18
FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA De toda sua vida, qual é o instante, o fragmento, o pontinho de luz que mais vezes lhe ocorre para dizer que viver vale a pena? Ter a capacidade de amar alguém ou algo na vida. Ser capaz de pôr nisso todas as forças, toda a capacidade que, no fim de contas é a capacidade para viver. [LER, Outono 2003] Agustina Bessa-Luís no jardim da sua casa, no Porto, em 2003, onde ainda hoje passa os dias a cuidar das flores

Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

FOTO

GR

AFI

AD

ELU

ÍSA

FER

REI

RA De toda sua vida,

qual é o instante, o fragmento,o pontinho de luz que mais vezeslhe ocorre para dizerque viver vale a pena?

Ter a capacidadede amar alguém ou algo na vida.Ser capaz de pôr nisso todas as forças,toda a capacidade que,no fim de contasé a capacidade para viver.

[LER, Outono 2003]

Agustina Bessa-Luís no jardim da sua casa,no Porto, em 2003, onde ainda hoje passaos dias a cuidar das flores

Page 2: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer
Page 3: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

A indomávelPOR EDUARDO LOURENÇO LISBOA, 29 DE NOVEMBRO DE 2008

Em1953,umaautora já conhecidade leitores aten-tos,publicaumlivroque inauguraumadatana fic-ção portuguesa contemporânea.O título famoso,comosabemos, éA Sibila, título proféticonoqualAgustinaBessa-Luísprofetizaoseuprópriodesti-

no e a sua vocaçãode vidente e visionária. Esse título represen-tounaépoca, paraquemestavaatento, o fimdeumahegemoniaque,desdehá15anosdominava, comrazõespara isso, opanora-mada ficçãoportuguesa, aquilo aque se chamouneo-realismo.A Sibilanão éumromance que se coloque emqualquer oposi-ção, ou ideário, àprática ficcional desseneo-realismo.Éumlivroquecomeçanumoutro lugar.O lugarquenãoexis-

tiaantesdele, pelaoriginalidadedahistória, pela temporalidadeficcional que é a damemória, ela própria tão inventada comorealisticamenteevocada,emsuma,umtipode ficçãoquenoutrasparagens já tinhaobras emqueAgustina sepodia inspirar,masque ela renovou epreencheudeum tipode vivências não sódasuamemória subjectiva como do inconsciente duma culturado Portugalmais arcaico, oumelhor, do imemorial.Essaobra foi seguidadeumaprodução torrencial semprece-

dentesnanossaliteraturamesmosenelaintegramosCamilo–umdosreferentesdaculturadesse imemorialqueela levaráatéàsuaincandescência.Maistarde,aculturaportuguesaaperceber-se-áquealémdaori-

ginalidadeliteráriadeASibilaenquantoficçãoeescrita,umaescri-taporvezesaleatóriae fantasmagórica,essaobra instauravasemqueaindasesoubessemuitobemumaespéciede longoreinadodaliteraturafemininaemPortugal.Nocasodela,maisfemininadoque feminista–queAgustinanãoénemnessaperspectivauma

ideólogamasumexemplodasua ficçãopovoadadepersonagensfemininasentreasquaisadoseuprimeiro livro,MundoFechado,que impôsummundodamulheraté então subalternizadocomumaevidênciaqueassuassucessorasreceberamjácomoumahe-rançanatural.AtéporqueAgustina tinhademasiadohumorparaserfeminista–sobreasoutrasmulheres.E,por incrívelquepossapareceremuitasvezesnãoéentendida,sobreelaprópria.Pouco a pouco, Agustina impôs-se comoumapaisagem lite-

rária sem igual nanossa literatura com livros comoAMuralha,OsIncuráveis,OManto, emais tardeoutrosqueadquiriramumasegunda vida através do cinema deManoel deOliveira comoFanny Owen ouVale Abraão impuseram-se e entraramnão sóno imaginárionacionalmasuniversal.Infelizmente, aescrita constantementeparadoxal e surpreen-

dente deAgustina ainda não encontrou, pela sua dificuldade,o ecoquemerece.Maspode esperar. Num livro queparticular-mentemedeslumbrou–UmCãoQueSonha–Agustinarevisitaasua juventudeedá-nosumpoucoamisteriosae insólitaperspec-tiva da sua ficção, comodestinada a ser devoradaporumoutroqueseráoautordasuaobraemvezdela.Comoseela, que, comoé sabido, tão pouco aprecia Fernando Pessoa, inventasse ummito da sua criaçãoproliferante para se converter numa ficçãosemautor. E isto pode ser uma fábula que resumeoque trouxerealmente denovoAgustina para a ficçãoda sua época.Menosumavozquenarcisicamente inventaummundoparaseafirmaratravésdeledoquepara ser, por assimdizer, a voz anónimadasmúltiplasmemórias do seu universo povoado de figuras cadauma resumindo a extravagância da vida como se fossemseresda natureza indomáveis e imortais. Comoela.

Infelizmente, a escritaconstantementeparadoxale surpreendentedeAgustinaaindanãoencontrou,pela suadificuldade, o ecoquemerece.Maspode esperar.

Agustina num hotel e(Setembro de 2000)

Page 4: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

revista LER ( setembro 2008 ) 00

1Quando em 2006 veio a lume A Rondada Noite, não era a primeira vez queAgustina Bessa-Luís se tinha enreda-do, para construir os seus romances,com os claros-escuros da pintura, as-sim como da fotografia – Azul (Não-

-Lugares), ál-bum com umtexto curtode Agustina efotos de LuísaFerreira (Am-bar, 2002).São instantâ-neos dumaviagem aRodes, Gré-

cia, em 2008, aquando do primeiroFórum Internacional para a Paz dasMulheres Criadoras do Mediterrâneo.Há o óbvio: o cruzamento entre aliteratura e a fotografia, a pintura,a arquitectura, o design, a dança,ou o conjunto das artes performativassão «escritas» que se revêem,entrelaçam ou contradizem, criandoentre eles vasos comunicantese objectos em que ler/ver implicasempre uma cumplicidade.É assim com o cinema que, na obrae vida da escritora, teve decisiva im-portância, desde os filmes que viu deli-ciada, em jovem e adolescente, até ao«feliz casamento» quando se encon-trou com a cinematografia de Manoelde Oliveira, em 1981, com Francisca,a partir do romance Fanny Owen.

2A primeira abordagem no território dapintura jorra no livro Longos Dias TêmCem Anos. Presença de Vieira da Silva(Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

1982). Agustinajustificou a suaaventura ro-manesca como«uma admoes-tação e umaironia para opreguiçoso in-veterado quenum século

acha tempo adequado para os seusprojectos e a combinação laboriosaque os acabe». A romancista não édessa cepa. Maria Helena, perante ailuminação da escritora, respondeu-otel em Rodes

00)

Page 5: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

42 ( janeiro 2009 ) revista LER

AgustinaBessa-Luíscontinua,comosempre, apasseareacuidardasfloresdojardimdesuacasa,noPorto,comoDouroaofundo–umacasa,disseumdia,«comfantasmasreais», traduzidosem«ruídos,presenças,sinais». AAmarantinapodenãovoltaraescrever,masoseuuniversoficcionaléumterritórioemaberto.

A romancistaque sonhou a sua obra

Avidaprega-nosváriaspartidas.Àsve-zes basta só umapara torná-la numtormento–numaboaparteemcasosde amor – e a maioria das vezes é

muito injusta. Aque sofreuAgustinaBessa-Luís,umacidente vascular cerebral, não tempalavras

queadescrevammesmoqueasprocuremosnasmais de60obras emilhares depáginas comqueiluminouaexistênciadosseus leitorese, comoto-dososgrandes criadores, domundo.Aconteceu há cerca de dois anos, termina-

doA Ronda da Noite, o seuúltimo livro, em 19de

Julhode2006,quandosedeclarouumafebreper-sistente, obrigando-aaabrandar todoo trabalho.

A Amarantina – era assim que gostava que atratassem – encerrou, para sempre, a sua acti-vidade literária: deixou de escrever, de ler, comose uma ficção sua se atravessasse no caminho

TEXTO DE CARLOS CÂMARA LEME

Page 6: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

00

e encontrasse, de novo, oMundo Fechado, títuloda primeiranovela vindaa lumeem1948.De então para cá, Agustina ocupa os seus dias

passeandopelo jardim,ondecuida, comosemprefez,das floresdacasadaRuadoGólgota,nonº100,nas traseirasdaFaculdadedeLetrasdoPorto, ten-do comopanode fundooDouroaquededicoual-gumasdassuasmelhorespáginas, comonomag-níficoValeAbraão (1991).Descansa,está tranquila,vê filmes, de preferência ingleses, policiais oude enredo romanesco, ela que têm, desdemuitonova,umimenso fascíniopelocinema.Pelaobjec-tiva deManoel deOliveira, seu grande amigo delongadata,muitasdassuasobras forampassadaspara o ecrã, chegandomesmoaos grandes festi-vaisde cinema–Veneza,CannesouBerlim.«A verdade éque recuperoumuitíssimoe tem

umaexcelente qualidadede vida», garante a filhaMónica Baldaque. Anda pela casa e recebe aspessoasdequemgosta,masporpoucotempo,por-que a cansamanter uma longa conversa. Acom-panhaosacontecimentosda família, semprecomocomentário lúcido, certo, quenãodeixadúvidasnem ilusões. Passeia emdias bonitos até à beira--marenamargemribeirinhadeVilaNovadeGaia.Aprecia, comgosto e comdesgosto, asmudanças

nacidade. «Fisicamenteestábem,agoraores-to…», desabafa, conformado, o maridoAlbertoLuís.

Agustina Bessa-Luís nasceu, em1922, a 15 deOutubro, umdomin-

go, pelas seis horasda tarde, emVilaMeã,noconcelhodeAmarante.Des-

cendentedeuma família rural deEntre-Douro-e--Minho, pelo lado paterno, e de uma família es-panhola deZamora, pelo ladomaterno, guardoucomo herança genética a região de Amarante:«Souumproduto da região, comoo vinho verde,quenãoembriagamasalegra» (OLivrodeAgusti-naBessa-Luís, TrêsSinaisEditores, 2002).Banha-dapelorioTâmegaecomamíticaIgrejadeS.Gon-çalo coabitando com a ponte, Amarante é umacidadeonde,pelomenosumavezporano, o santoprotector éabraçadopelos seushabitantes.Apósocasamento, em1917,ospaisdeAgustina,

ArturTeixeiraBessa (1882-1964) eLaura JuradoFerreira (1897-1994), andaramentre seca emeca(VilaNovadeGaia,Santas,PóvoadeVarzimePor-to),passandoalgunsperíodosnoDouro,nacasadafamíliamaternaemGodim–numpercursoemtu-do idêntico aoque conhecerá aprópriaAgustina.Alémdessecaleidoscópiodeandançashátambémas fériaspassadasnacasadoPaço, das tiaspater-nas,no lugardoBarral (Travanca,Amarante), enu-macasaemCavaleiros, pertodeViladoConde.Mas édo confronto entre omar – «Tive a sorte

de viver todo operíododa razão até à adolescên-cia numavilamarítima [Póvoa de Varzim], ondetudo era familiar, quase austero,masplenode li-berdade»–eoDouroqueaescritoraconstróipar-te substancial da sua obra. «[O Douro é a] provín-ciamais capazdepaixões governadasquehá emPortugal. É duro de se viver», escreve num textoinédito,agoradadoàestampa–entremuitosoutrosinéditos – emO Chapéu das Fitas a Voar (2008),livroquepode serumaporta aberta paramelhorse compreenderavidaeaobradeAgustina.

-lhe: «A Agustina com os restosde aquela que eu não sou, aindaposso criar a irmã que não tive.»Segue-se-lhe Apocalipse de AlbrechtDürer (Guimarães Editores, 1986), em

que se detémnuma dastrês grandesséries degravurasxilográficas,O Apocalipse.Passa porMartha Tel-les: o Casteloonde Irás

e Não Voltarás (IN-CM, 1986), e, em2001, confronta-se (ou encontra-se?)com As Meninas (ilustrações e quadrosde Paula Rego, Três Sinais Editores),cuja segunda edição acaba de serlançada pela Guerra e Paz.Não é um combate qualquer. De talmodo que, a propósito dos desenhosgrotescos da artista plástica, Agustinanão se amedronta: «O desenho dePaula é uma escrita.» Um encontroentre dois universos perversos? Estãobem uma para a outra… Last but notthe least, o fortíssimo encontro comGraça Morais, no álbum As Metamor-foses (Dom Quixote, 2007) em queAgustina, num registo evocativo,desvenda, à luz dos trabalhos de

Graça Morais,muitos segre-dos das suasefabulações.Duas leiturasa não perder.A Ronda daNoite não é,portanto, ter-reno virgem.

A Amarantina defronta-se com o cele-bérrimo e enigmático quadro de Rem-brandt terminado em 1642, dacolecção do Rijkmuseum, de Amester-dão, que tem sido objecto de várias ediferentes congeminações. Agustinaestá a par delas. Logo na pág. 81,traça a plano geral: «Se repararmos,A Ronda da Noite ou A Companhiado Capitão Cocq, está disposta, senãoamontoada em cima dumas escadas;e, nesse aspecto, o problema daatribuição de valores fica resolvido.Cada um ascende até onde lhe épossível, quer seja por mérito próprio

Sinto-me muito insegura como brilho da luz na água do mar.Não gosto de insegurança.Não gosto do efémero…

Os maiores escritoresda actualidade são desconhecidos,os que têm o seu tempo, a suasolidão, os seus instantes de glóriapessoal e íntima. São aqueles quevivem melhor o que escrevem.

�[LER, Inverno 1988]

[LER, Outono 1990]

Page 7: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

44

Aescritora teveumirmão, trêsanosmaisvelho,quemorreuno iníciodadécadade70.A julgarpe-las suas palavras emO Livro de Agustina Bessa--Luís, amãe tinhaumaquedaespecial pelo irmão(«comumaexpectativaqueasmães têmaindaho-je pelos filhos varões»), enquanto ela era prote-gida porLourença, amadaprimeira filha da suaavó Agustina, que a defendia das palmadas damãe, «quecomeçavaaachar-medesnaturada, fria,ingrata e coisas assim». Terá ficado essa cicatrizemAgustina –que leráFreudde fio apavio comoumromancee comentaráque «depois distonadafica intacto»–comoumaformasubliminardeam-bivalênciaentrearaivaeareparação tãomanifes-tanasmulheresdos seus romances?Querda infânciaquerdaadolescêncianãoguar-

damemórias infelizes – ou, se as teve, libertou-sedelas através dos romances, semnunca, porém,guardar rancor às suas personagens. Pormaisperversas que sejam (como em O Comum dosMortais, 1998, quando retrata as duas mais si-nistras figurasdoEstadoNovo (aduplaumbilicalformada porAntónio deOliveira Salazar e pelocardeal-patriarcaManuelGonçalves Cerejeira),Agustina ama as personagens que cria. É umaespécie de concerto da felicidade entre o reale a ficção.Aos quatro anos já tem uma relação estreita

com as letras. As primeiras leiturasmarcantes– bempatentes emmuitos dos seus romances –são oAntigoTestamento, numa edição ilustradaporGustaveDoré (1832-1883), uma colecção declássicos e uma enciclopédia ilustrada trazidospelo pai doBrasil, para onde partira aos 12 anos,em 1894, e criara riqueza, vindo mais tarde agerir oCasinodaPóvoadeVarzim.Entusiasma-se tambémpelos folhetinsdeSem

Famíliapublicados no Jornal de Notícias e pelashistórias tenebrosas do escritor francêsPaul Fé-val (1817-1887), deleitando-se comOsMistérios deLondres, de 1844. Pelos seus olhos, sonhos e ima-ginações já tinhampassadoasaventurasdeTexasJack e do seu Jumpermas, também, os enredosvisionários de Júlio Verne (1828-1905) que pro-longoucomomesmogénerodehistóriasumtudo--nadapícarasdeEmilioSalgari (1862-1911).Nos primeiros estudos saiu-lhe a sorte grande

com a professora D. Inês. Pintava-se e «usavasaias curtas comumdesembaraçonotável» (OLi-vro de Agustina Bessa-Luís). Os livros e as ses-sões de cinema, garante, acabarampor fazer de-la uma romancista. Perspicaz e provocadora,relata essa iniciaçãonamesmaobra: «Tudooqueeu podia desfrutar do tempo infantilme pareciavulgar e estranhamente impróprioparamim.Euamava a vida dos adultos, os seus perigos,misté-rios, paixões e desgraças. O erotismo da infelici-dadedepressao entendi comose fosse a vocaçãodasPessoas.»

As pessoas é que são o materialda minha escrita. Se eu nãotivesse papel e tinta para escrever,acho que não sentia tanta faltadeles como se não tivesse pessoascom quem falar e a quem observar.

�[LER, Outono 2003]

Page 8: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

AgustinaestarádenovonaPóvoadeVarzim,noColégio dasDoroteias, entre os seis e os 13 anos.Depoisvaiparaumoutrocolégioe,mais tarde, re-cebe aulas deLatimeFrancês, noDouro.Nãohápassagemporqualqueroutra instituiçãoescolar.RegressadaaoPorto,descobrea literaturaame-

ricana, elaqueparao fimdasuacarreira literáriateriaumaobstinaçãoemperceberoquesubjazaomundodos vivos através da leitura e interpreta-ções várias deO Coração das Trevas, de JosephConrad (1857-1924).Aos 15anos,nas terrasdurasdoDouro, escreve

umprimeiro romance, intitulado Ídolo de Barro,a que se seguirá umoutro,Água da Contradição.Por iniciativadopai ambos serãodactilografados– no entanto, à semelhança de outros originaisdessesprimeiro temposdeescrita,mantêm-seatéhoje inéditos.Conclui Os Super-Homens para a Portugália

mas tomaadecisãode retirar o livrodomercadocoma justificaçãode–segundorefereemO LivrodeAgustinaBessa-Luís–ser «meio falhadopor termais pretensões do que razões». Com 19 anos,regressa à Invicta. Confessa que «trazia uma in-formação intelectualbastantebizarra».LêasobrasdodramaturgoEugèneLabiche (1815-1888) paranãoesquecera língua francesaeOElogiodaLou-cura, de Erasmo (1469-1936), para não perder ocontacto como latim.Énessaépoca,que, ironicamente,pensapelapri-

meiraveznocasamento.Porquerazão?«Porqueasolteiriamedistraíademaiores realidades» (OLi-vrodeAgustinaBessa-Luís).Seassimopensoume-lhoro fez.Pôsumanúncionumjornalparaconhe-ceralguémque tivessedeterminadasqualidades.AcertoulogoàprimeiraecomeçouanamorarcomAlbertoLuís.Depois de uma troca de cartas, encontram-se

pessoalmentenoPorto–ecasama25deJulhode1945.Há fotografias emqueAlberto Luís acom-panhaAgustina comosolhos postos no chão: elavisivelmentebem-disposta, elesorrindocomalgu-matimidez.VivememCoimbraenoPorto,depoisemEsposende durante cinco anos – onde ela es-crevemuito,passandoaserconhecidapor«eremi-tadeEsposende».Mais tarde, regressadenovoaoPorto, ondepassaria a residirnaRuadoGólgota.Ainda hoje, para a escritora, é do domínio do

mistério quemdecifrou a sua letra leve e inclina-da.Posteriormente, seráomaridoque, amorosaededicadamente, lhe lêosmanuscritoseosdactilo-grafa.Diaapósdia, anoapósano, todososmundosinimagináveis que se vão impondo na ficção deAgustinapassam,numarelaçãodecumplicidade,pelodedosdeAlbertoLuís.Costumadizer-sequepor detrás de um grande homem está sempreumagrandemulher; aquiamáximadeve ler-seaocontrário: pordetrásdesta grandemulher estevesempreumgrandehomem.

Pode ter-lhe parecido pacata, arrastada, semimaginação, mas é na cidade banhada pelo rioMondegoqueescreveMundoFechado. O livro foidactilografado por iniciativa do pai, corria o anode 1948, chegando àsmontras e aos escaparatesdas livrarias em 1950, na colecção «Mensagem»,dirigidapor JoséVitorinodePinaMartins.Aescritoranãoperde tempo: enviaexemplares

aAquilinoRibeiro,FerreiradeCastro,MiguelTor-ga eTeixeira dePascoaes. O fundador da revistaA Águia felicita-a comomaior entusiasmonumacartadatadade2deJaneirode 1950: «Minhamui-to ilustre camarada!Peço-lhe [perdão] de joelhos,de não ter agradecido já a gentilíssima oferta doMundo Fechado. […] Trata-se duma escritora deraça, dotadade excepcionais qualidades visioná-rias edo instintodo real.»As suas leituras continuam a ganhar outros

voos comMadame Bovary, deGustaveFlaubert(1821-1880), e criará até umapersonagemcomoepíteto dea Bovarinha, interpretadaporLeonorSilveira, no filmeValeAbraão.

Oseu ano de glória é 1953, quando concorrecomA Sibila ao prémio da editora fundada

em1899porDelfimdeGuimarães.Leitoradoses-critores russos, emparticular deDostoievski, es-conde-sepordetrásdopseudónimodeStravogui-ne.EmOChapéudasFitasaVoar, confessa: «Nãotenho entre os escritores russos gente que nãoconvidasse paraminha casa, para ouvir e contarhistórias, para confiar sentimentos que sebalan-çamnocoração, comumligeirogemidodeportase soalhos como violões de cordas secas e rete-sadas emexcesso.» Vista e aclamadapela críticaliterária comoumsímbolo de representação dofeminino edo seupoder ancestral nas letras por-tuguesas de então (ler texto deEduardoLouren-ço), tudo ouquase tudo já se escreveu sobre essegenial livroda romancista.LauraBulger,quandoaapresentounahomena-

gemqueaPorto2001organizou–«VozeseOlharesnoFeminino», iniciativacoordenadapor IsabelPi-resdeLima–,resumiuempoucaspalavrasagran-dezadeASibila: «Quemdiriaqueahistóriada tiaAmélia, comorefereaautora, se iria transformarnessaobra-primadanossaLiteraturaqueéASibi-la, obrainovadoranãosópelatemática,pela lingua-gem ou pelas estratégias narrativas utilizadascomotambémpelotratamentodadoàpersonagemcentralQuina, evocadapelamemóriadeGerma.»AlémdoPrémioDelfimGuimarães, ganha, em

1954, oPrémioEçadeQueirós instituídopelo Se-cretariadoNacionalde Informação.NaGuimarãesvai encontrarcomocompanheirosdeescrita figu-ras comoFerreira deCastro, JoaquimPaçod’Ar-cos eVitorinoNemésio (no romance) ou Sophia,DavidMourão-Ferreira,HerbertoHelder e JoséCarlosArydosSantos (napoesia).

revista LER ( janeiro 2009 ) 45

ou condição social. Há os que nãopodem ultrapassar o seu grau deobscuridade; ou os que aspirama valorizar-se mediante uma filiaçãode partido; ou ainda os que ostentamuma insígnia castrense, o casco,o fuzil, o bastão e a faixa. O rumo nãoestava ainda definido, muito menoso percurso. Mas arvoram todos jáos títulos e as missões, ensaiandoas posições e posando para a História

que possivel-mente ficariamuda a seurespeito.»E já quasea terminaro seu últimosopro lite-rário, abso-lutamentegenial, nota

na pág. 330: «Todos os detalhes estãoali, a posição, a riqueza, o lado vulgare sensual; tudo isso é o impessoaldo homem, e seria um erro conhecê-loatravés dessas diferenças. […] A leinão as obriga, não as oprime: são pes-soas felizes, indivíduos presentes nouniversal que é o comum das vidas.»

3À semelhança de uma boa parte dosromances de Agustina, tudo começano Porto, na Invicta rica, nas famíliasabastadas, burguesas, pela suculentaalma dos ricos – que podem, ou atédevem, viver momentos de penúria

para, maistarde, seergueremde novoe ressus-citarem.Normal-mente,habitamcasasgrandes,

têm propriedades e casas espalhadaspelos subúrbios da cidade ou noDouro. Como os Nabascos, a famíliaque está no centro do romance,«que tinham a veia especulativa,e o primeiro olhar era avaliador»(pág. 232).Perguntar-se-á? Qual é o núcleocentral do seu último romance? As«vivências interpessoais», marcadas

Page 9: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

46 ( janeiro 2009 ) revista LER

DedicaASibilaaMariaLeonordaCunhaLeãoe será o filho da homenageada, Francisco daCunhaLeão, oeditordaobraseguinte,Os Incurá-veis (1956).Arelaçãoestabelecidaentreosdois,dizoex-proprietáriodaGuimarãesEditores, «eraami-gávelmasnão íntima,mantendoumacerta éticanasuarelaçãocomoeditor».Agustinaentregaasprovas (só revia duas) sempre a tempo e horas.«Escrevia de rajada e não havia inconstância deestilo», sustentaFranciscodaCunhaLeão.Desdeesseano,aexplosão literáriadeAgustina

–do romance àsbiografias passandopelo teatro,crónicas, memórias, textos ensaísticos, obrasinfanto-juvenis e alguns dos argumentos que fezparaManoel deOliveira filmar a partir das suasnovelas e/ou romances – não tem equivalentena literatura portuguesa da segundametade doséculoXX.Prémios e distinções sucedem-se, sendo de

realçar o PrémioCamões que recebeu em2004,aos 81 anos.Conquistou também,porduas vezes,o GrandePrémio deRomance eNovela daAsso-

ciaçãoPortuguesadeEscritores: comOsMeninosdeOuro (1983) e comJóiadeFamília (2001).Nas declarações que faz é contida. «Sinto sem-

prealegria...» ou«Estoumuitohonrada...» e fica-sepor aqui. O mesmo acontece quando a críticaentraemdelíriocomesteouaquele livroesuspei-ta-semesmoque, semadesprezar,não lheatribuimuita importância.Emcontrapartida,émuitosen-sível ao que lhe dizemos seus companheiros deescrita e, aindamais, o que o seus leitores parti-lhamcomela – passando, horas a fio, a tagalerarnas feirasdo livroouemencontrosapropósitodetudoedenada.Oquenãoépouco, seacomparar-mos comoutros romancistas que se alcandoramnassuas torresdemarfim.Comoexplicaressaexplosão?Primeiroporque

tratava por «tu» o que fazia – com paixão, arre-batamento, reflexãoemuita investigação.Porhá-bito ou por disciplina, levantava-semuito cedo.Tratava das plantas no jardim e descia o olharsobre oDouro. Escrevia até à hora do almoço e,a seguir à refeição, voltava de novo para a secre-

tária com umamanta no colo. Parava para umbreve lanche – «que era quando nós», recorda asua filhaMónica, «podíamos falar comela» – e re-começava até à hora do jantar, por volta das oitodanoite.No final, os seus romances incluema data de

conclusãoeporvezeso local onde foramescritos,mas não há uma especial ligação da autora comesses lugares:Agustinachegaaopontoderevelar,comono recenteDicionário Imperfeito (organi-zado porManuel Vieira daCruz eLuísAbel Fer-reira), que até gostaria de escrever numquartode hotel…Certo, certo, é que os grande períodosde criação literária, se assimpodemosdizer, sãoos balizados entre Esposende e o Porto, naRuadoGólgota.Apartir dos finais dosanos50começaaviajar,

altura emqueAlberto Luís comprou umVolks-wagen. Alémda viagema Itália (compassagemporEspanhaeFrança)pormenorizadamentedes-crita no belíssimo,masmuitas vezes esquecido,Embaixada a Calígula (1961), as outras viagens

Page 10: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

revista LER ( janeiro 2009 ) 47

mais referidas por Agustina são as que fez aoBrasil (1989), de que ficaram registos em Bre-viário doBrasil, editadopelaASA (e integradonociclo «Os Portugueses ao Encontro da suaHis-tória», iniciativa doCentroNacional deCultura).DepoisdeumapassagempelaGréciacomSophia,em 1961, volta a umadas raízes da cultura euro-peia, Rodes, acompanhada pelo fotógrafa LuísaFerreira, dandoorigemaoálbumAzul,Azul (Não--Lugares), Ambar, 2002.É visionária e acutilante nas análises que faz:

comoesquecerOMosteiro, umdosmaisagudoseinteligentes retratosdePortugal emqueD.Sebas-tião vai ganhando os contornos deumamulher?Ouamais que lúcida crítica que faz ao cavaquis-mo em Os Meninos de Ouro (1983)? Ou, ainda,essaobra incomparávelAQuintaEssência (1999),verdadeiro tratado sobre osmistérios insondá-veis do sexo?

OndesituarAgustina?Próximadas temáticasdeCamiloCasteloBranconaconstruçãodas

personagens, nãomuito afastadadadescriçãodepaisagensdeEçadeQueirós, pós-modernaavantla lettrenadesconstruçãodas realidadesdeondeparteparaconstruiros seus livros, aparentemen-teprovincianamasabrindocaminhosparaperce-berauniversalidadedoshomens,únicanumesti-lo espirituoso, sarcástico, perverso, aforístico emmuitoscasos,marcado, sobretudo,pelaalegriadecomunicar. Ela não escreve para ser aclamadamaspara ser lida pelos seus leitores ou... detrac-tores, que só se convencem da sua genialidadequandoaoacaso lêemumlivro seu.Asuaobraéatravessada igualmentepeloPoder

quea fascina,maisparacompreenderasuaessên-cia do que para exercê-lo. Nas eleições de 1969,Marcelo Caetano convidou-a para as listas daAcçãoNacionalPopular.Agustinaaceitamasnão

estava recenseada. Já em regime democrático,Francisco Sá Carneiro foi o «menino dos seusolhos».Naseleiçõespresidenciaisde1976,quandooPRECaindaameaça incendiaroPaís,apoiouRa-malhoEanes.Naseleiçõesmaisempolgantesdes-deo25deAbril, em1986, disputadasentreMárioSoareseDiogoFreitasdoAmaral,émandatáriana-cional do segundo.Naprimeira candidaturapre-sidencial de JorgeSampaio, em 1996, integrou acomissãodehonradocandidatosocialista.Dirige,entre1986e1987,odiárioOPrimeirodeJaneiroeénomeadadirectoradoTeatroNacionalD.Maria IIpeloentãosecretáriodeEstadodaCultura,PedroSantanaLopes, funçõesqueexercede1990a1993.Sectores ligados ao teatro,masnão só, vêem-namaiscomouma«comissáriapolítica».AactrizEu-niceMuñoz,quenãotevecomaautoradeAsFúrias–obraqueviriaasubiràcenanoTeatroNacional–nemamenornemamaior intimidade, é perem-ptória: «Nãoconcordocomessavisãoporquenãomeparecequehajarazõesparadizer isso. [Quemodiz] temumaopiniãobastantedesonesta.»E,comoseriadeesperar,nãosóapoioueesteveao ladodeAníbalCavacoSilvanasúltimaseleiçõespresiden-ciaiscomofezpartedasuacomissãodehonra.Quedizermais? «Agustinaé,depoisdeFernan-

doPessoa, o segundomilagredoséculoXXportu-guêse será reconhecidaquando, comadistância,se pudermedir toda a sua estatura, como a con-tribuiçãomais original daprosaportuguesaparaa literaturamundial, ao ladodobrasileiroGuima-rãesRosa.» PalavrasdeAntónio JoséSaraiva, emIniciaçãoàLiteraturaPortuguesa (Gradiva, 1994).E temtodaa razão.

Só foi possível escrever este texto graças à cola-boração de Manuel Vieira da Cruz, Luís AbelFerreira, Mónica Baldaque, Francisco da CunhaLeão eAlbertoLuís. �

sobretudo por Martinho Nabasco, quevive até ao fim dos seus dias obcecadocom A Ronda da Noite? A sua mulherJudite? Ou a sua avó Maria Rosa?

Agustina entre-cruza bissec-trizes em todasas direcçõespara simulta-neamente des-lindar os mis-térios da telae, simultanea-mente, «pin-

ta/escreve» – a claro e a escuro, comtodos os seus cambiantes – a rondados seus personagens e do modocomo se encaixam, ou não, nas rea-lidades político-sociais que a Revo-lução dos Cravos – um outroquadro... – trouxe para a sociedade.Emoldurados pela esfera de uma efa-bulação trágico-cómica, misturandouma carga de nostalgia – «noutrostempos isto já não se passava assim» –,critica sem apelo nem agravo o quea sociedade globalizada nos trouxe.Um exemplo apenas: «A democracia,que namocidade lhe parecia fácile soalheira, acabava por despertarnele [Martinho] irritabilidade de casta

que julgavanão existir.Usava jeanscom jaque-tão combotõesme-tálicos por-que isto osituava naambigui-dadema-jestática,

necessário num tempo de ambigui-dades. Maria Rosa achava-o ridículomas, se o ridículomata, matamuitolentamente» (pág. 233).

4O triângulo Martinho/Judite/MariaRosa está marcado pela volúpia,as relações entre o sexo, o erotismoe o amor, na relação/diferençahomens/mulheres, temas sobre osquais Agustina escreve como ninguém(a este título só A Quinta Essência,de 1999, consegue superar A Rondada Noite). Neste, como noutrosromances, é sob o signo da femini-

Uma vida humana é sempredemasiado frágil e curta parafazer uma obra. O sofrimentoé que traz toda essa forçada vida, um desdobramentoda nossa duração. É o que fazfalta a muitos autores novos.[LER, Inverno 1988]

Page 11: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

48 ( janeiro 2009 ) revista LER

A primeira páginado manuscrito de A Sibila

Page 12: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

revista LER ( janeiro 2009 ) 49

Coma publicação deDicionário Imperfeito queo actual proprietário da Guimarães Editores,Paulo Teixeira Pinto, classificou, consciente ouinconscientemente – inclino-me para a segundahipótese –, como tratando-se de uma edição crí-tica, estava a vender gato por lebre.QueroDicionário Imperfeito, que levantouuma

ondadeindignaçãojuntodosacadémicosquelidamdepertocomaobradaautoradeACortedoNorte(o filme homónimo de João Botelho tem estreiamarcadaparaos iníciosdeFevereiro),queromaisrecenteinéditoOChapéudasFitasaVoar,a «OperaOmnia» temqueseraplaudidapoisvai trazera lu-mealgunsdosseus livroscompletamenteesgota-dos(comoobelíssimoEmbaixadaaCalígula).Mas,detodoemtodo,nãosetratadeumaediçãocrítica,apesardoincansável trabalhodeManuelVieiradaCruz (MVC) edeLuísAbelFerreira (LAF), coma«ajuda fundamental deAlbertoLuís»,marido daautora,emergueraObraCompletadeAgustina.Para se falar de uma edição crítica há alguns

pressupostos que temque ser tidos em linha deconta. 1.Quandoexistemváriasversõesdomesmotexto, éprecisocompará-lasparadeterminarqualdelasoautorpretendeuescrever.2.Depois, quan-do as versões do texto sãomanuscritas existe opressupostodequeamais recente correspondeàúltima intençãomanifestada pelo autor e, nessamedida, serpublicada.3.Aformadeobteroresul-tadoémuitovariávelmaso importanteéqueaúl-timavontadedoautor temqueserrespeitadames-moque, literária e esteticamente, uma anteriorversão seja «melhor»doqueaúltima.4.Acompa-

raçãoentreosváriosdocumentosédeterminantepara que o leitor faça o seu juízo de valor sobre o«produto» que lhe édado a ler.5.Mais: em textospequenos – como acontece com os aforismosdeDicionário Imperfeito–sãoprecisasanotaçõesque possamesclarecer não só o aforismomas asuadatadeenquadramentoenãoaleatoriamente.Estas regras, dequemtrabalhana filologia, não

podemservistas comoumaspiquinhicesdosaca-démicos eque sóaelesdizemrespeito.Quemde-fendauma tese desse calibre não sabe oque estáa dizer: a obra em causa ficamais valorizada e,umavez fixada, podedar-se inícioàsediçõesditas«populares» (comoacontece comaEdiçãoCríticadasObrasCompletas deEça deQueirós, coorde-nada por Carlos Reis, que, primeiro, sai na Im-prensa Nacional-Casa daMoeda e, depois, semo aparato crítico-genético, vema lumenaEdito-rial Presença. Investigadores, editores, leitorese autores só têmaganhar.Quer isto dizer que a publicação deO Chapéu

dasFitasaVoar não temimportânciapara ilumi-naraspectosmenosconhecidoseautobiográficospara conhecer de perto o seu percurso literário?Nadadisso.Antes pelo contrário.Porum lado, confirma-se quea tiaAmélia está

na origemdaprotagonista do romanceA Sibila,e nanota final esclarecedora«SobreaOrigemdosTextos»,MVCeLAFdão uma tábua precisa dosdocumentosquerecolheram, fixarameeditaram.Poroutro lado,porque–emboraaprotagonistasechameLourença–aessênciadeOChapéudasFi-tas a Voar é de uma «autobiografia “quase” leve-mente ficcionada», confirmandoalgunsdos traçosdavidadaescritoraedasuaescrita.Entremuitosexemplos, quando ia ao cinema convivia comasestrelasdeHollyood; regala-secomalotariade tervivido entre «o período da razão até à adoles-cência»naPóvoadeVarzimcomoseucasinoquelhedesperta tantacuriosidadee, sempanosquen-tes, afirma: «Escrever romances é umamaneirasedentáriademultiplicar anossahistória.»Está tudoemOChapéudasFitasaVoar?Com-

pleta-se comOLivrodeAgustinaBessa-Luís?Simenão. Porque omelhor deAgustina e a sua auto-biografia estão nos livros que escreveu. � Carlos

Câmara Leme

Uma Opera Omnianão é uma edição crítica

lidade que Agustina compõe o quadro.O capítulo VI, «O Torreão Vermelho»,é a chave para compreendermos Rosa– que já na adolescência, sob os ca-lores do Verão «não trazia calcinhas

e o vento da tardelhe beijava aspartes íntimas»(pág. 125) – e oseu neto Martinho,interrogando-seRosa Mariaao longo do livrose ele é ou não

ummutante. Um bissexual?Maria Rosa desafia-o e pergunta-lhese ela é cruel. Mas não desarma.«Acontece com as mulheres o queacontece com o dinheiro […].» Marti-nho contrapõe: «E as mulheres cabemaí?» «Não», responde Maria Rosae acrescenta: «Mas entram em qual-quer discurso. A inflação é isso.»Dá-lhe um conselho: «Dorme comela [Judite], que sempre ajuda.»A seguir, vem a estocada fatal: «Istode se julgar que as mulheres de cama

têm um es-tilo própriode provocarcom roupasíntimas, éum engano.Com roupasíntimas nãose provocanada, elassão o con-trário da

excitação. O cancã sim, era excitante;libertava o cheiro a sexo com aquelesfolhos e saias agitadas no ar»(pág. 203). Até porque «os grandesamores são como as grandes dores,silenciosos. Só que trazem a virtudede em nada serem calculados, nemsequer pressentidos». Porquê? Porque«decorrem com sintomas que maisparecem de doença extraordinária, senão é que o amor não é uma doençadas células que se renovam. E aquelesque não amam contammais célulasmortas do que as outras pessoas,os amantes que amam» (pág. 200).Perfeito milagre da escrita, A Rondada Noite foi abençoado por Deuse odiado pelo Diabo. Como Agustina,decerto aprecia.

Carlos Câmara Leme

Page 13: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

50 ( janeiro 2009 ) revista LER

Geniale vulcânicaMANOEL DE OLIVEIRA*Onosso encontrodeu-sequandoela tinhaacaba-dode escreverOs Incuráveis. Nessa altura, o pin-tor CarlosCarneiro apresentou-me aAgustina eaoNovaisTeixeira, jornalista portuguêsdo jornalbrasileiroFolhadeS. Paulo. Elamorava, por essaaltura,naRuadaBoavista.Contei-lhequegostavade fazer um filme daminha autoria,A Caça. Elaachou interessantenãoobstantenãoestarmos in-teiramentedeacordosobrea formacomoo filmeterminava.Depoiselaofereceu-meASibila, queeu já tinha

lido, depois de ter acabado de lerOs Incuráveis.E, de novo, estivemos emdesacordo. Eu, impru-dentemente, disse-lhequegostava antes quemeoferecesseOs Incuráveisdequeeugostavamais.Imprudentementeporquê?Porquequandoalguémnosoferecealgonãotemossenãoqueaceitar.Em1979,enviou-meoromancehistóricoFanny

Owen. Quandoo li era, afinal, umahistóriaqueeuconhecia jámuitobem,porse tratardecoisas liga-dasà famíliadaminhamulher, ocorridasnaCasadaCapela, emBaião–que,poressaaltura,perten-ciaaoseu irmãoAbelBrandãoCarvalhaisporhe-rança. Eonde existiamas cartas deFannyOwen,porqueoapaixonadodela, JoséAugusto,eraoriun-dodaCasadaCapela.Entretanto, ainda em 1979-1980, estava eu já

preparadopara filmar, comtodaaequipa,OPretoe o Negro, história combasenoque eu tinha con-tado ao autor Vicente Sanches e que ele cruel-mente aumentou.Apenas faltava o acordo comoVicente Sanches, comquemeu já tinha filmadoO Passado e o Presente. Agustina escreveu-me adizer que não fizesse tal coisa. O crítico literárioJoãoGaspar Simões escreveuumartigo emqueia, também, ao encontrodaopiniãoqueAgustinametinhamanifestado.Acontecequese tentouche-garaumacordoentremimeoprodutorcomoVi-cente Sanches,mas que não produziu qualquerefeito. Como conhecia bemahistória deFannyOwenpropusaoprodutorPauloBrancoque fizes-seocontratocomaAgustinaemqueeuprometiaque, emmenos de ummês, teria a planificaçãopara realizarFrancisca.Se ela não gostar deste ou daquele filmemeu

– combase em livros dela – isso nãome incomo-danadadesdequeeugostedaquilo que fiz.Oqueme poderá verdadeiramente doer é eu não gos-tar daquiloque faço. Julgo, porém,quenunca traí

o espírito de qualquer das obras que saíramdacaneta deAgustina e que levei para o ecrã.Maisdoque todosos filmesque fiz comela, doquegos-tomais émesmo dela. De todos os livros omaisforte éOs Incuráveis. Mas a Agustina não é ne-nhum dos seus livros mas o conjunto de todaa suaobra. Ela completa-se. É genial e vulcânica.

*Cineasta.

Page 14: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

revista LER ( janeiro 2009 )

Um espíritomuito independenteDIOGO FREITAS DO AMARAL*NãomerecordodadataoudoanoemqueconheciAgustinaBessa-Luís.Masseique foinumalmoço,noPorto,emcasadeamigoscomuns.Contudo,am-bosnosconhecíamosbem–ela, atravésdaminhaactuaçãopolítica, desde 1974; e eu (claro) atravésda leituradeliciadadealgunsdos seusexcelenteslivros, dequerecordoemespecialASibila,FannyOweneabiografiadomarquêsdePombal–Sebas-tiãoJosé.

Como é que se processou o convite que lhe fizparaseraminhamandatária?Emprimeiro lugar,direiquenogrupo informal comquempreparei aminhacandidatura [presidencial], antesdeela seranunciada (26deAbril de 1985), forampondera-dos trêsnomespara «MandatárioNacional» –umgeneral, umprofessoruniversitárioeumescritorouumartista plástico. Porunanimidade, o grupoaconselhou-me o nome de Agustina, que eu deimediato aprovei comgrande esperança. Emse-gundo lugar, eunãoqueriacolocarumapessoa tãoprestigiada e respeitadaperanteumconvitemeuque a apanhasse de surpresa: não seria correctodaminhaparte. Lembrei-meentãode, paraumasondagem prévia, recorrer aomeu bom amigoAlbertoBaldaque, genrodela.Arespostaveioem24horaseerapositiva.Com-

binou-se, então, umencontro entre nós emcasadela. Foi às cinco da tarde e ela serviu-me, comtodaaamabilidadeegentileza,umchácomscones,àmoda inglesa. Expliquei-lhe a razão de ser e osobjectivosdaminhacandidatura, bemcomoas li-nhasgeraisdoque seria omeudiscursoeleitoral.Ela concordou, aceitando ser aminha «Manda-táriaNacional».Edissemaisoumenososeguinte:– Olhe, Professor. Não sei se vai ganhar ou

não. Ninguém sabe. Mas vou trabalhar paraisso. Estas eleições sãomuito importantes paraa consolidação de um regime democrático civil.E o povo português temmuita sorte: a disputavai realizar-se entre os doismelhores candida-tos que, nestemomento, a esquerda e o centro-

-direita têm para apresentar: Mário Soares eFreitas do Amaral. Com qualquer deles, Portu-gal ficará bem servido.Mas eu vou apoiá-lo a si.Agradeci, é claro,muito sensibilizado.AgustinaBessa-Luís foi sempre, e é, umapes-

soamuito independente. Pensa pela sua cabeça.E possuiuma imaginação, umacriatividadeeumpoder inventivoque lhepermitemsituar-sena fic-çãoounabiografia semprecisarde fazerpolítica.Nãoo fezantesdo25deAbril, nemdepois.Decer-to teve e temas suas ideias políticas.Mas os seuslivros não são políticos: são obras literárias, re-tratos humanos, reflexões filosóficas, mas nãoinvademodomínio próprio da política. Quandoentrou numa campanha política, fê-lo como ci-dadã. Assim, creio que lhe foi fácil discursar eminúmeros comícios daminha campanha. E quebelosdiscursos fez!Seapolíticanuncacontaminouasua literatura,

a arte depensar ede escrever esteve semprenosseus discursos políticos. Eramsubstancialmen-te ricos e formalmente perfeitos. Amultidão es-cutava-a emsilêncio atento e enleado. E, no final,aplaudiam-namais do que aos políticos quemeapoiavam.Porquê?Talvezporqueaarteépuraeapolítica

impura.

*FundadordoCDS,candidadoàPresidênciadaRe-públicanaseleiçõesde1985,presidentedaMesadaAssembleiaGeraldaNaçõesUnidas (1995) eex-mi-nistrodosNegóciosEstrangeirosdoactualGoverno.

Se a política nuncacontaminou a sua literatura,a arte de pensar e escreveresteve sempre nos seusdiscursos políticos, ricose perfeitos. A multidãoescutava-a em silêncioatento e enleado.

Page 15: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

Omelhor escritorportuguês vivoPAULO TEIXEIRA PINTO*Quandomeperguntamoqueparamimsignifica,enquanto responsável máximo da GuimarãesEditores, ter no catálogoda editora a romancistaAgustina Bessa-Luís, não posso deixar de sentirumenormeorgulhopor ter omeunomeassocia-do ao seu percurso literário: desde o seu primei-ro romance,MundoFechado, até ao seuúltimo li-vro,ARondadaNoite. Pormuitas razões, amaiordas quais é considerá-la omelhor escritor portu-guês vivo.ComAgustina temestacasa tidouma longare-

laçãoeditorial, estabelecidaem1954,dataemqueganhouoPrémioDelfimGuimarães.Orgulho-me,também, por ser uma autora com um invulgar

exemplo de fidelidade editorial quemuito honraaGuimarãesEditores.Alémde querer repor a suaObra Completa à

disposiçãodos leitores, contamosdar a conhecerinternacionalmente a romancista, dramaturgae ensaísta, particularmente nomundo anglo-sa-xónico onde ela, comomuitos outros escritoresportugueses, não temumúnico livro traduzido.E, nesse sentido, é subavaliada.Comoadmiradoreresponsáveleditorialda sua

obraénossopropósito fazerumagrandedivulga-ção internacional deAgustinaBessa-Luís.

*PresidentedaGuimarãesEditores.

52

Page 16: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

revista LER ( janeiro 2009 ) 53

A perspectiva da magaLÍDIA JORGE*ParaAgustinaBessa-Luís, o contraditórioéochãodopensamento.Quemnãoentenderessasuaraizprofunda terádificuldadeemcompreenderaobraque produziu, o vínculo que estabelece com omundo, comos livros, e atémesmoo tipode rela-ção quemantémcomos colegas de quemé con-temporânea.A obra aí está para o ilustrar. Ler Agustina é

mergulharnummundodevirtuosismoentrepen-samento e ficção, destrinça entre instinto e alma,discurso cujos contornospodemassentarnohis-tóricoouno jornalístico,masonuclear sempreseconstrói rente ao humano individual, no que eletemde insondável e nele se constitui como fontede surpresa. A surpresa que Agustina faz falaratravésdaanálisedaambivalênciahumana, ondese jogamasoposições que formamouniversodainterioridade. Omesmo é dizer que imaginar aliteratura do séculoXX sema obra deAgustina,seria amputá-la da sua fatia mais densamentedramática.Mas se se quiser entrar no domínio da escrita

produzida pormulheres – particularidade quecontinua a fazer sentido – nela se encontra umaespécie de sublevação em relação àquilo que,

em geral, é o estereótipo feminino, fundamen-tadonumcontraditório aindamais radical.À primeira vista, Agustina sempre escreveu

para além do ressentimento, já que parece terimpregnadoas figuras demulher daquele carác-teraquecomummentesechamadeviril, eeucha-maria apenas de vencedoras no plano da repre-sentação, por compensaçãodaperdanoplanodoreal. A frasedeNietzschequeela tão subtilmentemanobrouemUm Cão QueSonha – «Se fores vera mulher leva o chicote» – sob os seus dedos,mudademão,eocabodesse instrumentoconfun-de-se coma caneta que empunha, para comelavergastara fragilidadedohomem.Masnãoé fácilemAgustina encontrar algumcampode leituralinear, directa, emuitomenospacífica.Paraosespíritosmais convencionais,Agustina

promove surpresas espantosas, colocando-se nolugardeondeamulhervergastaamulher, depre-ciando-a.PoisnãoéraroAgustina falardamulhercomo um ser sem causa, um ser desemprega-do de ambição, umaalma vaga, deambulando aosabor do acaso e do apelo, uma criança grandeacomodadaaumeterno segundo lugar.Surpresa?Contradição?Demodoalgum–ape-

nasumpermanente exercíciode translação. PoisláondeAgustinapareceestar,nãoestá.Apenasalise encontra a sublevar os espíritos, essa acçãosuperior que atribui à escrita e à conversação,e para aqual sempre estánecessitandodenovosespaçosparamudardemira.Qualquerdialogantedesprevenido, diantedeAgustina, pode sentir-sede factomais conformecomaquilo queamoder-nidadeesperadecadaumdenós.MasaautoradeOsIncuráveisésempremodernaporquesecolocaforadadualidadepresente/passadoe, bemvistasascoisas, foradadualidadehomem/mulher.Agus-tinavê-seasimesmanumaperspectivade futuro,eescrevee falanaperspectivadamaga.Omoldeque encontroupara esse salto fora do

tempo e do género, nos livros, foi a sentença e aepígrafe. Nadiscussão, foi a exploraçãodoadver-so, istoé,dacontradiçãorevestidado irónico, eatédo irónicoprazenteiro.PorqueAgustina, comoselhereconhece, saberirdomundocomoninguém.Comopoucos, ri de todos, e entre todos – ao con-tráriodoprocessousadopormuitos–elamesma,lánãoestá.

*Escritora.

Agustina Bessa-Luís tem o dom de pertencer acada lugareacada tempo.Fá-lo cominteligência,humoreliberdadedeespíritocomexpressãonumaestéticasibilina, irrepetível.Énodesconcertodasideias feitasqueAgustinaconstróioseuuniverso,quenosétãopróximo,comosurpreendente.Agustina representaummistodaaristocracia

eburguesiadoNorteportuguês.Édeaquiqueseas-sumecomoumacidadãdoMundo,pós-moderna,capazdeidentificarasnossasidiossincrasias,peca-dilhosegrandezasmuitasvezesdesaproveitadas.Fala sobreaautocontemplaçãodosPortuguesescomuma lucidezmordaz. A troco de uma bana-lidade, surgecomumcomentárioprofundo, cheiodehumoreoportunidade.Lembro-medeumdia,naChina,aoentrarnum

carroparavisitaroexércitodesoldadosde terra-cotaemXian,capitaldeXanxi,debaixodeumcalorhúmido insuportável,Agustina terperguntadoao

homemdoprotocolo sepodia ligaroar-condicio-nado.Quandoodiplomatalhedissequeoaparelhonãofuncionava,Agustinalogorespondeu:«DeveseraúnicacoisaquenãoécondicionadanaChina.»Nessaaltura, tinhaconvidadoAgustinaBessa-

-LuísparadirigiroTeatroNacionalD.MariaII.Sen-dodoPorto,gostavamuitíssimodeLisboaelávinha,todasassemanas,decomboio,comumentusiasmocontido, quase trocista. Fizémoso «sacrilégio» depôrnopalcodoTeatroNacionalomusicalPassaporMimnoRossio,deLaFéria,comenchentesdiárias,durantemeses.Geriaaspessoaseascoisascomsa-bedoria.Eradesassombrada,desconcertanteparaalguns,masnemporissoprovocavaconflitos.Desde essa altura, mantivemos um contacto

regular, por vezes escrito.É, paramim,umprivi-légioteralgumasdassuascartas,verdadeiraspeçasliteráriasquegostoderevisitar.Agustinasabeseramiga, estarpresenteedeixasempreamarcaori-

ginal do seupensamento.Nadaescreve semsen-tido.Emnadasepoupaoudesinveste.EmJaneirode2004, fezaapresentaçãodomeu

livroCausasdeCultura (Bertrand),noGrémioLite-rário.Presentes,naquelemês,governantes, juízes,intelectuais, desconhecidos – opodernomundoportuguês.Agustinacortouadireito:«Pensoqueumpaísnãopodesergeridocomoumacasadefamília.Demasiadaprudência temriscosde transformartudoemcostume.Oravivernãopodeserumcos-tume, governar também não o é. Ousar, perdere ganhar, recomeçar e sobretudo conhecer o ili-mitadoquenos chamaeosmeios quenos põemobstáculossãoamarcadohomemdopoder.»

*Ex-primeiro-ministro.CandidatodoPSDàCâmaraMunicipaldeLisboa.EnquantosecretáriodeEstadodaCulturanomeouAgustinaparadirectoradoTea-troNacionalNacionalD.MariaII (1990-1993).

PEDRO SANTANA LOPES*Mistérios da genialidade

Page 17: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

54 ( janeiro 2009 ) revista LER

Àmaneirade prelúdioLAURA FERNANDA BULGER*Curiosamente, não foi oprimeiro,maso segundovolumedeOsIncuráveisquemedeuaconheceraescrita deAgustina, antesmesmode lerA Sibila,descoberta tardia,masque foi, como se costumadizer, umdaqueles encontros fatais que aconte-cemnavida.Oque logome impressionouemOs Irmãos foi

a exuberância da voz narradora, no primeiroparágrafodasequênciaaOsRetratos. Lembrava--meaeuforiadeMrs.Dalloway,naqueladiaquen-tedeJunho,antesdesairdecasaparacomprar flo-res –What a lark! What a plunge! –, como se amanhãradiosa tambémfosseparaelaumrecome-çar, «mergulhando», a seguir, nas recordaçõesdeuma infância já distante, o que sucede com fre-quência nos romances deAgustina, paraquemopassado tambémémotorde todaumaorquestra-çãonovelística.Paraalémda«febril coragemdeaventura», con-

diçãoessencialdacriaçãoartística, emOsIrmãosconfirma-seumaestéticadeterminadaemexplo-rar os recantosmais obscurosda vivênciahuma-na, fazendodasexperiênciasedos «sonhos jávivi-dos» objecto de contínua auto-reflexão. «Tudoserve para recomeçar», sejamos arroubos espi-rituais deumaprotagonista aspirante aummun-dooutroquenãooseu, sejamos instantesemquese ocupa das tarefasmais insignificantes do seuquotidianodoméstico.Assimé, por exemplo, o constante recomeçar

da heroína arquetípica, Quina, na evocação con-templativadeGerma, enquantosebaloiçanaque-la «sala, de tectobaixo, ondepairavaumcheirodepraganaedemaçã».Asprimeiraspáginasdosro-mances deAgustina são geralmente tão empol-gantesque, seduzidospelagrandiosaoverturever-bal, vamo-nos envolvendo, emaddagiooupresto,na intrigaou teiade intrigas forjadasporumame-mória imprevisível e imparável.EmAsPessoasFelizes começa-sepor recordar

umbelodiadeVerão,oquenãosignificaqueanar-rativa que se lhe segue –umadasmuitas emquea sociedade portuense é o referencial identificá-vel – se desenrole pacífica e linearmente ouqueNel, a personagemcentral, encontrealgumavezafelicidadequeprocura.Umcurtopreâmbulosobrea infalibilidadedopoderdiabólicoépremonitóriodeumahistória sórdida, ocasodeEugéniaeSilvi-

na, onde senarramoscaminhos tortuososdadu-plicidade, do incestoedeumcrimenãoresolvido,praticado, supostamente, porumamulher.Odes-tinodaprotagonistapoderá ficar suspensodo lu-gar sagradodescritonoprólogo, comoa «meninadenomeAlfreda»que,nosítiodoAnjo, anseiaporconhecer aVirgem, sendoA Alma dos Ricos a re-presentaçãodoseupercursoobsessivo,quesó ter-minacomamortedaheroínadelirante.EmFannyOwen, o cenário de umDouro infernal serve deprelúdio ao drama de Fanny, vítima do ciúmeentredoishomensromanticamenteapaixonados.Àmaneiradeprelúdio, emValeAbraão fala-se

damargemesquerdadoDouro, ensombradaporumamaldição bíblica quedeixa antever a trajec-tória daheroína, Ema, condenada aumavida in-satisfeita, na tacanhez do seumeio provinciano.Amorteporafogamentonaságuas lamacentasdorio será o fimdestaBovarinha-Ofeliana,moldadapelapaisagemduriense.

ParafraseandoaprópriaAgustina,aocomentarasrepresentaçõespictóricasdePaulaRego,asmu-lheres construídas pela escritora «talvez fossemoutras» semesseuniversonortenho subjacente,conscienteou inconscientemente,àsua ficção.TalcomoacontececomPaulaRego, ficamossemsabercomoacriadoradeASibilaasrepresentaria«apar-tir deElsinor», o reino da adúltera, da prostitutae da louca, na visãodeumPríncipemelancólico,atormentadopelodesejodevingança.Mesmode-poisdepercorrera longagaleriadeprotagonistasagustinianas,nãoousaríamos imaginá-las,atépor-queAgustinaé sempresurpreendente.

*Professora da Universidade de Trás-os-Montes eAltoDouro e autorade, entre outros livros,ASibi-la» –UmaSuperação Inconclusa (GuimarãesEdi-tores, 1990) eOÂnguloCrítico doEntendimentodoMundo. Estudos em tornodaFicção deAgus-tina (EdiçõesColibri, 2007).

Page 18: Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, FOTOGRAFIA DE ......FOTOGRAFIA DE LUÍSA FERREIRA Detodasuavida,qualéoinstante,ofragmento, opontinhodeluzquemaisvezes lheocorreparadizer

Acélebre frase deFernandoPessoa «Eunão evo-luo, viajo» (carta aAdolfoCasaisMonteiro, 1935)poderia ser aplicada, em termos gerais, ao pro-cesso criativo deAgustina Bessa-Luís. De facto,na autora deO Mosteiroparecenãohaver aquiloa que se chama «fases» ou «ciclos» linearmentedeterminados.TudoemAgustina se correspondee entrelaça.

Tudo se acumula e repete, em círculo. Mas, talcomo o encadeamento de personagens e factos(emquenada,mesmoomaismomentâneo e ca-sual, se perde) dá o sentido último ao livro, tam-bémlhodáoque, àprimeiravista, pareceriaoseucontrário: a incompletude.Oquesignificaque, emAgustina, tudo se liga, tudo leva a uma poéticado inacabado.Assim,deMundoFechado (1948)atéARondada

Noite (2006)háumacircularidadedaescrita queconciliaad infinitumunidadee variedade, a dife-rentesníveisdanarrativa,desdeumobsessivo«es-pírito do lugar» àmultiplicidadedepersonagens,algumasreaparecendociclicamente.Artedarepe-

tição, portanto, desdeoprimeiro romance.O quenos levaapensarqueparaAgustinaaobradearteéum«mundofechado».Digamosaté,umabsoluto.Todavia,umabsoluto feitode fragmentos,nomes-mo sentido emque o foi paraProust oÀ procurado Tempo Perdido: o de umadiversidade que seconcentra na própria acumulaçãometafórica efragmentadadepormenoresquase imperceptíveisqueamemória (sobretudoada infância) recuperae transfiguramiticamenteacada instante.As próprias personagens, na sua diversidade,

sãoreveladasao leitor comoúnicasatravésdepe-quenos detalhes: os objectos que as rodeiam, há-bitos quotidianos que por vezes se confundemcommanias,maneirasdevestir, de falar, etc., tudoisso inseridono elemento absolutamente funda-mentaldaestruturanarrativaagustinianaqueéotempo, sentidonasuavelozpassageme/oupensa-donasua tenebrosaessência.Lembremos, apro-pósito, como desde o início do seu primeiro ro-mance,MundoFechado, Agustina evocao «peso»do tempoatravés dopersonagemcentral, Pedro,

que temevidentes semelhanças comoHansCas-torpdeAMontanhaMágica, deThomasMann:«A impressão de que tudo era igual para si

e seguia igual, de que entre a noite e o dia, parasi, nãohouvera sombranem trégua, de que viviajá infinitamente entregue ao tempo, pavorosodetãovasto,horrívelde tãosereno– istopersistiaemsi. “É comoa certeza de ter de esperar para sem-pre” –pensou» (pág. 6).E lembremosaindacomo,noseuúltimoroman-

ce,A Ronda da Noite, Agustina volta ao temadotempoedamemória queomitifica, agoraprojec-tado na relação entre literatura e arte, quandoMartinho, opersonagemprincipal, sente «quantono tempoháapenas fugacidadeenãooutramedi-dasenãoesta» (pág. 115).Assim,ocírculo fecha-se,entrea ironia eomistério.

*ProfessordaUniversidadeNovadeLisboa, autorde,entreoutrasobras,AgustinaBessa-Luís–VidaeObra, (Arcádia,1979)eAgustinaBessa-Luís–OIma-ginárioTotal (DomQuixote, 1983).

A incompletudeda escrita circularÁLVARO MANUEL MACHADO*

revista LER ( janeiro 2009 ) 55

A alegria das letrasRecordavao seugostopelo contacto comopúbli-co, pelas longashoraspassadasemfeirasdo livro,sentada, aassinarosseus livroseconvivendocomos seus leitores. Daí que, quando há cinco anospromovi umciclo de conferências sobre as rela-ções entre a Psicologia e outras áreas do conhe-cimento, seme impôsonomedeAgustinaBessa--Luís como a pessoa a convidar para o tema daLiteraturaePsicologia.Vejo-a entrar naLivrariaAlmedina deLisboa

e tenho o vislumbre de uma avó, daminha avó,de todas as avós, a quemnos apetece tratar comreverênciae tratocuidado. Surpreendo-mecomasuarapidezeoolharcerteiro.Esseolharqueman-témdurante todo o tempo, umolhar sorridente,de quemgozaoqueomundo tempara lhedar.Fezumapalestra invulgar, tirando a literatura

dopedestal emqueesperaríamosqueacolocasse,para falar dessa actividade como quem fala dequalquer outra coisa necessária à vida comocomerou tomarbanho. Semmais. Eentreteve-seeentreteve-nosacontarpequenashistóriasdasuavida, comoparademonstrara sua tese.Contoucomoos taxistasa levavamemgrandes

voltas porLisboa, tomando-a porumaprovincia-na carregadadevolumesde supostosmantimen-tos, pacotes que envolviamas letras em formadelivro que escrevia, e de como isso não a incomo-dava. Ou ainda da vez em que um vendedor doBulhão, após lhe ter apresentadoumpapel comacontadasmercadorias, eAgustinao ter interroga-do sobre a quantia emcausa, lhe ter perguntadose sabia ler. E de como isso a divertia, sentir quepodia passar despercebida, ou posta num lugar

emque a literatura era sómais uma actividade,alheia aestemundodosoutros.Por isso, dissenãoacreditarnasgrandes ideias

feitassobreaimportânciadaliteratura.Querevela-çãofeitaporquemtinhaescolhidoavidadeescrita!Acedeumais umavez a assinar os seus livros,

comapaciência dequemtem todoo tempoà suafrente, e deixou-meumadedicatória na sua auto-biografia e fotobiografia que é todaumavisãodomundo, «com umabraço demuita alegria, por-que as letras são coisas de felicidade». Fez tantopor desaparecer aos nossos olhos que registouneles uma impressãoduradoura. Será esta ama-gia, o truque, ou a verdadeira formade viver?

*Presidente da Associação Pró-Ordem dos Psi-cólogos.

TELMO MOURINHO BAPTISTA*