Desigualdades regionais e Nordeste em Formação Econômica do Brasil

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    1/24

    CAPTULO 7

    DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAOECONMICA DO BRASIL

    Tania Bacelar de Arajo

    Valdeci Monteiro dos Santos

    dicil exagerar com respeito ao Nordeste do Brasil.

    A tudo escapa a explicaes ceis.

    Poucas vezes na histria humana uma ormao

    social ter sido condicionada, em sua gnese,

    de orma to cabal por atores econmicos.

    Celso Furtado

    A Fantasia Desfeita

    1 INTRODUO

    O entendimento do processo de ocupao humana e econmica do Brasil mobilizoumentes diversas, e esse esoro de tantos estudiosos resultou numa ampla litera-tura, na qual se destaca Formao Econmica do Brasil(daqui por diante FEB), deCelso Furtado, produzido no nal dos anos 1950. Uma das contribuies entretantas desse livro a identicao das razes da diversa e desigual organizaodo territrio brasileiro.

    O caso do Nordeste ganha relevo nessa trajetria, posto que a regio abrigou o

    ciclo virtuoso inicial da histria da ocupao econmica do pas pelos portuguesesno sculo XVI, tendo acolhido a primeira capital da colnia Salvador. Depois oNordeste mergulhou em longo perodo de estagnao e no acompanhou as mu-danas rpidas no pas entre o nal do sculo XIX e a primeira metade do sculo

    XX. Furtado observou tal tendncia e buscou explicar suas causas mais proundasutilizando o arsenal terico do estruturalismo cepalino, que ajudou a construir.

    O presente artigo tenta explicitar as principais descobertas de Furtado nodesao de interpretar a problemtica regional, em especial do Nordeste brasileiro;

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 177 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    2/24

    178 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    comea, na seo 2, pelo caminho que percorreu para chegar sntese apresentadaem FEB; detalha pontos centrais de sua anlise na seo 3, para, em seguida,

    buscar vericar o que precisou complementar em suas anlises quando o presidenteJuscelino Kubitschek o chamou a atuar na vida pblica, o que objeto da seo 4.Trata-se, tambm, nesse momento do texto, da proposta de Furtado para mudar oNordeste, undamentada na criao da Superintendncia do Desenvolvimento doNordeste (Sudene) e de sua ao rente do rgo. Na seo conclusiva so eitasconsideraes nais, especialmente a respeito da atualidade da viso de Furtadosobre o Nordeste contemporneo.

    2 O PERCURSO DE FURTADO NA ANLISE DAS BASES DA DESIGUALDADEREGIONAL BRASILEIRA

    Celso Furtado revela suas primeiras preocupaes e curiosidade em entender osemirido nordestino, em especial as condies de intempries climticas, demisria candente e de infuncia poltica e religiosa local em meio a sua prpriaexperincia de vida como criana e adolescente no interior do Estado da Paraba.Perodo tambm em que, por uma condio privilegiada, teve contato utilizandoa biblioteca do pai com as ideias de importantes autores da literatura mundial,notadamente clssicos das reas de histria e losoa (OLIVEIRA, 1983).

    Antes de escrever sua obra seminal, FEB, em que nos leva a uma proundarefexo sobre o processo de constituio da ormao econmica e social do Bra-sil; e, no seu mago, s razes do processo de ocupao e consolidao da regioNordeste Furtado elabora um conjunto de estudos em que vai gradualmenteaproundando o exame da questo regional e buscando os nexos de constituioda nao brasileira. Quatro estudos se ressaltam neste esoro prvio: EconomiaColonial no Brasil nos Sculos XVI e XVII (tese de doutoramento de 1948); o ar-tigo Caractersticas Gerais da Economia Brasileira (1950); e os livrosA EconomiaBrasileira: contribuio anlise do seu desenvolvimento (1954) e Perspectiva daEconomia Brasileira (1958).

    Em sua tese de doutoramento, considerada pelo prprio como parte im-

    portante das refexes mais abrangentes incorporadas dez anos depois em FEB, eita a tentativa de interpretar a gnese e o sentido colonial do pas, como extensodo capitalismo comercial europeu, em especial de Portugal a Colnia, desde asua ormao, no mais que uma grande empresa produtora de bens tropicaisdestinados a alimentar o comrcio portugus (...). O centro de gravidade da eco-nomia do pas estar ora. Furtado revela aqui dois aspectos que depois explorarcom maior undamentao: o desenvolvimento baseado na demanda externa e apredominncia dos ncleos de deciso eitos de ora do pas. Como sentencia o

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 178 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    3/24

    179DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    autor: O Pas ter, assim, um papel passivo no processo de ormao (FURTADO,2002, p.142).

    O cenrio que Furtado descreve nesse estudo o do Brasil que se inicia peloNordeste. A ltima parte da tese revela alguns importantes legados do perodocolonial para a ormao social e econmica do Brasil; em especial, heranas aindamais presentes no Nordeste (FURTADO, 2002, p. 141-169): i) a persistnciada monocultura, com o legado do mundo do acar, que resistiu aos tempose com isto, segundo o autor, o pequeno mundo patriarcal criado em torno dosengenhos pde chegar at nossos dias; ii) o atraso tcnico, maniesto no extremorudimentarismo dos mtodos de trabalho da colnia, e que ajudou, em adio monocultura, a azer avanar a economia de subsistncia no campo; iii) a

    agricultura de subsistncia, expandida de orma desarticulada e aproundando acondio de pobreza no campo; e iv) a estrutura do patriarcalismo, como matrizda sociedade nacional, transbordando no uturo para o desenvolvimento da vidaurbana brasileira.

    No breve artigo de 1950, Furtado volta a analisar a economia colonial, destaeita incorporando conceitos mais prximos da infuncia do mtodo cepalinoao identicar trs caractersticas no tipo de estrutura econmica colonial aindaprevalecente, segundo ele, at 1914: i) uma persistente piora na relao de troca;ii) a vulnerabilidade elevao da taxa cambial; e iii) a perspectiva de infao

    crnica do meio circulante, motivada em grande parte por dcits oramentrios(FURTADO, 1950, p. 7-8). E acrescenta que tal economia, ao contrrio das eco-nomias industriais, no necessita para seu crescimento de aumento progressivodos salrios reais, posto que no depende do mercado interno para sua expanso(FURTADO, 1950, p. 8).

    De tais atos Furtado deduz mais duas caractersticas, muito presentes emoutras anlises suas sobre a economia brasileira e tambm particularmente relevantespara entender o legado da colnia para o Nordeste: a tendncia concentrao darenda e a lentido na ormao do mercado interno.

    Essa congurao de uma economia que no logra ampliar signicativamenteo mercado interno corroborada, ainda at as primeiras dcadas do sculo XX, porum ncleo industrial (Sudeste) que se desenvolve sem carter nacional. No casodo Nordeste, podem ser mencionadas em paralelo s usinas que surgem comounidades industriais importantes bricas txteis e de alimentos, que, no obstanteinduzirem certo grau de crescimento, no constituam suciente contraponto hegemonia das exportaes de produtos primrios e muito menos contribuamsignicativamente para ampliar o mercado interno regional.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 179 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    4/24

    180 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    No livroA Economia Brasileira tem-se um maior rigor terico e metodolgico eum mergulho mais detalhado na evoluo econmica do Brasil. Nos quatro primeiros

    captulos dessa obra, Furtado apresenta uma interpretao da histria econmica dopas, da colonizao at a primeira metade do sculo XX (ver MALLORQUIM, 2005,p. 87). Como na tese de doutoramento, tambm nesse caso Furtado aproxima-se dasideias de Roberto Simonsen e Caio Prado Jr., pelo rigor da abordagem histrica. Emtermos tericos veem-se ortes infuncias de Keynes e dos preceitos do estruturalismoda Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), recursos bemutilizados na anlise empreendida em FEB.

    Chama a ateno tambm nessa obra o ltimo captulo, no qual Furtado ex-pe a problemtica do crescimento econmico, delineando as hipteses bsicas do

    conceito de subdesenvolvimento, que o autor ir uturamente utilizar para explicaras condies de insero da economia brasileira na etapa do capitalismo industrial;e, por conseguinte, como se reproduz, em escala regional, o subdesenvolvimentodo subdesenvolvimento, no que respeita s condies de insero do Nordestena dinmica capitalista brasileira ps-Sudene.

    Por m, a quarta publicao de Furtado que conclui o itinerrio undamentalque possibilitou a sntese de FEBoi o livro Perspectiva da Economia Brasileira, de1958. Nessa obra observa-se um relevante avano na discusso da questo regional,com a tentativa primeira de regionalizao da economia nacional e de explicitao

    das desigualdades regionais.O autor reconhece no Brasil das primeiras dcadas do sculo XX um imen-

    so contnuo territorial, dotado de unidade poltica e cultural, mas descontnuo eheterogneo do ponto de vista econmico (FURTADO, 1960, p. 10). Em doisteros do territrio nacional, aponta Furtado, encontrava-se um imenso vazio de-mogrco e econmico, no tero restante se destacando dois sistemas econmicosautnomos: o sistema sulino (de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul) e o sistemanordestino (da Bahia ao Cear). De orma direta, embasado em evidncias de da-dos socioeconmicos, qualica o contexto de desigualdades nestes dois sistemas.

    Enquanto o sistema sulino evolui na primeira metade do sculo XX com avanadoprocesso de integrao e estruturado por dois ncleos de atividade: o setor ligadoao comrcio internacional e o setor industrial; no Nordeste encontra-se umsistema pouco integrado, sem ao de atores estimulantes externos, com umnvel de renda mdia com poucas possibilidades de gerar poupana necessria paraacelerar o crescimento (FURTADO, 1960, p. 11-13).

    EmFEB eita uma regionalizao mais abrangente, com enoques especcos,por exemplo, para a economia de Minas, do Maranho e da Amaznia.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 180 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    5/24

    181DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    No captulo VII desse livro examinada, com maior proundidade, a questodas disparidades regionais. Furtado reora a tese de que a economia brasileira

    no um sistema integrado e que se evidenciavam grandes disparidades de nveisde renda e de crescimento entre os dois sistemas anteriormente citados. Dada agrande heterogeneidade do espao territorial brasileiro, com combinaes diversasde atores e recursos e sistemas econmicos com distintas potencialidades, procurardesenvolver simultaneamente estes sistemas poderia, segundo Furtado, levar disperso de recursos e reduo do crescimento mdio do conjunto da economiabrasileira (FURTADO, 1960, p. 56).

    A soluo apontada por Furtado combina, de um lado, concentrao de re-cursos em regies com maiores potencialidades, visando estruturar um ncleo que

    servisse de base ao desenvolvimento das outras regies; e, de outro, implementaode uma poltica nacional de colonizao objetivando combinar melhor os atoresde mo de obra e recursos naturais; se nas reas mais pobres concentra-se umagrande massa de pessoas, a produtividade mdia de toda a economia tende a cair,diz o autor (FURTADO, 1960, p. 56-57).

    Com relao especicamente ao Nordeste, indica que as alternativas noso concentrar recursos ou abandonar a regio. (...) o necessrio integrar ade-quadamente um programa regional na poltica nacional ou no programa nacionalde desenvolvimento (FURTADO, 1960, p. 58). Aqui Furtado j prenuncia as

    bases do relatrio do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste(GTDN, 1959). O reerido programa regional deveria contemplar estratgias dedeslocamento do excedente de populao, colonizao, organizao da produo,transportes, garantia de preos e de mercados. Furtado claro na argumentaode que a questo regional, em particular a questo nordestina, deve ser submetidaa uma perspectiva nacional as polticas regionais pressupem uma compreensodos objetivos nacionais do desenvolvimento (FURTADO, 1960, p.58).

    3 O NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    O Nordeste permeia todo o esoro de Celso Furtado de compreender as basesmateriais do processo de ocupao humana e econmica do territrio brasileiro eas razes histricas da ormao econmica, social e cultural deste pas. Como sever adiante, o Nordeste no ca circunscrito a uns poucos captulos do livro que, aqui, o nosso objeto central de observao.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 181 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    6/24

    182 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    3.1 Leitura regional do processo de ocupao humana e econmica doBrasil e o papel exercido pelo Nordeste

    Embora meream destaque os captulos de 8 a 12, e especialmente o captulo11, Formao do complexo econmico nordestino, em que eito um magncoesoro de sntese do que ocorreu na longa crise que marcou o Nordeste entre ossculos XVII e XIX, o que ajuda a entender as bases estruturais da organizaodo territrio, da economia e da sociedade nordestina at hoje, essa regio j vinhasendo objeto de tratamento desde os primeiros captulos do livro FEB.

    Quando Furtado trata dos undamentos da insero brasileira submetida lgica da dinmica do capital comercial europeu e procura compreender os atoresde xito da empresa agrcola baseada na produo de acar em territrio da ento

    colnia portuguesa, do Nordeste que est alando, pois oi no espao sico doLitoral-Mata desta poro do Brasil que foresceu o que Furtado chama de primeiragrande empresa colonial europia (FURTADO, 2007, p. 31).

    certo que a maioria dos atores de xito eram exgenos, entre os quais o do-mnio da tecnologia produtiva pelos portugueses, que detinham experincia prviana produo do acar, a capacidade dos famengos em especial os holandeses dedistribuir o acar ao mesmo tempo em que abriam novos mercados e apoiavam onanciamento da atividade, alm do engate da empreitada no mercado de mo deobra escrava da poca, o que viabilizou a soluo para o problema da escassez de

    trabalhadores para realizar as atividades produtivas do complexo canavieiro. Masesse conjunto de atores operou de maneira articulada no territrio nordestino, maisexatamente nas terras midas e rteis da Zona da Mata ali localizada. Embora aatividade aucareira tenha forescido em outras regies, oi nas terras nordestinasque se consolidou, mantendo-se hegemnica por sculos.

    A abundncia de terras e a rareao da populao autctone, ao lado das boascondies climticas, permitiram a implantao e a reproduo altamente lucrativadaplantation de baseescravista. Da vem o histrico processo de alta concentraoda propriedade undiria at hoje presente na Zona da Mata nordestina.

    O Nordeste aparece, ento, como revela Furtado, com sua sorte ligada desdecedo ao movimento do capital comercial europeu em expanso no sculo XVI es disputas entre pases europeus pelo controle do acar, entre outros atores dageopoltica da poca e de uma economia mundial em gestao.

    Por seu turno, no d para entender o que aconteceu no Nordeste do co-meo do sculo XVII sem compreender o que Furtado chamou de surgimentode uma poderosa economia concorrente no mercado dos produtos tropicais(FURTADO, 2007, p. 46), nas Antilhas. Nem se pode acompanhar o que vai

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 182 16/11/2009 18:25:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    7/24

    183DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    ocorrer no Brasil com impactos no Nordeste na segunda metade deste mesmosculo XVII sem identicar com clareza, como o az Furtado, os novos rumos que

    toma Portugal como potncia colonial ragilizada, buscando ancorar-se na entopoderosa Inglaterra. A prpria debilidade de Portugal tinha a ver com a crise doempreendimento aucareiro, antes to exitoso, e, portanto, com o que ocorria noNordeste do Brasil.

    Nos sculos XVIII e XIX, ciclos econmicos virtuosos vo se desenvolver emoutras regies do Brasil. O Nordeste vai acompanhar estes movimentos sem estar nocentro das decises econmicas e polticas, mesmo sorendo impactos positivos ounegativos de movimentos como o da independncia poltica em relao a Portugal,ou como o que dene o m da escravido na vida institucional brasileira.

    no sculo XIX que Furtado localiza a consolidao da integridade terri-torial e a armao da independncia poltica do Brasil, mas tais movimentos sedo em meio hegemonia do ciclo do ca, na segunda metade daquele sculo,entendido pelo autor de FEBcomo uma ase de transio econmica que organizouna ex-colnia o que chamou de sistema econmico autnomo capaz de gerar seuprprio crescimento (FURTADO, 2007, p.71).

    Sai-se da parte I do livro de Furtado com a viso de que, se no Nordeste seestruturaram as razes do processo de ocupao territorial do pas, oi no Sudesteatual que se construram as bases do crescimento voltado para o mercado interno,

    dinmica que vai organizar o pas, independente e livre do escravismo, que emergeno incio do sculo XX.

    3.2 Destaque para a formao do complexo nordestino

    na parte II do livro de Furtado sobre a ormao econmica do Brasil que oNordeste tratado com maior detalhamento, exatamente pela importncia que asbases produtivas ali instaladas nos sculos XVI e sua dinmica posterior tiveramna estruturao da ento colnia de Portugal.

    A ocupao humana e econmica do litoral nordestino, sob o comando do

    Estado portugus, com base em privilgios e avores especiais aos que se dispu-sessem a implantar e azer uncionar os engenhos de acar, apresentada comoum caso de sucesso.

    Os resultados econmicos desse empreendimento que se ampliava rapidamenteeram estimulantes. Mas Furtado revela desde logo uma das marcas principais daatividade aucareira: a orte concentrao da renda por ela gerada nas mos da classedos proprietrios dos engenhos. Fazendo os clculos de receitas e custos, revela quea indstria aucareira era to rentvel que podia autonanciar a duplicao de

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 183 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    8/24

    184 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    sua capacidade produtiva a cada dois anos, tanto que a produo decuplicou noltimo quartel do sculo XVI (FURTADO, 2007, p. 81). Um Nordeste exitoso

    e de economia dinmica, mas socialmente raturado, surge nesta ase da vida dopas. A lembrana desse perodo de artura e sucesso marcar o imaginrio das elitesherdeiras dos colonizadores por muito tempo, assim como se prolongar nasrelaes sociais, polticas e econmicas da regio a herana dos longos sculosem que dominou a escravido.

    Ao mergulhar no entendimento da dinmica da acumulao na economiaaucareira, Furtado mostra que o crescimento se dava de orma extensiva, isto ,pela mera incorporao de novos atores ao processo produtivo, sem que ossemnecessrias modicaes estruturais. Crescer era ocupar novas terras e aumentar as

    importaes (inclusive de escravos). Na crise, a ordem era minguar, reduzindoimportaes e subutilizando terras. Tambm nesse caso, no precisava se trans-ormar estruturalmente. Para ir de um momento a outro, a varivel-chave era ademanda externa.

    Furtado mostra como a crise defagrada pela queda de preos em uno daconcorrncia com as Antilhas no sculo XVII ez a economia estruturada no Litoral-Mata nordestino baseada na produo de acar para exportar mergulhar numlongo perodo de letargia, que deu margem orte expanso, em paralelo ao ncleoexportador aucareiro, da economia de subsistncia. Enquanto isso prosseguia a

    ocupao humana e econmica do Brasil em outras regies: a das minas de ouro(em Minas Gerais), a da borracha (na Amaznia), a do algodo (no Maranho), ada pecuria (na parte meridional do pas), e a do ca (em So Paulo)

    Mas o que Furtado destaca em seguida a ormao do outro Nordeste: oda pecuria. Mostra como ele se organiza para responder s demandas da baseaucareira, especialmente para o ornecimento de animais para corte e transporte.Da trat-la como atividade induzida pela economia aucareira e de rentabilidadebem mais baixa. Estima que a renda total gerada pela ampla regio pecuria nor-destina, no sculo XVII, no chegava a representar 5% do valor das exportaes

    de acar. Juntas, as duas atividades estruturam o que ele chamou de complexonordestino. Em comum, as atividades aucareira e criatria tendiam a manter suasormas originais, com o crescimento de carter extensivo, sem alteraes estruturaisque repercutissem nos custos de produo e na produtividade.

    O mundo da pecuria se organiza na poro mais interior da regio (estendendo-se para o Agreste e o Serto, partindo do Nordeste oriental na direo de Cear ePiau, e descendo at Bahia) onde a ocupao das terras tambm se d de ormaextensiva e, como destaca Furtado, at certo ponto itinerante. Como a populao

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 184 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    9/24

    185DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    vai crescendo, e o comando da atividade pecuria s pode ser exercido por poucos,um arranjo dierente se organiza, numa sub-regio que no vai conhecer o amplo

    domnio da escravido.Outra distino importante destacada por Furtado a da lgica da expanso.

    Enquanto na economia aucareira o crescimento da demanda externa era o motordo crescimento, a acumulao de capital na economia criatria induzia a umapermanente expanso, sempre que houvesse terras a ocupar, independentementedas condies de procura (FURTADO, 2002, p. 96). Da se deduz a importnciadessa atividade como ator undamental de penetrao e ocupao do interiorbrasileiro, em particular do interior do Nordeste.

    Ressalta ainda Furtado que a criao de gado no interior do Nordeste era,

    em grande medida, uma atividade de subsistncia, lastro da sociedade do couro. Aimportncia do setor de subsistncia na pecuria um dos traos mais relevantesdessa estrutura.

    Ao estudar o longo perodo de decadncia que se segue crise do acar nosculo XVII, no captulo 11 de FEB, Furtado examina as ormas que assumiramesses dois sistemas antes estruturados na regio: o aucareiro e o pecurio. Consideraque as trajetrias que seguiram ajudam muito a entender os elementos undamentaisque organizaro o Brasil do sculo XX.

    Se em ambos dominava o crescimento extensivo, dispensando mudanasestruturais; e se, em ambos, os baixos custos monetrios de operao contribuampara manter a estrutura uncionando mesmo em tempos de crise, em termos dedinmica de longo prazo no haveria semelhana. E Furtado investe na explici-tao dessa dierena. A longa crise do complexo aucareiro provocada pelocomportamento adverso da demanda externa desorganizou as unidades menosprodutivas em avor das que apresentavam condies mais avorveis de terra etransporte: promoveu um processo de centralizao de capitais, ntido no momentode criao dos engenhos centrais e mais tarde das usinas, que sucederam os antigos

    engenhos. Paralelamente, a populao que no encontrava mais oportunidades nabase aucareira migrava para o interior pecurio, onde a prtica da subsistnciaera sempre uma alternativa.

    Gado e subsistncia eram o binmio estruturador do Agreste e do Sertonordestinos. Sendo endgena a capacidade de expanso desse sistema denidapelo crescimento vegetativo do rebanho na crise o ajuste se azia pelo aumentodo peso relativo da atividade de subsistncia e incorporao de novas terras paraa atividade. Isso explica, segundo Furtado, o lento processo de atroamento do

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 185 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    10/24

    186 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    Nordeste entre os sculos XVII e XIX. A renda realper capita de sua populaodeclinou secularmente (FURTADO, 2007, p. 104).

    Furtado caracteriza esse longo momento da vida econmica do Nordeste comoo de um caso de involuo econmica. O setor de alta produtividade o aucareiro perdia peso relativo e a produtividade da pecuria declinava medida que seexpandia a atividade. A combinao destes dois processos refetia essencialmentea ampliao do setor de subsistncia. O declnio da produo aucareira gerou umlento processo de migrao para a pecuria e a agricultura de subsistncia, como excedente populacional sendo canalizado em grande parte para ocupar novosespaos vazios legado representado pela constante expanso da ronteira agrcola(agricultura itinerante). De ncleo econmico de alta rentabilidade no sculo

    XVI, o Nordeste se oi transormando progressivamente em uma economia emque grande parte de sua populao produzia apenas o necessrio para subsistir(FURTADO, 2007, p. 64).

    Essa trajetria problemtica aastar o Nordeste da dinmica que se instalarem outras partes do territrio nacional. As bases do enorme hiato de nveis derenda e de condies de vida que separaro o Nordeste de outras regies do pasestavam ncadas. A dinmica do sculo XX, quando o Brasil muda proundamente,ampliar essa herana. A questo nordestina se revelar com maior nitidez, mas assementes j haviam sido plantadas.

    3.3 A ocupao do Maranho: um outro Nordeste

    Para o Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica (IBGE), at meados do sculoXX o Maranho no era Nordeste. Situado na transio entre o amplo semiridoe a Amaznia, as terras maranhenses integravam o ento chamado Meio-Norte.

    Ao propor a criao da Sudene, no nal da dcada de 1950, Celso Furtado incluiuesse estado na rea de atuao daquele rgo. O Maranho passou a integrar oNordeste tambm para o IBGE e assim tratado at hoje, embora suas relaescom o Par tenham se intensicado muito mais do que com estados do Nordeste,

    mesmo quando a poro sul maranhense passa a abrigar a expanso do complexoprodutor de gros que vem subindo pelo oeste baiano.

    Em FEB, Furtado reconhece as especicidades da ocupao maranhense,tanto que dedica ao Maranho um captulo especco (captulo 16). Ao analisar oBrasil do ltimo quartel do sculo XVIII, j no nal da ase colonial, trata do quechamou de dois sistemas autnomos: o do Par e o do Maranho. Este ltimoarticulava-se com a regio aucareira atravs da pecuria. J o sistema paraense,baseado na economia extrativa vegetal, era realmente isolado.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 186 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    11/24

    187DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    O que Furtado coloca em evidncia a prosperidade maranhense em meio crise do Brasil do acar e da minerao, naquele perodo.

    O governo de Portugal, atravs de Pombal, marcara presena nas terras mara-nhenses, com uma Companhia de Comrcio, capitalizada e disposta a nanciar umaalternativa econmica na regio, num contexto em que a Guerra da Independnciados Estados Unidos e a Revoluo Industrial na Inglaterra reorganizavam o mercadoprodutor de algodo. A produo maranhense entrou nessa janela de oportunidadee a regio viveu momento de grande dinamismo econmico. Mas essa prosperidadeera precria, como ressalta Furtado, posto que baseada em atores excepcionais.

    Um destaque eito por Francisco de Oliveira (2003, p. 94) o da orte pre-sena de escravos aricanos nos trabalhos da lavoura algodoeira maranhense em

    tal escala e intensidade que ez de So Luis, sua capital, a cidade mais negra doBrasil, que muitos pensam ser Salvador.

    No sculo XIX o algodo se espalha no complexo pecurio-policultor nordes-tino, mas sem o brilho do que Furtado chamou de alsa euoria maranhense.

    Ao reexaminar o Nordeste no estudo eito no perodo JK, Uma Poltica deDesenvolvimento Econmico para o Nordeste(GTDN, 1959), base para a criaoda Sudene, Furtado reencontra o Maranho, descobre um fuxo de emigrantesnordestinos partindo em direo dessa ento ronteira agrcola, e prope o uso de

    suas terras midas e rteis para abrigar uma base agrcola moderna voltada para aproduo de alimentos a ser realizada por nordestinos. O Brasil da era militar, nasegunda metade do sculo XX, construiu alternativa, ampliando as articulaes doMaranho com as regies Norte e Centro-Oeste, mais que com o Nordeste.

    3.4 A questo nordestina e a contribuio de Furtado

    Uma das principais contribuies da anlise que Furtado az ao processo de ocupaohumana e econmica do Nordeste e ao entendimento das bases histricas da questonordestina exatamente a compreenso da estrutura e da dinmica do sistema

    econmico baseado na pecuria, no algodo e na agricultura de subsistncia. Essa a estrutura socioeconmica do Nordeste semirido, transormado depois emrea de orte emigrao e lcusde crises sociais agnicas em momentos de grandeestiagem. Ao concentrar seus eeitos, sobretudo na agricultura de subsistncia, naqual se encontra a maior parte da populao, a seca ganha o carter de catstroesocial e de problema de dimenso nacional, a exemplo do que ocorreu com a orteestiagem de 1877-1879, que trouxe o governo para o centro da arena (FURTADO,1989, p. 21).

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 187 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    12/24

    188 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    Francisco de Oliveira (1983, p. 16) considera que a est, inclusive, umacontribuio terica de Furtado ao entendimento da questo regional brasileira. Ao

    montar o que Oliveira chama de modelo de equilbrio, no qual a sobrevivnciados baixos padres de produtividade um mecanismo endgeno de articulaoentre a produo de subsistncia e a produo de mercadorias no interior do lati-ndio pecurio nordestino, Furtado teria desvendado o segredo da manutenoda arcaica estrutura agrria do Nordeste. Sua enorme capacidade de resistncia mudana estava na combinao de interesses que o modelo sertanejo permitia.Furtado detalha melhor essa estrutura no captulo dedicado s secas, no j reeridoestudo do GTDN (1959), que precedeu a criao da Sudene GTDN.

    Ao pecuarista, criador extensivo, interessava ceder terras para que os produ-

    tores sem terra produzissem sua subsistncia e, mais tarde, o algodo. Ficava, aonal do ciclo produtivo, com uma parte do que ora produzido e ainda compravaa outra parte a preos baixos (pois o azia no auge da colheita e aps descontar onanciamento do plantio). Armazenava a produo e ganhava muito, quando ospreos subiam. Alm disso, soltava o gado nos restos da plantao (com isso obtinhaalguma alimentao para o seu rebanho) e ainda cava com o caroo do algodo(que transormava numa torta que usava tambm como alimento para o gado).

    A grande massa de produtores sem terra tinha acesso a esse meio de produovia contratos de parceria. Produzia, cava com parte da produo (ou mesmo toda)

    de milho e eijo e vendia sua participao na produo de algodo. O resultadonal era po: produziam, mas no acumulavam. Comeavam descapitalizados acada nova sara. Rezando para um bom inverno. Quando este no vinha, a secahdrica se transormava em crise econmica (pois inviabilizava a produo) e de-pois em crise social, pois a enorme maioria dos sertanejos no tinha meios parasobreviver at o prximo inverno.

    Como se no bastasse, a poltica de armazenamento de gua conduzida pelogoverno criava as condies para salvar o rebanho de morrer de sede, mas dada aestrutura latiundiria, os audes aumentavam o poder dos donos, com domnio

    sobre a gua, um bem raro, especialmente em momentos de crise hdrica. Furtadoexplica em detalhe esse tipo especial de arranjo socioeconmico emAFantasiaDesfeita. (FURTADO, 1989, p. 20-21)

    Com base neste tipo de entendimento da dinmica socioeconmica nordestina que Furtado inverte, nos anos 1950, a tese to cara s oligarquias sertanejas de que aseca era o problema central do Nordeste, quando passa a dizer que a seca consequncia(e no causa) da questo sertaneja. A causa era a estrutura social e econmica que ali sereproduzia h sculos. E, portanto, era isso que urgia ser transormado.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 188 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    13/24

    189DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    Wilson Cano, por sua vez, ao estudar as principais contribuies ao enten-dimento da questo regional brasileira, enatiza que:

    A grande lio que Furtado nos d, sobre o Nordeste, deduzida da anlise econmica que ez da regio,

    no clssico Formao Econmica do Brasil, ao demonstrar a extraordinria estabilidade das estruturas

    econmica, social e poltica do complexo nordestino. Ou seja, a de uma sociedade que mesmo sorendo

    longa regresso e depois transitando do trabalho escravo para o livre, manteve os pilares bsicos com

    que oi construda: alta concentrao da propriedade, da renda e do poder poltico e uma implacvel

    estrutura de dominao social. (CANO, 2002, p. 124).

    Mais adiante, Furtado usar suas descobertas sobre a organizao do Nordesteaucareiro e pecurio para explicar uma das principais causas das diculdades da

    regio Nordeste para acompanhar o ritmo da industrializao brasileira no sculoXX: a estreiteza de seu mercado interno.

    Francisco de Oliveira destaca a importncia que Furtado dar passagem noBrasil do trabalho escravo ao trabalho assalariado, na parte IV de FEB, quando vaideender que essa mudana que abalar as estruturas brasileiras ser determinada, emltima instncia, pela dinmica da economia caeeira (OLIVEIRA, 2003, p. 99). Tendoresolvido sua crise de oerta de mo de obra pela imigrao de colonos europeuse estando em ciclo expansionista, a economia caeeira se beneciou com o m daescravido, enquanto as ormas resistentes permanecero embotando o crescimento

    de outras regies, como oi o caso do Nordeste.Como observa Furtado, emAnlise do Modelo Brasileiro:

    A verdade que a extino da escravido no aetou de orma signifcativa a empresa agro-mercantil:

    a massa escrava transormou-se em comunidades tuteladas, com acesso a terra para produo de auto-

    consumo e moradia, o que reduziu substancialmente a possibilidade de acumulao individual e limitava

    a mobilidade (FURTADO, 1972, p. 102).

    No Nordeste, o escravo liberado transormou-se em morador do latindio

    canavieiro e s muito mais tarde se proletarizou, transormado em bia-ria, e agrande maioria em empregado temporrio (oerecendo sua ora de trabalho nospicos de demanda por mo de obra do complexo aucareiro).

    Esta uma das bases histricas da questo regional brasileira, explicando,sobretudo, o distanciamento entre o Nordeste e o Sudeste do pas, quando essaregio comanda a construo do pas urbano-industrial em que se transormaro Brasil no sculo XX.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 189 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    14/24

    190 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    3.5 Leitura complementar sobre o Nordeste: para alm da economia

    Apesar de investir no entendimento das especicidades do caso nordestino

    Furtado sabia que tendia a prevalecer uma lei geral de evoluo nas sociedadescapitalistas: a do desenvolvimento desigual. Considerava-a uma lei universal:a lei da concentrao, como escreve nas pginas iniciais deAOperao Nordeste,em 1959.

    Aproveita para denunciar que, no caso do Brasil, o processo de integraodas ilhas econmicas que estudara na FEBse azia nas dcadas iniciais do sculo

    XX, sob o comando dos interesses do que chamava Centro-Sul, o que tendia aampliar as desigualdades regionais herdadas.

    Em livro posterior A Fantasia Desfeita (FURTADO, 1989) , Furtado detalhaum pouco o que escrevera sobre o Nordeste em FEB. Volta a explicar como se estru-turavam e uncionavam os dois pilares do que chamou de complexo nordestino.

    No caso do complexo aucareiro esclarece que no deve causar perplexidade acombinao entre capitalismo agroindustrial e escravido, embora esse modelo nocaiba em outras experincias histricas. Deende tambm no se tratar de eudalismoo arranjo socioeconmico estruturador do enorme espao semirido nordestino, sobo comando da azenda de pecuria. Alerta que em nenhum dos casos se congurouuma economia camponesa imagem do que ocorreu na Europa: era a realidadedo capitalismo peririco e dependente que se precisava entender.

    Volta a esclarecer que no Nordeste brasileiro a crise e o posterior atroamentodo setor exportador oram amortecidos pelo crescimento extensivo e endgeno doque chama setor peririco, mesmo em um contexto de rendimentos decrescen-tes, na medida em que a ronteira agrcola se distanciava do litoral. Nessa rota, aeconomia e a sociedade nordestinas cavam cada vez mais vulnerveis aos eeitosdas irregularidades climticas. Assim que, no nal do sculo XIX, quando oNordeste abrigava 40% da populao brasileira, as grandes secas comeam a setransormar em grandes calamidades sociais.

    O ponto dbil de toda a estrutura socioeconmica do Nordeste semiridoestava na produo de alimentos. Essa atividade era a primeira a ser atingida nosmomentos de seca. E era a atividade principal para a grande massa de produtores, domesmo modo que a pecuria constitua o eixo de atuao dos grandes azendeiros.No toa que Furtado sempre priorizava a discusso da produo de alimentosno Nordeste, dado o monoplio da cana no complexo litorneo e a ragilidade dapolicultura alimentar no interior do grande espao ocupado pela pecuria. nesse

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 190 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    15/24

    191DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    ponto que suas preocupaes se cruzam com as de Josu de Castro, que centravasuas refexes, anlises e denncias em torno da ome no Nordeste.

    No que se reere organizao da sociedade, Furtado destaca as heranasda organizao escravocrata, no Litoral-Mata, mas no deixa de enatizar que nogrande espao semirido

    a sociedade ormou-se no mbito das azendas, onde poder econmico e poder poltico eram duas aces

    da mesma moeda e onde os aglomerados urbanos nada mais eram que prolongamentos das azendas.

    Esse quadro de isolamento reorava a situao de dependncia do trabalhador rural em ace do senhor

    de terra. (FURTADO, 1989, p. 22).

    E continua sua explicao, esclarecendo outros pontos de obstculo: osprodutores no s tinham diculdade de se capitalizar, como muitos echavam oano de trabalho endividados; alm disso, no dominavam tcnicas agrcolas maisavanadas. No se investia em recursos humanos na regio.

    Por se sentirem vulnerveis, as pessoas tendiam passividade e submissoaos mais ortes. A rgida hierarquia social e o monoplio da inormao, em mosde poucos, explicavam a arrogncia e o autoritarismo da classe dirigente. Assim,conclui Furtado: o ecolgico, o econmico, o social e o poltico se entrelaam paraproduzir o duro cimento em que se alicerou o subdesenvolvimento do Nordeste(FURTADO, 1989, p. 23).

    Furtado ainda mais contundente na sua leitura sobre a ormao do Nordesteem seu Auto-retrato intelectual, publicado na coletnea organizada por Franciscode Oliveira sob a coordenao de Florestan Fernandes (ver OLIVEIRA, 1983).Nascido no serto nordestino em 1920, Furtado ala de um mundo de homensonde o poder e a arbitrariedade estavam sempre mais juntos que separados; etambm de um mundo em que prevaleciam a incerteza (proveniente do quadroclimtico, mas com repercusses na vida econmica e social da grande maioria) ea brutalidade (originria do poder retido nas mos de poucos).

    Em duas outras publicaes,A Pr-revoluo Brasileira (1962) e Dialtica do De-senvolvimento (1964), Furtado introduz, para alm do diagnstico e das proposiesapresentadas no GTDN (1959), sua preocupao com o contexto de tenso social que secongurava nos anos iniciais da dcada de 1960 na regio e, em especial, no impasse queantevia. Particularmente em Dialtica do Desenvolvimento, az comentrios e refexessobre a luta de classes que naqueles tempos ocorria na Zona da Mata, no Agreste e noSerto nordestinos. o estudioso com o aro sintonizado com a realidade em curso,vislumbrando o embate iminente o livro oi lanado em janeiro de 1964.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 191 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    16/24

    192 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    4 INFLUNCIAS DAS ANLISES DA FORMAO ECONMICA DO BRASIL NAAO PBLICA DE FURTADO

    Tendo concludo e publicado FEB, Celso Furtado convidado pelo presidente JuscelinoKubitschek a integrar o GTDN, criado no mbito do BNDES. O relatrio destegrupo, com um diagnstico e um plano de ao com oco no Nordeste, oi naverdade escrito por Furtado, segundo ele prprio declara em entrevista publicada naRevista Econmica do Nordeste, do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), citada por

    Anderson Pellegrino (2003, p. 92). Deste documento consta a proposta de criaodo que depois veio a ser a Sudene, precedida pelo Conselho de Desenvolvimentodo Nordeste (Codeno). Celso Furtado oi o primeiro superintendente da novaagncia de desenvolvimento criada por lei no nal de 1959 com base em projetodo Executivo enviado ao Congresso por JK, que encontrou ortes resistncias na

    bancada conservadora nordestina e que oi aprovado com os votos de progressistasde outras regies do pas.

    Furtado passava, assim, ao, no sem antes atualizar sua leitura da realidadenordestina da parte inicial do relatrio do GTDN. Ficou rente da Sudene atque o golpe militar de 1964 o destituiu do cargo, junto com a equipe de dirigentesda autarquia desenvolvimentista que havia montado. Obrigado a deixar o pas,volta produo intelectual depois de um rico embora curto momento deinterveno na vida social, econmica e poltica do Nordeste e do pas (pois oitambm ministro do Planejamento de Joo Goulart, quando tambm era supe-

    rintendente da Sudene).

    Antes de destacar os pontos ortes de sua ao rente da Sudene, vale ressaltaros pontos centrais do diagnstico do GTDN, uma leitura do Nordeste no contexto doBrasil da era JK e uma atualizao e complementao dos captulos nais de FEB.

    Cabe, antes disso, situar o ambiente brasileiro e nordestino da era JK,quando o pas impulsiona seu projeto de industrializao, integrando-se di-nmica mundial de internacionalizao do capital industrial, recebendo intensofuxo de investimentos diretos externos, que montam todo um novo setor de bens

    de consumo durveis (inclusive a indstria automotiva). Muda, ali, o padro deindustrializao brasileiro, marcando a consolidao da ase da chamada indstriapesada, ortemente concentrada no que Furtado denominou Centro-Sul, masespecialmente em So Paulo. Vivia-se tambm o auge do Plano de Metas, comortes investimentos em inraestrutura de transportes sobretudo rodovirio ea construo de Braslia.

    Ao mesmo tempo, o nal da dcada de 1950 assiste Revoluo Cubana, comdesdobramentos sobre o Nordeste em pelo menos dois fancos: sua base aucareira

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 192 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    17/24

    193DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    acionada para ornecer o acar que os Estados Unidos compravam a Cuba; poroutro lado, a tenso social que j marcava a regio se inscreve em uma Amrica

    Latina que entra no oco da poltica externa americana, em plena Guerra Fria, sobo temor de uma suposta ameaa de cubanizao.

    Alm disso, para completar o quadro de tenso social aguda no Nordeste,uma nova grande seca (1958/1959) expe mais uma vez, agora na era da televiso,o drama das populaes fageladas do semirido. Isso ocorria ao mesmo tempo emque o avano da concorrncia inter-regional viabilizada pela melhoria da acessibili-dade proporcionada pela rodovia Rio-Bahia, que ligou o mercado do Nordeste aoSudeste, expunha a indstria txtil nordestina a uma crise intensa, acossada pelosmenores preos da sua similar instalada no Centro-Sul. O desemprego urbano,

    decorrncia maior da crise txtil, se somava crise social aguda da regio das secase o Nordeste era visto como um caldeiro prestes a explodir, como deniu umbrasilianista americano em visita tcnica ao BNB.

    Foi nesse ambiente que Celso Furtado passou da anlise prtica, inscrevendosua atuao emA Operao Nordeste, parte da construo da Sudene.

    4.1 Atualizando o diagnstico sobre o Nordeste nos anos JK

    No diagnstico do GTDN Furtado destaca de sada o hiato social e econmicoque separava o Nordeste do Centro-Sul dinmico, usando com rara competncia

    as parcas bases estatsticas econmicas ento disponveis. E denuncia a tendncia aoaumento dessa ratura interna do pas. E o az em tom de alerta, pois acreditava quea j enorme desigualdade regional em curso de ampliao ameaava a construoda nao brasileira. Dava, assim, questo nordestina statusde questo nacional.

    Para justicar a tendncia ampliao das distncias sociais e econmicasentre o Nordeste e o Centro-Sul, olhou primeiro para esta regio e depois revisitouo Nordeste que descrevera em FEB.

    Ao examinar a dinmica da industrializao da era JK, Furtado mostra que a

    poltica adotada pelo Estado brasileiro era boa para o Centro Sul, mas desavoreciao Nordeste. Monta todo um raciocnio sobre a natureza das trocas inter-regionais,usando o arcabouo terico-conceitual cepalino que ajudara a construir, para deenderque o Nordeste transeria renda ao Centro-Sul mediante o que ele chamou de co-mrcio triangular, uma vez que, superavitrio no comrcio exterior, o Nordesteera obrigado a comprar bens industriais no Centro-Sul pelos instrumentos dedeesa da indstria nacional. E o azia a preos muitas vezes mais caros. Enquantoisso, ao mesmo tempo em que servia de mercado para a indstria da regio mais

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 193 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    18/24

    194 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    rica e dinmica, o Nordeste vendia bens primrios. Reproduz escala regional aleitura da Cepal sobre as desvantagens da troca desigual.

    Examinando o Nordeste, Furtado az alguns destaques. O complexo canavieiroinstalado na Zona da Mata encontrava-se, no nal da dcada de 1950, em plenaebulio. A demanda americana em uno do bloqueio a Cuba estimulava aproduo, e os usineiros, precisando de mais terra para cobrir de cana, impulsionavama proletarizao dos herdeiros da escravido, empurrando-os para as perierias daspobres cidades da zona canavieira. O movimento sindical se organizara, as LigasCamponesas mobilizavam os trabalhadores, num quadro em que as oras polticasprogressistas ganhavam espao no Nordeste. Mas a velha estrutura no se abalava:crescimento extensivo e aumento do monoplio da cana sobre as terras midas erteis onde um dia dominara a Mata Atlntica.

    No amplo espao de domnio do trip gado-algodo-policultura alimentar,a poltica hidrulica montara ampla rede de audes que asseguravam gua para orebanho e aumentavam o poder dos grandes azendeiros, que ento controlavamcom mais ora o acesso gua e tinham garantida a sobrevivncia do seu plantelde animais em tempos de crise hdrica, como acontecia nos anos 1958/1959. Oquadro social no se alterara, mantendo a enorme maioria de produtores sem terrana sua tradicional trajetria: submisso ao modelo ali adotado ou emigrao.

    Furtado critica, no GTDN, a distinta ao do Estado nacional quando lida em

    termos regionais. O governo investia em criar condies competitivas, nanciava e pro-tegia o mercado dos segmentos industriais modernos em implantao ou crescimentono Centro-Sul, mas no azia o mesmo no Nordeste. Nessa regio, no grande espaosemirido, prevalecia a velha poltica hidrulica comandada pelo Departamento Na-cional de Obras Contra as Secas (DNOCS), apropriado que ora pela oligarquia local,e que avorecia a pecuria sem atingir a massa de produtores de algodo e a policulturaalimentar, mais uma vez expostos s consequncias drsticas de uma grande seca.

    Na Zona da Mata, o governo, atravs do Instituto do Acar e do lcool(IAA), igualmente capturado pela elite nordestina que dominava o setor, mantinha,

    via subsdios, o inerior padro competitivo da base produtora nordestina vis--vissua similar sulista. Na regio cacaueira baiana, outra importante base exportadoranordestina de ento, o carter da interveno ederal, via organismo tambm es-pecco, no era muito dierente. Apenas o BNB e a Companhia Hidro Eltricado So Francisco (Ches), criados nos anos 1950, tentavam dar um tom desen-volvimentista presena ederal na regio.

    Ao propor a criao da Sudene, Furtado pensava articular, via planejamentoregional, esse modesto esoro desenvolvimentista, mas, sobretudo, ampli-lo

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 194 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    19/24

    195DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    signicativamente. No toa que a Sudene, ao ser criada, vinculava-se direta-mente Presidncia da Repblica e contava com recursos vultosos, alm de se

    articular, atravs de seu Conselho Deliberativo, a vrios ministros de Estado e aosgovernadores do Nordeste.

    4.2 Propostas de Furtado para o desenvolvimento do Nordeste

    Com base nessa atualizao da anlise do quadro nordestino, Furtado monta aestratgia que integrar a parte nal do documento do GTDN. Quatro linhasbsicas e um complemento estratgico eram ento expostos no que chamou dePlano de Ao e que iluminou o incio de sua atuao rente da Sudene.

    A primeira linha era a de promoo da industrializao no Nordeste, tal como

    as polticas pblicas o aziam no Centro-Sul. A esperana era que a nova indstrianordestina osse organizada por empreendedores regionais e usasse as matrias-primas do prprio Nordeste. Do lado poltico, se estaria criando uma nova classedominante, menos conservadora que as tradicionais oligarquias agrrias. Para issoera preciso dotar a regio de uma boa inraestrutura de energia e transportes, pelomenos. Enquanto cheou a Sudene, os Planos Diretores da autarquia reservarama maior parte dos investimentos para esse m. Era preciso tambm conhecermelhor as potencialidades regionais, especialmente seus recursos naturais. DaFurtado ter montado na Sudene uma excelente equipe tcnica no Departamentode Recursos Naturais, um dos mais prestigiados e operosos da nova instituiodesenvolvimentista. E os resultados no tardaram, surpreendendo os que noacreditavam na regio.

    As demais linhas tratavam de propor mudanas na velha base agropecuria doNordeste. Para a Zona da Mata a palavra de ordem era a diversicao (especial-mente abrindo espao para a produo de alimentos). No semirido a proposta eraalterar o modelo de organizao, estimulando o avano tcnico e a reestruturaodo que chamou unidade tpica. Tais mudanas estimulariam a migrao e a en-trava o papel do Maranho, na quarta linha de ao: acolher migrantes nordestinosem suas terras ainda pouco utilizadas nos anos 1960 e receber investimentos queprivilegiassem a produo de alimentos.

    O complemento estratgico em seu Plano de Ao era uma ousada iniciativainstitucional: a criao da Sudene.

    Como se v, as propostas capitaneadas por Furtado e depois patrocinadas porJK apostavam na capacidade transormadora de polticas pblicas implementadaspor um Estado nacional capitalista, mas desenvolvimentista. Da as esquerdas otacharem, poca, de reormista.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 195 16/11/2009 18:25:45

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    20/24

    196 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    Vale destacar que embora no enatizasse a reorma agrria, esta estava por trsda diversicao da zona canavieira e da alterao da unidade tpica sertaneja ou

    agrestina, como estava no sonho de ocupar as terras maranhenses com produtoressem terra vindos do bloqueio do latindio pecurio. O que chamava de arcaicaestrutura agrria sempre preocupou Furtado, tanto que sua primeira grande der-rota nos tempos da Sudene oi a no aprovao da Lei da Irrigao no Congresso.Com o apoio do representante das Foras Armadas no Conselho Deliberativo daSudene, a proposta de lei ora aprovada em votao apertada. Mas no Congressooi bloqueada. Qual o seu problema? Propunha associar irrigao e reorma agrria,ou seja, gua e terra boa.

    No seminrio em que participou no BNDES, em meados de 2003, para dis-

    cutir a proposta de recriao da Sudene, j no Governo Lula, lembrou o debate daLei da Irrigao e apoiou a proposta bsica do documento do Grupo de TrabalhoInterministerial (GTI): a Sudene recriada teria como misso principal estimulara distribuio de dois ativos estratgicos: terra boa e conhecimento (educao).

    Alis, educao oi outra prioridade de Furtado rente da Sudene. Sob sua direo,o Departamento de Recursos Humanos investiu rme na ormao de quadrostcnicos para a regio. Mas no parava a. Um projeto importante oi a criao daCoordenadoria do Ensino de Cincias do Nordeste (Cecine), um centro voltadopara ormar proessores de cincias para a rede pblica de ensino bsico e mdio.

    Era a antiga preocupao de Furtado com a diuso do progresso tcnico.Ele sempre o estudou, por considerar que uma das razes do subdesenvolvimento o bloqueio sua diuso em sociedades que o introduzem trazendo-o de outrospases e o inscrevem num meio em que os bloqueios das estruturas atrasadas nopermitem que ele possa se diundir.

    Como se v, antes de partir para longos anos de exlio, Furtado usou o co-nhecimento que adquirira ao estudar a ormao econmica do Brasil para tentartransorm-lo. E o Brasil no mudaria se o Nordeste continuasse margem, comoestava em meados do sculo XX. E o pas corria o risco de no se ver consolidado

    enquanto nao soberana, moderna e justa.

    5 CONSIDERAES FINAIS

    Furtado, no seu Auto-retrato intelectual, publicado na j reerida coletnea deFrancisco Oliveira, arma que aprendeu com a dura realidade nordestina, ondeviveu os anos iniciais de sua vida, que a arbitrariedade e a violncia tendiam a pre-dominar nas sociedades humanas. Mas isso, em vez de desanim-lo ou dobr-lo, oiseiva de sua produo intelectual e sua ao como homem pblico. Isso porque,

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 196 16/11/2009 18:25:46

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    21/24

    197DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    como ele mesmo diz nesse texto, a luta contra este estado de coisas exige algomais que simples esquemas racionais e que essa luta como um rio que passa:

    traz sempre guas novas, ningum a ganha propriamente e nenhuma derrota denitiva (apudOLIVEIRA, 1983, p.32).

    Sua obra intelectual ajudou muita gente a compreender as grandes marcasdeixadas pelo longo processo de ormao do Brasil e do Nordeste em particular.Iluminou, portanto, muitas lutas. Mas novos e complexos esquemas racionaisso necessrios para compreender o Nordeste dos tempos atuais. Um Nordesteque saiu da letargia, se modernizou e abriga hoje uma economia mais diversicadae dinmica, atrelada ao movimento de integrao que se consolidou no Brasil nosculo XX. Todavia, continua a ser uma das regies mais injustas do mundo.

    A violncia agora sobretudo urbana e de carter nacional e o poderarbitrrio dos poderosos (apesar dos avanos da ordem democrtica) ainda estoa desaar os que no concordam em assistir hegemonia dos poderosos. Queinsistem em sonhar com uma sociedade mais justa e raterna que Furtado nochegou a conhecer. Mas que vo buscar as pistas das heranas desse quadro emsua instigante obra-prima, FEB.

    Nesse estudo, Furtado leva a sua anlise at meados do sculo passado, e del para c o Brasil e o Nordeste mudaram muito.

    O Nordeste saiu de seu entorpecimento secular e nos anos recentes vemcrescendo a taxas mdias superiores nacional. Ao mesmo tempo em que o pasconsolidava a integrao do mercado interno, o Nordeste se integrava a esta din-mica, passando a acompanhar de perto a economia nacional. A industrializaoavanou na regio, com a Sudene tendo tido papel relevante nesse movimento,e como concentrou cerca de dois teros dos investimentos dos incentivos queadministrava nas trs principais reas metropolitanas do Nordeste, oi ali que osetor industrial se ampliou mais e se diversicou. Muitas liais de grandes grupostransnacionais e nacionais l se instalaram, ampliando o peso da regio no tecidoprodutivo nordestino, em especial no tecido metropolitano.

    Na base agropecuria observa-se a presena de novas atividades, como a ruticul-tura irrigada (especialmente presente nos vales do submdio So Francisco, do Assu);a produo de gros na antiga ronteira agrcola (invadindo o oeste baiano e o sul doMaranho e do Piau); a produo de eucalipto voltada para a indstria de papel ecelulose, dominando, agora, o sul da Bahia; a produo de camaro para exportaoem vrios estados; a ovinocaprinocultura, que ganhou importncia no grande espaoantes de domnio do boi, entre outros desdobramentos importantes.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 197 16/11/2009 18:25:46

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    22/24

    198 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    No perodo mais recente, a produo de base amiliar oi mais valorizada noBrasil, os recursos pblicos a ela destinados cresceram signicativamente e o Nordeste

    que continua a abrigar 43% da populao economicamente ativa agrcola dopas recebeu os impactos dessa mudana. Vrios segmentos produtivos em que orte a presena de unidades produtivas de tipo amiliar se rmaram, como aproduo de mel no Araripe, a produo de castanha-de-caju para exportao nointerior do Cear e Rio Grande do Norte, entre outras.

    Ao mesmo tempo, desde os anos 1980, o algodo praticamente desaparece doseu antigo habitat(o agreste e o serto nordestinos, onde se instalara no sculo XIX),com impactos negativos nos custos da pecuria e o consequente enraquecimentodesta atividade, especialmente quando conrontada com os padres de produtivi-

    dade obtidos em outras regies do pas, como no Centro-Oeste. O impacto socialdesse desaparecimento s no oi maior porque no nal dos anos 1980 a PrevidnciaSocial oi estendida ao campo pela Constituio Federal de 1988 (protegendo osmais velhos) e no incio do sculo XXI os programas assistenciais se ampliarammuito o Bolsa Famlia, em especial dando cobertura de renda mnima a todasas amlias da base da pirmide social regional. Dado seu peso relevante na pobrezado pas, o Nordeste capta 50% dos recursos do Programa Bolsa Famlia, emborano tenha sequer 30% da populao total do Brasil.

    Outra mudana importante oi o orte processo de urbanizao que ocorre no

    Nordeste nas dcadas nais do sculo XX, azendo crescer, inclusive, suas pequenase mdias cidades. O semirido, por exemplo, se urbanizou intensamente: no mais to rural como quando o estudou Furtado. As diculdades econmicas quemarcam o Brasil dos anos 1980 e 1990 desestimularam a emigrao de nordestinospara o Sudeste e parte do xodo rural buscou as cidades do prprio Nordeste, onde

    j se observa tambm um fuxo de migrantes de retorno.

    A zona canavieira encolheu, dominando hoje apenas a poro da Zona daMata que se situa entre Alagoas e o sul do Rio Grande do Norte. A centralizao uma das trajetrias previstas por Furtado operou com toda ora, reduzindo

    muito o nmero de usinas que permanecem em atividade. A cana buscou outrasregies do pas cada vez com mais intensidade e o etanol nova alternativa parao aproveitamento da cana, agora gerando energia vinda da biomassa deve seexpandir nas reas do Sudeste e Centro-Oeste, muito mais que no Nordeste.

    No litoral, alm do crescimento das maiores cidades da regio ali localizadas,inclusive de capitais estaduais como Aracaju, Natal, Joo Pessoa e Macei, aumentamuito a presena de segmentos do tercirio moderno (shopping centerse, modernasredes de varejo no comrcio, ao lado de servios especializados em sade, educao e

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 198 16/11/2009 18:25:46

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    23/24

    199DESIGUALDADES REGIONAIS E NORDESTE EM FORMAO ECONMICA DO BRASIL

    consultoria empresarial, entre outros). Ao mesmo tempo, o turismo se desenvolveucomo atividade de bom potencial e novas estruturas se montaram para praticar essa

    atividade, com impacto na organizao de muitas cidades litorneas e na dinmicade outros setores, como o da construo civil e dos servios imobilirios.

    Os padres educacionais acompanharam as melhorias que, mesmo aindalentas, se azem sentir no resto do Brasil, embora ainda sejam no Nordeste bemmais baixos que a mdia nacional. Por sua vez, a produo cultural nordestinaganha impulso dentro e ora da regio.

    Como se v, novas interpretaes so necessrias para dar conta do Nordestecontemporneo, onde o peso poltico das oligarquias rurais tambm declinou. Acontribuio de Furtado ajuda muito, mas novas reexes so necessrias para

    interpretar agora os resultados de tantas mudanas e a incrvel permanncia detanta marginalidade, pobreza e excluso social que insistem em marcar a vidasocial no Nordeste.

    REFERNCIAS

    CANO, W. Ensaios sobre a ormao econmica regional do Brasil. Campinas: Unicamp, 2002.

    FURTADO, C. Caractersticas gerais da economia brasileira. Revista Brasileira de Economia, v. 4,n. 1, p. 7-38. Rio de Janeiro, 1950.

    __________. A economia brasileira: contribuio anlise de seu desenvolvimento. Rio de Janeiro:

    A Noite, 1954.__________. A operao Nordeste, Rio de Janeiro: MEC/Instituto Superior de Estudos Brasileiros,1959.

    __________. Perspectiva da economia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: MEC/Instituto Superior deEstudos Brasileiros, 1960 (1 ed. 1958).

    __________. A pr-revoluo brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.

    __________. Dialtica do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.

    __________. Anlise do Modelo Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1972.

    __________. Economia colonial no Brasil nos Sculos XVI e XVII elementos de histria econmica

    aplicados anlise de problemas econmicos e sociais. So Paulo: Hucitec, 2001. Texto baseado natese de doutorado do autor deendida em 1948.

    __________. Em busca de novo modelo. reexes sobre a crise contempornea. So Paulo: Paz eTerra, 2002.

    __________. Formao econmica do Brasil. 34. ed. So Paulo: Companhia de Letras, 2007 (1ed. 1959).

    __________. A Fantasia Deseita. So Paulo: Paz e Terra, 1989.

    GTDN Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste. Uma poltica de Desenvolvi-mento econmico para o Nordeste. Rio de Janeiro: Imprensa Ofcial, 1959.

    Cap7_Tania_Valdeci.indd 199 17/11/2009 13:36:44

  • 8/3/2019 Desigualdades regionais e Nordeste em Formao Econmica do Brasil

    24/24

    200 TANIA BACELAR DE ARAJO VALDECI MONTEIRO DOS SANTOS

    MALLORQUIM, C. Celso Furtado um retrato intelectual. So Paulo e Rio de Janeiro: Xana eContraponto, 2005.

    OLIVEIRA, F. (Org.). Celso Furtado. So Paulo: tica, 1983. (Coleo Grandes Cientistas So-ciais).

    __________. A navegao venturosa: ensaios sobre Celso Furtado. So Paulo: Boitempo, 2003.

    PELLEGRINO, A. C. G. T. O Nordeste de Celso Furtado: sombras do subdesenvolvimento brasi-leiro. 2003. Dissertao (Mestrado em Economia) Instituto de Economia, Universidade Estadualde Campinas (Unicamp), Campinas 2003.