174
AVANÇOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO LUDMILA CERQUEIRA CORREIA João Pessoa - PB 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Dh Pessoas Com Transtornos Mentais Autoras de Delitos (1)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Transtornos Mentais e delitos

Citation preview

  • AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO

    LUDMILA CERQUEIRA CORREIA

    Joo Pessoa - PB 2007

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    PS-GRADUAO EM CINCIAS JURDICAS REA DE CONCENTRAO EM DIREITOS HUMANOS

  • LUDMILA CERQUEIRA CORREIA

    AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Jurdicas da Universidade Federal da Paraba, rea de concentrao em Direitos Humanos, na linha de pesquisa excluso social, polticas pblicas e direitos humanos, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre.

    Orientadora: Dra. Monique Guimares Cittadino. Co-orientadora: Dra. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima.

    Joo Pessoa - PB 2007

  • C824a Correia, Ludmila Cerqueira.

    Avanos e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito / Ludmila Cerqueira Correia. Joo Pessoa, 2007.

    174 p.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Paraba, Programa de Ps-Graduao em Cincias Jurdicas, Concentrao em Direitos Humanos.

    Orientadora: Dra. Monique Guimares Cittadino Co-orientadora: Dra. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima

    1. Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico 2. Sade Mental 3. Reforma Psiquitrica 4. Direitos humanos

    CDU - 342.7

  • LUDMILA CERQUEIRA CORREIA

    AVANOS E IMPASSES NA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS AUTORAS DE DELITO

    Data da defesa: 23 de novembro de 2007.

    Componentes da Banca Examinadora:

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Monique Guimares Cittadino (Orientadora)

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima (Co-orientadora)

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Sueli Gandolfi Dallari (Avaliadora Externa - USP)

    ________________________________________________________________

    Professor Doutor Jos Ernesto Pimentel Filho (PPGCJ/UFPB)

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva (CCS/UFPB)

    Joo Pessoa - PB 2007

  • A todas as pessoas que ainda acreditam

    que um outro mundo possvel.

    A Eduardo Arajo, pela poesia da vida

    e pela incansvel luta pelos direitos humanos.

  • AGRADECIMENTOS

    Depois de tantas madrugadas, conversas, canes, dvidas, reflexes, poesias, pensamentos,

    devaneios, inquietudes, emoes e trocas, tenho a sensao de que este trabalho no termina

    aqui. A caminhada foi longa, mas o caminho no era deserto. Nesta trajetria, contei com

    pessoas valiosas, s quais agradeo com todo o meu amor.

    s irms que ganhei durante o Mestrado e levo no meu corao, Sara e Ciani, por tudo.

    Ao ncleo duro dos direitos humanos, Cristina e Ricardo, vocs so especiais.

    A Fredys Sorto, pelo exemplo de vida e dedicao docncia.

    A Maria e a Carlos, funcionrios do PPGCJ/UFPB, pela enorme ateno e cuidado.

    A Edda Fontes, pelo acolhimento e pela amizade construda.

    Aos alunos e alunas da turma de Servio Social da UFPB com a qual realizei o estgio

    docncia, pela confiana e por confirmar que ensinando se aprende todo dia.

    Ao Programa ALFA, na pessoa do Professor Emilio Santoro, pelo conhecimento

    compartilhado e pela orientao durante a minha pesquisa na Itlia.

    Ao Dr. Franco Scarpa e s demais pessoas que me receberam para realizar a pesquisa no

    Manicmio Judicirio de Montelupo Fiorentino na Itlia, pelos textos, vivncias e idias

    compartilhadas.

    Ao Dr. Paolo Tranchina pela disponibilidade e dilogos sobre a Reforma Psiquitrica.

    minha famlia italiana, Sonia, Carlo e Fabio, pela solidariedade e pelo amor incondicional.

    A Marcus Vinicius, pelo carinho e amizade de sempre, e a Thiago Pithon pela amizade

    iniciada com o fio da internet e consolidada pelas idias, inquietudes e carinhos partilhados.

    direo e aos funcionrios do HCT-BA por possibilitar a pesquisa de campo deste trabalho.

    s amigas e aos amigos que compreenderam a minha ausncia nesse perodo e me deram

    fora para continuar.

  • A Monique Cittadino, que topou o desafio da orientao deste trabalho.

    A Isabel e Vaninha, por compartilhar saberes, vontades e sonhos.

    minha me e ao meu pai, pelo apoio, pela fora e pelo amor inesgotveis.

    A todas as pessoas loucas, pela poesia que impulsiona e descreve nossas vidas.

    Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e,

    assim descobrindo-se, com eles sofrem,

    mas, sobretudo, com eles lutam.

    Paulo Freire

  • RESUMO

    O presente trabalho analisa os avanos e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito internadas em Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP). Procedeu-se a uma reviso terica sobre a constituio da instituio manicomial judiciria, destacando o conceito de periculosidade social que ainda fundamenta o modelo assistencial asilar/segregacionista para o tratamento dessas pessoas. Discutem-se os dispositivos da legislao penal brasileira referentes s pessoas com transtornos mentais que cometem delito, salientando a criao e a consolidao da medida de segurana, alm de abordar a questo da sade no HCTP e a reafirmao desse modelo de separao e excluso. A concepo contempornea dos direitos humanos foi tomada como referncia, observando a condio de sujeitos de direitos desse grupo vulnervel. Realiza-se, ainda, reviso bibliogrfica na rea de direitos humanos e sade mental tendo como parmetro os instrumentos internacionais e nacionais de proteo de direitos humanos, com destaque para aqueles especficos das pessoas com deficincia e das pessoas com transtornos mentais. Enfatiza-se o Movimento da Reforma Psiquitrica, que tem subsidiado propostas de reorientao do modelo assistencial hegemnico em sade mental, e a Poltica Nacional de Sade Mental. Discutem-se as possibilidades de mudana no modelo de ateno sade mental das pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil a partir dos princpios da Reforma Psiquitrica e da Lei n 10.216/2001. A anlise da implementao da garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito realizou-se mediante a estratgia de pesquisa de estudo de caso do Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia (HCT-BA). Procedeu-se a uma coleta de dados relativos ao HCT-BA e a anlise dos dados orientada pelos princpios da pesquisa qualitativa. Verificou-se que, embora tenham sido efetuadas algumas mudanas no HCT-BA, a instituio tem preservado o seu carter asilar/carcerrio, evidenciando uma tradio fundada na negao dos direitos humanos dos internos. Apresentam-se, ainda, as experincias j iniciadas no Brasil visando reorientar o modelo de ateno sade mental dos loucos infratores. O avano normativo no consolida, de per si, a materializao das recentes conquistas advindas a partir da Reforma Psiquitrica, particularmente quanto ao segmento das pessoas com transtorno mental autoras de delito.

    Palavras-chave: Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico. Sade Mental. Reforma Psiquitrica. Direitos Humanos.

  • ABSTRACT

    The present work analyses the advances and setbacks in the assurance of human rights of those who are criminally insane, hospitalised in Custody and Psychiatric Treatment Hospitals (CPTH). Theoretical revision was held on the constitution of the asylum institution, emphasising the concept of social dangerouness, which still supports the segregationalist asylum assistance model. Discussions are held about topics on the Brazilian penal system related to the criminally insane, emphasising the creation and consolidation of precautionary action, besides approaching the matter of healthcare at CPTH and the reaffirmation of this segregationalist, excluding model. The contemporaneous concept of human rights was taken as a reference, taking into consideration the condition of subjects of rights of this vulnerable group. There is still a bibliographical revision on the field of Human Rights and Mental Health, having as a parameter the international and national instruments of protection to the human rights, emphasising those specific of the handicapped or mentally insane. Emphasis is given to the Psychiatric Reform Movement, which has supported proposals of reorientation of the hegemonic assistance model in Mental Health, and the national policies on it. The possibilities of changes in the model of attention and Mental Health of those criminally insane in Brazil, following the principal of the psychiatrist reform and the Law n 10.216/2001. The analysis of the implementation of the assurance of human rights for the criminally insane was

    analized through a case study at Custody and Treatment Hospital of Bahia. There was data collection related to HCT-BA and the analysis of data orientated by the principles of qualitative research. It was verified that, although some changes had been made at the hospital, the institution has preserved its asylum characteristics, making clear a tradition based on the negation of human rights of those hospitalized. Finally, experiments previously started in Brazil are presented, aiming to reorient the model of attention to the criminally insane. The improvement of the legislation, per se, does not guarantee the materialization of recent strides gained through the Psychiatric Reform, particularly in relation to criminals with mental disorders.

    Key words: Custody and Psychiatric Treatment Hospitals, Mental Health, Psychiatric Reform, Human Rights.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CF Constituio Federal

    CFM Conselho Federal de Medicina

    CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade

    CP Cdigo Penal

    CPP Cdigo de Processo Penal

    DAP Departamento de Assuntos Penais

    DEPEN Departamento Penitencirio Nacional

    DUDH Declarao Universal dos Direitos Humanos

    HCT-BA Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia

    HCTP Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico

    INAMPS Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social

    LBHM Liga Brasileira de Higiene Mental

    LEP Lei de Execuo Penal

    LOS Lei Orgnica da Sade

    MJ Ministrio da Justia

    MPE-BA Ministrio Pblico do Estado da Bahia

    MTSM Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    OMS Organizao Mundial da Sade

    ONU Organizao das Naes Unidas

    OPAS Organizao Pan-Americana da Sade

  • PAILI Programa de Ateno Integral ao Louco Infrator

    PAI-PJ Programa de Ateno Integral ao Paciente Judicirio

    PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos

    PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

    PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos

    PNDH II Programa Nacional de Direitos Humanos II

    PSF Programa Sade da Famlia

    SAP Superintendncia de Assuntos Penais

    SCNES Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade

    SEDES Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate Pobreza

    SESAB Secretaria da Sade do Estado da Bahia

    SJCDH Secretaria da Justia, Cidadania e Direitos Humanos

    SRT Servio Residencial Teraputico

    SUS Sistema nico de Sade

    TAC Termo de Ajustamento de Conduta

    VEPMA Vara de Execues Penais e Medidas Alternativas

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................... 14

    CAPTULO I Criao do manicmio judicirio no Brasil ........................................... 19

    1. Manicmio: que lugar esse? ............................................................................................ 19 1.1. Breve histrico da assistncia psiquitrica brasileira ...................................................... 26 2. A necessidade de um manicmio judicirio ................................................................... 35 2.1. Manicmio judicirio no Brasil ...................................................................................... 39 2.2. Periculosidade social e loucos criminosos ...................................................................... 44

    CAPTULO II Direito X Sade no manicmio judicirio ............................................ 52

    1. Cdigos penais de 1830, 1890 e 1940 ................................................................................ 52 1.1. Instituio da medida de segurana ................................................................................ 56 2. Reforma penal de 1984 ...................................................................................................... 63 2.1. Medida de segurana: tratamento? .................................................................................. 67 3. Sade no manicmio judicirio .......................................................................................... 71 3.1. Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico: reafirmao do modelo hospitalocntrico de separao e excluso .............................................................................. 76

    CAPTULO III Direitos humanos e loucos infratores .................................................. 81

    1. Concepo contempornea dos direitos humanos ............................................................. 81 1.1. Direitos humanos e grupos vulnerveis .......................................................................... 83

    2. Instrumentos internacionais e nacionais de proteo e defesa dos direitos humanos dos loucos infratores ............................................................................................... 89 2.1. Normativa internacional .................................................................................................. 91 2.2. Constituio Federal e normativa brasileira .................................................................... 97 2.2.1. Reforma Psiquitrica e Poltica Nacional de Sade Mental ...................................... 103

  • CAPTULO IV O lugar dos direitos humanos num manicmio judicirio .............. 112

    1. Reforma Psiquitrica: reflexos no manicmio judicirio? ............................................... 112 2. Acesso aos direitos humanos dos internos no Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia: estudo de caso .................................................................................. 115 2.1. Estratgia e tcnicas da pesquisa .................................................................................. 116 2.2. Contextualizao do Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia .............................. 119 2.3. Mudanas e permanncias no Hospital de Custdia e Tratamento da Bahia ................ 128 3. Garantindo os direitos humanos dos loucos infratores: um caso contra-hegemnico ..... 152

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 156

    REFERNCIAS ................................................................................................................. 161

  • 14

    INTRODUO

    A cultura existente no imaginrio da sociedade e no modelo assistencial

    asilar/carcerrio para o tratamento das pessoas com transtornos mentais no tem assimilado,

    ao longo do tempo, os princpios dos direitos humanos: universalidade, indivisibilidade,

    interdependncia e inter-relao. A prpria expresso impressa no denominativo comum

    relativamente aos internos configura a natureza desta excluso: loucos, independentemente de

    serem autores de delito ou no. Esta cultura evidencia a presena de um paradigma fundado

    na negao dos direitos humanos dos pacientes psiquitricos.

    No Brasil, o debate sobre sade mental e direitos humanos se ampliou na dcada de

    1970, a partir do Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental, que passou a denunciar as

    violaes de direitos civis e o modelo privatizante e hospitalocntrico adotado pelo Estado e a

    elaborar propostas visando uma transformao da assistncia psiquitrica. Foi a partir desse

    Movimento, que fundou a luta antimanicomial e originou o Movimento pela Reforma

    Psiquitrica, que se iniciou a crtica, no Brasil, da psiquiatria como prtica de controle e

    reproduo das desigualdades sociais, e o debate acerca da necessidade da

    desinstitucionalizao.

    Ao estudar a histria da sade mental no Brasil e no mundo, verifica-se a criao do

    manicmio como uma resposta social loucura (BASAGLIA, 1985; PESSOTTI, 1996;

    COSTA, 2003; FOUCAULT, 2004a). O manicmio se constitui como lugar da separao e

    segregao, configurando-se como uma instituio total destinada s pessoas excludas da

    sociedade (DE LEONARDIS, 1988; GOFFMAN, 2003). Desde a sua origem, tal instituio

    objeto de denncias sobre as condies das pessoas ali internadas. Nessas denncias, tambm

    consta a situao dos manicmios judicirios.

  • 15

    O manicmio judicirio o lugar institucional destinado s pessoas com transtornos

    mentais autoras de delito. No Brasil, tal instituio existe desde 1923, e, com a Reforma Penal

    de 1984, passou a ser denominada Hospital de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP),

    integrando o sistema penitencirio. Embora seja um hospital, est vinculado s Secretarias

    Estaduais que administram o sistema prisional, e no s Secretarias Estaduais de Sade.

    A manuteno do modelo hegemnico de ateno psiquitrica aos loucos infratores

    tem favorecido uma assistncia custodial, impossibilitando mudanas que venham a integrar a

    pessoa sua comunidade e, especialmente, o respeito aos direitos individuais previstos pela

    Constituio de 1988. Ainda hoje so constantes a falta de tratamento adequado; o excessivo

    uso de medicamentos; condies sanitrias precrias; maus-tratos; insalubridade; uso de

    quartos fortes ou quartos individuais1; falta de acesso justia; reduzido nmero de

    profissionais e despreparo dos existentes; ausncia de mecanismos que preservem o vnculo

    com os familiares. Tais violaes demonstram o comprometimento dessa instituio com um

    modelo ultrapassado, que toma o sujeito como objeto da sua ao e no garante os seus

    direitos.

    A inexistncia de uma poltica nacional para a reorientao do modelo de ateno nos

    HCTP, a falta de projetos estaduais para a reinsero social assistida das pessoas ali

    internadas e a ausncia de um vnculo desta instituio com o Sistema nico de Sade (SUS),

    tm mantido a pessoa com transtorno mental autora de delito margem das mudanas que

    vm sendo efetuadas no mbito do modelo de ateno sade mental no Brasil a partir da Lei

    n 10.216/2001.

    1 Os quartos individuais tm cerca de 10 metros quadrados; no tm cama; num dos cantos, h uma latrina

    daquele tipo em que a pessoa se agacha para usar; e o paciente fica completamente nu. Funcionam de forma parecida com as celas solitrias dos presdios convencionais, para onde so enviadas as pessoas presas que apresentam mau comportamento. Nos hospitais psiquitricos comuns, sempre foram usados como castigo. No Brasil, eles foram formalmente banidos atravs da Portaria n 224/92 do Ministrio da Sade, porm, ainda so encontrados em algumas instituies psiquitricas, como os Manicmios Judicirios.

  • 16

    As pessoas com transtorno mental autoras de delito, na sua maioria, ainda so

    assistidas sob a noo da periculosidade social, constituindo-se alvo de uma dupla

    estigmatizao: loucas e criminosas. Esse tratamento, que no prev qualquer insero nos

    servios de referncia do SUS, configura-se como um dos elementos constituintes das

    violaes dos direitos humanos dessas pessoas.

    Ao longo do sculo XX e no incio do sculo XXI, diversos documentos internacionais

    na rea da sade passaram a estabelecer as conexes entre o direito sade, os direitos

    humanos e os direitos das pessoas com transtornos mentais (OMS, 2005). Alm disso, devem-

    se ressaltar os instrumentos nacionais, como a Constituio Federal de 1988 e a legislao

    sobre sade mental, incluindo-se as portarias e resolues que tratam dessa matria.

    A articulao entre sade mental e direitos humanos interessa sociedade, aos

    profissionais, aos usurios dos servios e s respectivas famlias. J no se justifica a

    dicotomia do binmio indivduo-sociedade, pois a discusso sobre a dignidade da pessoa,

    independentemente de ser paciente ou autora de delitos, plasma contedos das cincias da

    sade, das cincias jurdicas e das cincias sociais.

    Este trabalho objetiva, portanto, analisar os avanos e impasses na garantia dos

    direitos humanos das pessoas internadas nos HCTP, examinando o conjunto de normas e as

    tendncias de mudana legislativa, na conjuntura internacional e brasileira, para, a seguir,

    discutir as peculiaridades, impasses e perspectivas na garantia dos direitos das pessoas com

    transtornos mentais autoras de delito. Ressalte-se que na delimitao do presente estudo,

    considera-se a relao entre a concepo contempornea dos direitos humanos e a garantia

    dos direitos desse grupo vulnervel.

    O trabalho dividido em quatro captulos. No primeiro, apresenta um histrico da

    instituio manicomial e da assistncia psiquitrica brasileira. Aborda-se a origem do

    tratamento dispensado s pessoas com transtornos mentais, bem como a constituio do saber

  • 17

    mdico psiquitrico e a sua imposio como modelo de assistncia sade mental. Em

    seguida, desenvolve uma breve anlise histrica da instituio manicomial judiciria desde a

    sua criao at os dias atuais, destacando o carter ambguo de sua constituio: hospital e

    priso.

    No segundo captulo, discutem-se os dispositivos da legislao penal referentes s

    pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil os Cdigos Penais de 1830,

    1890 e 1940; a Lei n 7.209 de 11 de julho de 1984 alm do Cdigo de Processo Penal e da

    Lei de Execuo Penal, salientando a criao e a consolidao da medida de segurana e o

    conceito de periculosidade, alm de abordar a questo da sade no HCTP.

    O terceiro captulo refere-se ao tema dos direitos humanos e sua concepo

    contempornea, identificando as pessoas com transtornos mentais autoras de delito como

    integrantes dos chamados grupos vulnerveis, ressaltando a sua condio de sujeitos de

    direitos. A partir desse cenrio se passa a estudar a normativa internacional e o ordenamento

    jurdico interno de proteo e defesa dos direitos humanos, especialmente os instrumentos

    voltados s pessoas com transtornos mentais, enfatizando a Constituio Federal de 1988 e a

    legislao sobre sade mental, com destaque para a Lei n 10.216/2001, tendo em vista que se

    constituem ferramenta eficaz para promover o acesso aos servios de ateno em sade

    mental, alm de promover e proteger os direitos humanos das pessoas com transtornos

    mentais autoras de delito.

    O quarto e ltimo captulo discute os reflexos da Reforma Psiquitrica no HCTP,

    abordando as possibilidades de mudana no modelo de ateno sade mental das pessoas

    com transtornos mentais autoras de delito no Brasil a partir dos princpios da Reforma

    Psiquitrica e da Lei n 10.216/2001. Analisam-se os avanos e impasses na garantia dos

    direitos dessas pessoas a partir de um estudo de caso realizado no Hospital de Custdia e

    Tratamento da Bahia (HCT-BA), procurando identificar se as prticas institucionais ali

  • 18

    exercidas assimilaram os princpios da Reforma Psiquitrica ou ainda favorecem uma

    assistncia custodial, dificultando ou impossibilitando o acesso daquelas pessoas aos direitos

    humanos. So apresentadas a estratgia e as tcnicas da pesquisa, a contextualizao dessa

    instituio manicomial judiciria bem como os dados coletados no HCT-BA, na Vara de

    Execues Penais e Medidas Alternativas, na Secretaria da Justia, Cidadania e Direitos

    Humanos e na Secretaria da Sade do Estado da Bahia, bem como a anlise desses dados.

    Apresenta, ainda, as experincias pioneiras no Brasil visando reorientar o modelo de ateno

    sade das pessoas com transtorno mental autoras de delito.

  • 19

    CAPTULO I Criao do manicmio judicirio no Brasil

    1. Manicmio: que lugar esse?

    A palavra manicmio deriva do grego: mana significa loucura e komin quer

    dizer curar. Portanto, a partir do seu significado, se infere que o manicmio seja um instituto

    destinado ao tratamento das pessoas com transtornos mentais. O termo se refere aos dois tipos

    de hospital psiquitrico, a instituio destinada cura de tais pessoas, e aquele que h

    algum tempo se definia como manicmio judicirio, hoje denominado Hospital de Custdia e

    Tratamento Psiquitrico, voltado para as pessoas com transtornos mentais que cometeram

    delito.

    Nos sculos XVI e XVII, para o acolhimento dos loucos existiam os Hospitais e as

    Santas Casas de Misericrdia. Estas instituies configuravam-se como espaos de

    acolhimento piedoso, nos quais os religiosos recebiam os excludos, doentes, ladres,

    prostitutas, loucos e miserveis para dar-lhes algum conforto e, de certo modo, diminuir seu

    sofrimento (AMARANTE, 1998; FOUCAULT, 1984, 2004a). Assim, o hospcio tinha uma

    funo caracterstica de hospedaria, representando o espao de recolhimento de todas

    aquelas pessoas que simbolizavam ameaa lei e ordem social. Conforme afirma Barros

    (1994b, p. 29), a excluso dos loucos estava vinculada a uma situao de precariedade

    comum a outras formas de misria, de pobreza e de dificuldade econmica.

    Durante a Idade Mdia, o enclausuramento no possui uma finalidade vinculada

    medicalizao, existindo apenas uma prtica de proteo e guarda (AMARANTE, 1998). O

    significado de tal prtica se referia a uma excluso genrica e no a uma segregao

  • 20

    institucionalizada. E, somente no sculo XVIII, o internamento comea a ter caractersticas

    mdicas e teraputicas (FOUCAULT, 2004c, 2004b).

    Naquele perodo histrico, alm das medidas legislativas de represso, foram criadas

    as casas de correo e de trabalho e os hospitais gerais, que eram destinados a retirar das

    cidades os mendigos e anti-sociais em geral, a oferecer trabalho para os desocupados, punir

    a ociosidade e reeducar a partir de uma instruo religiosa e moral. Os loucos e os demais

    deserdados, confinados nos pores das Santas Casas e nos hospitais gerais, sofriam diversos

    tipos de punio e tortura (RESENDE, 2001).

    Porm, no final do sculo XVIII, com os princpios da Revoluo Francesa e a

    declarao dos direitos do homem nos Estados Unidos, aumentam as denncias contra as

    internaes arbitrrias dos doentes mentais e seu confinamento junto com as demais pessoas

    marginalizadas socialmente, e contra as torturas perpetradas, disfaradas ou no sob a forma

    de tratamentos mdicos, de que eram vtimas como destaca Resende (2001, p. 25). Assim, se

    inicia um movimento de reforma em pases como a Frana, Inglaterra e Estados Unidos, que

    culminou com a criao do manicmio: este espao seria destinado para os loucos, que, ento,

    seriam separados das outras pessoas que eram encontradas nos asilos e receberiam cuidado

    psiquitrico sistemtico.

    O manicmio surge no final do sculo XVIII como local para ser tratada a loucura,

    com ocultamento e excluso, com vistas a uma cura, de acordo com a ordem fundada pelo

    mdico francs Philippe Pinel, a qual representa o marco inaugural da fundao da chamada

    Medicina Mental ou Psiquiatria. Ele criou o primeiro mtodo teraputico para a loucura na

    modernidade, denominado Tratamento Moral, baseado em confinamentos, sangrias e

    purgativos, e, finalmente, consagrou o hospital psiquitrico como o lugar social dos loucos

    (FOUCAULT, 2004b; COSTA, 2003; RESENDE, 2001). O referido mtodo consistia em

    usar do rigor cientfico e da insuspeio moral do mdico para convencer o louco a voltar

  • 21

    sanidade mental, buscando analisar e classificar seus sintomas (BIRMAN, 1978; PESSOTTI,

    1996; COHEN, 2006b).

    De acordo com Castel (1978), o mtodo criado por Pinel estabelecia a doena como

    problema de ordem moral. Pinel acreditava que o isolamento dos alienados era essencial

    para observar a sucesso de sintomas e descrev-los, e organizava o espao asilar a partir dos

    diversos tipos de alienados existentes com esse objetivo. O princpio do isolamento

    constituia-se como recurso necessrio para retirar o alienado do meio confuso e

    desordenado e inclu-lo em uma instituio disciplinar regida por normas, regulamentos, e

    diversos mecanismos de gesto da vida cotidiana que reordenariam o mundo interno daquele

    sujeito e o resgatariam para a razo (PELBART, 1989). Assim, transformava o hospital em

    instituio mdica, e no mais filantrpica, para que o discurso e prticas mdicos se

    apropriassem da loucura.

    O internamento no manicmio, diferentemente daquele feito nas Casas de Correo,

    adquire status mdico e tal instituio se torna lugar de cura: seu objetivo vai alm da

    conteno, e no o faz introduzindo a cincia mdica, mas atravs de uma nova forma

    institucional que une as funes controversas de proteo da sociedade do perigo e tratamento

    curativo das doenas psquicas. O espao que era somente o emblema da separao social se

    transforma em um terreno em que o mdico e o doente troquem suas diferentes linguagens.

    Neste momento, o internamento adquire credibilidade mdica e se torna o destino da loucura,

    isolando aquilo que ela representa: perigo social e doena mental.

    Segundo Resende (2001), esse representou o ponto de partida da assistncia

    psiquitrica de massa e, para alguns autores nacionais (UCHA, 1981; COSTA, 1989), seus

    princpios teriam inspirado o pensamento dos alienistas brasileiros e moldado a organizao

    da assistncia ao doente mental no Brasil. Ele acrescenta ainda que enquanto alguns autores

    consideram tal movimento uma revoluo no tratamento aos loucos, outros afirmam que os

  • 22

    reformadores do sculo XVIII nada mais teriam promovido seno a substituio da violncia

    franca pela violncia velada da ameaa e das privaes. (RESENDE, 2001, p. 26). Nesse

    sentido, Amarante (1998, p. 25-6) afirma: o gesto de Pinel ao liberar os loucos das correntes

    no possibilita a inscrio destes em um espao de liberdade, mas, ao contrrio, funda a

    cincia que os classifica e acorrenta como objeto de saberes/discursos/prticas atualizados na

    instituio da doena mental. Na verdade, mesmo com a instituio da funo mdica, na

    maior parte das instituies manicomiais, as condies de vida das pessoas ali internadas

    ainda eram deplorveis (PESSOTTI, 1996).

    Diferentemente dos asilos (instituies com mera funo de abrigo ou recolhimento) e

    dos hospcios (espaos ou edifcios, administrados como partes dos hospitais gerais

    destinados exclusivamente aos alienados), os manicmios caracterizavam-se por acolher

    apenas doentes mentais e dar-lhes tratamento mdico sistemtico e especializado. Conforme

    Pessotti (1996, p. 152), tais instituies j existiam antes do sculo XIX, embora sua funo

    hospitalar ou mdica fosse, ento, reduzida a bem pouco, visto que a figura do mdico

    especialista em tratar loucos, o alienista ou o freniatra, surgiria apenas no sculo XIX.

    Assim, o nome manicomio designa o hospital psiquitrico, porque antes da reforma

    implementada por Pinel, a administrao dos hospcios estava muito longe de qualquer

    projeto psiquitrico (PESSOTTI, 1996, p. 153).

    Para Silva Filho (2001, p. 91), a positividade do alienismo constituiu-se praticamente

    em responder a uma demanda social e poltica que objetivava controlar, sem arbtrio, a

    desordem social configurada no personagem do louco. Ainda segundo esse autor (2001, p.

    91),

    o alienismo instaura uma nova relao da sociedade com o louco: a relao de tutela, que se constitui numa dominao/subordinao regulamentada, cuja violncia legitimada com base na competncia do tutor versus a incapacidade do tutelado, categorizado como ser incapaz de intercmbios racionais, isento de responsabilidade e, portanto, digno de assistncia.

  • 23

    A transformao do hospital numa instituio medicalizada a partir da ao

    sistemtica e dominante da disciplina, da organizao e esquadrinhamento mdicos

    constatada por Foucault (2004a), que descreve o perodo da grande internao, momento

    em que a loucura transformou-se em questo social, passando a ser regulada e contida numa

    instituio. No se tratava de um reconhecimento positivo da loucura, nem de um tratamento

    mais humano dos alienados, mas de uma meticulosa operao na qual confluem pela primeira

    vez o pensamento mdico e a prtica do internamento (FOUCAULT, 2006).

    O hospital pineliano era caracterizado pela excluso e pelos maus-tratos das pessoas

    ali internadas, acarretando, assim, muitas crticas das pessoas que defendiam formas no

    violentas no trato com os loucos. Neste sentido, Costa (2003, p. 147) afirma que a crescente

    contestao quela instituio alm de levar a criao de novos espaos fora dos limites das

    cidades, onde o internado dispusesse de melhores condies de habitabilidade, tambm deu

    origem busca de outras concepes que pudessem trazer maior clareza sobre a natureza

    humana e sua subjetividade.

    Com as crticas ao modelo pineliano, se consolida um primeiro modelo de reforma:

    a colnia de alienados, que tinha como objetivo reformular o carter fechado do asilo

    pineliano, trabalhando com as portas abertas, estabelecendo, assim, um regime de no

    restrio ou maior liberdade. Porm, segundo Amarante (1998, p. 27), o modelo das colnias

    serviu, na prtica, para ampliar a importncia social e poltica da psiquiatria, e neutralizar

    parte das crticas feitas ao hospcio tradicional, concluindo que, com o passar dos anos,

    apesar do seu princpio de liberdade e de reforma da instituio asilar clssica, as colnias no

    se diferenciam dos asilos pinelianos.

    De acordo com Pessotti (1996, p. 9), o manicmio foi o ncleo gerador da psiquiatria

    como especialidade mdica, devendo a interveno teraputica restituir o equilbrio rompido

  • 24

    pela doena mental. E a partir da segunda metade do sculo XIX, nas palavras de Amarante

    (1998, p. 26), a psiquiatria passa a ser um imperativo de ordenao dos sujeitos.

    Nasce a psiquiatria como saber cientfico, o psiquiatra como mdico especialista e o

    manicmio como nica instituio destinada ao tratamento teraputico da doena mental

    (DINCAO, 1992) e, contemporaneamente, como instrumento de defesa social do perigo que

    a loucura traz consigo. A idia que resta confirmada a de que longe de ser uma instituio

    que visa um tratamento das pessoas com transtornos mentais, o manicmio se valida a partir

    dos efeitos de excluso que opera (AMARANTE, 1998).

    As pessoas com transtornos mentais sempre foram aquelas excludas da sociedade e

    constituam-se como o objeto da psiquiatria, no mesmo sentido em que a denominada

    medicina mental vinha sendo desenvolvida no sculo XIX em toda a Europa (FOUCAULT,

    2004a, 2006; MACHADO, et al, 1978). Conforme afirma Amarante (1998, p. 46) as prticas

    psiquitricas pretendiam muito mais intervir/assistir ao paciente, feito objeto, do que interagir

    com a existncia-sofrimento que se apresentava.

    Ainda de acordo com Amarante (1998, p. 48),

    Na realidade, o problema das instituies psiquitricas revelava uma questo das mais fundamentais: a impossibilidade, historicamente construda, de trato com a diferena e os diferentes. Em um universo das igualdades, os loucos e todas as maiorias feitas minorias ganham identidades redutoras da complexidade de suas existncias. Opera-se uma identificao entre diferena e excluso no contexto das liberdades formais e, no caso da loucura, o dispositivo mdico alia-se ao jurdico, a fim de basear leis e, assim, regulamentar e sancionar a tutela e a irresponsabilidade social.

    Desde o primeiro instrumento normativo voltado ateno especfica ao louco, a lei

    de 1838 na Frana, verifica-se a inteno de construir um status jurdico especfico para este

    sujeito. Como afirma Castel (1978, p. 37-8), O equilbrio entre delitos e as sanes inscreve-

    se em um sistema racional porque o criminoso responsvel por seus atos. O louco coloca um

    problema diferente [...]. No poderia ser sancionado, mas deveria ser tratado.

  • 25

    A configurao e afirmao do manicmio como nico espao para acolher e tratar as

    pessoas com transtornos mentais revela, ainda, o poder disciplinar exercido pela psiquiatria

    sobre tais pessoas. Como esclarece Barros (1994b, p. 35), No final do processo encontramos

    o louco, destinatrio das prticas e objeto da relao entre filantropia e medicina mental,

    dotado do estatuto de alienado segundo um conjunto de cdigos tericos, mdicos e

    burocrtico-administrativos. E, ainda, no manicmio sero aplicados, concretamente, aqueles

    poderes institucionais voltados disciplina e ao controle social dos sujeitos perigosos: nos

    futuros manicmios, os saberes no permanecero teorias abstratas, mas iro tornar-se

    tcnicas aplicadas e real exerccio do poder disciplinar por parte da psiquiatria (FOUCAULT,

    2006).

    Naquela instituio, o sujeito no era considerado como um cidado, sendo apenas

    mais um internado, e, logo diagnosticado, classificado e submetido ao controle e disciplina

    determinados pelos mdicos e funcionrios que ali atuam. Ele vigiado constantemente,

    devendo obedecer as normas impostas, sob pena de punio. Enfim, o manicmio ocupa a

    vida da pessoa com transtorno mental em todos os seus nveis.

    O manicmio configura-se como uma instituio total, segundo Goffman (2003, p.

    170-71), pois o internado vive todos os aspectos de sua vida no edifcio do hospital, em

    ntima companhia com outras pessoas igualmente separadas do mundo mais amplo. Nas

    instituies com este perfil as sociedades contemporneas preservam suas pretenses de

    controle e de dominao.

    De acordo com Basaglia (1985), algumas instituies da sociedade como a famlia, a

    escola, a universidade, a fbrica e o hospital, so caracterizadas por uma ntida diviso de

    funes, atravs da diviso do trabalho, que classifica os que tm poder e os que no tm. Tais

    instituies podem ser definidas como instituies da violncia, tendo em vista a relao de

    opresso e a situao de excluso ali existentes.

  • 26

    O isolamento evidenciou ainda mais o processo de objetificao do sujeito internado,

    despersonalizando-o e tornando-o uma pessoa sem vontades nem estmulos. Nesse sentido, ao

    longo da trajetria da institucionalizao da loucura, verificam-se as contradies das prticas

    mdicas e a ineficcia daquele modelo teraputico, centrado no hospital psiquitrico,

    organismo de tratamento (FOUCAULT, 2002b, p. 266) .

    1.1. Breve histrico da assistncia psiquitrica brasileira

    Conforme j evidenciado, a Psiquiatria surge no sculo XIX, estabelecendo o hospital

    psiquitrico como seu espao principal, o qual comea a surgir nas principais cidades

    brasileiras a partir de 1852. Assim, o modelo manicomial foi adotado no Brasil como forma

    de assistncia psiquitrica s pessoas com transtorno mental.

    Seguindo a tendncia das teorias desenvolvidas na Europa, a assistncia psiquitrica

    no Brasil esteve sempre de acordo com a manuteno da ordem social (MACHADO, et al,

    1978) e com o desenvolvimento de uma psiquiatria que toma o sujeito como objeto do saber

    psiquitrico (BASAGLIA, 1985; PELBART, 1990; COSTA, 1990; FOUCAULT, 2004a).

    Nas palavras de Figueiredo (1988, p. 124), do final do sculo XIX at o final dos anos 20 do

    sculo passado, a loucura no Brasil vai sendo incorporada pelo saber psiquitrico e o grande

    hospcio inaugurado como sede deste saber.

    No incio do sculo XIX, os ditos loucos eram encontrados em todos os lugares: nas

    ruas, nas prises e nas chamadas casas de correo, em asilos de mendigos e, ainda, nos

    pores das Santas Casas de Misericrdia (AMARANTE, 1994). Nessa poca, era muito difcil

    encontrar um louco sendo tratado em enfermarias ou hospitais. Ressalte-se que as Santas

  • 27

    Casas de Misericrdia somente passam a cuidar das pessoas com transtornos mentais,

    destinando-lhe locais especficos dentro da sua estrutura, por volta do final do sculo XVIII e

    incio do sculo XIX (RIBEIRO, 1999), dando-lhes um tratamento diferenciado das demais

    pessoas ali hospedadas, mas, ainda, de cunho caritativo. Como descreve Resende (2001, p.

    35), eram amontoadas em pores sem assistncia mdica, entregues a guardas e carcereiros,

    seus delrios e agitaes reprimidos por espancamentos ou conteno em troncos,

    condenando-os literalmente morte por maus-tratos fsicos, desnutrio e doenas

    infecciosas.

    Sobre a origem dessas pessoas, Amarante (1994, p. 75) afirma:

    As esparsas referncias que se pode encontrar demonstram que podem ser encontradas preferentemente dentre os miserveis, os marginais, os pobres e toda a sorte de prias, so ainda trabalhadores, camponeses, desempregados, ndios, negros, degenerados, perigosos em geral para a ordem pblica, retirantes que, de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo que se convenciona englobar sobre o ttulo de doena mental.

    O nmero de loucos recolhidos nas Santas Casas no era grande, e, por isso, tambm

    eram encontrados nas prises, ao lado de criminosos, condenados ou no (RESENDE, 2001).

    Ademais, naquelas instituies no havia qualquer atendimento mdico-hospitalar. Observa-

    se, assim, que at o sculo XIX, inexistia uma estruturao, organizao ou disposio para

    cuidar das pessoas com transtornos mentais como indivduos que necessitavam de cuidados

    especiais (RIBEIRO, 1999).

    Sem muita diferena dos tempos atuais, a sociedade do sculo XIX via no louco uma

    ameaa segurana pblica, sendo o recolhimento aos asilos a nica maneira de lidar com a

    pessoa com transtorno mental. Essa atitude dirigida aos loucos, autorizada e legitimada pelo

    Estado por meio de textos legais editados pelo Imperador, tinha o objetivo de oferecer

    proteo sociedade, enquanto mantinha tais pessoas reclusas. O Estado imperial que deveria

    acolher, proteger e tratar aquelas pessoas, adotava como nica medida a recluso.

  • 28

    A crescente presso da populao para o recolhimento dos alienados inoportunos a

    um lugar de isolamento e o questionamento de alguns mdicos e intelectuais frente s

    condies subumanas das instituies asilares fizeram com que o Estado Imperial

    determinasse a construo de um lugar especfico com o objetivo de trat-los. Conforme

    aponta Resende (2001, p. 38-9), se verificavam trs objetivos contraditrios: uma indicao

    prioritariamente social, a remoo e excluso do elemento perturbador, visando a preservao

    dos bens e da segurana dos cidados, e no outro extremo, uma indicao clnica, a inteno

    de cur-los.

    Neste contexto de ameaa ordem e paz social, surgem as primeiras instituies

    psiquitricas no Brasil. Assim, foi criado o Hospcio Dom Pedro II, inaugurado em 05 de

    dezembro de 1852, na cidade do Rio de Janeiro, mais tarde denominado Hospcio Nacional de

    Alienados (COSTA, 1980; UCHA, 1981). De forma gradativa, este modelo assistencial se

    desenvolveu e se ampliou em todo o territrio nacional, consolidando e reproduzindo no solo

    brasileiro o hospital psiquitrico europeu como o espao socialmente legitimado para a

    loucura (FIGUEIREDO, 1988).

    Acerca da legislao sobre assistncia psiquitrica e direitos das pessoas com

    transtornos mentais, pode-se afirmar que o seu conjunto comea com o decreto imperial de 18

    de julho de 1841, que funda a psiquiatria institucional e estatal no pas, indo at o Decreto n

    24.559, de 3 de julho de 1934, sendo que nesse intervalo, foram elaborados 16 decretos

    referentes a tais pessoas (DELGADO, 1992).

    O incio da assistncia psiquitrica pblica no Brasil data da segunda metade do sculo

    XIX. Os primeiros hospitais so criados no pas, especificamente, para abrigar loucos sobre o

    nascimento da psiquiatria, como corpo de saber mdico especializado. De acordo com

    Resende (2001, p. 56), psiquiatria cabia simplesmente recolher e excluir as sobras humanas

    que cada organizao social, de cada momento histrico, tinha produzido.

  • 29

    Todos os estabelecimentos criados no pas at o final do sculo XIX, com a finalidade

    de internar os doentes mentais, ofereciam um tratamento que tinha como objetivo maior

    afast-los da sociedade do que realmente trat-los e minorar seu sofrimento (RIBEIRO,

    1999, p. 20). Mesmo com tais instituies, se verifica, como no perodo anterior aos

    manicmios, a existncia de maus-tratos, espancamentos, falta de higiene, fome, resultante de

    m ou ausncia de alimentao (RIBEIRO, 1999). Acerca da violncia e dos maus-tratos

    perpetrados contra os pacientes, Figueiredo (1988, p. 125) cita as sesses de tortura com

    banhos de choque trmico e a malarioterapia, consideradas prticas cientficas consagradas.

    Segundo ele, o controle j era objeto implcito da instituio. Cabe salientar, ainda, que no

    final do sculo XIX no Brasil, ainda no existia uma lei especfica de proteo s pessoas com

    transtorno mental. Assim, conforme afirma Corra (1999, p. 94), elas eram encaminhadas s

    casas de sade, aos hospcios e s prises sem nenhum preceito legal que disciplinasse o

    referido ato de seqestro, a conservao, o respeito ao patrimnio dos doentes, dentro dos

    princpios de direito e justia.

    As internaes eram assunto de interesse pblico, permanecendo assim at o incio do

    sculo XX, quando uma simples ordem policial era suficiente para autoriz-las

    (FIGUEIREDO, 1988). O hospital psiquitrico no existia enquanto lugar de cura. Sobre a

    sua real funo, ressalta Resende (2001, p. 39):

    Remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir, tratar. O peso relativo de cada um desses verbos na ideologia da nascente instituio psiquitrica brasileira pendeu francamente para os dois primeiros da lista, os demais no entrando nem mesmo para legitim-los. A funo exclusivamente segregadora do hospital psiquitrico nos seus primeiros quarenta anos de existncia aparece, pois, na prtica, sem vus ou disfarces de qualquer natureza.

    Ademais, alm da segregao, aquele estabelecimento exercia a funo de controle

    social. De acordo com Figueiredo (1988, p. 119), o hospital ingressa no cenrio brasileiro, no

    Segundo Reinado, para exercer esta funo numa sociedade em transformao e, portanto,

  • 30

    geradora de conflitos e contradies localizados no espao de luta das relaes capital-

    trabalho.

    Nesse histrico, merece destaque a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), que

    foi criada em 1923, no perodo da chamada Repblica Velha, e tinha como objetivo melhorar

    a assistncia psiquitrica e aperfeioar o cuidado aos loucos (COSTA, 1981; RIBEIRO,

    1999). A Liga assimilou os ideais eugenistas, sendo influenciada, assim, pelos ideais nazi-

    facistas que se fortaleciam na Europa. Analisando esse Movimento, Costa (1981, p. 52)

    afirma que os programas eugnicos da LBHM eram a soluo psiquitrica encontrada pelos

    psiquiatras para resolver os problemas culturais que eles enfrentavam enquanto cidados.

    Ainda segundo esse autor, tal movimento alcanou uma profunda repercusso sobre a

    intelectualidade brasileira das trs primeiras dcadas do sculo XX, que comeou, ento, a

    preocupar-se com a constituio tnica do povo brasileiro (COSTA, 1981, p. 30-3). E de

    acordo com Ribeiro (1999, p. 26), no se pode desvincular o pensamento psiquitrico desse

    movimento da ideologia dominante na sociedade brasileira poca, porque a Liga no teria

    encontrado espao para se difundir se no houvesse uma receptividade positiva por parte da

    sociedade a ideais comuns aos existentes na Alemanha, que encantavam a elite dirigente no

    Brasil. Porm, deve-se ressaltar que alguns psiquiatras de renome, poca, se posicionaram

    contra a eugenia e a higiene social da raa, desenvolvendo atividades voltadas ao

    aperfeioamento assistncia psiquitrica e humanizao do atendimento, com o

    reconhecimento da Liga.

    Uma outra experincia implementada no pas foram as colnias agrcolas, em

    complemento aos hospitais tradicionais j existentes, as quais baseavam-se no trabalho, tendo

    como objetivo devolver sociedade pessoas tratadas e curadas, aptas para o trabalho

    (PORTOCARRERO, 2002). Apesar de se configurar como uma tentativa de soluo

    teraputica, o hospital agrcola tinha a nica funo que j caracterizava a assistncia ao

  • 31

    alienado, no pas, desde a sua criao: a de excluir o doente de seu convvio social e, a

    propsito de lhe proporcionar espao e liberdade, escond-lo dos olhos da sociedade

    (RESENDE, 2001, p. 52).

    Porm, mesmo com essa experincia e algumas tentativas isoladas de modificao no

    atendimento, permanecia a assistncia asilar s pessoas com transtornos mentais. Como

    afirma Costa (2003, p. 150),

    apesar de frustrados os projetos de recuperao dos loucos por meio do internamento nos hospitais-colnia em face da impossibilidade de insero social dos seus egressos quando retornavam ao espao urbano , a Psiquiatria continuava se fortalecendo por meio da fabricao de sua prpria clientela. Apesar de ter surgido para resolver o problema da doena mental ela passa a fabricar mais e mais doentes, demandando pela criao de mais instituies e ampliao das existentes.

    Os objetivos de excluir e segregar refletiam-se na legislao psiquitrica, como se

    pode observar no Decreto n 24.559, de 3 de julho de 1934: Art. 9 - Sempre que, por

    qualquer motivo, for inconveniente, a conservao do psicopata em domiclio, ser o mesmo

    removido para estabelecimento psiquitrico. Tal norma previa, ainda, no seu artigo 11, que

    alm do internamento a pedido dos familiares, os psicopatas poderiam ser internados por

    ordem judicial ou requisio de autoridade policial (FIGUEIREDO, 1988; CINTRA JNIOR,

    2003).

    Nas dcadas de 40 e 50, a poltica de sade mental era voltada, principalmente, para o

    atendimento em hospitais psiquitricos, com escassos servios em nvel extra-hospitalar

    (RIBEIRO, 1999). Alm disso, desde meados da dcada de 50, os psiquiatras passaram a

    fazer largo uso de drogas denominadas neurolpticos ou psicofrmacos. A introduo desses

    medicamentos no tratamento s pessoas com transtornos mentais considerada um marco na

    Psiquiatria. De acordo com Figueiredo (1988, p. 133),

    a descoberta dos neurolpticos representou e representa um grande avano cientfico no tratamento das psicoses. Mas, por outro lado, estas drogas tambm facilitaram uma utilizao anticientfica, voltada para o controle do

  • 32

    paciente, o sossego do mdico, do hospcio, da famlia que rejeita e da sociedade que exclui.

    Esta fase dos psicofrmacos teve forte adeso da psiquiatria brasileira. Nos hospitais

    psiquitricos do pas, de forma geral, a adoo daquelas novas substncias farmacolgicas

    serviu para reforar o controle exercido em nome do saber mdico, o qual demonstrava a

    produo de um conhecimento psiquitrico vinculado s normas ditadas pelo sistema

    (FIGUEIREDO, 1988; SILVA FILHO, 2001).

    Autores como Resende (2001) descrevem a situao encontrada no fim da dcada de

    50, destacando a superlotao, a deficincia de profissionais, os maus-tratos e as pssimas

    condies de hotelaria, afirmando que a nica funo social da prtica psiquitrica a

    excluso do louco.

    Com as mudanas efetivadas na sociedade brasileira a partir do golpe militar de 1964,

    a assistncia sade foi caracterizada por uma poltica de privatizao macia. No campo da

    assistncia psiquitrica, fomentou-se o surgimento das clnicas de repouso, denominao

    dada aos hospitais psiquitricos de ento, alm de mtodos de busca e internamento de

    pessoas. Desse modo, passa a prosperar a recm-criada e rentvel indstria da loucura. Nos

    anos seguintes, o nmero de hospitais psiquitricos e leitos contratados aumentou (COSTA,

    2003).

    Alm disso, com o desenvolvimento da industrializao no Brasil aps 1964 e com a

    intensificao do modelo tecnocrata e capitalista de produo, adotado pela Ditadura Militar,

    se favorece o crescimento de uma forte indstria farmacutica, que fomenta a necessidade de

    um mercado interno compensador. Verifica-se que o sistema de assistncia mdica centrado

    no hospital e o incentivo medicina curativa atendiam demanda da referida indstria

    (RIBEIRO, 1999). Tal medicina hospitalocntrica lucrativa tambm se refletia no hospital

    psiquitrico. Predominava o controle social e a lucratividade empresarial, e, segundo

  • 33

    Figueiredo (1988, p. 141), a psiquiatria e o Estado a apareceram associados na sustentao

    desse binmio. Percebia-se o compromisso do Estado com os interesses dos grupos

    econmicos dominantes, pois, naquele regime autoritrio, a assistncia mdica privada

    contratada constitua-se mero instrumento de lucro, no apresentando nenhuma preocupao

    para resolver os problemas de sade das pessoas (AMARANTE, 1998).

    A rede privada tem seu pice no final da dcada de 60 e na dcada de 70. Durante todo

    esse perodo, a poltica de sade mental no Brasil se apoiava em dois pilares: o Hospcio

    Pblico e Privado, este ltimo bastante ampliado e altamente lucrativo, e os neurolpticos,

    produo majoritria das multinacionais de medicamentos (FIGUEIREDO, 1988, p. 141).

    Nesse sentido, o hospital psiquitrico privado era um dos mais cobiados investimentos

    devido ao seu baixo custo operacional e poltica de repasse de recursos financeiros

    promovida pelo Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social (INAMPS).

    Ressalte-se que durante as dcadas de 70/80 no Brasil, a assistncia psiquitrica ainda

    era organizada em torno da soluo asilar, a qual, segundo Amarante (1998, p. 112-13),

    [...] decorrente no apenas da natureza da funo social e poltica do asilo psiquitrico, como instrumento de segregao, negao e violncia, ou ainda do no compromisso real com a sade dos cidados (o que implica ausncia de necessidade de organizar formas de cuidado e ateno eficientes e teraputicos) mas, tambm, das condies administrativas. Torna-se mais fcil construir e administrar um pavilho como se fora um hospital, do que organizar e gerir trmites e procedimentos necessrios construo de um servio mais sofisticado ou diversificado.

    Nessa perspectiva, Ribeiro (1999, p. 64-5) afirma que de 1970 a 1980 a poltica de

    sade adotada reforava a privatizao do setor, a mercantilizao da Medicina e a

    manuteno do modelo de hospitalizao, que, no caso da sade mental, tratava-se da

    internao asilar. Tal modelo privatista trouxe srias conseqncias para o desenvolvimento e

    o aperfeioamento do sistema de sade do pas, que, segundo esse autor encontra-se hoje

    mergulhado no mais profundo caos no que diz respeito sade pblica em geral, ao

  • 34

    atendimento da populao nos hospitais e postos de sade, e assistncia psiquitrica em

    particular.

    Diante do modelo da psiquiatria hospitalocntrica, o louco apenas um doente sob os

    seus cuidados, sem vontade, e, ainda, aquele lhe retira a qualidade de sujeito. Resta, apenas, o

    cuidado com o controle da pessoa com transtorno mental, que deveria estar sempre sob

    custdia de uma instituio submetida a um tratamento farmacolgico, reforando as

    finalidades de excluso social e de cura trazidas pelo isolamento teraputico.

    Somente a partir da dcada de 70, que grupos de profissionais, que atuavam nos

    servios de ateno sade mental, comearam a questionar e a discutir a necessidade de

    outras formas de tratamento s pessoas com transtorno mental, chamando a ateno para um

    servio de sade mental baseado na integralidade de vrios fatores, conforme destaca Ribeiro

    (1999, p. 81):

    As aes em sade mental se inserem na poltica de sade, que por seu turno conseqncia das medidas scio-econmicas adotadas pelo governo. No se pode desvincular o processo de transformaes na sade do processo de evoluo e aperfeioamento que ocorre na sociedade, envolvendo relaes de ordem poltica, cultural, social, de trabalho, de educao, de qualidade de vida.

    Atualmente, a instituio psiquitrica ainda permanece com a mesma estrutura de dois

    sculos atrs, ao continuar excluindo, segregando e cronificando a pessoa com transtornos

    mentais, majoritariamente das classes desfavorecidas (BASAGLIA, 1985; PESSOTTI, 1996;

    SILVA, 2001). Trata-se de um mundo do qual faz parte contingente significativo de seres

    humanos, confinados a uma existncia limitada, sem a observncia do seu contexto social,

    acarretando, muitas vezes, a perda da sua identidade.

    A cultura existente no imaginrio da sociedade e no modelo assistencial asilar para o

    tratamento das pessoas com transtornos mentais, ainda hoje, de excluso, evidenciando a

    presena de uma tradio fundada na negao dos direitos humanos dos pacientes

    psiquitricos. As prticas exercidas nos hospitais psiquitricos brasileiros revelam a tendncia

  • 35

    de um tratamento que legitima a excluso destas pessoas (RESENDE, 2001; SILVA, 2001;

    TUNDIS, 2001). Tais unidades de internao se configuram como espaos de segregao e

    obscuridade (BASAGLIA, 1985; RESENDE, 2001).

    Ademais, conforme afirma Amarante (1998, p. 24),

    A caracterizao do louco, enquanto personagem representante de risco e periculosidade social, inaugura a institucionalizao da loucura pela medicina e a ordenao do espao hospitalar por esta categoria profissional. [...] A relao tutelar para com o louco torna-se um dos pilares constitutivos das prticas manicomiais e cartografa territrios de segregao, morte e ausncia de verdade.

    Dentre as unidades hospitalares criadas com o cunho segregacionista encontram-se os

    manicmios judicirios, hoje denominados Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico,

    para as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos. A nfase desta instituio

    hospitalar estava no processo de apartao social, descomprometida com o cuidado sade e

    com a reinsero psicossocial.

    2. A necessidade de um manicmio judicirio

    O manicmio criminal nasce da fuso das duas clssicas instituies totais que a

    sociedade moderna criou para castigar as formas mais graves de no adaptao s regras

    sociais: a priso e o manicmio.

    Na Europa, os manicmios criminais comeam a surgir na segunda metade do sculo

    XIX. O termo manicmio judicirio, historicamente, vem depois do manicmio criminal,

    e antes do atual hospital psiquitrico judicirio (MANACORDA, 1982, p. 8). No Brasil, o

    manicmio judicirio passou a ser denominado Hospital de Custdia e Tratamento

  • 36

    Psiquitrico a partir da Reforma Penal de 1984, de acordo com a previso do Cdigo Penal

    Brasileiro nos seus artigos 96 e 97 e na Lei de Execuo Penal no artigo 99.

    A origem histrica do manicmio judicirio remonta Inglaterra do sculo XVIII,

    quando uma pessoa tentou matar o Rei Jorge III, sendo declarada louca e por isso

    irresponsvel pelo seu ato, e, em seguida, absolvida e internada numa seo especial do

    manicmio de Bedlem (SIMONETTI, 2006). Assim, a primeira instituio a acolher loucos

    criminosos foi o Asilo de Bedlem, na Inglaterra, onde em 1786 aberta uma seo especial,

    que deu origem ao projeto do manicmio criminal como estabelecimento destinado

    unicamente internao dos loucos criminosos. Outras sees para tais pessoas foram criadas

    dentro dos numerosos asilos espalhados pelo pas.

    O manicmio criminal nasce na Inglaterra com o nome de Criminal Lunatic Asylum, a

    primeira instituio com a finalidade de custodiar as pessoas com transtorno mental que

    tivessem cometido algum ato penalmente ilcito (SIMONETTI, 2006; COHEN, 2006a;

    ANDRADE, 2004). E foi justamente a Inglaterra o primeiro pas a disciplinar com uma lei tal

    matria, especificando minuciosamente as categorias de sujeitos que deveriam ser

    destinatrias dos procedimentos de internao neste tipo de instituio (BORZACHIELLO,

    1997). Ainda no sculo XVIII promulgada uma lei, chamada Insane offender's bill, a qual

    previa que todos aqueles que tivessem cometido um delito em condies de alienao mental

    seriam absolvidos e internados em um manicmio por tempo determinado pelo rei

    (SIMONETTI, 2006).

    Porm, de acordo com Simonetti (2006), a referida lei se revelou ineficaz e as

    estruturas existentes se demonstraram inadequadas s necessidades teraputicas daqueles

    sujeitos, e as dificuldades de gesto tornaram ainda mais desumanas as condies dos

    internados. Para esta autora, o primeiro e verdadeiro Manicmio Criminal de Estado

    institudo em 1857 na parquia de Sandhurst e em 1863 foi fundado o estabelecimento de

  • 37

    Broadmoor, situado na periferia de Londres, considerado sempre um exemplo pela eficincia

    e funcionalidade, concebido como setor especial hospitalar. Nos anos seguintes, de acordo

    com as normas denominadas "The Criminal Lunatic Act" de 1884 e "The Trial of Lunatic

    Act" de 1885, se estabelece que em Broadmoor podiam ser internados no s aqueles que

    tivessem cometido um crime em estado de loucura, mas tambm aqueles que enlouquecessem

    durante o processo, a chamada supervenincia de alienao mental, e, por isso, se tornassem

    incapazes de se submeter disciplina carcerria.

    Com a diferena de quase um sculo da primeira experincia realizada na Inglaterra

    voltada aos loucos criminosos, outros pases da Europa passam a adotar providncias no

    mesmo sentido. Na Frana, em 1876, foi instituda uma seo para os loucos criminosos

    dentro do manicmio de Bictre. Na Alemanha, no perodo de 1870 a 1875, espaos

    especficos destinados quelas pessoas foram institudos nas Casas centrais de Bruchsal, Halle

    e Amburgo. Na Itlia, o manicmio criminal nasce na segunda metade do sculo XIX,

    atendendo a exigncia de criar uma estrutura apropriada para separar dos outros presos

    aqueles enlouquecidos na priso (ADAMO, 1980). Assim, em 1876 inaugurada a Seo

    para manacos junto Casa penal para invlidos de Aversa, com um ato meramente

    administrativo (MANACORDA, 1982; GANDOLFI, 1988). Nos Estados Unidos, o primeiro

    manicmio criminal foi criado em Auburn, no Estado de New York, no ano de 1855, seguido

    de um outro no Estado de Massachussets em 1872, e outro institudo na prpria cidade de

    New York em 1874. No Canad, em 1877, o Asilo de Rockwood passa a ser dependente das

    prises de Kingston (BORZACHIELLO, 1997).

    Analisando os pressupostos do manicmio criminal na Itlia, verifica-se que na

    segunda metade do sculo XIX, duas Escolas travavam um grande debate acerca dos

    conceitos de crime e de pena. De um lado, a Escola Clssica, cujo exponente mais clebre foi

    Francesco Carrara, discutia a teoria geral do crime atribuindo pena a finalidade retributiva,

  • 38

    ou seja, a pena tinha a finalidade de reparar o dano causado sociedade pela ao do ru.

    Nesse caso, a pena seria aplicada de acordo com a gravidade do delito. A personalidade do

    ru enquanto tal no era objeto de anlise pelos juristas desta Escola, que acreditavam no livre

    arbtrio do homem. A Escola Positiva, por sua vez, baseada nos estudos de Cesare Lombroso,

    apresentava, pela primeira vez, o problema da responsabilidade do sujeito que comete crime,

    voltando os seus estudos pesquisa das causas da delinqncia. Os seus objetivos principais

    eram o estudo da personalidade do ru, considerado nas suas anomalias biolgicas e

    psquicas, e a criao de uma poltica criminal dirigida defesa social (BORZACHIELLO,

    1997). Enfim, para a concepo positivista, a criminalidade a manifestao de uma

    patologia individual, que s vezes pode ser atribuda a causas sociais (SANTORO, 2004).

    Ademais, como esclarece Franco Scarpa (2007), os manicmios criminais foram

    criados como lugar para exercitar a defesa social frente aos loucos que cometiam crimes e no

    podiam ser encaminhados priso porque eram considerados sujeitos no conscientes e

    insensveis ao regime punitivo carcerrio.

    A instituio dos manicmios criminais representava a vitria da Escola Positiva sobre

    a Escola Clssica, e teria significado a afirmao do conceito de delinqncia como doena e

    da pena como cura. Para os antroplogos, mdicos e alienistas do fim do sculo XIX, o

    criminoso era quase sempre um doente, e, como tal, era considerado objeto de custdia e cura,

    e no de simples represso. Nesse sentido, se o crime era considerado uma doena, a cura

    deveria ser confiada medicina. E vale registrar que em 1872, Lombroso publica a obra

    Sullistituzione dei manicomi criminali in Italia, na qual sustenta a necessidade da

    instituio dos manicmios criminais, indicando as categorias de pessoas que deveriam ser ali

    internadas: sugeria o encaminhamento no s daquelas pessoas acometidas de enfermidade

    mental durante a execuo da pena, mas tambm daquelas que fossem levadas ao

    cometimento do delito por ter uma enfermidade habitual (GIORDANO, 2005, p. 305-6).

  • 39

    Como afirma Peres (1997, p. 111),

    os manicmios judicirios surgem no dispositivo psiquitrico compondo uma nova estratgia, que se fundamenta de forma explcita, no perigo que o louco representa. Com um lugar especfico para a loucura criminosa, fora da rede de assistncia psiquitrica, a medicina retira de seu campo aqueles que foram o argumento inicial para a sua afirmao.

    Identicava-se no discurso mdico a necessidade de construir um espao especfico

    para os loucos delinqentes, pois estes comprometiam o tratamento que era oferecido no asilo,

    junto s demais pessoas ali recolhidas (MACHADO, et al, 1978). Assim, o manicmio

    judicirio passava a figurar como mais uma instituio total, afastando loucura e

    criminalidade, legitimando a insero da psiquiatria na esfera da cincia penal e consolidando

    a presuno da periculosidade de tais pessoas.

    2.1. Manicmio judicirio no Brasil

    Os hospitais especficos para acolher os loucos infratores foram institudos no Brasil a

    partir da segunda dcada do sculo XX com a denominao de manicmios judicirios. A sua

    implementao foi precedida pela discusso acerca de qual seria o encaminhamento

    institucional que deveriam ter pessoas que eram consideradas loucas e criminosas. Como

    informa Carrara (1998), j em 1870, o ento diretor do Hospcio D. Pedro II, Dr. Moura e

    Cmara, apontava a necessidade de separar os loucos agitados e perigosos, tendo em vista que

    se constituam em um obstculo para a medicalizao completa do asilo, por exigirem prticas

    violentas e repressivas. Acrescente-se que tal idia passa a ser defendida por Teixeira Brando

    em 1896, diante de um caso envolvendo um provvel louco-criminoso, que o motiva a

  • 40

    solicitar ao Ministro da Justia a construo de um Manicmio Criminal, porm, esta idia

    no representava consenso em toda a classe mdica (CARRARA, 1997).

    Para Juliano Moreira, diretor do Hospcio Nacional no ano de 1920, os criminosos

    loucos no deveriam estar alojados naquela instituio, mas numa priso de carter especial,

    priso e manicmio ao mesmo tempo (CARRARA, 1998, p. 193). Assim, a criao de um

    manicmio judicirio no pas j vem marcada pelo carter de ambigidade: afinal, essa

    instituio um hospital ou uma priso?

    Carrara (1998, p. 28) destaca essa contradio acerca da fundao do manicmio

    judicirio, afirmando que a instituio apresenta a ambivalncia como marca distintiva e a

    ambigidade como espcie [...] de defeito constitucional (grifos do autor), e observa que

    tal ambigidade uma caracterstica que perpassa toda a instituio manicomial judiciria: a

    legislao que a sustenta, a identidade atribuda aos internos e aos profissionais que ali

    trabalham. Desse modo, alm dos hospitais psiquitricos para pessoas com transtornos

    mentais, comearam a funcionar no pas os espaos asilares para receber e tratar os ditos

    loucos criminosos. Percebe-se, mais uma vez, a opo pela excluso: a partir do

    estabelecimento da diferena entre loucos e loucos criminosos, o espao para estes ltimos

    no pode ser mais o do Hospcio Nacional.

    Configurava-se, assim, uma nova categoria, a dos loucos-criminosos, cujo destino

    deveria estar absolutamente desvinculado do Hospcio Dom Pedro II. Iniciava a compreenso

    a respeito da necessidade de construir uma nova instituio para recolhimento asilar deste

    segmento populacional, no mesmo sentido daquela adotada pelos pases da Europa. Conforme

    Carrara (1998, p. 148), a idia central de que loucos perigosos ou que estivessem

    envolvidos com a justia ou polcia deveriam ser separados dos alienados comuns,

    constituindo-se em objeto institucional distinto. Forjava-se, assim, a demanda por um

    manicmio criminal. Esta nova instituio emergia, pois, correspondendo convergncia

  • 41

    dos interesses da rea de sade e do mbito jurdico, atendendo necessidade de zelar pela

    segurana da sociedade. A iniciativa, compatvel com o pensamento da poca e o poder-dever

    do Estado, exclua a possibilidade de qualquer integrao sociofamiliar do denominado

    louco-criminoso.

    Antes da constituio desse novo espao, os loucos criminosos eram encaminhados s

    Casas de Correo ou recolhidos pelos Asilos, onde passavam a ser mantidos em alas

    especficas, destinadas aos loucos furiosos (JACOBINA, 1982). Ao descrever o que ocorria

    nesse perodo, Peres (1997, p. 89) assevera que a existncia dos ditos loucos-criminosos

    passa a representar um problema para a psiquiatria em formao. Se, por um lado, os

    alienistas criticavam a presena dos loucos nas casas de correo, alguns recusavam a

    presena dos loucos-criminosos nos asilos.

    Nesse percurso, ressalte-se o Decreto n 1.132, de 22 de dezembro de 1903, o qual

    trouxe a recomendao de que fossem criadas sees especiais para loucos infratores nos

    manicmios estaduais (DELGADO, 1992). Tal Decreto estabeleceu normas para a internao

    dos alienados, sendo que o seu artigo 10 previa: proibido manter alienados em cadeias

    pblicas ou entre criminosos. E o artigo 11 deixava explcito que enquanto no possurem

    os Estados manicmios criminais, os alienados delinqentes e os condenados alienados

    somente podero permanecer em asilos pblicos nos pavilhes que especialmente se lhes

    reservem. a partir desse Decreto que a construo de manicmios judicirios passa a ser

    proposta oficial (CARRARA, 1998), devendo cada Estado reunir recursos para tal fim.

    Ademais, essa idia reafirmada pelo Decreto n 5.148A, de 10 de janeiro de 1927, nos seus

    artigos 7 e 8 (MATTOS, 1999). Aps tal Decreto, foi instalada no Hospcio Nacional de

    Alienados uma enfermaria destinada internao dos alienados delinqentes e observao

    dos acusados suspeitos de alienao mental. Assim surgia a Seo Lombroso, uma seo

    especial de segurana que funcionava com inmeros problemas, tendo sido extinta com a

  • 42

    criao do Manicmio Judicirio do Rio de Janeiro (DELGADO, 1992; PERES, 1997;

    PIEDADE JNIOR, 2002).

    O primeiro manicmio judicirio do Brasil e da Amrica Latina foi inaugurado na

    cidade do Rio de Janeiro, no dia 30 de maio de 1921. Carrara (1998, p. 194) descreve a

    cerimnia realizada afirmando que os discursos ali proferidos anunciavam muito mais que o

    surgimento de mais uma outra instituio pblica, mas, principalmente, a emergncia de

    uma forma inteiramente nova de interveno social, mais flexvel, mais globalizante, mais

    autoritria. Em relao a este evento, conclui: Coroava-se ento um processo muito mais

    amplo que, atingindo as prticas jurdico-penais como um todo, fez com que nossos tribunais,

    como bem apontou Foucault, passassem, a partir de finais do sculo XIX, a no julgar mais

    atos criminosos, mas a prpria alma do criminoso (CARRARA, 1998, p. 194).

    Cabe acrescentar que neste ano foi promulgado o Decreto n. 14.831, de 25 de maio de

    1921, que aprova o regulamento do manicmio judicirio, e, no seu artigo 1 dispunha: O Manicomio Judiciario uma dependencia da Assistencia a Alienados no Distrito Federal, destinada a internao: I Dos condenados que achando-se recolhidos s prises federais, apresentam syntomas de loucura. II Dos acusados que pela mesma razo devam ser submetidos a observao especial ou tratamento. III Dos delinqentes isentos de responsabilidades por motivo de afeco mental (cdigo penal, art. 29) quando a critrio do juiz assim o exija a segurana pblica.

    Com a implementao do manicmio judicirio vislumbrava-se uma soluo de

    interesse da sociedade cujo tecido fora agredido pelo delito da pessoa com transtorno mental.

    Ao apresentar-se como instituio prisional, sustentava-se na premissa de que o indivduo,

    ainda que com transtorno mental, deveria pagar pelo crime cometido. Enquanto instituio de

    custdia, guardava uma natureza diferenciada, a de satisfazer as interpretaes patologizantes

    e biodeterminantes do indivduo (CARRARA, 1998). O seu vnculo era com os servios de

    assistncia a psicopatas, conforme se verifica no Decreto n. 20.155, de 29 de junho de 1931,

  • 43

    que determinava que o manicmio judicirio ficava sob a jurisdio do Departamento

    Nacional de Assistncia Pblica, revertendo o respectivo pessoal tcnico ao quadro de

    Assistncia a Psicopatas.

    O manicmio judicirio se caracterizava, portanto, como o lugar social especfico para

    o encontro entre crime e loucura. Deste modo, esta instituio apresenta, desde a sua origem,

    uma estrutura ambgua e contraditria. Enquanto instituio predominantemente custodial,

    revela, com grades e intervenes psiquitricas, a dupla excluso que sofrem as pessoas com

    transtorno mental autoras de delito.

    Essa instituio manicomial criada em outros estados do pas ao longo do sculo

    XX, como o de Barbacena, em Minas Gerais, no ano de 1929 (JACOBINA, 1982), e, em 31

    de dezembro de 1933 inaugurado o manicmio judicirio de So Paulo, que levava o nome

    de Franco da Rocha, um dos psiquiatras que fomentou um sistema de manicmios judicirios

    para os loucos criminosos. Nesse sentido, o manicmio judicirio restrito s pessoas com

    transtornos mentais que cometeram crime, no podendo atender a comunidade em geral,

    como os demais hospitais psiquitricos. Geralmente, esta instituio manicomial judiciria

    estar vinculada Secretaria da Justia e no da Sade como ocorre com aqueles:

    deslocada da assistncia a alienados para fazer parte do sistema penitencirio.

    Nesse novo espao assimilada a poltica segregacionista caracterstica das demais

    instituies psiquitricas. Historicamente, o doente mental foi acorrentado, agredido,

    amarrado e isolado por ser violento, imoral e inconseqente, porm, poucas vezes foi

    considerado como uma pessoa humana igual s demais pessoas, estando privado de um

    tratamento com dignidade, respeito e direitos iguais aos dos outros cidados. A assistncia

    psiquitrica prestada pelo Estado no manicmio judicirio favorece uma assistncia custodial

    que dificulta ou impossibilita a integrao dessa pessoa sociedade e o respeito aos seus

    direitos individuais previstos na Constituio Brasileira.

  • 44

    2.2. Periculosidade social e loucos criminosos

    O conceito de periculosidade foi, por muito tempo, o grande parmetro de avaliao

    da necessidade da interveno psiquitrica e, ainda hoje, tem sido objeto de muitos debates

    nas reas mdica e jurdica, constituindo-se relevante desde o sculo XIX, quando surge, no

    campo da chamada Medicina mental, a noo de loucura-criminosa para reafirmar a

    estratgia alienista (BIRMAN, 1978). Julga-se no mais o ato praticado, mas a

    personalidade da pessoa (QUINET, 2001), inserindo-a em uma das categorias criadas pelo

    positivismo penal para prever sua conduta futura. O objetivo da aplicao do direito penal

    para esses sujeitos a preveno de crimes futuros (MANTOVANI, 2005) e no mais a

    punio de um crime cometido. Assim, a periculosidade torna-se o fundamento do direito de

    prevenir.

    Na base do conceito de periculosidade social esto a defesa social e a funo

    preventiva da lei (BONAZZI, 1975). A remoo e excluso das pessoas com transtornos

    mentais autoras de delito, alm de visar a preservao dos bens e da segurana dos cidados e

    a inteno de cur-las, apresentava um novo objetivo, o de prevenir o cometimento de novos

    crimes.

    Segundo Foucault (2003a, p. 85):

    [...] a grande noo da criminologia e da penalidade em fins do sculo XIX foi a escandalosa noo, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noo de periculosidade significa que o indivduo deve ser considerado pela sociedade ao nvel de suas virtualidades e no ao nvel de seus atos; no ao nvel das infraes efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam.

  • 45

    A periculosidade acaba projetando-se na vida futura da pessoa com trantorno mental

    que cometeu um crime, configurando-se um procedimento de alta especializao e

    sutilssimas incertezas (DELGADO, 1992, p. 33). A classificao de determinadas pessoas

    como perigosas objetiva, dentre outras coisas, restringir-lhes a conduta e torn-las previsveis.

    Destacando a natureza reducionista da compreenso do ser humano, quando se elege a

    periculosidade como a nica expresso possvel do sujeito, Barros (1994a) afirma a

    inobservncia do equacionamento de suas necessidades. Este reducionismo compromete o

    cuidado integral sade da pessoa com transtorno mental e a garantia dos seus respectivos

    direitos.

    Alm disso, percebe-se que a origem da periculosidade se encontra no mtodo

    escolhido pela psiquiatria, ao tomar a pessoa com transtorno mental como objeto e tentar

    trat-la apartada da sociedade. Conforme afirma Amarante (1998, p. 46),

    O paradigma psiquitrico clssico transforma loucura em doena e produz uma demanda social por tratamento e assistncia, distanciando o louco do espao social e transformando a loucura em objeto do qual o sujeito precisa distanciar-se para produzir saber e discurso. A ligao intrnseca entre sociedade e loucura/sujeito que enlouquece artificialmente separada e adjetivada com qualidades morais de periculosidade e marginalidade.

    Pode-se afirmar que principalmente atravs da criao da figura do indivduo

    perigoso que a psiquiatria, sobretudo aquela positivista, legitima a sua competncia em tal

    interveno e demonstra a sua tendncia em tornar-se um sistema de disciplina e de controle

    organizado. E, assim, o conceito de defesa social introduzido e elaborado pela Escola

    Positiva e pelos estudos da antropologia criminal.

    A periculosidade aparece como elemento jurdico no Cdigo Penal de 1890. No seu

    artigo 29, o procedimento definido como uma medida preventiva. Verifica-se a influncia da

    antropologia criminal e da Escola Penal Positiva, fundadas por Cesare Lombroso, que

    colocava a periculosidade como elemento principal para definir a pena e para a preveno

    criminal (CARRARA, 1998). A idia central era de que os loucos criminosos, os

  • 46

    inimputveis, eram os mais perigosos, e, nesse sentido, o grau de periculosidade do agente

    deveria ser levado em considerao para determinar a imputabilidade penal.

    As idias de Lombroso eram baseadas nos postulados positivistas do biodeterminismo

    e da existncia de leis universais de causalidade (CARRARA, 1998; HARRIS, 1993). Ao

    formular a doutrina do criminoso nato, Lombroso, alm de descrever as suas anomalias

    morfolgicas, anatmicas, configuradoras do tipo criminal, sofreu muita influncia dos

    psiquiatras da poca que descreviam o tipo do louco moral, que apresentava insensibilidade

    moral e afetiva (ALVES, 1998). De acordo com essa teoria, os loucos so perigosos porque as

    suas aes evidenciam uma pr-determinao a cometer atos criminosos. O crime entendido

    como um produto da ao de fatores endgenos e exgenos sobre a vontade, e para o mesmo

    no seriam mais necessrias medidas aflitivas, mas profilticas ou de defesa proporcionais

    ao perigo representado pelo sujeito (PERES, 2002, p. 345).

    Segundo a Escola Positiva do Direito Penal, a pena perderia seu carter punitivo,

    passando a ser uma medida de defesa social e de preveno criminal, indeterminada em sua

    durao. A pena deveria poder ser determinada com base na periculosidade do sujeito, a qual

    seria avaliada atravs do exame de sua personalidade. Os juristas da Escola Clssica

    rejeitaram tais idias por se mostrarem incompatveis com o direito de punir, tendo em vista

    que eram contrrias doutrina do livre arbtrio. Ademais, para eles a idia de uma pena

    indeterminada poderia ensejar arbitrariedades por parte do Poder Judicirio. Porm, apesar de

    tais crticas, com relao aos loucos criminosos e aos semi-responsveis, aquelas idias

    positivistas foram aplicadas atravs da medida de segurana, permitindo o controle dos seus

    atos pelo Direito Penal.

    A ao preventiva do Estado passa a ser fundamentada pela noo da periculosidade

    social, a qual, associada ao conceito de doena mental propiciou uma sobreposio entre

    punio e tratamento, uma quase identidade do gesto que pune e aquele que trata (BARROS,

  • 47

    1994a). Como afirma Foucault (2004a, p. 137), loucura e crime no se excluem, mas no se

    confundem num conceito indistinto; implicam-se um ao outro no interior de uma conscincia

    que ser tratada, com a mesma racionalidade, conforme as circunstncias o determinem, com

    a priso ou com o hospital.

    Configura-se uma interao entre as reas distintas que sustentam o conceito de

    periculosidade, a qual explicada por Barros (1994b, p. 38):

    O encontro singular entre os aparatos da administrao pblica e da justia, e os aparatos da cincia e da medicina, fez com que o conceito de periculosidade social se tornasse o principal atributo da loucura, seja por parte do Estado (construo de manicmios, legislaes), da psiquiatria (justificativa da internao, pesquisas cientficas sobre causas e mtodos), ou ainda, por parte da justia (escola do direito positivo, imputabilidade e inimputabilidade, necessidade de defesa social, desenvolvimento das medidas de segurana).

    Nesse sentido, De Leonardis (1988, p. 51) afirma que o diagnstico de

    periculosidade, e, portanto, a competncia psiquitrica na matria, condio crucial de

    desenvolvimento do sistema do direito penal moderno. A psiquiatria continua exercendo o seu

    papel, a ela atribudo desde o final do sculo XVIII, de normalizadora da sociedade

    (FOUCAULT, 2002a; 2004b), na qual cuida da conservao da sade fsica e mental das

    pessoas servindo-se de providncias penais e administrativas. E o direito penal, assim, passa a

    servir-se do embasamento cientfico da medicina mental para determinar a periculosidade

    atravs do exame psiquitrico, que, segundo Foucault (2002a, p. 29; 2003b), serve alterao

    do duro ofcio de punir para o belo ofcio de curar.

    Ao abordar esse aspecto na sua obra Os Anormais, Foucault (2002a, p. 31) esclarece:

    a sano penal dever ter doravante por objeto, no um sujeito de direito tido como responsvel, mas um elemento correlativo de uma tcnica que consiste em pr de lado os indivduos perigosos, em cuidar dos que so sensveis sano penal, para cur-los ou readapt-los. Em outras palavras, uma tcnica de normalizao que doravante ter de se ocupar do indivduo delinqente. Foi essa substituio do indivduo juridicamente responsvel pelo elemento correlativo de uma tcnica de normalizao, foi essa tranformao que o exame psiquitrico, entre vrios outros procedimentos, conseguiu constituir.

  • 48

    importante, ainda, trazer a anlise de Basaglia (1982, p. 448) sobre a periculosidade

    social na fronteira entre psiquiatria e justia: O conceito de periculosidade representa, assim, ao mesmo tempo, a razo da sano jurdica e a grande categoria diagnstica da qual sucessivamente se separam e se diferenciam as outras. Tanto verdade que seu proliferar e variar no determinaram, at a primeira fase de crise das velhas legislaes, qualquer significativa variao nem nas tcnicas de tratamento, nem na gesto dos lugares de tratamento.

    Com o Cdigo Penal de 1940, a periculosidade, definida como a probabilidade de

    delinqir, passa a ser o fundamento da medida de segurana. Portanto, o conceito da

    periculosidade presumida justificou a criao e a manuteno do instituto da medida de

    segurana como forma de proteger a sociedade daquele que perigoso a priori. E de acordo

    com o Cdigo Penal (artigo 97, 1), a avaliao da periculosidade social deve ser feita por

    um perito mdico. Porm, importante notar que as origens etiolgicas do conceito de estado

    perigoso so mais de ordem jurdica que mdica, embora o seu diagnstico seja realizado pela

    medicina e no pela Justia.

    Carvalho Netto (2005, p. 25) afirma que A Lei denuncia assim a noo mesma de

    periculosidade como conceito opervel juridicamente, pois a exigncia de um atestado de que

    qualquer um de ns jamais representar risco para a sociedade absurda. Para este autor, o

    risco inerente sociedade, sendo possvel buscar o seu controle, mas no a sua eliminao.

    Vale salientar que o referido Cdigo Penal adotou o sistema enumerativo, segundo o

    qual a periculosidade no reconhecida de forma geral, sendo caracterstica apenas de certos

    grupos de delinqentes, dentre os quais se encontram as pessoas com transtornos mentais. E

    alm de constar no Cdigo Penal, a norma da periculosidade social est insculpida nos artigos

    175 a 177 da Lei de Execuo Penal, os quais estabelecem as regras para a realizao do

    exame de verificao da cessao da periculosidade.

    Cohen (2006a, p. 124) explica que a periculosidade no est vinculada ao ato em si,

    mas sim falta de compreenso do indivduo que vai infringir uma proibio legal ou sua

  • 49

    incapacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento. Ainda segundo esse autor,

    o vnculo entre a doena mental e a periculosidade surgiu num perodo de obscurantismo da

    sociedade, qua