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1 DEUS: REALIDADE OU MITO?

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Nada nos engana tanto quanto a nossa opinião

Leonardo Da Vinci

Nietzsche: "As convicções são cárceres".

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POR QUE ESTE TEMA?

Desde a minha juventude, o tema Deus me fascina. Ora crente, ora duvidoso, refleti inumeráveis vezes sobre a sua existência ou não. Como era de se esperar, não cheguei a nenhuma conclusão. E nunca chegarei. Apesar disso, jamais me abalei em conviver com os paradoxos. Aliás, gosto dos paradoxos, porque a lógica é incapaz de lidar com a ilimitada complexidade da vida.

Decidi, por fim, escrever um livro sobre o maior de todos os paradoxos - Deus. Para isso, recolhi tudo o que havia escrito sobre Deus e acrescentei novas ideias para enriquecer o tema. Para isso, me fragmentei em seis personagens - o teólogo, o místico, o poeta, o cético, o filósofo e o cientista - para abordar o assunto sob as mais diversas perspectivas. Não tenho preferências por nenhum deles, porque todos sou eu, no tumulto de minhas contradições.

A vida não teria qualquer sabor se tudo fosse unânime.

Valter da Rosa Borges

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TEMÁRIO

Realidade ............................................................... 11 Natureza ................................................................ 22 Caos e ordem.......................................................... 29 Criação .................................................................. 39 Evolução................................................................. 55 Vida ....................................................................... 61 Teleologia ............................................................. 70 Deus...................................................................... 77 Fé.......................................................................... 111 Ação de Deus no mundo.......................................... 125 Antropomorfismo .................................................. 131 Atributos ................................................................ 134 Imortalidade ......................................................... 139 Imutabilidade ........................................................ 144 Infinitude .............................................................. 149 Unidade ................................................................ 151 Imanência e transcendência ................................... 154 Onisciência............................................................ 166 Onipresença .......................................................... 172 Onipotência .......................................................... 180 Liberdade .............................................................. 188 Amor ..................................................................... 196 O bem e o mal ........................................................ 198 Justiça ................................................................... 213 Perfeição............................................................... 217 Sofrimento ............................................................ 222 Ateísmo.................................................. ............... 233

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AA RREEAALLIIDDAADDEE Filósofo – A realidade é necessariamente imortal. Se tudo fosse transi tório, nada

subsistiria, porque nada se origina do nada e volta ao nada. E não se poderia explicar a origem dos seres transitórios se a realidade não fosse eterna. Assim, é mais razoável admitir-se a eternidade da realidade, de onde se originam todos os seres transitórios do que sustentar que só existem seres transitórios que se originam, por sua vez, de seres transitórios, e assim inde -finidamente.

O que é eterno não tem causa. A realidade é não-causal e dela se originam todas as coisas.

Mas, o que é a realidade? Há duas hipóteses para definir a sua natureza: a matéria ou Deus.

Cético – A primeira hipótese é a verdadeira. Deus é uma hipótese insustentável. Tudo

o que existe é transformação da matéria. Então, não há criador e, portanto, nada é criado, embora tudo esteja em contínua transformação. Se Deus existisse, ele seria produto da matéria ainda que parecesse imaterial.

Teólogo – A realidade é Deus e a matéria é Sua criação. Cientista – O que é, então, a realidade, seja ela a matéria ou Deus? Benedito Espinosa

afirmou que Deus é a substância de todas as coisas. Parece-nos que a realidade é uma substância única, em vários níveis de manifestação, dos quais a matéria é um deles.

Cético – A realidade é matéria e ela é constituída de átomos e de partículas

subatômicas. As nossas percepções visuais ampliadas por aparelhamentos tecnológicos descobrem sempre mais matéria no universo macrocósmico e microcósmico.

Mas, se Deus, porventura, existisse, de que ele seria feito? Cientista – Essa indagação suscita outra: de que são feitos os átomos e as partículas

subatômicas? Se afirmarmos que é de matéria, caímos da tautologia de dizer que a matéria é feita de matéria, ou de fragmentos de matéria cada vez menores, que não percebemos, embora a ciência ainda não tenha encontrado o fragmento indivisível da matéria. O átomo não é matéria, porque esta resulta do modo como os átomos se organizam. Ela não é causa, mas efeito das mais variadas formas de organização atômica.

Cético – A matéria é tudo aquilo que é apreensível pelos nossos sentidos ou por suas extensões artificiais. Por isso, à medida que aumentamos a capacidade da nossa instrumentação tecnológica, percebemos que o universo material é cada vez maior do que pensávamos.

Filósofo – A matéria é nosso modo de interagir com a realidade. A realidade não é a matéria, mas o modo de percepção de cada ser, na conformidade de sua estrutura sensorial.

Não existe a matéria como substância da real idade. A matéria é um constructo sensorial. Com isso não se quer dizer que não exista um mundo exterior, uma realidade objetiva. Afinal, o observador é real. Mas a realidade não é apenas o observador. A matéria é a maneira como a realidade se apresenta ao observador. Este não organiza a realidade tal como ela se apresenta aos seus sentidos. Ele a organiza como significado para si mesmo.

Cientista – Nunca conheceremos toda a realidade. São os nossos sentidos que criam a nossa realidade, decodificando os estímulos recebidos do mundo exterior. O conjunto de todos esses estímulos nos proporciona a impressão da “realidade” da matéria. Assim, as

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“propriedades” da matéria - forma, cor, peso, aroma, sabor, impenetrabilidade – são decodificações da nossa estrutura sensorial e não de uma matéria objetivamente real.

Gregory Bateson ressaltou a influência da percepção em relação ao universo que supomos conhecer. Disse ele: "As regras do universo que acreditamos conhecer estão profundamente enterradas em nossos processos de percepção."

Fritjof Capra foi mais contundente: "Os padrões que os cientistas observam na natureza estão intimamente relacionados com os padrões de suas mentes, com os seus conceitos, pensamentos e valores. Por isso, os resultados científicos que obtêm e as aplicações tecnológicas que investigam estarão condicionados pela estrutura de suas mentes."

Filósofo – A percepção de uma realidade dita objetiva é conforme fomos organizados.

E o que nos organizou? Foi a atividade aleatória dos átomos? O homem, sob esse aspecto, é um agregado instável e provisório de átomos que têm a veleidade de conhecer o mistério da realidade.

Se a realidade não é matéria, o que é ela então? Poderíamos concordar com aqueles que afirmam que a mente é o substrato da

realidade. Mas, o que é a mente, admitindo que ela não seja um estado do cérebro? Mente e matéria não seriam modos de interagirmos com a realidade? E o que é esse agente desconhecido que interage com a realidade também desconhecida? Ou seja: o mistério que envolve a realidade observada é o mesmo que envolve o seu observador. Somos um mistério procurando decifrar outro mistério.

Cientista – A percepção não é apenas o resultado da nossa estrutura sensorial. Enesidemo foi quem primeiro descobriu a influência dos fatores culturais na percepção. A percepção não é apenas um ato fisiológico, mas também psicológico. Talvez até mais psicológico do que fisiológico. Percebemos o que desejamos perceber e do modo como desejamos perceber. E também não percebemos o que não desejamos perceber. São as nossas motivações inconscientes que determinam o que e como percebemos e o que não percebemos.

Há um mundo exclusivo para cada percebedor. Como podemos saber que as outras pessoas percebem as coisas tal qual as percebemos. Ainda que duas pessoas concordem que vêem as mesmas coisas não há certeza absoluta da coincidência de suas percepções. Apenas os observadores concordam que assim seja.Trata-se, portanto, de uma mera suposição e ficamos satisfeitos com isso.

A percepção é uma decodificação personalizada de cada organismo. Assim, toda a percepção é real para cada percebedor. A subjetividade e a objetividade não são completa- mente distinguíveis em cada experiência perceptual. O contato com as outras pessoas é que nos dá a convicção de que nossa percepção é de natureza objetiva.

Filósofo – David Deutsch argumentou que a imaginação é “uma forma direta de

realidade virtual” e não temos uma “experiência direta" do mundo por meio dos sentidos. Por isso “o que experimentamos diretamente é uma representação em realidade virtual, convenientemente gerada para nós por nossa mente inconsciente a partir de dados sensoriais mais teorias inatas e adquiridas (isto é , programas) sobre como interpretá-los”.

E acrescentou: “Nós, realistas, assumimos a visão de que a realidade está lá fora: objetiva, física e independente do que acreditamos a seu respeito. Mas nunca sentimos diretamente realidade. Cada fragmento da nossa experiência externa é de realidade virtual. E cada fragmento do nosso conhecimento - incluindo nosso conhecimento dos mundos físicos da lógica, matemática e filosofia, e da imaginação, ficção, arte e fantasia – é codificado na forma de programas para a reprodução desses mundos no gerador da realidade virtual do nosso próprio cérebro.” Para Gilles Deleuze,“o virtual possui uma plena realidade, enquanto virtual”.

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Cientista – As propriedades da matéria são as propriedades do observador.

Materialidade é a relação entre seres e coisas do mesmo nível fenomênico, pois a matéria é a teia de interações entre os observadores.

O observador isolado cria sua própria realidade subjetiva. Os observadores em interação criam uma “realidade objetiva” com a sua própria “materialidade”. Se a realidade é criação dos observadores, novas coisas podem ser inventadas ou descobertas desde que haja concordância entre eles, ao menos, na sua maioria. A aceitação de uma percepção constitui a sua realidade. Assim como os observadores criam a realidade, eles também a modificam.

A realidade é uma consensualidade entre os observadores e essa é a sua materialidade. O mundo não é uma ilusão, embora cada mundo gerado por grupos de observadores diferentes pareça ilusório em relação a outros.

Segundo a Escola de Copenhague, não faz sentido falar sobre as propriedades físicas de um objeto quântico, sem especificar o dispositivo experimental através do qual se pretende observá-lo, visto que a realidade quântica é, em parte, criada pelo observador. Ou seja: o mundo não possui um estado de existência bem definido, independente de nossa observação, porque, no mundo atômico, a realidade resulta do modo que a observamos ou daquilo que de- cidimos observar e de conformidade com o dispositivo experimental utilizado nessa observa- ção. O observador não se limita a observar as propriedades de um determinado objeto, mas também define as propriedades do mesmo. Assim, se se modificam as condições experimentais, também se alterarão as propriedades do objeto observado. Por esse motivo John Wheeler sugeriu a substituição da palavra "observador" pelo termo "participante".

A constatação de que o observador e seus instrumentos de observação interferem no objeto observado, produzindo-lhe alteração por mínima que seja, também se aplica à vida social, conforme constataram os antropólogos. As pessoas reagem à presença de observadores de outras culturas, modificando o seu comportamento no seu relacionamento com eles.

Cético – Nós não vemos senão o que desejamos ver, aquilo que esperamos ver e o que

nos ensinaram a ver. Eis porque místicos e santos afirmam, com convicção, que viram ou vêem Deus. A essas alucinações visuais dá-se o nome de experiências espirituais. Videntes dizem perceber espíritos e até conversar com eles. A alucinação é uma percepção enganosa.

Cientista – Para Arthur Koestler, "a percepção é uma questão de níveis", visto que

grande parte de nossa atividade é guiada pela rotina e pelo hábito. Nós não vemos uma coisa em si, mas estados sucessivos de uma mesma coisa. O

próprio observador não é o mesmo que observa, mas estados sucessivos de si mesmo, observando a sucessividade de estados da coisa observada.

A nossa percepção é seletiva, porque só nos conscientizamos daquilo que tem interesse e significado para nós. Os fatos, assim, são constructos mentais, decorrentes dos nossos condicionamentos perceptuais, por sua vez resultantes de causas orgânicas e culturais.

Filósofo – Se as nossas percepções não correspondessem a uma realidade objetiva,

conquanto filtrada de conformidade com a nossa organização sensorial, viveríamos um mundo de ilusões. Se, por outro lado, elas correspondessem a um padrão único da realidade, então esta seria um amontoado de contradições, dada a diversidade perceptual de cada espécie biológica.

Percepção não é apenas apreensão, mas interpretação de tudo o que nos afeta. O universo, para o percebedor, é aquilo que ele percebe. Se pudéssemos mudar a estrutura sensorial do nosso organismo, passaríamos a viver uma realidade diferente. Aliás, a experiência com drogas alucinógenas confirma essa assertiva, pois a simples alteração

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bioquímica do organismo produz alterações sensoriais, fazendo o indivíduo, sob seu efeito, perceber as coisas de uma forma bizarra.

A experiência modela a percepção e a percepção ratifica a expe riência. Ou seja: o modo como aprendemos a perceber passa a ser o modo como percebemos. Então, a realidade se torna, para nós, o modo como a percebemos.

Místico – Deus é o verdadeiro observador. Todos somos, apenas, observados que

pensam ser observadores.

Teólogo – Os materialistas, para explicarem o mundo, substituíram Deus pela matéria, dando a esta os mesmos atributos da Divindade. Assim, para eles, tudo é feito de matéria, tudo sai da matéria e a ela retorna, e a matéria é eterna porque nunca foi criada

Filósofo – Não há um real em si, desvinculado dos percebedores. O real é também os

percebedores. O ser e o devir fazem parte do real: são faces de uma mesma moeda. Místico – Essa concepção da matéria é idêntica ao ensinamento da Escola Vedanta de

que o mundo só é real enquanto Brahman pensa nele. A tradição oriental sempre entendeu que o estofo do universo é mental. Assim, o que

chamamos “matéria” é, na verdade, um estado psíquico. O que nos dá a impressão que este centro é constituído pelo vazio da nossa ignorância.

O universo físico é regido por probabilidades e não mais por certezas decorrentes do determinismo.

Ilya Prigogine constatou que é impressionante “verificar a que ponto é hoje frequente os cientistas voltarem-se para as filosofias orientais quando procuram meios de reflexão sobre o significado existencial de sua atividade”.

Filósofo – David Hume apoiou a tradição oriental. E sustentou: “A natureza não passa

de uma ficção. A realidade são fenômenos subjetivos. Não há substância e o próprio eu é um feixe de impressões psíquicas. A substância é apenas uma constante associação de percepção resultante da experiência.

Causa e substância, tempo e espaço não passam de criações psicológicas, poeira de fenômenos subjetivos. Acalentamos, porém, a crença de que existimos e de que o real e xiste. E isto é o bastante para as nossas necessidades práticas.”

Místico – Pietro Ubaldi adotou idêntico entendimento: “Não se pode encontrar o

último termo da matéria, porque ele não existe. Na verdade, a substância da matéria é trajetória e relações.

A ciência da matéria se reduz a uma ciência de relações, a um puro processo lógico. O que é real na vida não é a forma, mas a trajetória do seu tornar-se. Todo mundo é real no seu nível, e ilusão se visto de outros planos. Todo mundo torna-

se ilusório, logo que é olhado de um mundo mais alto.” Cientista – John Gribbin percebeu o mundo material através da óptica quântica: “No

mundo do quantum, só possuímos aquilo que vemos e nada é real. O mais que se pode conseguir é ter um conjunto e ilusões concordantes entre si. Nada é real, senão enquanto vemos.”

Dizia Werner Heisenberg: “Todas as partículas elementares são feitas da mesma substância, que podemos chamá-la de energia ou matéria fundamental: elas são apenas formas distintas em que a matéria pode se revelar”.

Se compararmos essa situação com os conceitos aristotélicos sobre matéria e forma, poderemos dizer que a matéria, como mera potentia, deveria ser comparada ao presente

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conceito de energia, e esta passaria ao estado de matéria, após adquirir forma no momento em que se cria a partícula elementar.

Filósofo – Observou Bertrand Russel que “a física moderna reduziu a matéria a um

conjunto de eventos que se deslocam para o exterior provenientes de um centro. Se existe algo mais no centro, nós ignoramos e é irrelevante para a física”.

E afirmou: “A matéria, em seu centro, está reduzida a uma simples ficção matemática. Agora, devido principalmente a dois físicos alemães, Werner Heisenberg e Erwin

Schrödinger, os últimos vestígios do velho átomo sólido dissolveram-se e a matéria tornou-se tão fantástica quanto uma visão espírita.

Arthur Eddington foi mais além: “Toda realidade é de natureza espiritual, e não material, nem tampouco em parte material e em parte espiritual.”

Eddington afirmou que "a matéria prima do universo é o espírito." Por isso, enfatizou: "Numa conclusão nua e crua: o estofo do mundo é de natureza

mental." E argumentou: “Sabemos hoje que a exploração do mundo exterior com os mé todos

da ciência física não nos conduz a uma realidade concreta, senão a um mundo de sombras e símbolos, por baixo dos quais esses métodos são incapazes de penetrar. Se se pergunta hoje aos físicos o que têm decidido, finalmente, sobre o que sejam os átomos e os elétrons, não nos responderão falando de bolas de bilhar nem de turbinas nem de qualquer outra coisa concreta; eles nos remeterão a uma série de símbolos e equações matemáticas que refletem seu comportamento de modo satisfatório.

Para dizer com toda clareza, minha conclusão é que o mundo está composto de “matéria” mental.

A matéria mental de que se compõe o mundo se refere, naturalmente, a algo mais geral do que as próprias mentes individuais conscientes, mas podemos pensar que sua natureza não é de toda alheia ao sentimento que temos da própria consciência.

Hoje em dia sabemos que a ciência não pode dizer nada sobre a intrínseca natureza do átomo. O átomo é para a física, como qualquer outra coisa, uma relação de leituras de indicadores diversos.”

Místico – A realidade é um constructo mental. Gargyayana, asseverava que a realidade é a mente. O visível não passa de um refl exo

mental. Segundo o Hermetismo, a realidade é mental. Lu Hsiang-Shan e Wang Yang Ming, fundadores da Escola da Mente, ensinavam que o

universo e a mente são idênticos e que nada existe fora da mente. A Escola Yogachara ensinava que o mundo exterior é o próprio pensamento, e que a

multiplicidade das coisas nada mais são do que representações ou ideias. Cientista – Segundo Jean Guitton, o universo é um vasto pensamento. Em cada

partícula, átomo, molécula, célula de matéria, vive e atua, incógnita, uma onipresença. Cético – Tudo isso não passa de misticismo científico. É loucura afirmar que a matéria

não existe. Somos feitos de matéria e vivemos num mundo material. Cientista – A Física Quântica mudou essa visão do mundo. Arthur Koestler advertiu:

“Todo um coro de laureados do Prêmio Nobel da Física ergue sua voz para nos anunciar a morte da matéria, a morte da causalidade, a morte do determinismo.”

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Místico – Por isso, Teilhard de Chardin asseverou: “Atingido o extremo de suas aná-lises, os físicos não sabem mais se a estrutura que eles alcançaram é a essência da Matéria que eles estudam ou, então, reflexo de seu próprio pensamento.”

Pietro Ubaldi acentuou que “a ciência da matéria se reduz a uma ciência de relações, a um puro processo lógico.”

E acrescentou: “As ondas que representam um elétron na mecânica ondulatória, hoje se julga que são ondas de probabilidade, cuja intensidade em cada ponto dê a medida da probabilidade de que um elétron esteja naquele ponto.”

Cientista – É verdade. James Jean reforçou a posição atual da ciência: “A tendência da

física moderna é de resolver o inteiro universo material em ondas e nada mais que ondas. Estas ondas são de duas espécies: ondas, por assim dizer, prisioneiras, que denominamos matéria, e ondas livres, que denominamos radiação ou luz.

O universo mais parece um grande pensamento do que uma grande máquina.” Filósofo – David Bohm, por sua vez, questionou: “A pesquisa da matéria pode nos le var

a perguntar se há algo além da matéria ou se a matéria é tão sutil que está alem da matéria como comumente a conhecemos.

A questão é se a matéria é tosca e mecânica ou vai se tornando mais e mais sutil, a ponto de se tornar indistinta daquilo a que chamamos mente.”

Cientista – É a energia que desempenha hoje a função da coisa em si. Assim, é

mediante as leis da energia que se pode explicar os fenômenos da matéria. Mas, o que é energia? Dizer que matéria é energia congelada, como afirmou Albert Einstein, não explica nada, pois não sabemos o que é energia.

Cético – Então, não há uma realidade objetiva? Tudo o que percebemos não passa de uma ilusão?

Teólogo – René Descartes argumentou que o mundo não é uma ilusão, porque Deus não nos daria sentidos enganosos.

Cético – Esse é um pensamento místico, fruto do desespero do filósofo. Nada do que

foi dito me convence. Sou materialista, porque só a matéria é real, e a realidade é material. Tudo o mais não passa de divagações e fantasias.

NNAATTUURREEZZAA Filósofo – Falamos das leis da natureza e não das leis da realidade. Há alguma

diferença entre a realidade e a natureza? Ou elas são a mesma coisa? Cético – A Natureza, para a ciência, é apenas a realidade física - a matéria e o universo.

O universo é a maior expressão macrocósmica da realidade. E o átomo, a sua menor expressão microcósmica.

A religião e a ciência, em relação à natureza dizem, de modo diferente, a mesma coisa: as leis de Deus, as leis da natureza; as criações de Deus, as criações da natureza; o respeito a Deus, o respeito à natureza; os flagelos de Deus, os flagelos da natureza; o amor a Deus, o amor à natureza; somos filhos de Deus, somos filhos da natureza. Prefiro conceber a natureza como algo físico e, não, divino.

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Cientista – A natureza é o modo como percebemos a realidade e as leis que regem o universo observável. Galileu interpretava a natureza como a ordem do universo, uma ordem que é única e que nunca foi e nem será diferente.

Porque vemos certas coisas acontecerem da mesma maneira, acreditamos que elas sempre acontecerão assim para sempre. E porque elas se tornam previsíveis e até experimentalmente repetíveis, damos-lhes o nome de leis. Por isso, eventos esporádicos, singulares, contraditórios não alcançam o status de lei.

Filósofo – As leis da natureza são preexistentes ou resultaram das suas complexas

interações? Se são preexistentes, pressupõem um fator ordenativo que, para os religiosos, é a Divindade.

Cientista – Há três leis gerais da natureza: a) a da replicação; b) a da cooperação; c) e a

da competição. A replicação revela que tudo é uma permanente atividade de cópia na natureza. A

cópia é a garantia da continuidade da vida das espécies. Cada ser biológico sobrevive nas cópias de si mesmo, embora elas apresentem pequenas alterações do modelo original. Por isso, nada é igual, mas semelhante a si mesmo, e as semelhanças, cada vez mais, se tornam menos fiéis às suas cópias mais longínquas.

É pela competição que os seres se exercitam e se aprimoram, e os melhores ou mais aptos são os vitoriosos. E é pela cooperação que os seres da mesma espécie ou grupo social se associam, visando à própria sobrevivência e/ou objetivos comuns.

Cético – Para Galileu Galilei, a estrutura do universo é a matemática. Por isso, afirmava que as leis da natureza são leis matemáticas.

O mesmo pensava o astrônomo Johannes Kepler: “As leis da natureza nada mais são do que pensamentos matemáticos.”

Cientista – Heinz R. Pagels discordou: “Os físicos acreditavam que conseguiam capturar toda a natureza na sua rede de matemática. Tudo o que tivesse ocorrido, até ao mais ínfimo pormenor, podia ser determinado. Mas, surpreendentemente, com a moderna física quântica foi abandonada a ideia de uma descrição matemática de toda a natureza. Acontecimentos quânticos individuais, como a desintegração de um núcleo atômico, não estão sujeitos a nenhuma lei matemático-física; só a distribuição desses acontecimentos, médias tomadas em relação a um grande número deles, está sujeita às leis da teoria quântica. As leis da física não são determinísticas, mas sim estatísticas, descoberta que implica o fim da descrição matemática de toda a natureza.”

Kurt Gödel demonstrou que a matemática é incompleta e imperfeita, e que sempre haverá teoremas matemáticos cuja demonstração é impossível através da lógica. Essa descoberta ensejou a invenção de sistemas lógicos não aristotélicos, baseados no dualismo verdade e falsidade, possibilitando o surgimento do "sistema lógico trivalente", no qual uma afirmação pode ser verdadeira, falsa ou meramente possível. Segundo Gödel, qualquer sistema lógico é incapaz de demonstrar sua própria consistência lógica.

John Barrow afirmou: “A ciência está baseada na matemática; a matemática não pode descobrir todas as verdades; logo, a ciência não pode descobrir todas as verdades.” E a ma-temática não pode descobrir todas as verdades, porque ela é incompleta.

Místico – Deus não é o matemático, nem a matemática. Esta é apenas uma ferramenta usada para solucionar problemas humanos e questões ligadas ao Universo.

Alan Watts corroborou esse entendimento: “Os cientistas estão cada vez mais convictos de que as leis da natureza não são descobertas e sim invenções, e a noção de que a natureza obedece ou segue uma ordem ou padrão inato está sendo suplantada pel a ideia de

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que tais padrões não são determinativos mas, antes, descritivos. Watts advertiu que “o que parece serem necessidades da natureza em geral pode não

ser mais do que necessidades de gramática ou de matemática. A natureza é um campo de relações e não uma coleção de coisas. A realidade é uma

multidão de relações em constante mutação.” Teólogo – O cientista quer conhecer a natureza para subjugá-la. O religioso quer conhecer Deus e a ele submeter-se. O cientista quer prever e evitar as ações da natureza que ele julga prejudicial à humanidade. O religioso quer conhecer previamente as manifestações divinas a fim de preparar-se para elas ou tentar, pela oração, não ser atingido por aquelas que possam feri-lo de uma maneira ou de outra. Ou simplesmente pedir que lhe seja dado o dom da resignação.

Cientista – A natureza é o aspecto da realidade que podemos conhecer. Ela é realidade decodificada segundo a nossa estrutura perceptual. É um dado empírico que nos permite uma investigação científica.

Filósofo – Ervin Laszlo observou: “A natureza, aparentemente, é uma hierarquia

encadeada de sistemas coerentes conectados de forma não-localizada”. Cientista – René Descartes e Isaac Newton conceberam a natureza como uma grande

máquina. Passamos, então, a criar máquinas, porque a super-máquina da natureza nos domina. E, no imaginário da robótica, os robôs, um dia, dominarão o mundo e os seres humanos serão seus escravos. Agora, estamos submissos à máquina da natureza e, futuramente, às máquinas que nós criamos.

Edgar Morin estabeleceu uma comparação entre a máquina e o organismo e que é um libelo contra o maquinomorfismo: "A maravilha da organização viva, diferentemente da máquina artificial, é ser capaz de funcionar apesar do erro e com o erro. Assim, ela pode tolerar erros, resistir ao erro, detectar e corrigir o erro, tirar lição do erro, induzir em erro e utilizar positivamente certos erros, transmudando-os até no seu contrário."

Filósofo – Estamos repetindo o mito do Paraíso, construindo robôs como extensões de

nós mesmos, programando uma inteligência artificial que, operacionalmente, é superior ao desempenho da inteligência humana, por sua capacidade de armazenamento de dados e velocidade do seu processamento. Os profetas da robótica prevêem o apocali pse do ser humano, porque, em futuro já próximo, os robôs poderão dominar a Terra e nos fazer seus escravos.

Pessoalmente não acredito nessa mitologia do pensamento arti ficial. Cientista – Deus já foi o mecânico que montou a maquinaria do mundo. Hoje, ele

mudou de status. É o computador cósmico que gerou todos programas do mundo e os computadores onde eles rodam. Assim, só Deus, o computador cósmico, é real. Tudo mais constitui uma realidade virtual, onde a consciência é um programa que lhe faz parecer que ela é real, assim como o universo em que o homem vive. Deus não é mais criador do universo real, mas de um universo virtual. Se certa filosofia oriental ensina que o mundo é o sonho de Brahma e, por isso, tudo o que existe é ilusão (maya), uma filosofi a, com base na informática, poderá postular que o mundo é uma trama virtual gerada por programas de um computador cósmico. Somos sonhos, que foram programados para pensarmos que somos reais.

Filósofo – Os cultores da inteligência artificial estão certos de que as máquinas serão

superiores ao seres humanos e os substituirão no futuro. Serão dotadas de autoconsciência, inteligência superior, força extraordinária, isentas de doenças e de durabili dade indefinida.

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A maquinolatria será a substituição do Deus que nos criou pela Máquina-Deus que pretendemos criar. Ou seja: trocaremos um Ser superior ontológico por outro de natureza material.

Poeta – É algo aterrador, além de insano, criar um ser maior que o ser humano. Místico – Pensávamos que éramos descendentes dos primatas. Mas, segundo os

adeptos da maquinolatria, somos robôs de carne, fabricados pelo Deus-Máquina, e montados mediante um processo lógico.

Cientista – Como o computador, que é uma invenção humana, poderá nos explicar e

compreender, se nós nem sequer nos compreendemos e também não compreendemos os outros?

Filósofo – Permitam-me apresentar o meu mito sobre a criação do ser humano. Deus, na oficina da Eternidade, fabricou dois autômatos de carne e os chamou de Adão

e Eva. Deu-lhes a tarefa de se reproduzirem e povoar a Terra. Mas, proibiu-lhes de comer o fruto de uma árvore no jardim do Paraíso, que lhes proporcionariam o conhecimento do bem e do mal. Iavé queria manter o casal na sua feliz ignorância e, assim, subordinado à tutela divina. Logo, antes de existir o casal de autômatos, já existiam o bem e o mal.

Apesar de onisciente, Iavé não previu a curiosidade inata de seus autômatos, a qual os levou a ceder à tentação e ingerir o fruto proibido. Iavé os puniu por esse ato de rebeldia e os expulsou do Jardim do Éden.

Ora, Iavé, por ser onisciente, deveria saber que o casal, por sua curiosidade, cairia em tentação e a proibição os induziria a transgredi-la. Ele demonstrou ser um desastrado psicólogo e, apesar de onisciente, não conhecer a natureza de suas criaturas.

Será que Iavé fabricou Adão e Eva como autômatos de carne, destituído de conhecimento e destinados apenas à procriação?

Quando o conhecimento removeu a cegueira cognitiva do casal, os Eloins exclamaram: “Eis que o homem é como qualquer um de nós, conhecendo o bem e o mal”. Adão e Eva se libertaram da curatela de seu criador, pagando, com as agruras da vida, o conhecimento que conquistaram.

Cientista – A evolução dotou o ser humano da capacidade de criar réplicas metálicas

de si mesmo e, operacionalmente, superior a ele. Séculos antes, Francis Bacon proclamou que, um dia, os seres humanos poderão criar uma nova espécie e se igualar aos deuses.

Filósofo – Esse é o sonho dourado da robótica. Poeta – Não façamos da máquina o sucedâneo do humano ou seu mutante metálico. Falta-lhe o senso do acaso, do lúdico e do absurdo, a convivência do equívoco. O homem é o imprevisível, o orgasmo do paradoxo, e a aversão às repetências, que é a essência do mecânico. A máquina é a ordem sólida oposta à fluidez do orgânico.

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Cético – Cada vez mais, somos uma fusão de homem e máquina, de órgãos e próteses, comandados pelo cérebro.

Cientista – Quanto mais os seres humanos compreenderem os mecanismos da natureza, mais estarão aptos para minimizar as suas ações e até proteger-se contra elas. Tudo é mudança na natureza e a vida está sempre reciclando os seres vivos, porque a vida é imortal. É preciso também lembrar que muito do que acontece com as pessoas é produto de suas próprias ações.

Ilya Prigogine proclamou “o fim das certezas”, porque as decantadas leis da natureza são as probabilidades.

CCAAOOSS EE OORRDDEEMM Filósofo – No princípio, era o caos. Caos de que? Não há caos sem coisas. Logo, havia

coisas e havendo coisas, não há de se cogitar que as elas vieram do nada. Poeta – Deus é o caos criador da ordem.

A ordem que retorna ao caos. O caos que se converte em ordem na massa pulsante do infinito.

Cético – O princípio de tudo resultou do caos e não de uma ordem preexistente.

Mediante o processo de erro e acerto, as leis da natureza se estabeleceram assim como a pro-gramação de todos os seres biológicos desde os organismos mais simples aos mais complexos.

A ordem é uma invenção do ser humano que quer se sentir seguro em meio a todas as mudanças. Ele quer, com essa utopia, conhecer o mundo para dominá-lo.

Mas, se, no princípio, foi a Ordem, então a aleatoriedade é uma falha no seu desempenho. Se a Ordem é Deus, Deus não é perfeito, onisciente e onipotente, porque não previu essa falha, ou se previu não pode evitá-la. Aliás, a evolução explica satisfatoriamente o mecanismo dos processos transformistas.

Filósofo – Kurt Gödel acreditava que o mundo é racional e que “a ordem do mundo

reflete a ordem da mente suprema que o governa”. Ilya Prigogine afirmava que a desordem não é um estado “natural” da matéria, mas, ao

contrário, um estado que precede a emergência de uma ordem mais elevada. Cientista – John Wheeler argumentou que a regularidade pode surgir da aparente

irregularidade das flutuações aleatórias, porque até o caos pode possuir regularidades estatísticas.

Jean Guitton indagou: “Por que a natureza produz ordem?” Não podemos responder sem relembrar o seguinte: o Universo parece ter sido minuciosamente regulado a fim de permitir a emergência de uma matéria primeiro ordenada, depois viva, e, enfim, da cons- ciência. Como afirmou Hubert Reeves, se as leis físicas não tivesem sido rigorosamente como são, então “não estaríamos aqui para falar delas”. Mais ainda: se uma das grandes constantes universais — por exemplo, a constante gravitacional, a velocidade da luz ou a constante de Planck — tivesse sido submetida, na origem, a uma alteração ínfima, o Universo não teria ti- do qualquer chance de abrigar seres vivos e inteligentes; talvez nem mesmo tivesse aparecido.

Essa regulagem, de uma precisão vertiginosa, resulta do “acaso” ou de uma Causa Primeira, de uma inteligência organizadora que transcende nossa realidade?”

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Filósofo – Postular que o mundo resultou de um caos preexistente que, depois, se fez ordem, constitui uma metafísica de menor qualidade do que aquela que postula ser o universo a manifestação de uma Ordem eterna ou Divindade e que, por isso, tudo o que existe é um reflexo desta Ordem em seus infinitos aspectos.

Concordo com o que disse Geoges Bernanos: “O que chamamos acaso talvez seja a lógica de Deus.”

Cético – Charles Peirce definiu o acaso como a realização de um evento que não tinha

suficiente relevância para ser previsto. E Jacques Munod destacou o acaso como o funda- mento do “prodigioso edifício da evolução”.

Místico – O caos criador? Não é o mesmo que o Deus criador? Será que, no princípio

(se é que houve princípio), era o acaso? E o acaso criou todas as coisas e de tantos e tantos acasos surgiu a vida, a seleção natural, a ordem que descobrimos nas relações entre as coisas? Ou o acaso criador é um eufemismo para um Deus criador?

Cético – Tudo se originou de um acaso. Foi ele o criador de tudo. Se tudo está em

permanente mudança, produzindo, como consequência, eventos imprevisíveis, contrariando a ordem aparente das coisas, então o acaso continua intervindo no universo que ele criou. O acaso, portanto, existe e é criador e mantenedor de uma sequência ilimitada de impossibili - dades, disfarçada pela máscara ilusória de uma ordem constituída de repetências a que se deu o nome de leis da natureza.

Cientista – Apesar disso, muitos cientistas acreditam na ordem universal, apesar das

intervenções do incômodo acaso. Cético – O acaso é o sucedâneo de um Deus que não existe. Por causa do acaso, vive-

mos em um universo de ordem ilusória, mas que nele se crê apesar de suas eventuais incon - sequências.

Muitas pessoas acreditam que nada acontece por acaso. Acontece, sim. Elas é que não se conformam com o acaso, porque ele atenta contra o sistema de crenças baseado na cau- salidade. Essas pessoas querem aprisionar o acaso nas grades das leis da natureza. O acaso as torna inseguras, porque elas ainda mantêm bem viva a presunção de que o ser humano é a coroa de toda criação.

Filósofo – Henri Bergson reconheceu que o papel do acaso é muito grande e que nem

tudo é coerente na natureza. Edgar Morin faz uma apologia do acaso: "A vida parece feita para encontrar o acaso,

domesticá-lo, combatê-lo. Efetivamente, suporta o acaso, joga com o acaso, utiliza o acaso, transforma o acaso, transforma-se segundo o acaso, desenvolve-se com o acaso e finalmente morre por acaso."

A capacidade cognitiva da mente humana é limitada para apreender a versatilidade ilimitada da realidade.

A ciência do nosso século descobriu que o acaso tem suas leis e criou a palavra esto- cástica, dando ensejo ao florescimento da matemática dos processos estocásticos ao lado da matemática dos processos determinísticos. Surgem, assim, lei s para a ordem e leis para o acaso, leis determinísticas para os sistemas simples e leis estatísticas para os sistemas comple - xos.

Teólogo – Faço minhas as palavras de Benjamin Franklin: “Achar que o mundo não tem

um criador é o mesmo que afirmar que um dicionário é o resultado de uma explosão numa tipografia“.

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Filósofo – Por que não podem conviver, em situações diversas, a ordem e o caos, o

determinismo e o aleatório? Cientista – Transcrevo o que escreveu Ian Stewart: “No curso do século XX, a

metodologia estatística conquistou seu lugar em pé de igualdade com a modelagem determinística. Uma nova palavra foi cunhada para refletir a descoberta de que até o acaso tem suas leis: estocástica. (A palavra grega stochastikos significa "hábil na mira", transmitindo a ideia do uso das leis do acaso em benefício próprio.) A matemática dos processos estocásticos — sequências de eventos determinados pela influência do acaso — floresceu ao lado da matemática dos processos determinísticos.

A ordem já não era sinônimo de lei, nem a desordem de ausência de lei. Tanto uma quanto a outra tinham leis. Mas estas eram dois códigos de comportamento distintos. Uma lei para o ordenado, outra para o desordenado. Dois paradigmas, duas técnicas. Duas maneiras de ver o mundo. Duas ideologias matemáticas, cada uma se aplicando apenas à própria esfera de influência. Determinismo para sistemas simples, com poucos graus de liberdade; estatística para sistemas complexos, com muitos graus de liberdade. Um sistema era randômico ou não. Se fosse, os cientistas buscavam algo estocástico; se não fosse, aprimoravam suas equações determinísticas.

Os dois paradigmas eram parceiros de igual nível — igualmente aceitos no mundo científico, igualmente úteis, igualmente importantes, igualmente matemáticos. Iguais. Mas diferentes. Completamente, irreconciliavelmente diferentes. Os cientistas sabiam que eram diferentes e sabiam a razão disso: sistemas simples se comportam de maneiras simples, sistemas complexos se comportam de maneiras complexas. Simplicidade e complexidade nada tinham em comum.”

Filósofo – Há uma implícita vocação do ser humano para a ordem. Por isso, ele tem a

tendência de descobrir uma ordem na natureza, de criar uma ordem para a natureza e de conviver em uma ordem social.

A ordem é a sinergia de estados e processos coerentes de um sistema. Ninguém suportaria viver no caos, na permanente incerteza e falta de significado. Por

isso, queremos estar sujeitos a uma ordem, seja ela qual for. A revolução que destrói a ordem social estabelecida impõe uma nova ordem para substituí-la.

O que chamamos de rotina é o exagero da ordem, a sua imobilização e o processo de seu desgaste. Toda ordem, para sobreviver, tem de ser dinâmica e adaptar-se às situações mais diversas e imprevistas.

Tudo o que o ser humano faz gira em redor de uma ordem e, por isso, ele sempre procura organizar e dar significado a situações inabituais. Ele é um organizador da realidade e tem uma natural aversão ao caos.

O que lhe programou essa necessidade de organização? Místico – A realidade é ordem, caos ou ambas as coisas simultânea ou

sucessivamente? Se pudéssemos observar a realidade como um todo, ela seria vista como ordem e caos simultaneamente. Porém, vendo-a setorizadamente, ela se nos apresenta como ordem e caos sucessivamente. A ordem é a dinâmica da constância, e a desordem, a dinâmica da inconstância.

Cientista – Para Pierre de Latil, a tendência para a ordem, que ele denominou de

antiacaso, é uma estruturação da causalidade interna para fugir às influências externas e seguir apenas uma lei interna.

Francis Bacon advertiu: “O intelecto humano, mercê de suas peculiares propriedades, facilmente supõe maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram.

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Deste modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de disparidades, aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não existem.”

Filósofo – A complexidade do universo, o equilíbrio das forças da natureza apesar de todas as suas mudanças, a estrutura orgânica dos seres biológicos das mais diversas espécies não podem ser explicados tão somente pela operação do singelo acaso. É uma hipótese extremamente frágil para a explicação de tudo. Ao contrário, a evidência de uma ordem ínsita em todas as coisas constitui um sólido fundamento para a explicação da realidade. E a essa ordem pode-se dar qualquer nome, inclusive o de Deus.

Cético – Em posição oposta, Pierre Teilhard de Chardin explicou que a origem do

mundo foi um “feliz acaso”. E o próprio mundo “procede a golpes do acaso, por tenteios”. O tenteio, na verdade, é um “acaso dirigido”.

E disse ainda: “É só por lances do acaso que a Vida prossegue; mas por lances do acaso reconhecidos e aproveitados - quer dizer, psiquicamente selecionados”.

Filósofo – Discordo do que disse Teilhard de Chardin. Um “acaso dirigido” não é acaso. Grichka Bogdanov contraditou a hipótese do acaso: “A realidade inteira repousa

sobre um pequeno número de constantes cosmológicas: menos de quinze. Trata-se da constante de gravitação, da velocidade da luz, do zero absoluto, da constante de Planck, etc. Conhecemos o valor de cada uma dessas constantes com notável precisão.

Ora, se uma só dessas constantes tivesse sido minimamente modificada, então o Universo — ao menos, tal como o conhecemos — não poderia ter aparecido.”

E Igor Bogdanov ressaltou que “a probabilidade matemática de que o Universo tenha sido engendrado pelo acaso é praticamente nula.”

Cético – O universo tem um mecanismo de autorregulagem, mediante o qual ele se

adapta às mais diversas situações. Místico – O que criou esse mecanismo de autorregulagem? O acaso? Então o acaso é

paradoxal, porque também é criador da ordem. Cientista – John Wheeler asseverou que até o caos pode possuir regularidades esta-

tísticas. Ilya Prigogine assinalou que a desordem não é um estado “natural” da matéria, mas,

ao contrário, um estado que precede a emergência de uma ordem mais elevada. Vivemos em um tipo de ordem que, para muitos, parece ser a única no universo. Daí, o

nosso vezo de denominar de caos a tudo o que não se enquadra na nossa concepção de ordem. Na verdade, pode-se admitir outros tipos de ordem que a nossa estrutura ontológica - sensorial e racional - não pode conhecer. Logo, o caos é uma expressão genérica para balizar as fronteiras do cognoscível e do incognoscível.

A teoria do caos, revelando a imprevisibilidade e a instabilidade de todas as coisas, rompe as estruturas do lógico e do racional, parecendo ser atualizações de potencialidades da natureza.

Ordem e caos são complementares, e um se converte em outro indefinidamente. A ordem surge do caos e este, daquela. A ordem é o equilíbrio momentâneo. Se tudo está em permanente mudança, a ordem é um momento da mudança e a mudança é o caos se transformando a cada momento em ordem. O caos é o estado de criatividade permanente do universo. É a ordem em potencial. E a ordem é um instante do caos.

A ordem não é uma necessidade da natureza, mas do homem na tentativa de lidar com o caos e domesticar a realidade.

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Ordem e desordem são conceitos funcionais. Caos, para o homem, é tudo aquilo que não se ajusta aos seus padrões de ordem, a esquemas perceptuais inatos ou adquiridos.

Filósofo – O caos não existe em si, mas referenciado a um dado sistema. Pensamos

que a natureza é imutável, porque acreditamos na repetibilidade absoluta das coisas e, por conseguinte, só é verdadeiro aquilo que se repete. Se o homem permanecer durante algum tempo naquilo que lhe parece um caos, em breve descobrirá uma ordem nele. A ordem é hábito.

Quanto mais complexa é uma ordem, mais mutável e instável ela é, e maiores são as possibilidades de desordem. Quanto mais intensa for a desordem, maior a possibilidade de surgimento de uma ordem mais complexa. A crise de um sistema que não mais consegue manter seu equilíbrio dinâmico pode resultar na sua destruição ou na sua transformação em um sistema de ordem diferente.

Tudo o que está rigidamente organizado tende à imobilidade e à morte. Tudo o que é excessivamente caótico nada produz de eficaz e é um turbilhão sem sentido.

Cientista – A ordem não é imutável, definitiva, mas algo que muda sempre. Tudo ten-

de à ordem, e a ordem se mantém desorganizando-se para ensejar uma nova ordem e, assim, indefinidamente.

O aleatório impede a imobilização da ordem e constitui a atividade criativa da natureza. A cada ordem que infringe, o aleatório favorece a emergência de novas ordens.

Ordem e caos são pulsações da natureza e a expressão de sua infinita liberdade. A instabilidade se harmoniza com a estabilidade provisória de todos os sistemas, sejam eles físicos, biológicos ou sociais.

Caos é tudo aquilo que não conseguimos ordenar ou nele descobrir uma ordem dentro dos nossos padrões convencionais. Ele é a infinita variedade e reciclagem da natureza, e a ordem, a nossa forma peculiar de perceber uma dessas infinitas formas da realidade.

Caos se transforma em ordem. Ordem se transforma em caos. Não há caos ou ordem permanentes. Não será isso uma lei?

Filósofo – Se há uma ordem, tudo pode ser previsível e, assim, o acaso é o acontecido

que não fomos capazes de prever ou que aconteceu contrariando as nossas previsões habituais. Não podemos saber se algo é impossível ou absolutamente certo. Allgo nos parece impossível porque nunca aconteceu antes, ou certo, porque sempre aconteceu e continua acontecendo. Logo, o que afirmamos ou negamos não passa de probabilidade de acontecer e de não acontecer. Quando, portanto, prometemos algo, prometemos uma probabilidade e não uma certeza de que o prometido acontecerá.

Parece-nos que tudo tende para algo. Se para melhor ou para pior depende da aprecia- ção subjetiva de cada um, segundo o que aconteça lhe seja favorável ou desfavorável.

Cético – Não criamos possibilidades. Elas existem previamente, mas nenhuma delas é

prefixada. Nós é que, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, viabilizamos a realização de algumas delas em relação a nós e, algumas vezes, em relação também aos outros. Tudo o que o homem descobre ou inventa já existia em potencial.

Filósofo – Pensar é conscientizar possibilidades. Pensar constantemente e veemente-

mente em uma possibilidade é favorecer a sua realização. O presente é constituído de proba- bilidades que acontecem.

Conforme o entendimento de alguns cientistas, o observador produz o colapso da pro- babilidade que ele pensa perceber.

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Cientista – As probabilidades do real são infinitamente mais numerosas do que as suas facticidades. Não conhecemos todas as possibilidades do real nem podemos imaginar, das probabilidades que conhecemos, aquelas que se tornarão fatos. O fato é a realização do pos- sível. Ou do que nos parecia impossível.

O homem é o médium do mundo das possibilidades. Ele é, ao menos em nosso planeta, quem converte possibilidades em realidades físicas.

Quando um fato ocorre pela primeira vez, rompendo a sucessividade dos eventos habituais ou previsíveis, nós o denominamos de acaso.

Místico – Por isso, a realidade, ou Deus, é de uma infinita complexidade para o nosso

entendimento. Tudo se confunde ou tudo nos confunde? El e é ordem ou caos? Ou caos e ordem, confundindo os nossos sentidos e a nossa razão?

Poeta – Deus é a loucura da razão e a exaltada mística da incompreensão.

CCRRIIAAÇÇÃÃOO Filósofo – O universo foi criado ou sempre existiu? Refiro-me ao universo como um

todo e não a cada mundo em particular. O universo é eterno, os mundos são transitórios e estão em contínua reciclagem. Mas, se o universo foi criado, como ocorreu a sua criação? E o que o criou?

Teólogo – Deus criou todas as coisas, porém ignoramos como e por que Ele as criou Filósofo – Há explicações metafísicas sobre o assunto: a) a criação do mundo é um

sacrifício da Divindade; b) Deus criou o mundo por necessidade; c) Deus criou o mundo para se distrair; d) Deus criou o mundo porque se sentia só; d) Deus criou o mundo porque quis testemunhar-se a Si mesmo por reflexão (Sufismo); e) Deus criou tudo por um decreto arbitrário (Descartes); f) Deus criou o mundo por amor; g) Deus o criou por um ato de bondade (Orígenes e Agostinho); g) Deus tem necessidade de fragmentar-se, de multiplicar-se para ter experiências, auto-reconhecer-se, sofrer nas suas individualizações, resgatar-se a si mesmo, iludir-se no jogo cósmico, evoluir em tudo o que Ele criou.

Para Plotino, o mundo é uma emanação de Deus e constitui uma necessidade racional da Divindade.

Dizia Averróis que o mundo emana de Deus, mas as formas estão latentes , ab aeterno, na matéria, potência universal, da qual Deus extrai as forças ativas.

Segundo Avicena, Deus não cria por ato livre, mas porque é necessário. Em posição oposta, Maimônides afirma que Deus cria por um ato livre. Scotus Erígena afirmava que tudo o que existe é uma teofania ou manifestação de

Deus no mundo. Para Pietro Ubaldi, a criação é uma doação de Deus, decorrente do Seu amor.

Cético – É um prato apetitoso para quem se delicia com refeições metafísicas. São

explicações delirantes para explicar por que o hipotético Deus criou o universo e os mundos. A explicação mais simples é a de que os mundos se originaram da evolução da matéria. Não entendo que a criação, sendo o ato de amor de Deus, resulte em um ato de

sacrifício da Divindade, e que esse sacrifício se perpetue em cada criação. Qual a razão desse sacrifício continuado? Por que não seria um ato de prazer, de permanente prazer? Não vejo razão para esse masoquismo divino.

Se o mundo, como pensam alguns místicos, é uma brincadeira de Deus, é uma brincadeira de péssimo gosto. E, para que Deus quer brincar? Para preencher a sua solidão, já

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que tudo o que existe é ele? Faz-se muitos para iludir-se que não está só? E, por mero deleite, cria os ateus para negar a sua existência e perturbar os crentes?

Filósofo – Certos teólogos, com as suas invencionices, são culpados pela descrença em

Deus, dando azo a que argumentações, como essas, sejam propostas. É uma perda de tempo discutir tais delírios.

Cientista – Deus criou o tempo, ou Deus surgiu no tempo? Se Deus criou o tempo, ele

é atemporal. Mas se Deus surgiu no tempo, quando ele surgiu? O que existia antes de Deus? A eternidade? A eternidade de que?

Teólogo – Antes de tudo ser criado, só existia Deus. E, segundo Platão e Santo Agos-

tinho, Deus não criou o mundo no tempo, mas o mundo e o tempo foram criados juntos. Logo, é inválida a questão de quando Deus criou o mundo.

Cético – Segundo o Judaísmo, Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo.

Se assim foi, quando ele criou o mundo o tempo já existia assim como a semana de sete dias. Não se sabe por que Deus não criou tudo de uma só vez. Ao contrário. Levou seis dias, talve z trabalhando vinte quatro horas, sem interrupção e, por isso, teve de descansar no sétimo dia para evitar uma estafa infinita.

O Jainismo negava a existência de um Deus criador, porque o universo é eterno. Tudo, inclusive os deuses, é constituído de mônadas vitais e somente estas são eternas. Demócrito era da mesma opinião: tudo é formado por átomos, inclusive os deuses.

Filósofo – Ensinava o Vedismo que o universo, em si mesmo, é eterno. Mas os mundos

são efêmeros. Xenófanes assinalava que o universo é imutável e, por isso, não teve princípio e nem terá fim.

Empédocles e Anaxágoras teorizaram que o universo se formou pela reunião de corpos sutis e que é destruído pela separação destes. Esse processo é eterno, o que exclui a ideia de nascimento e morte do universo como um todo. Demócrito e Epicuro também se filiaram a essa concepção.

Anaxágoras foi quem primeiro concebeu a idéia de que a realidade é constituída de um número infinito de partículas elementares semelhantes – homeomerias –, cujas combinações dão origem a todas as coisas. Essas partículas ou sêmenes são eternas, pe queníssimas, invi- síveis e divisíveis ao infinito. A diferença entre as coisas não reside na qualidade, mas na quantidade das partículas elementares. Coisa alguma nasce e coisa alguma perece. Nascimento e morte nada mais são do que reunião e separação dessas partículas. Fundamentalmente, nada está separado: “em cada coisa existe uma parte de cada coisa”.

Empédocles antecipou-se a Lavoisier, afirmando que, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

Místico – Como o universo é manifestação de Deus, podemos fazer uma alteração na

frase de Lavoisier: no universo, tudo se cria, nada se perde e tudo se transforma. Escola Sânquia defendia a ideia de que o universo é criado, destruído e recriado

periodicamente, e a esse processo deu o nome de o Dia e a Noite de Brahman, o Absoluto. Cientista – Aliás, a ciência, hoje, admite que o universo se expandiu e continua em

expansão. Mas, um dia, ele se contrairá, voltando a sua situação original ou seja, a uma singularidade.

Místico – Para o Tantrismo, a criação é contínua e, portanto, o Dia e a Noite de Brah-

man não dizem respeito ao Universo inteiro, mas a cada um deles em particular.

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Para Gottfried Leibniz, a criação é uma ação contínua de Deus, porque todas as coisas n'Ele existem como possibilidades.

Filósofo – Aristóteles explicava o processo de criação como a passagem da essência

(potência) à existência (ato), mediante uma ação de Deus. Toda essência que não seja Deus exige, para existir, o ato criador de Deus. Só em Deus a essência é existência. Ou seja: nada existe em Deus em potencial.

Há dois aspectos fundamentais da realidade: a realidade física e a realidade virtual ou potencial. Cada ser ou coisa do mundo físico é uma potencialidade que se materializou. Cada potencialidade ou virtualidade é uma ideia e as ideias têm a tendência de se fisicalizar. Há, assim, um ciclo eterno e ininterrupto do virtual ao físico e do físico ao virtual.

Aliás, Werner Heisenberg já havia observado que “a matéria, em Aristóteles, como mera potentia, deveria ser comparada ao presente conceito de energia, esta passando ao “real” após adquirir forma no momento em que se cria a partícula elementar.”

Místico – O que observamos no universo é um processo de perene criação. Se

admitirmos o universo como um Todo e a esse Todo dermos o nome de Deus, então poderemos propor que Deus é eterno criador de universos, seres e coisas.

Cientista – Ilya Prigogine postulou que “a criação do universo é antes de tudo uma

criação de possibilidades, das quais umas se realizam e outras não.” Poeta – O que fazemos no mundo? O que o mundo nos faz? O que nós fazemos juntos (nós e o mundo), um mesmo nó numa ciranda sem fim? Como saber a ação, que iniciou o universo e seu cósmico bailado? Se o movimento é eterno, quem pode parar os átomos e imobilizar as galáxias?

Cientista – Os físicos Thomas Gold e Hermann Bondi propuseram a teoria do estado

estacionário, segundo a qual o universo é infinito tanto no espaço quanto no tempo, gerando contantemente matéria nova por meio de um mecanismo desconhecido.

Ilya Prigogine especulou que o universo “seria criação contínua, sucessão infinita de universos nascendo por todo o lado e indo para o infinito”.

Filósofo – Anaximandro foi o primeiro a declarar que o número de mundos é infinito,

asseverando, ainda, que o devir do universo é cíclico. Diógenes de Apolônia, Leucipo, Epicuro, Nicolau de Cusa e Giordano Bruno também

sustentaram que o universo é infinito e constituído de uma infinidade de mundos. Cientista – Na Física, surgiu, recentemente, a hipótese das onze dimensões, segundo a

qual ao nosso universo de três dimensões espaciais e uma temporal, se acrescentam mais sete dimensões espaciais. Estas dimensões, apesar de ocultas, se manifestam através das forças, como, por exemplo, a força eletromagnética.

Everett formulou a teoria dos universos paralelos, com base na Física quântica, mediante a qual, para cada possibilidade, existe um mundo paralelo, onde o evento realmente acontece. Assim, também, cada possibilidade do ser humano existe em seus mundos próprios

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e estes mundos e seus habitantes se desconhecem reciprocamente. Há uma hipótese ocultista que afirma que o homem ocupa simultaneamente vários

corpos em dimensões diferentes. Na minha opinião, tudo isso não passa de ficção científica. Místico – Um dos textos chamados Purunas afirma: “Os grãos de areia talvez pos -

sam ser contados, mas os universos são inumeráveis”. Teólogo – Jesus afirmou: ”Na casa de meu Pai há muitas moradas”. Estaria Ele

referindo-se a outros mundos espirituais ou também a mundos físicos? Poeta – Cansado de eternidade,

Deus fez-se tempo e espaço, e explodiu em átomos e galáxias no infinito de si mesmo.

Cientista – Ervin Laszlo argumentou que, enquanto alguns cosmologistas falam de vá-

rios universos coexistentes, a mais razoável das concepções correntes é a que vê a criação sucessiva de universos dentro do útero de um universo preexistente.

Isso sugere a existência de um universo primordial atemporal do qual se originam to- dos os demais universos temporais.

Para Stephan Lupasco, no universo tudo é constituído de siste mas e subsistemas físicos, biológicos e psíquicos e todo sistema é função de duas forças antagônicas, interagindo entre si, de tal maneira que, quando uma se atualiza, a outra se potencializa e, assim, alter- nadamente.

Ludwig von Bertalanffy elaborou uma teoria geral dos sistemas, partindo da premissa da existência da organização em todos os níveis. Afirmou que o Universo é uno, pois todos os níveis da realidade refletem a isomorfia de suas leis. Dizia ele que "se um objeto é um sistema deve ter certas características gerais dos sistemas, qualquer que seja o sistema." Por isso, "uma grande parte do comportamento biológico e humano situa-se além dos princípios de utilidade, homeostase e estímulo resposta."

Os sistemas vivos, portanto, são sistemas abertos e estes consistem em uma atividade de troca da matéria com o meio ambiente. Um sistema aberto pode, assim, tender para um es- tado de organização superior, passando de um estado inferior para aquele.

Ilya Prigogine teorizou a existência do que denominou de estruturas dissipadoras, que são sistemas abertos, onde sua forma ou estrutura é mantida por uma contínua dissipação (consumo) de energia, constituindo, assim, uma integridade flutuante. Quanto mais complexo é o sistema, maior é a sua instabilidade, pelo aumento crescente das interações de seu interior. Uma vez atingido o ponto crítico, essas flutuações perturbam o sistema, resultando na reorganização de suas partes e surgindo um novo sistema de ordem mais elevada.

Quanto mais complexa é uma estrutura química ou humana, maior quantidade de energia terá de utilizar para manter todas as conexões envolvidas.

Prigogine postulou a existência de um princípio de auto-organização nos organismos vivos, mediante o qual, embora interajam com o meio ambiente continuamente, são relati - vamente autônomos. Ou seja: essa interação com o meio ambiente não é a causa de sua organização como sistema. Eles, na verdade, se auto-organizam.

Místico – Deus é a permanente atividade organizadora do universo, o pulsar infinito de

ordem e caos em nível microcósmico e macrocósmico. Ele é o criador e o destruidor de tudo o que existe. Mas, como ele é tudo, nada perde de si.

Cético – Deus não criou todas as coisas. Há coisas que inventamos e, portanto, não

foram criadas por Deus.

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Místico – As descobertas e os inventos resultam da ação do Deus imanente em nós. Teólogo – Deus criou o mundo do nada. Mas Deus não é o que Ele criou. Essa é uma

afirmação absurda do panteísmo sob o argumento falacioso de que tudo é Deus e Deus é tudo. Cientista – Na Antiguidade, pensava-se que o nada era ausência da matéria. O nada

era o vazio. Hoje, a ciência admite que o que se pensava ser o vazio é apenas um universo de

potencialidades. As coisas são colapsos de potencialidades. Com isso, ressurgiu a ideia aristotélica de potência e ato.

Cada universo é uma possibilidade que colapsou, criando o seu tempo, espaço, coisas e seres vivos. Portanto, o que chamamos de criação é o colapso de uma possibilidade.

Cético – Não percebo probabilidades, mas pessoas, animais, plantas e coisas. E elas

independem de mim. Afinal, o que é uma probabilidade? Cientista – Afinal, o que é uma ideia? Ela não existe objetivamente e, no entanto, é a

origem das nossas ações e das coisas que fazemos. A probabilidade é algo que poderá ou não acontecer. Vivemos em um mundo de fatos e probabilidades, mais de probabilidades do que de fatos, pois esses são apenas uma das infinitas probabilidades que aconteceram no universo físico.

Filósofo – É antiquíssima a polêmica a respeito do pleno e do vazio. Para Parmênides,

o Ser (leia-se o Todo) era pleno, enquanto Leucipo e Demócrito afirmam que tudo era constituído de átomos e vazio.

Para Leibniz, o universo é um pleno contínuo. O vácuo, portanto, não existe. Cientista – Grichka Bogdanov explicou, com clareza, a hipótese do vácuo quântico:

“Existe na física um conceito novo, que provou sua riqueza operatória: o do vácuo quântico. O vácuo absoluto, caracterizado por uma ausência total de matéria e de energia, não existe; mesmo o vácuo que separa as galáxias não é totalmente vazio: contém alguns átomos isolados e diversos tipos de radiação. Seja criado de forma natural ou artifícial, o vácuo no estado puro não passa de uma abstração: na realidade, não se chegará a eliminar um campo eletromagnético residual, que constitui o “fundo” do vácuo. Nesse nível, é intere ssante introduzir a noção de equivalência matéria/energia: se supomos a existência de uma energia residual no seio do vácuo, ela pode, ao longo de suas “flutuações de estado”, converter -se em matéria. Então, novas partículas surgirão do nada.

O vácuo quântico é, assim, o teatro de um incessante balé de partículas que aparecem e desaparecem num tempo extremamente breve, inconcebível na escala humana.

Tomemos um espaço vazio: a teoria quântica demonstra que se transferimos para ele uma quantidade suficiente de energia, pode emergir matéria desse vazio. Por extensão, pode-se supor, portanto, que na origem, imediatamente antes do big bang, um fluxo de energia incomensurável foi transferida para o vácuo inicial, acarretando uma flutuação quântica primordial, de onde nasceria o nosso Universo.”

Mario Schenberg definia o vazio como "o estado fundamental do campo." E relembrava: "O vazio teve sempre um papel fundamental na Índia. Para o pensamento hindu o vazio corresponderia a Deus. Deus era aquele vazio onde as coisas se moviam."

Esta concepção está em acordo com a de certos pensadores que conceituam Deus como o Nada.

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Poeta – Um vazio pulsante é o que somos, vivendo na ilusão da solidez. Matéria são vazios que colidem. As formas são momentos do vazio. Tudo é mudança. Mas, o que dirige

a universal mudança do vazio?

Místico – Deus é o Vazio, o Nada em relação ao nosso modo de existir. A nossa “materialidade” não é a “materialidade” de Deus. Por isso, para nós, ele é o Nada, o Vazio. Deus, como o Vazio, é o estado potencial de tudo, o imanifesto de infinitas possibilidades. Nesse estado indiferenciado, não há tempo e espaço, causa e efeito, pois estes são propriedades ou estados diferenciados das manifestações de Deus.

As coisas físicas são potencialidades que se realizaram. As potencialidades são infini-tas: elas sempre estão acontecendo.

Poeta – O vazio não é a ausência de Deus, mas a sua invisibilidade. Teólogo – Deus como o vazio, Deus como o nada é uma ideia esdrúxula para a teo-

logia. Poeta – O Nada nos vomitou. O Nada nos vai engolir. Deus é o nada de tudo. Somos deuses de passagem, porque Deus nunca ficou, porque Deus nunca está. Ele é a grande ausência que está em todos os lugares. E nada existe, senão Ele. Teólogo – Deus, como vácuo infinito, é inconcebível, inimaginável, não nos move ou

nos comove. Daí, a nossa necessidade de reduzi -Lo ontologicamente à nossa condição cog- nitiva. Por isso, O fazemos à nossa imagem e semelhança, porém dotado dos mais excelsos ideais da natureza humana, como o amor, a justiça, a bondade, a misericórdia e a perfeição.

Disse Ervin Laszlo – “Os cientistas podem olhar para o vácuo quântico do pré -universo como o potencial energético do qual brotou a explosão reticular que se inflacionou no uni - verso original; os teólogos e místicos podem considerar o campo psi virgem como o campo de consciência primordial do Criador divino.”

Cientista – Deus é o vazio quântico. As possibilidades de tudo. A criatividade é a apti -

dão de colapsar probabilidades que, até então, não eram fatos conhecidos. Somente o ser humano, até onde sabemos, possui essa aptidão. Ele é um criador de fatos quando colapsa probabilidades.

Poeta – Nada há que segurar. O vazio é que sustenta mundos, seres

e coisas.

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Cético – De onde Deus retirou a matéria com a qual criou o mundo? Deus criou a matéria e dela fez o mundo? Ou a matéria, assim como Deus, é eterna e Deus dela se utilizou para a sua criação?

Místico – Toda criação se dá “dentro” de Deus, com a própria substância de Deus. Não

há criação fora de Deus, pois nada existe senão Ele. Logo, tudo o que existe é da mesma essência de Deus, mas o que Deus criou não é Ele, mas d’Ele.

John Eckhart já se apercebera disso e opinou que “Deus produz todas as coisas de si mesmo”.

Espinosa admitia que Deus criou o mundo de si mesmo e, por consequência, o mundo é idêntico a Deus.

Deus cria todas as coisas da substância de Si mesmo. Mas, ninguém sabe como. Deus é infinito. Como pode ter criado algo fora de si mesmo? Logo, o que Ele criou foi

de Si mesmo e não do nada, pois é inconcebível existir um nada em Deus. Por isso, ensinava o Bhagavad Gita: "Curvando-me dentro de mim, eu crio sempre e

sempre." E, ainda: “Com um átomo de mim mesmo sustento o universo”. Deus não fez o mundo, mas se fez mundo e tudo o que nele existe. Teólogo – Mas o mundo não é Deus. Já afirmei isso antes. Deus está no mundo, mas o

mundo não é Ele.

Cientista – Há uma ideia singular sobre o processo de criação dos mundos, oriundos de um universo-mãe, gerando de si mesmo, por cissiparidade, os universos-bebês. Trata-se da aplicação da multiplicação celular à criação de novos universos.

Filósofo – Em analogia com o modelo da Física, podemos conceber Deus, no seu pro-

cesso criativo, como a singularidade da qual tudo se origina de modo inexplicável. Se o universo não surgiu de onde e quando, mas o onde e o quando surgiram com o próprio universo, como propriedades dele, então não dispomos de recursos para explicar sua origem, pois a hipótese da singularidade, como ressaltou Paul Davies, constitui "o confronto entre o natural e o sobrenatural."

Para Ilya Prigogine, “a criação é antes de tudo uma criação de possibilidades, das quais algumas se realizam e outras não”. Aliás, Bergson já dizia que “a realidade é apenas um caso particular do possível”.

Cientista – A ciência teoriza que tudo começou de uma singularidade, uma máxima

concentração da matéria, e que explodiu, resultando na criação do universo. A essa explosão se deu o nome de big-bang. Ora, se havia algo, mesmo infinitamente pequeno, havia algo e não o nada. O problema é: o que existia antes do big-bang? Tempo e espaço estavam contidos em uma infinita contração da matéria a que se deu o nome de singulari dade. Essa singularidade é algo infinitamente pequeno.

Porém, me pergunto: se o universo for infinito, como poderia estar contido na singularidade, como se fosse uma semente cósmica?

Místico – Segundo o Hinduísmo, cada mundo é um ovo de Brahman, o Absoluto.

Fazendo uma analogia com a hipótese da singularidade, podemos teorizar que o ovo de Brahman é a singularidade do paradigma científico.

Cético – Concordo com o que disse Paul Davies: "Não há dúvida de que a física moderna apresenta um forte sabor místico."

E mais ainda: "O apelo místico da física moderna torna-a querida a muitas pessoas de convicção religiosa ou filosófica, que nela vêem uma libertação do mundo materialista e

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impessoal criado pela sociedade tecnológica moderna." Filósofo – Essa é uma questão difícil para a ciência. Seria a singularidade a matéria

infinitamente condensada ou uma virtualidade, onde não existem matéria, tempo e espaço? Se essa hipótese estiver correta, o que provocou o colapso dessa possibili dade?

Cientista – O nosso universo começou com o big-bang. É tudo o que, até agora,

podemos teorizar. Místico – Todas as coisas existem em Deus, ab aeterno, como possibilidades. Cada

criação é o colapso de uma das infinitas probabilidades que Ele escolheu. Se o universo não surgiu de onde e quando, mas o onde e o quando surgiram com o

próprio universo, então não dispomos de recursos para explicar sua origem.

Cientista – Paul Davies declarou: “Uma singularidade é a coisa mais parecida com um ser sobrenatural que a ciência descobriu até hoje”.

Stephen Hawking propôs o “princípio da ignorância” mediante o qual se reconhece que a singularidade é o derradeiro incognoscível.

Filósofo – Então podemos questionar: de onde e como surgiu essa singularidade que

continha informações para a criação do universo? Em linguagem de informática, a singularidade é o universo zipado. Mas, o que ou quem o zipou e o dizipou? Deus? O acaso?

Poeta – Nascemos de uma explosão:

átomo ou ovo primordial a miniatura do nada. Espaço, tempo, matéria e o infinito num ponto. Onde é que Deus estava nesta singularidade?

Teólogo – Deus é o princípio de todas as coisas. Como Deus é incognoscível, nunca

saberemos o princípio de todas as coisas. Poeta – Ocasional Demiurgo, invento o tempo, extraído da massa da Eternidade. Do espaço, que é minha carne, brotam sóis e galáxias. Mas permaneço infinito. Filósofo – Podemos admitir, como hipótese, que um universo incriado é o criador de

tudo o que existe e que continua criando incessantemente. Teólogo – Para Leibniz, Deus escolhe, por necessidade moral, o melhor dos mundos

possíveis, dando-lhe existência ou atualidade. Cético – E por que Deus teria criado o mundo por necessidade moral? Se Deus, como

se diz, é um ser necessário, por que teria ele necessidades, mesmo de natureza moral? Moral é apenas um comportamento social que varia de cultura a cultura.

Místico – Deus não é moralidade. Ele não tem contrato com os seres humanos.

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Cientista – Stephen Jay Gould acrescentou: “Uma vez que não podemos encontrar

nenhuma moral na natureza, temos de encontrá-la em nós mesmos. Se a natureza é não-moral, então a evolução não pode nos ensinar nenhuma teoria ética.”

Cético – Não aceito a argumentação de que o universo é o resultado de uma intenção

divina. Entre diversos povos, Deus manifestava sua vontade através do acaso. Quando se sentia impotente para decidir determinadas questões, o homem apelava

para Deus, procurando adivinhar o seu julgamento, mediante a utilização de processos aleatórios, como, por exemplo, o ordálio.

Filósofo – Arraigado ao determinismo, Albert Einstein sentenciou: “Deus não joga

dados.” Penso o contrário: Joga, sim. Mas sempre ele vence. A física quântica que o diga. Os deuses germânicos eram fanáticos pelo jogo. O acaso exerce um singular fascínio

sobre o homem, pois constitui a negação da fatalidade, do destino, do determinismo. Os chamados "jogos de azar" instalam a convivência com o acaso e a expectativa de suas premiações inesperadas.

Cético – O universo resultou de uma feliz casualidade na combinação espontânea de

partículas e átomos. Somos todos produtos de múltiplos acasos. Poeta – Os átomos se fizeram homens para se conhecerem a si mesmos e tudo o mais que fizeram. Como homens, pensam que Deus foi o criador de tudo.

Os átomos enlouqueceram?

EEVVOOLLUUÇÇÃÃOO

Teólogo – Para Agostinho, criação e evolução não se excluem, mas se completam,

porque a evolução é interna à própria espécie.

Místico – Criação e evolução são a ação de Deus no mundo. A essência da realidade é a ação. A forma é um aspecto transitório da ação no ato da observação. Só é “sólido” o momento da observação.

Cientista – A evolução é o processo de realização de um programa preestabelecido. A semente é a planta em potencial e a planta é a realização do programa contido na

semente. A evolução é o processo que se inicia na semente e culmina na planta. Programa é o mesmo que potencialidade. A evolução, assim, é o desenvolvimento de

um programa ou a passagem da potencialidade à atualidade. A evolução é a passagem do potencial ao atual, a realização, etapa por etapa, de uma

programação preestabelecida. É um erro, portanto, dizer que a evolução se processa através de erros e acertos. O erro consiste num defeito da programação e se revela na sua execução, ou seja, no que denominamos de evolução. Sob o ponto de vista estritamente biológico a evolução é isso.

Filósofo – Anaxágoras e Aristóteles proclamavam que a evolução é um processo

interno à própria coisa.

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André Bourguignon admite que "cada espécie tem uma "perspectiva filogenética", isto é, uma potencialidade evolutiva que lhe é própria."

Se evolução é atualização de potencialidades, então todo ser evolui e pára de evoluir, quando atualiza todo seu potencial.

O que não sabemos é se os seres biológicos realizam todas as suas potencialidades. Na espécie humana, elas parecem ilimitadas.

Místico – Deus imanente é a causa da evolução de tudo. Ele é o programa existente

em todos os seres vivos. O Deus imanente em cada ser vivo está em permanente evolução no universo. O ser

humano é um dos mais importantes veículos do processo evolutivo.

Cético – Em vez de mitologia, prefiro a controversa hipótese da seleção natural como um sucedâneo científico da ideia de Deus, porque ela cria e dirige todas as coisas.

Filósofo – A seleção não cria. A seleção não seleciona. Assim como não há criação sem

criador, não há seleção sem selecionador, Algo, que não sabemos o que é, faz a seleção. Cético – Este algo é o acaso. Teólogo – Este algo é Deus. Filósofo – Afirma-se, equivocadamente, que a evolução é melhoria. Mas, melhoria de

que? De qualidade? De operacionalidade? Qual o ser que, biologicamente, melhorou de qualidade e/ou de operacionalidade? O que chamamos de evolução não passa de adaptação às mudanças ambientais. Lembra Stephen Jay Gould que Charles Darwin "rejeitava explicitamente equacionar o

que agora chamamos de evolução com qualquer noção de progresso." E prossegue: "Num famoso epigrama, Darwin faz uma recomendação a si próprio, para

não dizer jamais "superior" ou "inferior" ao descrever a estrutura de organismos - porque, se uma ameba está tão bem adaptada a seu meio ambiente quanto nós ao nosso, quem pode dizer que somos nós as criaturas superiores?"

Cientista – Evolução não é progresso, é transformação. E essa transformação tende à

complexidade. E quanto maior complexidade maior instabilidade em um dado sistema biológico, material ou organizacional.

Teólogo – A evolução é intencional, porque consiste na ação de Deus no mundo. Místico – A evolução só existe na realidade fenomenal e consiste no processo de

contínua ampliação da consciência da integração do ser individual na Divindade Cético – Darwin sustentava que a evolução não tem direção e qualquer sentido de

progresso, consistindo apenas na melhor adaptação dos organismos aos seus ambientes. Carl Sagan afirmava que a evolução é fortuita e não planejada. É um processo

estocástico. Para Jacques Monod, a evolução resultou do "acaso puro", da "liberdade absoluta, mas

cega". Disse Fritjof Capra: "A evolução é basicamente aberta e indeterminada. Não existe

meta ou finalidade nela e, no entanto, há um padrão reconhecível de desenvolvimento." E mais: "A evolução é uma aventura contínua e aberta que cria ininterruptamente sua

finalidade, num processo cujo desfecho detalhado é inerentemente imprevisível."

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Contrário à opinião de Darwin, Alister Hardy postulava que o principal fator causal do processo evolutivo não é a pressão seletiva do ambiente, mas a iniciativa do organismo vivo.

Filósofo - André Bourguignon admite que "é sedutora a certeza de que a evolução é

orientada, em direção a organizações sempre mais complexas, para entidades sempre mais autônomas cada vez mais fechadas."

Diz ainda: "Não temos razão alguma para afirmar que um acaso essencial está na base da evolução."

E conclui: "A evolução é a expressão de poder auto-organizador da matéria e das propriedades de sistemas cuja complexidade é sempre crescente."

Acreditava Teilhard Chardin que a evolução é "uma ascensão para a consciência" e o homem é “a flecha ascendente da grande síntese biológica”. Por conseguinte, “a evolução tem um sentido” e tudo não pode ser “um efeito do acaso”. “A vida é ascensão na consciência” e “na nossa consciência, na consciência de cada um de nós, a Evolução descobre -se a si própria, refletindo-se”.

Para Julien Huxley, a evolução se torna autoconsciente no homem. Cientista – Em relação à ontogênese, a evolução é o desenvolvimento de um programa

genético, que se inicia a partir da fecundação e vai até a idade adulta. Acreditamos que esta programação inclua também o processo de decadência e morte do organismo. Em relação à filogênese, a evolução é um aumento de complexidade, iniciando-se com os organismos mais simples até culminar no homem.

Cético – A pesquisa científica demonstra que a evolução não necessita da ação de

Deus no mundo. Para Edgar O. Wilson, a evolução é uma aventura dos genes que compõem os cromos-

somos dos reinos vegetal e animal, sendo o indivíduo um simples veículo dos mesmos. Para Richard Dawkins, nós somos uma criação dos nossos genes. Cientista – Afirmar, como o fez Richard Dawkins, que os genes se servem de nós para

as suas finalidades, é admitir explicitamente que eles agem intencionalmente. É reconhecer que a natureza é teleológica.

Dawkins também sustentou que os genes são imortais, uma afirmação de natureza metafísica, porque a ciência não lida com a questão da imortalidade. Pensando assim Dawkins cometeu uma heresia científica.

Místico – Se somos uma criação dos nossos genes, o eu não passa de uma federação

de genes. Sob esse aspecto, Deus é uma invenção dos neurônios para enganar a si mesmos. Por

que, então, dois grupos formados por crentes e ateus acreditam e não acreditam em Deus, se todos são da mesma natureza biológica? Qual dos dois grupos de neurônios está com a razão. Por que o grupo de neurônios equivocados sofrem de uma doença metafísica que podemos dar-lhe o nome de teomania?

Filósofo – O que explica o salto qualitativo do não-vivo ao vivo, do DNA à emergência

da consciência? Cético – O acaso explica. Místico – É uma hipótese tão especulativa como a de que Deus explica.

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Cientista – Se a Física hoje admite a probabilidade e a Física Quântica tem ensejado o surgimento de hipóteses abstrusas, que mais parecem ficção científica para a explicação de tudo, por que a hipótese de Deus não pode fazer-lhes concorrência? A Teoria das Cordas e a dos Universos Paralelos não são testáveis, nem sequer observáveis e, no entanto, são admis - síveis cientificamente. Na verdade, elas são tão metafísicas como a hipótese de Deus. Aliás, as diversas Teorias do Tudo, propostas por cientistas respeitáveis como Arthur Eddington, Erwin Scrödinger, Wolfgang Pauli e Werner Heisenberg fracassaram, o que levou Freeman Dyson a comentar: “o terreno da física está coberto de cadáveres de teorias unificadas.”

Filósofo – Charles Darwin já expressara uma opinião semelhante: “A razão me fala da

extrema dificuldade, ou melhor, da impossibilidade de concebermos a ideia de que esse imen- so e maravilhoso universo, incluindo o homem com sua capacidade de olhar para o passado distante e para o futuro remoto, foi resultado de acaso cego. Assim refletindo, sinto-me com- pelido a procurar uma Primeira Causa com mente inteligente, análoga, de certo modo, àquela do homem. Mereço ser chamado de teísta.”

Essa opinião é sustentada por muitos dos mais importantes cientistas contempo- râneos, como Roger Penrose, John Barrow, Paul Davies, John Polkinghorne, Freeman Dyson, Francis Collins, Owen Gingerich, e filósofosos da ciência, como John Leslie Richard Swinburne.

Richard Feynman foi contundente: “A imaginação científica é a imaginação sem cami - sa-de-força.”

Místico – Para Amit Goswami, Deus “guia a evolução por meio de saltos quânticos

criativos”. Cientista – A evolução dotou o ser humano da capacidade de criar réplicas metálicas

de si mesmo e, operacionalmente, superior a ele. Séculos antes, Francis Bacon proclamou que, um dia, os seres humanos poderão criar uma nova espécie e se igualar aos deuses.

VVIIDDAA Filósofo – Não há realidade morta. A realidade é viva. Temos, assim, que repensar a

definição de vida. Místico – Deus é a vida universal. Os seres biológicos e as coisas são vida apri sionada

em uma forma. Cético – É um despautério acreditar que os minerais, os átomos e as partículas sub-

atômicas tenham vida.

Cientista – Não há uma definição pacífica sobre o que é a vida. Segundo Francis Crick os requisitos básicos para a vida são os seguintes. “O sistema deve

ser capaz ao mesmo tempo de replicar de forma direta as suas própri as instruções e indiretamente a maquinaria que é necessária para as executar. A replicação do material genético deve ser razoavelmente exata, mas as mutações — erros que podem ser fielmente copiados — devem ocorrer a uma taxa bastante baixa. Um gene e o seu «produto» devem ser conservados razoavelmente próximos um do outro. O sistema deve ser um sistema aberto e deve ter um fornecimento de material em bruto e, de alguma maneira, um fornecimento de energia livre.”

Ele reconhece que, “nestes termos tão gerais, tais requisitos não parecem muito exigentes, embora sejam bastante difíceis de satisfazer quando se parte do zero. O que não é tão evidente é a capacidade espantosa que o sistema vivo tem para se melhorar a si próprio. Um processo de cópia com alguns raros erros.”

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Jean Guitton escreveu: “A aventura da vida resulta de uma tendência universal da matéria a se organizar espontaneamente em sistemas cada vez mais heterogêneos. O movi - mento é orientado da unidade para a diversidade, criando ordem a partir da desordem, ela- borando estruturas cuja organização é cada vez mais complexa.”

Ilya Prigogine definiu a vida como “uma flutuação da matéria” e que, nessa flutuação, há outras flutuações.

Poeta – Deus não criou a vida.

Ele é a vida. E tudo o que existe é vida.

Místico – Se Deus fosse o criador da vida, ela teria sido criada por algo não-vivo, o que

seria um paradoxo. Filósofo – Tudo o que é, é vivo. Como pode algo do real estar morto? O que denomi -

namos de morte é a desagregação de uma expressão organizacional. Os seus elementos constituintes básicos, em nível atômico, permanecem vivos.

Há vida sem matéria? Há matéria sem vida? É a vida uma modalidade da matéria? É a matéria uma modalidade da vida?

Somos tentados a admitir que não há vida sem matéria, pois esta é uma das modalidades de manifestação da vida. A vida é a própria realidade, pois absurdo seria conceber-se a realidade sem vida e a vida sem realidade. E, consequentemente, se a realidade é vida, qualquer aspecto da realidade, por mais ínfimo e insigni ficante que pareça, é necessariamente vivo.

Pesquisas demonstraram que os chamados corpos inanimados possuem certas características dos seres biológicos: os metais "cansam" e os cristais demonstram possuir "memória", pois, quando mutilados, em pouco tempo se recompõem.

Teólogo – Deus é a vida imortal e está imanente em cada ser vivo. Cético – Se Deus é imortal e imanente em cada ser vivo, como pode um ser vivo matar

outro ser vivo? Se cada individualização de Deus é imortal, então ninguém se mata, é morto ou mata alguém.

Filósofo – Essa argumentação é lógica, mas perigosa, porque pessoas com propensão

criminosa podem cometer homicídios e admitir que nada fizeram de errado. Místico – Nada morre em Deus, mas tudo se transforma sem perder a sua essência. Só

a existência é transitória. A forma se desfaz, não a ideia da forma. Cético – Se há vida imortal, não sabemos, porque a nossa, um dia, acabará. Poeta – Fazemos jogos mentais para conhecer a vida. Podemos ser hábeis nesses jogos e ter a ilusão de conhecê-la. E se formos jogos de Deus que busca se conhecer por meio dos jogadores? Cético – A vida é um fenômeno único, um processo que só aconteceu uma vez?

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Cientista – Valho-me, de novo, de Francis Crick: “O processo não precisa acontecer

apenas uma vez. Pode acontecer repetidas vezes, porque o acaso faz surgir novas mutações favoráveis. Os aperfeiçoamentos assim somados com o tempo irão dar origem no processo de evolução a um indivíduo que será particularmente bem adaptado ao seu meio ambiente. Para se chegar a uma tal perfeição de desenho não são precisas mais do que mutações produzidas pelo acaso. Parece não haver mecanismo algum, pelo menos um mecanismo comum, que dirija as modificações no gene de forma que se produzam apenas alterações favoráveis. Além disso pode-se argumentar que um mecanismo que fosse assim controlado a longo prazo tornar-se-ia demasiado rígido. Quando as coisas se tornam difíceis é necessário introduzir verdadeira novidade — novidade cujas características importantes não podem ser planificadas de antemão —, e para isso é no acaso que se deve confiar. O acaso é a única fonte de verdadeira novidade.

Tal é o poder da seleção natural que pode operar a todos os níveis. Místico – Albert Einstein era um cientista de grande sensibilidade. Emociono-me com o

que ele declarou: “O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que sus- cita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação ou não pode mais experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos cegaram.”

Cientista – Para Paul Davies, “o segredo da vida não reside na sua base química, mas nas

regras lógicas e informacionais que explora. A vida tem sucesso exatamente porque foge aos imperativos químicos.”

Ludwig von Bertalanffy aprofundou a questão: “Biologicamente a vida não é manutenção ou restauração do equilíbrio, mas essencialmente manutenção de desequilíbrios, conforme revela a doutrina do organismo como sistema aberto. A chegada do equilíbrio significa a morte e consequente decomposição.

Existem sistemas inanimados que, à semelhança dos seres vivos, conseguem realizar a auto-organização espontânea.”

Ilya Prigogine acrescentou: “O que é espantoso é que cada molécula sabe o que as outras moléculas farão ao mesmo tempo em que ela, e a distâncias macroscópicas. Nossas experiências mostram como as moléculas se comunicam. Todo o mundo aceita essa propriedade nos sistemas vivos, mas ela é no mínimo inesperada nos sistemas inertes.”

Filósofo – A biologia se aferrou firmemente à crença de que o vivo só pode se originar

do vivo. Assim, a realidade é constituída de vida e não-vida, admitindo-se que o nosso conceito do que é vida esteja correto. No entanto, a ciência reconhece que a vida é uma propriedade emergente do que chamamos de matéria e que a vida resultou de relações aleatórias entre as coisas sem vida. Ou seja: no princípio não era a Vida. Todavia, não se sabe explicar por que as partículas subatômicas, que são coisas sem vida, constituam o estofo último dos seres vivos. Ou temos de mudar o nosso conceito de vida ou especular sobre o que opera essa transição do não-vivo para o vivo.

Se a vida veio do não-vivo é explicável por que um ser vivo, ao morrer, se transforma em seus componentes não-vivos, como moléculas e átomos. É óbvia, porém provocativa, a afirmação de que só morre o que é vivo, porque se admite, implicitamente, que o que não é vivo é imortal.

É a vida um fenômeno transitório do que é não-vivo? Então, se um dia a vida acabar, a realidade será definitivamente não-viva.

Custa-nos admitir a realidade sem vida e constituída, eternamente, de coisas não-vivas.

Reservamos, arbitrariamente, a palavra vida aos sistemas biológicos. E sustentamos que as partículas subatômicas não são vivas, embora a partir delas se construam os formidáveis complexos biológicos que denominamos de organismos.

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Os sistemas vivos são sistemas abertos e estes consistem em uma atividade de troca da matéria com o meio ambiente. Um sistema aberto pode, assim, tender para um estado de organização superior, passando de um estado inferior para aquele.

Cientista – Somos vida consciente. Mas não sabemos o que é a vida e por que ela é

dessa maneira e não de outra, ou por que não somos apenas vida, mas consciência. E como, por que e para que a matéria se fez vida e a vida se fez consciência. E por que nos questionamos a respeito do que somos e do que é a realidade .

A vida emergiu da matéria e a consciência, dos seres vivos. A vida, há cerca de 3,5 bilhões de anos, se tornou autônoma em relação à matéria, pois, desde a sua emergência, o vivo só se origina do vivo, pouco importando que tudo seja composto de partículas atômicas. Do mesmo modo, pode-se cogitar que consciência emergente dos organismos biológicos também adquiriu sua autonomia, embora interaja com eles. Embora ignoremos como ocorreu o salto qualitativo da matéria à vida e desta à consciência, parece-nos viável a hipótese de que a matéria, a vida e a consciência representam três níveis da realidade que, conquanto autônomos, interagem entre si.

Será a consciência o último nível da realidade? Místico – Se a vida e a realidade são a mesma coisa, então, a vida é imortal, a morte

nada mais é do que a continuidade da vida em suas infinitas formas. Assim, a morte é, essencialmente, uma ilusão, e o sofrimento um aspecto inerente ao processo de transformação da vida em suas infinitas formas transitórias.

Deus é a vida é eterna. N’Ele, nada se perde e tudo se transforma em Suas infinitas manifestações. Deus é o eterno se fazendo temporal, e o temporal se desfazendo no eterno.

Cientista – O Estoicismo doutrinava que o universo é um animal vivente e racional. Séculos depois, James Lovelock afirmou que a Terra (Gaia) é um ser vivo. E inteligente.

Somos apenas células do seu grande corpo que nascem, morrem e renascem nele. Transcrevo o que ele escreveu: “Como fruto das minhas pesquisas, propus à

comunidade científica a minha hipótese de Gaia, na qual considero a Terra um organismo v ivo e, portanto, auto-regulado”. A Terra (ou Gaia) é um ser vivo e a evolução lhe diz respeito e não aos organismos ou ao ambiente tomados em separado. Pierre Lévi observou: “O homem coloca toda a biosfera em um ciclo de renovação rápida. A partir de agora, nós dominamos a biosfera. Mas será que nos servimos da Terra ou a vida serve-se de nós para evoluir ainda mais rápido?”

Filósofo – Será que a Terra, em sendo um ser vivo, é também consciente? Ou nós, seres humanos, somos a Terra que se tornou autoconsciente? Talvez sejamos um produto da evolução da Terra que, nos primórdios de sua formação, desenvolveu-se através das experiências de seus elementos constitutivos, gerando uma forma de vida baseada no carbono e, desta forma de vida, evoluiu para as manifestações individualizadas de consciência.

Freeman Dyson e Alfred North Whitehead afirmaram que até mesmo as partículas elementares são dotadas de uma forma e de um nível de consciência.

Cético – Os cientistas têm seus momentos de loucura, quando fazem projeções para a

vida futura. Os adeptos da informática sonham em dar inteligência superior e consciência aos autômatos metálicos. E até mesmo emoções. Com arrimo nessa especulação alucinada, torna-se plausível a ideia maluca de que objetos inanimados podem ter vida, inteligência, emoção e consciência

Místico – Somos células-tronco de Deus. Neste estado, somos Deus em potencial.

Porém, quando nascemos, se inicia o processo de especialização segundo o padrão de nossa

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espécie. Assim, cada espécie é Deus especializado.

Filósofo – A vida se complexifica pela contínua escolha das opções mais favoráveis. O

que não sabemos é o que seleciona essas escolhas e se a contínua complexificação ocorre à custa de “acasos felizes” ou de uma programação que se desenvolve, aprendendo com os erros e se consolidando com os acertos.

A complexificação ocorre sem motivo, sem plano, sem finalidade ou ela é direcionada para determinados fins? Em caso afirmativo, o que é que direciona o processo de complexificação?

A especialização enfraquece a adaptabilidade. No entanto, quanto maior a capacidade adaptativa, maior é a eficiência do ser de comportar-se adequadamente às mais diversas situações.

Os seres vivos são programados para manter a vida, seja de que modo for, embora, em certas circunstâncias, alguns provoquem a própria morte, seja instintivamente, seja voluntariamente. Há casos de animais que se suicidam em benefício da espécie. O suicídio entre as células recebeu o nome de apoptose.

Cientista – Wendell M. Stanley descobriu, experimentalmente, que a cristalização não

era a linha divisória entre a vida e a não-vida, pois os vírus são uma forma de vida tão simples que podem cristalizar-se.

Francis Crick, que não é um místico, afirmou: “Um homem sensato, armado de todo o saber à nossa disposição hoje, teria a obrigação de afirmar que a origem da vida parece atualmente dever-se a um milagre, tantas são as condições a reunir para visibilizá-las.”

Filósofo – O ser humano parece ser a estratégia da vida para aumentar a sua com- plexidade e o seu poder criativo.

Humberto Maturana e Francisco Varela entenderam que a vida gera a si própria con- tinuamente. É o que eles denominaram de autopoese.

Ora, se a vida nasce de si mesma, ela sempre existiu, porque a vida não tem outra causa que a gerou senão ela própria.

A vida é a eterna passagem do estado de potência para o de atualidade e do estado de atualidade para o de potência. Nascimento é a passagem da vida do estado de potência para o de atualidade. Morte é a passagem da vida do estado de atualidade para o de potência.

Cético – Temos de mudar o nosso conceito de vida e especular sobre o que opera essa

transição do não-vivo para o vivo. O vírus, por exemplo, é um dos nossos grandes desafios.

Filósofo – Não há consciência sem vida. Mas, pode haver vida sem consciência? Só inferimos que uma espécie de vida é consciente, quando podemos interagir com ela.

TTEELLEEOOLLOOGGIIAA Cético – O mundo é um acaso continuado sob a aparência de ordem. Nada tem

finalidade. Nós é que inventamos finalidades para tudo Espinosa alegava que Deus não age, visando um fim, pois isto importaria em admitir

que Ele "tende necessariamente a alguma coisa de que está privado." Procuramos dar intencionalidade até às coisas. Quando o automóvel se quebra, o com-

putador trava, irritamo-nos com eles como se fossem culpados. E os tratamos como se fossem pessoas. Por isso, achamos que tudo que nos acontece resulta de uma intencionalidade de natureza transcendental.

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Teólogo – Todos os seres vivos são programas de ação, tudo tem finalidade. Não exis- tem programas sem finalidades.

Filósofo – Mahidasa Aitareya, já observava que a natureza é "um sistema de finalidades."

Platão apregoava que tudo tem uma finalidade e uma ordem inteligíveis. Aristóteles complementou o pensamento de seu mestre, afirmando que a natureza

nada faz sem finalidade e que tudo tende ao ótimo. Ele ensinava que os seres eram dotados de enteléquia (en = dentro e telos = finalidade), ou finalidade interior. Hoje dizemos o mesmo de outro modo: todo ser é dotado de uma programação interior. E ele procura compatibilizar esta programação interior com a programação exterior do contexto sociocultural onde vive.

Aristóteles definiu a enteléquia como a aptidão do organismo de desenvolver seus pro- pósitos internos e a maneira de realizá-los.

Pietro Ubaldi, como coroamento dessa linha de raciocínio, asseverava que a finalidade da vida é a formação da consciência, “enriquecendo-a de todas as possíveis qualidades, através de todas as possíveis experiências."

Para Alan Dressler, o universo inventou um meio de conhecer a si próprio. O físico Freeman Dyson tem opinião idêntica: “Quanto mais examino o universo e

estudo os detalhes de sua arquitetura, mais evidências encontro de que o universo em certo sentido devia estar ciente de que iríamos chegar.”

Cientista – Segundo o Princípio Antrópico, o universo foi ajustado para permitir a

existência do ser humano. E por que não, de todos os seres vivos? Filósofo – O universo criou as condições necessárias para a vinda dos seres humanos

ou ele foi criado para essa finalidade? Se o universo não se autocriou o que ou quem o criou? Aliás, como pode autocriar-se o que não existe?

Cético – O físico Steven Weinberg escreveu: “Quanto mais o universo parece compre -

ensível, mais parece sem sentido”. Mas, por que o universo teria de ter sentido? A vida tem sentido? A realidade tem

sentido? Sentido é invenção humana para explicar o mundo e a vida do ser humano no mundo. Como tudo tem um programa para funcionar, buscamos um programa extrabiológico para funcionar na vida social. Queremos ser uma peça importante no grande mecanismo da sociedade.

Werner Heisenberg argumentou ainda: “A indeterminação é uma característica obje - tiva da natureza e não uma limitação do conhecimento. É o que denomino de “restauração do conceito de potencialidade”. O universo, diferentemente do que pensava Aristóteles, não tem finalidade predeterminada, mas uma gama de potencialidades. Assim, o futuro ainda não foi decidido e é sempre possível uma inovação imprevisível.”

Ilya Prigogine observou: “Hoje, não temos mais medo da “hipótese indeterminista”. Ela é a consequência natural da teoria moderna da instabilidade e do caos.”

A realidade não tem projetos, nem objetivos, nem intencionalidade. A realidade é ação espontânea que se desenvolve no tempo e no espaço. A sucessividade de tudo é a negação da simultaneidade.

Cientista – O universo é um mistério fascinante. Disso se apercebeu o biólogo J.B.S.

Haldane: ”Agora, minha desconfiança é que o universo não só é mais estranho do que imaginamos, mas mais estranho do que podemos imaginar.”

É a capacidade de adaptação dos seres vivos o produto do acaso ou de um obscuro processo seletivo? E o que é, afinal, esse processo seletivo? Por que a natureza seleciona e para que seleciona? Negar que os olhos não foram feitos para ver, mas que se

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autoconstruíram em virtude da necessidade de adaptação do ser ao ambiente, é apenas escamotear o problema. Então, se pergunta por que e para que a necessidade de adaptação fez com que os olhos fossem criados.

A capacidade de adaptação foi programada ou se constituiu por acaso? É tautológico dizer que a natureza se ajusta às condições emergentes, como se essas condições emergentes não fizessem parte da natureza. É o mesmo que se dizer que a natureza se ajusta à própria natureza, na manifestação de seus fenômenos.

A vida é um complexo de finalidades, embora não saibamos a finalidade da vida. Pode ser que a vida, apesar de ser um complexo de finalidades, ela própria não tenha finalidade, ou seja uma finalidade em si mesma.

Filósofo – Estamos imersos num universo de finalidades, como membro de uma

sociedade. E a própria sociedade tem uma finalidade que interage com as finalidades de seus indivíduos.

Todo ser humano elege finalidades para si próprio, dando-lhes o nome de programa de vida ou missão. Sentido de vida e finalidade são a mesma coisa.

Nada fazemos sem sentido, sem finalidade. E utilizamos situações, coisas e pessoas para alcançarmos as nossas finalidades.

Quando descobrimos algo, procuramos, de imediato, uma finalidade, uma utilidade para ele. Algo é útil, quando serve a alguma finalidade. Logo, o que dá utilidade a algo é a sua finalidade.

Quando inventamos algo, inventamos para alguma finalidade. Cientista – Os cientistas descobriram a existência de sistemas inanimados que, à

semelhança dos seres vivos, conseguem realizar a auto-organização espontânea. Certas reações químicas oferecem exemplos de crescimento espontâneo da ordem.

O telefinalismo da Natureza retornou ao palco da Ciência com um novo nome: atrator. O atrator é, na teoria matemática dos sistemas dinâmicos, o conjunto invariante irredutível, que atrai as trajetórias de todos os pontos vizinhos.

Tudo parece indicar a realidade de uma extraordinária programação cósmica, cuja finalidade e significado ultrapassam a nossa capacidade de compreensão. Na verdade, pouco importa que jamais possamos entender o significado da existência, mas, sim, que o sentimento intuitivo deste significado dê significação às nossas vidas.

Cético – Deus tem objetivos? Se os tem, necessita do concurso dos seres humanos

para realizá-los. Então, ele não é todo poderoso, ou se agrada em terceirizar seus objetivos. Teólogo – Deus deu a cada pessoa uma missão. Ninguém está no mundo por acaso.

Ninguém vive apenas por viver e vive somente para procriar. O ser humano, além de uma entidade biológica, é artífice de sua própria história.

Cético – Verdade? Hitler, Napoleão, Júlio César, Alexandre, Ramsés II, Kublai Khan,

Ivan, o Terrível, Stalin, Hitler e tantos outros ditadores antigos e modernos tinham a missão de matar milhões de pessoas? Então, eles não podem ser responsabilizados por seus atos.

Teólogo – Eles agiram por conta própria ou se equivocaram em relação ao seu papel

na História. Deus, por certo, não lhes deu essa missão. Cético – Mas, se eles erraram em sua missão, como Deus, sendo onisciente, não sabia,

de antemão, que eles falhariam. E, se sabia, porque lhes deu essa missão?

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Teólogo – Mais uma vez, fica evidenciada a nossa incapacidade de compreender as ações de Deus. Não apenas cremos n’Ele, mas também cremos que, por ser onisciente, Ele sabe o que está fazendo.

Místico – Deus não tem propósito, porque ele é todas as possibi lidades. Somente os

indivíduos têm propósitos, porque este é o seu movimento para realizar todas as suas possibilidades. Bhagavan Sri Rama Maharishi ensinava que “Deus não tem propósito” e, por isso, “não está preso a qualquer ação”.

Poeta – Será que foi de propósito

que Deus fez a vida sem propósito? Foi o homem que inventou o propósito da vida. Por isso, não pode entender que a vida é sem propósito. E sofre assim sem propósito.

Filósofo – Se entendermos propósito como programa, tudo o que existe tem

propósito. Não há programas sem finalidades: eles perderiam a razão de ser. Sob esse aspecto, Deus tem propósitos quando cria programas para tudo, inclusive o ser humano. O que chamamos de evolução é o desdobramento de um programa, onde o que classificamos como erros resultam de adaptações que não temos, ainda, capacidade de compreender, como as catástrofes naturais ou todo tipo de aleijões dos seres da natureza.

Todos os seres vivos têm um programa. Não são uma tabula rasa, como pensava Aristóteles. A programação biológica é um software instalado em um ser a partir da fecundação, onde ele começa a construir o seu hardware – o corpo. O que denominamos de espírito pode ser esse software.

Tudo o que fazemos tem uma finalidade e até as coisas da natureza podem servir para certos objetivos do ser humano. As árvores frutíferas, por exemplo, não foram programadas para nos servir, fornecendo-nos, quando frondosas, sombra e frutos. Elas cumprem a finalidade de todo ser vivo, que nasce, reproduz-se e morre.

Cético – Nascemos, experimentamos várias contingências da vida e, finalmente,

morremos. Isso tem algum significado? Filósofo – Sim, o significado que dermos a tudo isso. A vida sem significado é sem

valor. Místico – O objetivo supremo de cada pessoa é realizar a sua divindade interior ou

Deus imanente e, nessa condição, ajudar os outros homens a realizar a sua enteléquia divina. Cético – Os ateus não têm esse objetivo. Místico – Porque o ateu, pelos mais diversos motivos, ainda não se conectou com a

sua essência divina. Quando isso acontece a sua conversão se realiza espontaneamente, porque ele encontrou a sua estrada de Damasco.

Cético – Isso jamais me acontecerá. Místico – Talvez sim. Talvez não. Ninguém pode saber o que lhe acontecerá no futuro.

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DDEEUUSS

Místico – Já concluimos que a matéria não é real. Resta-nos, então discutir, se a realidade é Deus.

Filósofo – A palavra Deus sofreu o desgaste do tempo. Precisamos criar uma nova

palavra para rediscutir o mistério da Vida. Não só uma nova palavra, mas um novo conceito. O Deus das religiões é incompatível com a evolução do conhecimento de nossa época.

Místico – Todo ser é, na sua essência, Deus, porque Deus é tudo o que existe. Chamamos de Deus o nosso modo pessoal ou coletivo de dar um significado à

realidade. É um processo de antropomorfização da realidade, que satisfaz a necessidade de quase todas as pessoas.

Deus é realidade e n’Ele vivemos. Porém, o ser humano foi além da realidade que lhe foi dada e descobriu que há outra realidade que não pode compreender. Essa descoberta o fez duvidar de sua realidade e procurar a realidade verdadeira.

Por mais que sejamos deuses, nunca seremos Deus. Por mais que sejamos consciências individuais, jamais seremos a onisciência de Deus.

Filósofo – Deus é a realidade ou faz parte da realidade? Se Deus é a realidade, cada ser

o percebe de certo modo. Assim, só conhecemos um minúsculo aspecto da realidade ou Deus. Tudo o mais nos é desconhecido. Mas, se Deus é parte da realidade, o que é a realidade que está além de Deus?

Se Deus criou a realidade, Deus era um ser irreal. E como poderia um ser irreal criar a realidade?

Se a realidade criou Deus, ele faz parte da realidade. É, portanto, um ser criado e, não, o Criador.

Mas, se Deus e a realidade são a mesma coisa, então tudo resulta do eterno dinamis- mo da realidade e o que chamamos de Deus é tudo aquilo que da realidade não compreen - demos, porque está acima da nossa capacidade de compreensão.

Se Deus é a realidade, então só percebemos de Deus o que percebemos da realidade. Deus, sendo a realidade, é concebido segundo o grau de inteligência de cada pessoa e segundo os seus condicionamentos culturais. A realidade, assim, não é apenas o que observamos, seja por meio dos nossos sentidos e de suas extensões artificiais, mas também o que não ob -servamos e o que não poderemos jamais observar.

Cético – Não cremos na realidade: a realidade é um fato. Se Deus é a realidade, por

que precisamos crer nele? Filósofo – Esse é o ponto. Não precisamos crer nele. No entanto, há filósofos malucos

que questionam a realidade e asseguram que tudo é ilusão. Ora, se tudo é ilusão, quem faz esse questionamento?

Místico – O que é isso que os nossos impulsos elétricos decodifi caram como realidade?

Talvez seja a ação de um agente que a religião nomeou de Deus. A filosofia oriental ensina que o mundo é um sonho de Brahma, ou seja, o Absoluto. Discordo, porém, da conclusão de que, por isso, o mundo é ilusão. O mundo é real, porque é a ação contínua de Deus. Os homens vêem da mesma forma a realidade, porque Deus criou para eles uma realidade comum.

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Cético – Se a realidade é Deus, quase nada sobre ele sabemos ou poderemos saber. O que é real não necessita de provas.

Filósofo – É uma questão humanamente insolúvel. Somos reais e somente uma parte

infinitesimal da realidade nos afeta. Além disso, tudo é mistério envolto em especulações metafísicas.

Cientista – Só conhecemos um minúsculo aspecto da realidade ou Deus. Tudo o mais

nos é desconhecido. A realidade, como a percebemos, é constituída de fatos que eram possibili dades e de

possibilidades que ainda não se converteram em fatos. É um erro de certos cientistas considerar que só existe o que se observa, o que pode ser submetido à experimentação, o que pode ser previsto.

Filósofo – Para o pensamento oriental, a realidade é criação, conservação e destruição

de tudo, o que corresponde, no Bramanismo, aos deuses Brahma (criação), Vishnu (conservação) e Shiva (destruição).

Místico – Perguntar o que é Deus é o mesmo que perguntar o que é a realidade. Deus não é parte da realidade: Ele é a realidade.

Todo ser é, na sua essência, Deus, porque Deus é tudo o que existe. Deus é realidade e n’Ele vivemos. Porém, o ser humano foi além da realidade que lhe foi dada e descobriu que há outra realidade que não pode compreender. Essa descoberta o fez duvidar de sua realidade e procurar a realidade verdadeira. Por mais que sejamos deuses, nunca seremos Deus. Por mais que sejamos consciências individuais, jamais seremos a onisciência de Deus.

A filosofia oriental ensina que o mundo é um sonho de Brahma, ou seja, o Absoluto. Discordo, porém, da conclusão de que, por isso, o mundo é ilusão. O mundo é real, porque é a ação contínua de Deus. Os homens vêem da mesma forma a realidade, porque Deus criou para eles uma realidade comum.

Cético – Se a realidade é Deus, quase nada sobre ele sabemos ou poderemos saber. O que é real não necessita de provas.

Cientista – É uma questão humanamente insolúvel. Somos reais e somente uma parte infinitesimal da realidade nos afeta. Além disso, tudo é mistério envolto em especulações metafísicas.

Amit Goswama procurou explicar como Deus age. Albert Einstein queria conhecer os pensamentos de Deus. São pretensões que excedem a capacidade do ser humano.

Cético – Se Deus é a realidade, quanto mais especularmos sobre ela, mais duvidaremos do que sabemos.

Teólogo – Nesse ponto, você está de acordo com Santo Agostinho. Ele ensinava que Deus é incognoscível e, paradoxalmente, quanto mais O conhecemos, mais O ignoramos. Assim, para “compreender” Deus, nós o humanizamos, dotando-o dos mais altos atributos da natureza humana. Compreendemos que Ele não é assim, mas que essa é a nossa manei ra de sentir a Sua presença. Trata-se de uma nova óptica do antropomorfismo: não mais o antropomorfismo ontológico, mas o antropomorfismo funcional, onde se sabe que Deus não é como o homem O concebe, mas que é sentido como se fosse o homem perfeito, o modelo ideal da nossa humanidade.

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Filósofo – Se fomos programados para perceber a realidade dentro de um padrão, por que a ideia de Deus não faz parte também dessa programação? Claro é que, à semelhança do computador, o programa Deus só rodará em nossa existência, se o seu comando for corretamente acessado. Dizer que esse programa é produto de um equívoco ou de um acaso, é afirmar, implicitamente, que toda a programação do ser humano é uma grande ilusão ou, no mínimo, não é perfeita por conter este erro grave.

Melhor será dizer que um programador, seja ele o que for, instalou no software da natureza humana o comando identificador do seu autor, pois, na sua omissão, o homem jamais poderia conhecer o seu criador.

Místico – Quando nos percebemos como indivíduos – esse é o nosso estado habitual –, a realidade é uma multiplicidade de seres e coisas. Quando percebemos a realidade como um Todo unificado é porque perdemos a noção de nossa individualidade. Deus é a realidade e todas as individualidades são realidades transitórias. Como existência somos mortais, como essência somos imortais.

Cientista – Há, possivelmente, infinitos níveis de realidade. Por isso, a realidade é inacessível ao entendimento dos indivíduos. Esses níveis se entrelaçam entre si, formando uma infinita rede de interações num mesmo nível e entre todos os níveis. Essa rede, em todos os seus níveis, apresenta variações em suas interações, porque cada um dos níveis da realidade tem a sua característica própria.

Místico – A realidade é uma percepção alternativa. Quando Deus nos assume , não existimos. Quando nos assumimos, Deus deixa de existir. Por isso, o individual jamais verá o uni- versal.

Deus é a realidade onisciente.

Cientista – Para Amit Goswami, Deus é a consciência quântica, e o agente que provoca o colapso quântico das probabilidades, das quais resultaram e resultam todos os universos.

Poeta – A consciência sustenta o corpo, o tempo e o espaço. O que sustenta a consciência?

Cético – Como alguém pode ser espiritualista, se Deus é uma ficção?

Teólogo – Como alguém pode ser materialista, se a matéria não passa de uma ficção?

Poeta – Deus será sempre a única pergunta sem resposta.

Cético – Se a realidade é Deus, ele é quem ou o que?

Místico – Deus não é quem. Nem é o que. Está além da compreensão humana e o

vocábulo que o indica não o define.

Cientista – O que ou o quem é uma questão metafísica, porque extrapola o domínio cognitivo da ciência.

O mal de tudo isso é que crentes e ateus polemizam sobre a existência de um Deus pessoal, em vez de um ser impessoal, desprovido de atributos humanos.

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Filósofo – Deus, como a realidade total, é uma noção que perturba crentes e ateus, acostumados que são a ideia de um Deus antropomórfico. No entanto, os infinitos aspectos da realidade podem ser investigados, mesmo aqueles que não são passíveis de observação direta ou mediante as extensões tecnológicas da nossa percepção.

Cientista – É científica a investigação do que é inobservável? Mário Bunge declarou, enfaticamente, que não adota uma atitude científica aquele

que despreza a investigação da alma humana em razão de sua inobservabilidade, "uma vez que a ciência teórica contemporânea ocupa-se predominantemente de inobserváveis, tais como as partículas elementares, os campos eletromagnéticos, a evolução geológica e biológica, a economia nacional, etc."

Também, de maneira categórica, Karl Popper criticou os que pensam que as teorias só são científicas "se têm origem em observações ou nos chamados "procedimentos indutivos", visto que "poucas teorias físicas podem ser definidas deste modo." E adverte que "o método real da ciência emprega conjecturas e salta para conclusões genéricas, às vezes depois de uma única observação."

Paul Davies observou que, na Física, muitas vezes explicamos "o que vemos em função do que não vemos e talvez nem sequer possamos visualizar", tais como o spin, a dualidade onda-partícula e a elasticidade do espaço.

Filósofo – Deus, como a realidade total, é um inobservável, mas, à semelhança das partículas elementares, sua existência pode ser detectada pelos "rastros" que ele deixa na natureza.

Cientista – Einstein não via como divorciar a ciência de uma metafísica intrínseca. E exclamou: "Sem a convicção de uma harmonia íntima do Universo, não poderia haver ciência."

Karl Popper advertiu que "num certo sentido, a ciência produz mitos - tanto quanto a religião." Porém, disse ele “os mitos científicos estão sujeitos à revisão crítica".

A ciência tem sua própria metafísica e são seus pressupostos: a) a existência de um mundo exterior; b) um universo constituído de coisas; c) coisas que se associam para formar sistemas em que os elementos constituintes interagem entre si; d) a associação de cada sistema a outros sistemas, podendo qualquer um deles ser também examinado como se estivesse isolado dos outros sistemas; e) comportamento de todas as coisas obedecendo a leis.

Na Física, os cientistas trabalham também com entidades não-materiais, muitas das quais denominadas de campos. A maioria destes campos está associada à matéria, como, por exemplo, o campo eletromagnético. Outros não, como o campo métrico na relatividade geral. E há, ainda, os campos de probabilidade, um dos fundamentais da Física quântica.

Os físicos modernos começam a falar uma linguagem metafísica. Erwin Schrödinger postula a Mente Única; David Bohm, a Mente Holográfica; Henry Margenau, a Mente Universal.

Por ser o holograma uma imagem estática, Bohm, em face da natureza dinâmica da realidade, preferiu descrever o universo como um holomovimento. Ele não aceita a hipótese de que as partículas não existem até que sejam observadas.

Postula a Física quântica que pode haver ligações e correlações entre acontecimentos muito distantes na ausência de qualquer força ou sinal intermediário e de maneira instantânea. Esta ação à distância foi designada de "princípio da não-localização", segundo o qual qualquer coisa pode ser afetada por uma causa não-local.

Teólogo – A crença em Deus pode resultar de uma revelação. Ou de uma experiência transcendental.

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Místico – A revelação de Deus ao homem é sempre uma experiência pessoal, despertando-lhe um sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização dessa experiência é que resulta na permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais, segundo as idiossincrasias de cada pessoa que se julga o seu intérprete.

Deus é sentido com uma experiência da unidade e sentimento de solidariedade e que transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade.

Cético – Não acredito em revelação. Não acredito nas pessoas que se passam por intérpretes de Deus, porque dizem que falaram ou ainda falam com ele.

Uma pessoa é confiável porque acredita em Deus? Uma pessoa não merece confiança porque não acredita em Deus?

Há pessoas que se iludem, pensando que as suas ideias são revelações da divindade.

Filósofo – É o mal que acomete aqueles que se julgam profetas. E o mal que fazem às pessoas que acreditam neles.

Poeta – Ser humano que sou, não sei que humano

possa exceder à sua condição e revelar mistérios que não passam de criações da carne atormentada.

Cético – Por isso, é paradoxal que teólogos e filósofos religiosos queiram provar a existência de Deus mediante o emprego da lógica.

O que se atribui a Deus é o poder do ser humano. A ciência cada vez nos demonstra que nada é impossível. O que o homem pensar se tornará, um dia, realidade.

Filósofo – Para aqueles que acreditam que nada é impossível, a existência de Deus é possível.

Místico – Deus pode ser experimentado nas mais diversas situações: nas crises existenciais, na oração, nos alucinógenos, na meditação.

A fé em Deus resulta, algumas vezes, das experiências mais dramáticas do ser humano, desde o êxtase ao extremo sofrimento. Deus é a experiência suprema. Mas, a ideia de Deus pode ainda resultar de especulações metafísicas e racionais. É a mais exasperada tentativa de significação para o universo e de tudo o que existe.

Uma coisa é acreditar em Deus e polemizar sobre o que Ele é. E outra, é experimentá-Lo no êxtase, e nada poder dizer sobre o que Ele é. A ideia de Deus raramente decorre da razão.

Cientista – Deus é uma questão de fé. A fé não pode fundamentar-se na ciência para ser validada. Nem a ciência pode questionar a fé, porque esta não é adequada à metodologia científica.

Cético – Michel Montaigne observou que os homens tendem a acreditar, sobretudo, naquilo que menos compreendem. E este é o fascínio que a ideia de Deus exerce sobre as pessoas

Filósofo – A razão não é inimiga da fé, como pensavam alguns teólogos católicos. Embora sejam domínios cognitivos diferentes, em raras ocasiões, elas convergem.

Cético – A fé que se baseia na Teologia é produto da imaginação dos teólogos.

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Filósofo – Para o Deísmo, o homem conhece Deus pela razão. Ele rejeita toda

revelação, dogmas e cultos. Prega a existência de um Deus pessoal que não intervém no mundo criado, o qual é governado pelas leis da natureza. Para o Teísmo, o homem conhece Deus pela revelação.

Teólogo – A prova da existência de Deus é variada. Abelardo defendeu o exame crítico das Escrituras à luz da razão, argumentando que a

verdade da fé pode ser também entendida pela razão. A mente humana é capaz de atingir, não só o conhecimento do natural, mas também do sobrenatural.

Para Duns Scotus, a razão pode demonstrar a existência de Deus a posteriori, ou seja, a partir de seus efeitos. Reconheceu, porém, que os argumentos oriundos da atividade racional eram apenas relativamente probatórios.

Anselmo de Aosta procurou demonstrar, racionalmente, a existência de Deus, pois admitiu que o ser humano é capaz de investigar os mistérios divinos. A fé, no entanto, é o ponto de partida da razão ou o seu pressuposto. Assim, é preciso crer para entender - credo ut intelligam.

Se a perfeição absoluta existe e se temos a ideia de um ser perfeito, logo o ser perfeito existe. Este argumento ou prova ontológica da existência de Deus foi defendido por Duns Scotus, Descartes, Leibniz e Hegel.

Argumentava Anselmo que, da ideia de Deus se deduz a sua existência. Ele é “o Ser do qual não se pode pensar nada maior”. A ideia de um ser maior do que outro que possa ser pensado prova a existência deste, porque, se tal ser só existisse no pensamento, poderíamos pensar num ser maior. Kant refutou esse argumento, afirmando que a ideia de uma coisa não implica na sua existência.

Tomás de Aquino rejeitou o argumento de Anselmo, afirmando ser impossível a demonstração a priori da existência de Deus. Só a posteriori essa prova pode ser feita, pois a ideia de Deus não é inata à mente humana.

Para Tomás de Aquino, essas são as vias do sensível que conduzem à prova a posteriori de Deus: 1) Tudo o que se move, é movido por outrem. Há, portanto, algo que move, sem ser movido. E o que move sem ser movido é o Primeiro Motor Imóvel ou Deus, causa não movida do movimento. 2) Todo efeito tem sua causa. Logo, existe uma Causa Primeira Não Causada ou Deus. 3) Toda coisa é contingente e sua razão de ser não está, assim, em si, mas em algo não contingente e, por conseguinte, existe um Ser Necessário ou Deus. 4) Todas as coisas têm uma finalidade. Logo, existe uma Inteligência Ordenadora ou Deus. 5) Toda coisa tem um grau de perfeição. Portanto, existe o Ser Perfeitíssimo ou Deus.

Deus não é só saber, mas fazer. Não é puro Intelecto, como pensava Aristóteles, mas vontade.

Ockam sustentava que Deus não pode ser conhecido a posteriori, ou seja, racional -mente. Ele separou a Filosofia da Teologia, porque esta não é uma ciência e seus postulados têm apenas a garantia da fé.

Justino afirmava que não é a razão, mas a graça que revela a existência de Deus.

Místico – A ideia de Deus é inata ao homem, não porque Deus a colocou na mente humana, como pensavam Agostinho e René Descartes, mas porque Deus está imanente em cada ser, embora nem todas as pessoas e povos se conscientizem de Sua presença interior. Por isso, argumentava Agostinho que Deus é o nosso mestre interior, porque está presente essencialmente em nós, embora subjetivamente estejamos ausentes dele. É na reflexão do homem sobre si mesmo que ele encontra seu Deus imanente.

Cético – As pessoas têm a ideia de Deus porque foi a cultura que o programou para isso como forma de controle social. Deus, nessa acepção, é o poder supremo ao qual estão

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subordinados todos os poderes terrenos. E seus representantes na Terra possuem poderes por ele delegados para disciplinar a vida social.

Filósofo – Essa estratégia política não invalida a ideia de Deus, porque constitui apenas uma forma de manipulação do poder para submeter os indivíduos ao controle de instituições e grupos religiosos, principalmente os mais fanáticos.

Cientista – Para Dean Hamer, a espiritualidade é herdada geneticamente. Ele indica o VMAT2 como um dos genes de Deus E argumenta: “A constituição genética de uma pessoa tem papel definitivo na determinação do seu grau de espiritualidade. Nós não entendemos Deus; nós o sentimos.”

Místico – Se há um gene de Deus, ele é produto da evolução, ou sempre existiu no ser humano? Como se deu essa evolução? Como outro meio de sobrevivência? Que perigo amea- çava a raça humana para necessitar da ideia de Deus?

Admitida essa hipótese, embora não verificável, podemos, com fundamento nela, especular que essa ideia é evidência da ação do Deus imanente em nós. O mesmo raciocínio pode aplicar-se a hipótese de um módulo de Deus em nosso cérebro.

Cientista – Se o cérebro foi programado para acreditar em Deus, o que o programou? O acaso? A evolução? Deus? Então, com base na lógica da evolução, os ateus são pessoas não evoluídas.

Místico – Deus é uma experiência pessoal. Não há lugar e tempo para o encontro com Ele. E essa experiência é indescritível e solitária. Quem O encontra não discute mais sobre Ele. A dúvida passa a ser um problema dos outros.

As pessoas que passaram por uma experiência de quase-morte (EQM) perderam essa dúvida.

Cético – Essas experiências ditas espirituais estão sendo explicadas pela química do cérebro e ativação de certas áreas cerebrais, quando estimuladas. Não há nada de espiritual nisso.

Místico – Então, tudo isso decorre de uma programação biológica, inclusive a ideia de Deus, que nos faz passar por essa experiência, uma vez ativada por motivos mais diversos. Assim, é de se perguntar: qual a finalidade desse tipo de atividade cerebral como mecanismo de defesa para a sobrevivência do ser humano? Será a ideia de Deus apenas um luxo bioquímico?

Cético – Deus é uma experiência bioquímica, deflagrada pela ativação de uma área do cérebro.

Michael Persinger estimulou partes dos seus lobos frontais e disse ter tido a experiência de Deus

Melvin Morse informou: “Da mesma forma que temos uma área cerebral destinada à fala e outra que nos permite recobrar o equilíbrio quando tropeçamos e quase caímos, temos uma área dedicada à comunicação com as coisas místicas. Funciona como uma espécie de sexto sentido. Em suma, essa área é o "sensor de Deus".”

Quando estimulava eletricamente as áreas adjacentes da fissura, os pacientes com frequência tinham a experiência de "ver a Deus", ouvindo uma bela música, vendo amigos e parentes mortos, e tendo um retrospecto panorâmico da vida.

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Místico – Como poderíamos ter o sentimento da existência de Deus, se não tivéssemos um programa, uma localização no cérebro, uma conexão neurônica especial, uma alteração bioquímica que nos dessem essa experiência extraordinária da unidade de tudo, interpre tada como revelação de Deus? O acionamento do programa Deus pode ocorrer pelas mais diversas circunstâncias, a maioria delas traumática. Essa experiência produz uma modifi cação radical no ser humano. Ele se torna convicto da unidade de tudo, de que faz parte dessa unidade e de que matar e morrer é uma ilusão resultante da ideia da separatividade.

Cético – Afecções no cérebro mudam a personalidade de uma pessoa, modificando-lhe o comportamento. Somos resultados de nossa química cerebral. Acidentes também podem produzir os mesmos resultados. Oliver Sacks relata vários desses casos. Há, ainda, os casos, embora raros, de transferência de hábitos e sentimentos, decorrentes de transplante de órgãos de doares mortos para o organismo da pessoa que os recebeu. A e ssa experiência deu-se o nome de memória celular.

Teólogo – Não há dúvida de que certas substâncias produzem determinados estados psíquicos, induzindo emoções e pensamentos correspondentes aos mesmos. E que também certos estados psíquicos alteram o funcionamento do organismo às vezes de maneira extraordinária. No entanto, há indivíduos que ingerem drogas poderosíssimas que podem produzir profundas alterações orgânicas e/ou psíquicas, até mesmo a morte, mas que, por ação exclusiva de sua vontade, não são afetados por elas.

Místico – Essa informação passada de um organismo a outro revela a possibilidade de sua permanência por tempo indeterminado enquanto existir hospedeiros. Muitas ideias fantásticas um dia se tornaram fisicamente reais.

Teólogo – Para Espinosa, a essência de Deus implica em sua existência. Ele é infinito, único, eterno, imutável, indivisível, causa e conservação de tudo, dotado de uma infinidade de atributos e modos. Embora causa do mundo, ele não é causa externa e transcendente, mas causa interna e imanente, porque os modos da substância possuem, intrinsecamente, as propriedades dela. Deus é a ordem necessária e geométrica, que transcende a razão humana.

Leibniz encontrou no que denominou de princípio da harmonia preestabelecida, uma prova a posteriori da existência de Deus. Se tudo deve ter uma razão suficiente de sua existência e se nenhuma coisa existente tem em si essa razão, é evidente que existe Deus como razão suficiente de todo o universo.

Pascal enfatizou: "Pode-se saber bem que há Deus, sem saber o que ele é." Para Kierkegaard, o homem não tem a prova, mas a vocação de Deus. Maine de Biran postulou existir, no homem, um "sentido íntimo", uma espécie de

"revelação interior", que nos demonstra a presença divina na ordem do uni verso. Krishnamurti sempre se insurgiu contra a intelectualização do relacionamento do

homem com a Divindade: "Se pensais em Deus, esse Deus é uma criação do vosso pensar."

Místico – Deus não se prova, nem se explica: é a suprema experiência da fé. Tudo o que d'Ele dissermos não passa de um reflexo de nós mesmos. Todas as "provas" intelectuais da existência de Deus resultaram inconclusivas, irremediavelmente contaminadas de antropomorfismo, projetando sobre Ele os conceitos humanos de amor, bondade, j ustiça, inteligência, perfeição, vontade, ação e até emoção.

Os intérpretes de Deus são, na verdade, intérpretes das necessi dades coletivas, segundo cada contexto histórico.

A revelação de Deus no homem é sempre uma experiência pessoal, despertando um sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização desta experiência é que

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resulta na permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais, segundo as idiossincrasias de cada pessoa que se julga o seu intérprete.

Deus, assim, é sentido por essa experiência da unidade e sentimento de solidariedade e que transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade. O amor que ele sente em Deus é uma das formas de decodificação desta experiência. Por isso, Ramakrishna ensinava que Deus se manifesta no devoto de conformidade com a necessidade do devoto.

Filósofo – A ideia de Deus surge, quase sempre, nas situações mais dramáticas do ser humano, desde o êxtase ao extremo sofrimento. Ela pode ainda resultar de especulações metafísicas e racionais. É a mais exasperada tentativa de significação para o universo e de tudo o que existe.

Poeta – Não sei se persigo Deus Ou se Ele me persegue. A minha vida É essa perseguição.

Teólogo – Deus não pode ser entendido racionalmente, pois a razão é a medida do homem. Todo exercício lógico para compreender a Divindade é irremediavelmente condenado ao fracasso. Deus é o eterno incognoscível.

Cético – Então, a teologia é vã, quando procura compreender Deus mediante o uso da razão. A fé não resulta de um raciocínio lógico. A razão não prova a fé.

Filósofo – A lógica não é o metro da realidade. É uma atividade pragmática do espírito e limitada a uma determinada área operacional.

A lógica não apreende o real. Não está nas coisas, pois se constitui em uma mera atividade da mente humana. Nem prova o real, embora demonstre que certos fatos aparentemente se comportam segundo seu modelo. Por isso, somos inclinados a admitir que os fatos que acontecem segundo a nossa lógica são reais e os que assi m não se comportam são ilusões.

A lógica, por outro lado, tem uma função psicológica: dá ao homem o sentimento de controle sobre os fatos. Daí o seu apego a tudo o que é lógico, pois a lógica lhe dá uma sensação de segurança e poder.

Cientista – Não existe lógica na Natureza. A lógica é uma invenção do homem para organizar os acontecimentos de conformidade com as suas necessidades e interesses. É uma ferramenta, nada mais.

Dizer que a vida é lógica é dizer que só existe o que a ferramenta faz. A lógica é a relação harmoniosa entre os componentes de um dado contexto, o qual é

resultado de uma convenção. Assim, toda lógica é em relação a. Ao que está fora do contexto não se pode aplicar a lógica deste contexto.

A lógica é uma ferramenta cognitiva de grande utilidade, porém inválida para conhecer a realidade total.

Henri Poincaré sustentava que a intuição inventa e a lógica demonstra: "Adivinhar antes de demonstrar! Será preciso recordar que foi assim que se fizeram todas as descobertas importantes?!"

Filósofo – Advertiu Espinosa que o conhecimento racional, conquanto necessário, não é suficiente para a compreensão da realidade. Na verdade, "o nosso julgamento da ordem das coisas e do nexo das causas é fundado antes na imaginação do que na realidade." Só o conhecimento intuitivo é o momento supremo do processo gnosiológico, culminando no amor

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intelectual de Deus. A unidade da substância está além da razão humana e só a intuição é competente para entendê-la.

Cientista – Claude Bernard foi mais enfático: "A única fonte dos nossos erros são a razão e o raciocínio."

Segundo Einstein, "não existe nenhum caminho lógico para a descoberta das leis elementares do universo - o único caminho é o da intuição."

E observou: "O mecanismo do descobrimento não é lógico e intelectual - é uma ilumi- nação subitânea, quase um êxtase. Em seguida, é certo, a inteligência analisa e a experiência confirma a intuição."

Por isso, disse ele: "Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela."

E concluiu: "A mente avança até o ponto onde pode chegar; mas depois passa para uma dimensão superior, sem saber como lá chegou. Todas as grandes descobertas realizaram esse salto."

Místico – Em Deus estão todas as respostas. Mas, raras vezes, fazemos as perguntas corretas. É essa “abertura” do indivíduo para o Todo que enseja as descobertas e os inventos

Cético – Martinho Lutero era um inimigo declarado da razão. Ele vociferava: ”A razão é o maior inimigo que a fé possui; ela nunca aparece para contribuir com as coisas espirituais, mas com freqüência entra em confronto com a Palavra divina, tratando com desdém tudo o que emana de Deus”.

Seu furor vai além: “Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão”. E arrematou: “A razão deve ser destruída em todos os cristãos.”

Místico – Os teólogos fanáticos pensam assim. Martinho Lutero foi ainda mais

delirante quando esbravejou que “a razão é a meretriz do Diabo, que nada faz a não ser difamar e corromper tudo o que Deus diz e faz”.

Cético – O diabo de Lutero é mais forte do que Deus, pois pode prejudicar o que Deus diz ou faz.

Essa estreiteza intelectual de alguns teólogos é exemplificada pela afirmação de Tomas de Aquino que dizia ser um homem de um só l ivro.

Místico – Deus é incompreensível. Está além da lógica e da razão. E só pode ser intuído pela fé. Blaise Pascal escreveu: “É o coração que sente Deus e não a razão.”

Poeta – Se Deus fosse lógico Eu O compreenderia. Mas, (que pena!), Ele não seria um mistério. E é o mistério, Que me fascina.

Cético – Tudo o que foi dito até agora, não passa de um jogo intelectual para explicar uma fantasia do ser humano. Deus é uma idéia que provoca a mais forte e desvairada paixão. É um alucinógeno coletivo que faz delirar a humanidade desde as eras mais remotas. O crente, ante a complexidade cada vez maior da vida contemporânea, sente-se necessitado de um “Salvador” para a solução de seus problemas existenciais.

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Teólogo – O racionalismo radical emburrece as pessoas. É o fundamentalismo da razão. A fé pode ser comparada a um ideal. Quem não tem ideal está existencialmente entorpecido. Todos nós precisamos de emoções. A fé é a melhor de todas as emoções.

Filósofo – Concordo com o que escreveu William James: “A consciência mística é um estado de percepção das verdades profundas e desconhecidas pelo intelecto racional”.

Cientista – Há cientistas que procuram provar a existência de Deus, sob um ponto de vista não-teológico, utilizando a física quântica.

Amit Goswami está convicto de ter encontrado evidências científicas da existência de Deus, que ele denomina de consciência quântica. Deus age, tornando manifesta as suas possibilidades.

Cético – Foi por isso que Richard Feynman ironizou: “Acho que posso afirmar com segurança que ninguém entende a mecânica quântica”.

Cientista – A opinião de Niels Bohr é diferente: “Quem não se sentiu abalado quando teve contato pela primeira vez com a teoria quântica não pode tê-la entendido”.

Filósofo – O raciocínio circular diferencia Deus da realidade e a realidade de Deus, levantando idéias absurdas como: a) a realidade criou tudo, inclusive Deus; b) Deus criou a realidade, como se um ser irreal fosse a causa da realidade.

Místico – Deus é uma experiência pessoal. Não há lugar e tempo para o encontro com Ele. E essa experiência é indescritível e solitária. Quem O encontra não discute mais sobre Ele. A dúvida passa a ser um problema dos outros.

As pessoas que passaram por uma experiência de quase-morte (EQM) perderam essa dúvida.

Cético – Essas experiências ditas espirituais estão sendo explicadas pela química do cérebro e ativação de certas áreas cerebrais, quando estimuladas. Não há nada de espiritual nisso.

Místico – Então, tudo isso decorre de uma programação biológica, inclusive a ideia de Deus, que nos faz passar por essa experiência, uma vez ativada por motivos mais diversos. Assim, é de se perguntar: qual a finalidade desse tipo de atividade cerebral como mecanismo de defesa para a sobrevivência do ser humano? Será a ideia de Deus apenas um luxo bioquímico?

Poeta – Deus não é para ser achado. Porque achamos que Deus é isso ou não é aquilo, ficamos na ilusão de O ter achado.

Místico – Deus não é para ser conhecido, nem compreendido, mas experimentado na nossa existência, como o ar que respiramos. É na experiência da desindividualização que presentificamos a Divindade. Deus está, quando não estamos, porque somos a consciência da unidade de todas as coisas.

Quem passou pela experiência mística de Deus, não sabe como explicá-la. Quem não passou, procura explicá-la.

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Cético – Se eu fosse um deus, preferiria os questionadores e não os carolas. Já se diz com propriedade que o Deus em que muita gente acredita é o Deus das lacunas. Richard Dawkins comparou a crença em Deus a um vírus psíquico.

Místico – A ideia de Deus não resulta das lacunas, mas dos detalhes do conhecimento. Quanto mais a pesquisa se aprofunda nos detalhes, mais evidente se torna estruturas da realidade que dificilmente se pode explicar pelo acaso.

A descrença é também um vírus psíquico, porém de limitada capacidade de proliferação.

Filosofo – A ideia de Deus é apenas uma ideia e não importa no conhecimento de Deus. Por isso, Nicolau de Cusa assinalava que o conhecimento é a “douta ignorância”, porque consiste na consciência do limite do nosso pensamento, reconhecendo que Deus está acima da capacidade cognitiva do homem.

Cético – Logo, estão equivocados aqueles que afirmam que conhecem Deus, que falaram ou ainda falam com Deus.

Místico – Concordo. O mesmo afirmou Hamza Fansûr: “Ninguém vê Deus, a não ser Deus”.

Teólogo – A ideia de Deus aparecer às suas criaturas para que elas creiam nele é

lamentavelmente infantil. É o mesmo que se argumentar: mostre um átomo e eu acreditarei na existência dele. O que não é percebido não é prova de sua inexistência.

Cético – No entanto, conforme o relato bíblico, Moisés teve um encontro com Iavé e dele recebeu, pessoalmente, o Decálogo, gravado em pedra.

Filósofo – Ou se trata de uma metáfora ou de uma experiência alucinatória de Moisés.

Cético – Quando alguém diz que viu Deus, falou com Ele, é o seu enviado, por certo,

alucinou ou está enganando as pessoas crédulas, que constituem a maioria da humanidade. Místico – Deus não se faz pessoa para lidar com os seres humanos, mas estes fazem-

no pessoa para se sentirem em contato com Ele.

Poeta – Deus é luz e sombra. A Sua sombra protege os homens. Somente os iluminados

ousam contemplar a luz de Deus.

Místico – As pessoas que passaram por uma experiência transcendental ficaram convictas da existência de Deus. Até mesmo aquelas que, antes, eram ateias.

Teólogo – Sim. Essa experiência reforça a fé das pessoas crentes e destrói o ateísmo

das que eram, até então, materialistas, céticas. É uma “prova” da existência de Deus, mas não do conhecimento de Deus.

Místico – Exato. Mas isso lhes basta. E é algo importante para as suas vidas. Para Mestre Eckhart, algumas pessoas desejam ver a Deus com seus olhos assim como vêem uma

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vaca, e amá-Lo como amam suas vacas — pelo leite, pelo queijo e pelo lucro que lhes traz. Isto acontece com pessoas que amam a Deus visando à riqueza externa e ao conforto interno. E indagava: por que tagarelar tanto a respeito de Deus, se tudo o que d’Ele se disser é mentira?

Dionísio, o Areopagita, ensinava que, para se alcançar uma união completa com Deus, deve-se abandonar toda e qualquer concepção de Deus. É o que se conhece pelo nome de teologia negativa.

Cético – A nossa limitação cognitiva não é prova de que Deus existe. Deus existirá enquanto existir a humanidade. Ele não é criador, mas criatura.

Teólogo – Deus não é o reflexo das nossas necessidades, mas Ele é percebido segundo as nossas necessidades. Ele não é como O compreendemos, mas, para nós, é como O compreendemos. A compreensão de Deus é a consciência da nossa absoluta incapacidade de compreendê-Lo.

Cético – O que demonstra que Deus é apenas uma resposta às nossas necessidades.

Teólogo – Necessidades reais e não aquelas decorrentes de padrões culturais. Por que os ateus discutem sobre o que não acreditam? Não é isso uma perda de

tempo? Ou discutem porque estão interessados em converter os crentes ao ateísmo? Se assim o for, eles estarão fazendo proselitismo ateu, um processo de catequização em nada diferente da doutrinação religiosa.

Místico – Crer em Deus é afirmar, definitivamente, a nossa fundamental incapacidade de compreendê-Lo.

Cético – Objetivamente, não há qualquer prova da existência de Deus. Como alguém pode conhecer Deus e provar que ele existe?

Místico – Eu não posso conhecer Deus. Ele é quem se faz conhecido a mim na proporção de minhas necessidades.

Deus não é um ídolo para ser adorado, mas uma experiência a ser vivida. Ele não é algo a que se socorre, mas o sentimento de plenitude que nos ocorre em momentos especiais de nossa vida. Não é algo dentro ou fora de nós, mas a totalidade que nada exclui e tudo inclui. Cada ser é a presença setorizada de Deus.

Cético – Se assim é, a ideia de Deus depende da medida cognitiva de cada pessoa. Portanto, o que ele é depende da subjetividade de cada pessoa.

Místico – Sim. Ninguém conhece Deus objetivamente. Ele não é objeto, mas o sujeito em todas as relações com Ele mesmo.

Podemos, objetivamente, medir uma mesma ideia em pessoas diferentes?

Filósofo – Mas, ele pode ser observado na condição de fenômenos da natureza.

Místico – Por que eu trocaria o encantamento de Deus pela gelidez da dúvida, pela estreiteza circular da lógica, pelo reducionismo do método científico e pelas sandices da teologia salvacionista?

Poeta – Os ébrios de Deus jamais se curam. Os salvadores

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são as muletas dos abstêmios de Deus.

Cético – Poetas e místicos encantam, mas a razão nos desencanta. Deus é apenas um sonho contagioso.

Cientista – Essa não é a opinião de Descartes. Disse ele: “Pode parecer surpreendente haver mais pensamentos profundos nos escritos poéticos do que nos filosóficos. O motivo é que os poetas escrevem sob a influência do entusiasmo e da força da imaginação. Existem em nós sementes de ciência como em um sílex sementes de fogo; os filósofos as extraem pela razão, os poetas as arrancam pela imaginação; elas brilham então ainda mais”.

Erwin Laszlo foi mais incisivo: “O universo é muito mais complexo do que qualquer pessoa – exceto os poetas e os místicos – já ousou imaginar”.

Poeta – Quando penso que sou eu, esqueço-me de que sou Deus. Mas, quando me acordo Deus, descubro que nunca fui.

Cético – Quem não gosta de sonhar, principalmente quando o sonho é grandioso! Quem não se comove com os arroubos da imaginação! Reconheço que Deus é um sonho, que dá sentido à vida de muitas pessoas. Mas, Deus pode ser também um pesadelo, quando povoa o imaginário das pessoas com sentimentos de culpa, ameaças de castigo, necessidade de salvação, visões do inferno bem ao gosto do artista Hieronymus Bosch e da Divina Comédia, do poeta Dante Alighieri.

Cientista – Os cientistas também sonham. Algumas descobertas científicas acontece- ram no sonho.

Teólogo – Tenho fé em Deus. É uma fé inquebrantável. Por isso, posso dar-me ao luxo de fazer aos ateus uma aposta. Aposto que Deus existe, porque não se pode fazer a prova de que ele existe ou não existe. Assim, vivo feliz na aposta que é a minha fé.

Outros poderão apostar em contrário, nomeando sua crença de ceticismo, realismo, racionalismo, positivismo, materialismo, etc.

Qual de nós, sem sombra de dúvida, estará vivendo na ilusão? Só o futuro, talvez, dirá. No entanto, se eu perder a aposta, ao menos vivi toda a minha vida numa ilusão feliz. E, se ganhar, já fui feliz antecipadamente e continuarei sendo por toda a eternidade.

Se os meus opositores perderem a aposta, terão sofrido inutil mente por uma ilusão infeliz. E, se ganharem, terão perdido para sempre a única oportunidade de viver com felicidade numa realidade infeliz.

Filósofo – Trata-se de uma aposta metafísica pragmática na qual aquele que aposta em Deus sempre é o vencedor.

Poeta – Somos uma das infinitas versões de Deus. Embora diferentes, todos somos um. Tudo é clone de Deus.

Cético – Deus existe subjetivamente enquanto houver quem acredite nele.

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Teólogo – Deus existe independentemente de nossa subjetividade e ainda se não existíssemos.

Poeta – Deus é o encanto do eterno enquanto, porque nele nada começa e nada finda.

Filósofo – Um Deus, que pode ser explicado, está à altura da cognição humana e, portanto, não é Deus.

Cético – Deus é uma espécie de dopamina, que é liberada nos momentos de crise sobre o significado de sua existência nas pessoas que são predispostas às experiências. Por isso, os ateus não passam por essa experiência.

Místico – Eis um bom motivo para, através da prece, do êxtase natural ou induzido por drogas, possam os crentes obter a experiência de Deus. Isso, porém, não exclui a existência de Deus extra-cérebro.

Cético – Não se pode conhecer o que não é. Se Deus existe, ele é quem ou o quê?

Místico – Deus não é quem. Nem é o quê. Está além da compreensão humana e o vocábulo que o indica não o define. Ele é o agente de tudo. É a realidade em ação.

Cientista – O que ou o quem é uma questão metafísica, porque extrapola o domínio cognitivo da ciência.

O mal de tudo isso é que crentes e ateus polemizam sobre a existência de um Deus pessoal, em vez de um ser impessoal, desprovido de atributos humanos.

Cético – Todas as “provas” da existência de Deus são irremediavelmente contaminadas de antropomorfismo, projetando sobre ele os conceitos humanos de amor, bondade, justiça, inteligência, perfeição, vontade, ação e até emoção.

Filósofo – Para os crentes, Deus é um axioma, não um postulado. Deus é uma hipótese que não pode ser confirmada experimentalmente, porque não é

passível de observação, previsão e controle.

Cético – A religião pode utilizar-se da lógica para sustentáculo de um sofisma. Por exemplo: os missionários cristãos no Novo Mundo batizavam os bebês indígenas e, em seguida, os matavam para que eles fossem para o Céu. Eram piedosos fazedores de anjos.

Cientista – Embora não seja filósofo, estou de acordo com a opinião Kant ao refutar as provas a priori e a posteriori de Deus, argumentando que ele está além da experiência, do universo fenomênico, porque este é o limite do conhecimento humano. Logo, a razão é incompetente para provar a existência ou a inexistência de Deus. Somente a fé, a que Kant denominou de razão prática, pode conhecê-lo.

Poeta – Deus é o que nos acontece quando perdemos a noção de nós mesmos.

Místico – Quem se perde de si, encontra Deus.

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Cético – Isso não passa de alienação.

Filósofo – De um modo ou de outro, somos alienados. O homem normal não passa de

um mito. A normalidade é um critério estatístico e varia segundo os padrões de cada cultura.

Místico – Deus é uma intuição do homem, mas que está acima de sua compreensão. Basta-nos somente o sentimento de sua invisível presença.

Deus, para mim, é o melhor que eu posso conceber. E embora saiba que Deus não é isso, isso, porém, me basta.

Poeta – Deus não é o que pensamos, mas quando não O pensamos.

Místico – Deus não é o que pensamos, mas pensar em Deus é, para nós, uma necessidade. O pensamento sobre Deus é o nosso mais elevado ícone. O nosso ópio é confundirmos Deus com os seus ícones, sejam eles materiais ou psíquicos. Tudo o que pen -sarmos sobre Deus não passará do que pensamos sobre Deus, e não Deus. O que pensamos sobre Deus é o que nos afeta. Pensar sobre Deus é reduzi -lo ao tamanho de quem n’Ele pensa.

Cético – Se eu fosse um deus, preferiria os questionadores e não os carolas. Já se diz com propriedade que o Deus em que muita gente acre dita é o Deus das lacunas. Richard Dawkins comparou a crença em Deus a um vírus psíquico.

Místico – A ideia de Deus não resulta das lacunas, mas dos detalhes do conhecimento. Quanto mais a pesquisa se aprofunda nos detalhes, mais evidente se torna estruturas da realidade que dificilmente se pode explicar pelo acaso. A descrença é também um vírus psíquico, porém de limitada capacidade de proliferação.

Filosofo – A ideia de Deus é apenas uma ideia e não importa no conhecimento de Deus. Por isso, Nicolau de Cusa assinalava que o conhecimento é a “douta ignorância”, porque consiste na consciência do limite do nosso pensamento, reconhecendo que Deus está acima da capacidade cognitiva do homem.

Teólogo – A fé é a certeza sem prova e até mesmo contra todas as provas. É a confiança na existência daquilo que não se vê. Ter fé é apostar no que nos parece impossível. A fé é a certeza que não depende da razão ou da comprovação experimental.

Tomás de Aquino asseverava que o homem nada pode fazer para ter fé. A fé é uma dádiva, pois se origina da graça divina.

Kierkegaard definiu a fé como "a mais elevada paixão de qualquer homem."

Filósofo – A crença é postulado intelectual. A fé é ação volitiva, que, em momentos de intensa emoção, pode realizar prodígios.

Místico – A fé não diz respeito às coisas possíveis, mas às que parecem impossíveis. Para Roger Garaudy, fé começa onde a razão vacila ou se detém.

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Filósofo – A fé não é a afirmação do absurdo, mas a conscientização de que o absurdo

é não ter fé. Crer é uma atitude espontânea como o ato de respirar. Ninguém é obrigado a crer e,

se crê por obrigação, na verdade não crê.

Teólogo – Se não acreditarmos em Deus e não O temermos, faremos tudo o que quisermos, o que tornará impossível a vida em sociedade. As leis humanas não são suficientes para controlar as pessoas. Elas só serão contidas pela força de líderes poderosos que as obriguem a cumprir as leis, ou impor-lhes suas próprias leis.

Místico – Deus não “precisa” que acreditemos nele. O problema é nosso. As pessoas podem ser felizes acreditando ou não acreditando em Deus.

Cético – A fé em Deus te permite conhecê-lo melhor?

Místico – Tenho mais fé em Deus quanto menos O entendo. Eu creio em um Deus que jamais conhecerei. A minha fé consiste em jamais cometer a heresia de querer compreendê-Lo. Tudo o que posso fazer é cada vez mais presentificá-Lo em mim. Nada sei o que Ele é, mas, a cada dia, sei mais que Ele é.

Cético – Se não podes compreender Deus, por que crês nele?

Místico – O fato de não compreendermos uma pessoa não nos impede de confiarmos

nela.

Filósofo – O importante é viver além da crença e da descrença. É saborear o essencial mistério da vida. Porque a lógica não passa de um jogo que o homem inventou e depois acreditou que era a própria verdade.

A ciência tem um dogma ou axioma: o de que a razão, utilizando a metodologia científica, poderá, um dia, conhecer integralmente a realidade, podendo assim controlá-la e modificá-la. A razão é um Deus emergente que, na aparente caoticidade da natureza, procura descobrir leis ou inventá-las. A fé descobriu Deus, e a razão quer se fazer um deus.

Místico – A fé é a maior aventura existencial. Para os fracos, ela constitui abrigo, segurança. Para os fortes, é uma aposta, uma aventura arrojada, um mergulho no Desconhecido. A fé do fraco é acomodação às circunstâncias, sujeição ao que se julga imutá-vel. A do forte é a certeza da superação de todas as circunstâncias, de algo maior do que as limitações do presente, a antecipação de um futuro aparentemente improvável. Não há uma razão para a fé: ela é a sua própria razão. A fé o recurso extraordinário para resolver problemas que a razão não consegue.

Se fôssemos absolutamente racionais, ficaríamos praticamente imobilizados. Teríamos, a cada momento, de analisar todas as probabilidades referentes ao nosso próximo ato. E a cada momento decidir quais as mais prováveis de acontecer e, entre estas, aquela que seria a melhor para nós.

Crer é uma atitude receptiva. A crença facilita a interação com o objeto em que se crê. A descrença ou a indiferença elimina a interação, porque não há com o que interagir. Nem tudo o que se crê, existe. Mas, se existe, a crença facilita e estabelece a interação. A crença, assim, é prontidão psíquica, estado receptivo que só funciona quando há algo com que interagir.

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Cético – Para a maioria dos crentes, fé e superstição se confundem. Atletas e dirigentes de clubes esportivos, por exemplo, fazem promessas a santos e orixás para que lhes dê a vitória nos jogos que disputam com seus adversários. Quando vencem atribuem a Deus a vitória e lhe mostram gratidão.

Cientista – Tudo o que desejamos, existe em potencial. Mas, somente a fé pode colapsar essa potencialidade. Daí, as misteriosas palavras atribuídas a Jesus: “Pedi, e recebereis”. A realidade ou Deus tem todas as respostas. Mas, é preciso saber perguntar.

Em analogia com a Física Quântica, podemos postular que a fé colapsa a probabilidade que uma pessoa intensamente desejava, mesmo quando esse evento parecia impossível.

O homem é um criador de fatos, sejam eles sociais ou físicos. Porém, para a realização de certos fatos, não é necessária apenas a vontade, mas a fé. Nesse caso, não basta querer, mas acreditar no que se quer. A fé é o exagero da vontade.

Místico – A fé, e não a razão, é o artífice do nosso destino. A fé cria suas próprias razões. E a razão se faz sua própria fé.

Vivemos ou morremos pela força do que cremos. A nossa vida é consequência do que cremos.

Teólogo – A fé provoca a resposta do nosso Deus imanente. Assim, se entende a recomendação de Jesus: “Tudo é possível àquele que crê.”

Daí, a necessidade da fé como uma força capaz de produzir prodígios. A razão, sob esse aspecto, é estéril. Ela só sabe lidar com o conhecido.

Místico – Então, podemos substituir a expressão “Pai nosso que estais no Céu” por “Deus nosso que estais em nós”. Quanto mais temos fé, maior é a ação do nosso Deus imanente.

Cético – Há os que fazem da fé a razão de sua vida...

Místico – E também os que fazem da razão a fé de sua vida. Alguns dos que pensam de um modo ou de outro se tornam fanáticos resistentes a alegações em contrário.

Cético – Mas foi a razão que impulsionou a ciência e a tecnologia.

Cientista – A fé não se resume estritamente ao domínio da religião. Invenções e descobertas se originaram na fé de cientistas criativos em suas ideias, algumas das quais rejeitadas pela comunidade científica por parecerem improváveis ou malucas.

Místico – A fé baseada no testemunho alheio, por maior que seja a autoridade da testemunha, não tem a força da fé de quem testemunhou o que julgou ser um milagre. Uma única experiência do transcendental pode durar a vida inteira e contagiar a posteridade por tempo indeterminado. Mas a sua continuidade necessita de uma nova intervenção do insólito.

Teólogo – A fé, não o fanatismo, faz bem a saúde. As pessoas que têm fé suportam melhor as agruras da vida.

Cético – A fé é um placebo, um psicotrópico. Não resolve o problema existencial do ser humano.

Poeta – A crença é a ilusão, que nos sustenta no mundo

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e sustenta o próprio mundo. Tudo é um ato de fé. E a fé, que tudo sustenta, é também insustentável alicerce assentado sobre o solo do vazio. Onde está o chão do mundo? Místico – A fé me faz feliz. Pouco me importa que ela seja uma ilusão. Nem sempre a

razão está certa. Há pessoas que buscam ser felizes na ingestão de bebidas alcoólicas e no consumo de drogas estupefacientes. É uma felicidade química e transitória, não uma felicidade real e permanente.

Cético – Não há uma fé inabalável. Alguns místicos, em certos momentos, vacilaram em sua fé.

Teólogo – Em certas circunstâncias, duvidar é pôr à prova a sua fé. Não foram poucos os místicos que experimentaram momentos de dúvida, estado psicológico a que João da Cruz deu o nome de “noite escura da alma”. Do mesmo modo, houve descrentes que, em algum momento de suas vidas, experimentaram vacilação em sua dúvida.

Místico – A “noite escura da alma” resulta da relutância de certos místicos em aceitar a dúvida em sua fé. Por isso, quando passam por essa experiência, buscam angustiadamente recuperar a fé abalada ou mesmo perdida.

Para Miguel Unamuno, “uma fé que não duvida, é uma fé morta”. Teólogo – A razão não se arrisca. A essência da fé é o risco. Já advertia Kierkegaard:

“Sem risco não há fé e quanto maior o risco tanto maior a fé”.

Filósofo – O mesmo se pode dizer do ateu convicto, quando sua certeza, então inabalável, sofre um colapso por uma experiência mística esmagadora. Só que existe uma diferença: o místico recupera a sua fé e o ateu nem sempre restabelece sua certeza.

Cético – Há, no entanto, crentes que se tornam materialistas.

Teólogo – Concordo. Porém nunca soube da existência de um místico que se converteu ao materialismo. Isso acontece com religiosos que não são místicos.

Místico – Deus imanente em nós só age quando provocado. A fé é a maior provocação. Daí, a velha expressão: “Ajuda-te e os céus te ajudarão”. O Deus imanente de cada um agirá à altura da provocação ou fé.

Cético – A fé pode resultar da observação de um fato insólito, i nterpretado

equivocadamente como um milagre.

Místico – A fé não necessita do milagre. Se necessitasse, não seria fé. Para Alan Watts, a fé é “um mergulho no desconhecido”.

Cético – A dúvida e não a fé é que vem concorrendo para o aumento do

conhecimento. Quem livre pensa, duvida, embora entretenha provisórias certezas. Quando se crê firmemente em algo, fica-se cego para tudo o mais que não lhe diga

respeito.

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Místico – A fé é conhecimento sem necessidade de prova, e é também ação da

vontade, que pode produzir fatos que pareciam impossíveis e a realização destes fatos são considerados pela religião como milagres.

Teólogo – A fé é uma intuição transcendental. Daí, a afirmação de Blaise Pascal: “É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão”.

Filósofo – O paradoxo aterroriza as pessoas que são irredutivelmente racionais. Do mesmo modo pensava Aldous Huxley: “Um excesso de coerência é tão nocivo para

o espírito quanto o é para o corpo. A coerência é contrária à natureza, contrária à vida.”

Cientista – Podemos acreditar na possibilidade de estarmos certos em determinadas circunstâncias, embora também estejamos advertidos de que não há garantia absoluta para as nossas certezas por mais verossímeis que pareçam.

Cético – Os crentes temem duvidar. A fé é o sustentáculo de sua vida e Deus, o seu último refúgio.

A crença em Deus funciona como um placebo. Ela ajuda as pessoas a enfrentar estoicamente os problemas da vida, principalmente entre as pessoas pobres.

Poeta – A dúvida é forte como a fé e se sustenta no seu próprio vácuo.

Místico – O placebo é a fé profana. Corpo e mente necessitam de placebos para

suportar as dores e os males da existência.

Filósofo – A dúvida não é a afirmação de que tudo é incerto, pois isso seria negação da dúvida. Quando perdemos todas as certezas é que ficamos certos de que nada perdemos. A incerteza gera muitas possibilidades. A certeza, apenas uma.

Cético – O dogma é o cansaço da razão. O homem que não duvida, cansou de crescer. Filósofo – Devemos, também, duvidar da razão. A dúvida é a fé de que há algo mais além do que se crê. E a fé é a dúvida de que todo real é só o que conhecemos.

Duvidamos para pensar. Acreditamos para agir. A convicção que surge da dúvida é tão forte quanto a fé de quem nunca duvidou.

A dúvida nos mantém alerta. A certeza pode ter o efeito embriagante de um psicotrópico ou o efeito paralisante de uma anestesia.

A dúvida metódica admite provisórias certezas. A dúvida sistemática é tão infértil quanto a certeza inabalável.

A dúvida é a admissão da possibilidade de erro em cada situação do nosso agir. Por isso, é importante agir, pois é possível que estejamos certos ou que as coisas aconteçam como queremos em consequência do nosso agir. Se duvidássemos da certeza de nossa ação, ficaríamos privados de qualquer tipo de atividade.

Se tudo muda, a certeza é para o momento que passa e não constitui garantia para o futuro. No entanto, a permanente dúvida sobre tudo inibe qualquer atividade.

A dúvida, se não for criativa, nada aproveita ao enriquecimento do saber. A dúvida deve ser razoável. O exagero da dúvida pode levar ao niilismo. Quem diz duvidar de tudo, deve, por coerência, duvidar da sua dúvida. E de outras

afirmações tais como: Deus não existe, o homem não sobrevive à morte.

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Cético – Devemos duvidar de tudo, porque não temos certeza de nada.

Cientista – Se não temos certeza de nada, como podemos afirmar ou negar qualquer coisa? O que temos são opiniões ou crenças às quais damos o nome de conhecimento porque nos parecem verdadeiras e, por isso, orientamos nossa vida em razão delas.

Cético – Admiro o que ensinou Buda, como o faria um cético: “Não acrediteis numa coisa apenas por ouvir dizer. Não acrediteis na fé das tradições só porque foram transmitidas por longas gerações. Não acrediteis numa coisa só porque é dita e repetida por muita gente. Não acrediteis numa coisa só pelo testemunho de um sábio antigo. Não acrediteis numa coisa só porque as probabilidades a favorecem ou porque um longo hábito vos leva a tê-la por verdadeira. Não acrediteis no que imaginastes, pensando que um ser superior a revelou. Não acrediteis em coisa alguma apenas pela autoridade dos mais velhos ou dos vossos instrutores. Mas, aquilo que por vós mesmo experimentastes, provastes e reconhecestes verdadeiro, aquilo que corresponde ao vosso bem e ao bem dos outros - isso deveis aceitar e por isso moldar a vossa conduta.”

Filósofo – Roger Bacon argumentava que a fé, por si só, não é suficiente para compreender a natureza das coisas. Nem também a razão. Por isso, se faz necessária a experiência para verificar e confirmar os dados da fé e da razão.

Místico – A razão nem sempre está certa. Por isso, Blaise Pascal advertiu: “Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.”

Poeta – Procuramos Deus no Cosmos. Procuramos Deus no átomo. Onde o Seu esconderijo?

Místico – No coração de quem nele crê.

Poeta – Quando não buscamos Deus, Ele surge à nossa porta.

Cientista – Se Deus é a experiência humana que está acima da própria razão, tudo o que for dito sobre Ele é o que o homem pensa como consequência desta experiência.

Místico – Deus é o atrator supremo do universo. Por isso, o homem se sente atraído em direção a algo que é maior do que ele, embora nunca saiba o que é. O teotropismo é uma inclinação inata no ser humano.

Cético – Só há a realidade objetiva. Deus é uma experiência subjetiva e, portanto, segundo a necessidade de cada pessoa.

Místico – Deus é a única realidade objetiva. Tudo o mais não passa de Sua subjetividade.

Tudo o que falarmos a respeito de Deus é mais uma história a respeito de Deus, mas não é Deus. No entanto, é uma história que, enquanto responder às nossas necessidades metafísicas, se constituirá em referencial e significado para a nossa existência.

Deus é o fogo que aquece e queima. É a água que nos sacia e nos afoga. Mas, é preciso lembrar que a luz que ilumina também ofusca. São necessários olhos

especiais para encarar, com proveito, a luz e a escuridão de Deus. Deus é como a luz. Para vê-

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Lo, é preciso reduzir a intensidade de Sua presença à limitada capacidade de nossa visão e compreensão.

Teólogo – Deus é explicação para tudo, exceto para Ele próprio. Ele é a explicação para tudo o que não compreendemos.

Deus não é um conceito, mas uma experiência humana impossível de ser conceituada.

Místico – Deus, para nós, não é só o supremo mistério, mas também o paradoxo e o caos que inutilmente procuramos dar sentido, organização e lógica.

Poeta – Deus é a perda da identidade. É o momento sem memória, atemporal. Quem retorna de Deus, não tem nada a dizer. Apenas sabe que foi Deus. E que continua sendo.

Cético – Se pouco sabemos sobre nós mesmos, como poderemos explicar o que excede a nossa capacidade cognitiva? A teologia é uma mitologia que obteve credibilidade pela sedução de seu imaginário. Apesar de, em alguns casos, ser um placebo para a angústia metafísica do ser humano, ela também produz efeitos colaterais que podem agravar as condições existenciais, produzindo as mais variadas sintomatologias como medo, ansiedade, fanatismo, sentimentos de culpa, busca de salvação e outras coisas mais.

Filósofo – A consciência, cada vez mais aguda, da nossa ilimitada ignorância, resulta em um encantamento sempre maior pelo mistério da vida. E esse mistério é o Deus daqueles que não acreditam nas teologias, porém respeitam todas elas.

Místico – Um Deus explicado é um Deus complicado. Cada explicação é uma nova complicação.

Filósofo – Deus é o modo como cada pessoa e cada religião concebem a Divindade ou o Todo. Por isso, as concepções sobre Deus são necessariamente contraditórias. Podemos, por isso, fazer as mais diversas conjecturas sobre Deus, conscientes de que nenhuma delas é concludente, exaustiva, verdadeira, embora seja uma convicção inabalável para aqueles que nele crêem.

Místico – Deus é a projeção do que há de melhor em cada pessoa. Mas, justamente por ser imanente ao homem, é que Deus pode ser projetado. Assim, ele não é uma simples criação psicológica, mas uma realidade ínsita ao ser humano, que também se manifesta pelo mecanismo de projeção. Esta projeção ou representação da Divindade, porém, está condicionada às necessidades e ao tipo de personalidade de cada indivíduo, assim como de sua crença ou modelo religioso. Por isso, os “atributos” de Deus são, na verdade, atributos do homem, assim como a luz se apresenta, com cores diferentes segundo o tipo de objeto com o qual interage.

Cético – Mas Deus também pode ser uma projeção do que há de pior no ser humano. Daí, a crença em um Deus vingador, punidor, malévolo, aterrador, que gosta de ser adorado, glorificado e que exige que as pessoas se humilhem para satisfazer seu orgulho.

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Cientista – Por isso, Einstein dizia: “Não posso imaginar um Deus a recompensar e a castigar o objeto de sua criação.”

Cético – Deus é o nome pelo qual designamos tudo o que não sabemos e é também uma explicação para tudo o que não compreendemos.

O que não sabemos explicar, explica a existência de Deus? Se assim for, enquanto não explicarmos tudo, Deus existirá. Se, um dia, o ser humano explicar tudo, a ideia de Deus, definitivamente, desaparecerá.

Cientista – É uma especulação descabida. A ciência nunca explicará o que está fora do seu alcance. Não me parece razoável ir ao extremo reducionismo, alegando que tudo o que existe foi o resultado de uma feliz combinação de partículas elementares.

Teólogo – Todos somos teocêntricos. Estamos sempre em busca de Deus. Por isso, concordo com o que escreveu Deepak Chopra: “Deus para nós não é uma escolha, mas uma necessidade”.

Cético – Eu não sinto essa necessidade.

Teólogo – Para alguns, essa necessidade latente em cada ser humano, só é acessada nos momentos de extrema aflição em suas vidas.

Místico – A busca de Deus é desnecessária. Fazemos parte d’Ele e d’Ele só conhecemos o que os sentidos e a razão podem inferir.

Poeta – Deus se deixa encontrar a cada instante, sem ser chamado, sem ser procurado, nos terrenos mais férteis ou mais sáfaros, em meio à oração ou à heresia, sem encontro marcado e em qualquer parte.

Filósofo – Ou seja, usando de uma metáfora: como a onda pretende encontrar o mar se ela faz parte do mar?

Um Deus concebido e compreendido é apenas um Deus humanizado e feito na medida de nossas carências.

Cético – Por não aceitarem essas especulações metafísicas e poéticas, os ateus negam

a existência de Deus.

Poeta – Deus é o sono de quem não mais se acorda. O impossível retorno de quem partiu e esqueceu o endereço do corpo. Deus é luz tão intensa que se torna escuridão, porque os olhos cegaram. Deus é a morte afinal que ressuscita no vivo o que nunca vivo foi, porque latente no corpo como se nunca existisse.

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AÇÃO DE DEUS NO MUNDO

Teólogo – Deus age constantemente no mundo, de forma imperceptível. Por isso,

rarissimamente, Ele intervém no universo e em nossas vidas de forma ostensiva, produzindo fenômenos insólitos. Deus é o provedor de tudo. Jesus pregava a providência di vina. “Olhai as aves do céu..” “Olhai os lírios do campos...”

Cético – A crença na providência divina pode levar o homem ao quietismo, à inação, ao laissez-faire metafísico.

Concordo com o que disse Ludwig Feuerbach: “Deixar tudo como está é a consequência necessária da crença em um Deus que governa o mundo e que tudo existe e acontece pela vontade D’Ele.”

E afirmou ainda: “Quem se abandona à plenipotência divina, quem crê que tudo acontece e existe pela vontade de Deus, nunca irá meditar sobre os meios de se acabarem os males do mundo.”

A respeito disso já dizia Albert Einstein: “Não aceito um Deus que se preocupe com as nossas necessidades pessoais.”

Místico – Por que Deus se preocuparia? Nós somos Ele. Por que o mar se preocuparia com as ondas. As ondas são o mar.

Cético – Se Deus não é matéria, como pode ele agir sobre a matéria? Como o que é

imaterial tem ação sobre a matéria?

Místico – E por que não? Se Deus e a matéria fossem separados, Deus não seria tudo. Seu raciocínio está viciado pela crença de muitos teólogos e místicos de que a matéria é má, de que o corpo é a prisão do espírito.

Cientista – É o mesmo que indagar como a mente age sobre o organismo, como os pensamentos influem sobre os processos biológicos, como os distúrbios orgânicos afetam o nosso modo de pensar.

As pesquisas parapsicológicas têm demonstrado que a mente, em certas circunstâncias, age sobre a matéria. Essa relação mente-matéria é denominada psicocinesia. O problema é como a mente age sobre o mundo exterior.

Filósofo – Se a matéria, tal como a concebemos, não existe, Deus não age sobre ela, mas sobre si mesmo.

Teólogo – Geulincx e Malebranche sustentaram que inexiste comunicação entre a matéria e o espírito e que essa relação se dá por um milagre contínuo de Deus. Sua concepção, denominada de "ocasionalismo", ensina que tudo o que ocorre no universo é uma "ocasião" de Deus e, por isso, somos apenas meros espectadores da intervenção divina. Assim, não pensamos e nem e nem agimos: Deus é que pensa e age por nós. Somos apenas veículos da ação divina e todos os movimentos entre o espírito e a matéria ocorrem não por causalidade, mas por sincronicidade.

Malebranche afirmava que Deus contém em Si mesmo todas as ideias como arquétipos das coisas e todo acontecimento do universo resulta de sua ação direta.

Cientista – Ian G. Barbour explicou a ação de Deus no universo: “Deus interage reciprocamente com o mundo; influencia todos os eventos, mas não é causa exclusiva de nenhum. A metafísica de processo entende cada novo evento como produto conjunto do

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passado daquela entidade, de sua própria ação e da ação de Deus. Aqui, embora transcenda o mundo, Deus é imanente ao mundo de um modo específico na produção de cada evento. Não há uma sucessão de eventos puramente naturais, interrompida por lacunas onde somente Deus opera.”

Místico – Se algumas pessoas podem agir psiquicamente sobre a matéria, em níveis macrocósmico e microcósmico, como demonstram as pesquisas parapsicológicas, por que Deus não o poderia fazer? Afinal, a mente e Deus são imateriais.

Cético – A igreja, por não saber a causa de fenômenos insólitos, denomina-os de milagres.

Para que Deus faz milagre? Para convencer certas pessoas de sua existência? Por que ele não realiza esses prodígios para todas as demais criaturas? Por que esse exibicionismo de poder?

Concordo com o que disse Goethe: “As pessoas felizes não acreditam em milagres”.

Filósofo – É uma afirmação equivocada. Há pessoas felizes que acreditam em milagres. E também as infelizes.

Cético – George Bernard Shaw foi contundente: “O fato de um crente ser mais feliz do que um cético não quer dizer muito mais que o fato de um homem bêbado ser mais feliz do que um sóbrio”.

Filósofo – Se assim o fosse, os ateus seriam infelizes e os crentes, felizes.

Teólogo – Deus sempre nos surpreende. E a esses acontecimentos inusitados que a

ciência dá o nome de anomalias são classificados, pela religião, de milagres, porque revelam a ação de Deus no mundo.

Cientista – Muitos desses pretensos milagres já foram explicados pela ciência.

Teólogo – Nem tudo, evidentemente, é milagre. Fatos anômalos impressionam os crentes e lhe dão a convicção de Deus está falando alto aos homens surdos.

Místico – O milagre não vem de Deus, mas da fé das pessoas que acreditam n’Ele. A fé é o momento de abertura que nos coloca em relação com Deus interior ou imanente. Quem não tem fé, jamais experimentará o milagre. Nosso Deus imanente está sempre disponível para nós. Nós, no entanto, raramente nos dispomos para Ele.

Deus transcendente não faz milagre. É o ser humano que realiza coisas milagrosas com o poder de sua fé. Nesse caso, o milagre é um acontecimento que está além da capacidade humana em seu estado normal e em nível consciente. Daí, a afirmação de Jesus: ”Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Move-te daqui para acolá, e ele se moverá. Nada vos será impossível.”

Jesus jamais afirmou que Ele ou Deus curou alguém. Quando o fazia, dizia ao beneficia- do: vai, tua fé te curou.

Teólogo – Tomás de Aquino proclamou a existência a existência de milagres e assegurava que os demônios também podiam realizá-los para enganar os gentios. Foi ele quem elaborou a doutrina do íncubo e do súcubo.

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Cientista – Temos de reconhecer que a Igreja Católica tem sido cautelosa em relação aos fenômenos paranormais. As estigmatizações, por exemplo. A Igreja, oficialmente, aceita apenas, até agora, as de Francisco de Assis.

Os crentes e os estigmatizados proclamam que se trata de um milagre. Os céticos estão convictos de que tudo não passa de fraude, porque muitas de tais estigmatizações foram comprovadamente fraudulentas. Mas, como se tem constatado a ação da mente sobre o organismo, é admissível a hipótese de que um estado emocional intensificado, ou auto-hipnose, explique esse “milagre”.

Filósofo – Não conhecemos todas as leis da natureza para afirmarmos que um acontecimento insólito, denominado pelos crentes como milagre, é uma derrogação dessas leis.

Cético – Para muitos teólogos, o milagre revela a existência de Deus. É um argumento frágil, porque cada milagre, ao ser explicado pela ciência, dispensa a existência de Deus. Onde houver ignorantes, milagres existirão.

Cientista – Então, o que é um milagre? É Deus infringindo suas próprias leis?

Teólogo – Deus não está submetido às leis que criou. O milagre é uma prova disso. Ele revela o poder de Deus e a Sua liberdade absoluta.

Cético – Se Deus, em sua onisciência, fez as leis da natureza, por que ele as contraria?

Se elas são derrogadas, é porque não eram perfeitas, o que demonstra que Deus não é perfeito nem onisciente. Mas, se assim procede, porque quer, para demonstrar a sua onipotência, mediante os milagres, então dá um péssimo exemplo à humanidade, j ustificando os atos das pessoas que não cumprem as leis. A ciência, um dia, explicará cada milagre. É só uma questão de tempo.

Cientista – A ciência não é capaz de desvendar todos os mistérios da natureza. É um exagero pensar assim. É uma demonstração descabida de fé na ciência.

A ficção científica é uma fé especulativa. A hipótese, a certeza provisória. O seu método é o ritual para facilitar o “milagre” dos inventos e das descobertas.

O deus da ciência é o cosmos eterno e infinito, do qual os mundos são suas criações contínuas e provisórias.

Místico – Jesus afirmou que todos nós somos deuses. Então, todos nós somos capazes de fazer “milagres”. Se todos somos um, cada um de nós poderá realizar prodígios, utilizando o nosso potencial a que damos o nome de Deus imanente.

ANTROPOMORFISMO

Cético – Todas as “provas” da existência de Deus são irremediavelmente contaminadas de antropomorfismo, projetando sobre ele os conceitos humanos de amor, bondade, justiça, inteligência, perfeição, vontade, ação e até emoção. É sobre esse Deus que desejo discutir, porque ele é assim apresentado pela religião.

Teólogo – Deus criou o mundo e nos fez à Sua imagem e semelhança. Portanto, a espécie humana tem a mesma natureza de Deus.

Místico – Tudo o que existe tem a natureza de Deus e não apenas os seres humanos. Deus é a essência de tudo.

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Cético – A concepção antropomórfica da Divindade suscitou difi culdades

intransponíveis ou aporias. Xenófanes, o primeiro filósofo que combateu o antropomorfismo, argumentava: “Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos e os bois semelhantes aos bois, cada (espécie animal) representando a sua própria forma."

Montesquieu asseverava que se os triângulos tivessem um deus, ele teria três lados. Espinosa combateu o antropomorfismo, asseverando que Deus não está sujeito a

paixões e, assim, não ama e nem odeia, pois a paixão é uma afecção inerente ao corpo. Se os animais acreditassem em um deus à sua imagem e semelhança e praticassem

teologia, o predador diria que seu deus é bom e a presa procuraria explicação para a maldade de seu deus.

Epicuro argumentava: "Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que do mesmo modo é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que os não impede?"

E Lactâncio aduzia: Deus sabe que o mal existe, pode suprimi-lo e não quer fazê-lo: tal Deus seria mau, logo inadmissível. Deus sabe que o mal existe, quer impedi-lo e não o pode: neste caso não seria onipotente, logo inadmissível. Deus ignora que o mal existe, donde Deus ininteligente e, portanto, também inadmissível.”

Eu jamais acreditarei em um Deus, na forma em que ele é apresentado pelas religiões. É um Deus mirim e imaturo que apenas impressiona as pessoas ingênuas.

Feuerbach via a ideia de Deus como mera projeção das necessidades emocionais do homem. E argumentava que Deus é "a ânsia de felicidade do homem satisfeita na fantasia" e “portanto essencialmente um ser que realiza os desejos do homem."

Deus é uma necessidade psicológica do ser humano. Carl Sagan foi incisivo: “A ideia de que Deus é um gigante barbudo de pele branca

sentado no céu é ridícula. Mas se, com esse conceito, você se referir a um conjunto de leis físicas que regem o Universo, então claramente existe um Deus. Só que Ele é emocionalmente frustrante: afinal, não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade!”

Poeta – No princípio, era o Homem. E ele fez o mundo à sua imagem e semelhança com números e palavras. E este foi o primeiro e último dia da Criação, porque os números e as palavras fizeram tudo o mais. Cientista – Palavras e números são invenções humanas e, por isso, inúteis para a

compreensão do real. Filósofo – O Deus teológico é pequeno demais como explicação para o universo. Por

que fizemos de Deus um ser semelhante a nós, pensamos que ele é uma imagem maior do ser humano e, por isso, dotado de seus atributos.

Einstein afirmou categoricamente: “A ideia de um Deus pessoal me é bastante estranha, e me parece até ingênua”.

É fácil ser ateu: basta uma reflexão sobre o Deus formatado pelas religiões.

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Deus não é o ser que idealizamos e antropomorfizamos. Deus é a realidade e, por isso, não tem atributos humanos.

Porque somos partes da realidade, somos seres reais, dotados de atributos resultantes dos nossos padrões e valores culturais e das nossas relações interpessoais.

Deus não é uma pessoa, é a realidade. Por isso, cada ser, seja qual for a sua espécie, percebe a realidade (Deus), segundo a sua estrutura orgânica e, no caso do ser humano, de conformidade com a sua cultura e o seu grau de inteligência.

Poeta – Não me importa provar a existência de Deus. Para mim, ele é poesia. O homem é Deus à procura de si mesmo.

ATRIBUTOS

Cético – A Teologia ensina que Deus é onisciência, onipresença, onipotência, perfeição,

imutabilidade, amor, bondade, misericórdia, justiça. O monoteísmo é a reunião dos deuses mitológicos é um único deus com todos os atributos humanos. É um deus que pode irar-se com as pessoas, castigá-las, condená-las, salvá-las, agradar-se em ser homenageado e mudar a sua vontade, atendendo às súplicas dos crentes.

Místico – Deus é a realidade. E a realidade não tem atributos humanos. Deus não é bom, nem mau, não é justo nem injusto, não se alegra, não se entristece,

não se ofende, não perdoa nem castiga, não é misericordioso, não ama, não odeia. Deus não tem vontade, porque só se quer algo, quando dele se necessita. E Deus de

nada necessita. A vontade é característica dos seres biológicos. Deus também não é o intelecto, como pensava Aristóteles. Ainda a ciência não tem um

conceito firmado sobre o que é a inteligência. Apesar disso, Howard Gardner elaborou a teoria das inteligências múltiplas, rompendo a sua unidade. Será que a inteligência divina está dividida nas mais diversas especialidades. Qual seria o QI de Deus?

Cético – De que vale esse Deus afinal? Dispensá-lo, não nos faz falta alguma?

Místico – De que serve a realidade? Para que servimos nós, seres humanos?

Teólogo – Deus não é humano, mas se fez homem, na pessoa de Jesus, para salvar a humanidade.

Cético – Afinal, Deus, em Jesus, veio salvar-nos de que? Essa história do pecado

original só impressiona as pessoas crédulas. A humanidade continua a mesma.

Místico – Há aqueles que dizem (e talvez acreditem) que são a mais alta manifestação de Deus. É o caso dos avatares indianos.

Cético – Como não podemos fazer tudo, acreditamos em um ser que pode tudo. Como não podemos estar simultaneamente em todas as partes, acreditamos em um ser que é ubíquo.

As pessoas amorosas concebem Deus como um Ser de amor. As rancorosas, como um Ser punidor. As injustiçadas, como um Ser de Justiça. As sofredoras, como um Ser consolador. As que se sentem pecadoras, como um Ser salvador.

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Com o avanço sempre crescente do conhecimento científico e tecnológico, as pessoas se sentem mais desejosas de poder, de estar, embora virtualmente, em todos os lugares e de saber todas as coisas para dominar o universo.

Teólogo – Não temos qualquer evidência de que todas as pessoas pensem assim.

Filósofo – O antropomorfismo consiste na atitude de acreditarmos que Deus é como o representamos e, por isso, ele é dotado de atributos humanos. Deus, sob esse aspecto, é, o que o homem pode pensar de mais elevado sobre si mesmo. Para Espinosa, Deus é a única substância, constituída de atributos infinitos, dos quais só conhecemos dois: o pensamento e a extensão ou matéria. Cada um desses atributos da substância infinita tem uma infinidade de modos finitos. A extensão ou matéria é formada de corpo e pensamento.

Deus pensa? O pensamento é um atributo do ser humano e de alguns animais. Pensamos quando temos problemas a resolver ou para realizar alguma coisa. Deus não

tem carências nem problemas para resolver, nem precisa pensar para agir. Logo, Deus não pensa.

Deus é ação. Místico – Para a Escola Vedanta, o mundo é um pensamento do Absoluto e só é real,

enquanto o Absoluto pensa nele.

Cético – Émile Durkheim concebeu o pensamento humano como produto da História. Antropólogos como Ruth Benedict e Claude Lévi-Strauss constataram que o pensamento, em todas as culturas, quer primitivas, quer civilizadas, obedecem aos mesmos princípios, apesar da diversidade de suas manifestações. Há uma lógica imanente no psiquismo humano, podendo, no entanto, chegar, pelo mesmo processo, a conclusões diferentes, na conformidade de suas premissas fundamentais, mas inconscientes. É a premissa maior do silogismo arquetípico que dependendo, de homem a homem, de cultura a cultura, leva a resultados diferentes, conquanto lógicos.

Se Deus pensa, os maus pensamentos também se originam de Deus?

Místico – Não há bons nem maus pensamentos. Bem e mal são produtos culturais. As coisas são o que são, mas as pessoas fazem dela o que lhes interessa.

Cético – Alguns teólogos explicam a existência do mundo como um sonho de Deus. Logo, ele dorme e sonha. Por que ele necessita de sono? Deus só cria enquanto dorme? E, enquanto dorme, Deus continua onisciente? Quando ele acorda, o mundo se desfaz, como pensa a filosofia oriental? Pode o sonho conhecer o sonhador? Somos sonhos de Deus que pensam que são reais?

Místico – Sim. Se somos sonhos de Deus, somos reais.

Poeta – O homem é Deus que dorme, sonhando estar acordado.

Cientista – George Santayana comentava: “A vida de vigília é um sonho controlado."

O sonho é um tipo de consciência que não resulta inteiramente das nossas relações com o mundo exterior.

A consciência vigílica nos dá o ser social. A consciência onírica nos dá um ser inapreensível pelos padrões da consciência vigílica. O sonho não é apenas a explicação

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simbólica dos nossos recalques, mas outra modalidade de atividade psíquica. Vigília é atividade psíquica seletiva.

Chamamos de sonho a realidade que passou ou que passará. E chamamos de realidade o que estamos sonhando juntamente com outras pessoas.

Confundiu-se o conceito de sonho com o de irrealidade, porque se acreditava que a única realidade era a física. O átomo é, no entanto, tão imaterial quanto o sonho, mas, no entanto, produz resultados como a atividade onírica.

Não será a vigília um sonho lúcido de maior duração e nitidez e sobre o qual exercemos controle?

O sonho é uma experiência sem parceria e a realidade física, um sonho compartilhado. Enquanto assistimos a um filme no cinema ou na televisão, ou a uma encenação

teatral, os personagens e a história se tornam reais e a trama ficcional influi sobre nossas emoções, opiniões e comportamentos. Embora saibamos que el es não existem, psi-cologicamente eles existem e nos influenciam, passando a fazer parte, a curto ou a longo prazo, de nossa vida.

A realidade que percebemos é mais conceitual e, portanto, onírica do que a realidade simplesmente fática. Nós não vemos diretamente a rosa, mas o seu nome, o seu significado, o seu simbolismo. Experimentamos mais os conceitos do que as coisas e os seres. Não sabemos o sabor natural da realidade física, mas apenas os seus condimentos e temperos e pensamos que estes são o seu verdadeiro sabor.

Místico – Na verdade, despertamos de um sonho para outro - admitindo-se que só Deus é essencialmente real -, mas não acordamos. Só acordamos, quando sabemos que sonhamos e nos permitimos continuar sonhando ou quando passamos a ver diretamente a realidade.

Enquanto sonhamos, o mundo da vigília não existe. E, quando em vigília, o universo onírico nos parece uma experiência ilusória.

Quando sonhamos, não nos lembramos da nossa vida no estado de vigília. Por que então nos espantarmos de, em nosso estado de vigília, não nos lembrarmos da quase totalidade dos nossos sonhos?

Se tudo é sonho, somos um personagem a desempenhar seu papel. Enquanto a cena teatral se desenrola, ela é real e reais são os seus personagens. O personagem é real, enquanto o eu, consciente ou inconscientemente, se faz personagem. E o próprio eu é real, enquanto consciente ou inconscientemente, ele se esquece de que, de certo modo, é também Deus.

Filósofo – O mundo não é um sonho de Deus: é Deus observando. Ele é o observador que, no ato de sua observação, cria o que observa. À luz da física quântica, segundo Amit Goswama, Deus é a consciência quântica. Disto se conclui que tudo é o que Ele observa e que tudo é como Ele observa.

Para William Pollard, é Deus, e não o observador humano, quem colapsa a função de onda num valor único. Ao controlar os eventos quânticos, Deus influencia os eventos da história evolutiva e humana. Deus, portanto, seria a suprema “variável oculta" não local.

Poeta – Eu era Deus. Tornei-me homem. Quando eu morrer, Volto a ser Deus.

IMORTALIDADE

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Teólogo – Só Deus é imortal. Nós somos, em nossa essência, imortais. Se formos salvos, viveremos a eterna bem-aventurança. Se formos condenados, sofreremos eternamente no Inferno. No entanto, outros teólogos admitem que os maus não alcançarão a vida eterna, porque, após o Juízo Final, serão destruídos.

Cético – Eis uma contradição insanável. Se as pessoas más se tornarem imortais, sofrerão eternamente no Inferno. Se forem destruídas, após o Juízo Final, o Inferno só será povoado pelos demônios.

Se, após a morte, vem o julgamento, qual a razão do Juízo Final? Se os mortos apenas dormem profundamente, mesmo que condenadas no primeiro julgamento, não poderão tomar conhecimento de estar no Céu, no Purgatório ou no Inferno. Mas, se estiverem conscientes, gozarão as delícias do Céu, esperarão ser levadas do Purgatório para o Céu, ou sofrerão tormentos inimagináveis no Inferno. Esse estágio é, porém, temporário, porque, em data não prevista, após o Apocalipse, serão, novamente julgadas em segunda e definitiva instância. Assim, nessa revisão, em virtude de erro no primeiro julgamento, quem está no Céu poderá ser condenado ao Inferno e quem estiver no Inferno pode ser absolvido e ir para o Céu. Disso se que Deus não é onisciente, porque se equivocou no primeiro julgamento e anulou sua na segunda instância de si mesmo. Mas, se o julgamento, em primeira instância, foi correto, como era de se esperar, para que servirá esse Juízo Final?

Filósofo – A memória pessoal se conserva, caso o ser humano seja imortal? Essa é a grande questão. Sem memória, não há individualidade. Se como na mitologia grega, o morto bebe a água do rio Letes e perde a memória da vida terrestre, então ele se torna um zumbi transcendental. De que lhe serve essa imortalidade desmemoriada?

Místico – Deus é a memória eterna e universal, Aliás, já o Ocultismo se referia a ela sob a denominação de registros akashicos. Assim, em um estado alterado de consciência, as pessoas são capazes de acessar a memória universal e, dela, obter todo o conhecimento de que necessitam. As informações são, cada vez mais, registradas e conservadas em chips cada vez menores. Assim, é possível especular que haja informações em moléculas, átomos e partículas subatômicas. Já não estamos mais na matéria tradicional, mas em um estágio imaterial. Deus, assim, está no microcosmo e no macrocosmo. Deus é a informação que está em tudo.

Carl Gustave Jung comparou a memória universal ao que ele denominou de inconsciente coletivo. Tudo o que existe no inconsciente pessoal se encontra no inconsciente coletivo e este está imanente no inconsciente pessoal.

Em relação a nós, Deus é memória em potencial. A nossa memória é um estado potencial da mente e as lembranças são memórias que colapsaram. Os nossos esquecimentos são memórias que não colapsaram em razão de problemas orgânicos ou psicológicos.

Cético – Isso não passa de fantasia. Parte da memória é volátil e, por isso, irrecuperável. Ela pode ser suprida por falsas lembranças.

Filósofo – Tudo o que existe tem memória, seja seres vivos, seja a matéria em geral. Nada é tabula rasa, como pensava Aristóteles. Tudo tem um programa que mantém em funcionamento todas as coisas.

Edwald Hering asseverou que a memória é um princípio biológico universal, carac-terística onipresente de toda matéria viva.

A memória está em tudo. No microcosmo como no macrocosmo. Porque a memória são possibilidades que já aconteceram ou que poderão ou não acontecer. Assim, há uma memória do passado e uma memória do futuro.

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O que é, porém, a memória? Duas hipóteses procuram explicá-la: a) a memória é um traço psicofisiológico, deixado pelas impressões no cérebro e reproduzível por meio das leis de associação; b) a memória é um fluxo psíquico.

O farmacólogo George Ungar isolou, em 1970, a molécula da memória, a que deu o nome de scotophobin. A partir desta data, outras moléculas de memória foram também isoladas.

Sabe-se, por outro lado, de experiências bem sucedidas de transferência química da memória em platelmintos e ratos. E já se admite que, no futuro, memórias sintéticas possam ser injetadas com a mesma naturalidade de uma vacinação.

Atualmente já se produz um metal com memória. Trata-se de uma liga de níquel e titânio, que pode ser preformada, convertida para uma segunda forma, depois aquecida, após o que ela retorna à sua forma original.

As células contêm todas as informações sobre a pessoa de que fazem parte. Lynn Margulis e Dorion Sagan lembram que, "em certo sentido, a essência da vida é uma espécie de memória" e que "por meio do processo reprodutivo, as formas vivas impõem o passado e registram mensagens para o futuro." Assim, afirmam que "a vida é extremamente conserva- dora", seja a que nível for, mesmo modificando-se "com o fim de permanecer a mesma."

Cientista – É possível o transplante de memória de um organismo para outro. Segundo Deepak Chopra, "alguns pacientes de transplante relatam uma experiência

excepcional após a recepção de um rim, fígado ou coração doados. Sem saber quem foi o doador do órgão, começam a participar de suas lembranças. Associações que pertenciam a outra pessoa começam a ser libertadas quando os tecidos daquela pessoa são colocadas dentro de um estranho.”

Em outras palavras, isto quer dizer que a memória está integral em todas as células do corpo e não apenas no cérebro. Cada célula, assim, é um arquivo vivo de nós mesmos. Asse - melha-se à realidade holográfica e confirma a concepção metafísica de que cada parte é uma individualização do Todo.

Não herdamos apenas de nós mesmos, como pensam os reencarnacionistas, mas também de nossos antepassados e quiçá de toda a humanidade. Porém, a história mnemônica pessoal prevalece sobre esta multidão amorfa e caótica de registros. Por isso, apenas acessamos informações que interessam a nossa trajetória existencial do presente.

Místico – Sob este aspecto, podemos especular sobre o chamado "pecado original", interpretado como pano de fundo do milenar drama cósmico da humanidade e que existe latente em cada indivíduo. Este pecado, segundo alguns místico, seria decorrente do processo de individualização do ser humano de sua inconsciência original no lendário Jardim do Éden. Ao reconhecer-se como um ser separado do mundo, ele cuidou que essa separação era objetiva. Daí, resultaram os seus problemas para viver como um ser autônomo da natureza. Essa separação subjetiva levou-o a ilusão de sua separação (maia) do Todo. Assim, só a conscientização de sua unidade objetiva com o Todo, ou Deus, poderá levá-lo à "salvação", que é possível obter-se pela meditação ou por meios de recursos químicos – as drogas alucinógenas.

Filósofo - Segundo Platão, todo saber é recordar. Assim, o aprendizado externo é mera repetição do que sabemos em nosso nível inconsciente. Esta concepção enseja duas alternativas: a) O homem tem, potencialmente, o conhecimento de tudo; b) O homem tem, potencialmente, o conhecimento de tudo o que lhe é necessário em sua condição humana.

A primeira alternativa se baseia na premissa de que, sendo o homem uma individualização do Todo, ele possui todos os atributos do Todo, assim como as ondas do mar possuem a mesma natureza do mar.

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A segunda alternativa postula que todo ser - e não apenas o homem - é dotado de todo conhecimento necessário às suas necessidades, uma sabedoria inata específica a cada espécie viva.

Na primeira alternativa, o conhecimento do homem é ilimitado e, na segunda, é limitado às necessidades de sua natureza humana.

Cientista – A memória extracerebral é uma evidência de que informações da vida de uma pessoa falecida podem ser transmitidas a outra pessoa, sem que elas nunca se haviam conhecido antes. Essa transmissão não ocorre pelo transplante de órgãos, mas por meio de um misterioso “transplante psíquico”. A memória extracerebral ocorre, na sua quase tota lidade, em crianças na faixa de três a sete anos de idade.

Místico – Todos os seres estão ligados na memória universal, onde inexistem tempo e espaço. Essa interação é a fonte de descobertas e de invenções, como também de eventos telepáticos. Deus e nós somos um.

IMUTABILIDADE

Cético – Os crentes acreditam que Deus é imortal, porque dese jam também ser imortais. Acalentam a esperança de que Deus criou somente os seres humanos para ser sua imagem e semelhança, o que não acontece com os demais seres da natureza.

Místico – Por que Deus é imortal e tudo é Deus, os seres vivos são imortais e a morte é a reciclagem das formas transitórias. Deus é criação contínua e n’Ele nada se perde e tudo se transforma. Somos imortais como essência e mortais como individualidade.

O ser individual é, como essência, imortal e, portanto, em sua trajetória evolutiva, ele não conquista a imortalidade, mas sim a consciência de sua imortalidade.

O que chamamos de espírito é o nosso Deus imanente, que anima o corpo mortal. A imortalidade não é a conservação, mas a transformação de tudo.

Cético – Então, Deus, por ser imortal, não é imutável.

Teólogo – Na Sua essência, Deus é imutável. As Suas criaturas é que são mutáveis e

mortais enquanto simples organismos. Místico – Deus, como imanência, evolui infinitamente na sua transcendência. Deus

transcendente não muda. Portanto, Deus é mutável e imutável, segundo o aspecto no qual é concebido.

Para William James, Deus é um dos seres em evolução no uni verso. Esse Deus do filósofo é o Deus imanente.

Frank J. Tipler reconheceu “um Deus que evolui no Seu aspecto imanente (os acontecimentos no espaço-tempo) e, no entanto, eternamente completo no Seu aspecto transcendente”.

Poeta – O que chamamos de morte, É a vida comendo a vida. Comamos tudo sem culpa. Um dia, seremos comidos.

Teólogo – Na Filosofia grega, o que é perfeito é imutável e, portanto, Deus, por ser

perfeito, é imutável. Se Ele não fosse imutável, não seria Deus. Deus é imutável e as suas leis são imutáveis.

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Filósofo – Para Parmênides, um dos atributos do Ser era a imutabilidade. Heráclito, ao

contrário, alegava que tudo era um eterno vir a ser. As aparências confirmam a opinião de Heráclito.

Místico – Muitas pessoas acreditam em um Deus imutável, porque têm medo das mudanças. Se, no universo, tudo é movimento, mutabilidade, por que Deus teria de ser imóvel e imutável? Queremos que nada mude, porque isso nos dá segurança e a certeza de um conhecimento definitivo. Assim, concebemos um Deus imutável e, portanto, cognoscível. A beleza de tudo isso é que Deus é perpétua mudança, renovando tudo, criando novas formas, impossibilitando um conhecimento estático. Por isso, procuramos imobilizar a realidade ou Deus, dando à imobilidade o nome de perfeição. Sob esta óptica, as montanhas seriam um grande exemplo de perfeição, enquanto os seres vivos, por mutáveis que são, seriam imperfeitos.

Para mim, Deus não é imutável e imóvel, mas eternamente mutável, dinâmico, criativo. Um Deus pleno de surpresas. E todo o seu mistério é isso, pois a beleza da vida é a eterna mudança, a contínua criatividade.

Deus é perpétua criação. Um Deus imutável e imóvel seria um Deus morto, uma espécie de rocha infinita ao gosto de certos filósofos e teólogos.

Foi o ser humano que, na sua pequenez, criou um deus pequeno com todos os atributos do seu criador.

Deus é imutável na sua essência e infinitamente mutável em suas manifestações. Ou seja: Deus é imutável quanto à sua natureza, mas infinitamente mutável nas inúmeras formas de Suas criações.

Um Deus imutável, engessado nas leis que criou, seria um Deus escravo de si mesmo.

Filósofo – Entendia Henri Bergson que a realidade é um fluxo incessante, onde nada persiste. É um processo em perene criação. E afirmava: "A realidade é um processo de perene criação sem princípio nem fim, que não tem duas vezes a mesma fisionomia, mas assume a cada instante um aspecto imprevisível: é um fluxo incessante, onde nada persiste, uma continuidade móvel e viva, sem nenhuma divisão ou parte."

Para Bergson, "o que é real é a transformação contínua da forma: a forma nada mais é senão um instantâneo tomado numa transição."

O mesmo diz Alan Watts: "Forma é fluxo." Embora a forma seja um aspecto transitório do ser, ela é real enquanto referência a

um continuum. Tinha, pois, razão Bertrand Russel: "Todos os aspectos de uma coisa são reais, mas a

coisa é uma construção puramente lógica." E, ainda: "Uma coisa pode, pois, ser definida como uma determinada série de aparências, relacionadas entre si pela continuidade e por certas leis causais."

Cientista – O que parece ser imutável e imóvel não passa da insuficiência de nossa percepção de observar a contínua mudança das coisas e também do próprio observador.

Cético – A imutabilidade é uma invenção humana. Só conhecemos a mutabilidade de todas as coisas.

Poeta – Se o eterno é imóvel, se o eterno não muda, a eternidade entedia. Somente Deus é que aguenta essa insossa eternidade.

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Cético – Se Deus não pode modificar as leis ele criou, ele não é absolutamente livre. Se

ele, por ser liberdade absoluta, pode mudar o que determinou, ele não é imutável.

Teólogo – Logicamente, parece um absurdo. É um mistério, porque a razão não pode compreendê-Lo. A imutabilidade faz parte da natureza de Deus e, não, de Sua ação no universo.

Cético – Se Deus não pode mudar a sua natureza, ele não é onipotente. Poeta – Há algo imóvel que move tudo. Há o vazio em todas as coisas. Há o silêncio por trás de todos os ruídos. Há uma essência comum a todos os seres. Há o imortal escondido em todas as mortes. Há o eterno disfarçado em todas as aparências do transitório.

Teólogo – Admiramos Deus pelas ações que nos dão um sentimento de beleza, e

sofremos com aquelas que nos causam perdas e dissabores. A nossa fé consiste em conviver com os imprevistos de Sua liberdade absoluta.

Místico – Tudo está em permanente mudança, porque Deus está sempre agindo no mundo. Ele é a causa da perpétua mudança de tudo. Os seres humanos é que, por necessidade de segurança, estabeleceram leis imutáveis com o intento de conhecê-las e, assim, poder dominar o universo.

Poeta – Deus está além do lógico e do paradoxo. Ele é o mutável e o imutável.

Teólogo – Deus é imutável, porque n’Ele não há devir. O tempo, a transformação de tudo, só existe no mundo fenomenal. Deus é atemporal em Sua transcendência.

INFINITUDE

Teólogo – Deus é infinito. Nada existe além d’Ele. Se existisse, Ele não seria tudo. E o que seria este algo além de Deus?

Hermes Trismegistus comparou Deus a “um círculo cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência está em lugar algum”.

Pierre Lévy, em outro contexto, comparou Deus a “um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma.”

São analogias que dão uma ideia da infinitude de Deus.

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Místico – Deus, como infinito, é inconcebível, inimaginável, não nos move ou nos comove. Daí, a nossa necessidade de reduzi-Lo ontologicamente à nossa condição cognitiva, dirigindo-nos, subjetivamente, a ele, como se fosse uma pessoa.

Deus é infinito, por isso não tem forma. O infinito é necessariamente amorfo. Cada um sabe de Deus o que é capaz de saber. Mas o que sabe o ser finito do Infinito,

senão a consciência de sua infinita ignorância? Deus, por ser infinito, é um manancial de possibilidades infinitas. Nele, todas as

possibilidades são simultâneas. Em relação aos indivíduos, porém, essas possibilidades são sucessivas, dando-lhes a impressão de que algo novo está sempre acontecendo.

O que chamamos de indivíduo é um ponto selecionado num determinado processo e num dado instante do tempo. O ser é o processo, não o indivíduo, pois este é o aspecto transitório do processo.

A realidade é infinita e a quase totalidade dela nos é invisível. Só podemos conhecer o que nos afeta diretamente ou mediante nossas extensões tecnológicas. A nossa miopia em relação à realidade é quase cegueira.

Poeta – Nós somos o infinito arrependido Do cósmico cansaço de ser tudo.

Místico – É a infinitude que esmaga e aterroriza a nossa finitude. Por isso, só podemos nos relacionar com Deus sob forma antropomórfica e localizada. A personalização de Deus é o alicerce cognitivo da pessoa humana.

Deus, por ser infinito, é o receptáculo de possibilidades infinitas. Assim, para Deus, todas as possibilidades são simultâneas. Em relação aos indivíduos, porém, essas possibilidades são sucessivas, dando-lhes a impressão de que algo novo está sempre acon-tecendo.

Poeta – Um dia, volveremos ao infinito. Onde estaremos? E o que seremos? O nada do infinito não responde, pois não há ninguém para escutar.

UNIDADE

Místico – Deus é uno na sua essência e infinitamente múltiplo em suas manifestações. A incontornável limitação de nossa percepção nos dá a ilusão da separatividade das coisas.

Tudo o que existe é Deus em infinitas formas de manifestação. Cada ser é uma das infinitas probabilidades de Deus que se realizou.

Chuang Tzu ensinava: “A grande sabedoria vê tudo num só.”

Poeta – Deus é a unidade nas dualidades. Quem prefere um de seus pólos, recebe um Deus mutilado.

Cientista – Cientistas admitem que o universo é uma rede de interações, na qual tudo está em contato com tudo. E mais: o universo também parece uma rede de informação.

Fritjof Capra assinalou: “A teoria quântica revela assim um estado de interconexão essencial do universo. Ela mostra que não podemos decompor o mundo em suas menores unidades capazes de existir independentemente.

No nível atômico, então, os objetos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em padrões de probabilidades, e esses padrões não representam probabilidades de coisas mas,

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sim, probabilidades de interconexões. Uma partícula elementar, portanto, é, em essência, um conjunto de relações e o mundo afigura-se assim como um complicado tecido de eventos.

O campo quantizado é concebido como entidade física fundamental, um meio contínuo que está presente em todos os pontos do espaço. As partículas não passam de condensações locais do campo, concentrações de energia que vêm e vão, perdendo dessa forma seu caráter individual e se dissolvendo no campo subjacente.”

Místico – Somos parte de um todo, mas raros são os que têm consciência da nossa ligação com o universo e do universo conosco.

Ramakrishna fez uma bela metáfora para descrever a unificação do indivíduo com a divindade. Disse ele: “Uma boneca de sal foi certa vez medir a profundidade do oceano. Tão logo mergulhou nele, dissolveu-se. Agora quem pode dizer a profundidade do oceano.”

A revelação de Deus no homem é sempre uma experiência pessoal, despertando um sentimento de unidade com tudo o que existe. A intelectualização desta experiência resulta na permanente criação de religiões, com seus dogmas e rituais, segundo as idiossincrasias de cada pessoa que se julga o seu intérprete.

Deus é sentido com uma experiência da unidade e sentimento de solidariedade e que transforma radicalmente o ser humano na sua concepção da realidade.

Eckhart exaltou a unidade entre Deus e o ser humano: “Deus deve ser e u próprio e eu o próprio Deus, de forma tão perfeita que Ele e eu somos um só e aquele que trabalha dentro dessa ideia o faz eternamente; mas se esse Ele e esse eu, ou melhor, Deus e a alma, não são um só aqui e agora, eu não posso trabalhar nem ser, com Ele, um só.

Tão certo como eu vivo, nada está mais perto de mim como Deus. Deus está mais perto de mim do que eu de mim mesmo.”

Poeta – Eu sou a fome e o alimento. Eu sou a sede e a água. A morte é somente a ponte Que liga uma vida a outra. Somos muitos. Somos Um.

Filósofo – Huberto Rohden afirmou: “Deus é essencialmente um e existencialmente

muitos.” E acrescentou: “Deus, pela atividade criadora, se individualiza sem cessar, mas nunca se torna indivíduo.”

Místico – O Deus em nós nos induz também a conceber um Deus fora de nós. Se não fôssemos induzidos a conceber um Deus fora de nós, poderíamos pensar que somos Deus, se O descobríssemos dentro de nós. Porém, quando vivenciamos Deus em nós e fora de nós, alcançamos a iluminação, que é a experiência da unidade.

Poeta – Do mineral à planta, um Deus que dorme. Um dia, acordará do sono enorme.

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA

Filósofo – O Ocultismo doutrinava que tudo está no Todo e o Todo está em tudo.

Teólogo – Deus é transcendente a tudo o que Ele criou e continua criando, e imanente

em todas as coisas e em todos seres por Ele criados, inclusive em tudo que o ser humano faz, pois a natureza divina está em tudo.

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O Evangelho de Tomé relata a seguinte afirmação de Jesus: “Eu sou a luz, que está acima de todos. Eu sou o “Todo”. O Todo saiu de mim, e o Todo voltou a mim. Rachai a madeira – lá estou eu. Erguei a pedra – lá me achareis.”

Por ser imanente, Deus é onipresente. Na Sua transcendência, tudo é atual, nada existe em potencial. Como imanência, Ele é

atualidade e potencialidade, o que resulta na sucessividade e mudança das coisas e dos eventos, dando-nos a impressão de tempo.

Não há separação essencial entre a Sua Transcendência e a Sua imanência. Cada indivíduo é uma das infinitas perspectivas de Deus. Essencialmente, somos Deus. Existencialmente, somos um modo de Deus.

Místico – Só podemos conceber Deus como imanência, jamais como transcendência. Deus como transcendência é o vazio, o estado potencial de tudo. Não é suscetível de antropomorfização. Somos deuses vivendo em Deus. A transcendência inclui a imanência. Não conhecemos Deus, mas apenas a nossa experiência com algo que intuímos ser Deus. E como não podemos compreendê-Lo, fabricamos deuses para atender às nossas necessidades. Somos consciências locais na consciência não-localizada de Deus. Deus age nas suas individualizações, no Seu estado de imanência. Tudo, em Deus, é ação. Ele é átomo e galáxia, célula e organismo, matéria e consciência, energia e pensamento, sujeito e objeto. Deus como imanência não pode compreender Deus como transcendência. Deus, em qualquer de suas infinitas individualizações, jamais pode compreender a Divindade, ou seja, o Todo.

Nicolau de Cusa ensinava que Deus é imanente e transcendente, uno e múltiplo e também infinito. E, por que Deus é infinito, o universo é potencialmente infinito: não tem limite fixo e nem centro determinado. Logo, não tem centro e nem periferia, a não ser como simples referencial, visto da perspectiva de cada observador.

Poeta – Somos viajantes em Deus, sem centro e periferia, perdidos no seu infinito, pois viver é uma aventura sem bússola e estrela-guia. Cada morte é apenas pausa, um provisório repouso do viajante imortal.

Místico – O que chamamos de avatar ou de encarnação de Deus é uma pessoa que

manifestou, no mais alto grau possível, o seu Deus imanente. O Deus transcendente jamais encarna como ser humano, porque Ele é o Todo infinito. Quanto mais o Deus imanente se ma- nifesta em nós, mais nos sentimos filhos de Deus, ou seja, do Deus transcendente.

Poeta – Somos células que nascem, que morrem e que renascem em círculo interminável no corpo imortal de Deus.

Cético – Se tudo é Deus, temos de admitir que o lixo e os excrementos são divinos. Filosofo – E por que não? Lixo e excrementos são feitos de átomos. É o ser humano

que despreza e rejeita tudo o que não lhe é útil. Se somos matéria, por que fazemos distinção entre o que é útil e o que é inútil. Por que desvalorizamos o lixo e os excre mentos? Aliás, já começamos a reciclar o que era tido como refugo. A reciclagem igualou todas as coisas. Que

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vergonha, então, podemos ter, matéria que somos, de tudo o que considerávamos matéria inútil?

Hoje, a reciclagem é a prova de que nada é inútil na natureza. É a alquimia universal, que por tantos séculos foi buscada pelos ocultistas do passado.

Poeta – Deus é tudo. Por isso, nada há de inútil ou sem importância no universo.

Místico – Deus é um ser onde tudo está acontecendo. Nele, nada aconteceu, nem acontecerá.

Deus é o ser simultâneo, por isso, onipresente e onisciente. Os seres individuais são sucessivos e, por isso, se locomovem no tempo e no espaço, no infinito corpo de Deus.

Por sua simultaneidade, Deus não se encontra no tempo. Os seres humanos, em razão de sua finitude, estão localizados em pontos diferentes do espaço. Por isso, tudo para eles é sucessivo e é a sucessividade que lhes dá a experiência do tempo.

Cético – Se Deus não está no tempo e no espaço, mas na eternidade, como podemos compreendê-lo? E como podemos dizer que ele é tudo e está em tudo, se não se encontra no tempo e no espaço. Logo, ele não é onipresente e, por não ser onipresente não é onisciente.

Poeta – Deus é espaço e tempo, infinito e eternidade. Nascimento, mudança, morte e renascimento de tudo.

Cientista – Se tudo no universo está interconectado, há um Todo onisciente. Seria paradoxal admitir que seres conscientes estejam ligados a um Todo inconsciente.

Assim como na Internet podemos acessar um número ilimitado de informações sempre que quisermos, cada pessoa dispõe de um extraordinário conhecimento em potencial. Por isso, a Internet cresce incessantemente a cada segundo com as informações recebidas das pessoas que nela estão conectadas.

Podemos, então, especular que Deus é essa rede de interações, da qual participam todos os indivíduos. Ou que Deus é um potencial infinito de informações, que, acessado e baixado segundo as necessidades de cada pessoa. Nessa hipótese, o que denominamos de criatividade, é o resultado de um busca inconsciente de indivíduos receptivos à conexão com o Todo ou Divindade.

Místico – É o Deus imanente em nós que nos liga, em momentos especiais, à Divindade ou o Deus transcendente. O homem novo a quem se referem os Evangelhos é quem se conscientizou de que, em sua essência, ele é um Deus imanente.

Poeta – Deus não está próximo nem longe de nós: Ele simplesmente está.

Cético – No entanto, evitamos contatos com algumas individualizações de Deus,

porque não nos afinamos com elas. Isso me parece discriminativo e contraditório. Deus evitando Deus? Deus incompatível com Deus?

Místico – Ninguém afirmou que o contato do indivíduo com Deus exclui o relacionamento dele com os outros indivíduos. Trata-se de questões de afinidade.

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Não existem incompatibilidades entre certas substâncias no universo físico? Isto não quer dizer que elas sejam inimigas: apenas não se combinam entre si. O Deus imanente habita nos seres vivos, na natureza em todas as suas formas e convive nas semelhanças e diferenças de suas formas o que resulta na maravilhosa complexidade da vida, onde tudo está em permanente processo de transformação.

Poeta – Somos momentos transitórios de Deus.

Místico – Somos e não somos Deus. Deus é a face oculta da realidade.

Poeta – Já disseram que somos deuses. O que é ser um deus? Nem mesmo sequer sabemos o que é ser humano!

Filósofo – A individualidade é Maia, a grande ilusão.

Místico – Quando o Deus imanente desperta em nós, passamos pela experiência da iluminação e nos “salvamos” da ilusão da separatividade.

Poeta – Brotamos de Deus como as flores, folhas e frutos brotam da árvore. Todos são e não são a árvore. Todos somos e não somos Deus. Somos Deus brotando de Si mesmo.

Místico – O homem é o aspecto biológico e transitório do Deus imanente em cada ser.

Esse Deus imanente é o que denominamos de espírito. Para Nicolau de Cusa, cada ser singular é um reflexo de Deus e nele coincidem todos os

contrários. Tudo o que existe é uma contração do Todo divino. Se tudo está em tudo, podemos, por analogia, especular que cada ser é uma célula-

tronco de Deus. Temos, potencialmente, tudo do Todo, mas, como indivíduos, só realizamos uma pequeníssima parcela do nosso potencial.

Cada espécie é, assim, uma especialização da célula-tronco divina.

Poeta – Deus nasce todo dia em cada homem e aprende conosco o que Ele sabe. Deus se deixa encontrar a cada instante, sem ser chamado, sem ser procurado, nos terrenos mais férteis ou mais sáfaros, em meio à oração ou à heresia, sem encontro marcado e em qualquer parte.

Místico – Deus está imanente em infinitos níveis fenomênicos, cada qual com sua "materialidade" própria, sua realidade específica, podendo existir uma maior ou menor interconexão entre esses níveis. Os diversos níveis fenomenológicos não são lugares de punições e prêmios, mas estados de consciência compatíveis com a natureza de cada ser individual.

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Filósofo – Tinha razão William Blake quando afirmou: “Se as portas da percepção fossem lavadas, tudo apareceria ao homem como é, infinito.”

Cético – Se Deus foi visto por algumas pessoas, então ele tem forma e, se tem forma, não é infinito, porque ocupa um lugar no espaço. Como pode um ser limitado ver o ilimitado? Milagre ou vontade de Deus, dirão, e o assunto fica encerrado.

Místico – Ramakrishna costumava indagar aos que o procuravam: “Como você gosta de falar de Deus, com forma ou sem forma?”. Dizia ele que Deus era com forma ou sem forma conforme a necessidade do devoto.

Poeta – O homem é o momento em que Deus se faz consciência na Sua onisciência.

Teólogo – A ideia de Deus aparecer às suas criaturas para que elas creiam nele é

lamentavelmente infantil. É o mesmo que se argumentar: mostre um átomo e eu acreditarei na existência dele. O que não é percebido não é prova de sua inexistência.

Cético – No entanto, conforme o relato bíblico, Moisés teve um encontro com Iavé e, dele, recebeu, pessoalmente, o Decálogo, gravado em pedra.

Filósofo – Ou se trata de uma metáfora ou de uma experiência alucinatória de Moisés.

Poeta – Tudo o que sou é Deus

que quis se fazer eu. Entre eu e Deus apenas a ilusão de que existo.

Místico – Deus tem a face que lhe damos para que possamos vê-Lo. Ele é o maior de todos os mistérios que a mente humana é capaz de imaginar.

Poeta – Deus não tem face. Ele é a face de todas as coisas.

Filósofo – Tudo o que atribuímos a Deus é sempre inevitavelmente humano: amor, bondade, justiça, vontade, pensamento, etc. O que julgamos de excelente na natureza humana transferimos para Deus em grau infinito. Sem os atributos humanos, Deus, para nós, é ininteligível.

Místico – Deus são todos os observadores e tudo o que é observado.

Poeta – Se me olho, Deus me olha. Qual é o olho real? Quem é a imagem no espelho?

Místico – Deus é, assim, o paradoxo: Ele é e não é cada indivíduo, Ele é e não é o

universo e tudo o que nele contém. Deus é transcendência, mas também imanência no interior de tudo o que existe.

Deus é a infinita escuridão. Mas também é luz na criação de todos os seres e coisas.

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Deus é a substância de que somos feitos. Por isso, todas as respostas estão em nós e não fora de nós.

Somos mortais como existência e imortais como essência. Na nossa condição humana, somos deuses transitórios.

Poeta – Deus olha pelos meus olhos

as obras que Ele fez. Escuta por meus ouvidos todos os sons que criou. Saboreia com meu corpo o prazer de ser a Vida. Ele me fez Seu sentir, um Seu modo original de Seus infinitos modos em tudo quanto se fez.

Cético – Tudo isso não passa de poesia, que encanta os crentes desejosos de ser uma partícula ou individualização de Deus.

Poeta – Quem é Esse do qual apenas sou personagem? Oculto em todos os vivos e vivo em todas as mortes. Hóspede em todos os tempos, embora more no eterno. Tudo o que existe é sede e endereço de Deus.

Místico – Deus é qualquer ser individual. O indivíduo é que não sabe que é Deus. Quando ele se conscientiza de que é Deus em manifestação finita, alcançou o reino dos céus, o nirvana e se libertou da ilusão da separatividade.

Deus se manifesta com maior intensidade em determinados indivíduos do que em outros. Deus, na flor, é o mesmo Deus no homem.

Não existe lugar onde Deus não esteja. Não existe qualquer ser, não existe qualquer coisa que não seja Deus. Tudo não é feito de átomos (eles são os limites da nossa percepção e da nossa concepção). Tudo é feito de Deus.

Filósofo – Se onda e partícula são aspectos diferentes da luz, mas ambos são luz, por que Deus não pode ser infinitos aspectos contingentes de Si mesmo, permanecendo necessário e imortal na condição de Todo? Assim, tudo é de Deus sem ser Deus e Deus está em todos os seres sem ser qualquer deles.

Místico – Deus imanente é o transformador, a transformação de tudo. Quanto mais cada individualidade evolui em Deus, maior é a sua consciência de Deus em si e de Deus em tudo.

O homem é um Deus equivocado que pensa que Deus é outro.

Cético – Os argumentos metafísicos são difíceis de refutar, porque resultam de uma força imaginativa, que cativa os incautos. São belos e por isso, nesse caso, perigosos. Confundem a razão pelo seu brilho ofuscante por seu apelo ao imaginário. O que pode a razão, que caminha no solo, contra a imaginação que voa?

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Poeta – Quando homem, Deus pergunta o por quê de todas as coisas, mas não encontra resposta. Quando Deus, Ele sabe a resposta, mas não tem a quem comunicá-la.

Místico – Deus é tudo e está em tudo, por isso ninguém está sozinho. O que chamamos de anjo-da-guarda ou de guia espiritual é o nosso Deus imanente.

Poeta – Se nenhum ser individual existisse, quem testemunharia Deus? Ele seria uma infinita solidão.

Místico – Para Duns Scotus, a individualização consiste numa contração e limitação da

essência. Esse pensamento de Scotus sugere que a existência é uma limitação da essência, ou seja, que o ser humano é uma contração da divindade.

Deus nada perde de si, pois tudo o que existe é Ele e nada existe além d’Ele. Se cada indivíduo é, na sua essência, o próprio Todo, ele não pode perder-se ou ser

destruído. Enquanto vivermos a ilusão ontológica de que somos, fundamentalmente, indivíduos,

seremos deuses adormecidos. Só quando desperta do sonho da separatividade, o indivíduo se conscientiza de sua unidade essencial com Deus, o que resulta na “morte” do eu diferenciador.

Na verdade, não há indivíduos, mas a ilusão da individualidade e é esta ilusão que nos faz temer a morte. Pensamos que estamos separados e tememos perder esta ilusória separação.

Nunca saímos de Deus e nunca voltamos a Ele, pois eternamente sempre estamos n’Ele.

Sentiremo-nos perdidos e buscaremos a “salvação”, enquanto permanecer a nossa consciência de que somos seres separados.

Nunca nos perdemos de Deus, mas nos perdemos n’Ele, enquanto persistir a ilusão da individualidade e, por conseguinte, da separatividade.

Não há morte, perdição e salvação, pois nada pode morrer ou se perder em Deus e, portanto, não há nada para salvar. O que se chama de morte é o processo contínuo de transformação das formas. O que se chama de perdição, é a ignorância da parte sobre a sua essencial união com o Todo. E o que se chama de salvação ou libertação, a conscientização do ser individual de sua integração com Deus. A salvação ou libertação não é a perda da indivi -dualidade, absorvida pelo Todo, mas a perda da ilusão de uma individualidade separada de tudo e de Deus.

Filósofo – Leibniz argumentava: "Toda substância leva em certa maneira o caráter da sabedoria infinita e da onipotência de Deus e o imita no quanto é capaz. Pois expressa, ainda que confusamente, tudo o que sucede no universo, passado, presente e futuro, o qual guarda certa semelhança com uma percepção ou conhecimento infinito."

Podemos dizer, em outras palavras, que tudo o que existe é um sistema informacional, do mais simples ao mais complexo, desde as coisas inanimadas aos seres vivos. Na Terra, o homem é o sistema informacional mais complexo e síntese de todos os outros sistemas informacionais. Ele se enriqueceu, como espécie, através da passagem por outros reinos da natureza e prossegue enriquecendo-se, em sua faixa própria, pela experiência de seus indivíduos.

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Místico – Se Deus está imanente em tudo, é absurdo pensar a que Ele condene uma

parte de si mesmo.

Cético – A verdadeira salvação é a libertação do medo da morte e a aceitação da nossa finitude. A Igreja usurpou o poder de Deus de julgar as suas criaturas. Ela se apresenta como detentora da salvação e, por isso, proclama que “fora da Igreja, não há salvação”, diferentemente do Espiritismo que afirma: “fora da caridade, não há salvação”. A Igreja absorve ou excomunga os “pecadores”. Concede o título de santos a quem, ao menos aparentemente, se comporta com um ser especial. A Igreja não consulta Deus sobre o assunto e, alegando ser o representante dele na Terra, extrapola a sua função. Realmente esse Deus antropomórfico é muito tolerante.

ONISCIÊNCIA

Teólogo – A onisciência é o mais importante atributo de Deus. Aliás, onisciência e onipresença são complementares. A onisciência importa em onipresença e a onipresença em onisciência.

Cético – Se Deus é onipresente, não temos um só momento de privacidade e nenhum

lugar seguro onde poderemos nos esconder. Então, não é necessária a presença de anjos da guarda e espíritos-guias supervisionando a nossa vida. Deus, portanto, não necessi ta de intermediários para nos fiscalizar. As câmeras ocultas de Deus estão nos espionando em qualquer lugar onde estejamos.

Se Deus é onisciente, ele conhece todos os nossos pensamentos e, assim, não temos privacidade interior. Talvez tenhamos chips que foram instalados por Deus no nosso cérebro, a partir de sua formação, permitindo-lhe vigiar e controlar as nossas emoções e pensamentos. Ele é o nosso Big Father.

Cientista – O físico Dennis Gabor estabeleceu, em 1948, a teoria holográfica, postulando que não apenas as partes estão contidas no todo, mas que o todo também está contido nas partes. A sua teoria, porém, só foi confirmada no início da década de 60, com o surgimento do laser, que possibilitou a fotografia em três dimensões - o holograma. Observou-se que, cortando-se um holograma ao meio, a unidade da imagem é reconstituída em cada pedaço.

Karl Pribam, com base na teoria holográfica, definiu o cérebro como um holograma, afirmando que cada neurônio contém informações sobre o cérebro como um todo. Ousadamente, asseverou que o próprio universo é um holograma e, portanto, uma grande ilusão.

A holografia restaura o império das ideias inatas de Platão e revalida a maiêutica de Sócrates como procedimento gnosiológico. Se a parte é o Todo miniaturizado, como acontece com o holograma, então, potencialmente, cada indivíduo tem tudo o que o Todo tem.

Observou Michael Talbot: "Num universo holográfico a consciência não só está em todo lugar, está também em nenhum lugar."

Sob esse aspecto, podemos especular que Deus é o holograma do universo.

Místico – Temos, portanto, respostas para todos os problemas. O que, na verdade, não sabemos é formular as perguntas adequadas. Por essa razão, as pessoas que passam pela experiência transcendental da unidade de todas as coisas tomam consciência da própria onisciência, quando se experienciam como o próprio Todo. Porém, ao retornarem à condição

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de parte, restam-lhes, apenas, a vaga lembrança daquela experiência inefável, como o sonho que se apaga no retorno da vigília. O indivíduo, sob este enfoque, é, na verdade, um Deus desmemoriado.

Cético – Não há consenso ainda entre os neurocientistas sobre o que é consciência. Há alguns que negam sua existência. Outros, que sustentam que ela resulta da atividade do cérebro. E, finalmente, os que afirmam que a consciência é autônoma em relação ao cérebro, embora interaja com ele. Ora, se não sabemos o que é consciência, é uma especulação inútil falar-se da onisciência, atribuída a um ser fictício chamado Deus. Aliás, não temos a mínima ideia do que seja onisciência. Somos conscientes, mas ainda não sabemos sequer definir o que seja a consciência

Poeta – O olho invisível de Deus tudo vê em toda parte, o que foi e o que será a luz e a escuridão e a mente de todos os seres. É o olho que nunca fecha, pois o mundo é o que Ele vê.

Místico – Deus é a conexão de infinitas consciências. Assim, Ele se vê a si mesmo, dos

infinitos pontos de vista das consciências individuais.

Cético – Admitamos que Deus é onisciente, por que ele preci sou provar a fé de Abrahão e de Jó?

Teólogo – Foi para Abrahão e Jó avaliarem a força de sua fé. Deus, por ser onisciente, conhecia os limites da fé dos dois.

Cético – Há crentes que procuram mudar a “vontade de Deus”, mediante pedidos, promessas, orações. Ora, se Deus é onisciente, por que pedir algo a ele? Se, porém, ele não é onisciente está sujeito a cometer enganos. Então, escutando as nossas preces, ele pode reparar o seu erro.

Poeta – A verdadeira oração se dirige ao Deus que é aquele que ora. Conversar com Deus é dialogar com o mais íntimo de nós. Teólogo – Deus não erra: Ele é a perfeição. Se atende aos pedidos dos fiéis é porque

Ele é bondoso e misericordioso.

Cético – Se assim é, Deus não é onisciente, porque, se o fosse, proveria as necessidades dos crentes, sem que eles lhe pedissem para supri -las. Quem realmente crê na onisciência de Deus, não precisa pedir nada a ele.

Teólogo – É a fraqueza da nossa fé que nos faz proceder assim. Deus sabe o que é melhor para nós e nós não o sabemos.

Místico – O Deus imanente em nós é que realiza o nosso pedido segundo a força de nossa fé. O Deus transcendente não determina o nosso destino. Deus imanente é o nosso mais

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profundo íntimo. Somos deuses limitados, porque desprovidos de onisci ência, onipresença e onipotência.

Teólogo – A oração serve para as pessoas se acalmarem na esperança de que Deus as atenda e mude o curso das coisas. É uma esperança que, se realizada, dá a elas a certeza de que Deus atendeu as suas preces.

Místico – Quem não sabe disso, procura encontrar Deus nos templos, nas mesquitas, nas igrejas, nos mestres, nos gurus.

Cético – Então, a oração só tem valor psicológico e funciona como analgésico para as angústias da existência.

Místico – A oração é a esperança de que o nosso desejo coincida com a vontade divina. Se coincidir, teremos a certeza de que Deus atendeu ao nosso pedido. Se não, cabe -nos apenas a resignação e a consolação de que, ao menos, tentamos. Por isso, dissera Jesus: “faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Cético – Leia-se o que disse o profeta Joel (Joel. 2-13): “Rasgai vossos corações e não vossas vestes; voltai ao Senhor vosso Deus, porque Ele é bom e compassivo, longânime e indulgente, pronto a arrepender-se do castigo que inflige.”

Se Deus se arrepende do que fez, Ele não é onisciente e perfeito, porque, por saber de tudo, nunca deveria errar.

Aliás, padres e pastores parecem não acreditar na onisciência divina, lembrando a Deus o que ele parece ter esquecido ou que não sabe.

Cientista – Se a física quântica estiver correta, pensar intensamente em uma possibilidade pode provocar o seu acontecimento. É o chamado “efeito do observador”. É a observação que produz o colapso de uma possibilidade. Sob esse enfoque, a oração, quanto mais intensa, mais facilita a realização do que é desejado, porque o desejado já existe como possibilidade.

Teólogo – Eis a versão científica do que se encontra no ensino evangélico: “A fé remove montanhas.”

Poeta – Quem ora a Deus, ora a si mesmo. E faz milagres como um Deus finito.

Cético – Quem pede algo a Deus, duvida de sua onisciência. É uma fraqueza de sua fé.

Teólogo – O pedido resulta de um sentimento de impotência que acomete as pessoas em certas situações existenciais. É uma emoção que lhes ofusca a crença e perturba-lhes a razão.

Cético – Se Deus é onisciente, a sua vida deve ser um tédio infinito e eterno. Nada o surpreende, porque ele sabe de tudo. Um Deus sem surpresas me parece um Deus infeliz.

Se eu tivesse a onisciência divina, ela seria, para mim, monótona e enfadonha. A beleza da vida é a surpresa.

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As surpresas, quando agradáveis, são o aperitivo da vida. A onisciência nos impediria de ter surpresas agradáveis e desagradáveis. Penso que o ser humano não suportaria a onisciência.

Cientistas acalentam a esperança de que a ciência possa, um dia, conhecer tudo. Será que, se isso acontecer, eles suportarão o peso do tédio?

Cientista – A ciência não objetiva alcançar a onisciência. Logo, essa questão, para os cientistas, é impertinente e destituída de sentido.

Místico – Quem realmente acredita em Deus, não lhe faz qualquer pedido. Orar é apenas uma necessidade psicológica do ser humano, principalmente nos momentos de grandes sofrimentos. É um desabafo e não uma tentativa de modificar a “vontade” de Deus.

Cético – Se Deus é onisciente, ele não tem esperança. Se tem, ele não é onisciente. Se há perdição, por que Deus, sendo onisciente, cria seres sabendo que irão se perder?

Se Deus tem esperança de que eles se salvem, Deus não é onisciente. Se é onisciente e os cria, por que os cria?

Teólogo – Essa questão está acima da nossa compreensão.

Cético – E por que a teologia inventa questões que não é capaz de resolver? Se Deus é onipotente e onisciente, por que cria seres destinados ao sofrimento

eterno? Se ele sofre por isso, então é masoquista. Mas, se não sofre, então ele é sádico. Se ele não pode evitar criar as criaturas nem pode impedir que elas sofram, então

Deus não é onipotente. Se Deus não sabe quais de suas criaturas se salvam ou não se salvam, ele não é

onipotente. Ou se Deus escolhe os seres humanos que se salvarão ou se perderão, ele não é bondoso.

ONIPRESENÇA

Teólogo – O progresso científico e tecnológico possibilitou a emergência de uma nova

forma de presença, além da física – a presença virtual. Podemos assim estar presentes nos mais diversos lugares interagindo com outras pessoas, como, por exemplo, nas teleconferências. Essa presença virtual enseja uma reflexão sobre a onipresença divina, embora não percebida pelos seres humanos.

Místico – Nada pode existir que não seja divino. Deus é onipresente, porque tudo o que existe é Ele. Se algo não fosse divino, Deus não seria tudo. Porque tudo é Deus, cada criatura é naturalmente teotrópica, isto é, irresistivelmente atraída para Ele. Deus está presente em toda parte. Mas, parece que, em alguns lugares, coisas e seres, Ele está mais densificado, mais claramente presente. Assim, na pedra, há menos Deus do que no homem.

Deus está sempre onde estamos, porque nós estamos n’Ele. No entanto, muitas pessoas procuram um lugar, tido por sagrado, para sentir a Sua presença.

Cético – Logo, de nada valem os templos, as mesquitas, as sinagogas ou qualquer outro local de adoração coletiva.

Místico – Não há um lugar especial para sentirmos a presença de Deus. Ele está em todos os lugares, porque é onipresente. Mas podemos escolher o local onde O sintamos mais intensamente. Este local é sagrado para nós.

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Somos partículas de Deus. Ele é a essência de tudo. Podemos sentir Sua presença no nosso íntimo e no mundo.

Tudo está N’ele e Ele está em tudo, seja no microcosmo, seja no macrocosmo e, sendo infinito, nada existe além D’ele. Deus não é feito de, mas tudo é feito D’ele, porque tudo é sua manifestação.

Filósofo – Templos, imagens e lugares sagrados são necessidades do homem para localizar Deus no espaço a fim de relacionar-se com Ele. Assim, o invisível se torna psicologicamente visível, o infinito se torna finitizado e a percepção da ausência se converte em presença na hipnose da fé.

Místico – A expressão “onde Deus está” é destituída de sentido. É uma tentativa antropomórfica de situar Deus num determinado local do espaço.

Deus não é algo localizado espacialmente. Ele está em todos os lugares simultaneamente, porque Ele é o lugar de todos os lugares.

Um Deus situado é um Deus sitiado e envolvido pelo espaço. Deus é o ser e o estar, no qual tudo existe e está.

Poeta – Só Deus suporta a onipresença, porque não tem aonde ir. Só Deus suporta a onisciência, porque não tem o que aprender.

Místico – Deus imanente em nós é que nos mantém ligados à Divindade, embora não

estejamos conscientes desse vínculo a não ser em situações especiais. Por isso, para os mestres espirituais, a busca de Deus se converteu em comunhão com o divino.

Poeta – Deus não está próximo nem longe de nós: Ele simplesmente está.

Místico – A premissa de que Deus está em tudo pode levar a exageros. Por isso,

Ramakrishna advertiu: "É certo que Deus reside também no tigre; mas nem por isso devemos ir abraçar a esse animal. É certo que Deus mora até nos seres mais perversos, mas não é próprio buscar a sua companhia."

Deus é a simultaneidade de todas as coisas.

Poeta – A gente experimenta a eternidade quando perde a noção do tempo.

Cientista – Há momentos em que, psicologicamente, o ser humano sente a “presença”

de Deus. Essa “presença” pode ser explicada por diversos fatores que alteram o organismo, como, por exemplo, as experiências psicodélicas.

Cético – Se Deus é onipresente, ele também está no Inferno.

Teólogo – É uma premissa falsa e que leva a uma conclusão lógica, mas falsa.

Cético – Então, Deus não é tudo e, portanto, não é onipresente.

Místico – Deus é onipresente e, por isso, está também no Inferno. Porém, os que lá estão, não podem sentir a Sua presença. O Inferno, essencialmente, é um estado de espírito.

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Teólogo – Estado de espírito ou lugar, ou, ainda, as duas coisas, o Inferno existe.

Cético – Se o Inferno existe, Deus o criou. Se não foi ele, quem foi? Se Deus não pôde

evitar a sua criação, ele não é onipotente. Mas, se permitiu, ele não é bondoso.

Teólogo – Essa é uma tentativa de compreender Deus com fundamento no ser humano.

Cético – É o mesmo que os teólogos fazem.

Teólogo – Seja como for, o Inferno é uma realidade e também uma necessidade. Se assim não fosse, não haveria punição para as pessoas más.

Judiciosamente, Platão observou: “Admitamos que a morte nada mais seja do que uma total dissolução de tudo. Que admirável sorte não estaria reservada então para os maus, que se veriam nesse momento libertos de seu corpo, de sua alma e da própria maldade.”

Místico – Pode-se admitir o Inferno como punição para os maus, porém é inadmissível que seja um castigo eterno. Há, nos sistemas penitenciários, a prisão perpétua, melhor seria dizer vitalícia, para certos criminosos. Mas, uma pena eterna para os pecadores é, na verdade, um exagero. Um prisioneiro pode ser irrecuperável em vida. Mas também o seria em sua vida eterna? A não ser que os condenados percam a imortalidade. Nessa hipótese, não tem sentido se falar castigo eterno.

Para Miguel Unamuno, se a mortalidade da alma pode ser terrível, não menos terrível pode ser a sua imortalidade.

Filósofo – O Inferno não existe. É fantasia teológica. Por conseguinte, esse é um falso problema. É a mente humana que cria o céu e o inferno. Jesus não afirmou que o reino dos céus está dentro de nós? Então, o inferno também está.

Cético – Apesar disso, muitas pessoas acreditam no Inferno real.

Filósofo – É problema delas e, portanto, compete a elas deslindar a questão.

Cético – Se há um lugar fora de Deus que se chama inferno, então, Deus não é tudo e, portanto, não é onipresente. Se Deus é onipresente e existe o inferno, Ele está necessariamente também no Inferno. A não ser que o Inferno não exista.

Se o inferno existe contra a vontade de Deus, ele não é onipotente. Se ele não previu a desobediência dos anjos rebeldes e a mal dade dos homens, daí

resultando a criação de um lugar povoado por demônios e condenados, então Deus não é onisciente. Se não previu e não pôde evitar, então não é onipotente. E se previu o que poderia evitar, porque não fez? Inferno e perdição não condizem com a proclamada onipresença, onisciência e onipotência de Deus.

Se assim é, os teólogos estão equivocados ao ensinarem que os bons vão para o céu e os maus para o inferno.

Se as pessoas más vão para o Inferno e ali são torturadas por toda a eternidade, o que fazem as pessoas boas no Céu, além da contemplação eterna de Deus?

Filósofo – Para essa questão, São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, esclareceu: “Para que os santos possam aproveitar com mais abundância sua beatitude e a graça de Deus, eles têm a permissão de ver a punição dos condenados no Inferno”.

Que sadismo celestial!

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O Deus teológico é um sádico e, por isso, permite o sadismo dos santos. E por que pessoas sádicas estão no céu e não no inferno?

Quem acredita em castigo no Além, há de convir que a vida espiritual pode ser pior do que a vida material, porque naquela o sofrimento de uma parte da humanidade é eterno, o que não acontece na vida física.

Como pode uma pessoa ser feliz, se vive permanentemente receosa de ser condenada ao inferno por causa de seus hipotéticos pecados?

Cético – Já temos na Terra um inferno administrado por líderes endemoniados. E, para piorar a situação, as religiões ainda nos ameaçam com um inferno no Além.

Místico – Não há anjos nem demônios. As pessoas é que são anjos e demônios de si mesmas. Se Deus é onipresente e onisciente não necessita dos anjos para saber o que acontece no mundo. Nem dos demônios para punir as pessoas, já que Deus é onipotente.

Filósofo – Os homens sentem uma grande atração pela esperança e pelo receio, e uma religião sem inferno nem paraíso não poderia agradar-lhes de modo algum.

Cético – Céu e Inferno são compensações psicológicas para as pessoas que se sentem infelizes e injustiçadas na Terra. Para elas, a verdadeira felicidade está no Céu e o supremo sofrimento no Inferno. O Além é o avesso do que ocorre na vida terrena. Os infelizes se tornarão felizes, os bons, recompensados, os injustiçados, ressarcidos, enquanto as pessoas más receberão o seu merecido castigo, punidos pela justiça divina ainda que tenham escapado da justiça terrena.

Teólogo – Os demônios são seres infelizes, que, pelo seu orgulho, ousaram em enfrentar Deus e, por isso, foram condenados ao inferno. Frustrados, eles resolveram vingar-se nos seres humanos para levá-los ao inferno e, ali, sofrerem eternamente. Os demônios se rejubilam em fazer o mal.

Cético – Se, no Inferno, os demônios fazem os condenados sofrer eternamente, eles são felizes porque fazem o que gostam. Que castigo é esse que Deus lhes impôs? O castigo eficaz que Deus poderia infligir aos demônios seria obrigá-los a fazer o bem eternamente. É lamentável que os teólogos não tenham pensado nisso.

Filósofo – Já observara Lucrécio que, na verdade, aqueles suplícios que dizem existir no Inferno, estão todos aqui, nas nossas vidas. “Assim como as crianças, que no escuro tremem de medo e temem tudo, nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas que não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem no escuro e pensam que acontecerão a elas.Tantos males a religião pôde aconselhar!

É preciso afugentar com ímpeto esse medo do Inferno que perturba profundamente a vida do homem, estendendo sobre tudo a lúgubre sombra de morte e não deixando existir nenhuma alegria serena e inteira.”

Cético – Erasmo já ironizava: “Quantas lindas e lorotas não vão esses doutores impingindo a respeito do inferno? Conhecem tão bem todos os seus apartamentos, falam com tanta franqueza da natureza e dos vários graus do fogo eterno, e das diversas incumbências dos demônios e, discorrem, finalmente, com tanta precisão sobre a república dos danados, que parecem já ter sido cidadãos da mesma durante muitos anos. Além disso, quando julgam conveniente, não se poupam ao trabalho de criar ainda novos mundo, como o mostraram formando o décimo céu, por eles denominado empíreo e fabricado expressamente para os beatos, sendo mais do que justo que as almas glorificadas tivessem uma vasta e deliciosa

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morada para aí gozarem de todo o conforto, divertindo-se juntas e até jogando a péla quando tivessem vontade.”

Teólogo – A nossa vida terrena é passageira. A Terra é verdadeiramente um “vale de lágrimas”, onde predomina o sofrimento. A verdadeira felicidade está no céu, reservada àqueles que se salvarão.

Cético – Quem acredita que a verdadeira felicidade só existe no Além, está perdendo a oportunidade de se sentir feliz na vida terrena.

Filósofo – Se houver sobrevivência, quem for para o Céu não terá mais fé, esperança e caridade, porque a fé transformou-se em fato, a esperança de salvação perdeu seu sentido, e a caridade passou a ser inútil porque todos os seres celestiais gozam de uma felicidade eterna.

Cético – Se Deus é onipresente, os diabos e os condenados não estão privados de Sua presença. Será que Deus assiste indiferente ao sofrimento eterno que, como dizem os teólogos, lá existe? Eles inventaram um Deus terrível, porque impõe aos pecadores uma vida eterna de sofrimentos e permite aos demônios um perpétuo gozo sádico pelo sofrimento dos condenados.

ONIPOTÊNCIA

Teólogo – Deus é onipotente, porque nada existe que impeça a Sua ação. Como um peixe, fisgado pelo pescador, podemos nos debater na rede ou na isca, embora seja inútil todo nosso esforço, que nos parece ser o exercício do nosso livre-arbítrio.

Místico – A “vontade” de Deus é fruto do nosso antropomorfismo, ou seja, um atributo humano. Deus não é o nosso espelho.

Teólogo – Duns Scotus concebeu Deus como vontade. Deus não quer algo por ser racional, mas algo é racional, porque Deus o quer.

Guilherme de Ockham foi mais enfático: Se Deus quisesse, seria meritório odiá-Lo. Tudo o que acontece no mundo é pela vontade ou pela permissão de Deus.

Cético – Se assim o for, não temos livre-arbítrio e, por conseguinte, responsabilidade

pelos nossos atos. Se Deus é o criador de tudo e é onipotente, ele, então, é o responsável por tudo o que

acontece, porque ninguém pode opor-se a sua vontade.

Teólogo – Logicamente falando, o argumento é irrefutável. Mas, como não podemos compreender Deus, talvez a nossa lógica esteja equivocada.

Deus é liberdade absoluta. Ele pode fazer o que quiser.

Cético – Então, o homem e o diabo, caso este exista, nada mais são do que instrumentos da volição divina e, por conseguinte, isentos de qualquer responsabilidade pelos atos praticados. Mas, se algumas coisas más acontecem com a permissão de Deus, então ele é cúmplice das maldades praticadas pelos homens e pelos hipotéticos diabos.

Místico – Em se tratando do Deus antropomórfico, sim.

Cético – Se Deus é absolutamente livre, então, se ele quiser, poderá morrer.

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Teólogo – Se dissermos que, por ser imortal, Deus não pode morrer, estaremos admitindo que Ele não é onipotente, porque não pode fazê -lo e também, por isso, sua liberdade não é ilimitada. Esse raciocínio é um sofisma.

É a rigidez da lógica que nos leva a esses impasses. Nem todo o que é lógico é necessariamente verdadeiro.

Argumentemos de outro modo. Deus é a imortalidade, porque nada pode existir do nada e, sim, de algo necessariamente imortal. Ora, o que é imortal não pode morrer.

Cético – Esse, sim, é que é um sofisma, porque se fundamenta numa petição de princípio.

Se Deus é absolutamente livre e onipotente, ele pode, se quiser, criar um ser maior do que ele.

Teólogo – É uma especulação sem sentido. Nada há maior do que Deus. Por que e para que Ele faria um ser maior do que Ele?

Cético – Quem sabe os “motivos” de Deus? Por que ele não poderia? Ele não é absolutamente livre e onipotente?

Teólogo – Se assim o fosse, Deus não seria mais Deus. É o mesmo que asseverar que o infinito pode tornar-se mais infinito.

Místico – Deus não é vontade: Deus é ação. Só temos vontade, quando sentimos necessidade de algo. E Deus não tem necessidades.

Cético – O que é a providência divina? É Deus agindo de acordo com o que ele determinou? Ou é Deus mudando o que determinou para atender solicitações humanas? Na segunda hipótese, Deus não é imutável.

Teólogo – Deus é onipotente. Não podemos julgar as suas ações. A fé não é lógica.

Poeta - O que Deus faz, faz a Si mesmo, porque tudo é Ele.

Teólogo – Deus é o criador da História. Ele escolhe os dramas da vida e os personagens que desempenham os papéis de heróis e de vilões. A quase totalidade das pessoas são apenas coadjuvantes.

Poeta – O Eterno se faz tempo para habitar entre nós. Faz-se história O sem história. Faz-se parte Quem é tudo e morre, sendo imortal. Criatura de Si mesmo, permanece Criador. Sendo todos, faz-se um, exilado de Si mesmo, divinizando o que faz na Sua missão de Homem.

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Cético – Se isso fosse verdade, não teríamos qualquer responsabilidade pelos atos que praticamos. Então, a religião perderia sua função salvacionista, pois não haveria punição nem recompensa, céu e inferno depois da morte.

Filósofo – O homem é quem cria a sua história. Se a história é determinada por Deus, não passamos de atores que nem sequer sabem o que vão representar.

Cético – Há pobres que se conformam com a pobreza porque se trata da “vontade de Deus”. Há ricos que se vangloriam com a sua riqueza, porque foi a “vontade de Deus”. Então, está tudo explicado.

Se tudo é a “vontade de Deus”, então é pela vontade dele que erramos, acertamos, perdemo-nos e somos salvos, sem que haja, de nossa parte, qualquer responsabilidade. Assim, tudo o que nos acontece e acontece no mundo é responsabilidade exclusiva de Deus.

Teólogo – Todo ser humano é pecador e, por isso, precisa de salvação, senão estará

perdido.

Místico – “Perdição” e “salvação” são invenções teológicas e não desígnios de Deus. Estamos “perdidos” enquanto permanecemos ignorantes de que somos, essencialmente, o Todo. E nos “salvamos” no momento em que nos conscientizamos dessa identi dade. A “perdição” é a ausência subjetiva de Deus. Ninguém pode pecar contra Deus, mas contra si mesmo, privando-se da Sua presença subjetiva. A “salvação” é essa consciência de que estamos em Deus e, essencialmente, somos Deus.

Teólogo – Para Santo Agostinho, o homem é salvo pela graça e não pela vontade. Por isso, ele nada pode fazer para salvar-se. A graça é que é a única fonte da salvação e esta só depende da vontade exclusiva de Deus. Há certas pessoas que, mesmo fora da Igreja, foram predestinadas por Deus à salvação. Do mesmo modo, existem pessoas que Deus predestinou à perdição. É a doutrina da dupla predestinação.

Místico – Adversário de Agostinho, Pelágio afirmava que o homem é o único responsável por seus pecados. Não existe, assim, o pecado original, automática e universalmente compartilhado pela descendência de Adão. E argumentava: “Se o pecado é ingênito, não é voluntário; se é voluntário, não é ingênito. O pecado não é defeito da natureza ou do caráter do homem, mas, sim, da vontade. É ato volitivo e, por isso, não pode ser transmitido hereditariamente. Ele, portanto, se salva por sua vontade e, não, pela graça.”

Pelágio contestou Agostinho por argumentar que as crianças mortas sem batismo são condenadas ao inferno. As crianças, dizia Pelágio, são incapazes de pecar, porque não sabem escolher, conscientemente, o que querem. O batismo da criança, por conseguinte, é destituído de eficácia.

Orígenes criou a doutrina da apocatástase, mediante a qual ensina que, no fim dos tempos, todas as criaturas, inclusive o diabo, serão perdoadas e salvas. Da afirmativa de São Paulo de que Deus é tudo e está em tudo, Orígenes concluiu que, estando Deus em todas as pessoas e em todas as coisas, tudo será salvo no final do processo cósmico.

João Cassiano assumiu uma posição semipelagiana: a iniciativa da salvação pode partir de Deus, assim como do homem. A salvação, portanto, resulta da cooperação entre a graça e o livre arbítrio.

Para Scotus Erígena, é através do conhecimento que o homem retornará a Deus e, com ele, todo o universo. Mas esse retorno à divindade não importa na dissolução da alma humana.

Podemos conceituar a graça como a manifestação da imanência de Deus agindo em cada pessoa.

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Cético – Calvino doutrinava que Deus criava pessoas destinadas à salvação ou à

perdição. O livre-arbítrio, para ele, não existia. As pessoas nada podiam fazer para a sua salvação. Não tinham mérito ou demérito e não importava, para Deus, que fossem boas ou más. Ele revelava sua preferência no sucesso material de seus eleitos.

Místico – Não há predestinação. Cada pessoa age e sofre as consequências de suas ações. Deus, por ser o eterno presente, vê o que acontece às pessoas, que têm a impressão da linearidade do tempo, deslocando-se do passado para o futuro.

Deus, por ser onisciente, não prevê: Ele vê o que os seres humanos, por sua liberdade de escolha, recebem as consequências de seus atos no percurso do tempo.

Cientista – O que chamamos de “destino” é a sucessividade de probabilidades semelhantes. Logo, o destino é probabilístico e não determinístico. Cada probabilidade realizada predispõe ao colapso de outras probabilidades semelhantes e, assim, indefini -damente. Porém, a vontade do ser humano pode mudar o sequenciamento dessa linha de probabilidades, fazendo colapsar outro tipo de probabilidades, que pode iniciar uma nova linha sequencial de probabilidades semelhantes.

Filósofo – O homem não está perdido. Por ter medo da “perdição”, ele busca, ansiosamente, salvação em um Salvador que pode ser divino, humano e até extraterrestre. As religiões transformam o ser humano em pecador, imperfeito e perdido, necessitado, portanto, de salvação. Quem nisso acredita, precisa de salvação.

Cético – As religiões ensinam que as pessoas estão perdidas em razão de seus pecados e, por isso, necessitam de salvação. Por causa dessa crença, proliferam salvadores, mestres, gurus, seres iluminados. Trata-se de um excelente mercado para o vigarismo religioso. O vigarismo religioso é a maior fraude que vem sendo cometida contra a humanidade em todos os tempos e em todos os lugares.

Filósofo – Mas, afinal, o que vem a ser a salvação? O resgate de pecados coletivos ou individuais? A libertação do mundo material, onde o espírito imergiu, voluntária ou involuntariamente? A conscientização de que todos os seres são manifestações de Deus? Não há qualquer prova de que estamos perdidos e, por isso, necessitados de salvação, a não ser porque acreditamos nisso.

Místico – Nada pode existir que não seja divino. Deus é onipresente, porque tudo o que existe é Ele. Se algo não fosse divino, Deus não seria tudo. Porque tudo é Deus, cada criatura é naturalmente teotrópica, isto é, irresistivelmente atraída para Ele. Assim, podemos conceituar a graça como a manifestação da imanência de Deus agindo em cada pessoa. Ela é que nos impele em busca de Deus através do nosso próprio esforço. Essa conscientização de que somos uma individualização da Divindade é o que se chama de salvação.

Teólogo – Todos nós sofremos e morremos porque somos pecadores. Nem as pessoas santas escaparam dessa provação.

Cético – Jesus e Buda, por exemplo, eram também pecadores?

Teólogo – Não. Eles sofreram e morreram pela humanidade.

Cético – Então, nem todas as pessoas são pecadoras.

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O sofrimento e a morte não são evidências de que estamos perdidos, porque isso acontece com todos os seres vivos. Eles também estão perdidos e necessitam de salvação? Os crentes acreditam que sofremos por causa de pecados anteriores, seja dos nossos pais, seja de vidas passadas, e até mesmo para a glória de Deus.

Somos mortais e morremos em decorrência das mais variadas causas. Nenhuma delas resulta de um castigo de Deus por mais dolorosa que ela seja.

Místico – Se Deus está imanente em cada criatura (e não apenas no ser humano e, se apenas no ser humano, por quê?) e se ela se perdesse, perder-se-ia em Deus, porque nada existe além d'Ele. E se Ele perdesse algo de Si, criaria n’Ele o nada e não mais seria tudo, pois coexistiriam Deus e o nada.

Deus ou o Todo nada perde de Si, pois tudo o que existe é Ele e nada existe além d’Ele. Se cada indivíduo é, na sua essência, o próprio Todo, Ele não pode perder-se ou ser destruído.

LIBERDADE

Teólogo – Deus, por ser onipotente, é absolutamente livre. Duns Scotus doutrinava que Deus é a liberdade absoluta: ele está acima da verdade e do bem, tudo podendo fazer, exceto o que importa em contradição.

Cada pessoa é mais livre ou menos livre em relação às outras pessoas. Essa liberdade varia segundo cada sociedade. Assim, todos nós temos a medida de nossa liberdade. Pouco podemos contra a “vontade social”, imposta pelos governos, nada podemos contra a vontade de Deus.

Filósofo – Espinosa afirmava não haver oposição entre liberdade e necessidade. A liberdade consiste na necessidade de autodeterminação. Logo, a vontade humana não é causa livre, mas apenas causa necessária. Tudo é necessário. Nada é livre. Tudo acontece, porque deve acontecer. A liberdade do homem consiste em reconhecer a necessidade e lhe dar livre curso. Liberdade não é escolha, mas livre manifestação da necessidade.

Hobbes e Espinosa entendiam que temos a impressão de que somos livres, porque ignoramos as causas de nossas ações.

Cético – Somos títeres de Deus? A vida é um teatro de mamulengos?

Teólogo – Ninguém é títere de Deus. Se fôssemos não teríamos a liberdade de nos opor à vontade de Deus, consciente ou inconscientemente, embora não tenhamos êxito.

Cético – E como podemos saber que agimos contra a “vontade” de Deus?

Teólogo – Pelo resultado de nossas ações. Então, compreendemos que elas não eram corretas. Quando não damos um tratamento adequado ao nosso corpo, ele reage, adoecendo. E, consequentemente, fazendo-nos sofrer. O corpo não está nos punindo, mas reagindo a um comportamento inadequado. Só um ser onisciente pode ser onipotente. Como somos, apenas, consciente, a nossa vontade é limitada.

Filósofo – A liberdade é a possibilidade de fazer o que se quer e de não fazer o que não se quer. Não somos livres para querer ou não querer. Subjetivamente, a liberdade é o poder de escolha entre as opções desejadas. Objetivamente, é a possibilidade de escolhe r entre as oportunidades da vida social, sejam elas permissíveis ou proibitivas.

A liberdade é o instante que antecede às decisões, e morre no decidido. Quanto mais nos obrigamos, mais diminuímos o espaço da nossa liberdade. Quem se sente livre, não pensa em liberdade.

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A afirmativa de que ninguém é livre é tão insustentável como a esperança de uma liberdade absoluta. Por mais oprimidos que estejamos, há sempre uma parcela, por menor que seja, para o exercício de nossa vontade.

Somos livres porque podemos fazer o que não queremos e não fazer o que queremos.

Cético – O homem é apenas um elo na série das forças naturais e, assim, está irresistivelmente condicionado pela sua estrutura biológica. E, ainda, somos condicionados pelos padrões e valores da sociedade em que vivemos: a liberdade, assim, é tão limitada, que mais parece uma utopia.

Místico – Essa afirmação é uma apologia do determinismo. É um calvinismo leigo. Com fundamento nesse raciocínio, podemos sustentar que os crentes e os ateus não o são por escolha livre, mas em decorrência de um determinismo. No entanto, há crentes que se tornam ateus, e ateus que passam a acreditar em Deus.

Cientista – Se há um infinito número de probabilidades, não existe o determinismo. A vida de cada pessoa é uma série de opções escolhidas, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, de um universo de infinitas probabilidades. Em razão das mais diversas circunstâncias, somos induzidos a escolher determinadas opções. Assim o destino é a consequência do conjunto de opções escolhidas.

Filósofo – A verdadeira liberdade seria a capacidade de criar probabilidades. Mas, nós não as criamos, porque elas são preexistentes. Logo, apenas escolhemos, consciente ou inconscientemente, probabilidades preexistentes e, porque pensamos que fizemos algo novo, temos a sensação de que somos livres. Então, tudo está determinado.

Místico – Deus é a fonte das infinitas possibilidades.

Filósofo – Thomas Hobbes escreveu: “É mister fazer uma distinção entre liberdade de querer e liberdade de fazer. Ou seja: não se pode não querer aquilo que se quer, mas se pode fazer ou não fazer aquilo que se quer.”

Oscilamos entre a liberdade e a segurança. O ideal é sermos livres com segurança. Mas a realidade nos compele a escolher entre a liberdade e a segurança. A aspiração constante do ser humano é aumentar, cada vez mais, o seu grau de liberdade. Mas, em situações específicas, prefere diminuí-lo em troca de maior segurança.

A liberdade exterior depende da sociedade em que vivemos com as suas normas rígidas ou flexíveis de conduta. Assim, a nossa liberdade se exerce dentro dos limites traçados pela lei, pelos costumes e pela moral.

Cético – Nem sempre podemos fazer o que queremos. No entanto, segundo o momento histórico em que vivemos, podemos conformar nossa conduta às normas sociais, ou lutar para que sejam substituídas por outras mais condizentes à realidade social.

A nossa liberdade interior é ilimitada, pois pensamos, sentimos e queremos sem qualquer censura, a não ser a nossa, como decorrência dos nossos condicionamentos culturais e religiosos. Porém, no momento em que explicitamos nossos pensamentos, sentimentos e desejos estaremos sujeitos a sofrer punições se eles estiverem em desacordo com as normas sociais e jurídicas.

Filósofo – Não podemos mudar as nossas necessidades biológicas, mas impedir sua manifestação ou realizá-las vicariamente. Assim procedendo, limitamos a nossa liberdade, que é a livre expressão de nossas necessidades. No entanto, podemos interferir nas necessidades impostas pela cultura e que influenciam as nossas decisões.

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O fato de sermos conscientes de nossas necessidades não nos torna livres. Pelo contrário: sentimos mais profundamente o tolhimento dessa liberdade, seja por nossa iniciativa, seja por motivos alheios à nossa vontade.

Não queremos ser livres das necessidades, mas livres, sempre que possível, para o exercício delas. Por isso, só sentimos desejo de liberdade quando as nossas necessidades não são satisfeitas.

Místico – Eckhart ensinou que a verdadeira liberdade é o desapego à própria vontade e o empenho de realizar a vontade divina. Pobres de espírito são aqueles que são “pobres em sua vontade”. Por isso, a verdadeira oração é aquela que nada pede, nem nada espera. Assim, quem renunciou a si mesmo, renunciou a tudo.

Teólogo – Huberto Rohden foi contundente: “A criatura consciente e livre não tem a

escolha entre realizar ou não realizar o drama cósmico de Deus — só tem a escolha entre o modo de o realizar; pode realizar os planos eternos gozando e pode realizá-los sofrendo — é esta a única alternativa em poder do homem.”

Cético – Essa ideia não passa de conformismo e desestimula as pessoas a enfrentar os

imprevistos da vida.

Filósofo – Para William James “se o passado e o presente fossem puramente bons, quem desejaria que o futuro não se lhes assemelhasse? Quem desejaria o livre arbítrio?

“Liberdade” em um mundo já perfeito poderia, apenas, significar liberdade para ser pior e quem poderia ser tão louco a ponto de desejar isso?”

Místico – A liberdade é como a respiração que dela sentimos falta quando nos sufocamos.

Filósofo – Somos o que somos. Ninguém é livre para ser o que não é. Somos livres para fazer ou não fazer em acordo ou em desacordo com as normas e valores da sociedade. Ass im, podemos fazer ou não fazer o que nos é permitido, ou fazer ou não fazer o que nos é proibido. Nem tudo o que pensamos que somos, somos, pois muito do que somos é decorrente dos nossos condicionamentos culturais e do que nos foi dado pela natureza. Assi m, podemos mudar o que parecemos ser e não o que verdadeiramente somos. O autoconhecimento nos habilita a devolver-nos o que somos, libertando-nos dos padrões que nos foram impostos, embora externamente pareçamos os mesmos por motivo de mera conveniência. Somos livres na proporção em que podemos agir segundo somos e não somos livres para deixar de ser realmente o que somos.

Tem razão Ken Wilber: “Só a escravidão pode ser imposta; não se pode forçar uma pessoa a ser livre.”

E Jean-Paul Sartre acrescentou: “O homem está condenado a ser livre. Eu posso sempre escolher, mas devo saber que se não escolho, ainda assim eu escolho. Nós não somos livres para cessar de ser livres.”

Cético – A liberdade é o resultado da compreensão dos nossos condicionamentos, o que nos permite agir ou não agir segundo as conveniências do momento e do contexto cultural em que vivemos.

O livre pensador é aquele que é livre de suas próprias ideias. A liberdade consiste também na livre obediência. Obediência porque se quer obedecer

e não porque se é obrigado a obedecer. A obediência compulsória não passa de sujeição, de escravidão. A obediência voluntária, ao contrário, é um ato de liberdade.

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A nossa liberdade interior nos permite ver, com lucidez, as limitações de nossa liberdade exterior. A mera liberdade exterior não nos permite ver o limite dessa liberdade, porque, interiormente, não nos libertamos das ilusões e dos condicionamentos que a nossa cultura nos introjetou.

Místico – A liberdade é risco. É espírito de aventura. É aceitação das mudanças, a convivência madura com a insegurança.

Há pessoas que preferem mais segurança do que liberdade e outras que preferem mais liberdade do que segurança. Não existe nem liberdade nem segurança absolutas.

Para muitas pessoas, a liberdade é um fardo. Preferem a segurança anestesiante aos sobressaltos do risco, da aventura criativa.

A liberdade às vezes intimida, porque é difícil lidar com ela. Concordo com Erich Fromm: “O homem livre é, por necessidade, inseguro; o homem

que pensa é, por necessidade, indeciso”.

Filósofo – Temos a vocação natural de escolher somente o que pensamos ser um bem para nós. Todo ser está programado para agir sempre em seu benefício. É o que se denominou de instinto de conservação. Somos, assim, impulsionados a faze r o bem a nós mesmos, embora, em nível consciente, nem sempre saibamos o que é o nosso bem.

Queremos ser livres de tudo o que nos causa mal e queremos ser livres para alcançar tudo aquilo que julgamos ser o nosso bem.

Antes acreditávamos que o destino nos era imposto pelo capricho dos deuses. Hoje, pensamos que ele é determinado pela programação genética. Antes, tentávamos mudar o nosso destino com súplicas aos deuses. Hoje, tentamos modificá-lo intervindo no código genético.

Enquanto a natureza é o reino da impessoalidade, o reino humano é o da pessoalidade e da liberdade. Por isso, pagamos o preço pela nossa liberdade, que nos faz sensíveis aos problemas nossos e do mundo.

Cientista – Por causa de sua liberdade, o ser humano adquiriu a aptidão de inve ntar coisas que não existiam na natureza e de descobrir, cada vez mais, os mecanismos da natureza. Os outros seres biológicos são escravos da natureza e vivem no Éden da inconsciência. Na verdade, como observou Luc Ferry, a liberdade humana é antinatural. Por isso, quanto mais nos afastamos da natureza, mais a nossa liberdade se expande ao preço da criação dos problemas mais diversos, que nos produzem melhor qualidade de vida, mas também uma quota maior de problemas psicológicos.

Filósofo – Opondo-se à necessidade, que é a lei da natureza, o ser humano criou a liberdade, uma outra alternativa para viver em harmonia ou desarmonia com a natureza. A liberdade resultou da nossa conscientização de que somos individualidades, distintos da natureza e, por isso, mortais. Na antiga condição de seres da natureza, éramos inconscientes e ignorantes, agindo de acordo com as necessidades que a natureza nos programou. O processo de conscientização, a que podemos chamar de “pecado original”, resultou da libertação do jugo da natureza, que é o reino da inconsciência universal. Ao assumir a sua vida consciente, o homem se apartou da tutela da Natureza.

AMOR

Cético – O primeiro dos dez mandamentos do decálogo, entregue a Moisés pessoalmente por Deus, determina “amar a Deus sobre todas as coisas.” Ora, Iavé demonstrou a necessidade de ser amado e exigiu que os crentes, de seu povo escolhido, o amassem. Ora,

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ninguém pode amar por obrigação. Nem ninguém pode amar por um ato de vontade. O amor é um sentimento espontâneo e, inegavelmente, o mais belo dos sentimentos humanos. Mais uma vez, o Deus de Israel demonstrou desconhecer os rudimentos da psicologia.

Mas, o que é o amor? Enquanto não tivermos uma definição convincente do que é esse sentimento, não poderemos discuti-lo de modo apropriado.

Filósofo – Essa é a questão. Cada pessoa tem um conceito próprio sobre o amor.

Cético – Os crentes são contraditórios: ao mesmo tempo em que dizem que amam a Deus também o temem.

Dessa contradição, se apercebeu Aristóteles: "Ninguém ama aquele que teme."

Teólogo – Devemos amar a Deus, pouco importa que não saibamos definir esse sentimento. O amor é uma emoção que nos faz feliz. É loucura privar-nos dela.

Cético – Sim, é loucura privar-nos do amor. E, muito menos, evitá-lo. O amor nos acontece inesperadamente. Ele não pode ser imposto nem é um produto da vontade. Querer amar é uma coisa, e amar é outra.

Amar é necessário. Amar a Deus não é necessário.

Teólogo – Uma coisa, porém, é certa: Deus nos ama e, por isso, quer nosso bem.

Cético – Queremos ser amados. Assim, acreditamos que Deus nos ama. O presumido amor de Deus pelas pessoas fazem-nas sentirem-se seguras, protegidas contra o mal.

Filósofo – Prefiro, ao modo de Espinosa, o amor intelectual a Deus. Não se trata do amor-emoção, do amor-sentimento que é a mais gratificante das experiências humanas. É uma satisfação intelectual decorrente da sensação de compreender o objeto da nossa cognição.

Cientista – Por mais estranho que pareça, a investigação científica vem observando que o amor é um importante fator imunológico. Quem ama desfruta de saúde física e mental.

Filósofo – O amor é unilateral. Quem ama, ama porque ama. Quem ama para ser amado ou porque se sente amado, na verdade não ama. No

primeiro caso, espera proteção e, no segundo, expressa gratidão. Quem ama tem no seu amor a própria satisfação. O problema fundamental do homem não consiste em não ser amado, mas, sim, na

incapacidade de amar.

Místico – Não podemos evitar que as pessoas nos amem ou nos odeiem. Nem podemos evitar o amor, mas lutar para que o amor não se transforme em apego.

O BEM E O MAL

Cético – Teólogos discutem se o homem é bom ou mau por natureza. Os epicuristas, os céticos e os estóicos rejeitaram a ideia do bem e do mal cósmicos,

explicando-os como um conceito puramente humano. Para Santo Agostinho, em virtude do pecado original, o ser humano é propenso ao

mal. Pelágio, ao contrário, afirmava que homem é essencialmente bom. No Oriente, Meng Tsé ou Mêncio ensinava que a natureza humana não é boa nem má, porque depende da direção a qual ela é conduzida.

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Quem faz o bem, não é necessariamente bom. Mas, quem faz o mal é necessariamen- te mau.

Os psicopatas perigosos são uma prova contundente de que a maldade é real. Por que Deus criou seres assim, se ele é onisciente? E por que, segundo a religião, Deus os condena ao Inferno, se eles não têm culpa de serem o que são?

Filósofo – Não há o bem e o mal absolutos. Há fatos que nos beneficiam ou prejudicam objetivamente, e os que são explicados segundo a nossa subjetividade.

Cético – Se todas as catástrofes do passado eram atribuídas à ira de Deus, então as calamidades que ainda acontecem no presente são uma evidência de que Deus continua irado.

Cientista – Se assim o fosse, jamais poderíamos evitá-las. E, no entanto, o avanço científico e tecnológico já reduziu a morte de muitas pessoas em regiões que foram abaladas pelas catástrofes. Será que a ira de Deus está diminuindo, ou ele não é onipotente?

Cético – Se Deus é imanente no ser humano como podem as pessoas se corromperem? Portanto, como explicar a corrupção dos seres humanos?

Místico – As pessoas querem o melhor para si. E muitas não medem as consequências

para obter o seu objetivo.

Filósofo – Não há mal metafísico como postularam Agostinho e Leibniz. Aquele, sob fundamento de que as coisas não são absolutamente boas e este, com a argumentação de que o mundo, sendo finito, é necessariamente imperfeito.

Também não há que se negar a existência do mal, como o fizeram Orígenes, Plotino, Agostinho, Gregório de Nissa e Tomás de Aquino, afirmando que o mal é não-ser ou uma deficiência, uma privação do bem.

Agostinho ensinava que, no estado original, o homem era completamente livre, podendo escolher entre o bem e o mal. Com a queda, porém, ele perdeu a l iberdade de escolher o bem, tornando-se propenso a pecar. A sua anterior possibilidade não pecar (posse non peccare) se converteu, atualmente, na impossibilidade de não pecar (non posse non peccare), ou seja, na necessidade de pecar (necessitas peccandi). O homem, no entanto, pode praticar atos meritórios. Este, porém, não modificam sua natureza vocacionada para o mal. E essa natureza essencialmente má é transmissível hereditariamente. Esta culpa herdada, ou “pecado original” embora removida pelo batismo permanece como perversão da vontade, impedindo o homem de ser essencialmente bom, e, assim, livre para escolher o bem.

Cético – Então, de que serve o batismo, se ele não impede as sequelas do pecado? Antes da “queda”, o ser humano era bom ou mau? Se Deus o fez bom por natureza, ele não poderia pecar. Se pecou, era porque ele não era bom. Se não era bom nem mau, ao pecar ficou mau por natureza. Ao contrário dessa afirmação, Jean-Jacques Rousseau defendeu a hipótese de que o homem era bom por natureza, mas foi a sociedade que o perverteu.

Místico – A essência do ser humano, o nosso Deus imanente, não se corrompe nas suas relações com o mundo. A esse respeito, podemos fazer a seguinte analogia: o ser da água é sempre H2O esteja ela limpa ou suja. As “sujeiras” das nossas relações interpessoais não se impregnam em nossa essência ontológica. Por isso, em sua essência divina, o ser humano é incorruptível

Teólogo – Santo Agostinho distinguiu duas modalidades do mal: a) o mal metafísico; b) o mal moral.

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O mal metafísico é aquele que decorre da própria limitação da criatura, a qual, apesar de perfeita, não é absolutamente perfeita. Só Deus é absolutamente perfeito.

O mal moral, ou pecado, se origina da própria vontade do homem. É um defeito da vontade, direcionada para as coisas inferiores. O mal, neste caso, não reside na matéria, nem decorre da vontade divina, mas do uso inadequado da vontade humana.

Filósofo – Leibniz admitiu três formas do mal: a) o mal metafísico; b) o mal físico; c) o mal moral.

O mal metafísico decorre da própria finitude de todas as coisas. O que é finito é, necessariamente, imperfeito, mesmo que se trate do melhor dos mundos possíveis.

Leibniz procurou conciliar a sua afirmação que vivemos no me lhor dos mundos possíveis com o problema do mal nele existente. Só Deus, por ser infinito, é perfeito.

O mal físico é inerente às próprias vicissitudes do corpo, ocasionando sofrimentos em virtude dos seus desequilíbrios.

O mal moral decorre do pecado do homem pelo exercício equivocado de sua vontade. Teilhard de Chardin estabeleceu quatro sentidos para o Mal: a) no sentido ontológico,

como resíduo do processo de unificação e recaída no múltiplo; b) no sentido psicofisiológico, como passividade de crescimento e diminuição - sofrimentos, doenças, etc; c) no sentido moral, como falta decorrente do exercício da liberdade; d) no sentido religioso, como pecado decorrente da recusa a Deus.

Teólogo – Santo Agostinho questionou como pode existir o mal no mundo, se o mundo foi criado por Deus. Ou Deus não criou o mundo e, portanto, o mal que existe no mundo não foi criado por Deus, ou então Deus, ao criar o mundo, criou também o mal que nele existe. Nesta última hipótese, na condição de criador do mundo, Deus permitiu o aparecimento do mal ou não o pôde evitar.

Santo Agostinho resolveu o problema, negando a existência objetiva do mal, como, antes, Orígenes já o fizera. O mal não é uma realidade em si mesmo, mas uma deficiência ou privação do bem. Assim, só o bem é real. O mal não passa de aparência.

Filósofo – Kant advertiu que o bem e o mal não estão nas coisas, nem também no que

o homem faz, mas, sim, no que ele quer. O bem e o mal decorrem da vontade. Só a vontade é boa ou má.

Cético – A religião personificou o mal para isentar Deus das maldades que ocorrem na vida terrena.

Platão inventou um demiurgo que criou o mundo cheio de imperfeições, sofrimentos e maldades.

Pietro Ubaldi também eximiu Deus da responsabilidade pela existência do mal, asseverando que "o mal não pode ser criado por Deus, porque se assim tivesse acontecido teria que ser tal como a substância d'Ele, isto é, eterno e indestrutível."

Filósofo – Teilhard de Chardin argumentou que o mal faz parte do processo evolutivo e

não resultou de uma Queda. “A ideia da Queda, no fundo, não é senão uma tentativa de explicação do Mal num Universo fixista.” Na verdade, o que se denominou de pecado original não passa de uma solução estática do problema do Mal.”

Chardin afirmou corajosamente que "o pecado original é uma solução estática do problema do Mal."

E, de maneira mais incisiva, asseverou: "A ideia da Queda, no fundo, não é senão uma tentativa de explicação do Mal num Universo fixista."

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Místico – A “Queda”, se interpretada como passagem do virtual ao físico, não é conse- quência de um “pecado original”, mas de uma permanente atividade do Deus transcende nte, individualizando-se, como Deus imanente, nos seres biológicos.

Cético – Afirmou Agostinho que o bem é bem, porque Deus o quer. O mal, então, é o que Deus não quer? Se assim for, Deus não é onipotente. Ou ele também quer o mal?

Filósofo – Observou Aristóteles que ninguém quer senão o que pensa ser o bem. E Espinosa asseverou que, na medida em que uma coisa convém à nossa natureza, ela é necessariamente boa. Ele entendia por bem o que sabemos com certeza ser-nos útil, e por mal, o que sabemos com certeza impedir o nosso bem.

Para George Ivanovich Gurdjief, ninguém faz nunca coisa alguma por amor ao mal ou no interesse do mal. Cada um faz sempre tudo no interesse do bem, tal como o compreende.

O mesmo disse Pietro Ubaldi: “Ninguém faz o mal pelo mal; se o faz, é porque o reputa, na sua ignorância, uma vantagem, uma utilidade, um bem.”

O bem e o mal sempre existiram, existem e existirão como julgamentos humanos. As pessoas que beneficiamos dizem que somos bons. E as que não beneficiamos, e até prejudicamos, garantem que somos maus.

Em situações diversas, podemos não beneficiar a quem beneficiávamos ou beneficiar aqueles que antes não beneficiávamos, o que geralmente resulta na mudança de julgamento a nosso respeito.

O bem e o mal são também julgamentos que fazemos sobre fatos e pessoas em cada situação específica. Portanto, bem ou bom é o que ou quem nos beneficia, e mal ou mau é o que ou quem nos prejudica.

Místico – Metafisicamente, o mal pode ser conceituado como a falta de interação entre o indivíduo e o Todo.

Cético – As coisas, os eventos, os seres vivos não foram feitos para nosso malefício ou benefício. Nós é que os contabilizamos como maléficos ou benéficos. Na verdade, somos os juízes do bem e do mal em causa própria. Por isso, Sófocles advertia que os males mais terríveis são aqueles que cada um faz a si próprio.

O dualismo bem e mal só existe em nós. Somos nós quem o projetamos nos acontecimentos.

Deus e o diabo são justificativas de que se valem os religiosos para explicar o que lhes acontece e o que acontece no mundo.

Cético – As coisas, os eventos, os seres vivos não foram feitos para nosso malefício ou benefício. Nós é que os contabilizamos como maléficos ou benéficos. Na verdade, somos os juízes do bem e do mal em causa própria.

Filósofo – Ninguém quer voluntariamente o mal para si a não ser: a) que seja

passageiro e lhe traga, no futuro, um bem maior; b) que seja admitido como punição ou purificação, resultando na obtenção de um bem.

E praticam o mal: a) porque não têm consciência do que fazem; b) porque pensam que é um bem para si ou também para os outros; pelo bem que este mal lhe faz.

As pessoas praticam o bem pelos mais diversos motivos: a) por dever ou solidariedade social; b) por temor metafísico e recompensa no Além; c) por ostentação; d) para seu aperfeiçoamento moral e espiritual; e) por vingança sutil, visando demonstrar superioridade espiritual, perdoando e ajudando os ofensores; f) pelo prazer de ajudar.

Há pessoas que fazem o bem, na ilusão de que são boas, e as que fazem o bem, fingindo que são boas.

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Filósofo – Bem e mal são interpretações que variam no tempo. O que hoje para nós é

um bem, amanhã pode ser interpretado como um mal e vice-versa. Então, sempre haverá bem e mal, diferindo no mesmo indivíduo em suas reavaliações do mesmo fato em épocas diferentes, assim como na avaliação de outros indivíduos.

Cético – O bem e o mal não são realidades ontológicas e nem sequer reais em si mesmos. Não são absolutos, mas relativos, variando no tempo e no espaço.

O bem e o mal não são substâncias, mas atividades relativas a determinado sistema da realidade.

O bem é o equilíbrio de um sistema físico, orgânico e social. O mal, o contrário. Fazer o bem é praticar ações que concorram para a manutenção deste equilíbrio. Fazer o mal é praticar ações que prejudiquem a sua continuidade, podendo, inclusive,

acarretar a destruição do sistema.

Filósofo – O bem praticado pelo temor de punições humanas e/ou sobrenaturais, pela expectativa de recompensas no Além, por ostentação e até por vingança apenas revela a imaturidade do seu praticante. Por certo, quem faz o bem, não apenas por ação solidária, mas por prazer, conseguiu a felicidade de unir o útil ao agradável.

Cético – Há pessoas que vivem obcecadas em fazer o bem para provar a si mesmas e aos outros as suas virtudes. Desejam garantir uma recompensa transcendental e se envaidecem em ser diferentes das pessoas comuns. Negam seus sentimentos, seus desejos, seus pensamentos considerados pecaminosos. Lutam tenazmente contra eles, porque se sentem tentadas pelas trevas e provadas por Deus. A própria doença decorrente de seus con-flitos interiores passa a ser interpretada como prova de uma eleição divina. Encaram o sofrimento como uma bênção. No fundo, porém, invejam a saúde e o êxito das pessoas tidas como más e se confortam, numa vingança disfarçada, de que elas, no final, serão punidas. Vivendo em constante dualismo entre as suas disposições humanas e as suas pretensões espirituais, não gozam boa saúde física e também mental. Por isso, se agitam entre o medo de fracassar e a culpa por eventuais fracassos, o ódio de terem fracassado e o rancor contra a boa sorte dos maus.

Em nome de um pretenso bem, de um ideal paranóico ou de uma ambição disfarçada, quanto males reais não foram praticados?

Místico – O bem e o mal se tornam questões angustiantes quando são explicados como tendo causas e efeitos transcendentais. Sentimentos de culpa, medo de castigos divinos, expectativas de recompensas direcionam a vida das pessoas de conformidade com as suas concepções religiosas.

Cético – Se Deus é bondade e, em nossa essência, somos Deus, porque as pessoas são um misto de bondade e maldade. Se Deus é infinitamente bom e misericordioso, por que os crentes o temem?

Teólogo – Porque Deus é também justiça. E a justiça divina é maior do que a Sua misericórdia. O pecado contra Deus é infinito. Logo, infinito é o Seu castigo.

Místico – Esse argumento é insustentável e depõe contra a proclamada misericórdia

divina. Se tudo em Deus é infinito, por que a sua misericórdia é finita e se restringe ao curto período da vida das pessoas?

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Cético – A natureza é cruel. Se ela é Deus, Deus é cruel e não um ser bondoso como pregam as religiões.

Os crentes, quando são atingidos por cataclismos naturais proclamam que foi castigo de Deus, punindo os pecados da humanidade e, por certo, também de outros seres vivos, como os animais e os vegetais.

A “fúria” da natureza mata as pessoas boas e más. Para Gustave Le Bon, “a natureza só se ocupa do destino da espécie. Perante ela todos

os seres são iguais. A existência do mais pernicioso micróbio é cercada de tantos cuidados quanto a do maior gênio.”

Do mesmo modo pensava Lao-Tse: “A natureza não é benévola, e é com determinada indiferença que de tudo se vale para os seus fins.”

O predador devora a sua presa. A presa usa de estratégias para não ser devorada. Animais e vegetais lutam pela sobrevivência e não são piedosos com os seres que lhes

servem de alimento. A natureza não protege os fracos e poupa os fortes. Ela não tem bondade nem

misericórdia. Se ela é a face de Deus ou foi criada por ele, pouco importa. Nada podemos fazer a respeito. Os crentes necessitam de consolo e conformação e, então, inventam fábulas para justificar os males que sofrem.

Será que é o demônio o responsável pelas catástrofes da Natureza? Se a hipótese for verdadeira, Deus tem um forte concorrente na sua tarefa de punir as criaturas por seus pecados. É uma forma de isentar Deus, ao menos em parte, como autor dos cataclismos naturais. Ou, talvez, Deus tenha terceirizado essa tarefa aos demônios.

Teólogo – Deus não é a natureza como pensam os panteístas. Quanto mais o ser

humano aumenta o seu conhecimento sobre a natureza, mais ele pode prever catástrofes e evitar ser atingido por elas. Certos animais são capazes de prevê-las e de fugirem para locais seguros.

Cético – Se, como dizem os religiosos, Deus é o bem, por que as pessoas, sendo suas manifestações, praticam o mal?

Se Deus está em todas as criaturas, está também nas pessoas más. E por que Deus, criando essas criaturas, as tornou más ou se tornou mau? Como justificar a ação de todos os assassinos e torturadores, de todos os líderes sanguinários que mataram milhões de pessoas?

Poeta – É difícil aceitar a face escura de Deus. Raríssimos são aqueles que o conseguem. E os que se tornam a face escura de Deus? Como as pessoas comuns poderão compreendê-los?

Cético – Se assim é, todos os ditadores e conquistadores são a face escura de Deus.

Filósofo – Deus não é o bem nem o mal, pois eles só existem nas relações entre os homens, variando no tempo e no espaço e entre as diversas culturas. Há concepções coincidentes de bem e de mal entre algumas culturas, mas não constituem regras uni versais para todos os povos.

Místico – Disso se apercebeu Huberto Rohden e afirmou: “Deus não é bom nem mau, mas simplesmente “É” – e nada mais,”

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Cético – Se Deus não é bom nem mau, não ama nem odeia, não pune nem

recompensa, não é justo nem injusto, não é perfeito nem imperfeito, então o que é Deus?

Místico – Deus é. Tudo o mais são invencionices teológicas. Se essas indagações forem feitas à realidade, a resposta é a mesma: a realidade é.

Filósofo – O bem e o mal são escolhas felizes ou infelizes a cada situação do existir. Ou eventos que nos afetam e que os interpretamos como benéficos ou maléficos.

O bem ou o mal é o que funciona de acordo ou em desacordo com um dado sistema, seja ele físico, orgânico ou social.

Por sua vez, um sistema pode funcionar bem ou mal em relação a um sistema maior no qual está inserido. Assim, fazer o bem é agir de acordo com um determinado sistema biológico ou social com o qual se está relacionado. Fazer o mal é o contrário e o sofrimento é a sua consequência.

Místico – O Dhammapada ensina: “O mal é nosso próprio produto; ninguém pode poluir ou purificar outrem.”

Poeta – Máscaras de Deus, só existimos,

enquanto Deus em nós se representa. O Bem e o Mal são condições do palco

e cessam ao término do espetáculo. O pecado é pensar que existimos nos papéis que nos foram destinados. No pior vilão, no excelso herói, o mesmo Deus se exalta como ator.

Cético – Quando algo de ruim acontece a um ateu, os crentes declaram que foi castigo de Deus. Mas se o mesmo ocorre com um crente, eles se justificam alegando que foi a “vontade de Deus”.

Quando algo de bom acontece às pessoas, elas dizem que Deus é bom. Mas, quando se trata de algo mau, elas, com receio de dizer que Deus é mau, afirmam que ele as puniu por causa de seus pecados.

Os sobreviventes de uma tragédia crêem que Deus os salvou. Julgam-se, assim, pessoas privilegiadas. Mas, e as que morreram? Eram pecadores e mereceram essa punição?

Teólogo – Por certo, sim. As pessoas são responsáveis pelas ações que praticam. Se não são punidas nesta vida, receberão seu castigo depois da morte.

Filósofo – Porque somos mortais, na condição de seres biológicos, podemos morrer em decorrência das mais variadas causas. Nenhuma delas resulta de um castigo de Deus por mais dolorosa que ela seja. Tudo o que nos acontece decorre dos nossos atos ou de causas fortuitas.

Cético – Os religiosos acreditam que todo mal que nos afeta resulta de castigo de Deus, do destino, ou de consequências de vidas passadas.

Plotino desdenhava os pobres e oprimidos, porque, conforme acreditava, eles estavam pagando o que fizeram em vida anterior.

Em relação à reencarnação, questionamos: que lição nos traz a consequência dos atos praticados em vida anterior, se não nos lembramos de suas causas?

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Místico – Há evidências sugestivas de que a reencarnação é um fato e há pessoas que se recordam do que aconteceram em vida passada. Ademais, nem sempre nos lembramos das causas que nos fizeram sofrer na nossa existência física, mesmo utilizando dos recursos da psicoterapia

Filósofo – O bem e o mal são invenções do ser humano. O bem é tudo o que nos beneficia como também às pessoas que amamos. O mal é tudo o que julgamos que nos prejudica e também às pessoas que amamos.

Um fato é um fato: nós é que lhe damos um signifi cado. Procuramos sempre uma explicação para lidar com os nossos sentimentos. Resta, portanto, sem sentido a polêmica sobre a responsabilidade de Deus pelo que acontece no mundo e que nós denominamos de bem e de mal, segundo o modo que um fato nos afetou.

Místico – Podemos encontrar o mal no bem e o bem no mal: basta apenas discernir o oposto de cada um deles em cada caso específico.

Cético – Você faz o bem porque Deus existe?

Místico – Não. Eu faço o bem, porque isso me faz bem.

Cético – E se Deus não existisse, você faria o bem?

Místico – Sim, eu o faria.

Cético – Então, não é necessário que Deus exista para que você faça o bem. Ninguém precisa acreditar em Deus para fazer o bem. Os que acreditam, nem sempre

o fazem.

Místico – Sim. Não é necessário. Mas, muitas pessoas não pensam assim. Fazem da prática do bem um investimento metafísico para garantia de sua salvação e recompensa no Além.

Cético – Há outras que matam e se matam em nome de Deus para receberem o prêmio de, após a sua morte, residirem definitivamente no Paraíso. Elas continuariam a agir assim, se, um dia, perdessem a fé em Deus?

Teólogo – Para muitas pessoas, o Além compensa todos os sacri fícios, que fazem na vida terrena, entre eles a prática interesseira do bem.

Cético – E também do mal que fazem às outras pessoas tidas por inimigas de Deus. Matar ou morrer em nome de Deus é a mais perigosa de todas as psicoses coletivas da humanidade.

Teólogo – O ser humano não passa de um instrumento de Deus que dele se vale para realizar suas obras.

Cético – Boas e más? Afinal, por que Deus precisa do concurso das suas criaturas para realizar suas obras? Ele não é onipotente? Por que essa terceirização? Será que o onipotente está cansado ou entediado?

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Cientista – Concordo com o que disse Einstein: “Se as pessoas são boas só por temerem o castigo e almejarem uma recompensa, então realmente somos um grupo muito desprezível.”

E disse ainda: “A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte.”

Cético – A teologia proclama que Deus é amor, bondade, misericórdia. Se assim Ele é, deve sofrer continuamente, vendo o sofrimento dos seres humanos que condenou a sofrer eternamente no inferno. Se Deus é amor, ele sofre com o padecimento de suas criaturas. E sofrerá sempre, enquanto existir o sofrimento nos seres que ele criou. E sofre também pelos pecadores que estão no hipotético Inferno.

Se Deus sofre porque quer, ele é masoquista. Se sofre porque não pode ev itar o sofrimento, é porque ele não é onipotente. E, se é onisciente, por que criou os seres humanos, sabendo que sofreria com o sofrimento deles?

Se Deus é onipresente, os diabos e os condenados não estão privados de sua presença. Será que Deus assiste indiferente ao sofrimento eterno que, como dizem, lá existe? Aliás, certos teólogos inventaram um Deus terrível, porque impõe aos pecadores uma vida eterna de sofrimentos e permite aos demônios um perpétuo gozo sádico pelo sofrimento dos condenados.

Teólogo – Eles sofrem porque merecem. Não souberam usar sua liberdade e sofrem as consequências de seus erros. Se estão, agora, arrependidos, não há o que se fazer. Perderam essa oportunidade enquanto estavam vivos.

Cético – Bem, eles continuam vivos. Se Deus é misericordioso, ele os perdoaria pelo seu arrependimento, mesmo que estejam no inferno.

Teólogo – Mas eles nunca se arrependerão.

Cético – Isso não passa de uma opinião. Se Deus é bondoso, amoroso, misericordioso, Ele deve sofrer continuamente com o sofrimento das suas criaturas no inferno, mesmo que elas não estejam arrependidas. Ou, talvez, Ele não as ame mais.

JUSTIÇA

Teólogo – A justiça é um atributo divino, que corrige as injustiças do mundo. Se assim não o fosse, os injustos não receberiam seu devido castigo, se não fossem punidos pela justiça humana.

Filósofo – Os pitagóricos concebiam a justiça como uma relação aritmética, uma igualdade.

Para Sócrates, a justiça é fazer cada qual aquilo que lhe compete. Ele recomendava a obediência às leis, mesmo que sejam más, como um dever que o bom cidadão cumpre observar para desestimular os maus cidadãos a violar as leis boas.

Platão definia a justiça como a relação harmoniosa entre as várias partes do organismo social. Justiça, dizia ele, é o homem fazer o que lhe compete na posição em que foi colocado pela sua aptidão.

Ensinava Aristóteles que a justiça é igualdade e esta é avaliada pelo mérito e pela capacidade.

Há duas espécies de justiça: a) a distributiva, que se fundamenta na igualdade; b) a corretiva, que consiste na compensação aritmética dos prejuízos sofridos.

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Segundo Epicuro, "a justiça não existe por si mesma, porém acha-se sempre nas relações recíprocas, em qualquer lugar e tempo em que exista um pacto de não produzir nem sofrer danos."

Dizia Tomás de Aquino que justiça é dar a cada um o que lhe é devido. Advertia Espinosa que o problema da justiça não se fundamenta na natureza das

coisas, mas na natureza das relações sociais. Por isso, "no estado natural, não há nada que possa ser tomado por justo ou injusto", porque "o justo e o injusto, o pecado e o mérito são noções extrínsecas e não atributos que expliquem a natureza da alma."

Cético – Deus é visto por religiosos como a última instância dos julgamentos humanos. A título de compensação ou de consolação, eles o concebem como o Infalível Julgador, que ratifica ou retifica o julgamento falível dos homens. Os que se julgam injustiçados acreditam que serão recompensados na vida espiritual.

Teólogo – A justiça de Deus é insondável. Não poderemos jamais compreendê-la.

Cético – Como não podemos saber o que é a justiça de Deus, não tem sentido afirmarmos que Deus é justo, segundo o nosso entendimento.

Teólogo – Por isso, não podemos medir a justiça divina pelos nossos parâmetros. Deus não pode ser injusto.

Cético – Então, não devemos falar em justiça divina, porque é inútil argumentar sobre o que desconhecemos.

Teólogo – Se Deus não fosse justiça, não haveria punição para as pessoas que

praticaram o mal sob as mais diversas formas. A vida não teria sentido e a ética não passaria de uma ilusão.

Cético – Religiosos procuram explicar que os desastres naturais são castigos infringidos

às pessoas por causa de seus pecados. Ora, se todos são pecadores, por que apenas alguns são punidos?

Místico – Deus não é justo nem injusto. A justiça é uma invenção humana. Deus não nos pune. Nós é que sofremos em consequência dos nossos erros e de acontecimentos acidentais.

Cético – A justiça divina é incompreensível, porque pode condenar um pecador a uma pena eterna. Se uma pessoa receber, pela justiça humana, uma pena perpétua, poderá, depois de sua morte, ser condenado por Deus a uma prisão eterna?

Teólogo – Para evitar essa possibilidade, devemos agradá-Lo e jamais ofendê-Lo.

Místico – Deus é insuscetível de agrados e ofensas. Essas ações humanas não afetam sua liberdade de agir conforme queira.

Desfrutamos os fatos que nos dão um sentimento de beleza, e sofremos com aquelas que nos causam perdas e dissabores. Assim, não adianta litigar com Ele ou tentar entendê-Lo, e, sim, conviver com os imprevistos de Sua liberdade absoluta. Louvá-Lo, praguejar contra Ele, acreditar ou não na Sua existência, nada disso O afeta. Não seremos recompensados nem punidos por Ele. Nós é que nos recompensamos e nos punimos segundo o que acreditamos.

É inútil a esperança de querer sujeitar Deus às nossas necessidades. Ele a nada está obrigado e a nada se obriga.

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Cético – Justiça é a necessidade de compensação que uma pessoa sente quando se

considera prejudicada. Isso acontece até com os animais. Os macacos, por exemplo, esperam retribuição pelo que faz em favor do outro e se irritam quando não ocorre a reciprocidade.

O sentimento de vingança é o efeito colateral da injustiça praticada contra nós.

Místico – Deus não tem direitos e nem obrigações. Direitos e obrigações decorrem das relações humanas como um meio de convivência social.

Ninguém deve nada a Deus. Ninguém tem mérito em relação a Deus, nem direitos contra Deus.

Segundo o evangelista Mateus (5:45), Jesus teria dito que Deus “faz que o sol se le-vante sobre os maus e os bons, e a chuva desça sobre os justos e os injustos.”

Teólogo – Apesar disso, devemos sempre servir a Deus.

Místico – O ser humano não necessita servir a Deus, porque Ele de nada necessita, mas de servir a si mesmo em Deus. Podemos, ainda, além de nós servir, servir aos outros e ser servido por eles.

Cético – No Tribunal do Júri divino, Deus é o Juiz. Quem são o Promotor de Justiça e o

Advogado de Defesa?

PERFEIÇÃO

Teólogo – Deus é a perfeição. Por isso, tudo o que Ele faz é perfeito. Como somos seres imperfeitos temos uma ideia distorcida do que seja a perfeição.

Cético – Se somos criaturas criadas por Deus, como podemos ser imperfeitos? A explicação para esse paradoxo é o carcomido “pecado original”, que nos privou da nossa perfeição original.

Filósofo – O que é a perfeição?Uma máquina é perfeita quando realiza, sem erros, as funções que lhe foram destinadas pelo seu criador. Um organismo é perfeito quando não está enfermo, quando tem uma de suas funções reduzidas ou inutilizadas ou quando perdeu uma parte de si mesmo.

Mas, o que é perfeição moral? O que é perfeição espiritual? Por que somos imperfeitos, como pregam as religiões?

“Sede perfeitos como o vosso Pai é perfeito”, disse Jesus. Ora, se não sabemos o que é a perfeição humana, como poderemos saber o que é a perfeição divina?

Não existe um indivíduo mais perfeito ou menos perfeito do que outro de sua espécie ou de espécies diferentes.

Perfeito é algo que nunca muda e, portanto, sempre é o que é? É aquilo que é completo, que realizou todas as potencialidades, que alcançou todos seus objetivos, que jamais cometerá falhas, que não poderá ser melhor do que é? Então, tudo é imperfeito, porque está sempre a mudar.

Se a perfeição for a realização plena das potencialidades de cada ser, ao menos em relação ao homem ninguém é perfeito.

Místico – Se a evolução é infinita, o homem jamais atingirá a perfeição, porque ele não pára de evoluir.

Se a perfeição é o ser agir segundo ele é, o homem vive a perfeição a cada instante em que procede de conformidade com a sua natureza.

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Perfeito, sob o ponto de vista estritamente físico ou biológico, é tudo aquilo que não tem defeito em sua forma, estrutura e funcionamento. Assim, não há algo mais perfeito do que outro. Algo pode ser perfeito ou imperfeito segundo um dado modelo de perfeição, seja ele de natureza física, moral ou espiritual.

Cientista – Cada espécie tem seu modelo próprio de perfeição. Assim, não existe uma espécie mais perfeita do que outra. O homem não é a suprema perfeição da Natureza.

Tem razão Teilhard de Chardin: “Com que direito, por exemplo, se poderá dizer que o Mamífero - seja ele o Homem - está mais avançado e é mais perfeito que a Abelha ou a Rosa...?”

Místico – Se Deus fez o mundo perfeito, o mundo não precisa ser melhorado. Nós é que melhoramos o nosso conhecimento sobre o mundo e as nossas condições de habitar nele.

Teólogo – A perfeição é a ausência de defeitos. A realização plena de todas as possibilidades de um ser.

Filósofo – As mutações, em geral, são prejudiciais ou letais. Deus é responsável por elas?

Cético – Claro que é. Se a Natureza é um aspecto de Deus, por que ela comete erros? Teólogo – Essa é a concepção panteísta da Divindade. A natureza é uma criação de

Deus. A criação não é o seu criador. O que criamos não é parte de nós. Filósofo – Para os ateus, os chamados “erros” da natureza demonstram que, embora

ela tenha sido criada por um hipotético Deus perfeito, apresenta defeitos supervenientes ou de fabricação. Em qualquer dos casos, a perfeição divina seria contestável. Esses “erros”, porém, são o resultado das nossas limitações cognitivas. A repetibilidade e previsibilidade de muitos fenômenos da natureza nos deram a impressão de sua imutabilidade e, por conseguinte, da existência de uma ordem na natureza. Por isso, os fenômenos inusitados nos incomodam, porque parecem falhas ou imperfeições da ordem a que estamos acostumados.

Místico – Deus não cria seres perfeitos e imperfeitos, porque a perfeição não passa de um mero conceito. No entanto, há filósofos que, para fugirem desse embaraço, argumentam que Deus cria seres perfectíveis ou potencialmente perfeitos.

Cético – Mas, como explicar os casos teratológicos? Cegos de nascença, surdos-mudos, pessoas e animais com deformações físicas, xifópagos, mongolismo, gêmeos-parasitas e outras aberrações? Foi castigo divino ou consequências de vidas passadas? E os animais? As suas deformidades são consequência de seus “pecados” ou de deslizes no curso das reencarnações?

Teólogo – Uma potencialidade pode realizar-se fora de seus padrões pelas circunstâncias mais diversas e mais adversas.

Cético – Isso, porém, desqualifica os atributos de Deus, como a onisciência e a onipotência.

Teólogo – Perfeição é a atualização de todas as potencialidades de um ser. Por isso, Deus é a atualização de suas infinitas possibilidades. Aristóteles já postulava que em Deus nada existe em potencial. Por isso, ele era Ato Puro.

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Cientista – Então, podemos concluir que os seres individuais se tornam perfeitos,

quando atualiza todas as suas limitadas possibilidades. Logo, os seres estropiados nunca alcançarão a perfeição.

Cético – Por que Deus não nos fez perfeitos e imortais? O que ele, por ser onisciente, poderia esperar de seres imperfeitos e mortais? Mas, se somos imperfeitos e imortais, sofreremos eternamente, em virtude das ações decorrentes de nossa imperfeição.

Teólogo – Deus é infalível. Todas as coisas feitas por Deus são perfeitas. Assim, na

natureza não há defeitos ou erros. O que percebemos como defeitos ou erros decorrem da nossa limitação cognitiva.

Cético – Deus fez esse mundo tão mal feito, tão cheio de sofri mentos que ficou envergonhado e até hoje vive escondido.

Tem razão Arthur Schopenhauer quando opinou: “Se um Deus fez esse mundo, eu é que não gostaria de ser este Deus: a miséria aqui presente despedaçaria o meu coração.”

Como já dissemos anteriormente, Platão, para contornar o problema, afirmou que Deus não criou o mundo, mas, sim, o Demiurgo, uma espécie de Sub-Deus, o que explica as im- perfeições do universo. Ou seja: apesar de sua onisciência, Deus não soube escolher um ser que criasse, com competência, o mundo.

Mas, se Deus foi o criador do mundo e, depois, viu que era bom, por certo ele estava míope.

Místico – Mal feito e bem feito são conceitos humanos. O que seria, para nós, um mundo bem feito? Um mundo sem sofrimentos, sem catástrofes naturais? Um mundo racionalmente previsível para que pudéssemos controlá-lo? Um mundo sem aleatoriedade?

Cético – Se Deus criou o mundo perfeito, por que o mundo precisa ser supervisionado? Quem pode estragar a máquina do mundo? E, se pode, é porque a máquina do mundo não é perfeita. Como um Ser perfeito realiza uma obra imperfeita?

A providência divina é uma evidência de que Deus não é previdente. Nem é perfeito, porque precisa intervir no mundo para corrigir defeitos.

SOFRIMENTO

Filósofo – Uma das grandes questões existenciais é o sofrimento. O que é o sofrimento? Por que sofremos? Para que sofremos? O sofrimento é necessário? Podemos minimizar e até mesmo eliminar o sofrimento?

A dor é um bem ou um mal segundo as circunstâncias. É um bem na sua finalidade de alarme, salvaguardando a integridade do sistema. É um

bem, quando da dor se aprende uma lição e se amplia a capacidade de compreensão. É um bem, quando decorre de uma atitude de solidariedade, face ao sofrimento de outra pessoa. Finalmente, a dor é um bem, quando, sob qualquer aspecto, melhora aquele que a sofre.

A dor é um mal, quando se transforma no prazer de produzi-la em alguém (sadismo) ou em si mesmo (masoquismo). Ou quando é utilizada para fins de exibicionismo, autocomiseração, chantagem emocional, atenuação do sentimento de culpa e auto-santificação. Finalmente, a dor é um mal, quando, sob qualquer aspecto, piora aquele que a sofre.

As causas da dor são as mais variadas: erro próprio (voluntário ou involuntário) ou induzido por outrem, fatores socioculturais, naturais e ação de terceiros, enfermidades físicas e mentais, entre tantas outras.

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Não é bastante apenas o conhecimento das causas do sofrimento, mas a adoção de uma postura adequada, visando transformá-lo, sob qualquer aspecto, num bem para o indivíduo.

Teólogo – Devemos sofrer com resignação, porque é a vontade de Deus. Os filósofos estóicos também pensavam assim.

Cético – O seu Deus é um malvado e também sádico. Como os teólogos sabem que o sofrimento humano é uma imposição de Deus?

Filósofo – O Cristianismo distorceu o sentido do estoicismo. Devemos suportar o sofrimento, quando inevitável, como uma circunstância da vida e, não, por ser a vontade de Deus.

Místico – O Budismo afirma que a dor é um fenômeno universal e que o desejo, escravizando o homem às coisas materiais, é a causa do sofrimento. Assim, a cessação do sofrimento só ocorrerá com a extinção do desejo. O sofrimento não é apenas de natureza física, mas também psicológica e filosófica, resultante da própria experiência da transitoriedade, como também do apego à existência.

Filósofo – Eurípedes reconheceu que “o sofrimento é a lei de ferro da Natureza.” Para Schopenhauer,”a dor constitui a essência da vida.” Influenciado pelo pensamento

budista, afirmou: “O sofrimento decorre da vontade de viver, que é irracional e sem finalidade. A vontade é necessidade e a necessidade é dor. O próprio prazer é insatisfatório, pois, embora satisfeitas, as necessidades sempre se renovam.”

O sofrimento faz parte da vida. Por isso, não há como eliminá-lo. O que podemos é minimizá-lo, dependendo do modo como lidamos com ele. Não há anestesia geral permanente para o sofrimento de todos os seres da Natureza. Quanto mais vivemos, mais estamos expostos ao sofrimento.

O pior da dor não é a dor, mas a sua falta de significado. A dor que apenas dói é a dor que dói mais.

Montaigne advertia: “É preciso suportar com paciência as leis inerentes à nossa condição; somos feitos para envelhecer, enfraquecer, adoecer a despeito dos remédios. É necessário aprender a sofrer o que não há como evitar.”

Poeta – O sofrimento pode ser o parto, Que faz nascer, de nós, um ser melhor.

Cético – Mas, pode nascer um ser pior.

Místico – Nem sempre há partos felizes. A vida é insegurança e risco.

Cético – Há pensadores que enaltecem o sofrimento. Gandhi doutrinava que “é o

sofrimento, e só o sofrimento, que abre no homem a compreensão interior.” O místico cristão Mestre Eckhart acreditava que “a maneira mais rápida de se atingir a perfeição é através do sofrimento.”

Teólogo – Soren Kierkegaard acreditava que o homem encontra a redenção, não através da dor e, sim da própria dor.

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Místico – Santo Agostinho comentou: “Não interessa tanto o que a gente sofre, mas como sofre. Remexidos de igual maneira, o lodo exala horrível mau cheiro, o unguento, suave perfume”.

Jiddu Krishnamurti também ensinava: “Pensamos no sofrimento como um meio de se alcançar uma outra coisa – o céu, a paz, etc. - e por essa razão fizemos do sofrimento uma virtude.”

Para Huberto Rohden, “o sofrimento, em si, não redime e espiritualiza o homem, mas, sim, a atitude positiva e afirmativa que o homem assume em face do sofrimento.”

Filósofo – O sofrimento é o resultado das circunstâncias que independem da nossa vontade ou são consequências dela.

O sofrimento físico criou sua própria metafísica e esta é uma das causas do sofrimento psicológico. A metafísica do sofrimento inventou causas transcendentais para os males físicos, ensejando sentimentos de culpa e necessidade de perdão e salvação.

O sentimento metafísico da culpa gerou, durante séculos, a necessidade neurótica de penitências com vistas à salvação. A doença e o sofrimento eram tidos como punição divina e o mundo físico, um "vale de lágrimas", uma espécie de inferno transitório. O grande medo metafísico era a imagem do inferno, descrita em detalhes na “Divina Comédia”, de Dante, e no quadro "Juízo Final", de Hieronymus Bosch. Assim, o importante era suportar estoicamente o sofrimento e, até mesmo, procurá-lo como expiação dos pecados, na vida física passageira, para evitar o sofrimento eterno no inferno espiritual. A vida física era encarada como um mal necessário e o corpo, a prisão do espírito atormentado.

Cientista – O sofrimento físico é apenas a sinalização de algo errado no funcionamento de um sistema biológico. Ele tem caráter estritamente funcional, constituindo um alarme para indicar desajuste em alguma parte do organismo. A dor-alarme é, assim, uma dor útil. Torna-se, porém, inútil a partir do momento em que persiste, quando já cumpriu sua finalidade.

A ciência já diminuiu drasticamente a dor física e, em muitos casos, de maneira permanente, mediante o emprego dos mais poderosos analgésicos. O sofrimento psicológico também vem sendo combatido, com êxito, graças à administração dos ansiolíticos e anti-depressivos cada vez mais eficientes. E, ainda, do tratamento psicológico ou ps iquiátrico segundo o caso.

Teólogo – O sofrimento é prova da nossa imperfeição. Se fôssemos seres perfeitos, não sofreríamos.

Cético – Se assim for, todos os seres vivos, além do homem, são imperfeitos porque sofrem. E se o sofrimento é produto do pecado, todos os seres vivos pecaram, porque também sofrem.

Já argumentamos que, se Deus é perfeito, mas cria seres imperfeitos, ele não é perfeito.

Os sofrimentos passados se tornam experiências e galardões. Quem não gosta de contar as dificuldades que enfrentaram, os duros desafios que venceram, as dores suportadas e superadas? Os sofrimentos, sob esse aspecto, são nossos galardões subjetivos.

Filósofo – Não é bastante apenas o conhecimento das causas do sofrimento, mas a adoção de uma postura adequada, visando transformá-lo, sob qualquer aspecto, em um bem para o indivíduo.

O pensamento, mais do que o corpo, é que nos faz sofrer. O corpo sofre apenas a dor presente. O pensamento nos faz sofrer a dor passada, amplia a dor presente e nos faz sofrer antecipadamente uma imaginária dor futura.

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O sofrimento também se origina do sentimento de culpa. E há, também, o sofrimento inconscientemente infligido como forma de autopunição, mas projetado nos outros.

O sofrimento decorrente de um ato heróico pode também ser resultante de um sentimento camuflado de auto-destruição.

O homem, algumas vezes, transforma o sofrimento em arte, como catarse dos sen-timentos dele decorrentes. E, em certos casos, parece existir um sofrimento masoquista na criação artística.

Enquanto estamos vivos, sofremos. E nos fatigamos na busca de explicações confor- tadoras para a vida e o sofrimento. Nada sabemos sobre isso e talvez jamais o saibamos, embora o homem continue infatigavelmente em busca de respostas. Respostas, geralmente, não são soluções, mas analgésicos ou anestésicos. E essa paz que sentimos, como efeito das respostas sedativas, resulta da ilusão de que as nossas perguntas foram adequadamente respondidas e não cabe mais qualquer indagação. É o efeito placebo metafísico. Místico – A religião procura explicar o sofrimento humano como causa do pecado, purificação da alma ou consequência de erros de vidas passadas. O sofrimento é uma das causas da crença em Deus.

Cético – Há sofrimentos insuportáveis que podem levar os crentes a se revoltarem contra Deus e até mesmo descrer dele.

Místico – O sofrimento atroz em doença terminal e a proximidade da morte produzem

mais conversões do que as prédicas religiosas.

Teólogo – A fé não evita o sofrimento, mas pode torná-lo suportável. Sob o ponto de vista estritamente psicológico, ela funciona como um excelente psicotrópico para a solução dos problemas existenciais.

Filósofo – Há pessoas cujo sofrimento as torna insensíveis. É o calejamento psicológico decorrente do sofrimento recorrente. Existem também aquelas que conseguem extrair prazer de suas dores. São os masoquistas, historicamente representados por mártires e flagelantes, que esperam uma recompensa no Além pelo seu sofrimento voluntário ou não. E ainda as pessoas que sofrem pela vaidade de provar ao mundo a sua têmpera.

Teólogo – Por outro lado, há pessoas que reagem de maneira diferente, admitindo que Deus sabe o que faz e, por isso, se submetem à Sua vontade. Acreditam que o sofrimento tem um significado para elas e podem servir para a sua melhoria espiritual.

Cético – Isso não passa de um consolo e que pode durar a vida inteira.

Teólogo – Sim. De que lhes adiantaria sofrer por sofrer, sofrer sem significado para sua vida?

Cético – Isso é uma ilusão. Sofrimento é sofrimento. E só.

Teólogo – Quem poderia sofrer uma dor insuportável sem necessidade de um sedativo, seja ele de natureza física, psicológica ou espiritual? Talvez um masoquista realize essa proeza.

Cético – Sou movido pela razão e não pela fé. Há, no entanto, aqueles que pensam no sofrimento como um meio de se alcançar uma outra coisa – o céu, a paz, etc – e por essa razão fazem do sofrimento uma virtude.

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Místico - O pecado foi criação dos teólogos como justificativa para o sofrimento

humano. Por outro lado, pecados e leis são medidas cautelares para tornar possível a vida em sociedade, pois cada pessoa quer sempre o melhor para si, mesmo que, em certos casos, seja prejudicial a outrem ou à sociedade em geral.

Ninguém peca contra Deus, mas age contra o equilíbrio de seu organismo ou da harmonia social, sofrendo, como consequência, a enfermidade do corpo e a punição da lei.

Cético – O sofrimento insuportável de uma doença terminal justifica o suicídio.

Teólogo – Só Deus tem o direito de nos tirar a vida.

Cético – Então, Deus é um sádico, porque permite o sofrimento inútil de uma pessoa. É vão argumentar que o sofrimento é resultado de pecados nesta vida ou em vidas pretéritas, ou seja um processo de purificação do espírito. O que podemos fazer, em relação ao sof rimento, é minimizá-lo com fortes analgésicos e psicoterapia, quando impossível livrarmo-nos dele.

O Decálogo não proíbe o suicídio. Jesus não abordou esse assunto. Os monges budistas se suicidam como um protesto contra a tirania. Foram os teólogos cristãos que satanizaram o suicídio.

Teólogo – As preces sinceras e sentidas podem amainar o sofrimento. Deus nos auxilia em nossos sofrimentos, desde que recorramos a Ele.

Cético – E por que Deus não toma essa iniciativa, já que ele é tão bondoso. Por que só age se apelarmos para ele. E nem sempre ele atende o que lhe pedem?

Místico – Na vida física, tudo é transitório. Um dia teremos de morrer, seja depois de uma vida saudável, seja depois de uma vida pejada de sofrimentos físicos e psicológicos. Acontece que as pessoas não se conformam com isso e querem viver indefini damente.

Cientista – Max Weber observou que a necessidade racional de uma teodicéia do sofrimento e da morte teve efeitos extremamente fortes. Na realidade, essa necessidade modelou importantes traços de religiões como o hinduísmo, o zoroastrismo e o judaísmo e, até certo ponto, o cristianismo paulino e posterior.

Teólogo – O sacrifício que o homem oferece a Deus, sob as mais diversas formas, é uma contrapartida do sacrifício de Deus em benefício do homem. E por que esse sacrifício é uma necessidade para o ser humano? Porque ele quer partilhar o sofrimento com Deus e acreditar que Deus sofre com ele, por causa dele e por ele. Essa solidariedade de Deus para com os homens também pode servir para justificar a solidariedade entre as pessoas. O arquétipo da paternidade e/ou maternidade divina serve para inspirar, por isso, os sentimentos de solidariedade.

Místico – Sofremos na nossa condição de seres, como todos os demais organismos, porque estamos envolvidos no processo de eterno transformismo. No entanto, quanto mais nos conscientizamos do nosso Deus imanente, mais suportamos o sofrimento e mais nos tornamos solidário com as pessoas que sofrem. É o que o budismo define como compaixão.

Filósofo – Na mitologia grega, os deuses invejavam as pessoas felizes e causavam-lhes sofrimentos, despojando-as de seus bens e privando-as do convívio dos seus entes amados. Por isso, mesmo na atualidade, há pessoas que têm medo quando estão felizes e ficam na

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expectativa de que, por causa disso, algo de mau lhes aconteça. Essa pode ser umas das razões do temor a Deus.

Místico – O religioso masoquista sente prazer em cultuar um Deus que se agrada com os seus sofrimentos. Ele gosta de se sentir punido e se punir por seus pretensos pecados.

O religioso sadista se exalta em ver o sofrimento das pessoas que ele acredita estarem sendo castigadas por um Deus punidor.

Cético – Somente um Deus antropomórfico e cruel se rejubilaria com o aviltamento e o

sofrimento voluntário das pessoas que pensam, com isso, glorificá-lo. Eis uma divina relação sadomasoquista entre um Deus vaidoso e essas criaturas ingênuas.

Místico – Quem pode amar a um Deus que se agrada do sofrimento de suas criaturas e abomina e condena o prazer?

Poeta – Por que o prazer é pecado? Por que a virtude é ausência de prazer? Por que oferecer dores a Deus e não as nossas alegrias? O deus teológico é um sádico: exalta-se com o sofrimento e abomina o prazer e a alegria. Cético – Teólogos ensinam que Deus se agrada do sofrimento voluntário, oferecido a

ele pelos mártires. Quanto mais o crente se martiriza maior é o seu júbilo, porque se sente mais agradável a Deus. Já os sofrimentos involuntários são interpretados como uma ação de Deus para por à prova a fé do crente.

Teólogo – Trata-se de um equívoco. Certas pessoas acreditam que seu sacrifício agrada a Deus. É uma atitude primitiva que infelizmente é adotada por algumas pessoas com propensão masoquista.

Filósofo – No entanto, a religião prestigia e, de certo modo, incentiva os seus mártires.

Teólogo – Porque eles são exemplos de fidelidade a sua religião.

Filósofo – Há pessoas que acreditam em um Deus bondoso, apesar de todas as tragédias coletivas e individuais. Para elas, o sofrimento melhora o ser humano e, por isso, se conformam com ele. Assim, não se revoltam e mantêm a serenidade nas agruras da vida.

Teólogo – Para o crente, Deus é mais presente no auge do sofrimento.

Poeta – Deus não é a dor justificada,

o prêmio e o castigo além do túmulo, mas tudo o que não pode ser descrito nem humanamente compreendido.

Filósofo – Não há como evitar o sofrimento. O que nos cabe é lidar com ele, conhecendo as suas múltiplas causas e formas, para reduzir sua frequê ncia, diminuir sua intensidade e, em alguns casos, extingui-la.

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O homem não apenas sofre a dor real do presente, mas também as dores psicológicas do que passou e do que ele imagina possa acontecer.

O que nos faz sofrer, também, é a comparação que fazemos entre o que fomos e o que somos, entre o que somos e o que queríamos que fôssemos, entre o que somos e os que os outros são.

A dor que queremos (ou que pensamos ser) em nosso benefício dói sempre menos e é suportada com até orgulhoso estoicismo.

O avanço tecnológico vem reduzindo, cada vez mais, o sofrimento físico, emocional e/ou psicológico. Sofremos, fisicamente, muito menos do que no passado graças às mais diversas técnicas terapêuticas. Hoje, há mais sofrimento psicológico do que físico em virtude da complexidade cada vez maior das relações interpessoais, da vida tumultuada das metrópoles, das mudanças em ritmo acelerado, do processo competitivo no mercado de trabalho, das inconstâncias afetivas e outras coisas mais.

ATEÍSMO

Cético – O ateísmo vem combatendo, com severidade, o proselitismo religioso e

denunciando os males que as religiões, por seu fanatismo, causaram e continuam causando à sociedade. Inventaram Deus para dar sentido ao universo e às nossas vidas.

Teólogo – O mesmo vem acontecendo com o proselitismo ateísta. Alguns ateus agem como salvadores da humanidade, procurando provar às pessoas que Deus não existe, que a ideia de Deus não passa de um delírio. Se eles forem vitoriosos nessa cruzada profana, em pouco tempo será instaurada uma Inquisição atéia contra os crentes em Deus.

Filósofo – Há ateus que querem provar, a qualquer custo, que Deus não existe. O problema deve incomodá-los de algum modo. Se eles estivessem realmente certos da não existência de Deus, não perderiam seu tempo discutindo essa questão. Por que se empenham, em uma espécie de cruzada materialista, para converter crentes em ateus? Se Deus é uma fábula, por que se importam com isso? Por que essa vontade compulsiva de discutir sobre o que não acreditam? Será que se sentem no dever de salvar a humanidade dessa doença chamada Deus?

Um autêntico ateu não deve preocupar-se com as pessoas que acreditam em Deus. Nem demonstrar interesse em convencê-las do contrário, pois o ateísmo verdadeiro não é uma religião profana à procura de adeptos. Por que deveria o ateu tentar salvar as pessoas da perigosa ilusão da existência de Deus? Se ele assim proceder, estará fazendo de sua crença uma missão salvacionista.

Cético – Por causa das confusões teológicas, os ateus costumam, jocosamente, dizer: “Sou ateu, graças a Deus.”

Teólogo – Não é apenas jocoso, mas contraditório. Se o ateu o é, graças a Deus, está afirmando que sua descrença não resultou de uma deliberação sua, mas da vontade de Deus. E, ainda mais, que acredita que Deus o tratou, de maneira diferenciada, em relação aos crentes. Assim, os ateus admitem, implicitamente, que Calvino tem razão. Deus salva quem quer. E os pobres ateus foram excluídos da salvação.

Místico – Deus, apesar dos teólogos e dos ateus, é uma inesgotável fonte de inspiração poética. E o melhor modo de fazer variações sobre Deus é não temer os paradoxos.

Poeta – Os teólogos são os ficcionistas de Deus.

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São exímios contadores de histórias, que acreditam serem verdadeiras.

Filósofo – Roger Garaudy foi incisivo: “O ateísmo não é mais do que um teísmo às

avessas. Repousa sobre a mesma imagem de Deus. Fundamenta o mesmo tipo de ação; a partir de tal teísmo, como de tal ateísmo, só se pode chegar a um sistema autoritário e conservador.”

O materialismo é a crença de que não existe Deus, como o espiri tualismo é a crença de que ele existe.

Pode-se acreditar em Deus sem se ter uma religião. É mais fácil acreditar em Deus do que nas fantasias das religiões. Se acreditar em Deus é questão de fé, por que os teólogos se empenham tanto em provar sua existência? E como são desastrados nessa tentativa!

Teólogo – Quem acredita em Deus é feliz e está preparado para enfrentar melhor os

dissabores da vida.

Cético – Nenhum ateu é infeliz por que não acreditar em Deus. E muitos suportam com estoicismo, coragem e até resignação os problemas de sua vida. Não se revoltam contra Deus porque não acreditam na sua existência. Uns têm medo da morte, desesperam-se na doença, e se convertem no final da vida. Outros não temem a morte, não se abalam nas enfermidades e permanecem ateus até a morte. Procuram a felicidade nessa vida e, não, em um hipotético Além. É absurdo e mesmo infantil julgar que os ateus são pessoas más e os crentes, pessoas boas. Há crentes que se fazem de pessoas boas com medo do castigo de Deus e de, depois da morte, ganhar, como prêmio, o Paraíso. Os ateus não se preocupam em ganhar esse prêmio.

Teólogo – A humanidade estaria em perigo se, um dia, o ateísmo dominasse o mundo. Sem a crença em Deus, a vida perderia o sentido e o ser humano não mais acreditaria em normas e valores. Então, imperaria o princípio darwiniano da sobrevivência dos mais fortes.

Cético – Se o ateísmo dominasse o mundo, ninguém mais morreria ou mataria em nome da religião. André Gide acreditava que só o ateísmo pode pacificar o mundo de hoje. Em países como a Suécia e a Finlândia, há um grande número de ateus e neles reina a paz social.

Cientista – Talvez sim, talvez não. Se o ateísmo dominar o mundo pode transformar-se em sucedâneo laico da religião. Nada mudaria.

Filósofo – Se o ateísmo passasse a perseguir e/ou matar as pessoas religiosas, agiria como se fosse uma religião. Para Gustave Le Bom, se o ateísmo se propagasse, tornar-se-ia uma religião tão intolerável como as antigas.

Cético – Richard Dawkins argumentou em contrário: “Ateus podem fazer maldades, mas não fazem maldade em nome do ateísmo”.

E arrematou: “Não consigo pensar em nenhuma guerra que tenha sido combatida em nome do ateísmo”.

Cientista – Há uma coisa em comum entre religiosos e ateus fanáticos: a cegueira da irracionalidade e a anestesia do radicalismo.

Dawkins pretende liderar uma “Inquisição cética” contra a crença em Deus e a religião. Filósofo – O fanatismo é democrático: contamina religiosos e ateus.

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Cético – Felizmente, o ateu não mata ninguém em nome de Deus. Se todas as pessoas

fossem atéias, ninguém mataria ou morreria em nome de Deus, mesmo que Deus existisse.

Filósofo – Elas matariam ou morreriam, porém por outros motivos. Ou seja: as pessoas são as mesmas, quer acreditem ou não acreditem em Deus.

Cético – Nenhum avatar, Filho de Deus ou o próprio Deus encarnado conseguiu salvar ou mesmo melhorar a humanidade. O ser humano, basicamente, continua o que sempre foi através dos séculos e milênios, apesar de todo progresso científico e tecnológico da nossa época.

Místico – Crentes e ateus praticam as mais belas ações, como também as mais abomináveis. A fé ou a falta de fé não os torna melhores ou piores.

Cético – André Compte-Sponville expressou claramente o seu ateísmo: “Ser ateu não é saber que não há Deus, é crer que não há Deus.”

Filósofo – O materialismo é também uma crença. E, para muitos dos seus adeptos, uma fé cega.

Teólogo – O ser humano é naturalmente teocêntrico e, daí, a sua busca por Deus sob as mais diversas formas, nas diferentes religiões e culturas. O teocentrismo é inato no ser humano. Consciente ou inconscientemente estamos sempre à procura de Deus, ainda que seja para negá-lo.

Muitos ateus, em momentos de grande desespero, apelam para Deus, que eles não acreditam e, não, para o acaso, em que eles acreditam.

Cético – Uma pessoa em desespero apela para qualquer coisa que a livre de seu estado. É uma atitude emocional e, não, racional, o que não torna verdadeiro aquilo para o que ela apela.

Teólogo – Mas, há pessoas que acreditam em Deus sem necessidade do sofrimento, e outras que passam a acreditar n´Ele, quando o sofrimento termina.

Cito Werner Heisenberg: “O primeiro gole do copo das ciências da natureza o torna ateu; mas no fundo do copo Deus o aguarda.”

Cético – Os ensinamentos religiosos contrariam as leis da Natureza. Por que amar os nossos inimigos em vez de matá-los? Por que é preferível morrer a matar? Por que perdoar os inimigos, se eles, por certo, não nos perdoarão? Como podemos amar ao próximo como a nós mesmos, se, às vezes, nem sempre nos amamos?

Teólogo – Há ateus que, na proximidade da morte, fraquejam na sua descrença e imploram o auxílio de Deus.

Cético – Mas, há outros que morrem tranquilamente na descrença.

Místico – Quanto mais nos conscientizamos do nosso Deus imanente, mais diminui a influência da lei da sobrevivência dos organismos vivos. Então começamos a sentir a desnecessidade de matar, a atenuar o nosso medo de morrer, a não nos perturbamos com as ofensas, e a passar a nos amar e a amar a tudo que nos cerca. O homem velho biológico

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começa a ser substituído pelo homem novo espiritual, que habitará uma futura sociedade verdadeiramente solidária.

Filósofo – Ao final do nosso debate, quero cumprimentar os ateus, que, corajosamente, expõem suas ideias, apesar do preconceito da sociedade contra aqueles que pensam em desacordo com as suas crenças religiosas. É no contraditório que as pessoas, desprovidas de qualquer forma de radicalismo, podem discutir ideias opostas, sem a preocupação de impor seus pontos de vistas aos oponentes.

Fundamentalmente, o que interessa a todos nós é a solidariedade entre as pessoas e as nações, independente de crermos ou não cremos em Deus, apostando na re alização dessa utopia em um futuro próximo ou distante. Apesar de todos os obstáculos, não podemos perder a esperança em um mundo melhor.