realmente no poder ou bem
próximo a ele, mas se expande aos parentes destas pessoas.
E, dentro das favelas, há diversos tipos de atividades clientelistas em
curso. Este sistema de trocas, como foi visto, não data dos dias atuais, mas sim da
década de 1940, desde a existência dos Parques Proletários. Um exemplo atual
desta prática em comunidades pobres é a criação, principalmente por parte de
vereadores, de bases eleitorais em determinados lugares, que podem ser o bairro
inteiro, uma região especifica, ou até mesmo uma rua. A fim de garantir votos, é
comum construírem nestes locais os chamados centros de assistência, que
costumam oferecer serviços médicos ou alguns cursos, como de informática ou
inglês. A iniciativa, aparentemente livre de intenções, revela sua face clientelista
quando “favores” especiais para certos moradores começam a ser feitos nestes
espaços. Os mesmos podem variar desde conseguir uma vaga na creche para o
filho de alguém até a garantia de realização de um exame em um hospital público,
por exemplo. Isto significa que o político, através de sua influência, atende aos
pedidos de determinados moradores e, em troca, fortalece sua base eleitoral na
área.
E essa não é a única situação em que a relação entre Estado e população,
que deveria estar assentada em bases universais e democráticas, é deturpada em
67
privilégio da consolidação de trocas políticas. É comum a presença, em favelas
cariocas, dos chamados "agentes de acesso governamental”37
. Estas figuras,
geralmente assessores de parlamentares ou outros funcionários do gabinete, são
“infiltrados” nestes espaços a fim de reconhecerem quais são as necessidades
prementes das comunidades. O objetivo da presença é tentar promover
determinadas melhorias na região. No entanto isso não ocorre através dos
mecanismos padrões, mas sim de acordo com as relações pessoais que o "acesso"
cria com os moradores. Na prática, o benefício não recai sobre a coletividade,
satisfazendo apenas necessidades particulares de determinados indivíduos. Mesmo
assim, o político garante prestígio e, mais importante, votos na área em que o seu
funcionário estava presente.
É importante pensar nas consequências que ambas as práticas - o
clientelismo e a figura dos “acessos”- trazem para a construção da relação entre o
Estado e os moradores de favelas. A principal delas é o fato de o direito se
transformar em um favor sob as mãos de políticos cujo interesse é apenas criar
bases eleitorais em áreas pobres. O governo possui obrigação em fornecer, de
forma isenta e igualitária, vagas em escolas, exames em hospitais e outros tipos de
procedimentos. Isto não deveria ser objeto de barganha, mas sim um direito
consolidado. Entretanto, a partir do momento que o mesmo não oferece (ou o faz
de maneira deficitária) estes serviços, deixa uma brecha para que práticas como o
clientelismo surjam e se perpetuem.
De acordo com Edson Nunes, o domínio público é formado justamente por
este universalismo de procedimentos, que é caracterizado pela habilidade do
Estado em prover serviços iguais para todos os membros de determinado lugar.
Embora apenas isto não garanta a democracia, já é um aspecto considerável para a
obtenção da mesma.
Ademais, este ciclo de assistencialismo observado e reproduzido tantas
vezes nas favelas cariocas pouco contribui para o avanço de uma relação de
confiança entre o Estado e o povo. À medida que a pessoalidade se torna a única
maneira de se garantir o acesso a determinados direitos, a crença em princípios
37
Termo cunhado pela professora e cientista social Karina Kuschnir no livro O Cotidiano da
Política, em que a autora analisa o modo de atuação de vereadores no subúrbio do Rio.
68
universais, públicos e democráticos diminui consideravelmente.
Canais de Representação Popular: Associações de Moradores e Outros Veículos
Apesar do clientelismo e suas variáveis se constituírem como práticas
comumente utilizadas nas favelas, obviamente não são o único tipo de mediação
existente entre o Estado e o povo. Como já foi visto, os moradores destes espaços
possuem um histórico de luta que data desde o início da política de remoções, na
década de 1950. A criação da União dos Trabalhadores Favelados (UTF), em
1954, e da Federação das Associações de Favelas da Guanabara (FAFEG), em
1963, expressam essa tentativa de organização de representações dos moradores
no sentido de promover um canal de diálogo e reivindicações junto ao governo.
Atualmente, a instituição que representa oficialmente a favela é a
associação de moradores. A primeira delas pode ser considerada a própria UTF
que, advinda da favela do Borel, na Tijuca, depois viria a se tornar a associação do
local. Para que uma entidade deste tipo exista, é necessário que treze habitantes
componham a instituição, e seu estatuto seja registrado em cartório, bem como
haja CNPJ no cadastro da Receita Federal.
Uma associação de moradores pode ser definida como uma entidade civil
sem fins lucrativos que visa expressar as demandas de determinado local. Não
necessariamente uma favela, pode ser um bairro ou até mesmo uma rua. Seu
objetivo é se constituir como uma representação organizada de moradores perante
autoridades, órgãos públicos, empresas e outras instituições. Pretende também
matizar as reivindicações dos habitantes e apresentá-las ao governo, bem como
atuar na luta por melhorias dentro da comunidade. Seu principal instrumento de
consulta popular são as assembleias, abertas à população. Através delas que
aconteceriam as discussões acerca de prioridades e tópicos a serem encaminhados.
Portanto, se constituem, teoricamente, como o principal canal de comunicação
entre os moradores de favelas e o poder público.
A trajetória das favelas foi marcada por a prestação de serviços de má
qualidade por parte do governo do Rio. A tabela abaixo, que data de 1991 e foi
feita com dados do IBGE e do IPLANRIO, mostra a disparidade de alguns
69
aspectos comparando as comunidades cariocas com outros bairros do município:
Gráfico 2: Indicadores de Qualidade Urbana, Rio de Janeiro, 1991
Claramente, esta pesquisa homogeiniza o conceito de “favela”e o
dicotomiza com o “asfalto”. No entanto, a investigação dos dados acima faz-se
pertinente. É notório frisar, por exemplo, a diferença nos indíces de esgoto
inadequado. Enquanto em outros bairros cariocas a média é de 8,90, nas favelas o
número sobre para 36,74.
Então, esta tabela oferece uma dimensão das demandas que as associações
de moradores eram (e são) encarregadas de levar ao poder público. As favelas
cariocas apresentavam muitos problemas desde o seu surgimento, já que não
houve obras de urbanização nestes espaços. Enquanto a densidade populacional
aumentava, o governo ainda discutia a possibilidade de remoções e deixava de
prestar com qualidade serviços básicos como água, luz e esgoto. Devido a este
fato, as associações possuíam uma agenda cheia de reivindicações.
Entretanto, nas décadas de 1980, 1990 e 2000 as associações passaram a
sofrer interferências constantes dos poderes paralelos que começaram a controlar
as favelas. Sejam traficantes ou milicianos, houve uma forte pressão por parte dos
criminosos para o esvaziamento destas entidades, a fim de evitar o diálogo dos
70
moradores com o governo. Exemplo desta prática está contido no relatório da CPI
das Milícias. Segundo o documento, dias antes das eleições de 2008, foi
encontrado na sede da associação dos moradores da Comunidade do Foice, em
Pedra de Guaratiba, propaganda eleitoral do candidato Jorge Babu (acusado de ser
miliciano), cartas assinadas por moradores, cópias de títulos de eleitor e
comprovantes de pagamento, apontando para a existência da formação de curral
eleitoral e compra de votos. Todas estas ilegalidades ocorrendo no local que
deveria representar os habitantes junto ao poder público, e não servir de espaço
para determinado candidato exercer práticas criminosas.
No entanto, este episódio ilustra com precisão o domínio que milicianos
passaram a exercer nas associações de moradores. Os presidentes das mesmas,
obviamente, só eram “eleitos” se possuíam conluio com a facção. E, no caso de
favelas controladas por traficantes, o modus operandi era o mesmo: não permitir
que alguém sem ligação com a quadrilha assumisse a presidência das entidades.
Desta forma, as associações foram perdendo o prestígio e a credibilidade
perante os moradores das comunidades. Se no passado eram enxergadas como
uma extensão do poder público, contando com grande apoio popular,
paulatinamente foram se esvaziando com a presença de milicianos ou traficantes.
Outro aspecto que prejudicou a representatividade das associações foi o
fato de muitos líderes ou presidentes acabarem por seguir carreira política,
enquanto dirigiam as mesmas ou após o fim do mandato. Para assegurar os votos
na eleição, se utilizaram de práticas clientelistas, prestando os já conhecidos
“favores” para os moradores de determinada região. Como a maioria possuía
infiltração no poder público, já que faziam parte das associações, conseguiam
empregos ou a realização de outros procedimentos com mais facilidade e rapidez
para os habitantes das favelas.
No entanto, atualmente, há um novo panorama e outras questões no que
concerne à atuação das associações de moradores nas favelas cariocas: nos locais
que receberam as Unidades de Polícia Pacificadora, não haveria mais razão das
entidades não serem o canal de representação oficial dos moradores perante o
poder público, já que não há mais o controle de traficantes ou de milicianos. No
71
entanto, o policiamento permanente trouxe consigo problemáticas, que
transformaram as atividades das associações.
Pode-se observar, por trabalhos de campo que tiveram como objetivo
avaliar os impactos das UPPs, uma visão negativa por parte dos líderes
comunitários sobre este projeto. Embora uma das possibilidades fosse um
encontro fortuito entre as instituições que estão de fora com aquelas que já
existiam dentro das favelas, não foi exatamente isto que ocorreu em um primeiro
momento. A desconfiança, tanto dos policiais, como dos representantes das
associações de moradores, criou uma tensão na relação de ambas as partes.
Ilustração deste conflito é um depoimento anônimo, cedido por um dos líderes
comunitários na Cidade de Deus, a uma pesquisa etnográfica realizada em agosto
e setembro de 2010 sob a coordenação da Secretária de Estado de Assistência
Social e Direitos Humanos. A fala abaixo data de 16 de agosto de 2010 e foi
colhida durante reunião da Associação de Moradores União Comunitária Cidade
de Deus (AMUNICOM):
Agora, todas as políticas públicas têm que passar pela UPP. Isso enfraqueceu
todas as lideranças comunitárias. Com quem a gente vai discutir? Com os
policiais da UPP, sabendo com quem que eles estão [refere-se a um possível
pacto com o crime organizado]? (...) Estão potencializando as instituições de fora,
e não as de dentro. (...) Com UPP, sem UPP, com chuva, com sol, é a gente que
está aqui. (...)38
Outro exemplo dessa indefinição de papéis é o episódio ocorrido no Morro
da Providência, logo após a entrada da UPP, e que também é noticiado na
pesquisa etnográfica de 2010. Embora singelo, é bastante significativo. O
pesquisador narra que um morador, ao ser perguntado pelo pesquisador onde era a
sede da UPP, apontou o local da associação dos moradores.
Mais um exemplo desta nova configuração de poderes é o fato de, em
2010 na comunidade do Batam, em Realengo, logo após a saída da milícia, o
presidente eleito da associação de moradores ser um policial do BOPE. Segundo
os moradores, a escolha foi feita por “aclamação popular”. E, provando mais uma
vez que os mecanismos de promoção à carreira política persistem no ideário dos
presidentes destas entidades, o tal policial era candidato a deputado estadual em
38
RAMOS, Silvia. UPP Social: Pesquisa Etnográfica Agosto/ Setembro-2010. Secretária de
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. P.26.
72
2010.
Vale frisar, mais uma vez, que todos os lugares que receberam as
ocupações possuíam, anteriormente, o poder representado na figura de criminosos.
As associações não eram uma voz ativa. Então, é compreensível que todas estas
questões surjam com a entrada da UPP. Os moradores parecem estar se
questionando quem é a autoridade atualmente nas favelas, se são as lideranças
comunitárias, que se veem fortalecidas novamente após a saída dos criminosos, ou
os policiais, em especial o capitão da UPP, enxergado como o detentor da ordem.
Todos os episódios citados oferecem um panorama dos desafios que estão
colocados para a construção da relação entre o poder dos policiais e a militância
dos líderes comunitários. Remontando aos objetivos oficiais da UPP está claro
que a proposta inicial é terminar o controle armado de territórios por parte de
grupos criminosos. No entanto, é ingênuo considerar que a entrada de um novo
ator social nas favelas não traria outras consequências e problemáticas.
E a indefinição de papéis não acontece só na visão dos moradores. Os
próprios policiais acabam por assumir funções que não eram de sua
responsabilidade. Segundo Fernanda Faustini, moradora do Pavão-Pavãozinho,
favela situada em Copacabana, o capitão da UPP, Major Senna, é “muito
eficiente”. A prova dessa competência, segundo a entrevistada, é o fato de o
policial ter fornecido o seu número pessoal de telefone para os habitantes da
comunidade “no caso de algum problema”. Embora o capitão de fato seja o
responsável pela ordem dentro dos espaços pacificados, certamente é, no mínimo,
inusitado que o mesmo se coloque como o responsável pela resolução de todos os
problemas na favela. Esta atribuição deveria também recair sobre o poder público,
na figura de governantes e parlamentares, não sobre um capitão da polícia.
Na esteira dessa discussão, é pertinente destacar o fragmento abaixo, de
autoria de Luiz Antônio Machado da Silva, contido no artigo Afinal, qual é a das
UPPs?, que data de 2010. No texto, o autor afirma sua preocupação com a
transferência de responsabilidade de mediação entre moradores de favelas e o
poder público:
73
Em resumo, a função de mediação político-administrativa entre as populações
moradoras dos territórios da pobreza e o mundo público, que representou a força
(e a fraqueza, pois esta posição é como um copo d’água, ao mesmo tempo meio
cheio e meio vazio) das associações de moradores tem sido esvaziada por uma
série de circunstâncias. Durante algum tempo ela pareceu fragmentar-se,
distribuindo-se entre diversas organizações, locais e supra-locais, públicas e
privadas. Mas vejo indicações – que lamento e temo – de que a função pode estar
se reunificando e passando a mãos insuspeitadas: as UPPs. 39
Dentro desta discussão sobre as atribuições das associações de moradores
em favelas com UPPs, é importante saber qual é o papel da mesma sob a visão de
quem está trabalhando na entidade. Segundo Alexandre Cesário, funcionário da
associação dos moradores do Pavão-Pavãozinho há seis meses, as funções da
organização são, basicamente, de prestação de serviços à comunidade. De acordo
com o entrevistado, que também é morador da favela, a associação realiza a
intermediação da compra e venda de imóveis no Pavão-Pavãozinho, além de
funcionar como a sede das correspondências dos habitantes, já que a maioria não
as recebe em casa. A ação de mediar as demandas da favela junto ao poder
público, que foi a principal razão para o nascimento destas instituições, foi citada
em terceiro lugar. Alexandre afirmou que se os moradores reclamam do lixo,
esgoto ou luz, a associação se encarrega de telefonar para a Light ou a Cedae.
Já sobre as assembleias de moradores, que teoricamente serviram como
fórum de debate e levantamento de questões prementes para a comunidade, as
mesmas seriam realizadas apenas trimestralmente ou semestralmente. Segundo
Alexandre, a adesão dos habitantes não é alta, o que esvazia bastante as discussões
e desmotiva a associação a promover novos encontros.
Esta percepção de Alexandre é comprovada no discurso dos próprios
moradores do Pavão-Pavãozinho. Em um grupo focal de uma pesquisa realizada
em 2011, uma moradora afirma:
O pessoal da comunidade é muito individualista. Nós tínhamos que ser mais
coletivos quando se trata de questões que são em prol de todo mundo. [Vários
concordam, dizendo “é verdade”.] Se marcam uma reunião, o morro tem mais de
cinco mil pessoas, e na reunião só vão cem, é muito mais difícil. Cada um só trata
39
SILVA, Luiz Antônio Machado. Afinal, qual é a das UPPs? Março/2010. Disponível online em:
www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br Acessado em 01/05/2013.
74
de si, a lei aqui do morro é assim, não existe nada coletivo.40
No entanto, as associações de moradores não se constituem, atualmente,
como o único canal de expressão das demandas dos moradores de favelas perante
o Estado. Como ações coletivas, pode-se destacar a existência de rádios e jornais
comunitários, além de uma sorte de diferentes Organizações Não-Governamentais
(ONGs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) que
atuam nestes espaços.
Como exemplo, há o depoimento de Gizele Martins, que tem 27 anos, é
jornalista e mora no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio. Quando
essa entrevista foi realizada, não havia ainda uma Unidade de Polícia Pacificadora
no local, então o controle das favelas era feito por traficantes. Mesmo sob essa
situação, Gizele afirma que há muitos canais na Maré para a participação popular.
A própria jornalista é responsável pela coordenação do periódico comunitário O
Cidadão, que circula na comunidade e tem por objetivo noticiar os fatos do
conjunto de favelas e também denunciar eventuais problemas do local. Segundo a
entrevistada, os moradores procuram o veículo para sugerir pautas ou reclamar de
alguma questão. De acordo com a opinião de Gizele, há canais para a participação
popular, talvez o que falte é uma maior adesão e motivação por parte das pessoas
em integrarem estes espaços.
Atualmente, a pluralidade de canais de participação retira da associação de
moradores a responsabilidade única de levar ao poder público as demandas de
determinada favelas. Se antes esta entidade era o único espaço “oficial”, o tempo
deu conta de modificar bastante esta visão e trazer novos atores para esta
dinâmica. A inserção popular continua sendo ferramenta importante para a
implementação e melhoria das políticas públicas, mas se nota uma tendência
acentuada de ações pontuais envolvendo a participação de moradores, não mais
práticas sazonais e coletivas, nas quais as reuniões de moradores eram o símbolo
mais forte.
Os anos de domínio de traficantes e milicianos parecem ter desacreditado
40
BURGOS, Marcelo, PEREIRA, Luiz, CAVALCANTI, Mariana, BRUM, Mario, AMOROSO,
Mauro. O Efeito UPP na Percepção dos Moradores de Favelas. In: Revista
Desigualdade&Diversidade, Nº 11 ago/dez 2012, P.60/61.
75
bastante as atividades das associações, que não mais contam com a confiança de
outrora. Entretanto, a permanência deste e de outros canais indica que uma
mediação, baseada na ação conjunta, entre os habitantes e o poder público, ainda
possui um papel e uma contribuição a ser realizada dentro das favelas.
2.3. As Políticas Públicas nas Favelas Cariocas
Toda política ou programa que tenha como alvo a favela é, de algum modo,
obrigada a levar em conta que, diferentemente dos territórios ordinários da
cidade, regulados por regras potencialmente universais, cada favela tem a sua
especificidade, definida por uma história que, apesar de conter muitos elementos
em comum com as demais, foi construída em um contexto caracterizado pela
informalidade, sob arranjos ecológicos próprios, que animam a construção de
representações sobre o lugar que, não por acaso, costumam hipervalorizar a sua
especificidade.41
Introdução:
Enquanto as favelas cariocas não apresentavam índices de violência
elevados ou o domínio de facções criminosas, as políticas públicas direcionadas
para estes locais versavam ou sobre a possibilidade de remoção ou de obras de
urbanização, que foram acontecendo de forma bastante lenta se for considerada a
trajetória das comunidades desde o início do século. Embora, há 100 anos, o
prefeito do Rio, Pereira Passos, as tachasse como um lugar de doenças, pestes e
marginalidade, não se poderia prever que as mesmas iriam ser consideradas um
problema de segurança pública, como viriam a ser identificadas muito depois. As
favelas só demandavam a atenção do poder público porque eram um conjunto de
casebres pobres em cima de morros, muitos localizados na Zona Sul da cidade,
perto da praia e de casas mais ricas e luxuosas. Portanto, algumas políticas
públicas contemplavam a questão da transferência das pessoas e outras, mais
inovadoras e escassas também, pregavam a chegada de serviços básicos, como
água, luz e esgoto para os moradores que viviam nestas áreas.
No entanto, à medida que a criminalidade cresceu, não só na cidade do
Rio, como em todo o país, a partir dos anos 1980, as favelas passaram a não ser
mais um item na agenda de projetos habitacionais, mas sim começaram a integrar
41
BURGOS, Marcelo, PEREIRA, Luiz, CAVALCANTI, Mariana, BRUM, Mario, AMOROSO,
Mauro. O Efeito UPP na Percepção dos Moradores de Favelas. In: Revista
Desigualdade&Diversidade, Nº 11 ago/dez 2012, P.59.
76
a pasta da segurança pública. Episódios de violência, como disputas entre
quadrilhas de traficantes, tiroteios entre criminosos e policiais, “arrastões” e
chacinas marcaram a história do município nos anos 1980, 1990 e 200042
. O
Brasil passou a acompanhar com atenção a situação das favelas, o que suscitou
projetos das esferas federal, estadual e municipal na tentativa de resolver o
problema da criminalidade, como será visto um pouco mais adiante.
Pode-se afirmar que a violência foi o principal aspecto de discussão (e do
noticiário da grande mídia) em torno das favelas a partir da década de 1980. Não
era para menos, pois esse cenário sui generis de controle armado de poderes
paralelos que acabaram por substituir o Estado em determinados territórios de fato
propõe um debate desafiador para a sociedade como um todo.
Todavia, nesse mesmo período houve também políticas públicas
objetivando a urbanização e a melhoria dos serviços prestados nas favelas. É
importante lembrar que as comunidades pereciam com a falta de esgoto tratado,
por exemplo, desde o seu surgimento. O crescimento dos índices de violência
trouxe uma problemática diferente para o debate público, mas não significa que os
outros aspectos precários haviam sido solucionados de alguma forma.
Destes projetos que visavam prover melhores condições de vida para os
moradores de favelas, se destaca a iniciativa do Favela-Bairro, de 1995, cuja
autoria é do mandato do prefeito César Maia. Esta medida promoveu ações como
o asfaltamento de ruas, a construção de quadras esportivas, praças e creches, a
manutenção de postes de luz e outros serviços urbanos em 149 comunidades
consideradas “médias”, ou seja, sem grande densidade populacional. O objetivo
do projeto não era impedir o crescimento das favelas, mas sim trazer serviços de
qualidade para os moradores que já lá estavam, distanciando-se das iniciativas de
remoção.
Apesar destas obras serem importantes, e mesmo essenciais para locais em
que, anteriormente, não possuíam muitos dos benefícios trazidos pelo Favela-
42
Pode citar como exemplos a Chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, em que 21 pessoas
foram mortas a esmo nesta favela ou o “arrastão” realizado por bandidos na Praia de Ipanema em
1992. Esta última prática consiste no roubo coletivo de pertences, que podem ser jóias, dinheiro ou
bolsas.
77
Bairro, é notório destacar que não houve mudanças no panorama de postos de
saúde existentes nas favelas, por exemplo. Isto sem citar a má qualidade de
hospitais e escolas na cidade do Rio de Janeiro, mas esse não é um problema
enfrentado exclusivamente pelos moradores destes territórios.
Entretanto, o Favela-Bairro transformou as favelas em canteiros de obras
sem modificar as estruturas daquilo que estava sendo urbanizado. Afinal, por
exemplo, apenas a construção de uma quadra esportiva não garante que as pessoas
ali desenvolverão seus dons esportivos. O local pode se tornar qualquer outra
coisa se não houver projetos que complementem a implementação da quadra na
favela.43
Além disso, muitas obras do Favela-Bairro ficaram incompletas e várias
remoções de moradores realizadas, ao fim e ao cabo, não resultaram em espaços
úteis para as comunidades contempladas com o projeto. Machado (2002) comenta
fatores que contribuíram para a eficácia reduzida do programa:
Essa duplicidade básica na formulação e apresentação do programa é decisiva
para tornar politicamente opaco o processo de escolha dos locais favorecidos e
para excluir os moradores e suas organizações desse nível fundamental do
processo de decisão. Os conflitos entre os diferentes órgãos envolvidos e a quase
absoluta falta de articulação funcional entre eles completam a opacidade (além,
obviamente, de encarecer e atrasar a implementação dos programas, reiterando a
necessidade de seleção e ordenamento temporal das favelas contempladas.)44
Salvo estas ressalvas, o saldo do Favela-Bairro foi positivo se for
considerado que, de fato, as favelas precisavam destas obras de urbanização.
Sozinhas estas iniciativas não são suficientes para resolverem todas as demandas,
mas possuem, indiscutivelmente, algum mérito.
Dentro desta seara de políticas públicas instauradas nas favelas em mais de
100 anos, algumas questões e projetos merecem destaque para análise. Abordarei,
a seguir, as ações das instituições policiais nestes espaços e sua interferência no
43
Outro exemplo recente de política pública que urbaniza, constrói, mas não modifica as estruturas
pode ser citado. Nos últimos anos, através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
diversas obras foram realizadas na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio. No entanto, um dos
campos de futebol construído, por exemplo, já se tornou local de consumo de crack. “Agora, a
cracolândia de Manguinhos estende-se por três campos de futebol (um deles construídos pelo
PAC) com viciados espalhados nas novíssimas calçadas que já ostentam o lixo e os entulhos
associados ao consumo do crack.” Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma
análise da transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs.
Publicação do Banco Mundial. 44
MACHADO, Luiz Antônio. A Continuidade do “Problema da favela”. In: Cidade: História e
Desafios. Lúcia Lippi Oliveira (Org). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. P. 232.
78
curso dos projetos governamentais, bem como na medida do GPAE, que pode ser
classificada como um embrião das UPPs. Por fim, será discutido o que são as
Unidades de Polícia Pacificadora, a concepção, a execução e os problemas
enfrentados por esta política até o momento.
As Favelas Vistas Como um Problema de Segurança Pública: A Atuação das Instituições Policiais Nestes Espaços
A discussão sobre as ações da polícia, do exército e do BOPE dentro das
favelas cariocas deve partir do pressuposto que tais práticas fazem parte de
políticas de segurança pública. Isoladamente, uma operação em que os membros
do BOPE sobem o morro com carros blindados, trocam tiros com bandidos,
matam pessoas (que podem ser criminosos ou inocentes) e apreendem drogas e
munição não é chamada de política pública. Como foi visto, para ser classificada
como política pública, é necessário que haja primeiro a entrada na pauta, depois o
planejamento, a execução e, por fim, a avaliação de impactos e consequências. No
caso destas operações, não há nenhuma destas etapas. No entanto, é fundamental
compreender que estas práticas estão inseridas dentro de uma filosofia de
confronto que norteia as políticas públicas voltadas para a área da segurança.
Constituem parte de uma estratégia que pretende, através do conflito armado,
solucionar todas as mazelas relacionadas à violência.
Ignácio Cano, no artigo Políticas de Segurança no Brasil: Tentativas de
Modernização e Democratização versus A Guerra Contra o Crime, que data de
2006, aponta como um dos fatores para o fracasso dos projetos governamentais
que objetivam resolver o problema da violência justamente esta opção pelo
modelo militarizado das instituições policiais. O autor postula:
(Enumerando como uma das razões do fracasso:) Insistência no modelo da guerra
como metáfora e como referência para as operações de segurança pública. Desse
modo, o objetivo continua sendo, em muitos casos, o aniquilamento do
“inimigo”, frequentemente sem reparar nos custos sociais. O problema de
segurança pública aparece às vezes como uma questão de calibre, como um nó
que será desatado quando o poder de fogo das polícias supere o do inimigo. Em
consequência, a segurança pública se apresenta fortemente militarizada em suas
estruturas, doutrinas, formação, estratégia e táticas. As operações de segurança
pública em áreas pobres se assemelham a operações de guerra em território
79
inimigo: ocupação, blitz etc.;45
Portanto, é complicado apostar em uma política de segurança pública cujo
fundamento é transformar um problema social em uma guerra. No caso das
favelas, mesmo com a polícia possuindo alto poder de fogo e letalidade em alguns
casos, não se garante que o crime vai se extinguir se muitos traficantes forem
mortos. Há outros fatores influenciando este processo. Como foi visto, há altas
taxas de rotatividade no tráfico de drogas. Portanto, o assassinato de criminosos
por si só não pressupõe que outras pessoas não vão ocupar os lugares daqueles
que foram mortos. Assim, apenas um sistema de substituição se opera, e nenhum
ganho para a melhora da segurança pública é atingido.
No Brasil, existem dois tipos de polícia em cada estado: a militar,
responsável pelo patrulhamento e manutenção da ordem, e a civil, cuja função é
investigar os crimes, se constituindo como um setor de inteligência. Há também o
Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), que foi criado em 1978, sob o
nome de Núcleo da Companhia de Operações Policiais, sendo rebatizado com a
denominação atual em 1991. O que diferencia esta instituição das demais é o fato
do treinamento para ingressar na corporação ser muito mais árduo, incluindo
testes como comer comida do chão ou passar noites em claro escutando teorias
sobre guerrilha. Muitos desistem ao longo do processo, mas os que resistem se
tornam popularmente conhecidos como “caveiras” (uma alusão ao símbolo do
BOPE) ou “homens de preto” (a cor do uniforme). Segundo o que o ex-policial do
BOPE Rodrigo Pimentel postula no livro Elite da Tropa, obra que data de 2006, a
companhia teria surgido não para enfrentar os desafios da segurança pública, mas
sim para ser uma “máquina de guerra”.
Então, pode-se afirmar que dois setores da polícia, a militar e o BOPE,
atuam diretamente coibindo crimes e patrulhando as favelas. Embora ambas
façam parte da mesma instituição, possuem modus operandi bastante distintos. A
Polícia Militar, como já foi comentado, comporta muitos membros que praticam
corrupção e conluio com criminosos que controlam as favelas. Não se pode
generalizar, obviamente, mas aqueles que integram o BOPE são menos suscetíveis
45
CANO, Ignácio. Políticas de Segurança Pública no Brasil: Tentativas de Modernização e
Democratização versus a Guerra Contra o Crime. Disponível online em www.sourjournal.com
P.141
80
a subornos e, quando realizam as operações nestes espaços, o fazem com alto
poder de fogo e de letalidade. Não é por acaso que só chegam às favelas em carros
blindados, popularmente chamados de “caveirões”. Já os policiais militares
costumam estar mais abertos a “negociações” ou diálogo. O BOPE, às vezes,
pratica torturas e pune pessoas de um modo que muito difere daquilo previsto nas
leis brasileiras. O episódio abaixo, retratado no livro Elite da Tropa, oferece uma
amostra da filosofia dos “homens de preto”:
À noite, por exemplo, não fazemos prisioneiros. Nas incursões noturnas, se
toparmos com vagabundo, ele vai pra vala. Sei que essa política não foi correta.
Agora não tem mais jeito. A gente mata ou morre. (...) A ordem de atirar para
matar, não admitindo rendição do bandido, acabou provocando um efeito
paradoxal: aumentou a resistência deles e a violência contra a polícia.46
No início do surgimento das favelas, não havia muita violência nestes
espaços, apenas crimes menores, mas não homicídios, roubos, torturas e
desaparecimentos, como se registra a partir da década de 1970. Portanto, a polícia
começa a atuar de modo mais ostensivo nas comunidades nesta época. Vale
lembrar também que o fato do Brasil estar sob o regime de uma ditadura militar
contribuiu significativamente para o aumento da violência e repressão policial nas
favelas.
Atualmente, com várias favelas contando com Unidades de Polícia
Pacificadora, o tipo de policiamento nas áreas que contam com as ocupações se
modificou, se aproximando mais de uma ideia comunitária do que fundamentada
em um ideal militarista. Entretanto, nas décadas de 1980, 1990 e 2000 e ainda nos
dias de hoje, mesmo que em menor número, as práticas da Polícia Militar e do
BOPE se constituíram como, de fato, as apostas para a melhoria dos índices de
violência nas favelas. É preciso detalhar as nuances destas iniciativas.
A situação de criminalidade que a cidade do Rio viveu nas três últimas
décadas exigiu algum tipo de resposta do poder público. Episódios de violência
aconteciam com frequência e canalizavam toda a atenção da sociedade e da mídia,
ambas pressionando o governo por projetos47
. A formulação de políticas de
segurança pública era uma obrigação, mas entretanto é necessário pensar qual o
46
SOARES, Luís Eduardo, BATISTA, André, PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2006.P.145 47
Como já foram citados os exemplos em nota anterior.
81
tipo de medida que foi adotada. Ignácio Cano comenta a questão:
No entanto, como já foi mencionado, a crise da segurança pública provocou uma
demanda social exigindo que os poderes públicos interviessem de maneira mais
ativa. No ano 2000, pouco depois do famoso incidente com o ônibus 174 no Rio
de Janeiro, o governo Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de
Segurança Pública. A coincidência de datas não é casual, reflete a tendência dos
poderes públicos de formular respostas imediatas a episódios de crises na
segurança pública, em vez de optar por uma abordagem planejada em função de
indicadores e dados globais.48
Como Cano postula, em determinadas ocasiões, o governo não instaura
uma política pública que conta com planejamento, organização de dados e que
objetiva resultados a longo prazo. Em detrimento deste tipo de iniciativa, são
realizadas ações pontuais, com consequências imediatas, que podem por vezes
acalmar uma população aterrorizada, mas que não possuem a capacidade de
solucionar de forma definitiva o problema em questão. Dentro deste norte de
pensamento, se encaixam as operações da Polícia Militar e do BOPE dentro das
favelas, que nada mais são do que uma “operação estanque”, ou seja, uma
vedação temporária. Não diminuem de forma alguma os altos índices de violência
nem terminam com o controle de poderes paralelos, porém costumam ser destaque
na mídia se atingem o “sucesso” de acordo com os parâmetros militaristas. Este
conceito é, portanto, medido apenas pelo número de mortos, drogas e munição
apreendidos.
Estas operações foram incentivadas de forma ampla pelo governo estadual
do Rio de Janeiro durante a década de 1990. Expressão disso é a criação, em
1995, no mandato do governador Marcello Alencar (1995-1999), da “Gratificação
Faroeste”. A mesma se constituía em um bônus em dinheiro que seria adicionado
ao salário de policiais que cometessem “atos de bravura”, ou seja, entrassem em
conflito armado com criminosos. A gratificação não obteve o efeito desejado, pelo
contrário, apenas estimulou muitas ocorrências de assassinatos sumários a serem
registradas como “autos de resistência”, quando há confronto entre policiais e
criminosos e os últimos são mortos. Um levantamento realizado pelo Instituto de
Estudos da Religião (ISER), intitulado Letalidade da Ação Policial no Rio,
48
CANO, Ignácio. Políticas de Segurança Pública no Brasil: Tentativas de Modernização e
Democratização versus a Guerra Contra o Crime. Disponível online em www.sourjournal.com
P.138/139.
82
comprovou que, desde que a bonificação foi instaurada, o número de mortos em
ações policiais dobrou no município, subindo de 16 para 36 por mês, e o índice de
letalidade aumentou de 1,7 para 3,5 mortos por ferido.
A partir da década de 1990, a ação da Polícia Militar e do BOPE no estado
do Rio ficou respaldada em autos de resistência, que cresceram absurdamente
neste período, expressando claramente a cultura do confronto armado pautando as
práticas da instituição. A tabela abaixo retrata a situação:
Gráfico 3: Civis mortos pela polícia (Autos de Resistência). Estado do Rio de Janeiro,
1997/2008.
Em 2007, o índice de autos de resistência chegou a 1330 ocorrências, o
mais alto em 11 anos. No mesmo ano, houve a realização dos Jogos Pan-
Americanos na cidade. A coincidência de datas não pode ser interpretada como
mero acaso. Em 2007, as operações policiais foram intensificadas na tentativa de
impedir que criminosos realizassem ataques durante o período da competição
esportiva. Vale lembrar que no final de dezembro de 2006 houve muitos episódios
de violência promovidos por traficantes. Na ocasião, ônibus foram incendiados,
delegacias metralhadas e um sentimento de pavor permeou o réveillon na cidade
do Rio. O saldo dos ataques foram 19 pessoas mortas - 9 civis, 2 policiais e 7
bandidos - e 22 feridos. Portanto, uma estratégia teve que ser instaurada para
83
evitar que a situação ocorresse novamente, principalmente no período da
realização dos Jogos Pan-Americanos.
Episódio que ilustra o alto poder de letalidade policial em 2007 foi uma
operação realizada em 28 de junho no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio.
Em apenas um dia, 19 pessoas foram mortas e outras 23 ficaram feridas. Cerca de
180.000 balas e 1.000 fuzis foram utilizados. Em 6 corpos, foram encontrados 8
perfurações de projeteis, o que deixa claro o intuito de revanche da operação. O
objetivo não era apenas assassinar, mas sim aniquilar um inimigo.
Na época, uma investigação encomendada pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos do Governo Federal e elaborada por três especialistas apontou
os seguintes dados sobre a operação no Complexo do Alemão:
• Não houve perícia do local, apesar de fotos publicadas em jornais
apresentarem a presença de populares e jornalistas.
• Todos os corpos chegaram despidos no Instituto Médico Legal.
• Não foram feitas radiografias nos corpos.
• Não foram coletados estojos (cápsulas das balas) no local.
• Não foram coletadas amostras de sangue das vítimas.
• Entre 14 vítimas havia um total de 25 projéteis na região posterior.
• Entre seis vítimas havia um total de 8 perfurações nos crânios e nas
faces.
• Cinco vítimas sofreram disparos à queima roupa.
• Houve uma média de 3,8 disparos por vítima.
• Duas execuções comprovadas pela trajetória das balas em vítimas que se
encontravam em posição decúbito dorsal, além de suspeitas de execuções em
outros casos.
O que está descrito nesta investigação aponta para as características do
modus operandi da Polícia Militar e do BOPE neste período na cidade do Rio.
Apesar de esse dossiê ter sido encomendado em razão do alto número de mortes
na operação do Alemão, certamente estas práticas não foram exclusivas da
ocasião.
84
Chama a atenção o fato de muitos mortos em confrontos com a polícia
serem assassinados de modo sumário, embora a mesma aja por vezes no sentido
de tentar camuflar estas execuções. As estratégias variam. Uma delas é quando,
após o acidente armado, as vítimas, já mortas, são levadas direto para o hospital,
desfazendo então a cena do crime e inviabilizando a perícia. Outra maneira
encontrada é, mesmo com as evidências médico-legais apontando para uma
execução, os policiais tentarem simular um conflito, colocando inclusive uma
arma na mão da vítima. Dessa forma, o caso seria considerado não como um
homicídio sumário, mas sim como os já citados autos de resistência.
Portanto, há fortes evidências de que as atividades da Polícia Militar e do
BOPE dentro das favelas cariocas se caracterizam por acentuar uma filosofia de
confronto, baseada em um ideal militarista e na metáfora de guerra. Tais ações são
justificadas pelo poder público através da exposição de índices de letalidade, que
comprovam a existência de mortes, mas não de melhora na segurança. Em 2009,
quando as operações ainda eram muito frequentes, e havia apenas uma UPP na
cidade, o mandato do deputado Marcelo Freixo preparou um dossiê com
denúncias de abusos policiais, intitulado de Os Muros nas Favelas e a
Criminalização da Pobreza. Tal documento foi entregue na época ao
representante para Assuntos Brasileiros na Anistia Internacional no Brasil, o
inglês Tim Cahill. Uma das análises que o texto propõe é exatamente a crítica a
que esse tópico realiza:
As incursões da polícia nas comunidades e, em sua decorrência, os casos
emblemáticos de extermínio, são o resultado mais cruel de uma política de
segurança pública baseada na lógica da criminalização da pobreza e do confronto
permanente. Operações policiais no interior de comunidades pobres do Rio de
Janeiro provocam medo e terror; impedem crianças e jovens de frequentar a
escola e moradores de sair para trabalhar; além de inviabilizarem o
funcionamento dos postos de saúde. Esse tem sido o padrão “pacificador” da
política de segurança pública em comunidades pobres do Rio de Janeiro: a
mobilização de um grande aparato com um elevado saldo de mortos, sempre
apresentados como “traficantes”. A polícia desse estado insiste em utilizar como
critério de eficiência o alto índice de letalidade policial, respaldada pelos autos de
resistência.49
É essencial ressaltar que ações, tanto da Polícia Militar quanto do BOPE,
49
FREIXO, Marcelo (Mandato). Os Muros na Favela e o Processo de Criminalização da Pobreza.
Maio de 2009. Disponível online em: www.brazilink.org/tiki-download_file.php?fileId=177 P.14
85
possuem um mérito50
, mas devem ser pensadas e planejadas de outra forma.
Enquanto a lógica do conflito guia a presença destas instituições, não há avanço
nas políticas de segurança pública. Historicamente, a relação de moradores e
policiais já é bastante conturbada e marcada por desconfianças mútuas. A visão
que classifica pessoas, sejam elas criminosas ou não, em “elementos suspeitos”
não leva a lugar algum. As incursões da Polícia Militar e do BOPE como
estratégia de segurança pública se mostram ineficazes na medida em que se
constituem como práticas pontuais, que não objetivam consequências a longo
prazo ou qualquer tipo de mudança nas antigas bases em que as políticas sobre a
violência estão assentadas.
O Projeto do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) e Suas Diretrizes:
O GPAE foi um projeto implementado pelo governo estadual do Rio, no
mandato de Anthony Garotinho (1999-2002), em sete favelas: Pavão-Pavãozinho,
em Copacabana, no ano de 2000, Morro da Formiga, na Tijuca, Vila Cruzeiro, na
Penha, Providência, no Centro, Rio das Pedras, em Jacarepaguá, e Cavalão e
Estado, em Niterói, todos em 2002. A política previa a instalação de unidades
policiais que realizariam um patrulhamento constante nas comunidades, em uma
tentativa de construir uma nova relação entre moradores e policiais. A estratégia
se distanciava, portanto, das operações militaristas da PM e do BOPE e buscava se
apoiar mais na ideia de uma polícia comunitária, próxima dos habitantes.
A experiência piloto aconteceu no Pavão-Pavãozinho e só dois anos
depois, após alguns episódios de violência ocorridos nas outras comunidades, o
GPAE foi instalado nestes espaços. Por exemplo, no Morro da Formiga, o conflito
entre facções de traficantes de drogas motivou a instauração na medida. Na Vila
Cruzeiro, o assassinato do repórter Tim Lopes, da Rede Globo, enquanto o
mesmo investigava a venda de drogas em bailes funk na comunidade. Por fim, o
GPAE chegou a Niterói quando moradores do Morro do Cavalão fecharam o túnel
que liga Icaraí a São Francisco, ambos bairros nobres da cidade, protestando
50
A interferência da polícia ou do BOPE em conflitos entre facções rivais de traficantes, embora
desastrosa às vezes, não pode ser tachada sempre de ineficiente. As operações nas favelas que não
surtem efeitos a longo prazo, não são consideradas política de segurança pública, mas podem
prestar auxílio em casos específicos. Vale frisar que as mesmas devem ser cuidadosamente
planejadas, na tentativa de não envolver civis em tiroteios e eventuais conflitos.
86
contra a morte de um habitante do local.
O objetivo do GPAE, assim como o das UPPs, era impedir que houvesse
controle armado por parte de criminosos dentro das áreas contempladas pela
medida. Em nenhum momento, o governo falou em extinguir o tráfico de drogas,
mas sim reduzir a ocorrência de crimes contra a vida. O patrulhamento constante
impediria que os traficantes ostentassem armas e também inseriria novamente a
figura do Estado nas favelas. Ademais, a imagem da polícia como uma instituição
violenta e truculenta seria substituída por outra ideia, que colocava os membros da
corporação mais próximos dos moradores, quebrando estereótipos e favorecendo a
abertura de uma relação de confiança entre ambos.
Este projeto começou em 2000, na favela do Pavão-Pavãozinho, e é neste
espaço que é considerado o modelo, pois foi onde as diretrizes de policiamento
comunitário foram implementadas com maior vigor. A fim de análise (já que essa
dissertação pretende discutir apenas brevemente a ideia do GPAE) serão
considerados apenas os impactos observados nesta favela específica, que também
foi o local da realização do trabalho de campo utilizado nesta dissertação.
Por um lado, o GPAE do Pavão-Pavãozinho obteve sucesso no que
concerne ao fim dos tiroteios e confrontos entre facções rivais de traficantes e/ou
conflitos com policiais. As pesquisadoras cariocas Elizabete Albernaz, Haydée
Caruso e Luciane Patrício fizeram um balanço da experiência desta política no
artigo intitulado Tensões e Desafios de um Policiamento Comunitário em Favelas
do Rio de Janeiro, que data de 2006. Para resumir as consequências do projeto no
PP (Pavão-Pavãozinho), as autoras postulam:
Mesmo admitindo a existência (agora circunscrita a alguns dos “territórios” da
favela) do comércio ilegal de drogas, a experiência do GPAE revela que, na visão
da população local, o principal indicador de “sucesso” do grupamento seria o fim
dos tiroteios, diminuindo sensivelmente a letalidade das disputas, e não
propriamente o fim do tráfico, como tradicionalmente preconizado e enunciado
nas políticas de segurança pública destinadas às favelas. 51
51
ALBERNAZ, E.R.; CARUSO, H.; PATRÍCIO, L. Tensões e desafios de um policiamento
comunitário em favelas do Rio de Janeiro: o caso do Grupo de Policiamento em Áreas Especiais.
São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21,
n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2007. Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.P.
10
87
Para Alexandre Cesário, morador do Pavão-Pavãozinho e funcionário da
Associação de Moradores do local, o principal ponto positivo da medida era a
intolerância com o desvio de conduta por parte de policiais. Segundo ele, “quem
fugia da norma, logo saia”, mostrando a importância de haver setores, dentro da
própria polícia, que se responsabilizem por apurar as denúncias de corrupção e
afastar aqueles que não agem em conformidade com a lei. A fala do habitante é
corroborada pelos índices: só no primeiro ano de GPAE no PP, 70% do efetivo
original dos grupamentos foi transferido por razões disciplinares (ALBERNAZ;
CARUSO; PATRICIO, 2006).
Outro aspecto notório da atuação dos policiais na comunidade, e que
também será observado na prática das UPPs, é que os mesmos acabaram por se
tornar mediadores entre os moradores do lugar e o poder público. De acordo com
uma das autoras do artigo supracitado, Luciane Patrício, as pessoas procuravam a
unidade do GPAE em busca de resolução para casos de violência doméstica ou
brigas entre vizinhos, além de também recorrerem à mesma em situação de
emergência médica ou pedindo para os policiais acionarem os serviços públicos
como água e luz. Portanto, as atribuições dos grupamentos extrapolaram
totalmente as diretrizes iniciais, que os responsabilizava apenas por terminar os
conflitos armados. A população substituiu a figura do solucionador de problemas,
que recaia sobre o traficante, pela imagem do policial.
E este fato, mais uma vez, pode ser compreendido através da escassez da
presença do Estado e de instituições públicas dentro das favelas. Não há uma
cultura consolidada de procurar os órgãos que, de acordo com o que diz a lei,
devem resolver os problemas, conflitos e demandas das pessoas. Por exemplo,
historicamente, a prática de ir até a delegacia e realizar um boletim de ocorrência
foi substituída pela atitude de procurar o traficante para o mesmo cuidar da
questão. Obviamente, vale frisar que o próprio criminoso impunha este tipo de
comportamento, mas, na ausência do traficante, os moradores reproduzem a ação,
indo até os policiais, milicianos ou as associações.52
Ademais, o projeto do GPAE só previa reduzir os índices de letalidade,
52
Esta questão será investigada e problematizada mais adiante, no capítulo 3 que versa
especificamente sobre direitos.
88
mas não trouxe consigo melhorias no acesso a direitos como escolas, postos de
saúde ou opções de cultura ou diversão. É claro que há mérito em extinguir os
tiroteios, mas é preciso compreender que as favelas precisavam - e precisam - de
outros serviços públicos. Estes não foram considerados no momento da
constituição da política pública, que mais uma vez enxergava estes espaços apenas
como áreas que necessitavam de segurança e que, portanto, era de alçada da
polícia solucionar a questão.
No entanto, a aposta em uma polícia de proximidade, que também é a ideia
das UPPs, denota um avanço, se for considerado os fundamentos de guerra com
que a PM e o BOPE agem caso lhes seja requerido. Apesar de o maior obstáculo
encontrado pelo projeto ter sido o estabelecimento de uma relação de confiança
com os moradores (ABERNAZ; CARUSO; PATRICIO, 2006), é positivo o relato
de que os habitantes foram ouvidos ao denunciarem os policiais e os mesmos
foram afastados. Isto demonstra que há caminhos para a mudança do modus
operandi da instituição.
O problema do projeto do GPAE foi, sem dúvida, a falta de continuidade
do mesmo. Nas favelas em que os resultados mais satisfatórios foram
encontrados, o Pavão-Pavãozinho e o Morro do Cavalão, em Niterói, após dois
anos as unidades policiais foram retiradas. O fim do programa não possui uma
relação direta com o término do mandato de Anthony Garotinho em 2002, mas
sim com as denúncias de corrupção policial e com o fato de que o GPAE não
extinguia o tráfico de drogas nas favelas, apenas o controle armado. Pode-se
afirmar também que, diferentemente das UPPs, que contam com amplo suporte de
instituições privadas e da sociedade carioca de maneira geral, o GPAE não recebia
apoio, não era enxergado como a política pública que encerraria a violência na
cidade.
Esta interrupção, sumária e abrupta, do projeto, já que os moradores não
possuíam a expectativa de que os policiais saíram das favelas, representa de
maneira bastante simbólica a situação das políticas públicas, nesta época, no Rio:
os projetos eram formulados e executados com pouco ou nenhum planejamento,
buscando apenas responder a demandas imediatas. A falta de acompanhamento e
avaliação dos impactos do GPAE certamente minou o programa, que não obteve
89
continuidade.
Logo após a saída da corporação, como era de se imaginar, o tráfico voltou
a controlar os espaços contemplados com o programa. Isto aponta para uma
questão grave. Se em todo o tempo de execução da política pública, a tentativa era
de se construir uma relação de confiança entre os moradores das comunidades e o
governo, esta ideia rui quando a iniciativa é interrompida. O imaginário popular
volta a ser povoado com as lembranças de abandono que o poder público sempre
reservou às favelas. A remoção das unidades policiais traz novamente à tona, na
visão dos moradores, a ineficiência das políticas promovidas pelo governo.
Mesmo que, a fim de análise, a implementação da polícia comunitária e do projeto
do GPAE denote um avanço do ponto de vista ideológico, as pessoas que moram
nas favelas e na cidade como um todo estão mais preocupadas com a elaboração
de medidas que, de forma permanente e definitiva, solucionem os índices de
violência do local. A saída dos policiais em nada contribuiu para esta premissa.
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs): Fundamentos, Impactos e Investigações Preliminares.
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são a mais recente aposta do
governo estadual do Rio para dirimir o problema da violência e do controle
armado de facções criminosas em favelas cariocas. A primeira ocupação
aconteceu na favela Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio, em dezembro de
2008 durante o mandato do governador Sérgio Cabral, que permanece no poder
em seu segundo mandato. No entanto, a instalação do projeto na comunidade
aconteceu sem alarde, como uma experiência piloto. A existência das UPPs só foi
mesmo oficializada pelo poder público no dia 21 de janeiro de 2009, através de
um decreto. No dia seguinte, outro documento foi publicado ditando R$500,000
de gratificação para todos os policiais lotados nas unidades.
Até a presente data (agosto de 2013), haviam 30 UPPs instaladas na
cidade, algumas em comunidades na Zona Sul, mas também na Zona Oeste e
Norte, nesta última região mais concentradas no entorno do bairro da Tijuca.53
53
Lista completa de favelas com UPP no Rio (até agosto de 2013): Andaraí, Batan, Borel, Chapéu
Mangueira/Babilônia, Cidade de Deus, Complexo da Penha, Complexo do Alemão, Complexo do
Caju, Escondidinho/Prazeres, Fallet/Fogueteiro/Coroa, Formmiga, Jacarezinho, Macacos,
90
Vale frisar que as UPPs abrangem 30 favelas, mas 153 comunidades, já que cada
favela costuma possuir várias comunidades menores em seu território. Do total
dos locais contemplados com a medida, todos eram dominados por traficantes,
sendo que o único lugar que foge dessa regra é o Jardim Batam, em Realengo,
justamente onde os jornalistas do períodico O Dia foram torturados54
. Por
enquanto, ainda há pouco enfrentamento ao controle exercido pelas milícias que,
segundo dados de 2006, ainda atuam em 55 favelas cariocas.55
Há quatro etapas necessárias para a instalação de uma unidade de polícia
pacificadora em determinado local. Primeiramente, o BOPE faz uma operação na
favela a fim de retomar o território e expulsar ou prender os integrantes de grupos
amados que anteriormente controlavam o espaço. Vale frisar que, no início do
projeto, esta etapa acontecia sem aviso prévio. No entanto, devido aos conflitos
violentos observados entre as quadrilhas e os policiais, resultando em grande
número de vítimas, atualmente estas incursões são anunciadas com antecedência.
Após a operação do BOPE, acontece o período de “estabilização” e a favela
continua sendo patrulhada por essa corporação durante certo tempo. A terceira
etapa, a ocupação propriamente dita, só ocorre quando a unidade da UPP é
inaugurada e a comunidade passa para a responsabilidade da “polícia de
proximidade”. Por fim, há um “choque de ordem” na favela, uma prática que
busca combater algumas formas de informalidades encontradas no local, como
habitações precárias ou a ação de camelôs.56
O objetivo inicial dessa política pública, assim como do GPAE, foi
extinguir o domínio territorial que as quadrilhas exerciam e encerrar confrontos
armados. Embora a primeira UPP date do final de 2008, apenas dois anos depois
um decreto oficial trouxe a público as metas da iniciativa. Em janeiro de 2011, o
artigo 1 deste documento diz que os objetivos centrais da medida são:
Mangueira/Tuiuti, Manguinhos, Pavâo-Pavãozinho/Cantagalo, Providência, Rocinha, Salgueiro,
Santa Marta, São Carlos, São João, Tabajaras/Cabritos, Turano, e Vidigal. 54
Ver nota de rodapé número 14. 55
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a
dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
P.129 56
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a
dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
P.37.
91
a. Consolidar o controle estatal sobre comunidades sob forte influência da
criminalidade ostensivamente armada;
b. Devolver à população local a paz e a tranquilidade públicas
necessárias ao exercício da cidadania plena que garanta o desenvolvimento tanto
social quanto econômico.57
O fim do tráfico de drogas não é um dos objetivos das UPPs. A venda de
narcóticos continua acontecendo, mesmo que de modo camuflado, nas favelas
contempladas pelo projeto. Em uma pesquisa etnográfica realizada em 2010 pela
Secretária de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos em 10 favelas58
com as ocupações, um depoimento recorrente de moradores afirma que o tráfico
de drogas permanece acontecendo nas favelas com UPPs, mesmo que em menor
quantidade. O diretor da FAETEC da comunidade Babilônia-Chapéu Mangueira,
no Leme, identificado no levantamento apenas como Ivan, retrata os problemas
que o projeto resolveu, e os aspectos que ainda estão pendentes:
Eu vivi todos 'os antes'. A questão de antes é que a comunidade vivia só sob uma
pressão do tráfico. Com a chegada da UPP as armas saíram. A gente não pode
dizer que o tráfico saiu, porque ainda tem uns resquícios. Mas saíram as armas,
que era o grande medo do morador. Porque a arma era o elemento ameaçador.
(...) O tráfico, na verdade, continua de uma maneira mais escondida. 59
Mesmo sem encerrar a venda de narcóticos, a inserção (ou reinserção) do
Estado nos espaços ocupados também se constitui como uma das metas do
projeto. No começo, isso aconteceria apenas através da presença permanente da
polícia. Em um momento posterior, outros serviços chegariam, através, inclusive,
de um dos braços da UPP, a UPP Social, projeto que está sendo desenvolvido e
cujos detalhes serão vistos mais adiante.
É importante lembrar que as favelas, tanto as controladas por traficantes
quanto aquelas sob o domínio de milicianos, possuíam um alto grau de
informalidade nas suas atividades, porque a regulação do Estado era um elemento
57
CANO, Ignácio (organizador). Os Donos do Morro: Uma avaliação exploratória dos impactos
das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro. Maio de 2012. Disponível em:
http://www.lav.uerj.br/docs/rel/2012/RelatUPP.pd 58
São as favelas Santa Marta, em Botafogo, Cidade de Deus, em Jacarepaguá, Babilônia- Chapéu
Mangueira, no Leme, Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, Tabajaras/Cabritos, na Lagoa, Jardim
Batam, em Realengo, Borel e Formiga, na Tijuca, Providência, no Centro, e Complexo do
Andaraí, em Andaraí. 59
RAMOS, Silvia. UPP Social: Pesquisa Etnográfica Agosto/ Setembro-2010. Secretária de
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos.P.54.
92
raramente presente. Então, existiam muitas ligações ilegais de luz, TV a cabo (o
conhecido “gatonet”), Internet ou comércios sem o devido registro legal. A
presença das unidades policiais traz não apenas a segurança, mas também uma
promessa tanto de melhorias de serviços como de formalização.
Nesta pesquisa realizada em 2010, foi demonstrado que, no que concerne à
conta de luz, por exemplo, foram criadas tarifas sociais que se adaptariam à renda
dos moradores. Entretanto, a Light, companhia fornecedora de energia na cidade
do Rio, autorizou esta medida especial apenas nos primeiros meses, até as pessoas
se acostumarem e começarem a poupar luz.
Pode-se afirmar que a Light foi uma das maiores beneficiarias do processo
de pacificação. Antes da entrada da polícia, 90% da energia fornecida no morro
Santa Marta, por exemplo, era ilegal. Agora o panorama é o contrário: tanto nesta
favela como no Chapéu Mangueira, no Leme, a estimativa é que 90% do consumo
já esteja regularizado.60
Entretanto, esta mudança causou descontentamento entre vários
moradores, principalmente entre os donos do comércio, que viram suas despesas
aumentarem consideravelmente após o início da cobrança. Na etnografia realizada
na favela Santa Marta, é relatado o depoimento de um dono de uma padaria na
comunidade que reclamava de ter que pagar R$600,000 naquele mês de consumo
de energia. Esta conta era inexistente enquanto os traficantes estavam no local.
Obviamente, qualquer transformação de um hábito cotidiano trará algum
tipo de transtorno. E esta problemática da legalização das atividades nas favelas é
um dos aspectos que mais gera discussão e polêmica. Há moradores que
concordam com o processo, pois veem no mesmo um caminho para a inserção
cidadã, e outros que enxergam na normatização uma maneira do Estado exercer
um controle desfavorável no cotidiano dos moradores.
Um depoimento do músico MC Fiel, conhecida liderança de movimentos
sociais no Morro Santa Marta, expressa uma das facetas do debate sobre a
60
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a
dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
P.97.
93
chegada de direitos nas favelas ocupadas. Segundo o artista, que concedeu esta
entrevista ao filme 5X Pacificação61
, “lei não pode haver né, que prejudica os
moradores”. Na fala, Fiel afirmava sua preocupação em que a legalização das
práticas trouxesse despesas com as quais os habitantes não poderiam arcar.
Este ponto, claramente, é legítimo. A normatização de luz, água, gás e
outros benefícios como Internet e TV a cabo podem gerar o fenômeno de
“remoção branca” nas comunidades com UPPs, ou seja, paulatinamente os
moradores vão deixando estes locais porque não possuem mais condições
financeiras para pagarem suas contas.62
Entretanto, é necessário ressaltar que a
inserção do Estado nestes espaços carrega consigo dois aspectos: a chegada de
direitos e a obrigação do dever. No entanto, como será analisado mais adiante,
esta questão é bastante complicada, já que trata-se de favelas, espaços cujas
trajetórias sociais diferem totalmente de outros lugares da cidade.
Por outro lado, muitos moradores apoiam as medidas governamentais que
promovem a entrada ou melhoria dos serviços básicos dentro das comunidades.
Do ponto de vista dos servidores públicos, que trabalham em escolas ou postos de
saúde, houve uma mudança positiva com a implementação das UPPs. O
fragmento abaixo, retirado da pesquisa etnográfica realizada em 2010, mostra
quais aspectos, no Posto de Saúde Hamilton Land, localizado na Cidade de Deus,
apresentaram melhora com a chegada das unidades policiais:
Aumento da acessibilidade ao Posto e da continuidade dos
tratamentos: Houve aumento significativo na procura de ex-
viciados em drogas por diversos tratamentos. (...) Não acontecem
mais assaltos ao posto (antes da pacificação, eram frequentes
invasões do posto durante a noite para o roubo de medicamentos) e
“as famílias aceitam o tratamento, (...) [o paciente] ou a própria
mãe vem ao Posto e pega o remédio”.
Aumento na demanda por consultas, especialmente na faixa etária
61
Filme brasileiro de 2012, dirigido por Cadu Barcellos, Luciano Vidigal e Wagner Novais, que
busca analisar os impactos das UPPs sob a visão de moradores das favelas, policiais, estudiosos e a
sociedade carioca de maneira geral. 62
Este tópico será melhor analisado no capítulo 3, que versa sobre direitos. Afinal, o chamado
“direito à cidade”, que pode ser minado através do processo de “remoção branca”, é um dos mais
importantes aspectos da vida dos cidadãos.
94
até 1 ano de idade. Para tanto, foi necessário reestruturar “todo o
RH” do posto médico: “toda a equipe mudou, eram funcionários
[públicos] viciados63
”. Foi preciso, inclusive, que as enfermeiras
começassem a realizar consultas.
Realização de palestras de promoção da saúde: hoje o Posto possui
efetivo suficiente para realizar este tipo de evento.
Aumento da segurança do Posto: em dias de vacinação, por
exemplo, a UPP fica na porta da unidade para resolver eventuais
confusões.
Preservação da equipe médica: nas palavras de Dr. Max, “não
preciso mais me expor, pois é a UPP que leva as crianças ao
Conselho Tutelar, (...) é como uma [espécie] de 'polícia social'”.64
Portanto, pode-se afirmar que a presença dos policiais, como um novo ator
social dentro das favelas, traz impactos que vão muito além da garantia de
segurança pública e término dos confrontos armados. As UPPs lidam diretamente
com a questão dos direitos de acesso e do dever também.
Outra problemática que começou a surgir a partir da implementação do
projeto foi a polêmica sobre os bailes funks. Mais uma vez, a ocorrência desse
dilema expressa que há um conflito ideológico acontecendo no que concerne à
definição de normatização. Os bailes funks são uma tradicional manifestação
cultural nas favelas cariocas, e uma das festas mais famosas e disputadas das
comunidades. No entanto, a partir da entrada dos policiais, aquilo que era
espontâneo, ou seja, informalizado, passou a contar com regras como horários,
dias para a realização e controle do volume da música. Claramente, estas
mudanças não agradaram a todos os habitantes.
O debate é inaugurado, primeiramente, por uma premissa importante.
Existe uma já histórica criminalização da música funk no Rio de Janeiro, que não
data apenas dos dias de hoje. Embora este gênero musical seja considerado cultura
63
“Viciados” aqui é expressão empregada no sentido de dizer que os funcionários públicos
estavam acostumados com práticas antigas, ruins. Não se relaciona de forma alguma com o vício
em drogas. 64
RAMOS, Silvia. UPP Social: Pesquisa Etnográfica Agosto/ Setembro-2010. Secretária de
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. P.27.
95
desde 2009, por um projeto de lei proposto pelo deputado estadual Marcelo Freixo
(PSOL), assim não é encarado por muitas pessoas, que enxergam em suas letras
ofensas e apologias ao crime.65
Algumas, de fato, seguem esta diretriz, mas não se
pode afirmar que todo o gênero é assim. Então, apenas o funk, por si só, já é alvo
de preconceitos. As festas que promovem apenas a execução desse gênero,
também.
O trecho abaixo retrata a importância dos bailes para os jovens da favela
Santa Marta, por exemplo:
A cultura dos bailes funk possui uma importância fundamental para a juventude,
como pude constatar por meio dos relatos. Os bailes e festas no morro são os
principais modos de lazer e um espaço crucial de afirmação da identidade. Há
poucas outras opções de lazer para a juventude na favela e uma proporção
elevada não procura frequentar eventos culturais fora da favela. Segundo o relato
dos jovens, o preconceito é um fator determinante da não procura por alternativas
de lazer no asfalto. As incursões a eventos no asfalto, como shows na praia,
geralmente são feitas em grupos grandes.66
Então, é essencial pensar quais são as opções de lazer, principalmente dos
jovens, caso os bailes funk sejam proibidos ou restringidos pelos policiais. Não
apenas se tratando desta situação específica da festa, é necessário promover
alternativas para todos os aspectos que, no passado, eram informais e agora estão
sendo legalizados. O processo não pode ser efetivado de maneira autoritária,
truculenta e sem diálogo com os moradores. Através de negociações e da
consolidação de acordos que favoreçam ambas as partes, as soluções são
possíveis.
No Pavão-Pavãozinho, por exemplo, uma associação de comerciantes foi
estabelecida após a chegada da UPP, uma iniciativa inédita na comunidade.
Segundo a presidente da instituição e também moradora do PP, Fernanda
65
Vale frisar que várias letras de funk tratam de conflitos armados entre traficantes de drogas ou
incursões da polícia nas favelas. Diz o Rap das Armas, de Cidinho e Doca: Mas se for Alemão
(expressão sinônima de “inimigo”) eu não deixo pra amanhã/Acabo com o safado dou-lhe um tiro
de pazã (tipo de arma)/ Porque esses Alemão são tudo safado/ Vem de garrucha velha dá dois tiro
e sai voado/ E se não for de revolver eu quebro na porrada/E finalizo o rap detonando de
granada. Se as letras são de fato ofensivas ou se apenas narram acontecimentos cotidianos não é
um debate que será abordado aqui, mas é questão bastante polêmica nas favelas. De um lado, os
policiais enxergam o funk como apologia ao crime, do outro, jovens o defendem como expressão
cultural. 66
RAMOS, Silvia. UPP Social: Pesquisa Etnográfica Agosto/ Setembro-2010. Secretária de
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. P.13.
96
Faustino, há um novo contexto de legalidade se constituindo com a volta da
presença do Estado neste espaço. De acordo com ela, houve a necessidade dos
habitantes se organizarem no sentido de lidarem com as demandas que a
formalização dos estabelecimentos impõe. Fernanda também afirmou que a ajuda
do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae) foi
importante porque a entidade auxiliou o registro do CNPJ e do alvará de
funcionamento das “biroscas”, que antes estavam em situação ilegal perante às
leis.
Além do problema dos bailes funk, outra questão bastante polêmica que
envolve a atuação dos policiais lotados nas UPPs é o comportamento dos mesmos.
Segundo os moradores, há revistas irregulares, abusos de autoridade e outras
práticas violentas acontecendo nas favelas ocupadas. Deise Carvalho, moradora
do Cantagalo, comunidade localizada ao lado do Pavão-Pavãozinho em
Copacabana, apresentou alguns destes casos no Seminário Favela é Cidade, que
aconteceu no Morro Santa Marta em 26 e 27 de novembro de 2012. De acordo
com ela, os policiais torturam pessoas que julgam serem bandidos, na própria sede
da UPP. Deise afirmou inclusive que já havia presenciado tais cenas. A moradora
disse também que os policiais interrogam os habitantes do Cantagalo com a
seguinte frase: “Você quer ser tratado como cidadão ou favelado?”. Os relatos de
Deise dão conta ainda de denúncias de policiais recebendo propina de criminosos,
prendendo moradores injustamente por desacato e retirando a identificação do
uniforme quando querem “fazer atrocidade” com alguém.
Os depoimentos abaixo, extraídos da pesquisa etnográfica já supracitada
de 2010, corroboram os fatos citados por Deise. Estas são algumas falas de
moradores da comunidade Babilônia-Chapéu Mangueira no que concerne à
atuação dos policiais da UPP nesta área:
“Os policiais esculacham com a gente; nem querem saber, já vão
logo revistando”; (morador)
“Às vezes, eles ameaçam colocar 'algo' em nossa posse para nos
acusar”; (morador)
“Tem vezes que eles já bateram; até em senhora idosa...”;
(morador)
97
“A mudança é muito boa, mas tem as patrulhas que a gente não
gosta, porque não são confiáveis”; (morador)
“Tem policial que acha que é xerife aqui...”; (morador)
“A gente até esteve envolvido com o movimento; mas saiu...
pedimos uma oportunidade aos [profissionais], mas eles só nos
esculacharam” (morador)67
Então, é notável o fato de que as práticas dos policiais das UPPs ainda
precisam ser melhoradas. Entretanto, como já foi visto, durante muitas décadas o
modus operandi da PM foi calcado na truculência e no autoritarismo, e ações
deste tipo ainda não foram extintas, continuando a acontecer em vários lugares do
Rio. Embora os policiais das UPPs sejam, preferencialmente, escolhidos com base
no critério do tempo em que estão formados (ou seja, os recém-saídos já iriam
direto para as unidades, para evitar a construção de vícios), é ingênuo acreditar
que só isso seja suficiente. Para ingressar no projeto, os policiais passam também
por um treinamento especial, mas que na verdade são apenas algumas horas a
mais de curso de direitos humanos. Não há garantias que estes dois aspectos
alterem toda uma cultura policial que está extremamente arraigada nas bases da
corporação.
A UPP traz consigo muitas expectativas, e há esperanças de muitos setores
da sociedade (desde os próprios moradores das favelas até as camadas mais ricas)
que o projeto seja capaz de resolver todas as problemáticas envolvendo a
violência. No entanto, tal premissa é impossível. Uma política pública por si só
não vai conseguir solucionar todas as questões. Ações integradas e
complementares são bem-vindas no sentido de oferecer uma contribuição. É
também notório lembrar que a UPP é uma medida nova, que ainda sofre ajustes.
Luiz Antônio Machado da Silva comenta este aspecto no fragmento abaixo:
O que sustenta o entusiasmo acrítico com as UPPs é a esperança de uma cidade
calma e serena, que é o outro lado do medo do vizinho que há décadas nos assola
a todos. Infelizmente, esta expectativa é um mito inatingível que pode por a
perder a própria experiência das UPPs. Estas, na vida real, constituem a expressão
de uma política pública muito recente que ainda carrega o peso de sua própria
origem e, como qualquer nova iniciativa, precisa ser acompanhada, criticada e
67
RAMOS, Silvia. UPP Social: Pesquisa Etnográfica Agosto/ Setembro-2010. Secretária de
Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. P.54.
98
orientada para se estabilizar como uma forma de intervenção pública
democrática, eficiente e eficaz.68
Em relação à redução dos índices de criminalidade, principal bandeira das
UPPs, o projeto de fato apresenta o mérito de ter conseguido diminuir a violência
letal nas favelas ocupadas, bem como o número de autos de resistência, ou seja, as
mortes em confrontos com policiais.
No entanto, outros tipos de delitos, como estupros, ameaças e lesões
corporais obtiveram aumento significativo após a implementação das UPPs.
Crimes contra propriedades, os furtos, também cresceram. Este fato pode ser
explicado através de dois aspectos. O primeiro é que, enquanto grupos armados
controlavam as favelas, as pessoas eram impedidas de registrarem os delitos na
delegacia e fazer com que os mesmos passassem a contar nas estatísticas. Então, é
natural que anteriormente o número fosse mais baixo. A outra razão é que, tanto
os milicianos quanto os traficantes exerciam - e exercem - um domínio brutal
sobre os moradores, e qualquer tipo de transgressão à ordem era punido com
torturas ou mortes. Portanto, sem a égide do medo imposta por estas facções, a
incidência de outros crimes está aumentando (CANO, 2012).
A tranquilidade que a UPP está oferecendo nas comunidades ocupadas é,
inegavelmente, o principal ponto positivo do projeto. O psicólogo Ives Rocha tem
27 anos e é pesquisador do Centro de Promoção à Saúde (CEDAPS), atuando em
projetos tanto em favelas contempladas com as unidades policiais pacificadoras
como em locais cujo controle ainda pertence a grupos armados. Mesmo como um
ator externo, pois é morador de Duque de Caxias, Ives trabalha nestes espaços há
4 anos. De acordo com ele, as UPPs não são suficientes para resolverem todos os
problemas, mas há mérito na política pública. O depoimento abaixo retrata sua
percepção:
A principal diferença está nas ruas. De fato, os locais estão mais tranquilos,
menos hostis, é perceptível no semblante dos moradores e, principalmente, das
lideranças comunitárias. Dona Márcia, do Morro dos Macacos, me disse sexta
passada (23 de novembro de 2012) “tem 2 anos que eu não enterro ninguém da
minha comunidade [assassinado ou em decorrência de confronto armado]”. A
comunidade está pacificada há 2 anos, exatamente, e ela atribui essa
68
MACHADO, Luiz Antônio. Afinal, qual é a das UPPs? Março/2010. Disponível online em:
www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br Acessado em 01/05/2013.P. 1.
99
estancamento de mortes à pacificação. É óbvio que ela está exagerando e, se você
conversar com outros moradores, eles te dirão muitos casos de abuso policial,
mas essa vivência é dominante. A pacificação acabou com uma série de
problemas.
Ives relatou ainda em entrevista concedida a mim, que para realizar os
projetos Mapeamento Digital de Riscos Socioambientais Guiado pela Juventude e
o Confio no Meu Rio em favelas não pacificadas é preciso comunicar a traficantes
ou milicianos- mediação que não é feita por ele, mas sim por lideranças locais.
Segundo o pesquisador, são tiradas muitas fotos nas comunidades para ajudar no
mapeamento, o que poderia ser mal interpretado por grupos armados. Embora Ives
acredite que esse “aviso” aconteça mais por precaução do que por necessidade, é
uma cautela com a qual ele não lida quando trabalha em favelas com UPPs.
Um dos pontos essenciais a ser ressaltado nesta dissertação é o fato de,
claramente, as percepções em torno dos impactos das UPPs variarem bastante de
acordo com o ator que está sendo escutado. Além das diferenças significativas
entre as vozes daqueles que estão fora e dentro das favelas, nas próprias
comunidades pacificadas as opiniões contrastam. É preciso também levar em
consideração que cada favela possui um histórico particular – algumas sofreram
mais com conflitos entre facções rivais de traficantes de drogas, outras foram alvo
constante de operações policiais violentas - e, portanto, a visão dos moradores
sobre a UPP é influenciada bastante por estas memórias.
Por fim, é importante frisar mais uma vez que as Unidades de Polícia
Pacificadora são uma iniciativa recente, e cujos impactos ainda estão sendo
analisados. Aqueles que podem ser identificados a curto prazo, já são visíveis para
o trabalho dos pesquisadores. Entretanto, o futuro do projeto ainda é incerto, se
for considerado que não está claro até quando os efetivos policiais estarão
presentes nas favelas. É complicado pensar na possibilidade de que permanecerão
por tempo indeterminado. Os moradores destes locais não são bárbaros para terem
que contar com uma vigilância diuturna e que dure eternamente.
Vale ponderar também que muitas favelas ainda perecem sob o controle de
grupos armados, e é pertinente questionar até quando. O estado do Rio não possui
efetivo policial suficiente para ocupar todas as 800 favelas na cidade. O futuro
destes lugares permanece uma incógnita.
100
UPP Social:
Como foi visto, as Unidades de Polícia Pacificadora possuem como
objetivo apenas garantir que a ordem seja estabelecida nas favelas ocupadas,
mantendo policiais em vigília permanentes nas favelas contempladas com o
projeto. Entretanto, é claro que a entrada deste novo ator traria novamente a
questão dos direitos nestes espaços. Não é apenas a promoção da Segurança
Pública que é importante, mas também aspectos como saúde, educação, cultura e
lazer. E as comunidades ocupadas ressentem a ausência destes serviços ou a má
qualidade dos mesmos.
Portanto, o governo estadual, em uma parceria com a Prefeitura, através do
Instituto Pereira Passos (IPP/Prefeitura), criou a UPP Social, política que, em
discurso oficial exposto no site www.uppsocial.org, pretende "promover o
desenvolvimento social, incentivar o exercício da cidadania, derrubar fronteiras
simbólicas e realizar a integração plena da cidade". As ações práticas seriam,
então, voltadas para "apoio a organizações e projetos locais; recuperação de
espaços públicos; regularização urbana, de serviços e negócios; oportunidades
para a juventude e iniciativas cidadãs, culturais, esportivas e de lazer.”.
A UPP Social nasceu em agosto de 2010, dois anos após a primeira
ocupação na favela Santa Marta. Inicialmente, estava sob a direção da Secretaria
do Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), e em um
momento posterior o IPP passou a coordenar o projeto. Atualmente, todas as
favelas ocupadas possuem também a UPP Social. A instalação do projeto na
favela pressupõe algumas etapas:
A fase de pré implantação começa após a retomada do território pela UPP -é aí
que entra a UPP Social, com um grupo de coordenadores locais que passa até três
semanas conversando com associações, lideranças e moradores em geral, para
começar a identificar demandas mais urgentes. Esse processo é seguido pela
realização de um mapeamento participativo rápido, que fornece uma avaliação
socioeconômica de cada favela e aponta as prioridades a serem atendidas. Com
base nesse diagnóstico inicial, o Fórum UPP Social é realizado em cada favela
(...). Por fim, uma equipe de coordenadores locais da UPP Social (dois ou três,
dependendo da comunidade) é permanentemente instaurada nas comunidades,
realizando visitas diárias para que sirvam de mediadores entre a comunidade, o
101
governo e outros prestadores de serviço.69
Para implementar os projetos pretendidos, a UPP Social conta com
diversas parcerias. Com a Coca-Cola, por exemplo, desenvolve um programa de
cursos voltados para a área do varejo que tem como foco jovens entre 15 e 25
anos. Já com o Consulado Americano, promove um curso de inglês para
adolescentes entre 13 e 18 anos. Outras ações da UPP Social incluem o
mapeamento de ruas e avenidas nas favelas com o objetivo de reconhecer
logradouros ou concursos culturais, como de escritores ou ilustradores.70
Apesar destas atividades realizadas, os moradores dos espaços com UPP
reclamam que o trabalho da instituição não está sendo realizado de maneira
satisfatória. Segundo a opinião de Alexandre Cesário, morador do Pavão-
Pavãozinho, a UPP Social só estaria realizando palestras para conscientizar a
população sobre questões como os problemas de jogar lixo fora de lixeiras ou usar
de maneira racional a energia elétrica. Na visão do entrevistado, faltam ações mais
concretas, como promover empregos ou cursos profissionalizantes. De acordo
com Alexandre, “como aparece na mídia, eles têm que fazer alguma coisa”, mas,
na prática, as atividades não estariam surtindo muito efeito.
Também moradora do Pavão-Pavãozinho, Fernanda Faustino afirmou que
sabia da intenção da UPP Social de mapear e identificar os endereços da favela
para que os moradores pudessem receber suas correspondências em casa, e não
mais terem que buscar na associação. Entretanto, a entrevistada disse que nunca
viu alguém do projeto realizando tal função. De acordo com Fernanda, Fabíola,
uma das coordenadoras do IPP, “anda muito pela comunidade”, mas a produtora
local, que deveria estar trabalhando diretamente junto à população do Pavão-
Pavãozinho, é desconhecida para todos.
Ives Rocha, que atua no CEDAPS trabalhando em favelas ocupadas, é
também enfático ao afirmar que a UPP Social “mais teoriza do que age”. Nas
palavras do pesquisador:
69
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a
dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
P.38 e 39. 70
Mais informações sobre os projetos e ações que a UPP Social promove estão no site oficial:
WWW. uppsocial.org
102
Ela (a UPP Social) tem vários ramos de atuação, e ao meu ver, peca no quesito de
participação comunitária. Ela restringe esta participação, basicamente, aos Fóruns
Comunitários, que não sei dizer de quanto em quanto tempo acontecem. Estes
fóruns priorizam algumas ações e, como o lixo é uma questão quase unânime,
criaram o “Vamos Combinar! – uma comunidade mais limpa”, que faz mutirões
de limpeza nas comunidades. Depois criaram o “Vamos Iluminar”, que cuida da
parte da iluminação pública e regularização do fornecimento e recepção de
energia elétrica (não sei até que ponto essa foi uma demanda da comunidade, já
que quase todos recebem multas da Light por causa dos gatos). Ela diz que tem
uma escuta ativa, mas não é isso que vejo na prática e nem é isso que dizem os
moradores.
É importante perceber que, tanto a UPP quanto a UPP Social possuem um
caráter inédito. Apesar da experiência do GPAE poder ser considerada um
embrião, nunca o projeto alcançou a projeção das Unidades de Polícia
Pacificadora. Portanto, há originalidade em ambas as políticas. E é claro que, sem
repetir receitas antigas, as chances de se encontrar percalços no caminho são
maiores.
A UPP Social representa uma iniciativa bem-intencionada, mas que tem
que trabalhar junto com os moradores caso pretenda lograr êxito. Este afastamento
entre a esfera governamental e a popular não é benéfico para o sucesso da política
pública. O governo já é por definição um ator externo, considerado um “estranho”
na visão dos moradores. E as relações de confiança entre ambos já foram minadas
diversas vezes no passado. Então, cabe à UPP Social a tentativa de construir um
projeto que, de fato, atinja os habitantes das favelas e traga os direitos de acesso
que estão ausentes ou precários.
Obviamente, a UPP Social não vai conseguir realizar tal feito por si só, e
nem de imediato. No entanto, tanto este programa como a própria UPP carregam
consigo esperanças e expectativas que podem se concretizar caso os erros das
outras políticas públicas não sejam repetidos e novos caminhos sejam traçados na
direção da integração das favelas a outros bairros na cidade do Rio de Janeiro.
3. A Normatização e os Direitos dentro das Favelas Cariocas 3.1. Pontos Relevantes sobre a Normatização das Atividades Ocorridas dentro das Favelas
Por ora, importa salientar essa multiplicidade e heterogeneidade interna às
situações de formalidade ou legalidade, tanto quanto às situações informais e
ilegais. Esta a primeira questão a ser destacada: as fronteiras do legal e do ilegal
não são lineares, muito menos dicotômicas. Dispositivos (e práticas) formais e
informais, legais e ilegais, operam como agenciamentos práticos, situados, e
fazendo a combinação de recursos e repertórios de um lado e de outro; algo como
marcadores e pontos de referências que fazem o traçado de territórios rizomáticos
transpassados por redes superpostas de coisas e pessoas, transversais às várias
situações de vida e trabalho e que se desdobram em outras tantas situações e
outras tantas teias de relações situadas em outros contextos próximos ou
superpostos. 71
É interessante notar as diferenças nos processos de regularização dentro e
fora da favela. Nessa dissertação, não se postula a premissa dicotômica que
propõe o contraste entre formal (“asfalto”) e informal (“morro”). Mesmo porque a
cidade do Rio possui um dinamismo e uma flexibilidade grande de formas
urbanas, o que impede esse tipo de classificação rígida. Esta antítese não é
profícua porque as práticas legais e ilegais acontecem em todos os lugares da
cidade. A formalização e a informalização convivem nos bairros, sejam eles
localizados nas áreas nobres ou em favelas. Entretanto, há algumas diferenças
específicas sobre a normatização nestes espaços, e este tópico pretende explorar as
mesmas. Elizabeth e Anthony Leeds comentam esta questão no livro A Sociologia
do Brasil Urbano:
Finalmente, um valor que permeia a favela é a liberdade - liberdade tanto de
como para. Os moradores da favela estão bastante conscientes das restrições
sociais da sociedade burguesa e burocrática exterior à favela - eles a veem no
vestuário, aparência, formalidades de endereço, linguagem, poses e assim por
diante - uma infinidade de indícios que identificam os outros, os estranhos, as
“classes”. A favela propicia um refúgio da retórica e do vazio, das formalidades e
coações das pouco compreendidas “classe média” e “elites” lá embaixo. Este
refúgio reforça a ausência do desejo de mobilidade ascendente para status de
classe “média” ou “superior”, embora não das vantagens materiais a eles
71
TELLES, Vera da Silva. Jogos de poder nas dobras do legal e do ilegal: anotações de um
percurso de pesquisa. In: TELLES, Vera S.; KESSLER, Gabriel; AZAIS, Christian. (Org.).
Ilegalismos, cidade e política. 1ed.Belo Horizonte: Fino traço, 2012, v. 1, P.34.
104
ligados.72
É importante não se construir conceitos fechados, antíteses sobre o que
está sendo trabalhado. Esta visão da favela como local da liberdade absoluta
ecoava no início do surgimento das mesmas, e Elizabeth e Anthony Leeds se
referiam a este período (até aproximadamente meados dos anos 1970) quando
argumentaram acima. Todavia, este panorama já foi modificado, muito embora o
paradigma da favela enxergada como local da ausência de leis ainda esteja muito
presente.73
No entanto, não se pode afirmar que as comunidades cariocas se
caracterizem exatamente por falta de formalização. Normas diferentes nem
sempre significam ausência, mas sim a existência de um processo social distinto
que germinou tal situação.
A primeira e principal regulação reservada às favelas cariocas diz respeito
à legislação urbanística aplicada nestes locais. É importante notar que a situação
irregular destes espaços se dá, em primeiro lugar, no plano da falta de
normatização urbanística (MAGALHÃES, 2010). A ausência de título oficial de
propriedade gera um contexto em que a implementação de direitos básicos é
impedida através da justificativa de que a ocupação do solo não é legal, e,
portanto, a presença daquelas pessoas ali também não é. Então, é necessário a
existência de documentos que provem que as favelas possuem legitimidade, e
devem ser reconhecidas como bairros da cidade do Rio, sendo providas dos
mesmos direitos de acesso.
Inicialmente, como foi visto, o governo não apontava para a constituição
de normas que permitissem aos casebres permanecerem erguidos sobre os morros
sem maiores complicações com a Justiça. Até a década de 1970, as leis previam a
remoção das habitações. Entretanto, as políticas não apresentaram uma
constância durante este tempo, e brechas e rupturas nas normas encorajavam os
moradores a não deixarem suas casas. Muitos sabiam que estavam em situação
72
LEEDS, Anthony, LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. P.128/129. Rio de
Janeiro, Zahar, 1978. 73
A visão dicotômica da favela como espaço informal e “o resto da cidade” como território formal
é bastante presente até mesmo dentro do Estado. Em 1994, a Prefeitura carioca lançou um
concurso com o objetivo de selecionar projetos que deveriam ser implantados nas favelas com o
Favela-Bairro. Diz o edital: “(...) tramsformar as favelas em verdadeiros bairros populares,
buscando meios para promover a integração dessas duas faces tão distintas do mundo urbano
brasileiro: a cidade formal e a cidade informal (grifo meu)” (VALLADARES, 2005).
105
irregular, mas a falta de outro lugar melhor para morar fez com que o panorama
das favelas se estabelecesse e se ampliasse.
Uma legislação urbanística para as favelas no Rio, que aparece na tentativa
de retirar as habitações da ilegalidade, embora isso não signifique reconhecê-las,
data do final dos anos 1980. A Constituição Estadual de 1989 postula, no artigo I,
que será realizado: “Urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas
faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as
condições físicas da área impunham risco à vida de seus habitantes.”. Todavia,
este foi um processo lento, mesmo porque a ideia de remoções não foi totalmente
afastada. A Lei Orgânica de 1990, por exemplo, ainda regula esta hipótese,
indicando que transferências poderão acontecer, mas não serão executadas com
base na força.
A noção de regularização propriamente dita, ou seja, o reconhecimento
perante a lei, só começa a ocorrer a partir do ano 2000, em que a legislação
urbanística prevê que favela por favela, caso a caso, terá as suas casas legalizadas.
A comunidade Fernão Cardim, localizada na Zona Norte da cidade, é a primeira a
possuir seus lotes regularizados. A tabela abaixo atesta a quantidade de favelas
com logradouros reconhecidos na cidade do Rio a partir do ano de 2000:
Tabela 2: Número de favelas com logradouros reconhecidos (2000-2008).
2000 17
2004 22
2005 29
2006 53
2008 61
Os números são pouco expressivos se for considerado o universo de
favelas no Rio, que gira em torno de 800. E também vale ressaltar que o processo
ocorrido nestes espaços foi apenas a legalização fundiária, ou seja, a regularização
das casas. Embora este seja um direito fundamental, e um dos primeiros acessos
aos quais as pessoas devem possuir, é importante compreender que não é por si só
suficiente.
106
Atualmente, apesar de o Estado admitir a existência das favelas, não há
uma procura maciça por parte dos moradores de favelas no sentido de tentarem
formalizar suas habitações juntos aos órgãos que seriam responsáveis por tal feito.
Na comunidade Parque Royal, por exemplo, localizada na Ilha do Governador,
apenas 5,23% das casas possuem título outorgado ou registrado junto a instâncias
governamentais. A ampla maioria dos moradores (80,23%) preferiu regularizar
seus imóveis através de documentação provida pela associação de moradores do
local. Já 2,9% das pessoas realizaram um acordo verbal ou escrito entre as
partes.74
É interessante notar que, do ponto de vista jurídico, todas as formas de
legalização citadas são válidas. Mesmo sem estar legitimado perante um cartório
ou órgão semelhante pertencente ao Estado, o registro de habitação é reconhecido.
Isso é importante, pois, no caso de conflitos entre locatários e inquilinos, ou
proprietários e compradores, há contratos que atestam as cláusulas acordadas. A
discussão sobre a questão da validade jurídica está expressa no fragmento abaixo:
Assim, o sentido que aqui emprestamos à categoria formalização abarca todos
aqueles meios, reais e socialmente institucionalizados e ritualizados, de exprimir
um ato de transmissão de determinado imóvel. Adotamos, aqui, a noção de que
diversos agentes sociais, e não apenas um deles – o Estado –, são capazes de
produzir cerimônias, solenidades, convenções, protocolos, ofícios, padrões e/ou
ritualizações,a fim de estabilizar as relações sociais. 75
O sistema operado pela associação dos moradores apresenta algumas
debilidades, como, por exemplo, o material de cadastro não é digitalizado. No
caso de um incêndio ou tragédia semelhante, perde-se tudo, o que pode acarretar
muitos problemas futuros para os moradores. Entretanto, é inegável que existe um
caráter funcional fortemente presente nesta forma de documentação. Os habitantes
confiam no tipo de registro, e o sinônimo para a regularização dos imóveis acabou
por se tornar o cadastro confeccionado na associação de moradores, não a
formalização executada no cartório. Portanto, não há como minorar este tipo de
legalização. Embora não conte com a institucionalização exercida pelo Estado, é
válida.
74
MAGALHÃES, Alex. O Direito da Favela no Contexto Pós Programa Favela-Bairro: Uma
Recolocação do Debate do ‘Direito à Passárgada’. Rio de Janeiro, Março de 2010. 75
MAGALHÃES, Alex. O Direito da Favela no Contexto Pós Programa Favela-Bairro: Uma
Recolocação do Debate do ‘Direito à Passárgada’. Rio de Janeiro, Março de 2010.
107
É necessário ressaltar que este processo não costuma ser efetivado de
maneira gratuita pelas associações de moradores. Todos devem pagar, porém
aqueles que são associados à entidade contribuem com valor menor. Embora
passível de barganha, a taxa existe, mas assim como qualquer serviço prestado por
cartórios ou órgãos semelhantes.
Os fatores que podem levar os moradores a preferirem realizar a
regularização dos seus imóveis no cartório e não na associação advém muito mais
de eventuais problemas encontrados na associação do que em vantagens
enxergadas na legalização perante o órgão oficial. Por exemplo, uma possibilidade
é a credibilidade da associação estar abalada, principalmente no caso da mesma
ter seus líderes envolvidos com traficantes ou milicianos. Em uma situação como
essa, é mais provável que os habitantes das favelas procurem as entidades
governamentais responsáveis pela formalização.
A figura dos corretores de imóveis, tão presentes em outros bairros da
cidade, não é comum nas favelas. Atualmente, com a atuação das UPPs, muitas
comunidades estão despertando o interesse do mercado imobiliário, mas pode-se
afirmar que há ainda certa resistência dos moradores em aceitarem a entrada
destas pessoas “estranhas” nestes locais. Alex Magalhães, em pesquisa intitulada
O Direito da Favela no Contexto Pós Programa Favela-Bairro: Uma
Recolocação do Debate do ‘Direito à Passárgada’, que data de 2010, escolheu
como estudo de caso a situação da favela Parque Royal, cujas casas, à época,
tinham sido recém-reconhecidas pela prefeitura. No trabalho, o autor afirma que a
oferta por imóveis no lugar continua sendo baseada muito mais no “boca-a-boca”
do que na mediação exercida pelos corretores.
Segundo esta mesma pesquisa, a pessoalidade é um elemento forte no
momento que o morador está decidindo para quem vai alugar ou vender sua
propriedade.76
A preferência é para pessoas com quem há um conhecimento
prévio, senão diretamente, por intermédio de amigos. Claramente, esta premissa
está ligada ao fato de vários contratos imobiliários serem confeccionados
76
Vale ressaltar que a pessoalidade é mesmo um elemento característico da cultura nacional. Em
outras favelas ao redor do mundo, os inquilinos são “os moradores mais invisíveis e impotentes”.
(DAVIS: Mike, 2002).
108
apresentando debilidades em suas estruturas. Quando a formalização do acordo
acontece perante os órgãos governamentais responsáveis, há mais recursos
disponíveis caso o inquilino ou comprador pare de pagar o que lhe é devido, por
exemplo. Por outro lado, como nas favelas muitos contratos são até mesmo
verbais ou registrados apenas na associação de moradores, há um temor maior que
uma das partes descumpra aquilo que foi combinado. Por isso, existe uma
preferência por pessoas conhecidas, o que não impede a locação ou a venda para
outros indivíduos, mas favorece aqueles mais próximos.
A necessidade de formalização, de acordo com a pesquisa coordenada por
Alex Magalhães, advém mais da preocupação que alguém “de fora” da favela
queira saber a legal situação das casas do que por uma decisão de espontânea
vontade tomada pelo morador. Mais uma vez, aparece a visão exposta por
Anthony e Elizabeth Leeds que dá conta de colocar estes espaços em uma posição
“especial”, onde a liberdade gozada por seus habitantes é maior.
Consequentemente, a necessidade de leis parece menor também. Nos contratos
imobiliários, ao menos, prevalece mais a camaradagem do que a normatização
formal.
Prova disso é o fato de haver uma flexibilidade e uma tolerância maior no
caso de conflitos locatícios. Por exemplo, se o inquilino está em dívida, o
locatário considera e efetiva outras possibilidades que não o despejo, como o
parcelamento do débito ou até perdão do mesmo. Na situação da pessoa ser
conhecida ou estar passando por uma situação considerada “difícil”, a
compreensão é ainda maior. Então, a tolerância é baseada no grau de confiança
pessoal e no racionamento dos custos e benefícios de uma eventual ruptura de
contrato. A recorrência à Justiça, no sentido de promover um processo contra uma
das partes do acordo imobiliário, ainda não é comum dentro das favelas. Os
confrontos são solucionados na conversa, mesmo porque em locais controlados
por traficantes e milicianos há um temor forte de que os mesmos interfiram na
questão e tomem medidas extremas para resolver o conflito.
Os dados apresentados acima ajudam a constituir um cenário do que são as
favelas hoje sob o ponto de vista da normatização. A fim de prosseguir com a
análise a que esta dissertação se pretende, é essencial a compreensão de que as
109
comunidades cariocas são espaços onde existem ainda práticas informais, no
sentido de não serem reguladas pelas leis. No entanto, este fato não transforma as
favelas em bolsões de ausências, mas sim indica que as mesmas sofreram uma
dinâmica social distinta de outros bairros da cidade do Rio, onde há menos
atividades informais em curso (muito embora a falta de formalização esteja
espalhada por toda a metrópole). Processos de normatização diferentes não
necessariamente são negativos.
Na passagem abaixo, retirada da obra Instituições Sociais Brasileiras, de
1949, Oliveira Viana argumenta que, muitas vezes, as leis se constroem e se
transformam através das práticas sociais, e acabam sendo referendadas nos
costumes e não nos códigos. Este fato não deve ser interpretado de maneira
negativa, mas sim como o resultado de acúmulo de processos sociais:
Nos países, porém, como o nosso, não regidos pelo direito costumeiro, não se dá
o mesmo -- o direito elaborado pelas elites, consubstanciado na lei e nos Códigos,
difere sensivelmente do direito elaborado pela sociedade, na sua atividade
criadora de normas e regras de conduta. Esta discordância chega mesmo, às
vezes, a incompatibilidades radicais, que acabam revogando ou anulando a lei,
isto é, a norma oficialmente promulgada.77
Portanto, se propõe aqui a desconstrução do mito da falta de normatização
nas favelas cariocas. Leis vão além daquilo que está escrito nos papéis, e são ativa
e continuamente moldadas pelas atividades sociais. O processo observado nas
favelas é exatamente esse: em espaços onde o Estado não instituiu os parâmetros
legais como o fez em outros lugares da cidade, o costume criou e anulou normas.
Este cenário é bastante interessante, porque aqui estão sendo citadas áreas
muito próximas geograficamente, mas apartadas socialmente por diferentes
códigos de conduta. A favela do Pavão-Pavãozinho se localiza dentro do bairro de
Copacabana, porém há uma barreira simbólica dividindo os dois espaços. E a
fronteira se inicia a partir do momento em que a normatização presente nos dois
locais é distinta.
Por fim, foram sumarizados acima pontos e considerações relevantes
acerca do tema de regularização e de acesso a direitos nas favelas. A discussão foi
77
VIANA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999. P.44
110
um preâmbulo inicial para a posterior análise dos impactos das políticas públicas
nos processos de normatização e de efetivação de direitos e deveres nas
comunidades. Para a compreensão destes efeitos, o levantamento de hipóteses
sobre legalização e informalidade, além de um breve histórico da legislação
urbanística nestes lugares fez-se relevante.
3.2. Considerações sobre a Questão da Informalidade e seus Reais Impactos na Organização Societal nas Favelas Cariocas
O que distingue, em geral, uma atividade econômica "formal" de outra "informal"
é a sua maior ou menor subordinação à regulamentação estatal. Não se considere,
no entanto, que essas atividades são inteiramente separadas, constituindo
"setores" bem demarcados. Diferentes formas de "flexibilização" informais
participam da constituição de empresas econômicas "formais", e a informalidade
ilegal de certas atividades econômicas pode dirigir-se, ao mesmo tempo, para
"fachadas" formais ou mesmo mobilizar recursos em empresas legais. Múltiplas e
complexas redes sociais se desenvolvem a partir dessas diferentes estratégias
aquisitivas, legais e ilegais, relacionando "mundos" que o imaginário moral
prefere considerar como inteiramente separados entre si.78
O argumento acima, postulado pelo cientista social Michel Misse, muito se
relaciona com a análise que essa dissertação está se propondo a realizar. Como o
autor pondera, a informalidade e a formalidade não constituem duas realidades
apartadas, mas sim uma rede de ligações, que misturam ambas as práticas. Ao se
tratar do Rio de Janeiro, cidade que possui uma dinâmica peculiar, em que
pobreza e riqueza convivem fisicamente lado a lado, essa premissa se faz ainda
mais verdadeira. Não há como dicotomizar as favelas afirmando que estas
representam o lugar da ilegalidade em oposição aos outros bairros, enxergados
como totalmente legais. O que acontece na realidade é que, nos dois espaços, as
atividades se imiscuem, e as fronteiras da informalidade se mostram bem mais
flexíveis do que o esperado.
Dentro das favelas cariocas, a atividade que foi (e ainda é em muitos
espaços) símbolo de lucro é, inegavelmente, o tráfico de drogas. A existência
deste comércio ilegal revela redes e modos de organização que transitam em
diversas esferas de poder e cujos efeitos são observáveis em micro e macro
escalas. Nos meandros das atividades promovidas pelo tráfico de drogas, fica
78
MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de
Janeiro. Estudos Avançados (USP.Impresso), v. 21, p.144, 2007.
111
claro as ligações de informalidade e formalidade se misturando a todo instante,
construindo uma teia frágil de redes onde garantias são praticamente inexistentes
– o que não significa que, do ponto de vista econômico, o mercado não vá
funcionar de modo eficiente.
Recapitulando a ideia exposta no último tópico, as favelas sofreram um
processo distinto de normatização, em que muitas práticas ocorridas dentro das
comunidades passaram a se situar fora da regularização formal proposta pelas leis.
Entretanto, antes de julgar tal questão como uma chaga, para a qual deve se obter
uma cura, é necessário considerar alguns pontos, que vão ajudar a deslocar a
discussão para fora da arena da antítese.
No artigo intitulado É Possível Equacionar o Problema da Pobreza Via
Economia de Mercado?, de autoria de Alex Magalhães, o mesmo realiza uma
análise da obra do cientista social peruano Hernando de Soto79
. No texto,
Magalhães questiona a postulação desotiana de que a inserção dos pobres em uma
economia capitalista de mercado (que aconteceria através da regularização das
propriedades destes últimos) seria suficiente para que os mesmos se tornassem
automaticamente "ativos", ou seja, produtores e consumidores dentro da lógica do
capital. Para o autor, é necessário mais do que isso para que tal intento logre êxito,
como deflagra a passagem a seguir: Antepor o acesso à propriedade e/ou ao
crédito ao acesso à justiça, aos direitos humanos e à cidadania (civil, política e
social) nos parece uma grave inversão dentro de um projeto que se proponha a
enfrentar a questão social. 80
Davis (2002) também compartilha da crítica aos pressupostos de Hernando
de Soto:
79
Cabe ressaltar que De Soto é também empresário, atual membro do Swiss Bank Corporation
Consultant Group e Diretor do Banco Central do Perú (BCRP). Suas ideias capitalistas e
incentivadoras da “economia de mercado” recebem críticas de diversos sociólogos no mundo todo.
De Mike Davis (2002) ganhou os “carinhosos” apelidos de “John Turner da década de 90” e
“Messias do capitalismo popular”. 80
MAGALHÃES, Alex Ferreira. É possível equacionar o problema da pobreza via economia de
mercado? A política de formalização da propriedade imobiliária em Hernando de Soto. Cadernos
IPPUR, Rio de Janeiro, 2007.
112
No entanto, panaceias como a de De Soto permanecem extremamente populares
por razões óbvias: a estratégia de concessão de títulos promete grande ganho
social com um simples gesto de pena, e assim, traz nova vida aos desgastados
paradigmas do construa-você-mesmo do banco Mundial; combina perfeitamente
com a ideologia neoliberal e antiestatal predominante, até mesmo com a ênfase
atual do Banco na facilitação pelo governo do mercado imobiliário privado e na
promoção do acesso amplo à casa própria. Também é atraente para os governos
porque lhes promete algo - estabilidade, votos e impostos - em troca de
praticamente nada.81
Posto essa consideração, se faz essencial a discussão de até que ponto a
regularização das propriedades e demais atividade pode de fato solucionar o
déficit de acesso a direitos básicos, como luz, esgoto, saúde e educação. É
inegável que os serviços prestados pelo governo devem ser iguais para todos, e é
neste aspecto que se enfoca a questão dos direitos nessa dissertação, não tanto no
aspecto da normatização. Apesar de parecer uma premissa simples, até banal,
defender a aplicação das mesmas leis para toda a cidade do Rio esbarra em uma
problemática candente: Como proceder para que moradores de espaços que
obtiveram tradições e hábitos moldados historicamente de forma distinta
respondam a normas iguais? Embora a legislação valha para todos, na prática o
cenário se desenha de outra maneira.
Ademais, o próprio Estado é uma instituição repleta de contradições e
especificidades que tornam complexo o processo de transformá-lo em referência
de legalidade e ordem. Como Telles (2012) postula:
O Estado não é uma invenção da lei e da ordem, dizem os autores, mas uma rede
complexa do legal e do ilegal: as leis criam inevitavelmente a sua contrapartida,
zonas de ambiguidade e de ilegalidade, que criam por sua vez todo um campo de
práticas e agenciamentos que se ramificam por vários lados, também mercados
alternativos e oportunidades para bens e serviços ilegais.82
Retornando ao artigo de Alex Magalhães, o autor ressalta exatamente este
debate sobre a demonização das práticas informais e, consequentemente, de seus
agentes. Segundo o cientista social, o problema deste julgamento é a visão, que
acaba sendo construída, de que a legalidade é a civilização e a ilegalidade, a
barbárie. Mais grave do que isso, as pessoas dentro do primeiro espectro vão
sendo classificadas como “civilizadas”, enquanto no segundo são chamadas de
81
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. P.89. 82
TELLES, Vera da Silva. Jogos de poder nas dobras do legal e do ilegal: anotações de um
percurso de pesquisa. In: TELLES, Vera S.; KESSLER, Gabriel; AZAIS, Christian. (Org.).
Ilegalismos, cidade e política. 1ed.Belo Horizonte: Fino traço, 2012, v. 1, P.43.
113
“bárbaras”. Dentro desse olhar, não há uma dita integração entre as pessoas
advindas de lugares diferentes e com um passado de práticas distintas, mas sim
um desejo de submissão dos “bárbaros” aos “civilizados”.
E é esse o quadro que muitas vezes é aventado quando se trata de debater
sobre a questão da regularização das favelas. Nem todas as práticas efetuadas
marginalmente àquilo que as leis ditam são negativas e devem ser enxergadas sob
o viés da ausência. Telles (2002) comenta a questão no fragmento abaixo:
Se é importante entender o lugar do Estado e da lei nesses ordenamentos,
isso nos coloca uma questão de ordem teórico-metodológica: de partida, será
preciso desvencilhar das “imagens verticais” do Estado (Ferguson e Gupta, 2002;
Gupta, 2006) e das definições normativas da lei e do direito. Quer dizer: o Estado
e as leis tomados como entidades unitárias (ou típico ideais), pressuposto e
axioma a partir do qual tudo o que ocorre no plano das práticas efetivas aparece
no registro da falta, da falha ou, então, no caso de nossa sociedade, das “heranças
malditas” legadas por uma história de longa duração (Das e Poole, 2004).
Exigência, portanto, de deslocamento de perspectivas para perscrutar as relações
de poder tal como elas se processam nos contextos situados de tempo e espaço.
(Misse, 2006, 2009). 83
É importante notar que, às vezes, esse deslocamento de perspectiva pode
resultar em uma minoração da existência dos problemas advindos da falta de
regulamentação. A informalidade deve ser classificada como desvantagem na
medida em que suprimir uma organização básica e possuir como consequência a
anomia.
Dentre os problemas que as situações ilegais podem vir a oferecer, vale
frisar essa passagem, em que Hernando de Soto aponta quais seriam estas
questões: “Ninguém sabe na realidade quem tem o quê e onde, quem é o
responsável pelas obrigações, quem responde por perdas e fraudes, e quais são os
mecanismos disponíveis para fazer cumprir os pagamentos pelos serviços e
mercadorias entregues.”84
83
TELLES, Vera da Silva. Jogos de poder nas dobras do legal e do ilegal: anotações de um
percurso de pesquisa. In: TELLES, Vera S.; KESSLER, Gabriel; AZAIS, Christian. (Org.).
Ilegalismos, cidade e política. 1ed.Belo Horizonte: Fino traço, 2012, v. 1, P.41. 84
MAGALHÃES, Alex Ferreira. É possível equacionar o problema da pobreza via economia de
mercado? A política de formalização da propriedade imobiliária em Hernando de Soto. Cadernos
IPPUR, Rio de Janeiro, 2007.
114
Obviamente, uma situação de anomia como a descrita acima tampouco é
frutífera para o desenvolvimento da vida em sociedade. Não importa o lugar ou
suas experiências e processos ocorridos no passado, se as práticas e a
documentação estiverem em absoluta desordem, é difícil imaginar que as pessoas
se organizem e consigam desenvolver seus negócios ou viver em tranquilidade
dentro de suas casas. A regularização serve como expressão de formalização e,
principalmente, de reconhecimento, de determinada situação e tem como principal
serventia a produção de garantias caso algo não ocorra como o previsto. Na
situação de eventuais conflitos, os documentos servem como prova e fornecem
base para processos jurídicos.
Por outro lado, a principal vantagem apontada por Hernando de Soto no
processo de formalização da propriedade reside no fato da mesma, através da
regularização, ultrapassar o estado de simples posse para assumir a condição de
produto, que pode ser plenamente explorado. Mas, novamente, retomando o
estudo de caso das favelas cariocas e de seus moradores, é importante pensar se há
realmente alguma mudança, do ponto de vista prático, da legalização de casas e
comércios. A inserção em um economia capitalista não depende apenas desse fato,
mas também na capacidade de as pessoas se transformarem em agentes nesse
processo. Apenas a regularização modifica a situação perante às leis, mas é válido
questionar se muda algo no cotidiano.
Davis (2006), ao narrar a apropriação irregular de terras públicas por
grupos privados na cidade de Karachi, uma das maiores metrópoles do Paquistão,
postula uma afirmação que polemiza ainda mais a discussão sobe os efeitos reais
que a regularização fundiária pode exercer na população pobre. Davis argumenta:
“Como a operação toda é ilegal, as reivindicações, por definição, são sempre de
favores e não de direitos.”85
E é esse justamente o ponto. Se houvesse alguma
garantia que a regulamentação dos terrenos transformaria os pedidos (“favores”)
em demandas (“direitos”), todo o processo seria mais simples e talvez Hernando
de Soto sofresse menos críticas. No entanto, não há maneira de realizar essa
previsão. Apostar em uma agenda que combine a legalização das propriedades,
85
Davis se refere à operação de exploração econômica que os grupos privados passaram a realizar
nos invasores que ocuparam as terras públicas. DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo:
Boitempo, 2006. P.96.
115
mas sem esquecer que só isso automaticamente não emancipa ninguém
politicamente, pode se constituir como uma alternativa.
Mesmo postas estas considerações, a confiança excessiva na normatização
como ferramenta principal para a universalização de direitos parece uma premissa
perigosa. Primeiro, porque não há garantia alguma que mudança nas leis traga
necessariamente transformação de hábitos e costumes. No Brasil, diversas normas
existem, mas são amplamente desrespeitadas. Segundo, é importante não ignorar
que existem outros fatores condicionando o acesso a direitos e a construção de
cidadania. Apostar apenas nas leis indica um quadro ingênuo, que não leva em
conta a multiplicidade de elementos contidos na questão de direitos.
3.3. O Acesso aos Direitos
No restante do Terceiro Mundo, a ideia de um Estado intervencionista muito
comprometido com a habitação popular e a criação de empregos parece
alucinação ou piada de mau gosto, porque há muito tempo os governos abdicaram
de qualquer iniciativa séria para combater as favelas e remediar a marginalidade
urbana. Em diversas cidades pobres, a relação entre os cidadãos e o governo é
parecida com a descrição feita recentemente por um favelado de Nairóbi a um
repórter do jornal inglês The Guardian:”O Estado não faz nada aqui. Não fornece
água, escola, rede de esgotos, estrada nem hospital”. Na verdade, o jornalista
descobriu que os moradores compravam água de negociantes particulares e
contavam com grupos armados para fazer a segurança; a polícia só aparecia para
cobrar propinas.86
As questões elencadas nos tópicos anteriores foram essenciais para iniciar
a discussão sobre direitos. É necessária a compreensão de que a normatização
aplicada nas favelas cariocas, além de apenas contemplarem a legislação
fundiária, ou seja, a regularização de casas, não trouxe a universalização do acesso
a serviços básicos, como esgoto tratado, luz, água, educação e saúde. A premissa
dos direitos vai além da formalização das propriedades, como postula Alex
Magalhães:
86
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. P.70/71.
116
Dessa forma, naturaliza-se a questão da cidadania, supondo-se que, uma vez
proprietários, os indivíduos agirão de forma produtiva, responsável, ordenada,
respeitadora de leis, em resumo, cívica. Não se indaga se a formalização da
propriedade pode ter, de fato, todo esse poder, praticamente mágico.87
Como um preâmbulo para a discussão, seguem alguns dados que denotam
como as favelas foram privadas de direitos básicos. E as informações abaixo
sequer se referem ao início do surgimento das mesmas, mas sim ao começo dos
anos 1980. Na cidade do Rio, já existiam 364 favelas cadastradas, que
constituíram o objeto de estudo da pesquisa. Destas comunidades:
Apenas 4% eram servidas por uma rede oficial de esgoto sanitário
completo;
Somente em 6% era encontrada uma rede de água;
Cerca de 17% possuía serviço de coleta de lixo.
Em 1990, a situação obteve pequena melhora:
Aproximadamente 20% possuíam sistema de esgoto;
A água encanada podia ser encontrada em 60%.
Com relação aos dados mais recentes88
, é importante ressaltar que os
serviços de coleta de lixo, água encanada e esgoto tratado apresentaram sensível
melhora. No entanto, é necessário lembrar que os dados ainda apresentam bastante
variação, mesmo se for considerada a análise de um conjunto de favelas
localizadas na mesma região, conurbadas nos chamados “complexos”. Para uma
discussão precisa, vale a investigação das informações listadas abaixo, relativas ao
Complexo da Penha, Zona Norte do Rio:
87
MAGALHÃES, Alex Ferreira. É possível equacionar o problema da pobreza via economia de
mercado? A política de formalização da propriedade imobiliária em Hernando de Soto. Cadernos
IPPUR, Rio de Janeiro, 2007. 88
Informações provenientes do Censo 2010.
Tabela 3: Indicadores Socioeconômicos das Comunidades do Complexo da Penha, 2010.
Comunidades Água Esgoto Lixo Condição de Ocupação Educação
Abastecimento de água
adequado (%)
Esgotamento sanitário
adequado (%)
Coleta de
lixo (%)
Condição de ocupação (%
de domicílios próprios)
Analfabetos entre moradores
maiores de 15 anos (%)
Morro da Caixa d'Água
(RA - Penha) 99,7% 99,3% 49,2% 89% 4,3%
Morro da Fé 99,7% 95,9% 98,0% 90% 5,1%
Morro do Caracol 100,0% 99,4% 70,1% 93% 9,9%
Morro do Sereno 100,0% 95,8% 78,2% 82% 6,8%
Parque Proletário do
Grotão 99,7% 99,2% 99,1% 87% 7,8%
Rua Frey Gaspar, nº
279 100,0% 98,8% 100,0% 84% 6,6%
Morro do Cariri 93,9% 97,8% 100,0% 82% 4,7%
Rua Laudelino Freire 99,6% 100,0% 100,0% 82% 2,7%
Vila Cruzeiro 99,9% 99,7% 100,0% 83% 4,2%
Vila Proletária da
Penha 99,8% 99,4% 98,6% 79% 5,4%
Rua Mira - - - - -
Total 98,7% 98,9% 94,8% 83% 5,4%
Fonte: Dados Preliminares do Censo Demográfico IBGE (2010).
118
Como é possível perceber, os melhores índices no Complexo da Penha são
de água e esgoto. A coleta de lixo é irregular. Embora chegue a 100% na Vila
Cruzeiro, por exemplo, atinge a marca de 49,2% no Morro da Caixa D`Agua, o
que revela uma disparidade ainda grande.
E a desigualdade, no que concerne os indicadores sociais, definitivamente
é o símbolo da cidade do Rio de Janeiro. Por exemplo, enquanto o bairro de
Copacabana, na Zona Sul, possui o índice de 0,01 de domícilios sem coleta de
lixo adequada, o número sobe para 6,89 se for considerado o Complexo do
Alemão, na Zona Norte. A diferença, em porcentagem, corresponde a cerca de
700%.89
Mais uma vez, quando analisadas as informações específicas deste
conjunto de favelas, se nota uma disparidade sensível entre as comunidades. No
Morro da Baiana, por exemplo, a coleta chega a 100%, já em Joaquim de Queiroz
o número é reduzido para 75%.
Estas diferenças acompanham toda a sorte de indicador social na cidade.
Se for considerado o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos bairros
cariocas, o contraste é visível. No alto da tabela figura a Gávea, na Zona Sul, com
índice de 0,970. Na parte oposta da classificação, em último lugar, o Complexo do
Alemão, com 0,711. É como se os moradores da Gávea vivessem na Noruega (que
possui índice de 0,955) e os do Complexo do Alemão, na Tunísia (IDH de 0,711).
Não é fato inédito que grandes metrópoles costumam abrigar altas disparidades
sociais, contudo este não deve ser um pressuposto aceitável para uma possível
naturalização do fenômeno.
Na análise destas informações acerca dos direitos presentes e ausentes
dentro das favelas cariocas, é essencial dedicar atenção aos aspectos educacionais.
Como pode se observar na pesquisa sobre o Complexo da Penha, os índices de
analfabetismo90
são bastante elevados, variando de 2,7% (Rua Laudelino Freire)
até exorbitantes 9,9% no Morro do Caracol. A média da taxa no Complexo foi de
5,4%, indicador acima da média municipal (4,4%), e aproximadamente quatro
vezes maior do identificado no bairro de Botafogo (0,93%), local que detém o
melhor número no Rio.
89
Dados do instituto Rio Como Vamos: www.riocomovamos.org.br. 90
O número leva em consideração apenas os analfabteos adultos, a partir de 15 anos de idade.
119
E este panorama de baixa qualidade educacional não é uma característica
exclusiva do Complexo da Penha. Outras favelas apresentam cenário bastante
similar. No Morro Santa Marta, localizado na Zona Sul, o número de analfabetos
chega a 8,4%. No Morro dos Macacos, na Zona Norte, o índice é de 9%. Na
favela Baibilônia, também Zona Sul, mais de 15% dos moradores são analfabetos.
Das favelas com UPPs, nenhuma possui este indicador social abaixo da média da
cidade do Rio.
No Complexo da Maré, conjunto de favelas que ainda não foram
contempladas com o projeto das UPPs, a situação é ainda mais grave: o índice de
anafalbetismo chega a 7,72%, configurando a pior taxa do munícipio. O panorama
segue preocupante se for considerada a quantidade de crianças em idade escolar
que estão fora de uma instituição de ensino: cerca de 80%. A educação infantil
permanece sendo uma problemática nas favelas.
O que pode ser apreendido a partir da investigação das tabelas e pesquisas
expostas acima, é a melhora das condições de vida nas favelas-se a base de
comparação for o histórico, já que no passado o acesso aos serviços era muito
mais deficitário. No entanto, constatar um progresso não é necessariamente
sinônimo de que a situação está satisfatória nos dias de hoje.
Primeiramente, é essencial ressaltar que se atualmente os moradores das
favelas possuem mais direitos, este não foi um processo ocorrido sem disputas
políticas ou lutas por parte dos habitantes. Vale frisar que durante as décadas de
1940, 50 e 60 a prática dos chamados “mutirões” era bastante frequente em
diversas comunidades cariocas. Símbolo da atividade comunitária, essa ação se
constituía na união de muitos moradores que, construíam, eles mesmos, os
serviços que as favelas precisavam. Principalmente, eram providenciadas ligações
de luz, água, esgoto e coleta de lixo. A letra da música abaixo, intitulada “Mutirão
85” e entoada pelo bloco carnavalesco “Aventureiros do Leme”, retrata a
importância que esta atividade possuiu no desenvolvimento das favelas:
120
Para cozinhar feijão/ Era lenha que eu pegava(e muito!)/E muito, nosso povo
batalhou (ôôô)/Para o morro ter progresso/ Tudo em mutirão se organizou
(ôôô)/E colorindo de tijolo o cenário/Veio a luz, chegou a água/Numa grande
evolução/ E de repente o povo descobriu/ A esperança que havia/ Da ferramenta
se esqueceu/ E o aventureiro então surgia (alegria!) ôô! ôôôôô! ôôô!91
Mais do que símbolo da ação comunitária, os “mutirões” podem ser
considerados também a expressão da ineficiência governamental no que concernia
prover serviços básicos para a população das favelas. Ainda imerso nos debates e
projetos que ora previam a remoção, ora optavam pela urbanização, o poder
executivo pouco fez para contemplar os moradores com sáude, educação, coleta
de lixo, água, luz, esgoto tratado e outros acessos as quais os cidadãos possuem
direito de usufruir.
Retomando a citação de Davis (2002), quando postula que, dentro de uma
situação de ilegalidade, os direitos se tornam favores, pode-se concluir que este
pressuposto foi aventado pelo poder público no sentido de justificar a falta de
investimentos nas favelas. Como a ocupação do solo foi ilegal durante muito
tempo, e a regularização fundiária era parca, o reconhecimento da legitimidade de
morar na favela demorou muito para chegar até o governo. E enquanto os
moradores eram identificados como não proprietários de suas casas e, portanto,
sem o direito de permanecerem em seus locais de moradia, os serviços oferecidos
pelo poder público também não chegariam.
O reconhecimento e a afirmação da favela como lugar legítimo dentro da
cidade do Rio de Janeiro começa a atrair políticas públicas mais voltadas para o
aspecto da urbanização a partir dos anos 1980, mas como se pode observar pelos
dados apresentados, ainda hoje há um déficit em diversos setores.
E vale frisar que a chegada de luz, água e outros serviços nas favelas
trouxe consigo um mercado ilegal, baseado nas ligações clandestinas que são
observadas em muitas moradias (HIRATA; TELLES, 2007). Longe desta ser uma
questão exclusiva das comunidades cariocas, mas é notável o fato de que prover
direitos não significa necessaria e automaticamente que as pessoas vão conseguir
se inserir na lógica prevista. Como é questionado no projeto das UPPs, por
91
Letra disponível no site:
http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=7&infoid=69
121
exemplo, a regularização de energia promovida pela Light. A mesma de fato
poderia resultar em uma “inclusão cidadã”, mas, na medida em que nem todos os
moradores possuem condições econômicas para arcarem com as tarifas, é profícuo
questionar se a população está sendo mesmo incluída ou se permanece excluída de
seus direitos.
A sugestão não é que a entrada do Estado nas favelas através da promoção
de direitos seja maléfica – pelo contrário, é ferramenta essencial para se caminhar
na direção de uma cidade mais justa e acessível para todos - no entanto, é
importante pensar em formas para que a chegada dos serviços contribua de fato
para a emancipação política dos moradores destes espaços.
3.4. O Acesso à Cidade: Observações sobre o Processo de “Enobrecimento” Urbano nas Favelas do Rio de Janeiro
O negócio é o “outro lado” se aproveitar disso tudo, se aproveitar da comunidade
para fazer o que quer! Isso eu não acho legal. Aproveitar, eu digo, porque é
comunidade, mas é na Zona Sul!E acabar usando tudo isso que estão fazendo em
benefício próprio. De que jeito? A gente corre o risco de acabar não tendo como
pagar luz, IPTU, essas taxas e sermos removidos. [...] Em muita gente aqui existe
esse medo, de não poder permanecer na comunidade. A gente não sabe o que vai
acontecer. (Mulher, 50 anos, liderança)92
O depoimento acima, extraído de uma pesquisa realizada em 2011 que
buscava entender os efeitos que o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora
exercem nos moradores das favelas ocupadas, reflete bem uma das consequências
que esta política pública pode acarretar. Trata-se da “remoção (ou expulsão)
branca”, fenômeno que traz consigo, o processo sociologicamente conhecido
como “gentrificação” ou “enobrecimento” urbano.
Este termo foi utilizado pela primeira vez em 1964, pela socióloga inglesa
Ruth Glass. Na época, a autora descrevia a transformação de um espaço londrino
popular em área nobre da cidade (RUBINO: 2009). Nas palavras de Glass:
92
BURGOS, Marcelo, PEREIRA, Luiz, CAVALCANTI, Mariana, BRUM, Mario, AMOROSO,
Mauro. O Efeito UPP na Percepção dos Moradores de Favelas. In: Revista
Desigualdade&Diversidade, Nº 11 ago/dez 2012, P.88.
122
Um por um, muitos dos quarteirões de classe trabalhadora de Londres foram
invadidos pelas classes médias, alta e baixa. Casinhas e pardieiros rotos e
simples- dois cômodos embaixo, dois em cima- foram tomados, quando seus
aluguéis expiraram, e se tornaram residências caras e elegantes. Grandes casas
vitorianas, degradadas há muito tempo ou recentemente - usadas como pensões
ou outro tipo de ocupação múltipla - foram valorizadas de novo.93
Entretanto, atualmente, o processo de enobrecimento urbano não mais está
restrito apenas à Inglaterra, podendo ser observado em diferentes locais do
mundo. No Rio de Janeiro, há sinais de que o temor da moradora da favela
Chapéu Mangueira, no Leme, possa se concretizar em breve. As áreas com UPPs,
principalmente na Zona Sul, já estão sofrendo com o aumento da especulação
imobiliária e o consequente crescimento dos preços dos imóveis.
Primeiramente, como já foi citado, um aspecto que pode resultar no
fenômeno da “remoção branca” e o subsequente “enobrecimento”, é a
regularização de serviços que, antes das ocupações, eram gratuitos graças à
ligações feitas de maneira clandestina. A ausência de tarifas sociais, mais baixas,
pode acarretar em um grande número de moradores de favela inadimplentes, que
não possuirão condições financeiras para arcarem com as novas despesas.
Duas empresas, uma especializada em televisão a cabo e outra, em
telefonia, apostaram nos moradores de favela como novos consumidores. Cientes
de que tratava-se de uma clientela com menor poder aquisitivo que os usuários
comuns de seus serviços, lançaram, nas comunidades com UPPs, pacotes com
preços mais acessíveis, como deflagra a passagem abaixo:
A Sky viu o potencial de novos mercados emergindo com a pacificação e lançou
em 2010 a “Sky UPP”. O programa oferece aos moradores em comunidades com
UPP um pacote de 89 canais por aproximadamente R$50 por mês, quase a
metade do preço normal cobrado do resto da cidade. Em 2011, a companhia
telefônica Embratel também lançou um pacote especial de TV, o Via Paz, para os
moradores do Borel, da Mangueira e do Alemão, oferecendo 96 canais por cerca
de R$30.94
Este tipo de iniciativa pode se apresentar como um dos fatores que
diminua os efeitos da “remoção branca”. Entretanto, é necessário mais políticas
93
RUBINO, Silvana. Políticas de enobrecimento. In: Carlos Fortuna; Rogério Proença Leite.
(Org.). Plural de cidades: léxicos e culturas urbanas (no prelo). Coimbra: Almedina, 2009, P.25. 94
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a
dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
123
dessa estirpe, principalmente que sejam fruto da ação direta do Estado, não apenas
programas de empresas privadas que enxergam nos moradores de favelas com
UPPs apenas mais uma oportunidade de constituir um novo mercado consumidor.
A “remoção branca”e o “enobrecimento” são dois processos que
caminham juntos. Na medida em que os moradores das favelas não detenham
mais recursos para permanecerem em suas moradias, outras pessoas ocuparão
estes lugares, e o território será então ressignificado. De acordo com Rubino
(2009), é exatamente este fenômeno que é denominado de “gentrificação”: o que
antes era considerado degradado nos ambientes é revestido de novos valores,
como o charme e a distinção, modificando a classificação daquele espaço, que
altera seu status de negativo para positivo.
É importante perceber o “enobrecimento” como um fator que recai não
apenas às moradias e propriedades dentro das favelas, mas sim constitui um
processo muito maior, que atinge as formas de lazer e de sociabilidade. Um
exemplo bastante icônico é o evento Baile da Favorita, realizado mensalmente na
quadra da escola de samba Acadêmicos da Rocinha.
Enquanto os traficantes disputavam o poder nesta favela, frequentá-la,
mesmo que fosse com o objetivo de ir aos bailes funk, era considerado perigoso.
Agora, com as Unidades de Polícia Pacificadora, o Baile da Favorita atrai muito
mais público e, vale frisar, pessoas com alto poder aquisitivo. A festa, que, em sua
página oficial na Internet, se autoclassifica como “O baile funk com a maior
concentração de gente bonita do país”95
possui ingressos cujos preços variam de
R$110 a R$330 reais. O evento costuma ser frequentado por artistas globais e o
sucesso é tanto que até já existem outras edições do baile em diferentes cidades do
Brasil.
Portanto, este é um exemplo de atividade “enobrecida”. Se antigamente os
bailes funk nas favelas eram sinônimo de espaços onde criminosos ostentavam
armas e drogas, atualmente a mesma festa, no mesmo local, é destinada a jovens
da elite carioca. O popular se transformou em “cool” nas mãos do mercado.
95
Fonte: https://www.facebook.com/BaileDaFavorita
124
Chama bastante a atenção também o slogan do Baile da Favorita: “O baile
funk com a maior concentração de gente bonita no país”. Compreende-se que este
era um dado importante para os realizadores do evento, já que alçaram a frase à
definição da festa. No entanto, por que foi ressaltado que há muita “gente bonita”?
O que pode ser apreendido é a necessidade de diferenciar este baile dos demais
bailes funk, destacando a “beleza” de seus frequentadores. Ora, se no Baile da
Favorita é sublinhado este aspecto, está implícito que em outros eventos do gênero
as pessoas não são belas. Se dicotomiza, nas entrelinhas, ainda mais: na Favorita,
os frequentadores são ricos, nos outros bailes são pobres, e, consequentemente,
feios.
Na esteira desta discussão, vale a citação de Rubino (2009):
O enobrecimento urbano não deixa de ser uma modalidade contemporânea de
higienismo, encoberta por um discurso de vida e apreço à cidade. Dialoga com
diversas outras formas de ocupação segregação urbana ao conferir um valor
simbólico ao lugar, e a partir daí auferir outros valores. Assim fica claro o
empenho em revitalizar por meio de equipamentos culturais: é preciso um certo
capital para se apropriar deles. Afinal, a cidade é feita de fronteiras, que tanto
impedem que os atores sociais considerados impróprios entrem, como que os
legítimos saiam e assim se desclassifiquem.96
Então, pode-se classificar o fenômeno do “enobrecimento” como uma
forma de segregração urbana. De acordo com Lefebvre (1969), a sociedade atual é
por si só segregradora. Ao mesmo tempo que a racionalidade pretende ser global
(organizadora, planificadora, unitária e unificante), e concretiza tal premissa no
campo analítico, na prática projeta a separação.
E esta questão da segregração muito implica no aspecto do direito à
cidade. Se existem fronteiras, dividindo as pessoas, não é possível afirmar que
todos os cidadãos tenham o mesmo acesso àquilo que partilham, ou seja, à cidade.
E, portanto, haveria um fator que definiria os que pertencem ou não à determinado
espaço:
96
RUBINO, Silvana. Políticas de enobrecimento. In: Carlos Fortuna; Rogério Proença Leite.
(Org.). Plural de cidades: léxicos e culturas urbanas (no prelo). Coimbra: Almedina, 2009, P.37.
125
Isso porque não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja
hierarquizado e que não exprima as hierarquias e distâncias sociais, sob uma
forma mais ou menos deformada e confusa e mais, dissimulada pelo efeito de
naturalização que a inscrição durável das realidades sociais no mundo natural
acarreta.97
Lefebvre (1969) postula sobre o direito à cidade: “O direito à cidade não
pode ser concebido apenas como um simples direito de visita ou de retorno às
cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana,
transformada, renovada.” 98
Portanto, é necessária a compreensão que o processo de “enobrecimento” e
a consequente segregação urbana que o fenômeno gera ou agrava, impõem a
privação à cidade dos segmentos mais pobres. Na medida em que o locus urbano
passa a ser gerido pelo mercado, e não são criadas alternativas por parte do
Estado, um cenário de maior distanciamento social se consolida.
A importância do gerenciamento eficaz das cidades e das problemáticas
que surgem com a explosão urbana é ressaltada por Lefebvre:
Contentemo-nos com indicar que o caráter democrático de um regime é
discernido em relação à sua atitude para com a cidade, para com as “liberdades
urbanas”, para com a realidade urbana e por conseguinte para com a
segregração.99
Quando se trata de “enobrecimento” e segregração urbana, é profícuo
concluir que há algo sendo disputado, e, neste caso, o que está em xeque é
justamente o acesso à cidade. A própria cidade se torna arena de disputa na
medida em que as chances de fruição da mesma não são iguais a todos os seus
habitantes. Exatamente como conclui Rubino:
O enobrecimento não é apenas uma política de exclusão, mas uma faceta delicada
das dinâmicas urbanas, uma vez que quanto mais afirma o valor e o papel da
cidade, lembra que o ar da cidade liberta apenas aqueles que sabem e podem nela
viver.100
97
BORDIEU, Pierre. Effets de lieu. In: La misère du monde. Paris: Seul, 1993. P.160. 98
LEFEBVRE, Henri. O Direito À Cidade. São Paulo: Editora Documentos, 1969. P. 108. 99
LEFEBVRE, Henri. O Direito À Cidade. São Paulo: Editora Documentos, 1969, P.90. 100
RUBINO, Silvana. Políticas de enobrecimento. In: Carlos Fortuna; Rogério Proença Leite.
(Org.). Plural de cidades: léxicos e culturas urbanas (no prelo). Coimbra: Almedina, 2009, P.37.
4. Conclusão 4.1. Os Impactos já Observados das Políticas Públicas na Afirmação de Direitos em Favelas Cariocas
O que pode ser depreendido desta análise que considerou os resultados das
políticas públicas efetuadas pelo governo em favelas no Rio de Janeiro constitui
um cenário diverso. É impossível uma classificação repousada em dicotomias da
estirpe “bom versus ruim”, uma vez que a maioria dos projetos ora possuía um
aspecto positivo, mas era descontinuado, ora detinha uma premissa adequada, mas
na prática resultava em consequências terríveis, e assim por diante.
A conclusão principal é que houve um negligenciamento por parte do
Estado nestas áreas. Explicar a situação como “falta de presença” é reduzir
irresponsavelmente a discussão. Afinal, o governo sempre, de alguma forma,
mesmo que da pior possível, prestou atenção às favelas. É importante notar que
estes espaços jamais foram invisíveis, embora os seus moradores fossem.
O incômodo primeiramente adveio da questão “estética”/urbanística.
Durante a primeira metade do século XX, era inaceitável que houvesse territórios
de pobreza, casebres sobre morros em uma cidade onde a capital da República
estava instalada. Ademais, as favelas contrastavam com as zonas ricas do Rio.
Portanto, enquanto o problema era enxergado apenas pelo viés habitacional, as
políticas públicas focaram nas remoções e na construção de conjuntos de
moradias, expulsando os moradores de suas respectivas comunidades.
Do ponto de vista dos direitos, os mesmos foram vilipendiados na medida
em que o governo, de forma arbitrária, expulsou os habitantes de suas casas.
Como setencia Davis (2005), o governo utilizar de políticas de remoção é uma das
maneiras encontradas para não efetuar o reconhecimento das favelas, e perpetuá-
las portanto como locais que não vão receber a “vigilância do Estado”.
Nesta discussão sobre as remoções, vale frisar que a única premissa
aceitável para a realização de transferências é se o terreno das casas de fato
127
apresentar algum risco, como por exemplo de deslizamento. No entanto,
ironicamente, apenas na cidade do Rio em 1966-7 morreram 2 mil moradores de
favelas exatamente por conta desta tragédia natural. Ou seja, alegando que estes
territórios são um problema urbano, o governo é capaz de remover as pessoas.
Mas quando há de fato uma necessidade de transferência, a mesma não é feita e
desgraças acontecem. A mais recente no Brasil data de abril de 2010, quando 267
moradores morreram soterrados em um deslizamento de terra na favela do
Bumba, em Niterói, estado do Rio.
Portanto, enquanto os projetos de remoção permaneceram norteando a
agenda de políticas públicas, a questão dos direitos permaneceu apagada. O
CODESCO (Companhia de Desenvolvimento da Comunidade) pode ser
considerado o primeiro programa que procurou promover melhorias nas favelas e
que enxergava os moradores destes espaços como portadores de cidadania. No
entanto, possuiu duração curta: vigiu apenas entre 1968-71, indicando o pouco
comprometimento governamental com o projeto. Valladares (2009) comenta as
diretrizes do CODESCO:
O projeto da CODESCO visava manter os habitantes na favela, organizar sua
participação nos trabalhos de remanejamento de seus espaços; assegurar a
implantação das redes de infra-estrutura (água, esgoto, eletricidade); fornecer
pequenos financiamentos às famílias para melhoria ou reconstrução de suas
casas; oficializar a ocupação dos terrenos pela venda aos residentes de lotes
individuais.101
Projetos com cunho urbanizante certamente ajudam na construção de
direitos. Como já foi explicitado, este era o objetivo maior do Favela-Bairro, que
começou em 1994. Todavia, é necessária a compreensão de que a promoção de
um espaço com maior qualidade de vida depende de outros fatores que vão além
das mudanças nas estruturas dos territórios. Este episódio já foi citado nesta
dissertação, mas recapitulá-lo parece pertinente: É narrado por pesquisadores, em
um estudo de campo na favela de Manguinhos, que o PAC promovia obras nesta
comunidade. E, muito embora, as calçadas estivessem novas e bem pavimentadas,
os usuários de crack continuavam utilizando a droga em cima das mesmas.
Portanto, é profícuo questionar até quando os investimentos em obras são úteis
101
VALLADARES, Licia. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2005. P.133.
128
caso seus impactos permaneçam restritos à questão funcional ou estética.
Esta preocupação excessiva com a “aparência” das favelas certamente
minou a formulação de políticas públicas de qualidade. Enquanto os projetos para
estes locais foram projetados baseados no que aqueles que não moravam nas
favelas pensavam ou queriam, é impossível falar que a agenda de direitos para os
habitantes foi suficientemente contemplada.
É importante pensar que uma forma não existe sem um conteúdo, ou seja,
modificar as estruturas sem procurar mudar a situação das pessoas que habitam
nas favelas não parece uma fórmula eficiente. Tanto isto não foi feito que estes
territórios se tornaram alvos fáceis para a instalação de poderes paralelos. Ora,
esta situação só foi possível devido a um vácuo deixado pelo Estado. Embora
presente em suas instituições armadas como a polícia ou o BOPE, permanecia
ausente na premissa de prover direitos e serviços com qualidade para os
moradores das favelas.
Após o domínio de traficantes ou milicianos, as favelas passam a ser
problema de segurança pública e, neste momento, mais direitos são violados.
Civis passam a se enxergarem no meio de conflitos armados entre facções rivais,
disputando o controle do território, ou entre as quadrilhas e a polícia, ambas
situações extramamente violentas. Moradores são vítimas de balas perdidas e
dezenas de escolas fecham suas portas devido ao risco, privando assim milhares
de crianças a frequentar as instituições de ensino.102
Antes do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora, nas décadas de
1990 e 2000, um pânico em relação à violência urbana permeava a sociedade
carioca. Este medo possuía cor e local de origem: a criminalidade viria de jovens,
negros e moradores de favelas. Então além do termo “favelado” já ser pejorativo
por indicar que a pessoa seria pobre, passou também a ser sinônimo de bandido
em muitos imaginários sociais. Os moradores de favelas sequer revelavam mais
onde moravam, e a epidemia da palavra “comunidade” se iniciava.
102
Muitos episódios deste tipo de violência podem ser citados. Se atendo ao ano de 2013, a mais
recente situação aconteceu no começo de agosto, no bairro de Lins, Zona Norte do Rio. Endereço
da notícia: http://www.tribunahoje.com/noticia/71300/brasil/2013/08/02/operaco-em-favelas-do-
rio-deixa-um-morto-e-fecha-comercio-e-escolas.html
129
Portanto, é complicado se falar de respeito a direitos quando um panorama
de criminalização da pobreza se instaura na cidade. De fato, o cenário não era
muito animador quando o projeto das UPPs foi lançado no final de 2008. As
favelas cariocas, além de possuírem um acesso ainda deficitário a serviços
básicos, estavam controladas por facções armadas que de maneira brutal
reduziram as liberdades civis e instalaram um poder paralelo. A pauta de direitos
ficou restrita a obras de urbanização que, como já observado, não detém por si só
a capacidade de modificar a sociedade.
4.2. Os Impactos em Curso das Políticas Públicas: Uma Análise sobre o Presente e o Encaminhamento de Perspectivas Futuras
Inegavelmente, o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora traz
inovações para a arena de políticas públicas para as favelas cariocas. Embora não
se constituindo como a mais original das ideias, já que o GPAE carregava consigo
a mesma premissa de fim do controle armado, as UPPs contam com um apoio da
mídia, de dezenas de empresas privadas e da sociedade carioca como um todo,
que passa a depositar no programa todas as esperanças de uma cidade menos
violenta.
No que concerne à sua contribuição na questão dos direitos, é necessário
frisar que o projeto permitiu que os moradores das favelas andassem novamente
com liberdade nos locais em que habitam. O domínio do tráfico ou da milícia
trazia um risco constante de confrontos, e isto resultava em uma enorme sensação
de insegurança. O depoimento abaixo, colhido em pesquisa de campo no Morro
Chapéu Mangueira, no Leme, corrobora este pressuposto:
Para as minhas filhas agora está “mil por cento” de bom. Porque antes...não era
bom (...) Hoje elas podem voltar para casa de madrugada. (...) Agora a UPP está
aqui. Para fazer nossa segurança. Antigamente, anos atrás, eu nem deixava elas
saírem: era bandido, tiro, muita coisa. E essas coisas não acontecem mais. Mas
antes eu ficava com medo até de dormir aqui. (Mulher, 35 anos, moradora,
Chapéu).103
103
Fonte: O Retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia
a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Publicação do Banco Mundial.
P.71.
130
Por um lado, existe essa percepção de mais segurança, e esta é uma
consequência direta do término do domínio armado de quadrilhas criminosas.
Então, se o viés analisado for este, pode-se afirmar que a UPP promoveu o direito
de ir-e-vir, que anteriormente era tolhido por traficantes ou milicianos. Por outro
lado, é essencial lembrar que a polícia ainda não inspira total confiança por parte
dos moradores. Os relatos de abuso de poder, revistas indevidas e acusações falsas
de desacato são as queixas mais comuns. Entre as denúncias mais graves, estão o
episódio ocorrido em julho de 2010, em que um morador do Pavão-Pavãozinho,
André Araújo, foi vitíma de uma bala perdida que teria sido disparada por
policiais da UPP.104
Mais recentemente, pode ser citado o caso do pedreiro
Amarildo Dias, que desapareceu dia 14 de julho deste ano após ter sido levado
para a sede da UPP na Rocinha para averiguações. Até a data de conclusão desta
dissertação, agosto de 2013, o episódio ainda não havia sido elucidado.
Portanto, é com cautela que se afirma que houve a promoção do direito à
liberdade. Embora casos relativamente pontuais e isolados de violência dos
policiais das UPPs não possam caracterizar que a situação é a mesma de quando
facções criminosas controlavam as favelas, também não é possível postular que o
direito está sendo promovido em sua totalidade. A melhora do cenário é inegável,
porém faltam ainda outros aspectos para se falar em uma chegada plena da
democracia.
No que tange outros direitos, como por exemplo os acessos à agua, luz,
esgoto, coleta de lixo e outros aspectos, como já foi observado, o panorama está
apresentando desenvolvimento desde os anos 1990. Como está longe ser o ideal,
ainda é preciso pensar em políticas que tragam os serviços com qualidade para
todas as favelas. E estas devem ser executadas sem apresentar disparidades entre
as diferentes comunidades, visto que atualmente há várias discrepâncias. Por
exemplo, a situação é bem distinta no Complexo da Maré, na Zona Norte e no
Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul.
Nos locais com UPPs, a UPP Social é um projeto que pode auxiliar neste
sentido, já que detém como premissa a escuta das demandas dos moradores. Para
104
Fonte: http://odia.ig.com.br/portal/rio/dono-de-bar-%C3%A9-v%C3%ADtima-de-bala-perdida-
no-cantagalo-1.143185
131
Alexandre Cesário, morador do Pavão-Pavãozinho, por exemplo, o maior
problema de seu local de moradia continua sendo o excesso de lixo e a falta de
coleta do mesmo. Então, se há esta questão premente, é uma chance da UPP
Social pensar em medidas que eliminem o problema.
Todavia, a perspectiva otimista que as favelas com UPPs já carregam
contrasta com uma outra face desta política pública: a maioria das comunidades
no Rio de Janeiro ainda não foram contempladas com o projeto. Se nos espaços
ocupados a expectativa futura na arena dos direitos é positiva dado o investimento
que está sendo realizado, nas outras favelas a discussão permanece estéril. O
governo parece bastante concentrado nos territórios com UPPs pois o o projeto é a
“menina dos olhos” da atual gestão, que inclui um pacto político entre o
governador e o prefeito da cidade. No entanto, é necessário ressaltar que milhares
de moradores de favelas no Rio ainda estão sob o controle de quadrilhas, e
continuam privados de muitos direitos. É notável que o projeto se expande cada
vez mais, e novas unidades são inauguradas, mas é profícuo questionar se as UPPs
chegarão a toda cidade. Mais importante do que isso, é pensar qual será a política
pública para onde a UPP não for instalada.
Então, atravessando a névoa de euforia trazida pelas UPPs, é preciso
investigar o que acontecerá nas favelas não ocupadas, e também qual será o futuro
dos locais contemplados com o projeto após 2016, ano das Olimpíadas que serão
realizadas no Rio. Afinal, as intenções higienistas permanecem na memória. Davis
comenta no fragmento abaixo as “intenções” muitas vezes presentes em certas
políticas públicas:
No terceiro mundo urbano, os pobres temem os eventos internacionais de alto
nível- conferências, visitas de dignitários, eventos esportivos, concursos de beleza
e festivais internacionais-, que levam as autoridades a iniciar cruzadas de limpeza
da cidade: os favelados sabem que são a “sujeira” ou a “praga” que seus governos
preferem que o mundo não veja. Durante a comemoração da Independência
nigeriana em 1960, por exemplo, um dos primeiros atos do novo governo foi
murar a estrada até o aeroporto para que a princesa Alexandra, representante da
rainha Elizabeth, não visse as favelas de Lagos. Hoje, é mais provável que os
governos melhorem a paisagem demolindo as favelas e despejando das cidades os
seus moradores.105
105
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006. P.111.
132
O temor de que as UPPs só estariam existindo para servir aos interesses da
Copa e das Olimpíadas é compartilhado por muitos moradores de favelas
ocupadas. Este medo, em parte, é legítimo: a maioria dos locais contemplados
estão no chamado “cinturão olímpico”, que comporta a Zona Sul, o entorno do
Maracanã e a Linha Vermelha, principal conexão entre o aeroporto internacional e
o resto da cidade.
Outra questão importante é a ameaça de remoção branca. Quando certas
áreas são “enobrecidas”, ou seja, passam a possuir valoração positiva, charmosa,
atraente, os preços automaticamente sobem, e os habitantes “originais” daquele
espaço são obrigados a se mudar. Então, é profícuo observar que, na prática,
determinadas parcelas da população possuem maior direito a usufruir do locus
urbano e de seus serviços e facilidades, do que outros segmentos. A “mão
invisível do mercado” oferece a tônica, enquanto o Estado pouco parece fazer no
sentido de garantir que a cidade, espaço compartilhado por todos os cidadãos que
a habitam, de fato seja usufruída de forma igualitária por todos.
E este é um dos pontos onde os alcances e resultados das políticas públicas
se imiscuem com a arena dos direitos. E também onde se nota que a questão é
bastante complexa e cheia de nuances. Por exemplo, se por um lado pode-se
afirmar que as UPPs trouxeram maior liberdade e segurança para os moradores de
favelas, já que sob o jugo de facções criminosas seus direitos de ir-e-vir estavam
bem mais comprometidos, por outro pode estar retirando o direito à cidade, já que
está gerando o fenômeno de “enobrecimento”. No entanto, este não é um destino
inalterável. Com disposição do governo no sentido de oferecer mecanismos que
permitam a permanência destas pessoas em seus locais de origem, é possível frear
este processo.
As UPPs carregam consigo um paradoxo importante: o sucesso do projeto
seria, justamente, o seu fim. E é neste sentido que a discussão sobre os impactos
na arena de direitos é tão essencial. A não-necessidade de policiamento
permanente nas favelas só se concretizará se estes espaços se tornarem providos
de direitos. Não por coincidência, os traficantes não exercem controle armado em
Ipanema, por exemplo. As peculiaridades históricas das favelas as tornaram
territórios onde este domínio seria realizado de maneira mais fácil.
133
Portanto, a fim de conclusão, é preciso enxergar que ainda há um longo
caminho a ser percorrido no que concerne à construção de uma cidade mais justa e
igualitária. É impossível acreditar que a UPP por si só será capaz de promover
todos os direitos. As mudanças caminham de forma mais lenta.
Transformar espaços que foram subjugados diversas vezes ao longo de sua
história certamente não é uma tarefa simples. Mas, é só a partir do entendimento
de que os moradores das favelas são não apenas habitantes da cidade do Rio, mas
sim cidadãos portatores de direitos, é real a possibilidade de formação de um
território urbano mais acessível à todos.
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