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VALDECIR LUIZ CORDEIRO DIÁLOGO E REFLEXÃO CRISTOLÓGICA NO PENSAMENTO DE JUAN LUIS SEGUNDO Uma abordagem a partir do método Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Juan A. Ruiz de Gopegui SJ BELO HORIZONTE FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2007

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VALDECIR LUIZ CORDEIRO

DIÁLOGO E REFLEXÃO CRISTOLÓGICA NO PENSAMENTO DE JUAN LUIS SEGUNDO

Uma abordagem a partir do método

Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia.

Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Juan A. Ruiz de Gopegui SJ

BELO HORIZONTE

FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2007

A Dom Moacyr Grechi e ao Pe. Rafael Alaman, com profunda gratidão.

Agradecimentos

- A Pia Sociedade de São Paulo (Paulinos do Brasil) pela gratuidade da acolhida e pela amizade construída com seus membros em Belo Horizonte;

- Ao Prof. Juan de Gopegui pela confiança, amizade e dedicação com que orientou este estudo;

- Aos professores e funcionários da Faculdade pela dedicação e amizade;

- As pessoas e instituições que acreditaram na proposta desta pesquisa pela generosa contribuição financeira: meus irmãos Valdair e Luzi, Arquidiocese de Porto Velho, CAPES, Fundação Porticus e ISI/FAJE;

- Aos irmãos da Arquidiocese de Belo Horizonte, especialmente os Padres Carlos Roberto Loredo e Gerard Joseph Ferreira e suas respectivas comunidades pela confiança, acolhida e amizade.

Resumo A presente dissertação tem por objetivo estudar os pressupostos metodológicos que estabelecem a relação entre diálogo e reflexão cristológica no projeto teológico de Juan Luis Segundo. O estudo identifica perspectivas gerais que possibilitam a convergência entre teologia fundamental e dogmática, de modo que esta se constitua toda em diálogo com o homem de hoje. Assim, partindo de uma análise fenomenológica da existência humana, o teólogo uruguaio chega a propor uma cristologia que pode ser compreendida também por pessoas que não têm a fé cristã. Seu método consiste em lançar a Jesus e a seu contexto as redes de questões inerentes às dimensões antropológicas básicas – estrutura de sentido (fé antropológica) e estrutura de meios de eficácia (ideologia) – que conformam a existência de qualquer pessoa. Sua reflexão cristológica visa atingir o universo significativo, as interrogações e aspirações do homem de hoje como uma boa notícia.

Palavras-chave: Fé, Ideologia, Cristologia, Diálogo, Método.

Abstract

This study intends to analyse the methodological assumptions that establish the relation between dialogue and Christological reflection in the theological project of Juan Luis Segundo. The study identifies general perspectives which allow the convergence between fundamental and dogmatic theologies, so that this one constitutes itself in dialogue with the man of today. Hence, starting from a phenomenological analysis of the human existence, the Uruguayan theologian proposes a Christology that can be also understood by people who do not have the Christian faith. His method consists in throwing in Jesus and his context, the nets of questions inherent to the basic anthropological dimensions – structure of meaning (anthropological faith) and structure of efficacy (ideology) – that conform the existence of any being. His Christological reflection intends to reach the universe of significance, questions and aspirations of the man of today, as good news. Key words: Faith, Ideology, Christology, Dialogue, Method.

Siglas e abreviações

Concilium - Revista Internacional de Teologia (Petrópolis).

GS - Constituição Pastoral Gaundium et Spes (Concílio Ecumênico Vaticano II,

1962-1965).

LG - Constituição Dogmática Lumen Gentium (Concílio Ecumênico Vaticano II,

1962-1965).

Medellín - Documento da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano

e do Caribe (Medellín, 1968).

PT - Revista Perspectiva Teológica (Belo Horizonte).

REB - Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis).

Relations - Revista de Teologia (Montreal).

Unisinos - Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo).

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 7

CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO ............................................................ 10

1. REVELAÇÃO E HISTÓRIA.............................................................................................. 10

2. DIÁLOGO E LIBERTAÇÃO: O CÍRCULO HERMENÊUTICO ............................................... 17

3. A OPÇÃO POLÍTICA E O FAZER TEOLÓGICO ................................................................. 34

CAPÍTULO II: FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS............................................. 40

1. A CENTRALIDADE DA PESSOA ...................................................................................... 40

2. FÉ ANTROPOLÓGICA.................................................................................................... 45

3. IDEOLOGIA .................................................................................................................. 52

4. DISTINÇÃO E COMPLEMENTARIEDADE ENTRE FÉ ANTROPOLÓGICA E IDEOLOGIA....... 56

5. O ABSOLUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA ........................................................................ 63

CAPÍTULO III – REFLEXÃO CRISTOLÓGICA .......................................................... 70

1. UMA CRISTOLOGIA NA PERSPECTIVA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL........................... 70

2. INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA. A CHAVE POLÍTICA NOS SINÓTICOS ................................. 86

3. GENERALIZAÇÃO ANTROPOLÓGICA: A CHAVE DE PAULO ......................................... 100

CONCLUSÃO.................................................................................................................. 110

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 113

APÊNDICE ...................................................................................................................... 116

ÍNDICE GERAL.............................................................................................................. 121

INTRODUÇÃO

Há no projeto teológico de Juan Luis Segundo um compromisso, ao qual – pelo que eu

saiba – os que procuram compreender seu pensamento têm feito apenas referências indiretas.

No entanto, ele é chave para esta mesma compreensão, dado que compreender a unidade do

pensamento de um autor implica lê-lo desde suas intenções e valores fundamentais. Captar o

explícito e o implícito, a letra e o espírito do texto, organizar a multiplicidade de temas e

enfoques, ainda que de antemão se saiba que a riqueza do pensamento de um homem não se

deixa reduzir a uma chave de leitura.

O referido compromisso, penso, é decisivo na tarefa de colocar a teologia a serviço da

libertação humana. Trata-se do diálogo com o homem de hoje, um dado, ademais, inerente à

estrutura mesma da revelação de Deus, uma vez que a revelação é a auto-manifestação de

Deus na história dos homens. O labor teológico é nada mais que um falar sobre este Deus que

se manifesta significativamente na vida concreta. Sendo assim, o diálogo não brota de uma

vontade de propaganda, mas constitui-se como pressuposto metodológico de toda a teologia.

Pois bem, acreditamos que esta chave de leitura coloca-nos no interior do pensamento

de Segundo e abre caminho para a percepção das perspectivas fundamentais de seu

pensamento. Tais perspectivas vão como que empurrando o teólogo uruguaio na direção de

uma análise fenomenológica da existência humana que, finalmente, o possibilita repropor o

problema de Jesus com mais sentido para o homem embrenhado no interior dos complexos

mecanismos históricos da atualidade. Portanto, a presente dissertação tem por objetivo estudar

a cristologia de Segundo na perspectiva da chave que perpassa todo o seu projeto teológico: a

do diálogo com o homem de hoje.

Importantes fatores sócio-culturais do Uruguai, país em que Segundo1 nasceu e viveu

a maior parte de sua vida, nos permitem compreender o horizonte de seu pensamento. Do

ponto de vista étnico, seus interlocutores são descendentes de europeus que vivem nos

ambientes urbanos, especialmente em Montevidéu, não somente de espanhóis colonizadores,

mas também italianos e alemães. Do ponto de vista cultural, são devedores do caráter

1 Ver no apêndice dados biográficos do autor. Cf. infra, p. 116.

8

eminentemente laico da sociedade uruguaia, fortemente influenciada pelo laicismo francês.

Finalmente, do ponto de vista econômico o Uruguai foi uma sociedade próspera, com

indicadores econômicos bem acima da média latino-americana, até que entrasse em crise nas

últimas décadas do Século XX2. Tais dados nos permitem compreender o perfil dos

interlocutores mais imediatos de Segundo.

Sua teologia está voltada especialmente ao diálogo e à discussão com cristãos e não-

cristãos, crentes e não-crentes, de setores médios da sociedade. Esta perspectiva pode ser

alargada para o horizonte dos movimentos de libertação na América Latina, frente aos quais o

teólogo, em sua vocação eclesial, é desafiado a dar sua contribuição. No entanto, para sermos

honestos com Segundo, e sem medo de generalização, podemos dizer que seu interlocutor é o

homem de hoje, inserido na perspectiva do pensamento moderno, e que sua teologia é um

esforço para repensar a relevância histórica de Jesus de Nazaré e sua revelação para qualquer

homem empenhado em dar sentido (ou mais sentido) à própria existência.

Segundo matiza esta indicação geral do seu interlocutor com um dado antropológico

decisivo para elevar seu pensamento a um patamar universal. Afirma explicitamente em sua

cristologia que quer dialogar com ateus, se não atuais pelo menos potenciais. Com isto

acredita poder partir de elementos antropológicos básicos que conformam a vida de qualquer

pessoa, em qualquer tempo e lugar, livre de catalogações sociológicas e, principalmente, de

etiquetas religiosas.

Não jogamos muito com o termo diálogo. Procuramos partir de uma definição ao

mesmo tempo simples e compaginada com o pensamento de Segundo. Trata-se, pois, da

intercomunicação vital entre pessoas, de modo que estas, em sua liberdade, e considerando o

horizonte simbólico e histórico em que vivem, se entendam naquilo que é fundamental para a

vida. Nem precisa dizer que ajudar os homens a entender-se em algo fundamental é o objetivo

mesmo da teologia.

Em termos mais simples pode-se dizer que a capacidade de diálogo de uma teologia

não recai tanto nos conteúdos, mas fundamentalmente no método. E é justamente esta

hipótese geral que queremos verificar ao longo deste trabalho.

2 Cf. MURAD, A. Este cristianismo inquieto. A fé cristã encarnada em J. L. Segundo. São Paulo: Edições

Loyola, 1994, p. 13.

9

A dissertação toda é elaborada sob o prisma do método. Mas há aspectos que dão

especificidade a cada capítulo. Os dois primeiros descrevem o método, ao passo que o terceiro

e último aborda sua aplicação.

Começaremos apresentando três perspectivas básicas de diálogo no pensamento de

Segundo. A primeira delas – a relação entre revelação e história – possibilita a convergência

entre teologia fundamental e dogmática. O autor mostra que o diálogo é uma função de toda a

teologia, de modo que esta se faça compreender em todas as suas áreas. A segunda – a

circularidade do método – é uma conseqüência da primeira e coloca em estreita relação a

questão do diálogo e a da libertação. Esta, por sua vez, deságua na terceira perspectiva que

apresentaremos: a questão da tão controversa relação entre a opção política e o fazer teológico

(cap. primeiro).

Num segundo momento entraremos na questão dos fundamentos epistemológicos.

Trata-se na verdade de mostrar que as perspectivas básicas do pensamento de Segundo abrem

caminho para a análise antropológica da qual resultam as componentes básicas da existência

de todo homem. Dessa forma, as categorias de fé antropológica, ideologia e dados

transcendentes formarão o aparelho científico, se assim se pode dizer, as redes de questões

existenciais que tornam possível o acesso aos dados mais fidedignos de Jesus de Nazaré (cap.

segundo).

Finalmente, apresentaremos as linhas gerais da investigação histórica e da

generalização antropológica do sentido de Jesus de Nazaré. Trata-se, na verdade, da aplicação

do método à reflexão cristológica. Veremos que no esquema de Segundo o decisivo é o

distinguir e articular a história e a interpretação de Jesus. Neste sentido, por um lado, temos a

aplicação dos pressupostos metodológicos de Segundo na busca pelos dados de Jesus e sua

relação com seus próprios interlocutores – investigação histórica –, consignados pelos

Evangelhos Sinóticos. Por outro, veremos que nosso autor apresenta um caso paradigmático

de fazer teológico: a cristologia humanista de Paulo – interpretação – que eleva ao nível

universal a experiência situada de Jesus de Nazaré (cap. terceiro).

Assim fica demonstrada a relevância do enfoque de nossa pesquisa: mostrar que

Segundo propõe uma cristologia em diálogo, uma reflexão que atinge o universo significativo

do homem de hoje como uma boa notícia.

CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO

A cristologia1 de Juan Luis Segundo constitui-se como ponto de chegada – provisório,

porém – de uma teologia em diálogo. Não é obra circunstancial, mas a continuação de seu

pensamento e de suas premissas, trabalhados e mantidos por mais de vinte anos2. Assim, pois,

pode ser útil seguir seus primeiros passos para que possamos compreender suas perspectivas.

No itinerário do pensamento do teólogo uruguaio, anterior a sua cristologia, são

articulados temas de relevo3. Do ponto de vista que nos ocupa, vale destacar não tanto os

temas, mas as principais perspectivas que vinculam sua teologia à questão do diálogo com o

mundo: a relação entre revelação e história, a preocupação com o método de uma teologia a

serviço da libertação e, finalmente, a relação entre teologia e política.

1. Revelação e história

Pode ser bom começar analisando alguns desdobramentos da teologia da revelação de

Segundo: a preocupação com o diálogo, a compreensão da Palavra como amor criador na

história, o interesse por Jesus de Nazaré e a relação entre cristologia e método.

1.1. O diálogo como preocupação de base para toda a teologia

Segundo assume o pressuposto básico de que não há separação entre a revelação de

Deus e a história dos homens4. Introduz assim o diálogo como pressuposto metodológico de

1 Trata-se da obra El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret. Tomo I: Fe e ideología; Tomo II/1: Historia y

actualidad: Sinópticos y Pablo e Tomo II/2: Historia y actualidad. Las cristologías en la espiritualidad. Madrid: Ed. Cristiandad, 1982. - Desta obra resultou La historia perdida y recuperada de Jesús de Nazaret. De los Sinópticos a Pablo. Santander: Ed. Sal Terrae, 1991.

2 Cf. SEGUNDO, Juan Luis. “Notas sobre ironias e tristezas. Que aconteceu com a teologia da libertação em sua trajetória de mais de vinte anos? (Resposta a Hugo Assmann)”. In: PT 15 (1983), pp. 385-400, aqui, 394.

3 Em diversos artigos e, especialmente, na série Teología Abierta para el Laico Adulto, em cinco volumes, Segundo trabalha de maneira profunda e dialogante conceitos-chave da teologia, como Igreja, Graça, Sacramentos, Culpa, a concepção de Deus etc. Para o nosso estudo, neste capítulo, daremos especial atenção ao artigo “Diálogo e teologia fundamental”. In: Concilium 6 (1969), pp. 61-69 e ao livro Liberación de la teología. Buenos Aires - México: Ed. Carlos Lohlé, 1975, além de outros trabalhos.

4 Cf. SEGUNDO, Juan Luis. “Reconhecer a revelação”. In: O dogma que liberta. Fé, revelação e magistério dogmático. São Paulo: Ed. Paulinas, 1991, pp. 147-180. – Referimo-nos precisamente a este capítulo não

11

toda sua teologia. Por conseguinte, abre uma perspectiva de convergência entre teologia

fundamental e teologia dogmática. Não que isto não tenha de certo modo ocorrido ao longo da

história, inclusive em períodos notáveis como o da patrística ou em projetos mais localizados

como foi o pensamento de Santo Tomás de Aquino. Em ambos os casos a teologia dialogou

com outras correntes de pensamento a fim de tornar a mensagem cristã inteligível e

interessante à cultura da época. No entanto, é fato também que a teologia cristã, de maneira

especial a católica, foi-se acomodando ao contexto de cristandade, no qual o ser cristão era

muito mais um fato sociológico que uma opção conscientemente assumida. Evidentemente

que as mudanças provocadas pelo processo de secularização na modernidade, o surgimento de

novos instrumentais científicos para a interpretação da história humana e da própria Escritura,

uma maior consciência do caráter situado e da agudez dos problemas e desafios humanos,

obrigaram a teologia a rever seus métodos. O Vaticano II, no que concerne a isto, foi

certamente o maior catalisador de forças no campo católico no Século XX. A partir daí

desencadear-se-ia um processo de diálogo com a nova realidade humana gerada pelo novo

contexto cultural.

Pois bem, neste contexto, ainda na fase embrionária de seu pensamento, Segundo

constata uma contradição interna na grade curricular da teologia clássica. A teologia

fundamental aparecia como um terreno neutro no qual se podia dialogar num plano de

igualdade com qualquer homem, e com os mesmos instrumentos conceituais e de linguagem.

Era o momento de se delinear os preâmbulos da fé, de demonstrar a razoabilidade do mistério.

Em termos pastorais, era uma preparação para a aceitação da fé, uma tentativa de abrir

caminho para a evangelização e o posterior estudo dos dogmas, tarefa esta da dogmática, o

que de certo modo equivalia aceitar “a possibilidade ‘humana’ de declarar como verdadeiro o

cristianismo antes de saber o que ele dizia”5. Ora, esta divisão mostrou-se artificial e ineficaz,

a tal ponto que “a teologia fundamental não interessava a quem tivesse liberdade de ouvir ou

de se retirar e dispusesse de um pouco de cultura”6.

Na perspectiva da autonomia do sujeito aberta pela modernidade não bastam artifícios,

mesmo que sofisticados, para “domesticar” a mente e abrir caminho para a aceitação de uma

mensagem tantas vezes cristalizada e amparada, sobretudo, na autoridade eclesial. Talvez se

porque o assunto em questão seja tratado exclusivamente nele, mas porque aí nosso autor defende mais enfaticamente que a revelação é um ato em que atuam em comum tanto Deus como o homem. Esta perspectiva de compreensão da revelação aparece de maneira programática nos primeiros artigos e livros de Segundo.

5 Id., “Diálogo e teologia…”, p. 62. 6 Ibid., p. 65.

12

deva pensar num projeto teológico em diálogo com as novas correntes de pensamento. R.

Bultmann justificou o uso de categorias do pensamento de M. Heidegger em sua teologia

afirmando que o teólogo tem diante de si a tarefa de apresentar a mensagem cristã de maneira

inteligível e significativa aos homens de cada época7.

Sendo assim, o diálogo passa a figurar no horizonte de toda a teologia dogmática, não

na perspectiva de uma abstração transcendental com o intuito de demonstrar as condições de

possibilidade de uma teologia em diálogo, mas numa perspectiva mais fenomenológica, ou

seja, uma teologia dialógica em seu método.

Como assinalado acima, esta perspectiva metodológica pode ser mais bem

compreendida se considerarmos o dado fundamental de que não pode haver separação entre a

história dos homens e o objeto próprio da teologia. Segundo, citando o Vaticano II (GS 22, 40

e 11, respectivamente), afirma que a graça de Deus, exatamente por ser realidade universal na

existência humana, constitui o eixo fundamental que qualifica a história dos homens como

história da salvação, num processo unitário8.

1.2. Revelação de Deus: amor criador na história dos homens

Outro elemento que incide sobre a relação entre revelação e história é o próprio modo

da manifestação da verdade revelada. Uma teologia em diálogo depende em grande medida da

maneira como se compreende esta questão. De fato, “a estrutura da revelação decide sobre a

teologia, já que se faz teologia da revelação de Deus”9. Pode ser bom pôr em relevo um

pressuposto epistemológico básico de todo saber científico. Ele nos ajudará a situar a questão

do método a partir do modo próprio da manifestação de Deus na história.

Não há dúvidas acerca da primazia do objeto sobre o sujeito epistemológico. Seria

puro autoritarismo defender que o sujeito define o acesso cognitivo para um determinado

objeto do conhecimento. Isto vale também, e talvez muito mais, para a teologia. O seu objeto

– a revelação de Deus – define o método teológico. Como assinala C. Boff, a natureza do

objeto determina o modo de seu acesso cognitivo10.

7 Cf. BULTMANN, Rudolf. Crer e compreender. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 174. 8 Cf. SEGUNDO, Juan Luis. Teología abierta para el laico adulto. Vol. II. Gracia y condición humana. Buenos

Aires, México: Ed. Carlos Lohlé, 1969, p. 192. 9 LIBANIO, João Batista e MURAD, Afonso. Introdução à teologia. Perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Ed.

Loyola, 1996, p. 75. 10 Cf. BOFF, Clodovis. “Retorno à arché da teologia”. In: SUSIN, Luis Carlos (org.). Sarça ardente: teologia na

América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 145-187, aqui p. 155. – O autor parte do

13

A revelação é a auto-manifestação de Deus à humanidade, o que nos leva a considerar

que o modo da manifestação de Deus na história dos homens é um valioso indicativo para o

método teológico. Em outras palavras, que o caminho para Deus é o caminho de Deus em

nossa direção. Resta-nos, pois, “perguntar como se deu concretamente tal caminho no

processo histórico-salvífico”11. Ora, temos consciência de que a revelação de Deus é evento

que ocorre na história humana. Dessa forma, a compreensão do humano, onde o diálogo joga

papel de relevo, se coloca no horizonte da teologia como caminho – método – para a

compreensão da revelação de Deus:

(…) qualquer enunciado procedente da revelação tem por objeto tanto Deus como a história humana (GS. 22). Com efeito, o Deus que conhecemos é o Deus-amor e só o conhecemos amando atualmente, històricamente [sic], ou seja, intervindo numa história cuja origem, fim e lei é o amor (GS. 38 e 22)12.

Segundo entende que a revelação de Deus supõe certa mobilização criativa da

liberdade humana em vista da humanização. O exercício da liberdade consiste em acolher a

novidade escatológica do Reino revelada por Jesus, a qual se apresenta como um plano

unitário em que Deus e os homens colaboram no ato criativo destinado a contribuir para a

totalidade do ser na história13. Deus precisa do homem para levar a cabo o seu projeto

escatológico:

(…) o que não tiver sido realizado no nível histórico não pertencerá nunca à nova terra. Deus não faz história sem nós, mesmo que seja verdade que nós nada podemos fazer de definitivo sem Ele14.

Assim, pois, os dados transcendentes da revelação invadem a história como luz para as

questões postas pela tarefa da humanização. A revelação de Deus pensada nesta perspectiva

do amor humanizador define o diálogo como dado constitutivo do fazer teológico. De fato a

Palavra de Deus abre um horizonte escatológico para a humanidade, um dever-ser

humanizador, cuja compreensão supõe o diálogo com o mundo onde esta Palavra é assumida

historicamente pelo homem15. Com efeito, enfatiza ainda Segundo, citando um documento do

Vaticano II (GS 3 e 11), a Palavra revelada não é uma verdade destinada a produzir frutos

pensamento de Aristóteles (Metafísica, 1. II [a], c. 3, 995a 8-14; Ética a Nicômaco, 1. I, c. n. 3, n. 4-5; passim) e M. Heidegger (Fenomenologia e Teologia, In: Arquives de Philophie, v. 32 [1969] pp. 356-395) para fundamentar sua argumentação.

11 Ibid., p. 156. 12 SEGUNDO, “Diálogo e teologia…”, pp. 64-65. 13 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo II/2, p. 751. 14 Id., “Libération et évangile, II. L’apport spécifique des chrétiens à la libération” (Entrevista). In: Relations 36

(1976), pp. 184-186, aqui p. 184. Apud: GROSS, Eduardo. A concepção de fé de Juan Luis Segundo. São Leopoldo: Sinodal, 2000, p. 35.

15 Cf. Id., A concepção cristã do homem. Petrópolis: Ed. Vozes, 1970, pp. 13-20 e 65.

14

sozinha, ou apenas entre os crentes, mas uma mensagem aberta e destinada a iluminar o

caminho da construção da história da humanidade. E conclui:

Se o diálogo resultar, foi porque a verdade absoluta que partiu de Deus, se transmitiu, através do crente, sob a forma de elemento criador de perspectivas absolutas para uma formulação mais profunda, mais universal, mais rica, mais visível e aberta ao futuro, que se esse elemento (o diálogo, acréscimo nosso) tivesse estado ausente16.

Nisto consiste não somente a elaboração teológica, mas também toda a missão

evangelizadora da Igreja: em diálogo com o mundo, anunciar a boa nova, palavra

“persistente, tenaz, sempre nova, proporcionada, em cada problema, a cada vicissitude

histórica (LG. 35)”17. E que não se confunde com a simples conversão de pessoas para as

fileiras do cristianismo, mas visa fundamentalmente “ir para a outra margem” (Mc 6,45), no

sentido de criar soluções de amor para os desafios e impasses da humanidade.

Alguns anos após a publicação do supracitado artigo de Segundo – “Diálogo e teologia

fundamental” –, Hugo Assmann viria afirmar que a Palavra de Deus não está desligada da

compreensão da luta dos cristãos comprometidos com a transformação social. “Que não existe

uma Palavra de Deus em si, planando por cima da realidade”, ou seja, que há uma “densidade

epistemológica”18 na análise da realidade social onde homens e mulheres lutam pela

humanização, e que nela está contida a revelação de Deus.

1.3. Do diálogo com o homem de hoje ao interesse por Jesus de Nazaré

O interesse de Segundo pela questão do diálogo não se deve a certo “ecumenismo”

que floresceu em ambientes católicos depois do Vaticano II. Busca antes de tudo uma

terminologia e categorias de pensamento que permitam repensar a antropologia cristã

subjacente ao que hoje em termos gerais se compreende por cristianismo, e por conseqüência

repropor o problema de Jesus19. Tal intento funda-se na convicção de que é possível – e

necessário – dialogar com outras correntes de pensamento, e dessa forma resgatar a

antropologia cristã mais genuína:

(…) só integrando e superando o que há de profundamente verdadeiro nas outras correntes de pensamento é que a nossa própria poderá viver e valer (…). Êste diálogo é tanto mais necessário para o cristianismo quanto mais êste se torna consciente de que a

16 Id., “Diálogo e teologia…”, p. 65-66. 17 Ibid., p. 66. 18 ASSMANN, Hugo. “Conciencia cristiana y situaciones extremas en el cambio social”. In: BOLADO, Alfonso

Alvarez (Ed.). Fe cristiana y cambio social en América Latina. Encuentro de El Escorial, 1972. Salamanca: Ed. Sígueme, 1973, pp. 335-343, aqui p. 341.

19 Cf. SEGUNDO, La historia perdida, p. 17.

15

imagem do homem tirada das suas fôrças originais não concorda “em boa medida” com a imagem do homem da realidade sociológica chamada cristianismo (sic)20.

Assim se compreende porque a cristologia de Segundo vem a público somente a partir

dos anos 1980, após ampla elaboração teológica. Reflexões sobre a pessoa, a sociedade, os

dogmas cristãos e especialmente sobre os problemas do homem de hoje, constituem-se como

verdadeira propedêutica para se repensar a relevância histórica de Jesus de Nazaré e de sua

revelação para “qualquer homem que procure dar sentido (ou melhor sentido) à sua vida”21.

1.4. Cristologia, diálogo e método

Entre os elementos principais da cristologia de Segundo está a relação entre diálogo e

método, “até certo ponto, o tema central”, posto que “a situação do homem de hoje” – nova e

específica – “é a preocupação central”22. Tal afirmação não deixa de causar certa estranheza,

dado que Jesus Cristo, a plena revelação da Verdade, e não outra coisa é o centro da

cristologia. No entanto, o caráter contraditório da questão se desfaz se se considera que a

revelação de Deus é, sobretudo, evento23 que se realiza na história.

Nesta perspectiva, a teologia em geral – e a cristologia em particular – deverá

incorporar em sua metodologia condições para que o diálogo aconteça. Isto por dois motivos

decisivos: por um lado, porque o discurso teológico deve ser compreensível e interessante

para qualquer homem, uma vez que o estudo das condições de possibilidade da revelação de

Deus já não é uma atribuição exclusiva da teologia fundamental, mas “passou a dominar toda

a teologia”24; por outro, porque o sentido autêntico da revelação se dá a conhecer – ou é

percebido pelo homem – tão somente na vida humana concreta, no “chão da vida”, como se

diz nas comunidades eclesiais de base.

Se o teólogo não for capaz de dialogar com o homem de hoje, certamente lhe

escaparão as perguntas humanas mais importantes, relegando a teologia ao trabalho de

elaborar fórmulas cada vez mais distantes da realidade em que vivem as pessoas.

Não se trata de colocar o diálogo como tema da teologia, enchendo com isto páginas

intermináveis, nem tampouco envernizar o discurso para torná-lo atraente, numa espécie de

20 Id., A concepção cristã, p. 65. 21 Id., La historia perdida, p. 36. 22 ASSMANN, Hugo. “Os ardis do amor em busca de sua eficácia. As reflexões de Juan Luis Segundo sobre ‘O

Homem de Hoje Diante de Jesus de Nazaré’”. In: PT 15 (1983), pp. 223-259, aqui p. 229. 23 Cf. BOFF, op. cit., p. 149. 24 SEGUNDO, “Diálogo e teologia…”, p. 61.

16

estratégia de publicidade. O objeto da teologia não é algo manipulável, que se possa transmitir

à comunidade humana como um produto qualquer. Assim, pois, na perspectiva do

pensamento de Segundo, uma teologia em diálogo não é a que fala de diálogo, mas a que faz

emergir do interior da história o sentido que a revelação sempre teve: Palavra livre e soberana

“para poder dizer em cada situação o que é criativamente libertador em tal situação”25.

Não se pode, no entanto, reduzir a teologia a mais uma interpretação do humano e da

sociedade. A teologia cristã por definição deve voltar sempre a interpretar a revelação

testemunhada na Escritura. Isto não quer dizer que esta deva ou possa ser uma atividade

autônoma praticada no interior do mundo acadêmico, com o olhar do teólogo voltado para o

panteão dos dogmas, à margem do mundo real com seus interesses, tendências e desafios.

Seria ingenuidade pensar assim, pois tudo o que tem a ver com as idéias pode estar

“intimamente relacionado (…) com a presente situação social. E disso não escapa nem a

teologia”26.

Assim, pois, para Segundo a teologia não pode ser ensinada de maneira autônoma,

prescindindo do diálogo com as ciências sociais27, à margem do contexto social. Não basta o

recurso às ciências que nos ligam ao passado, notadamente as que nos abrem o texto bíblico –

história da redação, das fontes, gêneros literários etc. Isto porque a própria interpretação

teológica da Escritura pode ser condicionada por interesses ideológicos da presente situação

social. Já não se pode aceitar que o teólogo poderá elaborar um discurso de laboratório,

amparado por total imparcialidade em relação ao contexto social. Pensar que a teologia

simplesmente aplica à realidade as verdades divinas puras28 seria expor-se ao risco, mesmo

que inconsciente, de colocar a teologia a serviço dos piores interesses ideológicos. Por isso,

tendo presente o que foi dito acerca da possibilidade de infiltração ideológica no próprio fazer

teológico, se compreende que somente o diálogo com disciplinas que expliquem a presente

25 Id., Liberación de, p. 48. 26 Ibid., p. 12. 27 Cf. Ibid., pp. 11-12, passim. 28 Segundo cita uma passagem de E. Schillebeeckx, que parece indicar a possibilidade de uma teologia livre de

interesses ideológicos: “a interpretação baseada na fé não acrescenta nada à realidade; simplesmente explicita um elemento que as demais interpretações descuidam ou confundem. Neste sentido, se não há sinais de mistério na vida secular, teríamos que admitir que o cristianismo e qualquer outra interpretação religiosa é sempre uma superestrutura e uma ideologia. Mas não é superestrutura se se pode demonstrar que na própria vida secular existem esses sinais… A única coisa que uma interpretação religiosa ou de fé pode fazer é explicitar o que já está presente nesta vida…” (In: SCHILLEBEECKX, E. e RAHNER, K. et al. La respuesta de los teólogos. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1970, pp. 60-61 Apud: SEGUNDO, Liberación de, pp. 11-12).

17

realidade social possibilitará ao teólogo a compreensão dos interesses que se ocultam por

debaixo da realidade, de cuja influência nem mesmo a teologia escapa.

Do que foi dito se pode concluir que a preocupação de Segundo com o diálogo não

visa simplesmente tornar a mensagem cristã compreensível e interessante ao homem de hoje.

É inegável que esta preocupação ocupa um lugar de destaque em seu pensamento, mas tal

esforço está a serviço de um motivo que determina todo o resto: a mensagem cristã será

realmente interessante se for autêntica, ou seja, libertadora e capaz de manter o caráter de

novidade radical da Palavra de Deus frente aos desafios históricos.

Nesta perspectiva, somente uma teologia dialógica em seu método poderá manter a

autonomia e novidade radical de seu conteúdo, a Palavra de Deus. A teologia deverá colocar

lado a lado as disciplinas que lhe permitam compreender o passado – os textos bíblicos – e as

que lhe expliquem o presente, “no seu intento de interpretar a palavra de Deus dirigida a nós,

aqui e agora”29. E isto requer uma metodologia capaz de libertar a teologia da constante

infiltração ideológica, que seja uma contribuição efetiva na destruição dos esquemas de

pensamento que impedem a realização da mais genuína vocação humana à liberdade. Daí o

título que nomeia a supracitada obra de Segundo sobre o método: libertação da teologia.

2. Diálogo e libertação: o círculo hermenêutico – definição, qualificação e

plausibilidades

Vimos no tópico anterior que Segundo entende a revelação não como uma verdade em

si, mas como luz e elemento criador na candente tarefa da humanização na história da

humanidade. Neste sentido, cabe à teologia a tarefa contínua de manter o caráter de novidade

radical da Palavra frente aos recorrentes perigos de associação desta mensagem libertadora à

linguagem do status quo. Esta questão coloca a preocupação com o método como algo central

numa teologia que se queira em diálogo com o mundo e a serviço da libertação. Como se vê,

o desafio na verdade é manter a circularidade entre dois pólos: a revelação de Deus e a

história dos homens.

Nossa exposição, neste tópico, desdobra-se em três aspectos. O primeiro é composto

de dois elementos que definem a circularidade do método: a Palavra de Deus e sua

manifestação no compromisso humano na luta pela liberdade. O segundo descreve os

principais pontos do método e suas implicações que qualificam o fazer teológico como 29 SEGUNDO, Liberación de, p. 12.

18

dialógico e libertador. O terceiro versa sobre as plausibilidades do uso de certos instrumentais

teóricos na prática teológica.

2.1. Definição

2.1.1. Palavra de Deus: novidade radical a serviço da liberdade humana

No início dos anos 1970, no contexto da reflexão sobre a então recém surgida teologia

da libertação na América Latina, uma questão viria ganhar lugar de destaque nos debates

teológicos. Que perspectivas poderiam manter a função libertadora da teologia? Segundo

parte desta preocupação e defende que o fazer teológico deve estabelecer uma relação entre o

sentido que teve a revelação no passado e o sentido que ela poderá ter no hoje da história. Em

outras palavras, quer encontrar um método capaz de manter a função libertadora da teologia,

que torne possível a conexão entre o passado e a realidade presente.

Sem esta conexão, não existe nem subsiste teologia da libertação. Em outras palavras, poderá haver uma teologia que trate da libertação, mas ser-lhe-á fatal, cedo ou tarde, sua ingenuidade metodológica. Estará destinada a ser reabsorvida pelos mecanismos mais profundos da opressão, um do quais é, justamente, incorporar uma linguagem revolucionária à linguagem do status quo30.

Trata-se, como se vê, de manter a novidade e atualidade radical da Palavra de Deus

como luz para a humanidade. Ao método que pretende tornar isto possível Segundo dá o

nome de círculo hermenêutico, e assim o define:

(…) a contínua mudança de nossa interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa realidade presente, tanto individual quanto social. Hermenêutica quer dizer interpretação. O caráter circular dessa interpretação significa que cada realidade nova obriga a interpretar de novo a revelação de Deus, a mudar, com ela, a realidade e, daí, voltar a interpretar… e assim sucessivamente31.

Por detrás da busca de uma metodologia libertadora, penso, está o compromisso de

Segundo de dialogar com o homem de hoje em todos os aspectos, um teólogo que não se

dirige ao mundo com a segurança das verdades eternas da teologia, mas que submete esta

30 Ibid. 31 Ibid. – Esta terminologia não é original de nosso autor. Segundo lembra que R. Bultmann, na esteira do

pensamento heideggeriano, entende o círculo hermenêutico como processo de fé, precedido por uma análise existencial como etapa da interpretação da Escritura. Esta temática do método do círculo hermenêutico foi trabalhada posteriormente por Segundo em “Perspectivas para uma teologia latinoamericana”. In: PT 17 (1977), pp. 9-25, mas com destaque para um elemento novo. Neste artigo o autor expõe a crise da teologia latinoamericana no pós-Vaticano II e pós-Medellín, que se saturou de uma linguagem sobre a libertação. Preocupada com problemas programáticos da libertação, a teologia renunciou às perguntas sobre o sentido da Revelação nas lutas pela liberdade. Ou seja, a teologia renunciava ao seu papel de fazer teologia de maneira libertadora.

19

prática teórica às mesmas suspeitas que pairam sobre qualquer área do conhecimento humano.

E que acima de tudo quer colocar de maneira consistente, com critérios e perguntas atuais, o

fazer teológico a serviço dos anseios humanos por libertação. Assim se compreende o dado

fundamental de seu método, segundo o qual é preciso mudar continuamente nossa

interpretação da Escritura em função das contínuas mudanças e desafios históricos.

Isto fica claro nas duas condições que Segundo coloca para que haja o círculo

hermenêutico, que preferimos citar textualmente:

A primeira é que as perguntas que surgem do presente sejam tão ricas, gerais e básicas, que nos obriguem a mudar nossas concepções costumeiras da vida, da morte, do conhecimento, da sociedade, da política e do mundo em geral. Somente uma mudança tal ou, ao menos, a suspeita geral acerca de nossas idéias e juízos de valor sobre essas coisas, nos permitirão alcançar o nível teológico e obrigar a teologia a descer à realidade e colocar a si mesma perguntas novas e decisivas.

A segunda condição está intimamente ligada à primeira. Se a teologia chegar a supor que é capaz de responder às novas perguntas sem mudar sua costumeira interpretação das Escrituras, já terminou o círculo hermenêutico. Além disso, se a interpretação das Escrituras não muda junto com os problemas, estes ficarão sem solução ou, o que seria pior, receberão respostas velhas, inúteis e conservadoras32.

Segundo resume com propriedade estas duas condições inerentes ao círculo: “a

riqueza e profundidade de nossas perguntas acerca da realidade, e a riqueza e profundidade da

nova interpretação da Bíblia”33. Além disso, indica quatro passos que devem ser dados para

levá-las a cabo:

“Primeiro: nossa maneira de experimentar a realidade, que nos leva à suspeita ideológica; segundo: a aplicação da suspeita ideológica a toda a superestrutura ideológica em geral e à teologia em particular; terceiro: uma nova maneira de experimentar a realidade teológica que nos leva à suspeita exegética, isto é, à suspeita de que a interpretação bíblica corrente não toma em consideração certos dados importantes; e quarto: nossa nova hermenêutica, isto é, o novo modo de interpretar a fonte de nossa fé, que é a Escritura, com os novos elementos à nossa disposição”34.

A mútua implicação entre estes quatro passos do círculo hermenêutico, assim o penso,

torna possível uma teologia em diálogo. Há, porém, algo determinante para que a teologia da

libertação – de cujo método se ocupa Segundo em Libertação da teologia – tenha esta

característica. Trata-se do seu ponto de partida, mais precisamente o que lhe confere caráter

libertador. Diferentemente de outros projetos teológicos que buscam imediatamente na

Escritura um caminho para a libertação histórica, a modo de derivação, em Segundo o ponto

32 Ibid., p. 13. 33 Ibid. 34 Ibid., p. 14.

20

de partida são as questões que a vida concreta levanta e a maneira como o teólogo as

experimenta35.

Tomemos o exemplo da teologia política de J. B. Metz. Ela representa um esforço no

sentido de desprivatizar a religião e inserir sua interpretação teológica da Escritura no

contexto sócio-político, de maneira que se chegue a um novo conceito de práxis. Para tanto, o

teólogo alemão acredita ser necessário destronar o sujeito burguês que se apossou

ocultamente da teologia com sua antropologia que reduz o homem a “sujeito privado”, que se

compreende à margem da sociedade e dos problemas éticos. Recuperar o sentido cristão do

agir humano, de maneira que se possa integrar coerentemente a esfera do sentido e a da ação –

a práxis – torna-se tarefa urgente da teologia36.

Os procedimentos metodológicos de Metz, no entanto, o diferenciam sobremaneira

dos da teologia da libertação, da qual se ocupa Segundo. Seu ponto de partida não é a opção

por um sujeito socialmente situado37, mas a memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus

Cristo, memória perigosa que desaloja o presente e o questiona, porque lembra um futuro que

ainda não chegou, e que dever ser narrada pela Igreja, com a finalidade de gerar

solidariedade no seio da sociedade38.

Outro exemplo, dessa vez mais recente, de tentativa de desprivatização da teologia são

os “Cadernos de Teologia Pública” que surgem no Sul do Brasil na Unisinos. Pode-se ler o

seu objetivo no site da Universidade na Web:

Divulgam artigos que apresentam a contribuição da teologia com os debates que se desenvolvem na esfera pública da sociedade e na universidade, em abertura ao diálogo com as ciências, com a cultura e as religiões39.

35 Cf. Id. De la sociedad a la teología. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1970. – Segundo desconfia que a

perspectiva dos problemas religiosos não contempla o cerne da vida concreta do povo. Se se quer de fato considerar os problemas humanos mais agudos, para que sejam de fato iluminados pela revelação de Deus, o movimento vai da sociedade para a teologia, e não o contrário. Aparecem já nesta obra suas reservas em relação à divisão entre crentes e não crentes.

36 Cf. METZ, Johann Baptist. A fé em história e sociedade: estudos para uma teologia fundamental prática. São Paulo: Ed. Paulinas, 1981, p. 37-41, passim.

37 A noção de sujeito social – e sua relação com a missão da Igreja – é formulada com clareza e precisão por J. B. Libanio: “Ao falar de sujeito social, entendemos não os indivíduos considerados na sua singularidade, mas enquanto são grupos ou classes sociais, que assumem, desempenham papel decisivo e primordial em certo momento da vida da Igreja. O sujeito social deixa-se reconhecer pelo fato de que são os seus problemas, as suas perguntas, as suas preocupações, os seus interesses que a Igreja leva em consideração na formulação de seus ensinamentos, na sua própria organização, na elaboração de sua pastoral. (…) Ele consegue impor-se com tudo que significa sua posição no mundo das relações econômicas, políticas e ideológicas” (As grandes rupturas sócio-culturais e eclesiais. Sua incidência sobre a vida religiosa. Petrópolis: Ed. Vozes, 1981, p. 73).

38 Cf. Ibid., pp. 213-276. 39 http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_publicacoes&Itemid=20&task=categorias&id=5. Acessado

em 16/01/2007. – Grifo nosso.

21

A iniciativa sugere uma espécie de teologia a céu aberto. Entendo que não chega a ser

uma novidade em termos de metodologia, a não ser por apresentar-se com um nome sugestivo

e interessante, ou por enfatizar o leque temático e o ponto de partida da teologia da libertação.

Um de seus pressupostos metodológicos – o de “em diálogo” contribuir com os debates

realizados pelos mais variados atores sociais – revela o seu compromisso com uma sociedade

pluralista. Nisto coincide com a teologia da libertação num aspecto sobre o qual tinha

refletido K. Mannheim, e que Segundo utilizou para explicitar o ponto de partida de uma

teologia a serviço da libertação, mas que Metz parece não considerar.

Um número crescente de casos concretos torna evidente que: a) toda formulação de um problema somente é possibilitada por uma experiência humana prévia e efetiva que envolve tal problema; b) a seleção da multiplicidade de dados implica um ato de vontade do sujeito cognoscente; c) as forças que emergem da experiência vivida são significativas para a direção que o tratamento do problema tomará40.

Tanto Metz quanto Segundo empenham-se no diálogo com o mundo em vista da

transformação social e política. A diferença é que Metz parte da categoria de memória, e

entende que a narrativa desta memória pela Igreja, ou seja, do conteúdo objetivo da fé cristã

testemunhado na Escritura, trará como resultado a solidariedade social. Seu ponto de partida

diz mais do interesse do teólogo do que do da sociedade propriamente. Supõe-se que a

teologia fará emergir as perguntas humanas fundamentais, para as quais a revelação de Deus

tem a resposta.

Do ponto de vista do diálogo, seu projeto teológico está condenado já no ponto de

partida. E mais: cedo ou tarde estas categorias – memória, narração e solidariedade – podem

ser apropriadas pela linguagem do status quo. Seria melhor partir das perguntas que estão aí e

do compromisso com determinado sujeito social, como mostrou a teologia da libertação na

América Latina, ao colocar a opção pelos pobres como critério permanente e dinâmico de

interpretação da Escritura41. Somente na perspectiva do compromisso pela humanização se

pode manter a novidade radical da Palavra de Deus em face dos desafios históricos.

40 MANNHEIM, K. Ideología y utopía. México: M.C.E., 1941, p. 234. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 14. 41 Cf. SEGUNDO, Juan Luis. “La opción de los pobres como clave hermenéutica para entender el Evangelio”.

In: http://www.servicioskoinonia.org/relat/118.htm. Acessado em 17/08/2006. – Neste artigo, apresentado numa conferência na Universidad de Comillas em Madri, nosso autor sublinha que a opção pelos pobres não é uma conseqüência do Evangelho, mas um fator prévio de nossa leitura quando interpretamos o mesmo Evangelho.

22

2.1.2. O compromisso pela humanização como critério hermenêutico

O método de Segundo – o círculo hermenêutico – inverte, em seu primeiro passo, a

ordem de prioridades no fazer teológico. Toma como ponto de partida o engajamento com a

transformação da realidade social – ato de vontade, como diz K. Mannheim. Segundo afirma

que “este ato de vontade adquire significação para definir como vai ser tratado o problema”42

específico da teologia. Dito em outras palavras, a maneira crítica do teólogo experimentar a

realidade e o seu compromisso pela transformação social “fornecem uma base ideológica para

interpretar de maneira nova e hipoteticamente mais justa a realidade, mesmo a realidade

teológica”43. Dado que a humanidade experimenta o amor criador de Deus, somente a opção

pelos fracos poderá tornar autêntica e libertadora a interpretação das Escrituras.

Segundo, no entanto, sabe que o compromisso humano precisa ser bem articulado num

processo interpretativo que inclui a análise ideológica da sociedade. Do contrário o teólogo

sucumbiria numa fraseologia que não resistiria ao primeiro desafio. Portanto, o compromisso

pela humanização empurrará a teologia passo a passo na realização do círculo hermenêutico.

Tomemos o caso específico do engajamento do teólogo nos movimentos de libertação.

Sua maneira crítica de experimentar a realidade o faz suspeitar que esta realidade é injusta e

que precisa ser transformada. E mais: que existem mecanismos de opressão com os quais a

interpretação corrente da Escritura pode estar associada. Neste caso se deveria aplicar a

suspeita exegética, o que implicaria uma nova interpretação da Bíblia.

A questão, porém, é saber se a Escritura poderá oferecer respostas às perguntas do

homem engajado na transformação da realidade. Ou dito de outra forma, resta saber se a

libertação pode ser pensada na perspectiva da teologia, ou seja, se as perguntas que emergem

das lutas históricas têm dimensão teológica. Em caso de resposta afirmativa, o círculo

hermenêutico se completará – provisoriamente – com uma nova interpretação da Escritura. É

claro que esta nova interpretação teológica dependerá de que haja no ponto de partida

entusiasmo tal – ato de vontade – que permita ao teólogo ir até o fim do processo.

Segundo está convencido da possibilidade de interpretar a Bíblia e dialogar por meio

dela com o homem engajado em movimentos de libertação em vista de uma maior

humanização.

42 Id., Liberación de, p. 15. 43 Ibid.

23

Afinal de contas a palavra de Deus dialogou sempre com homens preocupados com problemas históricos bem práticos. Por exemplo, com homens preocupados com a (…) necessidade de sair da escravidão do Egito, de estabelecer-se na terra prometida, de voltar da diáspora ou do exílio, de restaurar o reino de Davi44.

A revelação de Deus, portanto, está de tal modo imbricada na história dos homens que

somente é percebida e tematizada quando ocorre certa mobilização na direção da

humanização.

2.2. Descrição e qualificação

2.2.1. Passos para uma interpretação teológica libertadora da Escritura

Apresentaremos agora, passo a passo, um caso analisado por Segundo em que o

círculo hermenêutico se completa45, mostrando a possibilidade de uma teologia em diálogo,

na perspectiva da libertação. Trata-se da teologia negra da libertação de J. Cone46.

a) Primeiro passo: suspeita ideológica. O ponto de partida da teologia de Cone é a

tomada de posição diante da situação da comunidade dos oprimidos. É de se recordar que,

segundo o pensamento de Mannheim, citado por Segundo, no princípio de toda interpretação

está o ato de vontade. Segundo tira a principal conseqüência deste dado:

Ora, é claro que qualquer “ato de vontade” no campo limitado das possibilidades humanas, equivale a tomar posição por um indivíduo ou por uma comunidade contra outros indivíduos ou comunidades. Não há outro remédio. Está no destino de toda hermenêutica o levar consigo uma parcialidade consciente ou inconsciente; o ser feita desde um ponto de vista partidário, mesmo quando pretenda e creia ser neutra47.

Como se vê, no ponto de partida há uma parcialidade conscientemente assumida. Tal

parcialidade, porém, não entra em contradição com a universalidade e pode inclusive ser

decisiva. Não se trata de partir da totalidade do real, o que seria humanamente impossível,

44 Ibid., p. 17. 45 Outros casos referem-se às tentativas de Harvey Cox. The secular city: secularization and urbanization in

theological perspective. New York: Macmillan Company, 1965 e Max Weber. The protestant ethic and the spirit of capitalism. New York: Charles Scribner's Sons, 1958, nas quais o círculo não se completa porque falta o ato de vontade do pesquisador. Nem Cox nem Weber estão suficientemente comprometidos com a “causa” de seus interlocutores. Por isso, acabam não propondo uma interpretação nova da Escritura, capaz de responder às questões do contexto no qual situam-se os seus respectivos projetos de estudo. Juan menciona ainda a crítica religiosa de Karl Marx. Este, efetivamente, não está interessado em realizar o círculo hermenêutico, dado que a religião não é considerada, em sua crítica, entre os elementos decisivos na transformação social, mas deve simplesmente ser suprimida.

46 CONE, James. A Black Theology of Liberation. Philadelphia & New York: J. B. Lippincott Company, 1970. – Citaremos a versão em espanhol utilizada por Segundo: Teología negra de la liberación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1973.

47 SEGUNDO, Liberación de, p. 34.

24

mas de “escolher bem o compromisso e a parcialidade de nosso ponto de vista”48. Aquilo que

no ponto de partida da interpretação é irremediavelmente parcial pode “chegar às raízes

humanas profundas que explicam atitudes de valor e de influência universais”49.

A teologia de Cone insere-se nesta perspectiva e explicita sua parcialidade do começo

ao fim. Ela se torna evidente já em sua definição da teologia:

(…) é o estudo racional do ser de Deus no mundo, à luz da situação existencial da comunidade oprimida, relacionando as forças da libertação com a essência do evangelho, que é Jesus Cristo. Isto significa que a única razão de ser da teologia está em traduzir em linguagem ordenada o significado da ação de Deus no mundo, em termos que levem a comunidade dos oprimidos a reconhecer como seu impulso interior em direção à libertação não só está em harmonia com o evangelho, mas que é o evangelho de Jesus Cristo50.

Dessa forma, Cone deixa clara a sua opção e sentencia: “a teologia negra não deve

perder muito tempo tratando de responder às críticas, pois só responderá perante a

comunidade negra”.51

Segundo destaca que a universalidade que falta no ponto de partida ganha corpo de

maneira emblemática na profundidade da condição humana que se revela nos anseios de

liberdade dos oprimidos: “onde poderíamos encontrar essa necessidade com traços mais

agudos, criativos e universais do que na comunidade dos oprimidos?”52. E termina citando

Cone: “no momento da libertação, não há verdades universais; a única verdade é a da

libertação mesma, verdade que os oprimidos definem, por si mesmos, na luta pela

liberdade”53.

b) Segundo passo: aplicação da suspeita ideológica. Segundo mostra que Cone realiza

com sucesso uma análise ideológica que desmascara os mecanismos de opressão presentes

não só na realidade em geral, mas também na teologia.

No que se refere à realidade em geral, Cone revela-se perspicaz. Aponta que a força do

adversário se deve a uma ideologia sem cor, que pensa o homem em termos universais, de tal

modo que a causa real do sofrimento da comunidade dos oprimidos fica encoberta, ou seja, o

mecanismo de opressão é negligenciado pela cultura, pelas leis e pelo estado54.

48 Ibid., p. 35. 49 Ibid. 50 CONE, op. cit., p. 15. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 35. 51 Ibid., p. 25. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 35. 52 SEGUNDO, Liberación de, p. 35. 53 CONE, op. cit., p. 127. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 35. 54 Cf. SEGUNDO, Liberación de, pp. 37-38.

25

Evidentemente que este edifício social é composto de muitos outros mecanismos particulares

que lhe dão sustentação, entre os quais está a própria teologia:

A isto se deve que a teologia estadunidense discuta o pecado em abstrato, debatendo acerca dele em relação com o homem universal. Na teologia branca, o pecado é uma idéia teórica e não uma realidade concreta55.

E, nesta perspectiva, deixa claro que está disposto a dar mais um passo do círculo, ao

afirmar que “um Deus sem cor não tem fundamento na teologia negra, ante uma sociedade

onde os homens sofrem precisamente por sua cor”56.

c) Terceiro passo: suspeita exegética. A esta altura, Cone demonstra que já tem uma

nova experiência da teologia. A suspeita ideológica aplicada ao fazer teológico o fez perceber

que a teologia negligencia certos dados importantes. Dado que está comprometido – ato de

vontade – em colocá-la a serviço da comunidade negra, a nova interpretação das Escrituras

torna-se tarefa inadiável, e “estará ditada pelo descobrimento dos mecanismos ideológicos e

pela vontade de desterrá-los da teologia”57.

d) Quarto passo: a nova interpretação da Escritura. De acordo com Segundo, para

dar este passo, Cone está convencido de que é preciso levar em consideração um ponto

importante: mais decisivo que as respostas são as perguntas da teologia58. Está claro que,

dentro de seu projeto teológico, as perguntas são as da comunidade negra. É a elas que

responderá. E isto tem a ver com as fontes e com a norma da teologia, pois são estas que

determinam as perguntas, de modo que para se livrar da influência opressora do pensamento

branco dever-se-á “construir a teologia a partir de fontes e de uma norma apropriada à

comunidade negra”59. Dito em outras palavras, o povo negro não quer ouvir – respostas –

sobre Deus, mas tem perguntas sobre o que Deus tem a dizer acerca da condição negra, e em

que pode contribuir, ou o que faz concretamente em sua luta pela libertação60. Assim, a

própria vida do negro, ou a negritude, se converte em fonte para a teologia, posto que “a

ressurreição de Cristo significa que o Senhor também hoje está presente em meio às

sociedades, levando a cabo a libertação dos oprimidos”61.

55 CONE, op. cit., p. 134. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 38. 56 Ibid., p. 86. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 38. 57 SEGUNDO, Liberación de, p. 39. 58 Cf. Ibid., pp. 39-40. 59 CONE, op. cit., p. 39. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 39-40. 60 Cf. Ibid., p. 54-55. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 41-42. 61 Ibid., p. 46. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 42. - Neste ponto, Segundo chama a atenção que uma

teologia que se queira cristã não poderá deixar de voltar sempre às Escrituras. Não é suficiente afirmar que Deus atua e se manifesta nas culturas e nas sociedades para renunciar às fontes escriturísticas da teologia.

26

Tendo exposto por alto o círculo hermenêutico realizado pela teologia negra da

libertação de J. Cone, vale lembrar o motivo que nos levou a realizar tal intento. O que temos

tentado dizer acerca da relação entre diálogo e libertação se esclarece um pouco mais. A

realização completa do círculo hermenêutico – da qual depende a autêntica interpretação da

Escritura – não se constitui por si só em critério de verdade, mas mostra, sobretudo

(...) que uma teologia está viva, ou seja, conectada com esta fonte de vida que é a realidade histórica e sem a qual a outra fonte divina de vida pode continuar seca, não por sua própria culpa, mas devido à nossa impermeabilidade62.

Finalmente, chamamos a atenção para um aspecto do círculo hermenêutico que nos

ocupará a seguir, e que nos empurra sempre mais na temática do diálogo. Um de seus

pressupostos é a insatisfação geral do pesquisador diante da realidade e o seu compromisso na

luta pela libertação. Isto supõe a contínua análise da realidade que se esconde por debaixo dos

mecanismos ideológicos de opressão, que evidentemente não se poderá realizar sem o auxílio

das ciências sociais.

2.2.2. O diálogo com as ciências

Sem o prévio compromisso para mudar o mundo a teologia acabará, mesmo que

inconscientemente, sendo incorporada ao discurso do sistema opressor, contribuindo assim

para a manutenção do status quo63. Sem as perguntas humanas suscitadas por este

compromisso a revelação certamente emudeceria. A teologia seria um trabalho cada vez mais

atemporal, destinado a interpretar um livro que aos olhos do homem de hoje pareceria sempre

mais velho64. Suas respostas seriam ultrapassadas e sem sentido para o homem real, que no

seu dia a dia se depara com desafios concretos.

Poder-se-á perguntar o que isto tem a ver com o diálogo entre o teólogo e a ciência. De

fato as aparências nos induzem a pensar que uma coisa nada tem a ver com a outra. Na

realidade, porém, se observarmos bem aquilo que constitui a mentalidade corrente, tanto de

cientistas quanto de teólogos, veremos que em ambos ocorre certo mal-entendido que consiste

em separar arbitrariamente a dimensão dos valores e interesses humanos da dimensão do

62 SEGUNDO, Liberación de, p. 34. – O círculo hermenêutico completado não é critério suficiente de verdade,

pois depende, entre tantos outros fatores, da boa escolha do recorte da realidade em favor do qual se tomará partido, basicamente aquilo que Segundo qualificou como a “riqueza e profundidade” das perguntas de determinada teologia.

63 Cf. Ibid., p. 49-50. 64 Cf. Ibid., p. 74-75.

27

conhecimento objetivo. Parece até que os homens de ciência estão acima do mundo onde

vivemos.

Esta tendência se verifica por parte do teólogo na preocupação com a mera ortodoxia.

Esta mesma preocupação incide também no trabalho dos cientistas em geral sob a égide da tão

propalada neutralidade ou autonomia da ciência. Em ambos os casos se ignora algo que a

experiência cotidiana pode nos mostrar: que antes de dar um passo fazemos opções concretas

cujos critérios emanam de uma dimensão humana que se não está separada da dimensão

objetiva da existência, pelo menos se distingue dela radicalmente. Trata-se precisamente da

esfera dos valores e interesses humanos definidos pela subjetividade.

Ao se afirmar isto não se quer varrer a ciência do horizonte onde se encontram os

aspectos mais decisivos da vida. Pelo contrário, se quisermos dar à ciência o valor que ela

merece precisamos colocá-la no seu devido lugar, precisamente a serviço dos valores e

interesses mais genuínos do ser humano. E somente uma racionalidade pluridimensional –

diálogo – poderá captar os problemas mais agudos do homem naquilo que concerne à sua vida

pessoal e social. Isto vale para todas as ciências, tanto mais para a teologia.

Vejamos alguns aspectos desta questão:

a) Os interesses humanos e o fazer teológico. Sabemos como a tarefa da humanização

se move num terreno onde não há certezas absolutas. Há sempre espaço para a surpresa e a

novidade. Na vida concreta de homens e mulheres a aposta em dados não experimentados

empiricamente é inevitável. Nem mesmo a teologia escapa deste aspecto da existência

humana, pois a fé é precisamente uma aposta. Fazer teologia é refletir sobre a revelação de

Deus nesta areia movediça da história humana. Segundo constata que, não obstante isto, há

certa tendência do fazer teológico se deixar orientar mais pela busca de segurança para o

teólogo, do que pelo desejo de contribuir na tarefa da humanização. Evidentemente tal critério

se esconde por detrás da nobre preocupação com a ortodoxia, esquecendo-se do lugar a partir

do qual se faz teologia.

Um dos casos das polêmicas entre Jesus por um lado e fariseus e escribas por outro

nos ajuda a entender o caráter decisivo do lugar ou interesse a partir do qual se faz teologia.

Talvez isto nos ajude também a compreender porque durante séculos os cristãos conviveram

com a opressão na América Latina, como se o evangelho nada tivesse a dizer efetivamente

sobre a libertação dos oprimidos.

28

Jesus, estando na sinagoga em dia de sábado, e tendo diante de si uma pessoa (com

uma das mãos atrofiada) com a qual estava afetivamente comprometido, desloca a pergunta

da estrita ortodoxia para o nível do humano – “fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou

matar?” (Mc 3,1-6). Seus interlocutores, exímios teólogos, ficam sem resposta, pois suas

perguntas não partem do problema real do homem que está a um passo de distância. Dado que

a pergunta de Jesus não está prevista na lei, da qual são intérpretes, e porque estão

enquadrados no restrito campo da ortodoxia, acabam imobilizados e impedem que a Escritura

possa iluminar a vida de um filho de Deus. E isto não por culpa da Palavra de Deus, mas por

conta da “dureza de coração” dos teólogos. O que em termos modernos se poderia dizer da

imparcialidade e autonomia do discurso científico. Segundo os peritos da lei, a pergunta está

mal formulada, feita a partir de um lugar não previsto por sua metodologia. E isto é tudo.

b) As opções humanas e o fazer teológico. A polêmica acima descrita coloca-nos

diante de um dado importante. A metodologia teológica de Jesus obriga seus interlocutores a

decidirem previamente sobre o que faz bem ou mal para o homem antes de ler o que diz a

Escritura a respeito do que é permitido fazer em dia de sábado65. Dessa forma, Segundo

explicita melhor a tese da teologia da libertação segundo a qual o compromisso de mudar o

mundo é pré-teológico. Não se pode pedir à revelação um retrato da realidade e dos

mecanismos ideológicos de dominação que se escondem por detrás dela, para somente então

definir um rumo a ser tomado. Mas isto tem duas implicações bem práticas, como aponta

Segundo:

(…) mudar o mundo supõe ter a certeza de que a nova imagem que dele fazemos como projeto é melhor do que aquela que hoje funciona e, além disso, que ela é possível. Em segundo lugar, descobrir quais são os mecanismos que ocultam e dão valor à realidade presente supõe realizar uma análise ideológica séria e, portanto, verificar nossas hipóteses de maneira científica66.

Creio que deve ter ficado claro que o sucesso do primeiro ponto destacado por

Segundo está subordinado ao do segundo. Com efeito, o acerto na definição e implantação de

um projeto de sociedade depende sobremaneira da objetividade de seus pressupostos. Não se

pode minimizar o papel das ciências sociais para a necessária compreensão da realidade, pois

os mecanismos sociais atuantes não raro permanecem ocultos à consciência.

Evidentemente que o papel da teologia não é analisar a realidade social, mas, se se

considera o que foi dito, a colaboração entre teologia e sociologia não se pode evitar. Entre os

65 Id., La historia perdida, p. 224. 66 Id., Liberación de, p. 81.

29

mecanismos de dominação ocultos na realidade estão aqueles que, sem que o percebamos,

tiram a teologia de sua base revelada, colocando-a a serviço de interesses que nada têm a ver

com a revelação de Deus67.

A questão agora é saber até que ponto se pode contar com as ciências neste processo.

Será possível uma opção amparada por dados científicos acerca da realidade, ou teremos de

fundamentar nossas opções com dados de outra natureza?

2.3. Plausibilidades

2.3.1. Sobre a possibilidade de colaboração entre teologia e ciências sociais

Segundo constata que não obstante alguns ensaios de colaboração entre teologia e

sociologia na América Latina, com alguns resultados em diversos campos, tal colaboração

pode encontrar sérios obstáculos. Isto porque o tipo de “sociologia que prevalece na América

Latina, como provavelmente em todo o hemisfério intelectual, é a chamada positivista,

behaviorista ou, simplesmente, sociologia estadunidense”68. Sem dúvida, uma das

conseqüências deste tipo de sociologia é o abandono de áreas importantes da sociedade, o que

não deixa de ser uma dificuldade para uma teologia que se pretenda em diálogo com o mundo,

não apenas com fragmentos da realidade.

a) A fragmentação e o estreitamento da sociologia. Seguindo as grandes linhas de um

artigo do sociólogo argentino Eliseu Verón69, cuja abordagem mostra a involução da

sociologia desde a Ideologia alemã de K. Marx, Segundo destaca que “a sociologia atual vai

deixando ao abandono campos cada vez mais significativos do viver social humano”70.

Verón aponta a fragmentação – em grande parte devido à cultura da técnica moderna

dominante no Ocidente – como o principal vetor do estreitamento da sociologia em campos

cada vez mais restritos71. A sociologia do direito, da arte, da religião são áreas específicas em

que a noção de ideologia aplicada a um modelo global da realidade não é utilizada de maneira

sistemática. Aspectos do cotidiano ganham sempre mais espaço em detrimento de valores que

67 Cf. Ibid., p. 57. 68 Ibid., p. 58. 69 VERÓN, Eliseu. “Ideología y comunicación de masas: la semantización de la violencia política”. In: PRIETO,

EKMAN et al. Lenguaje y comunicación social. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión, 1971. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 58.

70 SEGUNDO, Liberación de, pp. 58. 71 Cf. Ibid., p. 58-68.

30

permitem perpassar a totalidade da vida humana. Não se pode esquecer que as pessoas podem

se engajar numa infinidade de atividades sociais e, no entanto, viver uma vida sem sentido.

Assim, pois, a colaboração entre teologia e ciências sociais esbarra em sérios limites, dado

que o campo dos valores que podem dar sentido à vida, e que mais pode interessar à teologia,

está abandonado pela sociologia.

Além disso, a passagem do inconsciente para a consciência deixa a teologia sem

parceiro científico para explorar uma área importante do agir humano na consolidação das

ideologias. Em termos freudianos, existe no inconsciente da coletividade uma censura que, a

exemplo do que ocorre com a satisfação das pulsões sexuais, impede que os mecanismos de

dominação sejam explicitados em sua forma mais crua.

Finalmente, há outro elemento que merece destaque. Trata-se do abandono de

categorias cognitivas em favor de dimensões valorativas. Renuncia-se cada vez mais à

pretensão de compreender a totalidade do real, e investe-se pesado em técnicas – oferecidas

por outras ciências, especialmente pelas matemáticas aplicadas – que medem a adesão, o grau

de aceitação ou rejeição dos indivíduos nos diferentes segmentos sociais. Não há a

preocupação com as razões mais profundas do agir social do homem, pois o acento recai

preferentemente sobre aspectos quantitativos, em torno a hipóteses e verificações,

evidenciando uma vez mais o afastamento da sociologia da problemática dos primeiros

sociólogos modernos.

E mais: Segundo afirma que tampouco a pastoral da Igreja está preocupada em saber

as razões que levam alguém a rejeitar (ou a aderir) a prática religiosa. Antes, vai em busca de

certa sociologia disposta a oferecer “meios concretos para atrair esta gente, outra vez, por

qualquer razão que seja, e, o que é talvez mais importante, sem discussões teológicas que

dividem (sic) porque obrigam a tomar decisões”72.

b) Os reducionismos da sociologia marxista. Outra dificuldade apontada por Segundo

para uma possível colaboração entre teologia e sociologia fica por conta de certo

reducionismo da sociologia marxista. Isto decorre, por um lado, da maneira como o próprio

Marx aplica o conceito de ideologia aos fenômenos religiosos e, por outro, da não aceitação,

até mesmo pela sociologia marxista mais genuína, da relativa autonomia dos níveis

superestruturais, entre os quais situa-se o fenômeno religioso73.

72 Ibid., p. 68. – Segundo se refere ao contexto pastoral dos anos 1970, ocasião em que escreve a obra citada. 73 Cf. Ibid., pp. 68-74.

31

Segundo pondera que não é fácil definir dentro do pensamento de Marx se a religião –

e sua formulação teórica, a teologia – é uma superestrutura tal como a filosofia, a arte, a

política, as leis etc. De qualquer modo lembra que o mais interessante é o destino diferente

que Marx dá para a religião e para o Estado. Enquanto este será útil na primeira etapa da

implantação da sociedade comunista, o socialismo, e desaparecerá na medida em que a

divisão forçada do trabalho for superada, aquela deverá ser suprimida de antemão, pois não

pode colaborar em nada na revolução. Nesta vertente do pensamento marxiano, a religião não

aparece como um setor da cultura, mas como um erro. Se a filosofia cometeu erros, a religião

é por definição um erro só, uma ilusão cuja superação é condição para a revolução: “exigir

que se renuncie à nossas ilusões concernentes à nossa própria situação, é exigir que se

renuncie a uma situação que tem necessidade de ilusões”74.

Nesta perspectiva, pois, do ponto de vista que nos ocupa, não há que esperar deste veio

da sociologia marxista “nenhuma ajuda para uma teologia que quer desfazer-se o mais

possível de seu conteúdo ideológico e tornar-se arma efetiva na luta social dos oprimidos”75.

A religião, segundo esta tese de Marx, não poderá contribuir no processo revolucionário, a

não ser em sentido negativo, mais precisamente por sua extinção.

No que se refere à atual sociologia marxista a dificuldade se deve à maneira que esta

compreendeu o materialismo histórico. É por demais sabido que Marx enunciou como lei que

as condições materiais da existência determinam a superestrutura ideológica. Não, porém, que

esta dependência da economia e das relações de trabalho nega a influência da dimensão

espiritual. Neste ponto, Segundo cita Lênin, que lembra que nem Marx nem Engels

defenderam um determinismo econômico, mas tão somente uma determinação “em última

instância”76 dos fatores econômicos na formação da superestrutura77.

Uma interpretação que levasse em consideração o que foi dito acima afirmaria que as

estruturas se movem num campo de possibilidades – não somente econômicas – definidas

pelas relações de produção. Isto implicaria reconhecer certa autonomia das estruturas, da

religião inclusive, numa complexa rede de influências, em que a economia seria determinante

somente em última instância. Neste sentido, ao contrário do que normalmente compreende a

74 MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 71. – Não há

indicações bibliográficas a não ser o título da referida obra de K. Marx. 75 SEGUNDO, Liberación de, p. 71. 76 LENINE. ¿Qué hacer? Obras escogidas. Tomo I. Moscou: Ed. Progresso, 1966, p. 150. Apud: SEGUNDO,

Liberación de, p. 72. 77 Cf. MARX, Karl. e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 34.

32

sociologia marxista, a religião deveria ser colocada no hall dos fatores que poderão deter ou

provocar a mudança social, em todo o caso em relação com o contexto econômico existente78.

Paradoxalmente, tal reducionismo induz a sociologia à mera condição de instrumento

de conscientização dos trabalhadores, destinada a informá-los que “os pensamentos da classe

dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes”79. Nestas condições

torna-se inevitável que aspectos importantes da realidade lhe escapem por entre os dedos. E

uma vez mais o teólogo não pode esperar muito da sociologia. Segundo ressalta que há

exceções, como Lukacs, Schaff, Althusser, Goldman e outros, “mas as exceções não

constituem a vida diária de uma ciência e nosso ponto de vista aqui supõe a contínua

colaboração de uma sociologia e de uma teologia abraçados na mesma tarefa libertadora”80.

2.3.2. A armadilha da ciência

Não há dúvida de que os tópicos anteriores nos encurralaram numa espécie de

armadilha: a da verificação científica. Seguimos os passos de Segundo em sua abordagem

sobre os limites da sociologia, especialmente a que opera na América Latina, a fim de

verificar a possibilidade de colaboração entre sociologia e teologia. Os casos analisados foram

mostrando que a teologia não poderá verificar cientificamente suas hipóteses, dada a

fragmentação da sociologia. Faltam-lhe, sobretudo, dados confiáveis sobre a totalidade do

real, de modo especial sobre os valores que podem conferir algum sentido para o agir social

do homem. É pouco provável que se produzam provas científicas de uma hipótese sobre, por

exemplo, a relação de certa prática religiosa com o manejo do dinheiro, como aventou Max

Weber.

Talvez devêssemos discutir os critérios de cientificidade, mas isto poderia prolongar-

se demasiadamente, ou simplesmente enveredar-se rumo a equívocos incalculáveis.

Certamente não avançaríamos muito naquilo que nos interessa aqui, e apenas cairíamos na

armadilha do cientificismo. O próprio Segundo diz preferir “deixar a questão aberta, como

realmente está. Não temos razões válidas para nos resignarmos a uma separação irracional,

mesmo dentro dos cânones científicos mais modernos”81. Permiti-me sublinhar estas palavras

porque elas enfatizam dois elementos importantes. O primeiro é: mesmo considerando o que 78 Cf. SEGUNDO, Liberación de, p. 72. 79 MARX e ENGELS, op. cit., p. 48. – Esta afirmação situa-se no contexto da análise da relação entre as relações

de produção e a formação da consciência. 80 SEGUNDO, Liberación de, p. 74. 81 Ibid., p. 78.

33

foi dito acerca dos limites da sociologia, o teólogo não pode se acomodar, ou seja, há que se

fazer uma opção. O segundo é: não se pode manipular os fatos (em vista de uma opção

“científica”) a fim de “obter uma colaboração onde ela efetivamente não existe”82.

Vale destacar também que esta abordagem de Segundo data de meados da década de

1970. Visa abrir caminhos para um fazer teológico libertador no contexto latinoamericano

marcado por desigualdades sociais. E que de lá para cá os debates sobre a epistemologia das

ciências extrapolaram o círculo constituído basicamente por filósofos e sociólogos do

conhecimento. Não deixa de ser interessante o fato de o debate ocorrido a partir dos anos

1980 ter se dado entre cientistas, especialmente do campo da física. A constatação desta

evolução gerou uma discussão peculiar entre filósofos, sociólogos e cientistas. A discussão

avolumou-se até alcançar um patamar ruidoso nos episódios das “guerras da ciência” e

“incidiu preferencialmente sobre a natureza e validade do conhecimento que produz e

legitima as transformações do mundo através da ciência”83. Um dos disparos mais estridentes

da artilharia deste debate talvez tenha sido esta pergunta: “o conhecimento científico

representa, descobre, cria ou inventa a realidade que pretende conhecer?”84.

O episódio das “guerras da ciência” foi uma reação a um trabalho de sociologia do

conhecimento de Boaventura de Sousa Santos85, publicado em Portugal em 1987. Um de seus

principais questionamentos tem por objeto o privilégio epistemológico dado às explicações

científicas. De acordo com sua tese, no que se refere aos aspectos sociológicos do

conhecimento, fica cada vez mais claro que a razão pela qual hoje se privilegiam os

conhecimentos baseados na previsão e no controle de um fenômeno experimental não está

relacionada à ciência, mas a juízos de valor, em face de relações de força no seio da

sociedade. O sociólogo português afirma que não há razão científica para que o conhecimento

científico tenha prioridade em relação a outras formas de conhecimento86.

Em 2004, depois de praticamente cessados os combates das guerras da ciência, uma

obra coletiva87 organizada pelo próprio Boaventura de Souza Santos se encarregou de

sintetizar os aspectos principais da reflexão suscitada por “um discurso sobre as ciências”. Na

82 Ibid., p. 79. 83 SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. ‘Um discurso sobre as

ciências’ revisitado. São Paulo: Ed. Cortez, 2004, p. 19. 84 Ibid. 85 Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987. 86 Cf. Ibid., p. 52. 87 Id., Conhecimento prudente...

34

introdução, seu organizador, fazendo menção aos pontos comuns ali defendidos pelos

diversos autores – representantes dos mais variados ramos das ciências, inclusive das

positivas como a física, a química e a biologia – dispara uma pergunta que pode ser

esclarecedora acerca do que se pensa hoje em dia sobre a epistemologia das ciências: “E se as

verdades científicas de um dado momento histórico têm sido refutadas em momentos

posteriores, há algo mais na verdade além da história da verdade?”88.

Creio que hoje temos mais elementos para entender a afirmação de Segundo de que

não devemos nos resignar a uma “separação irracional” entre dados comprovados

cientificamente e dados sobre os quais a ciência não dispõe de teorias capazes de produzir

provas conclusivas. E o que é mais importante, seria ingenuidade procurar uma colaboração

onde efetivamente ela não existe. Na verdade, não há porque continuarmos no barco da

“grande separação” entre subjetividade e objetividade, entre fatos (verificáveis) e valores que

têm marcado a civilização ocidental89. Até mesmo porque hoje a questão já não gira em torno

da oposição entre ciência e anti-ciência, mas da “autoridade da ciência: que tipo de ciência

deve ser praticado e quem é que tem poder para definir isso?”90. Não excluída a possibilidade

do diálogo com as ciências e que isto pode nos ajudar até certo ponto, mesmo assim talvez

tenhamos de fazer nossas opções não baseadas em dados “científicos”, mas numa aposta.

3. A opção política e o fazer teológico

Já deve ter ficado claro que a metodologia do círculo hermenêutico aplicada à teologia

nos leva a uma constatação importante: “não existe teologia cristã nem interpretação cristã do

evangelho sem opção política prévia”91. Isto por dois motivos fundamentais. Primeiro, a

sociologia do conhecimento nos mostrou que no início de qualquer interpretação está o ato de

vontade – a opção – do pesquisador. Segundo, a análise das condições da ciência sociológica

nos deu conta de que nossas opções não poderão basear-se em dados com exatidão científica.

88 Ibid., p. 19. 89 Cf. STENGERS, Isabelle. “Para além da Grande Separação, tornamo-nos civilizados?”. In: SANTOS,

Conhecimento prudente, pp. 131-149, aqui p. 145-149. 90 FUJIMURA, Joan H. “Como conferir autoridade ao conhecimento na ciência e na antropologia”. In: SANTOS,

Conhecimento prudente, pp. 151-181, aqui p.152. 91 SEGUNDO, Liberación de, p. 109. – Segundo caracteriza a opção humana pré-teológica como “política” num

sentido que se apóia mais no uso corrente do termo: “Ainda que ele contradiga um dos mais evidentes fatos da etimologia, a linguagem comum distingue muito bem entre sociologia e política. O fato de que a palavra societas seja a tradução latina da palavra grega polis, não vem ao caso. A linguagem real ignora as etimologias e se rende ao uso. E o uso descobriu que ao lado de certos cientistas que se chamam sociólogos e que nunca emitem uma opinião sem provas, existem os políticos cuja capacidade está precisamente em fazer opções decisivas sem provas científicas que os apóiem” (Ibid., p. 81).

35

Creio que os tópicos anteriores nos esclareceram suficientemente sobre a opção prévia

ao fazer teológico, inclusive nos dando conta de que ela tem um qualificativo, ou seja, é

política. Abordaremos agora dois pontos que nos ajudarão na compreensão de como isto

ocorre propriamente no fazer teológico. Seguindo a terminologia de Segundo, o compromisso

vem antes, a teologia depois. Esta supõe aquele.

3.1. O compromisso de mudar o mundo vem antes

3.1.1. O terreno movediço do compromisso

Consciente ou inconscientemente toda teologia é situada, ou seja, devedora de seu

contexto social e dos mecanismos ideológicos que nele se interpõem. Tendo presente esta

realidade, Segundo está convencido de que a autenticidade da interpretação teológica da

Escritura supõe a contínua realização do círculo hermenêutico. Vimos que a realização do

círculo supõe a explicitação da opção pré-teológica e a consideração dos mecanismos

ideológicos que estão em jogo na sociedade. E que somente assim a teologia poderá manter-se

em sua base revelada.

A opção é pré-teológica, mas não à margem do sentido da revelação. Significa

simplesmente que não podemos pedir à Escritura dados para a análise da presente realidade

social. Vimos como James Cone entende a questão da fonte da teologia. O dado da

ressurreição de Jesus nos dá conta de que Cristo está presente na história. A luta pela

humanização não somente está em sintonia com o Evangelho, mas é o Evangelho de Cristo no

hoje da história92.

Considerando um dado fundamental da epistemologia da ciência, segundo o qual a

natureza do objeto decide sobre o seu acesso cognitivo, o compromisso de mudar o mundo na

direção da humanização, segundo a lei do amor, torna-se decisivo para que a opção humana

insira-se no horizonte da universalidade da revelação de Deus. De fato, é sobre a revelação de

Deus que fazemos teologia. E a revelação que conhecemos é a revelação do Deus-amor em

favor da humanização da história dos homens.

O que acabamos de afirmar é relativamente tranqüilo e creio que muitos o encaram

dessa maneira. No entanto, Segundo nos alerta para um ponto de suma importância. De onde

92 Cf. CONE, op. cit., p. 46. Apud: SEGUNDO, Liberación de, p. 43.

36

virão os dados para a análise ideológica que pretendemos fazer e com que base forjaremos o

projeto de sociedade suposto no compromisso de mudar o mundo?

Pois bem, dentro das condições da ciência sociológica que temos analisado (…), só nos resta que, ou temos que negar à teologia que ela nos oriente diante de hipóteses ou opções libertadoras, e assim temos que reduzi-la a suas velhas certezas abstratas, ou passamos adiante sem certezas sociológicas suficientemente científicas e a teologia cai no político93.

A resposta neste caso não dá margem a dúvidas. Os dados nos vêm através da opção

política. E Segundo reforça sua argumentação:

Uma vez descoberta (…) a possibilidade e a necessidade, para a teologia libertadora, de uma análise ideológica que não pode apoiar-se em provas totalmente científicas, pelo lado da sociologia, a necessidade de uma relação entre teologia e política se torna necessária e mesmo decisiva94.

Neste sentido fica patente que a aposta prévia consiste num compromisso político para

mudar o mundo. Mas Segundo sabe que é necessário aparar algumas arestas de certa reserva

que persiste em relação ao elemento político na teologia.

3.1.2. A superação das reservas em relação ao político

Segundo passa a enfrentar o problema de uma teologia que se deixa definir à margem

dos problemas reais da sociedade. Vale recordar uma das principais afirmações do artigo

“Diálogo e teologia fundamental” de 1969. Ali nosso autor defende que a revelação de Deus

não é uma mensagem destinada a frutificar sozinha, mas que nasce e se torna significativa no

diálogo entre os homens, como resposta às questões suscitadas pelos desafios da história95.

Na obra “Libertação da teologia” Segundo cita um trecho de um pronunciamento dos

bispos do Terceiro Mundo que ilustra a tese da neutralidade da teologia:

A Igreja nunca se solidariza, naquilo que ela tem de essencial, de permanente, isto é, sua fidelidade e sua comunhão com Cristo no evangelho, com nenhum sistema econômico, político e social. Desde que o sistema cesse de assegurar o bem comum em benefício do interesse de alguns, deve ela não somente denunciar a injustiça, mas libertar-se do sistema iníquo, pronta a colaborar com outro sistema mais bem adaptado às necessidades do tempo e mais justo96.

Percebe-se claramente que os bispos dão por suposto que o referido pronunciamento

se baseia em dados se não científicos, pelo menos neutros, inferidos evidentemente da 93 SEGUNDO, Liberación de, p. 81. 94 Ibid., p. 84. 95 Cf. Id., “Diálogo e teologia…”, p. 65-66. 96 “Mensagem dos bispos do Terceiro Mundo”. In: REB 27 (1967), pp. 989-997. Aqui, p. 991. Apud:

SEGUNDO, Liberación de, p. 85.

37

revelação. O único compromisso conscientemente aceito e explicitado é a “fidelidade e

comunhão com Cristo no Evangelho”. Disto não se pode duvidar, mas fica algo ainda por

ressaltar:

Com que meio ou instrumento científicos pode a Igreja decidir quando um sistema cessou – supõe-se que definitivamente – de promover o bem comum, e como pode estar cientificamente certa da existência de outro mais justo, antes de fazer a correspondente prova?97

Não estariam os bispos fazendo uma declaração cujo fundamento primeiro seria

“político”? Certamente sim, se se aceitam os pressupostos sobre os limites da ciência

sociológica e sobre a impossibilidade lógica de se pedir à revelação dados para a análise da

presente realidade social.

Segundo cita um trecho de Rahner utilizado numa argumentação de Roger Vekemans

contrária à opção política em teologia. Segundo ressalta que há o perigo de descontextualizar

o pensamento de Rahner lido por meio de outro autor, mas de qualquer modo sua citação

serve para mostrar que até mesmo um teólogo de valor esbarra com este problema sem dar-lhe

uma suficiente solução:

Aqui é que o problema se torna, de repente, terrível: como pode a Igreja conhecer o contexto de sua ação, sendo que, evidentemente, esse tipo de conhecimentos (sic) não pode ser deduzido diretamente da revelação?… Querendo ou não, ao fazê-lo, a Igreja se torna dependente de fontes e métodos de conhecimento que estão fora de seu controle… Estamos diante de um problema ao qual, que eu saiba, a epistemologia eclesiástica não prestou suficiente atenção… Como pode a Igreja, em tais matérias fazer pronunciamentos que envolvem obrigação? Em tal contexto, como pode a Igreja evitar o perigo, seja de afirmar coisas óbvias, que serão ditas melhor em qualquer outra parte, seja de aventurar-se a fazer juízos que podem ser refutados por especialistas em análise sociológica?98

Segundo constata que o questionamento de Rahner, evidentemente, coloca a teologia

numa encruzilhada entre a imobilidade e a opção política:

É fácil imaginar, suponho, o que significam tais perguntas para a teologia da libertação. Se se chegar a provar ou a constatar que os problemas mais agudos do homem pertencem todos a esse tipo de contexto, deverá calar-se a teologia para não se ver rebatida por especialistas científicos?99

97 SEGUNDO, Liberación de, p. 85. 98 Rahner é citado por VEKEMANS, Roger. Caesar and God. New York: Orbis Books, 1972, p. 30. Apud:

SEGUNDO, Liberación de, p. 86. – Não há referência à obra específica de Rahner. 99 SEGUNDO, Liberación de, p. 87.

38

3.2. A teologia vem depois.

Segundo afirma claramente que é preciso optar se não se quer associar-se às opções do

status quo. Passa então a analisar fenomenologicamente a questão acima citada. Parte do

pressuposto de que a Igreja e outros grupos humanos fazem suas opções a partir da

experiência ou confronto com o seu contexto. Trata-se de um conhecimento da realidade no

sentido de entrar em contato, sentir os desafios. A partir deste contato e da aceitação de seus

desafios, se “perguntam sobre o que terá que ser feito em tal contexto”100. Neste nível da ação

humana ainda não entram em cena os conhecimentos científicos. Estes vêm depois.

Segundo assinala que, a despeito disto,

Rahner parece crer que a Igreja sabe o que tem que fazer mas que não conhece o seu contexto. Como pode isto? (…) Segundo Rahner podemos deduzir conhecimentos certos sobre o que fazer, perguntando à revelação independentemente de todo o contexto. E a revelação responde, ao que parece, prevendo deduções sobre aquilo que é eternamente cristão na conduta. Mas como a conduta depende parcialmente de conhecimentos sobre o contexto que não pode ser deduzido da revelação, o problema consiste em saber se temos que nos arriscar a deixar certezas totais por certezas parciais. Em outras palavras, o problema está em saber se a teologia pode razoavelmente abandonar o terreno em que tem respostas, para se achegar ao outro onde pode ser refutada, pelo menos naquilo que não diz respeito diretamente à revelação mas ao conhecimento do contexto histórico101.

Segundo destaca ainda que os problemas humanos mais agudos não se definem nem se

resolvem num plano de certezas. Todo homem se obriga a decidir por alto sobre problemas

que só posteriormente poderão ser iluminados pelos dados da ciência. “Uma vez que optou de

forma genérica, a ciência pode indicar-lhe a instrumentalidade correspondente a sua

opção”102.

Portanto, todo homem faz opções no campo dos valores e interesses (política) antes de

sentir a necessidade do conhecimento de tipo objetivo. Levando esta situação humana geral ao

terreno da teologia, deixamos agora o próprio Segundo dizer o que quisemos expor neste

tópico:

Escapa a teologia a esta lei universal? Certamente não. Em primeiro lugar, a aceitação da teologia, como também a da própria revelação, supõe uma prévia opção que só é concebível como o desafio de um contexto determinado e bem conhecido. Somente a partir dessa opção contextual começa a teologia a ser significativa e sempre em relação com esse contexto real. Em outras palavras, a teologia não é escolhida por razões

100 Ibid., p. 89. 101 Ibid. 102 Ibid., p. 90.

39

teológicas. Pelo contrário, o único verdadeiro problema é determinar se situa melhor o homem para optar e mudar politicamente o mundo103.

Quando se afirma que as opções humanas não são tomadas num plano de certezas, na

verdade se está dizendo que o homem se deixa guiar por dados transcendentes. Até mesmo o

mais objetivo dos homens se deixa guiar por dados que transcendem suas próprias

possibilidades de verificação. São estes dados que constituem o homem como um ser político,

isto é, que se vale da experiência do seu grupo (valores e interesses) para levar adiante uma

vida que do contrário não seria propriamente humana.

Como se vê, a análise das condições da ciência sociológica e a consideração de

elementos importantes da epistemologia teológica nos dão conta de que o compromisso pela

humanização se configura como opção política. E assim acenamos para a questão que nos

ocupará no capítulo seguinte. A opção política, exatamente por ser tal, ou seja, por não se

fundamentar em dados empíricos comprovados cientificamente, inexoravelmente colocará no

horizonte da teologia a questão dos dados transcendentes na existência humana.

103 Ibid.

CAPÍTULO II: FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS

A cristologia de Juan Luis Segundo parte do pressuposto básico da fé. Neste sentido,

seu método se assemelha ao da teologia clássica. Pensa a fé na perspectiva antropológica e

dessa maneira coloca-se ao lado de outros teólogos que fazem o mesmo. Sua originalidade se

dá no pensar a existência humana desde suas dimensões básicas. Assim podemos visualizar o

quadro teórico de sua reflexão sobre a fé. O dado fundamental é a experiência da pessoa

centrada na liberdade humana e seu poder criador. Segundo, fiel ao seu método que articula

subjetividade e objetividade num todo coerente, entende que o poder criador da liberdade faz

sua aparição na dimensão do sentido e da eficácia.

Pois bem, seguindo os passos da análise fenomenológica da existência humana

empreendida por Segundo, estruturaremos este capítulo da maneira seguinte: primeiramente

refletiremos sobre a experiência central da pessoa marcada pela liberdade criativa; em seguida

faremos a exposição da exteriorização da liberdade humana e seu poder criador no âmbito do

sentido e da eficácia, dimensões humanas estas correspondentes à fé antropológica e à

ideologia, respectivamente; finalmente, abordaremos a complementariedade entre estas

dimensões básicas da existência humana.

1. A centralidade da pessoa

A reflexão de Segundo é toda centrada no tema da pessoa. Esta, por sua vez,

caracteriza-se pela experiência da liberdade e sua exteriorização na criatividade histórica.

1.1. A liberdade como experiência central da pessoa

Para Segundo o homem recebe de Deus o dom da liberdade e da criatividade, e no ato

de exteriorizar sua liberdade no compromisso pela construção da história manifesta a

realidade transcendente de Deus1. O ser humano é fundamentalmente pessoa2, ou seja, um ser

1 Cf. SEGUNDO, Teología abierta para el laico adulto. Vol. III. Nuestra idea de Dios. Buenos Aires, México:

Ed. Carlos Lohlé, 1970, pp. 24-25. 2 Cf. Ibid., p. 150.

41

relacional, promessa e tarefa que se realiza exteriorizando o mais profundo de sua vocação de

criatura criadora. Por conseguinte, a pessoa humana aparece como algo absolutamente

“valioso” para Deus, que é amor, dado que a vocação do homem é “fazer história amando,

libertando, criando (…)”3.

Segundo, a exemplo de Rahner, postula a identidade entre Deus e a graça. De fato,

para Rahner a graça é a autodoação da vida de Deus aos homens4. Esta realidade universal

possibilita que a ação humana seja ação da liberdade em amor, que a vida dos homens seja

uma vida de autodoação livre e gratuita5. A própria etimologia da palavra nos dá conta de que

a graça é “o presente de Deus por excelência, isto é, Deus mesmo feito existência nossa. A

graça é ‘o Espírito que habita em nós’”6.

Como se vê, Segundo parte do prisma epistemológico da universalidade da graça para

pensar a antropologia. O homem, por graça de Deus, se compreende como ser livre e criativo.

Daí que o interesse do nosso autor se direciona para a compreensão da liberdade humana em

sua realização histórica e, consequentemente, para o terreno da política. Assim se pode dizer

que a ação humana tem uma relação de causalidade com o plano salvífico de Deus. Ou seja, o

homem pode contribuir de maneira criativa e eficaz na construção da história como história da

salvação. Talvez possamos entender melhor este conceito de liberdade comparando-o com o

de outro teólogo, K. Rahner, aliás, frequentemente citado por Segundo.

Pois bem, numa perspectiva semelhante, Rahner entende que existe um a priori – o

existencial sobrenatural – que possibilita ao homem o conhecimento de Deus, mesmo que não

tematizado7. Neste sentido, a história é o tempo e o lugar em que o homem pode dizer sim ou

não, acolher ou rejeitar o projeto de amor revelado por Deus, “porque de outra forma não

mais subsistiria a seriedade de uma história livre”8. Por conseguinte, o exercício da liberdade

é fundamentalmente dizer sim ou não a Deus enquanto se faz história.

Com o mesmo princípio epistemológico – a universalidade da graça – o pensamento

de Segundo toma outra direção. Ao contrário de Rahner, sua atenção não se volta para o

conhecimento de Deus e seus possíveis desdobramentos para o diálogo inter-religioso. A

3 Id., La historia perdida, p. 494. 4 Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulus,

1999, pp. 69-73. 5 SEGUNDO, Gracia y condición, p. 18-21. 6 Ibid., p. 241. 7 Cf.. RAHNER, op.cit., p. 71. 8 Ibid., p. 512.

42

universalidade da graça é tida como o fator que permite ao homem compreender os

intrincados mecanismos históricos que possibilitam e limitam o exercício da liberdade. É a

graça que torna possível ao homem intuir na realidade objetiva que tem diante de si

possibilidades de relações humanizadoras. É a graça que constitui a existência humana como

portadora de uma espécie de “promessa”, um sentido, que ele denomina de “pré-fé”, que se

manifesta na necessidade humana que todo homem tem de se orientar por dados

transcendentes. Dessa forma, se constrói a história da liberdade que perpassa toda a história

da humanidade e alcança plena manifestação – ou se se quer, personalização – em Jesus de

Nazaré9. Assim, pois, a história não é o espaço para o sim ou o não a Deus, um tempo de

prova, mas o único processo de construção no qual convergem a decisão de Deus e a do

homem.

Isto permite, ademais, compreender de maneira coerente a relação entre escatologia e

história na existência humana. O dado escatológico por excelência, a ressurreição de Jesus,

não é outra coisa senão a confirmação do caráter de definitividade das relações amorosas

entre os homens, as únicas capazes de criar algo definitivo na história10. O escatológico não

versa sobre prêmios e compensações num plano sobrenatural, mas torna manifesto o grau de

colaboração de cada homem no processo histórico-salvífico no qual Deus e os homens

caminham lado a lado. Nesta perspectiva o “não” não é uma alternativa da liberdade, mas a

perda da liberdade11, dado que a negativa nada mais é do que a recusa de colaborar na

construção de algo definitivo na história. Uma pessoa que desse uma negativa absoluta seria

na verdade uma não-pessoa, exatamente por renunciar à liberdade. E “o homem não livre não

será uma pessoa humana”12.

A esta altura é bom recordar o que dissemos no capítulo anterior acerca da

compreensão segundiana da história da salvação. Não há uma história natural separada de

outra sobrenatural. Antes há um único processo em que os homens por graça de Deus tecem

relações de solidariedade fazendo surgir a realidade humana em toda a sua concretude

histórica13.

Ligado a isto, para a compreensão da experiência da pessoa tal como a entende

Segundo, é bom lembrar também o que foi dito a respeito da opção política. As relações 9 Cf. SEGUNDO, La historia perdida, p. 509. 10 Cf. Ibid., pp. 618-623. 11 Cf. Id., Gracia y condición, pp. 67-71. 12 Ibid., p. 69. 13 Cf. Id., Liberación de, p. 161.

43

humanas se definem a partir da confiança fundamental de que a vida tem um sentido. Mas não

quer dizer que o homem tenha diante de si descortinadas todas as possibilidades para a

existência, o que nos leva à conclusão de que tal sentido poderá ser perseguido tão somente

por meio de uma aposta – política, não científica. Este é o preço da liberdade humana, pois

“todo homem se descobre já fazendo história”14, apostando tudo num mundo em que não é

possível pleno conhecimento da totalidade da realidade para somente então seguir adiante.

Isto porque “a história é um caminho que, por definição, se empreende sempre sem poder

vislumbrar jamais o que nos aguarda além da primeira curva”15.

A reflexão de Segundo sobre a pessoa articula a polaridade da subjetividade e da

objetividade. A liberdade humana não é uma abstração, mas uma tarefa que se realiza na

história. Evitam-se dessa maneira perspectivas unilaterais que ora resvalam para a

arbitrariedade individualista ora sucumbem nos essencialismos. Assim é possível uma

aproximação ao pensamento existencialista quando este afirma que a existência precede a

essência. A originalidade de Segundo é que, ao contrário do que pensa Jean-Paul Sartre, um

dos maiores expoentes desta corrente de pensamento, a existência humana é compreendida a

partir da universalidade da graça, de tal modo que a liberdade tem aí sua fonte. O homem não

é mera realidade dada, como tendem a afirmar os essencialismos, nem tampouco poderá

decidir arbitrariamente o que será ao fim de sua existência. A realidade é mais complexa.

Existe uma circularidade entre natureza e liberdade – essência e existência – que deve ser

considerada.

É verdade que o homem decide o sentido de sua existência, do contrário não seria

livre, mas também é fato que a realidade objetiva que está aí impõe limites à liberdade

humana. Até mesmo as criações da própria liberdade carregam esta ambigüidade de

possibilitar e interditar16. No entender de Segundo, o que impede que a liberdade humana se

perca totalmente em meio aos condicionamentos, é que ela emerge de uma fonte, ou seja, da

gratuita presença da vida divina na existência humana17.

14 Id., La historia perdida, p. 635. 15 Ibid. 16 Cf. Id., Gracia y condición, pp. 47-54. 17 Cf. Ibid., p. 67.

44

1.2. A criatividade como exteriorização da liberdade

O que foi dito no tópico anterior nos leva à compreensão de que a criação é a

exteriorização ou a historicização tanto da liberdade divina quanto da liberdade humana,

contanto que se demarque a diferença entre uma e outra. Deus cria a partir do nada, o homem

num mundo já criado. Por isso, quando nos referimos à liberdade humana, pensamos a

criatividade na esfera do sentido que o homem poderá definir num mundo que o precede.

Estritamente falando, o homem deve criar manejando meios naturais e artificiais para realizar

seus projetos. Por conta disto, não somente deve se utilizar de um material limitado, como

deve respeitar até certo ponto a lógica própria da realidade objetiva, se quer que sua liberdade

seja eficaz18.

Falamos em respeitar “até certo ponto” porque evidentemente uma resignação absoluta

à lógica do mundo objetivo seria precisamente a negação da liberdade. Nem mesmo a

evolução biológica se explicaria se não houvesse a possibilidade de certa transposição de

barreiras objetivas. O certo é que no plano humano a articulação da circularidade entre

liberdade e realidade, subjetividade e objetividade, homem interior e mundo constitui-se como

base da antropologia de Segundo.

Pode-se concluir que a liberdade é a capacidade que o homem tem de definir projetos

de amor e de algum modo realizá-los na história transpondo a teimosia de uma realidade

incrivelmente complexa e resistente aos seus projetos.

Pode ser bom agora entender como isto ocorre na existência humana concreta.

Certamente o formato deste discurso sobre a experiência da pessoa apresentado até aqui não

se presta de modo suficientemente adequado aos propósitos de quem pretende dialogar com

pessoas que nem sempre compartilham de nossos pressupostos e de nosso campo semântico.

Nossa linguagem e nossas afirmações podem parecer um tanto esotéricas. Segundo tem

consciência deste risco. Por isso se propõe rastrear a existência humana por meio de uma

análise fenomenológica numa tentativa deixar a realidade mesma falar. É o que se verá a

seguir.

18 Cf. Id., La historia perdida, p. 26.

45

2. Fé antropológica

O primeiro dado da análise fenomenológica da existência humana empreendida por

Segundo é tão geral que se converte em dimensão antropológica. Trata-se da constatação da

inexorável tarefa humana de escolher num limitado campo de possibilidades. A liberdade se

constitui como economia de energia em prol da definição da estrutura de sentido da

existência. O homem se descobre e se constitui fazendo escolhas não por mera deliberação

mental, mas por um motivo que a simples observação do cotidiano poderá revelar. Diante da

impossibilidade prática – escassez energética – de experimentar pessoalmente os caminhos

possíveis, aposta no testemunho alheio. É a dimensão da “fé”, “um grande dispositivo de

poupança energética”19, verdadeiro atalho existencial que permite ao homem definir o sentido

da própria vida. É “antropológica” porque comum a todo homem.

2.1. Liberdade e sentido

Segundo parte do pressuposto de que os homens agem em busca de satisfação a fim de

alcançar a felicidade. Esta entendida como “a simples e primitiva sensação (...) de estar

satisfeito com a vida”20. E estar satisfeito é nada mais nada menos que ter a sensação de ter

realizado o próprio projeto de vida. Contudo, a realidade nos mostra que a busca por

satisfação é complexa a tal ponto de se ter a impressão de que “poucos homens, ao final de

sua existência, têm a sensação de ser felizes ou tê-lo sido”21.

Por que a maioria dos homens não atinge a meta a que se propôs chegar? Uma

hipótese parece muito lógica: os homens não fazem a devida distinção entre satisfações

imediatas e satisfações mediatas. Não obstante o fato de terem definido uma meta para sua

existência, “distraem-se no caminho” e acabam “atraídos por finalidades secundárias”22. Não

percebem que satisfações mediatas supõem muitas vezes a renúncia de satisfações imediatas e

acabam frustrando seus projetos.

Não há dúvida que a realização de um projeto existencial exige que se coloque tudo a

seu serviço. Isto porque todo homem tem a sua disposição uma quantidade limitada de

energia. Por conta disso, qualquer escolha humana possibilita e interdita ao mesmo tempo23.

19 Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 169. 20 Id., La historia perdida, p. 20. 21 Ibid. 22 Ibid. 23 Cf. Id. Massas e minorias na dialética divina da libertação. São Paulo: Ed. Loyola, 1975, pp. 5-25.

46

Só para citar um exemplo, um estudante que decide adiantar a redação de um trabalho numa

determinada tarde de domingo renuncia irremediavelmente a todas as outras possibilidades de

emprego de sua valiosa cota de energia disponível para este limitado período de tempo.

Assim, pois, a felicidade de cada pessoa, ou seja, o grau de satisfação com a vida em qualquer

momento de sua existência, depende de que se tenha administrado de maneira eficaz sua

reserva de possibilidades24.

Esta é uma constatação bastante lógica. Mas não significa que se tenha dito tudo. A

experiência da pessoa humana não se reduz a aspectos meramente operacionais. A realidade

concreta mostra que não basta uma boa administração da cota energética. Há um problema

prévio fundamental a ser enfrentado. É preciso ter alguma certeza de que determinada meta

uma vez alcançada proporcionará satisfação e consequentemente felicidade. Um homem deve

ter certa convicção de que vale a pena fazer renúncias por algo. Como reconhecer a “pérola

precisa”? De alguma maneira todas as pessoas colocam para si mesmas questões desta

natureza. Mas o certo é que de algum modo estruturam a vida a partir de dados que

consideram confiáveis. Como isto ocorre?

Pois bem, Segundo ilustra esta questão imaginando a seguinte situação. Aventa a

possibilidade de alguém percorrer toda a sua existência a fim de verificar empiricamente um

leque de opções, sem se comprometer efetivamente com nenhuma delas, para somente no fim

decidir por uma que inquestionavelmente pudesse lhe assegurar a felicidade. Ao final dessa

viagem, afirma Segundo, ver-se-ia que esta já teria sido a opção, e por mais que pareça ser a

mais lógica, teria sido na verdade a menos satisfatória. Justamente no ponto em que a

liberdade parece ter claras as opções mais acertadas, e a felicidade na palma da mão, já não há

mais o que escolher, dado que já se escolheu tudo. E acrescenta-se a isto a proximidade da

morte como desfecho trágico25.

Em outras palavras, percorrer toda a vida com a finalidade de verificar empiricamente

as possibilidades mais seguras para se alcançar a felicidade é já uma opção, é viver, e como

tal implica um gasto monumental de energia, na verdade todas as energias de uma existência.

Fazer uma viagem exploratória por toda a existência sem se apegar a nada é o mesmo que

eliminar a fonte de valores que podem dar sentido à própria vida. No entanto, adverte

Segundo, “essa enorme e radical dificuldade (…) não parece deter ou paralisar a atividade da

24 Id., La historia perdida, p. 20. 25 Cf. Ibid., p. 21.

47

maioria da humanidade. Se os homens não são felizes, tampouco são caóticos”26. As pessoas

tomam decisões por conta própria e até certo ponto podemos prever seu comportamento. Em

que se fiam para fazer suas escolhas com um mínimo de segurança?

A experiência mostrará aqui o que se pode prever: que somente é possível certa certeza de escolher um caminho que conduz à felicidade, baseando-nos em experiências alheias. Aparece aqui a básica solidariedade da espécie humana. As experiências de valores realizados nos vêm através de nossos semelhantes. Antes de as termos nós mesmos, percebemos seu valor, suas possibilidades de satisfação, através do testemunho da felicidade ou infelicidade alheias27.

Assim, pois, se configura uma interdependência entre todos na comunidade humana,

de modo que a estrutura valorativa capaz de dar um sentido à nossa vida “consolida-se sobre

testemunhas referenciais, nas quais depositamos nossa confiança”28. O homem, este ser livre

e criador, se percebe já fazendo escolhas. Trata-se do poder criador no âmbito do sentido. O

homem, todo e qualquer homem, se vale do testemunho alheio para definir um sentido para a

sua existência.

Pois bem, a esta altura já se percebe que Segundo questiona a afirmação de que os

homens estão divididos entre os que estruturam sua vida a partir de uma fé e os que seguem

uma visão científica da realidade ou – como ele prefere – uma ideologia. A fé, pois, é um

dado constitutivo do ser humano, uma dimensão antropológica.

Nenhuma lógica, nenhuma ciência pode suprir a aposta pelo desconhecido. É necessário escolher sempre como supremo e incondicionado algo cujo valor concreto não se conhece pessoal e experimentalmente29.

2.2. A fé antropológica como instância de absolutização

Neste ponto Segundo entende que o poder criador da liberdade no horizonte do sentido

funciona como instância de absolutização na existência humana. Isto ocorre na medida em

que o homem se espelha em testemunhas referenciais para definir seu próprio projeto de vida.

O grau de satisfação com a vida, demonstrado pelas testemunhas, depõem sobre os valores

que poderão ser assumidos pessoalmente pelo ato de fé antropológica. Tais valores são

organizados e hierarquizados em função de um valor absoluto, ou seja, incondicionado.

Segundo chama a atenção sobre a dificuldade de se definir conceitualmente os valores.

Não há como não cair em tautologias. Podemos dizer que valor “é a razão ou motivo de 26 Ibid., p. 23. 27 Ibid. 28 Ibid., p. 24. 29 Ibid., p. 23.

48

nossas preferências e opções”, mas ainda assim “a definição não nos esclarece mais que a

palavra mesma”30.

O mesmo ocorre com a nomeação dos valores. Alguém diria que a justiça é um valor,

mas se prestarmos atenção veremos que a justiça é na verdade um meio a serviço de algo que

se apresenta como valioso para quem a pratica. Seria estranho praticar a justiça simplesmente

para ser “justo”, mas não assim se a pensamos como uma forma concreta de se relacionar com

pessoas. E assim, chega-se a uma definição simples e significativa no atuar humano, mas de

difícil definição conceitual: valor se refere àquilo que “vale a pena”31.

A modo de síntese Segundo afirma que o valor é na verdade uma abstração em três

níveis. Primeiramente, o valor se refere sempre a pessoas e não a coisas: tudo o que

assumimos como valor – dinheiro, poder, amizade, justiça - são formas abstratas de dizer

como nos relacionamos positiva ou negativamente com pessoas32. Só para citar um exemplo,

o interesse por alguém não cessa com a efetivação da amizade, mas ao contrário se fortalece.

Em segundo lugar, a pluralidade de valores não se refere à realidade concreta, à esfera

do Ser – àquilo que é –, mas ao âmbito dos anseios humanos, ou seja, à esfera do dever-ser

definido pela liberdade. A opção irremediavelmente caminha ao lado de coisas concretas

“elegíveis” e, portanto, valiosas. Porém, obedece a uma unidade fundamental complexa em

torno a um valor incondicionado, livremente definido.

Todos buscamos simultaneamente nossa própria realização e a dos seres que amamos, elegendo entre diversas formas ou possibilidades desse mesmo e único “valor”. O que chamamos “valores” não pode ser outra coisa que diferentes formas abstratas, mais ou menos estabilizadas, dentro dessa transformação ou desenvolvimento de uma única energia em prol de uma realização33.

Finalmente, Segundo destaca o papel da imaginação no processo de escolha.

Não escolhemos concretamente entre valores, mas entre representações imaginárias de satisfações. Não nos decidimos pela “virtude” ou pelo “valor” da paz, mas por uma imaginação da satisfação que viria do fato de as pessoas a quem queremos bem viverem numa situação de paz ou de maior paz34.

30 Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 31. (Cf. Id., La historia perdida, pp. 49-50). 31 Ibid., p. 32. 32 Cf. Ibid. 33 Ibid., pp. 32-33. 34 Ibid., p. 33.

49

Segundo acrescenta que somente “depois” dessa escolha “colocamos um nome

abstrato a essa imaginação prospectiva”35. Além disso, na medida em que tais valores são

assumidos pessoalmente ocorre uma verdadeira hierarquização. Na busca pela felicidade ou

por “estar satisfeito com a vida” uns valores vão dando prioridade a outros até se chegar a um

valor absoluto ao qual se subordina todo o resto. Concretamente, o homem faz uma aposta

existencial e para concretizá-la define uma escala ideal de valores, entre os quais um tem

primazia. É neste sentido que a liberdade humana funciona como instância de absolutização.

O poder criativo define uma estrutura de significação que funciona como o sentido da vida.

Na medida em que tal estrutura se constitui, a existência vai ganhando contornos cada vez

mais definidos. Assim se compreende o que diz Segundo ao afirmar que “a fé começa a tarefa

humanizadora ao preferir um ‘valor’ ao qual se pensa poder confiar a vida inteira e a busca da

felicidade possível”36.

2.3. A fé antropológica como fator de compreensão da realidade

Segundo afirma que a fé antropológica funciona como elemento valorativo-

cognoscitivo na existência humana. A maneira como uma pessoa percebe o mundo e a

totalidade de sua vida depende de sua fé. Isto se torna mais evidente na existência adulta, mas

pode ser verificado desde a infância e a adolescência.

a) Infância: o mundo como possibilidade de prêmios e castigos

Na infância a estrutura significativa aparece de modo elementar. Isto ocorre em dois

momentos, cada um com uma característica peculiar. De início a memória da espécie humana

é muito mais determinante para estruturar o comportamento da criança. O instinto guia a

conduta. Não se faz ainda a distinção entre satisfações imediatas e satisfações mediatas. Isto

somente será percebido num segundo momento, quando a criança, por sua razão, deixa de

obedecer ao instinto e começa a renunciar a satisfações imediatas em prol de outras de longo

prazo e mais prometedoras. Nem mesmo aqui há uma fé propriamente dita, dado que os

valores assimilados dos pais e educadores não são assumidos de maneira consciente e crítica.

O que ocorre na verdade é que os métodos de satisfação praticados pelas pessoas maiores são

vistos como dignos de fé, de confiança. Nesta fase pode ocorrer a nomeação abstrata do

objeto da “fé”, contudo, com o mesmo nome dado pelos pais e educadores à estrutura de

significação que transmitem para o educando. A criança na verdade assume a etiqueta 35 Id., La historia perdida, p. 52. 36 Ibid., pp. 25-26.

50

valorativa dos pais e educadores. Assim é natural que se auto-intitulem cristãs, liberais,

marxistas etc., uma vez que esta é a identidade assumida pelos depositários de sua fé37.

Assim, do ponto de vista que nos ocupa, vale destacar que nesta fase da vida ainda não

se faz clara distinção entre os sistemas de valores e os sistemas de meios de eficácia. A

estrutura significativa é posta em prática na medida em que a criança pratica de maneira quase

mimética os métodos de satisfação oferecidos pelas pessoas maiores. A estrutura significativa

pessoal ainda não foi assumida de maneira consciente. Por conta disso a ênfase da existência

recai sobre a dimensão dos meios de eficácia, de tal modo que o mundo é percebido como a

possibilidade de prêmios e castigos. De maneira geral a criança reproduzirá os métodos dos

pais a fim de alcançar satisfações – prêmios –, especialmente quando se trata de satisfações

menos imediatas.

b) Adolescência: a formação do ideal ante um mundo de possibilidades

Na adolescência, com a descoberta do “eu”, ocorre uma mudança significativa. A

busca de identidade leva o adolescente a distinguir entre sistemas de valores e sistemas de

meios de eficácia. É a descoberta das dimensões básicas da existência humana. Desse modo,

por um lado, na dimensão do sentido, temos o momento da definição do ideal, de assumir

pessoalmente uma estrutura significativa, “o começo de uma busca do modo de coordenar o

absoluto e o relativo nas decisões que se tomam”38. Em função disto, cai em boa parte a fé nos

pais e educadores. O adolescente se depara com um mundo de possibilidades e sua fé se torna

mais fluida. Ocorre uma abertura para o testemunho de outras pessoas “confiáveis”. A

necessidade humana de confiar no testemunho alheio continua, com a diferença de que agora

outras pessoas, e até mesmo grandes personalidades históricas, poderão eventualmente servir-

lhe de inspiração na formação de seu ideal de vida. Por outro lado, na dimensão da eficácia, o

adolescente entra no mundo da experimentação dos métodos de satisfação, fazendo a

passagem da confiança nos métodos dos pais para o manejo pessoal dos meios que, uma vez

testados, serão postos a serviço dos valores que assume como seus39.

A fluidez da fé e a visão de mundo que daí resulta é o que caracteriza esta fase. A

reserva energética ainda não foi muito usada. Muitos cartuchos poderão ser queimados na

experimentação de meios que aos olhos do indivíduo parecem adequados para o seu projeto

de vida. Nesta fase a dimensão da eficácia ainda dá o tom da existência. É por meio dela que 37 Cf. Ibid., pp. 40-41. 38 Ibid. p. 41. 39 Cf. Ibid., pp. 41-43.

51

se fará a escolha do valor absoluto. De modo geral o adolescente se dedica ao aprendizado.

Nesta dinâmica poderá mudar ou redimensionar seu ideal. Uma estrutura de sentido é

assumida na medida em que sua efetivação recebe o aval da realidade. O mundo é visto como

um leque de possibilidades. Aparece de maneira embrionária o manejo da

complementariedade das dimensões humanas básicas40.

c) A maturidade: fé e realidade

A passagem da adolescência para a maturidade é marcada por dois elementos

principais: alcance da solidez da fé e um maior conhecimento da realidade.

À primeira vista se poderia pensar que com maior conhecimento da realidade a pessoa

se desembaraçaria da fé e passaria a guiar-se por dados objetivos, científicos. Mas, como

vimos, foi exatamente por meio da análise de uma existência adulta que Segundo demonstrou

a impossibilidade de se eleger por experiência própria ou por conhecimento objetivo os

valores que dão sentido à vida.

Pois bem, na maturidade, tendo já queimado muitos cartuchos na escolha do valor

supremo, o homem se preocupa mais em conhecer a realidade objetiva e a instrumentalidade

necessária para colocar em prática seu projeto de vida. O mundo é visto como uma realidade

complexa, onde tudo é inter-relacionado e aparentemente hostil aos projetos humanos. Nesta

fase, a estrutura de sentido dá a tônica da existência. A preocupação recai sobre o cálculo dos

preços que se deverão pagar na concretização do projeto de vida. Por conseguinte, o homem

maduro terá dificuldade de mudar sua fé41. E assim já é de se supor o que temos tentado dizer

neste tópico: a fé incidirá sempre mais na percepção da realidade e na avaliação dos

resultados no mundo da prática.

Já vimos que os fracassos, a resistência dos fatos diante dos desejos e projetos, são como gritos de alarme: questionam tanto a “fé” escolhida, como os “métodos” – ou ideologias – empregados. Com a individualidade ou extrema dificuldade de mudar de fé a essa altura da vida, cresce a tentação de justificar, racionalizar ou idealizar os fracassos. Isto é, de trocar seu sinal negativo por outro positivo, condizente com a estrutura que se escolheu e que não se tem energia suficiente para mudar.

De fato, não podemos esquecer que a “fé”, entendida como estrutura de significação e valoração, não apenas informa sobre o dever ser, mas é um fator determinante – na idade adulta, pelo menos – da maneira como se percebe o que é. (…) não é unicamente a maneira de estruturar o domínio do que deve ser; é também “premissa” cognitiva que nos

40 Cf. Ibid. 41 Cf. Ibid., pp. 43-44.

52

faz perceber certas coisas e não perceber outras, igualmente presentes em nosso campo visual42.

Na verdade, Segundo, tendo nos conduzido pela mão até a compreensão do estágio

mais evoluído do manejo do absoluto e do relativo na vida de uma pessoa, nos mostra que há

uma zona de convergência entre as dimensões básicas da existência humana, formada por

aquilo que ele chama de “dados transcendentes”. Mais adiante trataremos desta questão. Por

hora interessa-nos destacar que são estes dados que incidem na dimensão cognitiva da fé,

possibilitando uma compreensão global da vida e das possibilidades que o mundo real oferece

ao homem.

3. Ideologia

A análise de Segundo nos coloca diante de outro elemento que de tão geral e básico se

converte igualmente em dado constitutivo de todo homem. Trata-se da dimensão dos meios de

eficácia por ele denominada de maneira original com o termo “ideologia”. Esta surge da

necessidade de implantar na realidade o sistema de valores determinado pela “fé”43. Resulta

do encontro entre as dimensões subjetiva e objetiva da liberdade e necessariamente introduz

elementos de relativização na existência humana.

Assim, pois, faremos a exposição de dois desdobramentos desta compreensão

antropológica de Segundo: o primeiro é que a realização histórica da estrutura de sentido

supõe uma estrutura de meios de eficácia; o segundo se refere ao fato de que os meios

funcionam como elemento de relativização da liberdade, pois o uso da instrumentalidade em

prol da estrutura de sentido – a “fé” – somente é possível mediante compromisso existencial,

ou seja, por meio de uma opção (relativa) que maneja ao mesmo tempo o absoluto e o relativo

da existência humana.

3.1. Liberdade e eficácia

Segundo não pensa a existência humana como um em si estanque da realidade. A

estrutura de sentido definida pela liberdade não é um projeto que chega pronto ao mundo

objetivo. Pelo contrário, o homem se descobre como um ser livre no mundo. Isto tem uma

implicação bastante lógica no seu pensamento: o poder criativo da liberdade humana se

42 Ibid., p. 44-45. 43 Cf. Id., La historia perdida, p. 79.

53

manifesta também na busca de eficácia. Esta é uma dimensão constitutiva do ser humano.

Caso contrário a liberdade seria mera abstração ou mistificação, e a fé se converteria em “má

fé” exatamente por não prever os meios para sua efetivação histórica44.

Em princípio a formulação antropológica de Segundo é bastante simples: o homem é

um ser livre e criativo. Por sua liberdade define o sentido de sua vida – a fé – e encontra na

realidade objetiva instrumentos – ideologias – para a concretização de seus projetos. Não

obstante a clareza desta formulação, o leitor empenhado em compreender a dimensão dos

meios de eficácia pode ser induzido a equívocos semelhantes aos que poderiam ocorrer na

compreensão da fé antropológica.

Vimos que o objeto da fé não é o Ser, aquilo que é, mas um dever-ser definido pela

liberdade, ou seja, os valores (interpessoais) que podem dar sentido à vida, em última

instância um Valor incondicionado. Para Segundo o homem não escolhe entre o Bem –

identificado com a plenitude do Ser – e o Mal – associado à idéia de carência. Pelo contrário,

o homem tem diante de si um mundo – que em sua objetividade não carrega nenhum valor

senão o de conhecer o que é – a ser construído por meio de projetos de amor. Em outras

palavras, o homem “não escolhe entre o que, em si mesmo, é o bem ou o mal, mas entre o bem

de ser livre (e pessoa) ou o mal de não sê-lo (e ser coisa)”45. O mal não é uma alternativa para

a liberdade, mas algo que tira a liberdade, ou seja, transforma o homem num mecanismo sem

projetos. Na verdade a liberdade é a luta criativa e continuada contra a tendência à

acomodação diante da dureza e complexidade da realidade. Vale lembrar que a antropologia

personalista de Segundo compreende a liberdade como poder criador. O homem é um ser livre

que herda as características do Criador.

Esta formulação do conceito de fé tem desdobramentos no conceito de ideologia. Uma

leitura apressada poderá induzir à conclusão de que o homem escolhe sem ambigüidade entre

meios adequados e meios inadequados para a concretização de seus projetos. Se assim fosse a

liberdade humana seria ilimitada, contanto que escolhesse bem a instrumentalidade no seu

campo de ação. Contudo, a experiência da liberdade humana nos mostra outra coisa. Diante

da complexidade do real a tarefa da liberdade consiste em combinar meios cuja lógica

independe da lógica que define os projetos humanos. Os meios em si mesmos não são nem

bons nem maus. Simplesmente carregam a ambigüidade própria do mundo da objetividade:

possibilitam e interditam, simultaneamente, os projetos humanos. E assim a limitação do 44 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 158. 45 Id., El hombre de hoy, tomo II/ 2, p. 967.

54

mundo objetivo se converte em limitação do próprio homem. Somente assim se compreende a

tese de Segundo de que existe uma dimensão humana formada pelos meios de eficácia.

Dessa forma, Segundo entende que a liberdade humana, neste campo da objetividade,

assim como ocorre no âmbito dos valores, não consiste em escolher entre o Bem ou o Mal,

mas em combinar de maneira criativa os meios que a realidade objetiva oferece como

possibilidade para a concretização de projetos humanizadores. Em outras palavras, a liberdade

consiste em ser pessoa (criativa) num mundo cujas tendências nos induzem à coisificação, à

morte do sentido da vida46. Como já dissemos, à dimensão que se encarrega de combinar a

instrumentalidade necessária para a concretização da fé Segundo chama de “ideologia”.

Esta palavra carrega conotações diversas na tradição do pensamento. Em termos gerais

este conceito está ligado à dimensão cognoscitiva do homem. Segundo a utiliza em duas

perspectivas distintas. Na primeira, como vimos no capítulo anterior, ideologia tem a ver com

o encobrimento e a falsa consciência do mundo47. Neste uso crítico, ideologia se converte em

objeto de suspeita. Um dos desafios da teologia é desmascarar as ideologias que, consciente

ou inconscientemente, condicionam o fazer teológico. A segunda perspectiva de uso do termo

ideologia é uma inovação terminológica. Segundo o emprega com um sentido que guarda um

parentesco significativo com o uso corrente na linguagem e simultaneamente preenche uma

lacuna neste mesmo uso. Em nossa cultura a palavra ideologia se revestiu de conotação

pejorativa. Contudo, Segundo a considera um produto social necessário para a efetivação dos

projetos humanos:

Chamarei de “ideologia” a todos os sistemas de meios, sejam eles naturais ou artificiais, em ordem à consecução de um fim. Poderemos dizer também (…) que é o conjunto sistemático do que queremos de maneira hipotética, não absoluta; em outras palavras, todo sistema de meios, como já se disse48.

A principal razão da escolha do termo ideologia para nomear esta dimensão humana é

de ordem etimológica. Em grego esta palavra “significa (...) a forma visível, o aspecto das

coisas”, ou seja, “minha percepção ‘do objetivo’”49. Daí também o fato de que, no

pensamento de Segundo, ideologia e ciência sejam termos equivalentes, pertencentes ao

âmbito do conhecimento da realidade, formando parte da dimensão dos meios de eficácia.

Nosso autor não se descuida do fato de que a visão das coisas surge sempre em função dos

46 Cf. Ibid., pp. 968-969. 47 Cf. Id., Liberación de, p. 11-12 e 48-49. 48 Id., La historia perdida, p. 28. 49 Ibid.

55

fins determinados pela dimensão da fé. O conhecimento da realidade, que em princípio é

objetivo, está sempre em relação com a dimensão valorativa do homem. Por isso, é melhor

falar em pretensão à objetividade: “Ideologia designa assim (...) uma visão das coisas que se

pretende objetiva e, em última instância, livre (pelo menos em si mesma) de valores”50.

Segundo mostra que a falta de cidadania da palavra “ideologia” se deve em grande

parte a um mal entendido que consiste basicamente na falsa convicção da possibilidade de um

conhecimento científico livre de interesses humanos. Foi assim que procedeu K. Marx ao

propor uma visão científica do mundo como meio de desmascarar a ideologia burguesa. Outro

mal-entendido, intimamente relacionado ao primeiro, consiste em pensar na possibilidade de

uma vida orientada unicamente por uma visão científica da realidade, sem a fé. A realidade,

no entanto, nos mostra que a ciência está sempre a serviço de finalidades e interesses

humanos. De acordo com a terminologia empregada por Segundo, a ciência está sempre a

serviço da fé antropológica.

3.2. A realidade objetiva como instância de relativização

A relativização na existência humana decorre do exercício da própria liberdade. Ao

contrário do que ocorre na definição dos valores, o juízo sobre os meios de eficácia obedecem

a critérios que se impõem pela lógica da instrumentalidade ou exterioridade objetiva. O uso da

liberdade na realização da estrutura de sentido supõe um perda relativa, nunca absoluta, da

liberdade. Dentro do limitado campo de possibilidades que a realidade objetiva oferece ao

homem, o preço da realização de determinados valores é a não realização de outros

igualmente importantes. O homem vai fechando caminhos na medida em que trilha passo a

passo um determinado caminho51. Não se pode negligenciar que o potencial criador da

liberdade humana enfrenta a espessura de uma realidade na qual atuam mecanismos de

acomodação e de degradação energética.

Chocamos-nos contra a complexidade que nos espera quando queremos ingenuamente pôr a realidade a serviço de nossos valores. Em todas as partes, a realidade parece vingar-se de nossas tentativas de colocá-la – com grandes meios – de acordo com a significação que queremos dar à existência humana individual e social52.

Esta constatação da análise de Segundo deixa sem chão certa concepção fixista do

atuar humano, segundo a qual a liberdade, “posta ante a disjuntiva de um ato bom e outro mal,

50 Ibid., p. 29. 51 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 38. 52 Ibid., pp. 321-322.

56

pode escolher qual dos dois passaria de projeto a realidade”53. De fato, uma compreensão

mais global e dinâmica do uso da liberdade mostrará como uma diversidade de mecanismos

despersonalizadores faz passar por ato livre os mais variados determinismos, tanto

provenientes do inconsciente, como nos mostra a psicologia profunda, como do mundo das

coisas, de acordo com a fenomenologia. Por outra parte, e talvez com muito mais

profundidade, uma concepção evolutiva do homem mostrará que esta mescla das ações

humanas se deve ao fato de que a liberdade é na verdade a possibilidade de assumir pouco a

pouco o timão de um processo evolutivo no qual atuam os mais variados determinismos.

Em uma palavra, “a liberdade (...) abre caminho penosamente através dos próprios

instrumentos de sua realização”54. Somente é possível uma vida em liberdade por meio deste

enfrentamento. Podemos entender melhor este princípio elevando-o ao nível da realidade

sócio-política. Segundo mostra que somente é possível manter nossa opção valorativa fazendo

opções concretas (relativas) no mundo dos meios. Assim, por exemplo, não se pode evitar

uma opção concreta quando duas ou mais ideologias políticas se apresentam como

alternativas na sociedade em que vivemos. A opção por realidades universais como “a

sociedade” ou “o homem” revela-se em última instância uma opção pela ideologia vigente e

hegemônica. Isto implica a aceitação de que existe uma causalidade entre o uso de

instrumentos relativos e a realização do valor supremo que escolhemos para a nossa vida e

para as pessoas que queremos bem55.

4. Distinção e complementariedade entre fé antropológica e ideologia

Já deve ter ficado claro que Segundo desconstrói com sua análise a mentalidade

corrente segundo a qual os homens estão divididos entre os que, por um lado, norteiam sua

vida pela fé e os que, por outro, se orientam por uma ideologia ou, o que dá no mesmo, por

uma visão científica da realidade. Os dois primeiros passos de sua análise mostram com

clareza as duas dimensões básicas e constitutivas da existência humana, a do sentido e a da

eficácia. Agora a reflexão entra no campo da coerência entre fé e ideologia, ou seja, a atenção

se volta para a distinção e complementariedade entre duas dimensões igualmente necessárias

no homem.

53 Id., Gracia y condición, p. 209. 54 Ibid., p. 210. 55 Id., “Capaitalismo-Socialismo, crux teológica”. In: Concilium 96 (1974/6), pp. 776-791, aqui p. 788, passim.

57

Este passo é importante e decisivo, dado que o contexto cultural que se moldou nos

dois últimos séculos dificulta a aceitação da formulação antropológica resultante da análise

apresentada até aqui, não tanto por conta da afirmação da existência das duas dimensões

humanas, tampouco por causa do emprego da terminologia proposta, mas pelo fato de serem

dimensões que atuam de maneira complementar56. O homem moderno está acostumado a

fazer derivar seus valores do conhecimento da realidade objetiva. Por conseguinte, parece não

haver outra maneira de demonstrar a distinção e a complementariedade das dimensões

humanas a não ser analisando os resultados das grandes ações do homem. Neste sentido,

assim o entende Segundo, a atitude humana diante da experiência do fracasso, ao lado de

tantas outras, é um exemplo esclarecedor de como fé e ideologia se distinguem e se

complementam57.

4.1. O potencial crítico do fracasso

Quando a realidade frustra nossas expectativas experimentamos o fracasso. É normal

que situações assim gerem questionamentos sobre nossos valores e sobre nossos métodos de

atuação. Ambos evidenciarão sempre e simultaneamente a distinção e a complementariedade

entre as dimensões humanas básicas. Segundo afirma que a análise do fracasso em termos de

eficácia supõe que, mantendo nossos valores, poderíamos mudar ou redimensionar os

56 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 111. – Recentemente o Supremo Tribunal Federal reuniu um grupo de

cientistas – biólogos, geneticistas, neurocientistas, bioeticistas, médicos e antropólogos – em uma audiência pública com a finalidade de discutir as implicações éticas das pesquisas com células-tronco. O objetivo dos ministros era obter esclarecimentos de especialistas para depois emitir um parecer jurídico sobre “quando começa a vida humana”, em resposta a uma ação do Ministério Público Federal. A questão era saber se os embriões feitos em clínicas de fertilização devem ter status de pessoa. A relevância do debate logo foi posta em questão sob alegação de que teria ocorrido confusão de metodologias. Ocorre que parte dos cientistas foi convidada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e pelo Ministério Público Federal, cuja ação foi elaborada pelo então procurador-geral Cláudio Fonteles, hoje subprocurador, que, embora evocando critérios técnicos, não esconde suas convicções ético-religiosas. Pouco antes da audiência um dos críticos, o filósofo Maurício Carvalho Ramos, professor da Universidade de São Paulo, disse temer que se discutisse a questão errada: “a ciência estuda sistemas biológicos materiais e a resposta de o que vem a ser a vida é posta de lado”. E acrescentou: “se o critério para a escolha daquelas pessoas foi o vínculo delas com alguma religião, qualquer conclusão a que o debate chegue vai ser inconveniente” (In: Folha de São Paulo, 20 de abril de 2007, p. A19). Este é um exemplo daquilo que Segundo constata em sua análise: chega-se ao reconhecimento das duas dimensões – a do sentido (valores) e a da eficácia (ciência) –, mas não se aceita que as duas funcionem de maneira complementar. Contudo, declarações de uma das cientistas participantes da audiência mostram exatamente o contrário. Após sua intervenção, a geneticista Mayana Zatz, cujo posicionamento teria sido associado à sua filiação ao judaísmo – religião que entende que a vida começa com o nascimento do ser humano –, declarou: “posso garantir que minha defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias está longe de ser motivada por razões religiosas. É por meus pacientes, para minorar o sofrimento deles” (In: id., 21 de abril, p. A20). Como se vê, embora se negue aceitar que é movida por “razões religiosas”, a cientista não exclui a dimensão valorativa – fé antropológica, diria Segundo – de sua tese científica: “É por meus pacientes”.

57 Cf. Id., La historia perdida, p. 29.

58

métodos para alcançarmos nossos objetivos. Por outro lado, a análise do fracasso em termos

de sentido consiste em se perguntar se não há um sentido, um valor, no próprio fracasso. Se

este não era um preço digno de ser pago pelo nosso valor supremo, “o que equivaleria

finalmente a constatar que o fracasso não era tal”58. Há situações em que o triunfo somente é

possível renunciando ao ideal básico. Também neste caso, em última instância, ver-se-ia que

o triunfo não era tal. Na verdade, nossas ações devem obedecer sempre a ambos os critérios.

Se alguém considera os fracassos somente do ponto de vista da eficácia, terminará pagando qualquer preço (em valor) pela obtenção de qualquer coisa desejada. E, pelo contrário, se alguém considera os fracassos somente do ponto de vista de sua possível justificativa valorativa, acabará canonizando a ineficácia. O primeiro converteria cada militante num oportunista; o segundo, a cada inepto, ignorante ou preguiçoso, num mártir.

(...)

Fica claro assim, a meu modo de ver, que somente o levar em conta ambas as dimensões antropológicas, como diferentes e complementárias, constitui a base da maturidade e da liberdade que pode alcançar um homem em sua existência59.

Na verdade Segundo mostra que há uma relação de autonomia e dependência entre as

dimensões antropológicas. Não existe uma atuação em dois planos, mas uma dualidade que se

supera dialeticamente. A fé é o absoluto da existência e exerce o papel de estruturar o sentido

da vida. Ao passo que a ideologia é o relativo da existência, o que serve ao sentido da vida.

No fundo os fatos mostram algo inquestionável: um valor na verdade é “uma espécie de

experiência satisfatória conseguida mediante determinados procedimentos”60, o que equivale

a dizer que o valor que conhecemos é um valor realizado. Nem sequer conseguimos expressar

a imagem de um valor sem que incluamos aí o modo concreto de realizá-lo. Veja o caso do

amor. Mal se começa a defini-lo e já aparece a menção aos meios de realizá-lo. Diz-se que é

gratuito, não-violento etc. Por outro lado, uma ideologia está sempre ligada a uma testemunha

referencial (valor). A não-violência, por exemplo, ao amor cristão e, por conseguinte, a Jesus

Cristo. As tentativas de eliminar a dimensão dos valores – a fé, seja ela religiosa ou

antropológica – acabam por eliminar a própria fonte das ideologias61.

Segundo lembra que o Vaticano II declara funesta a divisão entre fé e vida (GS 43).

Em outra passagem se lê: “a fé orienta a mente para soluções plenamente humanas” (GS 11).

58 Ibid., p. 30. 59 Ibid., p. 31. 60 Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 159. 61 Cf. Ibid., pp. 160 e 165. – Para o desenvolvimento do conceito de “fé religiosa”, ver infra tópico 5.2, p. 65.

59

Ou seja, o cristão tem uma fé suficiente – a de Jesus – e deverá procurar meios adequados

para realizá-la “em meio aos problemas que a história coloca”62.

Assim, pois, a análise do resultado das ações humanas mostra que a fé sem a ideologia

é morta, “é má fé”, um querer e não querer ao mesmo tempo. Nestes termos o absoluto sem o

relativo deixa de ser absoluto porque não se realiza. Por outro lado, a ideologia sem a fé se

transforma em mecanismo desprovido de eficácia63.

Uma estrutura de valores, entendida sem a complexidade de sua realização efetiva, acaba servindo a valores diferentes. Uma estrutura de eficácia que esquecer a que valores serve perde, levada por sua pretensa autonomia, a mesma eficácia realizadora que exibiu em seu começo64.

Pode ser bom agora vermos brevemente a análise de algumas situações concretas para

que o que foi exposto em termos gerais ganhe maior inteligibilidade. Neste ponto a reflexão

de Segundo é muito rica. Limitar-nos-emos, porém, a dois casos específicos: quando a

ideologia nega a fé e quando a fé nega a ideologia.

4.2. A mútua exclusão entre fé e ideologia

a) A ideologia nega a fé. São conhecidos na história do Ocidente os enfrentamentos

entre fé e ideologia. Vale lembrar uma vez mais que quando falamos em “ideologia”, de

acordo com a terminologia proposta por Segundo, nos referimos igualmente à ciência. Pois

bem, não é de nosso interesse expor aqui tais enfrentamentos. Alguns deles chegam a

acontecer numa espécie de terra de ninguém, de tal modo que, no fim das contas, a vida

continua sem grandes sobressaltos. Segundo, porém, chama a atenção para um caso

específico. Trata-se do enfrentamento entre cristianismo – associado pela linguagem corrente

a uma fé – e socialismo – associado a uma visão científica da realidade. Aqui sim se travou

verdadeira batalha com mútuas anatematizações.

Uma vez mais os resultados são esclarecedores. Segundo mostra como a exclusão e o

descuido com a fé (antropológica) por parte das sociedades socialistas desaguaram na

canonização do êxito e na perda do sentido. O homem se deixou coisificar sob a primazia da

técnica e do rendimento em detrimento da ética65. Em última instância caiu-se na preocupação

unidimensional com a ideologia (instrumentalidade) necessária para implantar a sociedade

62 Ibid., p. 149. 63 Ibid., p. 159. 64 Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 217. 65 Cf. Id., La historia perdida, p. 74.

60

composta pelo novo homem, descuidando dos valores que se constituem como mola mestra

do processo todo. O resultado é que a sociedade do homem novo se tornou um mecanismo

que se conserva em si mesmo. Para economizar energia apostou-se no êxito e esqueceu-se do

para-quê dessa sociedade. Segundo lembra que também o capitalismo cai nesta armadilha ao

alimentar o consumo como fim em si mesmo66. Portanto, a experiência histórica mostra que a

ideologia não pode negar a fé pelo simples fato de perder seu horizonte.

b) A fé nega a ideologia. Segundo analisa também o outro lado do campo de batalha: o

que exclui a ideologia em favor da pureza da fé. Uma questão se impõe: será possível uma fé

que se baste a si mesma, uma fé que possua nela mesma os instrumentos concretizadores? A

resposta de Segundo é negativa, mas não faltam exemplos de exclusão das ideologias no

campo da fé. O próprio enfrentamento entre cristianismo e marxismo é exemplo disto. E ainda

hoje há enormes resistências, mesmo no campo da pesquisa teológica, em atribuir uma relação

de causalidade entre o uso dos meios históricos (relativos) e a concretização da nova terra (o

Reino de Deus).

Segundo mostra que esta pretensão de autonomia redutiva entre as dimensões

humanas acaba caindo numa ineficácia idealista, transformando a fé num sistema inumano e a

ideologia num mero mecanismo.

4.3. A elaboração científica

Não obstante o sentido negativo que a palavra ideologia adquiriu em nossa cultura, há

que se admiti-la como indicadora de uma dimensão humana. Uma vez mais Segundo mostra

que esta dimensão da eficácia não somente evidencia a existência da fé antropológica, mas

também que a duas atuam de maneira complementar. Um dos teóricos que mais falou das

ideologias deixou praticamente intocados os motivos existenciais que o levaram a empreender

tamanha crítica à ideologia burguesa. O compromisso humano de K. Marx o levou a criticar a

superestrutura da sociedade industrial, mas o seu método científico não deixa de ser um

instrumento (ideológico) a serviço dos valores da classe proletária com a qual estava

comprometido67.

K. Marx tinha uma fé diferente da dos seus opositores. Só assim se explica sua obra

científica desideologizadora. Por pura lógica uma ciência só pode ser desconstruída com um

66 Cf. Ibid., p. 75-79. 67 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 122-135.

61

instrumental axiológico – fé antropológica – diferente daquele que lhe deu corpo. A fé de K.

Marx – valores em defesa dos proletários – é a arma contra a ideologia (ciência) dos

adversários – os burgueses –, que justamente por terem outra fé (os valores da burguesia)

produzem outra ciência – a ideologia burguesa68.

Existe um segundo aspecto a ser dito: o fato de a ciência ser “usada” como

instrumento ideológico não quer dizer que ela careça de objetividade. A mais objetiva das

ciências pode ser usada em função de valores que lhe são totalmente alheios69. Segundo

adverte, ademais, que esta é uma maneira válida de compreender a questão, mas ainda deixa

fora um rico campo do agir humano: o da ingenuidade ideológica.

Nosso autor está certo de que a ciência objetiva pode ser instrumento a serviço dos

valores. O que caracteriza a ciência como objetiva não é tanto o fato dela pertencer ao mundo

do “concreto”, identificado com o “econômico”. Segundo mostra que a concretude da ciência

aumenta na mesma proporção de sua formalização. As ciências matemáticas são as que

gozam da maior exatidão. Neste sentido, só para citar um exemplo, é lícito, e às vezes

necessário, usar o método do materialismo histórico, contanto que não se caia no

economicismo. Além disso, toda teorização entra no terreno da ideologia. A ingenuidade

ideológica pode atingir até mesmo o mais científico dos homens. A questão que se impõe a

partir da análise de Segundo é que há sempre perda humana quando as duas dimensões não

são pensadas de maneira complementar70.

4.4. A reflexão filosófica.

Segundo mostra que é possível compaginar os resultados de sua análise com o estudo

do funcionamento da razão. Gregory Bateson, em sua obra Steps to an Ecology of Mind, em

um ponto de vista não teista, na contracorrente do pensamento positivista, afirma que o uso da

razão é precedido por “premissas” a-racionais, como fica patente nesta afirmação, citada por

Segundo a partir da edição em espanhol:

O ser humano… está ligado por uma rede de premissas epistemológicas e ontológicas que – independentemente de sua verdade ou falsidade últimas – se convertem parcialmente em autovalidantes (self-validating) para ele71.

68 Cf. Id., La historia perdida, p. 70. 69 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 130. 70 Cf. Ibid., 135. 71 BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1976, p. 344.

Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo I, p. 117.

62

Bateson, ao falar de “premissas epistemológicas e ontológicas” introduz o tema da

razão, em sua relação com a ação humana. Não é nosso objetivo fazer uma exposição

detalhada de sua tese. Para a finalidade que nos ocupa, a interpretação de Segundo é

suficiente:

A palavra “premissa”, com efeito, alude ao ponto de partida de um raciocínio, quer dizer, de um processo lógico onde todo o resto ou é o mecanismo do processo racional mesmo (consequentia), ou o resultado das premissas mais o processo racional, ou seja, conseqüências (consequens).

Pois bem, a premissa é precisamente o que se subtrai à razão, o que a precede e aquilo sobre o qual a razão trabalha. Da mesma maneira que o material bruto não depende da máquina que o converte em produto manufaturado. A premissa é a-racional. A razão trabalha sobre premissas que não são nem criadas nem controladas por ela72.

Segundo vê nesta análise do funcionamento da razão um paralelo de sua própria

análise da existência humana. As “premissas” auto-validantes de Bateson equivalem à

dimensão da fé antropológica, ao passo que a “razão” corresponde às ideologias73.

4.5. A linguagem

O ser humano tem necessidade de representar pela linguagem as duas dimensões da

existência: a do sentido e a da eficácia. Pois bem, Segundo entende que tal representação se

compagina com a dualidade básica das ações humanas e acontece por meio de linguagem

digital e icônica.

a) A linguagem digital: representação objetiva da realidade. A linguagem digital se

caracteriza por seu caráter convencional. É a representação mais consciente, com pretensões

de objetividade, e relacionada às definições conceituais, racionais, por conseguinte, exclusiva

do homem, embora este não a use exclusivamente. Verifica-se neste plano da linguagem uma

distância entre o “signo” e seu significado, ou seja, há uma relação de abstração. Esta

modalidade de representação agiliza a comunicação humana, mas tem uma desvantagem

quando se trata de comunicar valores, isto é, quando fala de relações interpessoais: por ser

“composta de signos arbitrários, não oferece garantias de verdade”74 e empurra sempre para a

verificação.

b) A linguagem icônica: representação existencial da realidade. A linguagem icônica

ao contrário se caracteriza por seu caráter existencial e simbólico. Consiste na apresentação da

72 SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo I, p. 117. 73 Cf. Ibid., p. 121. 74 Cf. Id., La historia perdida, p. 51.

63

“imagem” do que se quer comunicar. Neste caso, a distância entre o signo e seu significado

desaparece, dando lugar a uma modalidade de comunicação mais existencial, onde se vive o

que se comunica no próprio ato de comunicar. Neste sentido, só para dar um exemplo, ao se

transmitir o conceito de “amizade” a comunicação utiliza-se de elementos de uma amistosa

relação interpessoal.

É mister que a linguagem “analógica”, a dos símbolos vividos, imagens contempladas, realizações celebradas, nos ajudem a converter em vida o que, de outra maneira, permaneceria meramente intelectual, débil e vago75.

Na verdade, em matéria de percepção de valores, a linguagem icônica funciona como

um mecanismo de poupança energética.

Com se vê, sendo essencial para a existência do homem o perceber com certeza e rapidez as atitudes dos demais, a linguagem icônica joga um papel decisivo na conduta humana inter-relacional. Por esse caminho chego rápida, certeira e economicamente ao conhecimento da estrutura valorativa das pessoas com quem trato76.

Por outra parte, a sistematização crítica dos dados assimilados – a fim de não sacrificar

valores essenciais em troca de outros secundários – processa-se melhor por meio da

linguagem digital. Evidentemente que esta distinção entre linguagem digital e icônica

somente pode ser compreendida em seu funcionamento complementar. A vida humana é uma

rica combinação entre estes dois planos de linguagem.

5. O absoluto na existência humana

5.1. Os dados transcendentes

À primeira vista parece que fé e ideologia explicam toda a existência humana. A fé se

encarrega de definir um dever-ser, ao passo que a ideologia estuda os meios de eficácia. Por

um lado, se define o ideal (o absoluto), por outro, aquilo que queremos hipoteticamente (o

relativo), o que vale por sua eficácia instrumental. No entanto, como saber se determinado

valor será viável a longo prazo?

Em muitos casos a realidade parece pouco permeável aos nossos projetos. Outras

vezes sentimos que com um pouco de perseverança podemos vencer as dificuldades. Neste

ponto, a análise de Segundo nos conduz para uma área do atuar humano em que fé

antropológica e ideologia atuam juntas. A esfera da subjetividade interage com a da

75 Id., Teología abierta – III. Reflexiones críticas. Madrid: Ed. Cristiandad, 1984, p. 328. 76 Id., La historia perdida, p. 51.

64

objetividade. Desta interação resultam “dados” que nos informam sobre as possibilidades

totais que a realidade nos oferece para a realização de determinados valores. “É muito comum

que os valores que alguém se decide a seguir sejam determinados, em grande parte, pela

confiança (ou pela falta dela) que tem de poder realizá-los”77.

Tal confiança (ou desconfiança) baseia-se em dados que a experiência humana não

pode verificar.

Trata-se, pois, de dados. Não são valores, mas intervém nas opções valorativas de cada ser humano. Tampouco são ideologias, pois não constituem um sistema de eficácia comprovado na realidade. Sendo dados sobre a realidade “global”, transcendem toda a experiência78.

Sem os dados transcendentes os valores permaneceriam na mais absoluta abstração.

Um homem jamais confiaria o sentido de sua vida a determinado valor sem que fosse possível

uma aposta baseada na confiança de poder realizá-lo.

Segundo lembra que os dados transcendentes tanto podem ser negativos quanto

positivos. No primeiro caso a realidade parece surda em relação a nossos valores. Ao passo

que no segundo somos levados (pelos “dados” da realidade) a apostar – fé antropológica – que

no final da vida se verá que foi melhor ter vivido assim e não de outra maneira79. Assim, os

dados transcendentes nos dão a imagem do que nos espera, funcionam como uma “garantia”

de que o objeto da aposta, os valores ou um Valor absoluto, se tornará realidade gerando

satisfação existencial.

Segundo, em diálogo com Gregory Bateson – o já citado pensador americano que se

dedicou à reflexão sobre o funcionamento da mente humana – afirma que os dados

transcendentes são “premissas” que “pontuam a realidade”80. Esta é vista como uma

seqüência de acontecimentos. Assim como na produção de um texto, a determinação da

seqüência depende de onde se coloca o ponto. A experiência parece confirmar sempre os

dados transcendentes. Como vimos, eles podem ser negativos ou positivos. Dado que o ponto

final tem lugar onde os acontecimentos confirmam os dados transcendentes, o pessimista é

aquele que coloca o ponto após uma situação negativa, ao passo que o otimista encerra a

seqüência com um acontecimento positivo. Duas pessoas, mesmo compartilhando o mesmo

valor absoluto – o amor, por exemplo – poderão agir de maneiras diferentes, conforme o dado

77 Ibid., p. 32. 78 Ibid., p. 34. 79 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 210. 80 Ibid., p. 115.

65

transcendente de cada uma. Uma delas, não obstante sua convicção no que se refere ao que

pode dar sentido à vida, poderá fazer corpo mole na prática do amor sob alegação de que a

realidade é dura demais e o amor sempre se perde pelo caminho. A outra, pelo contrário, com

a mesma opção, mas com um dado transcendente diferente, poderá agir de maneira oposta por

acreditar que o amor nunca se perde e que ao final será a única coisa a permanecer81. Não

faltam na realidade fatos que confirmam os dados de ambas. Tudo depende da pontuação que

cada uma dá à seqüência dos fatos.

Segundo lembra que o objetivo da análise, cujos elementos principais esboçamos até

aqui, não era o de propor uma terminologia nova por mero capricho intelectual. Antes quis

desfazer alguns mal-entendidos que acabam por legitimar a já corrente divisão entre homens

de fé e de ideologia, como se isto fosse possível.

Uma de suas radicais intenções é fazer ver que, apesar das aparências, os problemas de uns e de outros são essencialmente os mesmos: o sentido da existência humana e as possíveis vias para responder a esse desafio elementar82.

E assim, ao cumprir esta tarefa, pensa poder repropor o problema de Jesus – este

homem que nos fala desde um passado histórico com os mesmos componentes antropológicos

do homem de hoje – resgatando-o de uma teologia fechada, “embora seja apenas como passo

preliminar para trazê-lo de volta ao que realmente foi, alguém significativamente presente na

memória da espécie humana”83.

5.2. A fé religiosa

Apresentamos até aqui os dados antropológicos fundamentais da análise de Segundo.

No entanto, não podemos passar adiante sem tocar em duas questões importantes: como a fé

antropológica se torna “religiosa”? E que relações mantém com a dimensão da eficácia, as

ideologias? A resposta a estas questões, de acordo com a análise de Segundo, depende de que

se leve em consideração um elemento que já deve ter ficado claro: o objeto da fé são os

valores, ou um Valor. E a fé religiosa não se caracteriza pela introdução de um “adicional” na

existência humana, mas pela elevação da opção concreta (por um valor) a um nível absoluto.

É interessante notar que aquilo que a sociologia qualifica como atitude religiosa se

coaduna muito mais com uma existência adulta. Tradição e comunidade, doutrina, costumes e

81 Id., La historia perdida, p. 31-37. 82 Id., El hombre de hoy, tomo I, p. 413. 83 Id., La historia perdida, p. 37.

66

ritos são dimensões e funções próprias de uma religião84 e, por conseguinte, exigem do

indivíduo certa fidelidade e ortodoxia. Exatamente como ocorre na existência adulta, quando

um valor é assumido absolutamente.

Vimos que a fé é produzida por valores percebidos como satisfatórios mediante

testemunho de outros seres humanos. Vimos também que o homem – se quer alguma eficácia

em seu projeto de vida – deverá hierarquizar sua escala de valores em função de seu ideal, ou

seja, de um valor supremo. Esta necessidade humana de escolher algo incondicionado foi

vista por muitos filósofos e teólogos como uma afirmação implícita de Deus85. No entanto,

para Segundo, a determinação do absoluto na existência humana não abandona o terreno das

testemunhas humanas – o do dever-ser – para finalmente se fiar em um Ser Absoluto,

incondicionado, Deus. Não se vê como isto seria possível. Certamente se dirá que Deus se

revela por meio de testemunhas referenciais humanas, mas isto deixaria intacto o problema do

critério que determina o caráter divino do testemunho humano86.

Os valores são múltiplos e hierarquizados pessoalmente por cada homem, de tal modo

que o absoluto de cada existência é sempre pessoal, mesmo quando um dado grupo

compartilha a mesma fé. O que caracteriza uma comunidade de fé não é fundamentalmente a

crença num Ser Absoluto, mas o compartilhar uma escala de valores. É evidente que isto não

exclui Deus da existência humana. Somente que o seu reconhecimento se dá numa etapa

posterior: “a revelação não substitui a testemunha humana com uma informação mais

fidedigna”87.

Segundo cita o caso concreto de Jesus que somente foi reconhecido como portador de

uma revelação divina por aqueles que previamente compartilhavam de seus valores. Sendo

assim, a fé em Deus

(...) radica, se me é permitida a expressão, no estar de antemão de acordo com ele. Frente a uma potencial revelação, o primeiro posicionamento válido – a chave hermenêutica – não é se Deus está aí, mas que Deus pode estar aí e se é aceitável para minha “fé” (antropológica)88.

84 Cf. KÜNG, Hans, “Introdução: o debate sobre o conceito de religião”. In: Concilium 203 (1986/1), pp. 5-10,

aqui p. 8. 85 Cf. SEGUNDO, La historia perdida, p. 55. - Segundo se refere a M. Blondel, J. Marechal, P. Tillich e W.

Pannemberg. 86 Cf. Ibid., p. 48. 87 Ibid., p. 94. 88 Ibid., p. 95.

67

Segundo lembra que certa vez o filósofo francês Nicolas Berdiaeff teria dito que a

questão decisiva não é se Deus existe, mas se Ele se justifica diante do tribunal dos valores

humanos. E ainda: “O Evangelho cristão confirma, ao que parece, esta louca ousadia”89.

Pois bem, de acordo com a compreensão de Segundo a fé tem um absoluto material e

um absoluto formal. Na articulação destes dois elementos é que se constitui a fé religiosa

como um modo próprio da fé antropológica. Aqui está também uma chave de compreensão da

fé religiosa que não fecha ao homem de hoje o interesse por Jesus. Ver-se-á uma vez mais que

em Jesus existem os mesmos componentes de fé antropológica e que são estes os que mais

poderão interessar ao homem de hoje. Vejamos como isto ocorre.

O absoluto material da fé antropológica são os valores. Associados a eles estão os

dados transcendentes. Vimos que tais dados exercem papel importante nas funções cognitivas

do homem. Eles não são proporcionados somente pelas relações interpessoais imediatas, mas

também pela memória da espécie humana. Segundo afirma que não são mera acumulação de

informação de uma geração para a outra, mas fazem parte de um processo de aprender a

aprender. Compõem uma visão global da vida e formam um acervo de informações aceito

imediatamente. Se não fosse assim o homem não teria energia suficiente para estruturar sua

vida de maneira coerente. Ademais, sem os dados transcendentes as sucessivas gerações

deveriam começar sempre da estaca zero90.

Pois bem, a fé se torna religiosa quando os dados transcendentes de determinada

tradição espiritual são conscientemente assumidos. Mas existe algo mais que este absoluto

material na fé religiosa. Há também o grau ou intensidade com que os dados transcendentes

são assumidos, ou seja, o absoluto formal da fé.

O absoluto formal é o modo ou intensidade da confiança no absoluto material. Diante

dos desafios históricos e aprendizados novos, o sujeito está comprometido a voltar à fé

anterior para daí dar continuidade no processo de aprender a aprender. Esta é a fé absoluta, ou

seja, propriamente religiosa91. Dessa forma, a fé conduz a uma verdade sempre mais profunda

89 Ibid. – Não há, neste caso, referência bibliográfica em relação a Berdiaeff. Na nota 28 Segundo explica melhor

esta questão: “De uma maneira similar se expressa o Vaticano II, ainda que começando pelo extremo oposto. Como já se viu, diz que na ‘origem do ateísmo podem ter parte não pequena os cristãos... inclusive com os defeitos de sua vida religiosa, moral e social’ (GS 19). Isto leva implícito que o homem não pode depositar sua certeza de fé diretamente em Deus passando por cima de testemunhos humanos. E explica o aviso evangélico de que todos serão julgados no nível próprio da fé antropológica (Mt 25,31). O ser ‘religioso’ não liga diretamente o ser humano com o Deus ‘real’”.

90 Ibid., pp. 99-100. 91 Que não seja exclusivamente Deus o objeto da fé, inclusive quando esta assume um caráter religioso, fica

patente também no fato de a sociologia religiosa não encontrar outra maneira de nomear grandes tradições

68

e total enquanto se a tem. A fé perde todo o seu dinamismo (aprender a aprender em vista de

conhecimentos mais ricos e profundos) assim como o cientista perde sua razão de pesquisar se

perde a convicção de que se pode encontrar a verdade dos fatos ou da realidade (caso do

agnosticismo)92.

Creio que depois de ter dito isto é bom não descuidar do que realmente importa no que

se refere ao discurso sobre a fé:

O leitor recordará o que foi aqui, permanentemente, objeto de atenção: o verdadeiramente importante é a determinada estrutura de sentido e de valores que cada um constrói para dar significação à sua existência dentro do real. Que essa fé seja ou não religiosa – e mesmo que, sendo religiosa, mencione Deus ou não, explicitamente – constitui, sim, uma diferença, mas não a diferença central93.

Neste sentido, no que concerne à tradição cristã, o maior legado de Jesus de Nazaré é a

sua fé. Esta pode realmente interessar ao homem de hoje, não por oferecer uma técnica para

se alcançar a salvação, mas por ser fonte de sentido para a humana tarefa da construção da

história. Uma técnica religiosa jamais esteve no horizonte de Jesus. Aliás, enredou-se em

inúmeras polêmicas com seus adversários exatamente por dar primazia aos valores do coração

ante os mais variados meios de eficácia. Não que os meios não fossem valorizados e julgados

necessários, mas porque somente deveriam valer enquanto instrumentos a serviço da

humanização.

Segundo pergunta ainda se ao tornar-se religiosa a fé antropológica se desvencilha da

ideologia. A resposta, já se sabe, é negativa: a complementariedade entre a dimensão do

sentido e a da eficácia mantém-se também neste caso. Segundo indica três conseqüências da

pretensão de uma fé “religiosa” que negue os sistemas “humanos” de eficácia, as ideologias94.

A primeira conseqüência é que uma fé nestes termos acabaria por absolutizar seus

meios. Diante das mudanças históricas ficaria imóvel. Com um instrumental prático

ultrapassado, cairia numa ineficácia idealista: ficaria esperando a realidade se dobrar aos seus

caprichos. Não somente perderia eficácia, mas também credibilidade. Suas testemunhas

passariam a transmitir (por meio de linguagem icônica) valores diferentes ao se recusarem a

usar meios “atualizados”. Um exemplo esclarecedor é o da esmola, que no passado

significava o mais genuíno serviço aos pobres. Atualmente, em sociedades mais avançadas,

como o budismo e o hinduísmo senão considerando-as como “religiões”. Mesmo sabendo que aí não se encontra uma concepção de um Deus propriamente pessoal.

92 Cf. Ibid., p.100. 93 Ibid., pp. 101-102. 94 Cf. Ibid., p. 103-104.

69

nas quais os serviços sociais são custeados por impostos, aquele mesmo meio de eficácia

adquire outro sentido e pode até se converter em um desserviço.

A segunda conseqüência da rejeição de meios provenientes de outras fontes é a de

converter a fé em um sistema inumano, fora de contexto. Ou se realiza plenamente ou então

prefere permanecer irrealizado. Quer dizer, na prática não serve em termos de humanização.

Fé “morta”, portanto. A propósito disto, e considerando o contexto latino-americano, pergunta

Segundo, relativamente à fé cristã, numa clara referência a certo lugar-comum segundo o qual

quem tem o Evangelho – supõe-se que Jesus e sua fé – e a Tradição cristã não precisa das

“ideologias”:

Quem é que “tem” Jesus Cristo num continente – supostamente cristão durante quatro séculos – onde a imensa maioria dos homens continua vivendo na mais inumana das condições?95

Finalmente, Segundo mostra que uma religião que rejeita a imperfeição dos sistemas

humanos de transformação (ideologias) se torna ela mesma um instrumento de salvação, vale

dizer, uma ideologia. A fé já não vale pelo que significa no processo de construção da

história. Não importa a fé de Jesus, seu sistema de valores, mas a fé em Jesus como um

instrumento poderoso para colocar o homem em boas relações com Deus, independentemente

da história. Uma religião assim é desumanizadora96. E sugere, citando um teólogo espanhol:

José Ramón Guerrero observa – e que me perdoe, se não é isto o que quer dizer – que “se economizariam muitos esforços perdidos em ganhar crentes em Jesus, se tentássemos interessar os homens naquilo que foi realmente original na vida de Jesus: sua fé, ou seja, a fé de Jesus”97.

Ao fim de sua análise, Segundo afirma que “é necessário colocar um ponto final num

campo inesgotável”98. E que a finalidade de rastrear a existência humana não poderia ser outra

senão a de abrir caminho na busca do significado de Jesus de Nazaré para o homem de hoje99.

95 Ibid., p. 104. 96 Ibid., pp. 104-105. 97 El otro Jesús. Salamanca: Ed. Sigueme, 1976, p. 315. Apud: SEGUNDO, La historia perdida, p. 105. 98 Id., El homebre de hoy, tomo I, p. 409. 99 Id., La historia perdida, p. 105.

CAPÍTULO III – REFLEXÃO CRISTOLÓGICA

A reflexão cristológica de Segundo insere-se na perspectiva do diálogo com o homem

de hoje. Pode-se dizer que nosso autor delineia um projeto de cristologia na perspectiva da

teologia fundamental.

No primeiro tópico deste capítulo apresentaremos alguns aspectos metodológicos.

Veremos que a sensibilidade em relação ao interlocutor, a preocupação com uma linguagem

adequada e a definição daquilo que realmente pode interessar ao homem de hoje são aspectos

marcantes da reflexão cristológica de Segundo.

Num segundo momento apresentaremos as linhas gerais da investigação histórica de

Segundo. Trata-se do acesso aos dados mais fidedignos de Jesus de Nazaré, aquilo que pode

efetivamente se constituir como o fundamento de uma teologia. Finalmente, apresentaremos

as grandes linhas do fazer teológico de Paulo tal como o interpreta Segundo. De acordo com o

teólogo uruguaio, a teologia de Paulo é um caso paradigmático de fazer teológico, uma vez

que realiza com maestria a generalização antropológica do significado de Jesus de Nazaré.

1. Uma cristologia na perspectiva da teologia fundamental

A perspectiva da teologia fundamental1 no projeto de cristologia de Segundo, em seus

aspectos metodológicos mais específicos, tal como o interpretamos, define-se através dos

seguintes pontos: por sua intenção de dialogar com ateus; preocupação com a linguagem e a

busca pelos valores que conformaram a “história” de Jesus de Nazaré. Veremos que este

último elemento perpassa os demais como um fio que dá coerência e unidade ao discurso em

geral.

1 Segundo entende que toda a teologia deve ser feita na perspectiva da teologia fundamental. Aliás, esta é uma

opinião comum na atualidade: a teologia dogmática deve se fazer compreender por qualquer pessoa, não somente pelos iniciados na fé cristã. Esta compreensão precisa associa sua cristologia à questão do diálogo.

71

1.1. Uma cristologia para o homem de hoje

O título acima coloca-nos, de saída, diante de uma questão importante para a

compreensão do projeto de Segundo: a quem nosso autor se refere quando diz “o homem de

hoje”? Comecemos, pois, com algumas considerações sobre o seu interlocutor. E não o

faremos a título de curiosidade simplesmente, mas porque nossa chave de leitura – a relação

entre diálogo e reflexão cristológica – nos faz perceber aí um elemento importante.

Segundo faz menção ao seu interlocutor já no título de sua principal obra de

cristologia2: o homem de hoje. Uma referência que nos parece à primeira vista um tanto

genérica, pois coloca um singular onde estamos acostumados a ver um plural. É fato que a

linguagem corrente cataloga os homens agrupando-os sob o signo das mais variadas etiquetas.

Sem dúvida, duas delas nos vêm à mente quando o assunto é teologia: os homens estão

divididos entre os que têm uma fé – ou simplesmente uma religião – e os que não a têm e

seguem uma ideologia. E haveria ainda os que aparentemente não têm nenhuma coisa nem

outra.

Já refletimos sobre isto no segundo capítulo de nossa dissertação, quando expusemos a

análise da existência humana proposta por Segundo na parte metodológica de sua cristologia.

Vimos que o caráter evidente desta divisão se desfaz por completo. Fé e ideologia são

dimensões antropológicas que conformam a existência de qualquer homem,

independentemente de filiação religiosa ou ideológica.

Pois bem, o elemento que queremos destacar dá um matiz peculiar ao interlocutor de

Segundo. Ele o explicita já na introdução ao tomo II/1 de sua cristologia ao declarar que

pretende “escrever um Jesus para ateus”3 (grifo do autor). Do homem de hoje, indicado de

maneira geral no título, passa-se ao ateu, no desenvolvimento da obra. Pode parecer descuido

ou simplesmente uma contradição, dado que os ateus, longe de constituírem o tipo de homem

de nosso tempo, são na verdade uma minoria, mesmo considerando certo avanço do ateísmo

em meios populares.

Na verdade, Segundo situa sua intenção de dialogar com ateus de maneira muito

precisa “dentro das coordenadas do primeiro volume”4 de sua cristologia, ou seja, na

2 Trata-se da obra El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret, em dois tomos, sendo que o segundo compõe-se de

dois volumes. Cf. supra, p. 10, nota 1. 3 SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 25. 4 Ibid. – O primeiro volume ao qual se refere Segundo é o que o editor qualificou como o Tomo I. A temática

deste tomo é apresentada de modo mais sucinto na introdução geral da obra La historia perdida… Esta, tantas

72

perspectiva antropológica que conforma a vida de qualquer pessoa. Nosso autor vê o ateu para

além da imagem estereotipada que comumente se lhe atribui. O ateísmo é entendido como

pressuposto metodológico para se aproximar de Jesus com algum sentido. E basta que sejam

ateus “potenciais”:

Com efeito, cremos ter mostrado em nosso primeiro volume que quem não está disposto a colocar certos valores humanos como critérios prévios e superiores a qualquer religião determinada não será capaz de reconhecer a importância e o significado de Jesus, e ainda que depois, eventualmente, o declare Messias, Filho de Deus ou Deus mesmo, isso não impedirá – antes pelo contrário – que faça de Jesus um ídolo5.

Temos aí, portanto, a caracterização do interlocutor que Segundo supõe em sua

cristologia. Trata-se, pois, do ateu ou daquele capaz de colocar entre parênteses sua eventual

crença em Deus como critério prévio para se colocar diante do homem Jesus de Nazaré. Na

verdade esta é uma maneira peculiar de determinar o método para uma cristologia desde o

Jesus histórico. E com a vantagem de poder dialogar não somente com os crentes, mas com

qualquer homem. Jesus foi interpretado desde a primeira geração cristã. E esta interpretação

pode ser significativa para um homem de hoje, desde que também nós possamos ter acesso ao

Jesus que foi interpretado, para assim nos inspirar no Espírito que moveu sua vida. Ou que,

pelo menos, recuperemos as perguntas humanas concretas dos seus primeiros interlocutores.

Neste particular, Segundo alerta para o perigo de falsos interesses por Jesus. Nada

impede que hoje se faça uma leitura a partir da “letra morta”, que ao invés de se “inspirar” no

“inspirado” busque segurança ou soluções mágicas para os desafios atuais6.

Quer dizer, esquivando-se do risco sadio de interpretar de novo a Jesus diante de problemáticas novas, perante as quais as resposta de Jesus, tomadas ao pé da letra, trairiam seu Espírito. A gente as estaria considerando como algo magicamente dotado de verdade. E isto terminaria levando a dar, em nome de Jesus, soluções desumanas (cf. GS n. 11)7.

Pois bem, muitos condicionamentos limitam ao homem de hoje o interesse por Jesus

de Nazaré. E não se trata apenas de certo “desinteresse” – ainda que atualmente bem menos

intenso – por Deus devido, em termos gerais, ao contexto da modernidade. Este personagem

humano e histórico que nos olha desde seu rico e denso contexto é associado à fundação de

uma das grandes religiões, a cristã, e, além disso, sua atividade, segundo os documentos

vezes citada neste trabalho, configura-se como uma espécie de resumo – embora não se reduza a isto – de toda a cristologia anteriormente publicada.

5 Ibid. 6 Cf. Ibid., p. 16. 7 Ibid.

73

neotestamentários, se move dentro do campo do “religioso”. Isto, evidentemente, induz ateus

e crentes – a realidade pode facilmente confirmar – a pensar que Jesus, sendo o Filho de Deus

ou o próprio Deus tal como o proclama sua Igreja, pode interessar somente aos cristãos ou, de

modo geral, aos “crentes” ou àqueles que manifestam alguma propensão ou disposição para

tornarem-se tais.

Segundo nos mostra que este lugar-comum – tão consolidado ao ponto de gozar de

certo status sociológico – é na verdade um mal-entendido que esconde, até mesmo aos

crentes, o verdadeiro significado de Jesus de Nazaré8. Não se quer dizer com isto que Jesus

não esteja relacionado à fundação da Igreja – ou simplesmente da religião cristã – e que não

tenha mantido uma genuína e especial relação com Deus. O que ocorre, na verdade, é que a

experiência religiosa de Jesus foi tão peculiarmente marcada por certos valores que o levou a

empreender uma profunda crítica à estrutura religiosa de Israel, esta fortemente atrelada a

uma prática desumanizadora. A crítica religiosa de Jesus supõe que para ele era melhor viver

sem aquela religião desumanizadora – por sua incapacidade de perceber a vontade de Deus

devido a sua “dureza” de coração – do que continuar com ela por medo de se indispor com a

divindade. Em outras palavras, somente a partir de valores humanizadores pode-se constituir e

praticar uma religião de acordo com a vontade de Deus. E é surpreendente que a importância

desta crítica ainda não tenha sido reconhecida nem mesmo pela religião que tem por missão

preservar, ao longo dos séculos, o legado de Jesus9.

Nesta perspectiva o ser ateu torna-se condição hermenêutica para nos aproximarmos

de Jesus mesmo. E isto não seria nenhuma novidade em termos históricos, pois, ao que

parece, teria ocorrido com as primeiras comunidades cristãs. Não se pode negar que

produziram uma interpretação teológica de Jesus – os Evangelhos, por exemplo –, de certo

modo também religiosa, mas é fato que, em sua época, foram “motivo de escândalo por sua

notória falta de religiosidade”10.

Ademais, esta postura metodológica cumpre outras funções importantes. Por um lado,

pode apresentar Jesus de modo significativo àqueles que por seu ateísmo, agnosticismo ou

exposições insuficientes pensam que Jesus nada tem a lhes dizer no hoje da história11. Por

outro, esta apresentação pode ser muito útil também aos crentes, que têm assim a

8 Cf. Id., La historia perdida, p. 15. 9 Cf. Ibid. p. 14. 10 Ibid. 11 Cf. Ibid., p. 358.

74

oportunidade de um acesso o mais possível direto e crítico a – diante de, diz Segundo – Jesus

de Nazaré e seus valores, ou seja, sua fé.

1.2. A questão da linguagem

Segundo se preocupa com a questão da linguagem. Tal intento se justifica no fato de

que a Jesus de Nazaré a tradição cristã agregou uma linguagem esotérica que o torna quase

sem sentido para o homem moderno, inclusive ao homem imerso em contextos de arraigada

religiosidade cristã. Isto se deve em grande parte ao fato de que para falar sobre Jesus têm-se

priorizado o emprego de uma linguagem conceitual (digital) e religiosa.

Como temos visto, a linguagem digital tem por finalidade dar definições conceituais.

O seu uso na cristologia visa dizer com certa precisão quem é Jesus. Disto, como se sabe,

ocuparam-se os cristãos dos primeiros séculos, dado que havia um pluralismo de

interpretações, como o próprio Novo Testamento poderá mostrar, até que no Concílio de

Calcedônia (Século V) a Igreja logrou definir com precisão a questão cristológica. De lá para

cá se tem mantido, com o apoio do magistério eclesial, a unidade de interpretação de Jesus. É

verdade que a constatação da exegese histórico-crítica, no Século XIX, de que o Jesus dos

evangelhos é também interpretado sobreveio como uma crise12.

Não nos interessa pôr em relevo os pormenores desta questão. Para o propósito que

nos ocupa, vale destacar a constatação de Segundo de que o uso quase unilateral da linguagem

conceitual em formulações dogmáticas para falar de Jesus deixou à sombra uma área da

linguagem humana decisiva para que alguém ou algum conteúdo possa causar interesse.

Trata-se da linguagem existencial – icônica, na terminologia empregada por Segundo – que

possibilita a comunicação de valores entre pessoas. Não se pode negar que o dogma

cristológico causa interesse no homem de hoje. A questão é saber que tipo de interesse

suscita. Não se descarta a possibilidade de que se faça uma adesão – fé religiosa – a Jesus por

motivos que não se compaginam com aquilo que efetivamente ocorreu com seus

interlocutores imediatos. De alguma maneira, não importa o ponto de partida, se da definição

dogmática ou do Jesus histórico, tem-se que chegar àquilo que verdadeiramente pôde fazer de

Jesus um personagem interessante a seus discípulos e às multidões.

E isto, evidentemente, depende do uso adequado da linguagem. De acordo com a

análise antropológica de Segundo – que apresentamos no capítulo anterior – não se pode

12 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo II/1, pp. 40-41.

75

chegar diretamente à fé religiosa sem que antes se passe pela fé antropológica. Em outras

palavras, uma fé antropológica somente pode ser assumida absolutamente (tornar-se fé

religiosa) na medida em que esta mesma fé – mundo de significado e de valores – se deixe

comunicar por meio de uma linguagem que faça a ponte entre o mundo do sentido que se

pretende transmitir e o mundo do sentido presente na expectativa do interlocutor13.

Esse mundo de significação e de valores é o que Jesus designa com o título de “reino de Deus”. E sua afinidade com um mundo paralelo de valores, existente em alguns de seus ouvintes – pelo menos de maneira incoativa, pois ainda precisam de conversão – é, logicamente, o que lhe permite dizer que a proximidade desse “reino” constitui uma boa notícia14.

Em uma palavra, o que Segundo afirma, e que estamos tentando enfatizar neste tópico,

é que toda comunicação humana ocorre por meio de conceitos e imagens – dígitos e ícones –

ou seja, através de linguagem digital e icônica. E que o emprego desta última é indispensável

para a comunicação de valores, isto é, para dizer qual foi a fé de Jesus. Este tipo de linguagem

foi utilizado por Jesus para transmitir sua mensagem. Ele imaginou a felicidade humana como

um Reinado de Deus, cuja proximidade constitui-se como uma boa notícia destinada a

acontecer na terra como no céu. E assim pôde veicular valores interessantes aos seus

interlocutores, a tal ponto de despertar neles as mais variadas interrogações sobre quem ele

é15.

Outra limitação apontada por Segundo está de certo modo associada ao uso unilateral

da linguagem conceitual. A apresentação do dogma – Filho de Deus, Verbo ou Deus mesmo –

liga Jesus ao campo da linguagem religiosa e sua terminologia própria, especialmente ao

termo Deus. Se isto não chegou a ser um problema de comunicação no contexto das

cristologias do Novo Testamento, hoje, pelo contrário, pode induzir a enormes mal-

entendidos. Segundo não é contrário ao uso deste tipo de linguagem. Apenas faz ver que ele

pode adquirir um matiz diferente conforme seja usado num contexto que já não é aquele

próximo de Jesus, no qual os termos são carregados de sentido bem específico.

Admitimos, isto sim, que é perigoso, pelo menos quando (...) não traz consigo um contexto suficientemente denso ou explícito para poder eventualmente corrigir o que o leitor ou ouvinte coloca sob o termo “Deus”16.

13 Cf. Ibid. p. 17. 14 Ibid. 15 Cf. Ibid., pp. 18 e 30. 16 Ibid., p. 21.

76

A título de exemplo, pode se dizer que um contexto denso e específico, capaz de

corrigir eventuais equívocos, ao qual se refere Segundo, seria como aquele que tinham os

evangelhos. Evidentemente que Jesus situa-se no contexto global da tradição que o precede.

No que se refere ao termo “Deus”,

tanto Jesus, quanto a comunidade cristã primitiva, privilegiam nele, isto é, no Antigo Testamento, (...) certas tradições específicas, como a de Elias-Eliseu, o profeta semelhante a Moisés, o servo Sofredor do segundo Isaías etc., com suas correspondentes imagens do divino. Isso faz com que a palavra “Deus” soe nos evangelhos, se olharmos bem, de uma maneira muito mais precisa e profunda do que num texto atual, já que sua implantação na cultura “ocidental” lhe fez perder, em grande parte, a referência a tais tradições, pelo menos para o leitor comum17.

A esta correção soma-se outra tão importante quanto decisiva. Ela teria sido

introduzida por Jesus e postula que as atitudes humanas são mais fundamentais que os

distintivos e aspectos formais da religião. Surpreende o fato de que para Jesus os idólatras

ninivitas superavam em ortodoxia – em termos de significação existencial – os mais

ortodoxos teólogos do farisaísmo (cf. Mt 12,39; 16,4 e par)18.

Esta relativização das distinções introduzidas pela linguagem religiosa (cf. Gl 3,28; Rm 10,12; 1Cor 12,13; Cl 3,11) parecem destinadas (sic) a mostrar o perigo especial da linguagem quando aplicada ao sagrado e a necessidade que se segue de passar pelo critério de atitudes (mundo de significação) humanas para saber se se está falando da mesma coisa quando se empregam palavras idênticas19.

A unificação do termo Deus tal como se processou no Ocidente torna ainda mais

ambígua a linguagem religiosa. O que se quer dizer quando falamos que Jesus é o Filho de

Deus ou Deus mesmo? Que significa, hoje, dizer que Jesus é o “redentor” da humanidade?

Somente a esfera da significação (valores) existencial poderá precisar os conceitos. O mesmo

ocorre quando postulamos que há um abismo – significativo – entre ateus e crentes.

Aliada a esta questão está o uso que se faz dos textos bíblicos. Segundo sabe que para

ser conseqüente com as razões até aqui apresentadas há que se processar uma seleção dos

textos neotestamentários para falar sobre Jesus para o homem de hoje. E isto não somente

porque dois milênios nos separam de Jesus. Este era plenamente humano e também precisou

acomodar sua linguagem ao contexto de sua época. Assim também os teólogos da Igreja

primitiva. Um exemplo emblemático é o do autor de Hebreus que, sensível à especificidade

de seu contexto, evita o uso de palavras de viés “político”, por mais que estas tenham

aparecido nos discursos de Jesus. Nesta mesma perspectiva, nosso autor evita o uso de textos 17 Ibid., pp. 21-22. 18 Cf. Ibid., p. 22. 19 Ibid.

77

por demais vinculados ao contexto religioso próximo de Jesus. Um exemplo disto são os

textos que permitem uma reflexão sobre o sentido redentor da morte de Jesus. Segundo evita-

os porque acredita que o campo semântico próprio desta temática – o cultual – já não

comunica aquilo para o qual foi criado20.

Sem dúvida a razão mais profunda deste criterioso manejo da linguagem empreendido

por Segundo é a sua explícita intenção de escrever uma cristologia que seja uma ferramenta

para dialogar com o homem de hoje, independentemente de que seja ou não “crente”. Sua

busca pelo sentido de Jesus de Nazaré situa-se na perspectiva de uma cristologia fundamental.

De fato, a apresentação daquilo que hoje encontramos de mais fidedigno e interessante na “história” de Jesus, a um leitor que pode não ter a fé cristã, só pode ser o “fundamento” de uma teologia21.

E o que poderá interessar em Jesus de Nazaré ao homem de hoje? Segundo parece

responder com sua peculiar compreensão do uso da linguagem humana:

Por todas as razões expostas, cremos que os homens devem comunicar entre si ampla, lenta e profundamente seus respectivos mundos de sentido antes de começar a discutir se comungam ou não uma fé “religiosa”. Em outras palavras, somente sobre uma ponte solidamente estabelecida de fé antropológica a questão religiosa sobre Jesus adquire relevância e precisão22.

1.3. A “história” de Jesus: fundamento da cristologia

Esbocemos agora uma resposta a uma questão implícita desde o início deste capítulo:

o que Segundo entende por “cristologia”?

Se olharmos bem, em termos gerais, a resposta já foi dada. Uma cristologia deve ser

uma boa notícia ao homem de hoje. Seu fundamento constitui-se daquilo que efetivamente

pôde transformar Jesus num personagem interessante aos seus interlocutores mais próximos:

sua estrutura de sentido – seus valores – e os meios de que se utilizou para obter alguma

eficácia em sua atividade, ou seja, a sua “história”. Em outras palavras, a fé antropológica de

Jesus e a maneira como enfrentou os desafios próprios de seu tempo poderão, efetivamente,

interessar ao homem de hoje. A reflexão cristológica será, portanto, uma volta, desde o

homem de hoje, com suas perguntas e desafios, até Jesus Nazaré.

Segundo define os marcos teóricos de sua busca a partir de coordenadas provenientes

de sua reflexão sobre o método e de sua análise antropológica. Todo conhecimento humano – 20 Cf. Id., La historia perdida, pp. 357-358. 21 Ibid., p. 359. 22 Id., El hombre de hoy, tomo II/1 p. 23.

78

a teologia, inclusive – é um discurso interessado e situado. A investigação histórica sobre

Jesus de Nazaré não pode negligenciar este fato. A propósito disto, Segundo lembra que uma

observação crítica que se tem feito à teologia latino-americana afirma que esta

não quis ou, mais provavelmente, não ousou ou não tem podido estruturar um modo de pensar próprio, coerente e sistemático sobre Jesus Cristo. Dito em palavras mais técnicas: que à teologia latino-americana – quer a chamemos ou não de teologia da libertação – falta uma “cristologia”23.

Segundo não entra nesta questão: “demos por concedido o fato”24. Mas insiste com a

pergunta sobre o que se entende por “cristologia” nesta observação crítica. Recorre às

sutilezas da terminologia e constata que em termos gerais tanto as cristologias “a partir de

cima” quanto as cristologias “a partir de baixo”25 dirigem a Jesus de Nazaré perguntas às

quais este terminantemente recusou-se a dar respostas. De fato, o termo “cristologia” é uma

etiqueta com que se nomeia o discurso – logia – sobre Cristo (Messias). Este termo indica

uma função, mas, como se sabe, rapidamente passou a compor o nome próprio de Jesus. Por

isso, em ambos os casos acima referidos, a cristologia acaba sendo um estudo sobre uma

pessoa e não sobre uma categoria ou função. E não há como não ser assim. O decisivo neste

caso é o tipo de pergunta que inicialmente se faz. Segundo nota que a teologia acadêmica,

devido à preocupação com a cientificidade e neutralidade do discurso, interroga a Jesus a fim

de obter dados históricos precisos sobre quem é ele. A preocupação primeira é dar uma

definição de Jesus.

Se por cristologia se entende um discurso estruturado em torno de perguntas desta

natureza, Segundo afirma, terminantemente, que o seu projeto, pelo menos em seu ponto de

partida, deverá ser definido muito mais na linha de uma anti-cristologia, dado que não quer

dirigir a Jesus perguntas às quais ele não quis responder. Na verdade, seu projeto quer “ser um

falar sobre Jesus que abra caminho para considerá-lo como testemunha de uma vida humana

ainda mais humana e libertada”26. Jesus mesmo exigiu que se apostasse tudo por ele (seus

valores) sem pedir sinais do céu (sobre o que ele é)27.

23 Ibid., p. 27. 24 Ibid. 25 Esta terminologia foi por empregada W. Pannenberg para indicar os possíveis pontos de partida de um

discurso sobre Jesus: a partir das categorias de messianidade ou divindade (“a partir de cima”) ou a partir da história concreta (“a partir de baixo”). Cf. Fundamentos de cristología. Salamanca: Ed. Sígueme, 1977, pp. 45 e 51ss. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 30.

26 SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 29. – Seria apressado, a partir do que foi dito, concluir que Segundo não quer fazer uma cristologia – discurso sobre quem é Jesus – ou que pense ser impossível tal intento. Tanto é verdade que o volume 2 do segundo tomo de sua obra El hombre de hoy ante Jesús de Nazaret se ocupa mais especificamente com esta questão: traz em seu subtítulo o termo “cristologías”. Há, isto sim, uma especificidade no tipo de pergunta e um movimento na reflexão, que vai da história à

79

O que se pode saber com mais certeza sobre Jesus é que evitou positivamente que o definissem (que dissessem o que era) antes de captar que valores representava em suas palavras e obras28.

Na verdade Segundo postula um acesso interessado a Jesus.

Isto deveria levar-nos a formular a pergunta essencial. Não teria havido “cristologia” alguma se o homem chamado Jesus de Nazaré não tivesse interessado poderosamente a alguns de seus contemporâneos. Donde veio esse interesse? E pode ele chegar até nós?29

Segundo afirma que este interesse por Jesus tem dois pólos que se há de considerar.

Ele foi testemunha humana de certos valores diante de pessoas ou grupos. Seus ouvintes eram

igualmente testemunhas, pois traziam consigo certas expectativas. Por isso, ao longo do

tempo suas palavras e seus gestos suscitaram a atenção, adesão ou rejeição. Somente a partir

deste encontro seus interlocutores puderam tirar conclusões acerca do que é Jesus. Isto nos

leva a concluir que um Jesus solitário, isolado de seus interlocutores por um rigoroso método

científico, na hipótese de isto ser possível, nada teria a nos dizer. De um procedimento que

deixasse fora o interesse dos primeiros intérpretes e nossas próprias expectativas jamais

poderia surgir uma cristologia. Ademais,

(...) seria um mal-entendido enorme, além de ser um anacronismo, fazer um discurso sobre o que Jesus é a pessoas que, atualmente, em suas existências normais, não se interessam por ele. A pessoas que, se se reproduzisse hoje o fato exato, passariam a seu lado como passamos nós ao lado de um acontecimento estranho, mas que não nos atinge30.

De acordo com a compreensão de Segundo, o interesse por Jesus não é suscitado

quando se chega a demonstrar quem ele é. Se se chegou a reconhecer nele Deus ou uma

revelação divina é porque efetivamente foi humanamente significativo. Um homem

interessante e capaz de tornar os seus ouvintes “melhores do que eram”31, a tal ponto que estes

o consideraram digno de fé.

Mesmo que uma cristologia parta do que é Jesus – o Verbo, Filho de Deus, Messias –

deverá colocá-lo no único lugar que o torna compreensível ao homem: “e habitou entre nós; e

nós vimos a sua glória” (Jo 1,14).

interpretação de Jesus pela comunidade de fé. Uma cristologia é uma interpretação. Sem a história correr-se-ia o risco de ficar com a interpretação da interpretação.

27 Cf. Id., La historia perdida, p. 15. 28 Id., El hombre de hoy, tomo II/1, p. 30. 29 Ibid., pp. 30-31. 30 Ibid., p. 31. 31 Ibid., p. 33.

80

Pois bem, Segundo está convencido que a “história” de Jesus pode interessar ao

homem de hoje. Isto equivale a dizer que Jesus tem algo significativo para comunicar. O

problema é que Jesus não fala diretamente com quem hoje eventualmente lhe dirige uma

pergunta. Ele fala por meio de suas testemunhas. E estas, já se sabe, o interpretam.

Esta questão ganha contornos bem precisos nos debates que têm ocupado os teólogos a

partir do Século XIX. Desde Calcedônia (Século V) a Igreja manteve, com o apoio do

magistério, a unidade de interpretação cristológica. Viveu-se longo período de calmaria, até

que a descoberta do Jesus histórico sobreveio como uma onda que sacudiu as águas do mar

teológico. Descobriu-se que o Jesus que nos chega pela tradição é interpretado pela

comunidade cristã32. Tal constatação desencadeou sucessivas buscas pelo homem Jesus, livre

da interpretação dogmática.

Não é de nosso interesse abordar esta questão específica, até porque nosso autor não o

faz ostensivamente. Para o propósito que nos ocupa vale destacar que desde então os teólogos

se deparam cada vez mais com a “alternativa cristológica moderna”33: “deve a cristologia

basear-se em Jesus mesmo, ou, antes, no querigma de sua comunidade?”34. Evidentemente

que hoje há certo consenso de que o caminho intermédio é o mais adequado. Mas a alternativa

está posta. Mesmo que o resultado do processo harmonize esta polaridade, não há como não

partir de um deles.

Esta alternativa jamais teria se tornado um problema relevante se não fosse o fato de

que somente podemos chegar a Jesus por meio do testemunho da comunidade de fé. Em

termos mais precisos, o que se afirma relevante aí é a relação entre cristologia e soteriologia,

entre o Cristo pregador e o Cristo pregado e crido. E é evidente que quem crê em Jesus crê

nele como um salvador. Neste sentido o Jesus que me fala não é o Jesus histórico, mas o Jesus

com quem me encontro na comunidade. É a ele que posso dirigir perguntas sobre o que tem a

me oferecer para que eu seja melhor, para que me “salve”.

Tem-se objetado que esta mescla entre cristologia e soteriologia resultou numa

pluralidade de Cristos da fé. Jesus seria multiplicado conforme se busque nele “respostas

salvadoras para as diferentes – e irreconciliáveis – expectativas humanas”35. Por isso, os

teólogos têm postulado a necessidade de um método que possibilite relacionar adequadamente

32 Cf. Ibid., pp. 40-42. 33 Ibid., p. 42. 34 PANNENBERG, op. cit., pp. 29-30. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 43. 35 SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 47.

81

cristologia e soteriologia, que não projete em Jesus os interesses da comunidade de fé. Um

método científico livre de interesses (ideológicos)36.

W. Pannenberg pensa ter encontrado esta maneira científica de relacionar estes dois

pólos – cristologia e soteriologia – “na suposição de que a autêntica história de Jesus tenha em

si mesma uma significação soteriológica”37. Esta seria uma perspectiva de teologia “a partir

de baixo”, livre do dogma. No entanto, Segundo adverte para que não nos enganemos, pois

Pannenberg começa sua busca olhando “para cima”. Pergunta ao Jesus histórico qual é sua

relação com o divino e, assim, volta ao caminho costumeiro: “Se a cristologia, portanto, deve

se pôr em jogo a partir do homem Jesus, a primeira questão que deve tratar é a de sua unidade

com Deus”38. E acrescenta: “A primeira parte do projeto cristológico que aqui apresentamos

versará, portanto, sobre o conhecimento da divindade de Jesus Cristo”39.

Neste caso o caminho proposto livra-se das amarras dos interesses, mas ao preço de

negar os componentes antropológicos mais elementares. Não se vê como se poderia encontrar

em Jesus mesmo, isolado dos interesses de seus intérpretes, algo interessante, senão pedindo

um “sinal do céu” – sua unidade com Deus –, exatamente a pergunta dos fariseus e saduceus,

rejeitada por Jesus.

Evidentemente que um relativismo absoluto tiraria por completo todo significado e

relevância de Jesus, relegando-o a mero joguete dos interesses humanos. Qual seria, então, o

caminho para chegar a fazer a Jesus perguntas corretas e oportunas?

(...) teremos necessariamente que perguntar a Jesus a partir das perguntas às quais ele, historicamente, quis (e pôde) responder. Devemos incorporar-nos, através de uma espécie de túnel do tempo, aos desejos e às expectativas com as quais Jesus entrou em diálogo40.

Dessa forma, o mundo valorativo de Jesus poderá iluminar desafios e questões que

ele efetivamente não pôs para si mesmo. É claro que, neste sentido, as diversas interpretações

não esgotam a riqueza da maior testemunha humana. E é normal que neste processo

sobrevenha uma pluralidade de cristologias (interpretações). O fato de que em certo momento

a Igreja tenha dado uma definição precisa à questão cristológica e fixado o cânon das

Escrituras, não nos dispensa da tarefa de continuar interpretando Jesus de Nazaré frente aos

36 A este respeito, Segundo cita, além de Pannenberg, KASPER, W. Jesús, el Cristo. Salamanca: Ed. Sígueme,

1976 e KÜNG, H. Ser cristiano. Madrid: Ed. Cristiandad, 1981. 37 PANNENBERG, op. cit., p. 62. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 49. 38 Ibid., p. 47. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 49. 39 Ibid., p. 63. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, pp. 49-50. 40 SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo II/1, p. 51.

82

desafios atuais. Não se pode deter este processo sob argumentação de que há uma pré-

compreensão. Nem sempre isto representa uma distorção do texto. Este tem autonomia e força

para questionar a pré-compreensão e corrigir – possibilidade de conversão – perguntas

equivocadas.

Este modo de acesso a Jesus, além de deixá-lo falar ao homem de hoje, valoriza a

riqueza das testemunhas secundárias e sucessivas. Na verdade o que se transmite é a fé

(antropológica) de Jesus, que evidentemente está em íntima conexão com sua pessoa. Como

vimos no capítulo anterior, Segundo entende que a fé antropológica é o modo próprio que o

ser humano tem para transmitir dados centrais no mundo valorativo. Uma espécie de

mecanismo de poupança energética, por meio do qual os conteúdos se transmitem num

processo de aprendizagem em segundo grau. Se não fosse assim, deveríamos começar sempre

da estaca zero.

Se olharmos bem, o caminho proposto por Segundo visa libertar Jesus de uma teologia

(científica) que quer enquadrá-lo em categorias universais livres dos interesses e pré-

compreensões humanos, tirando-lhe sua densidade histórica, a riqueza de suas opções

concretas e o escândalo de sua cruz41. Mas Jesus não é um universal destinado a preencher um

espaço vazio postulado por uma categoria de pensamento. Respondeu às expectativas dos

discípulos e não a dos fariseus, por exemplo. Vimos que nos processos educativos humanos é

impossível evitar o círculo hermenêutico. Segundo ilustra seu pensamento com uma passagem

segundo a qual Jesus mesmo teve que lidar com esta realidade: “‘Quem tiver ouvidos para

ouvir (= pré-compreensão favorável) que ouça’ (cf. Mc 4,9.23; 7,16; e também 4,12; 8,18)”42.

De acordo com Segundo, assim como ocorre em toda a comunicação humana, o único

acesso válido a Jesus é o que faz a conexão entre mundos de significação,

por meio de um processo de leituras sucessivas que vão desde o interesse (...) suscitado por ele em seu tempo e espaços próprios, até problemas humanos posteriores e atuais, inseridos em mundos de significação radicalmente semelhantes ao dele (por valores procurados, não por etiquetas confessionais), e abertos por lógica existencial aos dados transcendentes trazidos por Jesus dentro de suas próprias coordenadas históricas43.

Como dissemos no início deste tópico, e considerando o que foi exposto aqui, uma

cristologia para o homem de hoje deve ser uma boa notícia. Isto evidentemente não nos

dispensa de verificar continuamente sua coerência com aquela pregada por Jesus de Nazaré.

41 Cf. Ibid., p. 63. 42 Ibid., p. 57. – O acréscimo é de Segundo. 43 Ibid., p. 63.

83

Em outras palavras, os dados mais fidedignos de Jesus – sua história – são o fundamento da

cristologia.

1.4. Os dois começos de Jesus: história e interpretação

Até aqui nossa atenção se voltou para a apresentação dos componentes antropológicos

e hermenêuticos que compõem a existência humana em geral. No entender de Segundo eles

são decisivos para que uma busca por Jesus de Nazaré não seja ingênua e condicionada por

mal-entendidos. E que não interdite com etiquetas religiosas a riqueza que a vida de Jesus

representa para qualquer homem de hoje.

Os três primeiros tópicos deste capítulo foram uma tentativa de mostrar como a

antropologia e o método de Segundo contribuem no seu projeto de cristologia fundamental.

Agora nos aproximamos da parte que constitui o ponto de chegada da reflexão de nosso autor.

Ela nos indica os elementos centrais em vista dos quais empreendeu todo o esforço

introdutório: a fé de Jesus de Nazaré, a ideologia que empregou para dar-lhe corpo e realidade

e os dados transcendentes que marcam toda sua vida e também seu modo peculiar de

morrer44.

Isto, porém, ainda que seja cansativo, requer uma vez mais o recurso ao método. Estes

elementos da vida de Jesus somente podem ser encontrados em sua história. Neste ponto,

Segundo mostra a necessidade de fazer a distinção entre o pré-pascal e o pós-pascal em

escritos cujo objetivo não é, fundamentalmente, narrar a “história” de Jesus, mas seu

significado. Identificar a “história perdida” de Jesus e recuperar o seu significado para o

homem de hoje é, pois, a tarefa da cristologia.

Pois bem, Segundo indica dois começos de Jesus: aquele em que ele se perde na

humanidade e o que começa com a interpretação pós-pascal. Um Jesus lembrado e outro

narrado à luz da experiência de fé (pascal) da comunidade. Nos documentos

neotestamentários – especialmente nos quatro evangelhos – percebe-se uma narração que

harmoniza dois tempos, dois olhares, se assim se pode dizer: “o que vai do princípio ao fim e

o que se projeta do fim para o começo”45. É na relação entre estas duas direções, no encontro

entre os dois narradores, que podemos ter acesso aos dados mais fidedignos de Jesus.

44 Cf. Id., La historia perdida, p. 109. 45 Ibid., p. 113.

84

Segundo identifica os dois narradores já na maneira com que um dos evangelistas –

Marcos – começa a sua obra: “Princípio do Evangelho (= boa notícia) de Jesus Cristo (=

Messias), Filho de Deus” (Mc 1,1). Está dito que se vai comunicar uma notícia. E se adverte

que é boa. Assim, deixa claro que toda a narração será colorida por fatos que soube muito

depois do surgimento de Jesus no meio da multidão que acorre ao Batista. Todos os

acontecimentos – “sinais” – narrados posteriormente indicarão algo muito maior: Jesus é o

Messias, Filho de Deus. Na dinâmica desta narração imantada pelo fim, um elemento

possibilitará o acesso à história do homem Jesus. Trata-se da obstinada memória do primeiro

narrador, aquele que viu – com seus próprios olhos, não com os da Igreja – Jesus aparecer no

meio da multidão que vem ao Jordão pedir o batismo de João46.

Esta memória – a das testemunhas –, apesar do “escândalo” que causava, foi

consignada nos Evangelhos e será importante para nos levar até o homem Jesus. Será possível

perceber duas narrações sobrepostas. Uma carregada de elementos pré-pascais e outra

colorida por dados pós-pascias. Sem esta distinção Jesus ficaria como que seqüestrado pela

interpretação. Mas a memória obstinada das testemunhas nos dá acesso ao Jesus que se perde

nos fatos narrados.

É bom lembrar que Segundo vai se utilizar dos textos pré-pascais não para relatar algo

mais verdadeiro, como se a interpretação da comunidade não o fosse, mas para ter acesso aos

dados mais fidedignos de Jesus. Somente assim poderá surgir uma interpretação de Jesus para

o homem de hoje. A interpretação que serviu para outros contextos pode não ser significativa

hoje.

A interpretação que dele se fez, apesar de fundamentalmente verdadeira – hipótese que será necessário verificar –, pertence, contudo, a um contexto e a uma mentalidade do passado, dos quais não existe nem pode existir uma simples “tradução” automática para o presente. Além disso, essa mesma “tradução” apagaria ainda os “fatos” mais salientes da história de Jesus: ignorar-se-ia (...) “o primeiro cronista”, aquele que recorda o que viu antes de que Jesus fora interpretado e incorporado à história das religiões47.

Pois bem, quais são os textos que nos permitem fazer esta distinção entre o pré e o

pós-pascal? Neste ponto Segundo nos lembra que Jesus insere-se entre uma tradição que o

precede e outra que lhe é posterior. Dentro da tradição que o precede está a expectativa

messiânica. As sucessivas dominações às quais foi submetido o povo de Israel geraram a

esperança de que num dado momento Deus mesmo interviria na história. Esta expectativa

46 Cf. Ibid., p. 109. 47 Ibid., p. 113.

85

geral agrupava-se em tradições específicas, algumas delas aplicadas a Jesus antes do desfecho

de sua e vida e outras após a experiência pascal da comunidade. Segundo indica quatro: a do

Servo de Javé (Lc 4,17-21; Mt 12,18-21) e a do Filho do homem (de acordo com os

Evangelhos, Jesus teria se chamado a si mesmo com este título, numa referência a Dn 7,13-

14), pertencentes ao grupo das expectativas atribuídas a Jesus depois da páscoa; a do Filho de

Davi (assumida implicitamente por Jesus, de acordo com Mc 10,47-48.52) e a do Profeta

escatológico (Mt 17,12-13; Lc 4,25-26), atribuídas ou assumidas por Jesus antes da páscoa48.

Demos por descontada a argumentação em relação às duas primeiras. Em que sentido,

afinal, podem as duas últimas – as pré-pascais – nos ajudar a compreender a história de Jesus?

Num sentido muito simples: estas tradições messiânicas servirão de chave de interpretação

para distinguir o pré e o pós-pascal em outros textos dos sinóticos abordados por Segundo. De

modo geral elas dão indícios muito precisos de como um homem comum, de uma região

periférica da Palestina, se fez ouvir por seus contemporâneos. E isto a ponto de transformar a

estrutura religiosa secular de Israel, e introduzir um conflito entre o povo e as autoridades, que

finalmente o levaria à morte por se constituir diante destas um perigo público49.

Estas tradições eram, certamente, as mais populares na Palestina e enfatizam muito

mais a transformação de Israel do que o futuro do messias em questão50. As duas tradições

mesclam elementos políticos e religiosos, com predomínio de um dos elementos, conforme o

caso. Enquanto na tradição do Filho de Davi dá-se maior ênfase à linha do político,

possibilitando o anúncio de um reinado de Deus, na do Profeta escatológico a preponderância

recai sobre os elementos religiosos. No entanto, aponta para uma profunda transformação que

já se pode sentir. É o fim do período da espera, não o fim da história51.

Segundo utiliza outros recursos exegéticos como meio de acesso a Jesus52. Não

entraremos nesta questão porque na verdade os demais critérios estão relacionados à lógica

48 Cf. Ibid., pp. 118-123. 49 Cf. Ibid., pp. 118-119. 50 Cf. Ibid., pp. 118-119 e 129. 51 Cf. Ibid., p. 129. 52 Trata-se de dois: o “trabalho redacional” da comunidade e o “critério documental”. O primeiro visa mostrar

como o contexto pós-pascal da Igreja, situado numa problemática diferente, talvez duas ou três décadas após a experiência do ressuscitado, produz uma teologia através da acomodação de elementos novos nos fatos que se narra. Um exemplo é a passagem (Mc 10,35 e par.) em que, de certo modo, se fala do perfil dos discípulos. Num contexto onde estes já são líderes da Igreja, o redator tem uma maneira peculiar de apresentar elementos que de outro modo os colocariam em maus lençóis. Se em Marcos os próprios discípulos se mostram ambiciosos, em Mateus esta ambição é amenizada, pois quem faz o pedido dos melhores cargos no governo do futuro rei é a mãe de alguns deles. No que se refere ao critério documental, Segundo mostra que existe um documento, a fonte Q, que se constitui como uma lembrança de Jesus menos elaborada. Um exemplo, neste

86

interna que há entre o pré e o pós-pascal: a narração a partir de dois pontos ou “começos” de

Jesus: o da história e o da interpretação.

Falaremos de Jesus, de sua fé, de sua ideologia, de seus dados transcendentes, como se já houvesse surgido com vida – com vida própria e coerente – da aplicação de um critério único, onipresente: a distinção entre o pré e o pós-pascal53.

2. Investigação histórica. A chave política nos sinóticos

Até aqui apresentamos, a modo de vôo de pássaro evidentemente, o “aparelho”

científico que Segundo desenvolve para se aproximar de Jesus com sentido para o homem de

hoje. Agora veremos as linhas gerais da aplicação das categorias metodológicas de nosso

autor no seu trabalho teológico de resgate da “história” de Jesus. Sua busca é balizada com as

seguintes perguntas:

Por qual tipo de felicidade apostou Jesus de Nazaré sua vida?; que tipo de atividades ou mediações usou para ser conseqüente e eficaz nessa aposta?; que concepções globais da vida e da realidade manifesta ao longo de sua vida e até o momento de sua morte?54

Estas perguntas balizadoras são necessárias, mas não suficientes. É preciso também

uma mediação que ajude a organizar os dados. Vimos que quando queremos expressar ou

compreender uma estrutura de sentido – uma fé, de acordo com a análise exposta no capítulo

segundo – precisamos de imagens, pois os conceitos abstratos são bastante limitados neste

campo. A imagem estrutura, por meio de uma chave de interpretação, a globalidade daquilo

que se quer transmitir. A “chave” encontra eco naquilo que as pessoas colocam mais ênfase

em seu contexto. De acordo com Segundo, Jesus utilizou a chave política para expressar a

imagem do tipo de felicidade – o Reino de Deus – que queria anunciar aos seus

contemporâneos.

Veremos, pois, que a chave política55 perpassa, nos Sinótico, a história de Jesus,

dando-lhe coerência. Em torno dela expressa sua fé e organiza os meios que julga necessários

caso, é a primeira das bem-aventuranças pronunciadas por Jesus em seu discurso inaugural. Em Q (reconstituída pela exegese) se anuncia a felicidade do Reino – “bem aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus” – a um auditório constituído basicamente pela multidão. Em Mateus (5,3), cujo auditório já é a Igreja, e para o qual Jesus é o novo Moisés, legislador moral definitivo de Israel, a felicidade anunciada se converte em virtude moral. A categoria sociológica “pobre” é convertida em virtude: “de espírito”. Em Lucas (6,20) ocorre algo semelhante. Tem-se em vista a instituição eclesial, nova e completa. Por isso substitui o auditório mais geral – “deles”, os pobres em geral – por um auditório mais específico – “vós”, em referência aos discípulos ou simplesmente aos membros da Igreja (Cf. Ibid., pp. 137-148 e 159-162).

53 Ibid., p. 148. 54 Ibid., p. 109. 55 Não podemos passar adiante sem apresentar alguns esclarecimentos de nosso autor sobre o emprego desta

“chave” de leitura para o acesso aos dados históricos de Jesus de Nazaré. No que concerne à natureza do

87

para dar-lhe eficácia. Na relação entre estes dois elementos poder-se-á ver os dados

(transcendentes) que compõe a visão global de Jesus sobre toda sua vida, e que pensa ser o

plano de Deus para toda a humanidade.

2.1. A fé antropológica de Jesus de Nazaré

Jesus anuncia a chegada do Reino de Deus. Este é o tipo de felicidade que imagina e

pela qual dedica sua vida. Ao contrário de João Batista que se notabiliza como o profeta da ira

de Deus (Mt 3,7 e par.), Jesus se destaca por anunciar uma notícia que traz alegria: o período

da espera acabou, o Reino de Deus chegou e deve ser acolhido e preparado56.

Quais são os principais traços disto que se anuncia como uma boa notícia?

Em primeiro lugar trata-se de algo que ocorre na história. Marcos (1,15) assim o

sintetiza: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no

Evangelho”. A alusão de que se cumpriu o tempo refere-se ao longo período em que Israel

esperou pela intervenção de Deus em seu favor. Pois bem, “cumpriu-se o prazo” e Deus fará

justiça. E desta justiça brotará alegria, pelo menos para alguns. Daí o convite para a

conversão, para acolher o que se anuncia como “próximo”.

Neste ponto Segundo chama a atenção para um detalhe semântico que, segundo ele, as

traduções descuidam.

O termo usado por Jesus para designar o que está para vir da parte de Deus não significa exatamente “reino”, mas “reinado”. “Reino” é, por assim dizer, um sistema abstrato, um sistema de autoridade. “Reinado”, ao contrário, é esta mesma autoridade concretamente exercida57.

termo “chave”, afirma: “O leitor se lembrará de que, nesta questão da chave, parti de um fato incontestável. E esse fato é que toda existência humana do passado oferece à interpretação histórica uma dificuldade fundamental: a heterogeneidade de mil e um detalhes. Não é possível tirar alguma coisa com sentido desse caos, sem nele introduzir alguma possível unidade, que reduza essa heterogeneidade, que parece reinar à primeira vista. É óbvio que fazemos isto, diante de qualquer pessoa humana que entra em nosso campo visual ou espiritual. Certamente não se trata de encaixar ninguém numa categoria redutora ou arbitrária. (…) Na história, como na vida real, quando nos relacionamos com uma pessoa, tentamos chegar à sua chave e não impor-lhe a nossa”. Em seguida, Segundo fala sobre um limite inerente à “chave”: “(…) nenhuma chave esgota uma personagem, mesmo porque ninguém é inteiramente coerente com seu próprio sistema de valores, no momento de agir na complexidade do real. (…) Esse é o dom – ao mesmo tempo que o preço – da transcendência inerente a cada ser humano: ao não poder recolher todos os seus atos numa unidade perfeita, deixa uma herança de riqueza a seus sucessores (e historiadores)” (Ibid., pp. 286-287).

56 Cf. Ibid., p. 153. 57 Ibid., p. 154.

88

Portanto, o fim que Jesus anuncia significa, em última instância, o início do reinado de

Deus, “o início de uma situação que se prolonga na história”58. Segundo lembra que a fonte Q,

devidamente reconstituída, portanto mais fiel à lembrança do homem Jesus, parece indicar

esta historicidade ao apresentar uma versão mais curta da oração que Jesus ensina aos

discípulos: “(…) santificado seja o teu nome, venha o teu reino (= reinado); o pão nosso

cotidiano dá-nos a cada dia (…) ” (Lc 11,2-3)59.

Pois bem, um governo em que Deus faz, finalmente, sua vontade na terra não vem senão para ficar. Quero dizer que não significa o fim do mundo, mas seu funcionamento correto e permanente. A “alegria” de que fala o profeta Jesus é mais a de um início do que a de um final60.

Em segundo lugar, Segundo destaca que o Reino de Deus é uma dinâmica de

humanização pessoal e social. E que tem por destinatários os pobres, exatamente porque a

estes são negadas as condições mínimas para uma vida humana. Não por acaso esta opção

concreta aparece numa ocasião em que Jesus precisa identificar a natureza de seu anúncio em

face ao de outro profeta, João Batista. De acordo com a fonte Q, Jesus teria dito aos

emissários de João que seu anúncio está contido naquilo que faz: “os cegos recuperam a vista,

os coxos andam, os leprosos são evangelizados. E bem aventurado aquele que não ficar

escandalizado por causa de mim” (Mt 11,2-6).

Nesta resposta em linguagem icônica, como se vê, aparece um traço bem preciso da fé

de Jesus e de como a concebe em relação à história. Em outras palavras, aparece aí o

significado que Jesus imagina para o “reinado” ou “governo” de Deus: “fazer os homens

recuperarem a humanidade plena que, de mil maneiras, foram perdendo”61.

Em terceiro lugar, cabe destacar que o anúncio de Jesus está enraizado na concretude

da história e de seus mecanismos. É verdade que a chegada do Reino de Deus é uma “boa

notícia”, mas

essa boa notícia tem seu destinatário próprio, exclusivo: os pobres. Por isso, é somente a eles que se anuncia a boa notícia. Não porque seja escondida para os demais: é que para os demais não é “boa”!62

Evidentemente que esta exclusividade pode ser mudada. Neste sentido é preciso

converter a mentalidade (Mc 1,15) para não se escandalizar com a distribuição igualitária dos

58 Ibid. 59 Cf. Ibid. 60 Ibid., p. 155. 61 Ibid. p. 156. 62 Ibid.

89

bens num contexto de escassez. O escandaloso do anúncio de Jesus é que garante que Deus

vai “reinar” por meio de uma medida política prevista numa profecia bíblica (Is 61,1-2; Sf

2,3), provavelmente nunca realizada:

“o ano da graça” em que, independentemente dos méritos de cada um, a terra de Israel e suas riquezas voltavam a ser repartidas igualmente entre todos os seus habitantes (resgatados da escravidão) para que todos pudessem começar novamente uma vida e um trabalho humanos63.

Como se vê, não se exige nenhuma virtude ou etiqueta religiosa para que se tenha

direito à felicidade que o reinado de Deus significa. A preocupação central de Deus – de

acordo com a terminologia empregada por nosso autor, o chefe do “governo” – é que o

homem seja de fato humano. Trata-se, pois, de uma opção política com o objetivo de tirar os

pobres da situação desumana a que foram submetidos. Interessante notar a objetividade com

que a fonte Q, reconstituída pela exegese e citada por Segundo, fala dos destinatários da

felicidade do Reino: “Felizes os pobres, porque deles é o reino de Deus” (Mt 5,3; Lc 6,20)64.

Assim, pois, entramos no quarto traço que queremos destacar. Jesus é um homem

pleno e sabe que dentro do limitado campo em que se movem as atividades humanas há que

se definir prioridades. Numa sociedade em que as pessoas sofrem exatamente pelas

desigualdades não há como, de saída, não fazer uma opção. Está claro que a boa notícia do

Reino é anunciada aos pobres.

Se esse plano ou política é realista, a mudança – que significa tirar dos pobres a inumanidade de sua situação – vai se fazer às custas de alguém. O trabalho redacional de Lucas, mais atento que os outros sinóticos às situações sócio-econômicas, coloca-o à vista de modo explícito: o “felizes os pobres!” traz como contrapartida um “ai dos ricos!”65.

Segundo faz uma análise minuciosa de como o trabalho redacional de Mateus e Lucas

transformou em virtude moral algo que, para Jesus, teria sido uma medida política em favor

dos pobres66.

O quinto traço do anúncio de Jesus que queremos destacar é: o Reino desencadeará um

processo histórico no qual os pobres deverão passar de objeto a colaboradores. A missão de

Jesus não é anunciar algo que independentemente da colaboração humana Deus realiza.

63 Ibid., p. 157. – Cf. Lc 4,18-19. 64 Cf. Ibid., pp. 139-140 e 158. – A esse respeito, Segundo remete a um clássico nesta matéria: DUPONT, J. Les

béatitudes. Le problème littéraire. Le message doctrinal. 3 vol. Bruges: Louvaina, 1954. 65 Ibid., p. 159. – Como se vê, Segundo usa o trabalho redacional – pós-pascal, portanto – de Lucas para

enfatizar algo que teria sido uma opção de Jesus. No entanto, tem o cuidado de fazer uma ressalva: “É que muitas vezes, até nesse mesmo trabalho redacional, os evangelistas escutam um eco do primitivo” (Cf. Ibid.).

66 Cf. supra p. 85, nota 51.

90

Segundo menciona dois exemplos em que Jesus mesmo teria esclarecido esta questão: a

“busca” do Reino e o conflito que isto supõe.

O primeiro caso fica claro numa passagem em que Mateus fala já no sermão da

montanha em “buscar o reino” (Mt 6,33). E esta busca não deve ser entendida num sentido

passivo, o que seria um tanto estranho.

De fato, não se trata de “buscar entrar no reino”, pois este não é um recipiente, mas uma transformação (…). Não é um juízo, mas uma restituição a Israel daquilo que “se achava perdido”, nessa marginalização dolorosa que Deus não pode aceitar (cf. Lc 15; Mt 10,6)67.

Além disso, Jesus deixa claro que é preciso deixar tudo pelo reino, supõe-se que para

colaborar em sua implantação. Ademais exige a conversão de todo um sistema de valores, em

favor dos valores do Reino.

Que Deus aja sozinho é um pressuposto teológico que não se confirma na exegese evangélica. Tudo na vida de Jesus vai levando o leitor a dar mais e mais importância à história na proposta profética de Jesus68.

Outro exemplo de como o reino não invalida a história e a colaboração humana é o

fato de Jesus ter dito que sua implantação supõe um conflito provocado por uma divisão

axiológica entre as pessoas, até mesmo entre as mais unidas por laços afetivos familiares (Lc

12,52; Mt 10,32). O anúncio de Jesus introduz uma discórdia radical entre as pessoas, dado

que

entre aqueles que ontem ouviram – ou entre aqueles que hoje lêem o Evangelho – o anúncio do Reino de Deus, há aqueles que têm um sistema de valores oposto ao que estrutura e concretiza esse mesmo Reino. E como esse Reino não ocupa um ponto periférico no mundo do sentido de cada ser humano, não há porque estranhar de que o anúncio de sua proximidade, ao apelar para uma fé existente ou ao exigir a mudança da que existe (metanoia: Mc 1,15), instale o mais radical dos conflitos. A opção pelos pobres, ou a oposição (por mais disfarçada que esteja) ao Reino farão discórdias e inimizades entre amigos e parentes, entre justos e pecadores (e, hoje, entre cristãos e não cristãos) indistintamente69.

Assim, cremos que Segundo mostra que o motivo de introduzir o conflito não pode ser

outro senão suscitar a mudança histórica com a efetiva participação dos homens. Jesus não

somente anuncia o Reino, mas prepara-o por meio de uma estratégia política. Neste ponto,

chegamos ao sexto e último traço da atividade de anúncio do Reino que queremos destacar: a

chave política da linguagem de Jesus, de sua vida e de sua morte.

67 SEGUNDO, La historia perdida, p. 166. 68 Ibid., p. 168. 69 Ibid., pp. 169-170.

91

A terminologia empregada por Jesus, como vimos, não deixa dúvidas no que se refere

a isto. Não será difícil compreender que a dificuldade em aceitar tal afirmação repousa em

dois mal-entendidos. De acordo com o primeiro, tendo sido Jesus o fundador da religião

cristã, sua linguagem política é mera metáfora da linguagem religiosa. O segundo consiste em

afirmar que Jesus teria sido assassinado por um motivo alheio – uma mentira – à sua vida. Tal

interpretação da vida e da morte de Jesus negligencia o fato mais que evidente de que o objeto

de sua crítica foi o sistema religioso-político desumanizador de Israel. Ocorre, na verdade, é

que uma vez que essa estrutura religiosa, que é também política, incidia poderosamente na

vida do povo ao qual se anuncia o Reino, Jesus usa a linguagem política em estreita relação

com a linguagem religiosa70.

Segundo deixa claro que usa a chave política em sua busca não porque está na

América Latina, ou porque pertence a determinada “teologia”, mas pelo simples fato de que

“foi a chave usada por Jesus. Nada mais. Nada menos”71 (grifo do autor).

2.2. A ideologia de Jesus de Nazaré

No tópico anterior apresentamos o absoluto de Jesus, ou seja, a sua fé. Agora

seguiremos os passos da investigação histórica de Segundo a fim de vermos, em linhas gerais,

a maneira com que Jesus lida com o relativo em sua existência. Em outras palavras, que meios

(ideologia) utiliza para realizar com eficácia sua missão de anunciar o Reino de Deus. E com

que limitações se depara nesta tarefa tão humana.

a) Os meios

Pois bem, Segundo entende que Jesus não só anuncia o Reino de Deus (aos pobres),

mas também o prepara. Dado que, como vimos, o Reino se enraíza na história e quer contar

com a participação humana, Jesus assume a irrenunciável tarefa de preparar as pessoas para

recebê-lo. As parábolas e os milagres são os principais meios de que Jesus se vale para

realizar esta missão. Aquelas funcionam como meios de anúncio – linguagem digital a serviço

70 Cf. Ibid., pp. 170-186. – A propósito do sentido político da morte de Jesus, consultar: FERRARO, Benedito. A

significação política e teológica da morte de Jesus à luz do Novo Testamento. Petrópolis: Ed. Vozes, 1977, pp. 135-188, especialmente p. 187-188, onde o autor apresenta considerações conclusivas a respeito do assunto.

71 Ibid., p. 186. – No que se refere a isto, Segundo afirma: “Jesus, perfeito homem, homem pleno, não pode expressar de modo icônico sua fé antropológica, que é também religiosa, a não ser através de uma ideologia. Isto é, mediante um sistema de eficácia. Como todo sistema de eficácia dentro de uma realidade finita, essa ideologia será tão determinada como limitada, posta a serviço de uma certa estrutura de valores que constitui a maneira como Jesus concebe Deus e o que Deus quer” (Ibid.).

92

da transmissão de conteúdos – e de análise ideológica – hermenêutica e crítica histórica; ao

passo que os milagres funcionam como a dinâmica do Reino – linguagem icônica, ou seja, o

anúncio do Reino por meio da realização de “sinais”72.

O anúncio – digital – de Jesus exige conversão e, por isso, suscita oposição. Segundo

afirma que isto ocorre em dois sentidos, ou seja, exige uma conversão em duplo sentido e

provoca uma dupla oposição. De fato, Jesus anuncia que o Reino vem, e vem para os pobres.

Isto implica que àqueles aos quais a chegada do Reino supõe um “ai”, conversão significa a

mudança da estrutura de valores que possuem. Enquanto que àqueles – os pobres – aos quais a

chegada do Reino parece demasiado “boa”, conversão significa converter-se à esperança.

Está claro: não se exige desses últimos que mudem seus valores, mas que se deixem penetrar pela incrível “notícia”, por esse dado transcendente de que Deus está a caminho para libertá-los73.

Em ambos os casos ocorre uma oposição: os primeiros percebem logo o perigo que a

atividade de anúncio profético de Jesus representa, e começam uma articulação para

inviabilizar sua ação (Mc 3,6); os segundos, os pobres, inclusive os parentes de Jesus (Mc

3,20-21.31 e par.) e os de sua cidade natal, têm dificuldade para acreditar, ou simplesmente,

numa atitude imediatista, recusam o Jesus crítico em favor do Jesus “ajudador”74.

Segundo nota que as parábolas de Jesus inserem-se num contexto de polêmica. E que

podem ser mais bem compreendidas em chave política, dado que “o fio condutor dessas

discussões críticas é de ordem político-religiosa, assim como era político-religiosa a

autoridade que possuíam os adversários de Jesus”75. Nem mesmo o fato de que, em certo

momento, a categoria “pobre” tenha dado lugar a “pecadores” significa que a política tenha

deixado de ser a “chave”. Isto teria ocorrido Jerusalém, o centro político-religioso, mas neste

caso apenas se reforça o argumento em favor da chave política. Nosso autor afirma que a

categoria “pecadores” era central na ideologia (em sentido pejorativo) do poder-político

desumanizador. Servia para encobrir com um falso motivo a verdadeira causa da

desumanização dos “pobres”. Se assim foi, pobres e pecadores faziam parte do mesmo grupo

sob ambas as denominações. As parábolas nas quais Jesus emprega a terminologia nova têm

função crítica ante uma estrutura desumanizadora76.

72 Cf. Ibid., pp. 187-191. 73 Ibid., p. 188. 74 Cf. Ibid. 75 Ibid., p. 192. 76 Cf. Ibid., pp. 193-194.

93

Pois bem, sem entrar nos pormenores da análise que Segundo faz das parábolas,

queremos apenas dizer que ele as agrupa em quatro séries: duas de caráter descritivo e duas de

tipo hermenêutico-crítico.

(…) as duas primeiras contém uma reafirmação e explanação das bem-aventuranças: o Reino vem, apesar de tudo, e vem para os pobres e marginalizados, mesmo que sejam pecadores, porque a alegria de Deus está em tirá-los de sua situação inumana. As duas últimas vão mais ao fundo do mecanismo ideológico: mostram quais são os verdadeiros pecadores em Israel e como seu pecado, o de desumanizar os demais, provém (ou se encobre com) uma leitura defeituosa e – desde o início (hermenêutica) – inumana da Lei de Deus77.

É neste último grupo que aparece com mais ênfase a opção pelos pobres como critério

hermenêutico. De acordo com Segundo uma opção é na verdade uma aposta:

a de perguntar ao evangelho com o que acreditamos seja as premissas (ontológicas e epistemológicas) com que o Evangelho foi proclamado. Estender as redes de perguntas às quais – assim me parece, e ponho nisso minha fé (antropológica) – o Evangelho deseja responder78.

Nosso autor afirma que não se deve estranhar o fato de que quem faz a opção pelos

pobres antes de ler o Evangelho “torne a encontrar esta mesma opção como conclusão do

mesmo evangelho”79. O mesmo vale para quem não faz uma opção desta natureza: não vai

encontrá-la como mensagem central do mesmo Evangelho.

Finalmente chamamos a atenção para o que Segundo qualifica como o anúncio do

Reino em linguagem icônica, ou seja, o reino em sinais. Trata-se dos milagres realizados por

Jesus como parte de sua pregação. Não se faz exigência moral para a sua realização. Na

verdade, fazem parte da dinâmica do Reino e têm por objetivo libertar os pobres e pecadores

da dor que os desumaniza80.

b) As limitações da realidade histórica

A primeira limitação imposta pela realidade à atividade de Jesus é evidenciada pelo

uso (necessário) da linguagem digital. O anúncio em parábolas faz surgir três grupos

diferentes. Segundo mostra que isto ocorre de uma maneira talvez não planejada, em todo

caso perceptível após o desenrolar dos fatos.

No capítulo 4 de Marcos, constituído basicamente de parábolas, há duas passagens em

que Jesus explica o motivo pelo qual emprega esta modalidade de comunicação: 77 Ibid., p. 194. Para aprofundamento, Cf. Ibid., pp. 191-246. 78 Ibid., p. 222. 79 Ibid. 80 Cf. Ibid., pp. 248-252.

94

Quando ficaram sozinhos, os que estavam junto dele (…) o interrogaram sobre as parábolas. Dizia-lhes: “A vós foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas, a fim de que vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados” E disse-lhes: “Se não compreendeis esta parábola, como podereis entender todas as parábolas?” (Mc 4,10-13 e par., grifos de Segundo)81.

E após outras parábolas, conclui-se:

Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas como essas, conforme podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A seus discípulos, porém, explicava tudo em particular (Mc 4,33-34 e par., grifos de Segundo)82.

O que se vê nestas passagens, de acordo com Segundo, são os três grupos que Jesus

visualiza em sua missão. O primeiro é constituído pelos de fora (Mc 4,11 e par.), os

adversários de Jesus. Dado que têm uma estrutura de valores contrária – de fora – à do Reino,

Jesus fala de um modo que eles ouvindo não entendam, vendo não percebam. Tal modo de

proceder tem o objetivo de aprofundar e manter o conflito. Segundo adverte para que não se

leia esta “má” intenção de Jesus em chave individualista moralizante. A condenação aí

suposta “não indica nada sobre a salvação, perdição ou veredicto final das pessoas em

questão”83 (grifo do autor), mas pretende de fato arrancar dos adversários uma confissão sem

ambigüidades sobre o “lado” valorativo assumido por eles enquanto autoridades. Uma vez

mais a chave política: não haverá conversão – metanoia – ao Reino (e a seu programa político

em favor dos pobres) sem uma radical tomada de consciência dos valores que conformam a

vida concreta.

O segundo grupo é constituído pelos discípulos. Uma minoria qualitativa pela qual

Jesus se esforça para ser totalmente compreendido (cf. Mc 4,34). Aos integrantes deste grupo

se faz exigências totalizadoras: deverão unir-se não somente a Jesus, mas também à sua

atividade, e dar o máximo de si (cf. Mt 5,11-12; 16,24; 10,38; Lc 6,22-23) em prol da

transformação que o Reino supõe.

O terceiro grupo é formado pela multidão. A esta, Jesus não falava “senão em

parábolas”, pois queria respeitar a sua relativa capacidade de compreensão. De algum modo

este grupo compreendia a mensagem central das parábolas e sabia situar-se no contexto das

polêmicas. Pode-se argüir que nem mesmo os discípulos compreenderam corretamente a

81 Ibid., p. 236. – Para o aprofundamento desta questão, cf. Ibid., pp. 235-256. 82 Ibid. 83 Ibid., p. 239.

95

mensagem (política) de Jesus, quanto mais a multidão. No entanto, não se pode esquecer que

Jesus não está simplesmente preocupado com a ortodoxia ou precisão da linguagem.

Em outras palavras, Jesus usou com clara consciência de suas limitações e vantagens, uma chave política popularmente compreensível para revelar o autêntico coração de Deus em sua relação com Israel84.

Segundo tem o cuidado de dizer que não faz esta classificação por mero capricho. A

atividade de Jesus não pode negligenciar a história, com seus limites e mecanismos. Jesus não

teria energia suficiente para converter toda a sociedade aos valores do Reino. Precisa, por

isso, otimizar suas atividades num plano limitado.

Creio que o leitor terá percebido que estes três grupos diferentes, e de algum modo opostos em suas características, representam uma espécie de necessidade lógica. Constituem algo assim como três coisas – ideais num plano abstrato – que o profeta não pode fazer, três limites com os quais a realidade desafia esse homem Jesus, fazendo dele o autêntico ser humano que foi85.

Outro limite da atividade de Jesus é provocado por seu anúncio icônico, ou seja, pelos

milagres. Por vezes provocaram euforia a tal ponto de a multidão negligenciar a

complexidade histórica e querer instaurar prematuramente o Reino. De acordo com Marcos

(6,45 e par.), num desses momentos, Jesus teria “forçado” seus discípulos a seguir para outro

lugar, enquanto ele mesmo despedia a multidão. Em outra ocasião, alguns discípulos, fora do

círculo dos doze, ao perceberem que Jesus não encamparia tal entusiasmo, decidiram “não

andar mais com” Jesus (Jo 6,66)86.

2.3. Os dados transcendentes de Jesus de Nazaré

Os dados transcendentes aparecem, evidentemente, em toda a atividade de Jesus, do

começo ao fim. Entretanto, Segundo mostra que eles são mais perceptíveis nos momentos e

circunstâncias que rodeiam o fim de sua atividade e vida. Aqui se manifesta com força a visão

global da vida e da realidade que animou toda a atividade de Jesus. E uma vez mais a chave

política abre caminho para a compreensão.

Pois bem, após Pedro confessar, em nome dos demais discípulos, que Jesus é o

Messias, o Filho de Deus, este decide “subir” para Jerusalém (cf. Mt 16,21), o centro político-

religioso que estende seus tentáculos por toda a Palestina. A esta altura, o conflito introduzido

por seu anúncio profético tinha alcançado um patamar tal que os que o acompanhavam 84 Ibid., p. 243. 85 Ibid., p. 244. 86 Cf. Ibid., pp. 264-268.

96

“tinham medo” (Mc 10,32). Também não era para menos, pois Jesus tinha sido avisado,

quando ainda estava na Galiléia, de que os ecos de sua pregação tinham chegado a Jerusalém,

e que os seus adversários tramavam contra ele (cf. Lc 13,31). Mesmo assim, caminha diante

dos discípulos na “subida” para Jerusalém. Uma “subida” cujo final coincide com o fim de

sua atividade e vida87. Que relação pensa ter Jesus entre esta “subida” e o Reino por ele

anunciado?

Esta não é uma “subida” somente no sentido geográfico do termo, mas também

teológico e político. Subir a Jerusalém – a Sião – é o mesmo que ir ao encontro de Deus (Jr

31,6). Neste sentido, Jesus sente que precisa “subir” a encosta da profecia. Uma “subida”,

porém, com um colorido político coerente com o teor do seu anúncio profético88.

Jesus, o profeta da alegria, prometeu a Israel a próxima chegada do Reino desse Deus cuja “casa” está precisamente em Jerusalém. É impensável um “Reino” em Israel sem Jerusalém, ou fora de Jerusalém, a primeira, a única capital que teve o reino quando abarcava todo Israel89.

Esta subida tem uma função decisiva. Visa fazer ecoar definitivamente o anúncio do

Reino desde onde procede “a imagem com a qual essa mensagem convoca o povo inteiro de

Israel e de onde se tem que sentir, logo, o poder do Deus que o Reino traz, assim como trouxe,

no passado, a esse mesmo lugar”90. No entanto, Jesus sabe que lá em Jerusalém estão os

adversários do Reino, que em nome de Deus mantêm um sistema desumanizador. Mas está

disposto a levar a termo sua missão, mesmo sabendo de seus riscos políticos91.

Neste ponto, segundo entende Segundo, aparecem dados transcendentes que permitem

saber o que Jesus pensava da globalidade – não somente de um ou outro fato – de sua vida e

atividade. Isto não tem relação com o dinamismo interno da consciência de Jesus, no que se

refere à sua messianidade ou divindade. Antes tem a ver com a maneira de Jesus pontuar a

realidade, ou seja, de como “organiza” a seqüência dos acontecimentos.

87 Cf. Ibid., p. 270. 88 Cf. Ibid., p. 272. 89 Ibid., p. 271. 90 Ibid., p. 272. – O “passado” ao qual se refere Segundo é o tempo do reinado de Davi. 91 Cf. Ibid., p. 282. – Segundo é cauteloso quanto aos desdobramentos do conflito ou oposição que Jesus, o

profeta do Reino, esperava enfrentar em Jerusalém. As profecias sobre a morte de cruz em Jerusalém e a ressurreição ao terceiro dia, se se quer garantir alguma coerência no discurso profético de Jesus, devem ser consideradas pós-pascais. Elas resultam do trabalho redacional da comunidade que interpreta Jesus a partir de um dado transcendente novo: a ressurreição. Tanto é verdade que Jesus, pouco antes de sua morte, sente-se abandonado por Deus (cf. Mc 15,34; Mt 27,46). Não pode sentir-se abandonado quem de antemão sabe que em três dias será socorrido por este mesmo Deus (cf. Ibid., p. 286).

97

Esta pontuação da realidade está relacionada à visão que tem Jesus sobre os

mecanismos históricos e da maneira como entende a intervenção de Deus neste processo. Em

outras palavras, os dados transcendentes estão relacionados à sua convicção de que a história

e seus mecanismos “buscam o Reino”, ao mesmo tempo em que resistem a ele. E que, em

última instância, no processo educativo92 vivido pelo povo ao longo dos séculos Deus impõe

uma forma aos acontecimentos, de modo

que se coloquem a serviço dos valores implícitos no projeto do Reino que Deus se preparava para trazer à terra. E, tanto mais que, no conflito que se aproxima e se acentua, a resistência da realidade ao projeto do Reino vai, sem dúvida, manifestar-se com seu máximo poder em Jerusalém93.

Os dados transcendentes aparecem indiretamente no tipo de eficácia que Jesus

empreende para anunciar e preparar o Reino. E isto tem a ver com a chave com a qual Jesus

interpretou sua vida. Sabemos que esta chave foi a política. E que para Segundo ela continua

vigente mesmo quando em Jerusalém a linguagem dá a entender que Jesus adota uma chave

religiosa. Neste ponto preciso aparece uma pendência: a maneira como Jesus pensou a relação

entre ele, o Reino e o “poder”. O profeta do Reino sabe que em Jerusalém estão os poderosos

que o enfrentarão. E que o Reino “com poder”94 efetivamente ocorrerá somente quando o

“ano da graça” for de fato uma realidade. Jesus, apesar disso, parece não se preocupar com

nenhum sistema de eficácia adicional – tal como uma estratégia de tomada do poder, ou para

obter mais poder – para enfrentar os adversários do Reino em Jerusalém: está seguro de que

Deus vai trazer o “Reino com poder”, confirmando seu profeta. Que os acontecimentos da

cruz o desenganem não deve constituir nenhum escândalo, pois Jesus, perfeito homem que é,

92 No que concerne a isto, Segundo afirma: “Se esses dados, como procurei mostrar, constituem pontuações

através das quais todo ser humano busca inserir sentido numa sucessão aparentemente caótica de acontecimentos, Jesus não pode ignorar todo o trabalho que seu próprio povo fez para introduzir uma relação plausível e rica entre os valores de Deus (“misericórdia e fidelidade”) e a forma na qual os fatos se concatenam na história” (Ibid., p. 285). Sobre “os valores de Deus”, nosso autor se expressa de forma mais precisa ainda em El hombre de hoy, tomo II/1, p. 177: “O Deus que Jesus revela será, pois, não somente um Deus compassivo e comprometido com os que sofrem. Não somente abarcará mais e mais grupos de afligidos em seu reino escatológico, mas é, por assim dizer, um Deus ‘obrigado’ por fidelidade a si mesmo (…) a lutar contra a ideologia que instrumentaliza a lei religiosa como arma de opressão”. Na nota 29, da mesma página, afirma: “Compaixão e fidelidade são suas características distintivas desde a revelação mosaica na versão javista (Ex 34,6) até o prólogo de São João, que a traduz por graça e verdade (Jo 1,14)”.

93 Id., La historia perdida, pp. 285-286. 94 A investigação histórica de Segundo, neste particular, se apóia numa profecia pré-pascal, segundo a qual Jesus

está seguro de que alguns dos de sua geração verão o “Reino de Deus chegando com poder” (Mc 9,1). De acordo com nosso autor, um elemento assegura, com certa precisão, que esta é de fato uma profecia pré-pascal: o grito de abandono de Jesus na cruz (cf. Mc 15,34 e par.). Este seria como que um atestado da frustração da expectativa de poder continuar contribuindo na efetivação histórica do Reino de Deus aos pobres (Cf. Ibid. 289).

98

precisa orientar sua vida por meio de aposta em dados que transcendem sua própria

experiência95.

Este “despreparo” de Jesus, como se vê, mostra indiretamente suas intenções e

expectativas ao “subir” para Jerusalém. Mas aparece já aí o dado (transcendente) central: a

vinda do “Reino com poder”. É por esta vinda que Jesus dedica sua vida. E não se trata aí de

um poder do Messias, mas da concretude histórica do Reino:

O poder desse Reino fará cumprir na terra a vontade de Deus como essa já se cumpre no céu. Os pobres deixarão de sê-lo, os aflitos sorrirão, os famintos serão saciados. Porque esta é de fato uma característica do Jesus histórico: atribuir ao Reino que anuncia um caráter extraordinariamente concreto96.

Sendo assim, tudo indica que Jesus não esperava um fim tão trágico em sua vida. E

estava certo de que sua colaboração iria mais do que na realidade foi. Que poderia continuar

preparando as mentes e os corações para e receber o Reino. Mas veio a cruz, trágica para o

profeta do Reino e desalentadora para os discípulos: seguir um Messias fracassado? Neste

momento, a comunidade interpreta Jesus a partir de um dado novo, proveniente de sua

experiência: a ressurreição. E é justamente a apocalíptica, então vigente, que dá os elementos

para a comunidade fazer “a substituição do projeto (pré-pascal) de Jesus por sua pessoa

(qualificada pelo acontecimento pascal)”97. Ocorre um deslocamento: de pregador, Jesus

passa a conteúdo da pregação. A expectativa da vinda do Reino com poder dá lugar ao

anúncio da vinda do Filho do homem “com poder” (Mc 13,26), no prazo – uma geração (que

coincide com o tempo da comunidade quando da redação do Evangelho) – fixado por Jesus

mesmo para a chegada do Reino98.

Como se vê, há uma diferença entre a interpretação que Jesus tem de sua própria vida

diante da cruz, e o que a comunidade interpretou após o acontecimento pascal99. É verdade

que a maneira correta de colocar a questão não é contrapor os dois dados – a história e a

interpretação –, mas perguntar como um ilumina o outro. Sem o dado da ressurreição, a

experiência da cruz se reduz a um sem sentido. Sem a história concreta de Jesus, com seus

desdobramentos, o dado escatológico da ressurreição acaba engolindo a história, e a vida

cristã não passa de resignação. Nem precisa dizer que a comunidade cristã primitiva precisou

de certo tempo para elaborar uma síntese harmoniosa entre estes dois dados. 95 Cf. Ibid., pp. 286-290. 96 Ibid., p. 297. 97 Ibid., p. 301. – Grifo do autor. 98 Cf. Ibid., p. 299. 99 Cf. Ibid., p. 372.

99

Deixemos a questão como está e voltemos ao assunto que nos ocupa neste tópico.

Penso que podemos tirar uma conclusão acerca de “que concepções globais da vida e da

realidade manifesta (Jesus, acréscimo nosso) ao longo de sua vida e até o momento de sua

morte”100: Jesus levou até o fim sua atividade de anúncio e preparação do Reino aos pobres

baseado numa aposta em dois dados transcendentes: (1) a história e seus mecanismos, apesar

das resistências, “buscam o Reino”, (2) num processo que, em última instância, é conduzido

pelo Deus compassivo e fiel.

A ressurreição, por sua vez, é um dado novo proporcionado pela experiência nova que

a comunidade tem de Jesus, após o sombrio acontecimento da cruz. Trata-se

fundamentalmente da significação Jesus101. Como já acenamos acima, ela constitui um dos

pólos da questão teológica que desafiou a comunidade cristã primitiva: a relação entre

escatologia e história.

Pois bem, Segundo afirma, a partir de sua busca nos Sinóticos, que a ressurreição é

“um dado transcendente, não uma apologética”102, ou seja, não quer simplesmente informar,

mas compreender a experiência de Jesus de Nazaré e seu alcance para a humanidade. A

comunidade faz a experiência de que o absoluto de Jesus – sua estrutura significativa

sintetizada na imagem do Reino de Deus – é acolhido por Deus. Neste sentido, a ressurreição

é como “uma espécie de ‘verificação em promessa’”103, o que nos leva à conclusão de que

100 Ibid., p. 109. 101 Cf. Ibid., pp. 303-310; 320-325. – Desde o começo a comunidade cristã entendeu a significação de Jesus em

termos universais. Neste ponto, Segundo, atento ao seu propósito de dialogar com ateus, cita uma afirmação de um não crente, Milan Machovec, para o qual “o momento em que Pedro descobriu que Jesus era ainda o vencedor, foi um dos maiores momentos da história e da humanidade. (…) mesmo que no Gólgota não houvesse nenhum milagre apocalíptico externo, mesmo que não houvesse ali um deus ex machina, mesmo que não tivesse havido nada mais do que uma desoladora e concreta morte de cruz” (Jesús para ateos. Salamanca: Ed. Sígueme, 1977, [não cita a página]. Apud: SEGUNDO, El hombre de hoy, tomo I, p. 171).

102 Id., La historia perdida, p. 329. 103 Ibid., p. 330. – Uma afirmação de Segundo sobre a maneira como os dados transcendentes são assumidos na

existência humana ajuda na compreensão sobre a historicidade da ressurreição e seu alcance existencial: “Sua verificação não é a verificação empírica ordinária, e sim a escatológica e, portanto, objeto de fé até o fim. Dito em outras palavras, também aqui a narração (sobre a ressurreição, acréscimo nosso) se sujeita, como todos os exemplos estudados, ao esquema: ‘dada a ressurreição de Jesus, que eu (crente) assumo como verdadeira (ou seja, histórica), no final se verá que era melhor agir como Jesus agiu e ensinou’” (grifos do autor, id., El hombre de hoy, tomo I, p. 210). Penso que uma compreensão semelhante é a de Andrés Torres Queiruga, para o qual a ressurreição é um evento transcendente que toca a história humana: “Por isso, a este nível básico da confissão, não cabe, e até se mostra artificiosa, a separação entre Jesus e sua ‘causa’ (Sache). Tendo em conta a peculiaridade do acontecimento pascal, ambos são inseparáveis. Não é possível que esta causa continue se Jesus não estiver vivo e presente. Não é possível proclamar de verdade a sua ressurreição sem se incluir no seguimento de sua causa” (Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 143). Este alcance existencial evidentemente depende da fé – estrutura de valores – das “testemunhas”. Muitos autores chamam a atenção para um elemento comum entre os relatos neotestamentários: Jesus “aparece” somente àqueles que compartilharam com ele os mesmos valores, ou seja, a mesma fé. Nesta perspectiva, afirma Hans Kessler: “L’affermazione pasquale parla di una realtà che non è

100

este dado escatológico não engole a história e nem dispensa a ação humana, mas, pelo

contrário, dá-lhes um sentido bem preciso: a história é o lugar onde Deus e os homens

colaboram na tarefa da humanização.

3. Generalização antropológica: a chave de Paulo

Como vimos no tópico anterior, os principais dados históricos de Jesus de Nazaré são

propiciados pelo procedimento metodológico da distinção entre o pré-pascal e o pós-pascal.

Segundo assevera que tal procedimento não deve levar a conclusões equivocadas no que se

refere à relação entre estes dois dados.

Não se trata, de modo algum, de declarar verdadeiro o primeiro e falso o segundo. Trata-se, para fazer história, de distinguir, à medida do possível, entre o dado histórico e sua interpretação (teológica). Não, uma vez mais, para desprestigiar esta última, mas exatamente o contrário: para abrir o caminho a novas, mais ricas e mais expressivas interpretações desses fatos e da personagem que está em seu centro104.

Abrir caminho para novas interpretações: este é o objetivo da investigação histórica. E

isto – a tarefa de interpretar –, evidentemente, requer uma metodologia que torne possível a

tradução do sentido de Jesus – a sua fé, conforme a terminologia de Segundo – para um

contexto que já não é o dele. Se, como vimos, nos Sinóticos a chave que dava inteligibilidade

aos dados era a própria chave de Jesus, agora veremos que o trabalho teológico deverá se

valer de uma chave que estenda até ele as redes de problemas próprios do contexto da

comunidade ou, de modo geral, do grupo que o interpreta. De acordo com o método de nosso

autor, trata-se de realizar o círculo hermenêutico no fazer teológico.

Pois bem, apresentamos agora as linhas gerais da segunda parte do projeto teológico

de Segundo. Trata-se na verdade das linhas gerais da cristologia humanista de Paulo, tal como

a interpreta Segundo. Veremos que a razão principal do intento de nosso autor é de ordem

metodológica. Não visa “completar” uma teologia, mas mostrar um caso paradigmático de

fazer teológico, no que concerne à tarefa de interpretar Jesus. Tarefa que não podemos dar por

terminada105, dado que não se pode simplesmente traduzir esta interpretação para o nosso

contexto, embora haja aí elementos antropológicos universais, como veremos.

stata dapprima solo constatata e conosciuta da spettatori neutros, per poi essere accettata solo successivamente nella fede, ma parla al contrario de una realtà che fin dall’inizio ha richiesto e richiede il coinvolgimento esistenciale di coloro che la percepiscono” (grifo nosso. La risurrezione de Gesù Cristo. Uno studio biblico, teologico-fondamentale e sistematico [trad. it.: Carlo Danna]. Brescia: Quiriniana, 1999, p. 251).

104 Id., La historia perdida, p. 359. 105 Segundo afirma que a fidelidade supõe a diversidade de interpretação: “A verdadeira fidelidade, a que capta e

recria o mais profundo, passa pela diversidade, embora não por qualquer diversidade. O Novo Testamento é

101

Na verdade, dado o objetivo e as dimensões de nossa dissertação, não podemos

apresentar as linhas, mas sim, de algum modo, organizá-las em torno das possibilidades de

uma cristologia na perspectiva da teologia fundamental que Paulo oferece. Tais

possibilidades, de acordo com a interpretação de Segundo, repousam no fato de que a

cristologia do Apóstolo apresenta elementos antropológicos importantes106, entre os quais

destacamos três: o método que parte de perguntas existenciais (chave antropológica), a

maneira como entende os mecanismos de escravização do homem (pecado) e a experiência da

liberdade.

Vale lembrar que faremos esta apresentação com um único propósito: evidenciar a

relação entre diálogo e reflexão cristológica no pensamento de Segundo. Por conta disso,

nossa abordagem não será exaustiva, mas apenas porá em relevo alguns elementos

antropológicos válidos para qualquer homem, e que, por isso mesmo, abrem caminho para a

interpretação de Jesus, em diálogo com o homem de hoje.

3.1. O método de Paulo. A chave antropológica

Segundo afirma que um projeto de cristologia, além de rastrear os dados mais

fidedignos da história de Jesus, deve realizar uma generalização antropológica daquilo que

entre estes dados é fundamental. No que concerne a isto, o gênio de Paulo percebeu, a seu

modo, e com os recursos culturais e conceituais de que dispunha em seu tempo, aquilo que a

análise antropológica de Segundo constata: a fé (antropológica) tem primazia sobre a

ideologia. Esta de fato é constituída “por meios (…) que devem ser julgados perante um

determinado contexto, em razão de sua eficácia histórica situada”107, não por seu valor em sim

mesmo. Neste sentido, uma cristologia não deve se preocupar, fundamentalmente, em

generalizar os meios – palavras e gestos concretos – usados por Jesus para anunciar o Reino

aos pobres, mas sim os seus valores – sua estrutura de sentido. Isto porque os meios são

devedores de seu contexto. Repetir as palavras e os gestos de Jesus fora da tradição e da

um exemplo paradigmático disso, enquanto todos os seus escritos são outras tantas interpretações que se apresentam como diferentes e fiéis ao mesmo tempo. E que, enquanto tais, tomam de assalto, por assim dizer, o espírito e o sentido de Jesus de Nazaré, para fazer válida a transposição dos valores e da significação daquela existência a uma existência vivida em outro contexto e diante de outras questões” (Ibid., pp. 371-372).

106 A este respeito, afirma: “Creio que é possível fazer de Paulo uma leitura pertencente à teologia fundamental, pelo menos na medida em que de Paulo, à luz de sua interpretação de Jesus, surge uma espécie de antropologia que pode e deve ser proposta a qualquer homem de boa fé, como algo que ao mesmo tempo enriquece e questiona” (Ibid., pp. 359-360).

107 Id., El hombre de hoy, tomo II/1, pp. 566-567.

102

conjuntura de Israel pode simplesmente levar a uma espécie de mimetismo. Ser cristão, no

entanto, é bem mais que isto. É assumir e transmitir existencialmente os valores de Jesus.

Por isso, Paulo passa a impressão de que desconhece a história de Jesus ao formular

sua cristologia. O vocabulário de Jesus, repleto de referências ao Reino e aos pobres,

praticamente não aparece em Paulo. Sua preocupação recai sobre o significado de Jesus para o

homem que pode não estar no contexto de Israel. O seu método consiste em estender a Jesus

as redes de problemas existenciais próprios do mundo greco-romano. Trata-se de sua chave

antropológica. É certo que conhece a história de Jesus, mas o seu interesse é pelo seu

significado para o homem imerso na história e seus mecanismos. Sua chave de interpretação

“se apresenta como válida para todo homem, em qualquer situação em que este se

encontre”108. Se olharmos bem, Paulo realiza o círculo hermenêutico na medida em que

consegue intuir perguntas ricas, profundas e gerais de seus interlocutores. Além disso, faz

uma leitura nova das Escrituras. Estas, especialmente o evento Cristo, são, aos olhos de Paulo,

fonte de sentido para o homem implicado nestas questões vitais.

Faremos agora algumas pontuações sobre o estudo de Segundo. Relacionada a elas

está a chave antropológica de Paulo.

a) O objeto de estudo. A atenção de Segundo se volta para as grandes cartas de Paulo:

aos Coríntios, Gálatas e Romanos. Entre elas, a ênfase recai quase que exclusivamente sobre

os oito primeiros capítulos da carta aos Romanos.

Estes, por uma parte, respondem a uma problemática humana mais universal que os demais capítulos (consagrados ao problema da resistência do judaísmo ao cristianismo e a exortações morais e de ordem eclesial). Por outra, estes capítulos precisos, por constituir a síntese mais acabada e completa de Paulo sobre a significação que tem Jesus para o ser humano, têm interessado de maneira fecunda em todos os tempos aos pensadores cristãos109.

b) A identificação da chave. Como descobrir a chave de Paulo? Segundo constata que

isto é possível mediante análise do estilo literário de Paulo. Este personifica os conceitos

abstratos: Morte, Pecado, Lei, Carne, Espírito, Vida, Graça são como atores que têm vida

própria. Um exemplo esclarecedor é a maneira como Paulo concebe o dado central do

significado de Jesus: “é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os seus inimigos

debaixo dos seus pés” (1Cor 15,25). Que inimigos são estes? Evidentemente que, no esquema

de Paulo, são os mecanismos que escravizam o homem. Assim, por exemplo, o termo pecado

108 Ibid., p. 568. 109 Id., La historia perdida, p. 384.

103

assume um sentido bem preciso. Quando Paulo afirma que todos os homens “estão debaixo

do pecado” (Rm 3,9) não quer dizer que o homem peca, mas que é escravo do pecado.

Os capítulos 1-3 de Romanos não provam que o homem peque. Descreve o mecanismo pelo qual o “Senhor Pecado” se apodera do homem, pondo na prisão a base da liberdade humana: a verdade110.

Como se vê, há uma problemática própria em torno da qual são organizados os

diferentes elementos: a antropológica ou existencial.

De modo geral, pode-se dizer que Paulo personifica as forças que intervêm significativamente em estruturar cada existência humana. Aquelas que todo homem (por mais diversas que sejam suas circunstâncias e até sua origem religiosa) observa em si mesmo, quando dirige seu olhar para a profundeza de sua existência e para as principais peripécias que a atingem. Assim, o decisivo de termos como pecado, graça, obras da lei, lei dos membros, justificação, eu, homem interior, e outros, mais ou menos semelhantes a esses, obriga a ensaiar, para abrir o pensamento de Paulo, uma “chave” antropológica ou existencial111.

c) Deslocamento temático. Paulo desloca a problemática político-religiosa enfrentada

por Jesus para a problemática dos mecanismos antropológicos escravizadores do homem. A

chave política dos Sinóticos se explica pelo fato de na Palestina os judeus serem a maioria e o

sistema político se organizar de forma teocrática. Ao passo que no contexto greco-romano,

com o qual dialoga Paulo, os judeus são uma etnia minoritária e não têm hegemonia política.

Enfrentar o poderoso sistema opressor do Império Romano implicava numa série de questões

práticas. Como traçar o quadro sócio-político em que se encontram tanto opressores como

oprimidos? Como evidenciar a oposição entre os dois grupos? E, o que é mais difícil ainda,

como dizer – num contexto de politeísmo – que partido Deus (o de Paulo) toma nesta

situação? Isto requereria o emprego de meios altamente custosos do ponto de vista energético.

Uma tarefa que supõe todo um processo histórico112. Por isso, Paulo escolhe uma chave

antropológica.

3.2. Os mecanismos de escravização do homem

Segundo mostra que Paulo inicia sua tarefa de apresentar o significado de Jesus para o

homem estabelecendo um princípio de salvação: a fé.

(…) 16não me envergonho do evangelho. Já que é o poder salvador de Deus para todo aquele que crê, primeiro para o judeu e (também) para o grego. 17Porque nele (evangelho)

110 Ibid., p. 388. 111 Ibid., p. 390. 112 Cf. Id., El hombre de hoy, tomo II/1, pp. 565-573.

104

a justiça que procede de Deus está sendo revelada de fé em fé, como está escrito: “Aquele que é justo pela fé, viverá” (Rm 1,16b-17)113.

Trata-se (o princípio) de uma boa notícia de salvação ao homem, seja ele pagão ou

judeu. Neste ponto, uma questão se impõe: salvação de que?

Ser salvo, ou salvar-se, significa escapar de uma catástrofe. E Paulo vai, nos capítulos seguintes, descrever esta catástrofe humana. E chegará, assim, a demonstrar o que se propõe: “Acabamos de provar que todos, tanto os judeus como os gregos, estamos debaixo do Pecado” (3,10, sic). Com isso, terá conseguido que o “mundo inteiro se reconheça réu em face de Deus” (3,19)114.

Como se vê, em termos gerais, Paulo aglutina os mecanismos desumanizadores do

homem – os que o levam à catástrofe – em torno deste “personagem” que é o Pecado. Nos

capítulos 1-3 de Romanos, Paulo demonstra que tanto pagãos – “gregos” – como judeus são

escravos do mesmo Senhor. Como este Senhor se apodera indistintamente dos homens?

Veremos que o “Pecado” é sempre o mesmo, mas os mecanismos que usa para escravizar

diferem conforme se trate de judeus ou de pagãos115.

a) O processo de alienação dos pagãos.

De acordo com a interpretação de Segundo, Paulo demonstra que o homem se submete

a um processo de alienação que o esvazia de sua liberdade e o coloca a serviço de outro poder

que aos poucos se torna seu dono116. Tal processo obedece a um movimento que vai da

injustiça à mentira. O homem, para justificar sua prática desumanizadora – injustiça –,

esconde a verdade (cf. Rm 1,18) e, por fim, se “enreda em seus arrazoados” (Rm 1,21), a

idolatria, tornando-se escravo. Esta seria a culminação de um processo de perda da verdade

do homem.

O capítulo 1 de Romanos descreve um quadro sombrio da conduta dos pagãos. Estes,

apesar de conhecerem a Deus (1,20-21) “não o glorificaram como a Deus” (1,21), por isso,

“Deus os entregou” (1,24.26.28) aos seus próprios desejos e paixões desordenadas. Assim,

desenha-se o seguinte movimento: “idolatria do homem, abandono do homem por Deus,

pecado (ou pecados?) do homem”117.

113 Grifos e parênteses de Segundo. Cf. Id., La historia perdida, p. 393. 114 Ibid., p. 395. – Segundo remete a Rm 3,10 ao citar uma passagem que na verdade está em 3,9, conforme

versão por ele mesmo citada (cf. Ibid., p. 425). 115 Cf. Ibid., p. 396. 116 Cf. Ibid., p. 401. 117 Ibid., p. 397.

105

Segundo propõe uma profunda interpretação deste esquema de Paulo. À primeira vista

parece que Deus – zeloso de si ante os outros deuses – castiga o homem por sua impiedade ou

idolatria. Nada mais contrário ao Deus misericordioso revelado por Jesus. Nosso autor afirma

que é preciso “buscar um ‘princípio’ mais radical que o ato de idolatria, com a conseqüente

resposta de Deus ‘entregando’ o homem a seus desejos e paixões”118. Na verdade, trata-se de

ler Paulo com sua chave antropológica. Assim, temos de alterar a ordem dos fatores,

formulando o seguinte esquema:

1. O princípio – ponto de partida: Paulo afirma que “Deus os entregou a...” (Rm 1,

24.26.28): “desejos fortes”, “paixões” e “mente”. Segundo entende que estes termos são, na

prática, sinônimos e indicam aquilo que está em ebulição nos processos decisórios mais

profundos do homem. Algo que está no homem antes mesmo que este se torne idólatra: a

“injustiça” ou, como afirmou mais adiante para dizer que o judeu “faz as mesmas coisas”, o

“egoísmo” (Rm 2,8) no trato com os demais119.

De fato, de mil maneiras, sacrificar o outro ao prazer próprio e à própria satisfação constitui a tendência mais radical do homem. E aí começa o processo que vai meter na prisão a própria “verdade”, para que nada estorve o livre (?) jogo dessa força primordial120.

Para Paulo, ao contrário do que parece à primeira vista, esta tendência primordial não

está relacionada ao Pecado propriamente, mas sim àquilo que rebaixa o homem, que o

envergonha, humilha e desonra (Rm 1,24.26-27). Em uma palavra, àquilo que o desumaniza.

2. A perda da verdade – idolatria: a partir daí o homem começa a “enredar-se em seus

arrazoados” em busca de justificação. Perde a capacidade de julgar por si próprio e acaba

cedendo a uma conduta vergonhosa e humilhante, ou seja, desumana.

Pois bem, de onde procede esta vergonha do homem ante suas obras? Segundo afirma

que existe uma outra voz que eleva o homem acima desta condição inumana. Trata-se de uma

voz humana que surge no interior da natureza humana, mais especificamente de seu

“conhecimento”121, e provoca o seu “reconhecimento”, ou seja, um conhecimento posto em

prática (Rm 1,21.28.32). Esta verdade do homem aparece para Paulo também como divina,

118 Ibid., p. 409. 119 Deus não interfere nesta instância de decisão do homem. É neste sentido que o “entrega...”. 120 Ibid., p. 410. 121 Segundo não está se referindo ao processo cognitivo em si, mas ao “conhecimento” de algo: aquilo que em

termos gerais se pode chamar de condição humana. Reconhecer esta “verdade” do homem é assumir uma existência “humana”, ao passo que “enredar-se” é trapacear esta verdade do homem e cair numa conduta desumana, que humilha o homem e contraria o projeto de Deus.

106

“isto é, como relacionada intimamente e de várias maneiras com Deus, enquanto este

representa o ‘absoluto’ para o homem”122. A falsificação – idolatria – deste absoluto inscrito

no coração acaba empurrando o homem para as trevas de uma conduta vergonhosa e

desumanizadora. O homem acaba silenciando a voz interior que o chama a colocar-se a

serviço da liberdade e do amor, pois reconhecê-la (praticá-la) diante da tendência primordial

implica um gasto energético monumental.

A força primordial leva assim o homem, pouco a pouco, a adorá-la. Isto é, a absolutizá-la, dando-lhe a patente mais digna de respeitabilidade: a religiosa. A religião do espontâneo justifica dessa maneira o homem em sue egoísmo. E o homem chega inclusive a acreditar nessa sua própria mentira religiosa. Esse, e não outro, é o sentido negativo da idolatria123.

3. O homem escravo do Pecado. A distorção do absoluto faz o homem perder, aos

poucos, a capacidade de discernir sua própria conduta e se tornar escravo do Pecado. E não se

trata de uma multiplicação de pecados, adverte Segundo, mas de uma vida onde o homem se

torna lobo do homem. De fato, quando Paulo descreve a conduta dos pagãos, fica claro que se

refere a um quadro mais geral e profundo:

O homem chegou (ao tornar presa a verdade sobre si próprio) a construir e justificar uma sociedade infra-humana (…). E dela já não pode sair até recuperar a propriedade de si mesmo, uma liberdade que exige a verdade do homem e, com ela, a verdade de Deus124.

b) O processo de alienação dos judeus. O caso do pecado dos judeus difere nos

mecanismos de alienação. Enquanto os pagãos falseiam a lei inscrita no coração (autonomia

ou liberdade), os judeus falseiam, por sua dureza de coração, o espírito da Lei de Deus que

lhes foi revelada. Isto ocorre de duas maneiras, num único processo de auto-engano: primeiro,

fazem da posse dessa lei um privilégio, algo que uma vez praticado os colocariam em

vantagem diante de Deus; segundo, não captam o espírito da lei e acabam escravos da letra125.

E isto não somente conduz a uma conduta pecaminosa, mas converte a Lei num estranho

personagem ao mesmo tempo divino e diabólico. A maneira específica de o judeu manejar a

lei a torna diabólica, ou seja, um mecanismo de escravização que tira a liberdade e fecha ao

homem os caminhos do amor.

Interessado na opressão do homem como tal – usando a chave antropológica –, Paulo escolheu denunciar uma determinada maneira inumana de o homem tratar os seus semelhantes. E ela lhe mostrou que, nesse plano, o judeu, oprimido politicamente, oprimia os seus semelhantes com o peso de um desprezo fundado numa mentira religiosa.

122 Ibid., p. 411. 123 Ibid., p. 413. 124 Ibid., p. 416. 125 Cf. Ibid., pp. 430-443.

107

Numa espécie de “idolatria” semelhante à que servia ao pagão para praticar a injustiça e desumanizar sua sociedade126.

É interessante notar o paralelo entre a teologia de Paulo e a de Jesus. Em ambos se

adverte para o perigo da alienação da liberdade humana. Se para Paulo o homem está escravo

deste personagem – o Pecado – aglutinador dos mecanismos de desumanização, para Jesus o

homem está escravo de Satanás, que igualmente desumaniza o homem, que o impede entrar

em sintonia com o coração de Deus por meio de gestos de amor.

3.3. A experiência da liberdade.

Traçado o quadro da problemática antropológica em que se encontram pagãos e

judeus, Segundo passa a apresentar aquilo que para Paulo representa a transformação desta

situação: o significado de Jesus de Nazaré.

É interessante notar que tanto Paulo como Jesus advertem para o perigo que a religião

representa para a liberdade humana. A liberdade gera uma angústia que pode induzir o

homem à criação de ídolos que justifiquem e dê segurança às suas ações. Em suma, a criação

da religião como um corpo de normas destinadas a dar segurança ao homem. Este acaba se

tornando escravo de algo exterior à sua própria liberdade127.

Neste ponto, a questão que se impõe para Paulo é a seguinte: como pode o homem –

escravo do pecado como está – tornar-se livre, “salvar-se”? Não há dúvida que a única

resposta possível é a fé. Por meio da fé em Jesus Cristo o homem se incorpora gratuitamente a

uma existência humana livre da escravidão que o relega a uma situação infra-humana128.

Mas afinal, o que é a fé? Segundo afirma que para Paulo a fé é um dado antropológico

fundamental. Para os judeus ela se configura em oposição às obras da lei (Rm 3,28), ao passo

que para os pagãos se trata de confessar Jesus como o único Deus. No entanto, isto não quer

de modo algum dizer que se trata de uma adesão a um credo religioso como pré-requisito para

a entrada na comunidade cristã129. Se fosse assim Paulo cairia numa armadilha: a de “re-

converter a mesma fé (cristã) em uma nova subordinação às ‘obras da Lei’”130.

126 Ibid., pp. 444-445. 127 Cf. Ibid., p. 474. 128 Cf. Ibid., p. 455. 129 Cf. Ibid., p. 460. 130 Ibid., p. 466.

108

Enquanto que para Segundo “fé” é a estrutura de valores que o homem assume

“crendo” (no testemunho alheio) que com ela alcançará maior felicidade em sua existência,

para Paulo “fé” se compagina muito mais com uma atitude de “confiança” radical de que

Deus conduz a história (Rm 3,21-31; 4,1-25).

De fato, a fé paulina é a atitude daquele que “confia” seu destino nas mãos de Deus para pôr nos projetos históricos todo seu afã, livre assim da angústia imatura daquele que gostaria de contar e controlar sempre em que termos se encontra com a salvação131.

Pois bem, Paulo precisa situar a humanidade inteira frente ao plano divino revelado

por Jesus. Assim, recorre às Escrituras para mostrar que a mesma justificação pela fé foi dada

a Abraão quando este ainda era pagão (Rm 4,10-12). Dessa forma, Paulo eleva ao nível

antropológico o plano divino. Este se configura em três etapas: 1) “Desde adão (exclusive,

dado que este recebeu uma pequena lei) até Moisés” (Rm 5,14); 2) de Moisés até “que chegou

a fé” (Gl 3,25) e 3) o “agora” de Jesus Cristo (Rm 5,1)132.

Na primeira etapa Abraão foi declarado justo quando ainda não havia Lei. A segunda

etapa constitui aquela em que a Lei foi dada como um pedagogo. Esta, no entanto, não pode

se converter em um privilégio ou em um instrumento imprescindível. A terceira etapa, o

“agora” da revelação de Cristo, restitui à humanidade inteira a universalidade da primeira

etapa. Em Cristo todos os homens alcançaram a condição de filhos de Deus (Rm 8,21) –

maturidade –, ou seja, alcançaram a liberdade.

Antes de encerrarmos esta exposição precisamos fazer ainda algumas pontuações:

como concretamente o homem é declarado justo pela fé? E quais as conseqüências da

liberdade?

Uma vez mais o exemplo de Abraão ajuda na compreensão. Este assumiu (pela fé) a

promessa de Deus e partiu em busca de uma terra que garantisse melhores condições de vida

para seus filhos. Não quer dizer que Deus tenha feito um juízo moral sobre Abraão,

declarando-o, dessa forma, apto a entrar nas instâncias celestiais, mas que este assumiu sua

existência – a Promessa da história – de um modo agradável aos olhos de Deus.

No que se refere às conseqüências da liberdade, vale destacar o seguinte: o homem foi

libertado da escravidão do pecado. A revelação de Jesus é um presente de Deus que devolve

ao homem a sua humanidade. Quem assim compreende a mensagem cristã “deverá superar a

angustia e insegurança que leva o homem imaturo, infantil, a buscar relações controláveis 131 Ibid., p. 496. 132 Cf. Ibid., pp. 464-468.

109

com o Absoluto: obras de uma lei que lhe creditem a salvação”133. O homem é devolvido à

história e sua Promessa que acende a chama da esperança (Rm 4,18; 8,24).

(…) o ser humano é devolvido, pela fé, à história seguindo o mesmo movimento que lhe devolve sua humanidade. “Herdeiro do mundo”, “colaborador com Deus” num trabalho de “construção” que há de ser realizado, sem medo, no tempo em que age e cria a liberdade (1Cor 3,9), a fé o enraíza (integrando a história na escatologia como a tenda de campanha na casa celestial) nesta terra destinada a produzir amor, justiça e solidariedade134.

Reinhold Niebuhr fala de maneira muito clara a respeito desta recuperação do homem

para a história, realizada pela fé em Jesus.

Se não se liberta da ansiedade, o homem esta enredado no círculo vicioso de seu egocentrismo, tão preocupado por si próprio, que não pode desbloquear-se para a aventura do amor135.

Penso que esta é a história recuperada de Jesus de Nazaré à qual se refere Segundo: a

tomada de consciência de que, pela fé em Jesus Cristo, o homem é transformado num ser livre

para assumir a tarefa da humanização. Trata-se de elevar ao nível antropológico mais geral e

profundo o chamado de Jesus para entrar na dinâmica do anúncio e preparação do Reino de

Deus aos pobres de Israel.

Segundo endente que a cristologia paulina insere o homem na história. Esta não é um

lugar de pecados e perdições, um tempo de provações individuais e coletivas, mas uma

construção, um caminho para Deus. É bem verdade que em seus mecanismos atuam

elementos que resistem à tarefa da humanização. Mas é fato também que se o homem adquire

a liberdade, esta lhe é concedida em vista de algo concreto. “Efetivamente, só se justifica a

liberdade se é para inventar um caminho. Mas não é certo que o caminho da ordem e do bem

já esteja inventado”136.

133 Ibid., p. 522. 134 Ibid. 135 The nature and the destiny of man. Tomo 1. New York: Scribner’s, 1964, p. 272. Apud: SEGUNDO, La

historia perdida, p. 523. 136 SEGUNDO, La historia perdida, p. 616.

CONCLUSÃO

A questão do diálogo se fez sentir ao longo da exposição de três modos bastante

precisos: na exposição das perspectivas básicas do pensamento de Segundo; na abordagem

sobre os fundamentos epistemológicos resultantes de sua análise antropológica; e nas linhas

gerais de sua reflexão cristológica.

1. O estudo mostrou que as perspectivas básicas do projeto teológico Segundo abrem

caminho para sua cristologia. Primeiro, a abordagem da relação entre revelação e história

colocou-nos diante de um amplo horizonte de elaboração teológica, no qual o diálogo com o

mundo assume posição de relevo. De fato, assim entende Segundo, a Revelação de Deus, da

qual se ocupa a teologia, não é uma verdade em si destinada a frutificar sozinha, mas evento

na história da humanidade. Dessa forma, a elaboração teológica vai estabelecendo as bases

para um discurso sobre o evento histórico de Jesus Cristo que seja simultaneamente

sistemático e em diálogo como o homem de hoje.

Vimos que esta maneira de compreender a revelação de Deus conduziu à questão do

método: como manter a novidade radical e criadora da Palavra de Deus na história da

humanidade? A resposta a esta questão tem a ver com o compromisso de mudar o mundo.

Neste particular, o diálogo com as ciências não se pode evitar. O esclarecimento sobre os

interesses que estão no ponto de partida da interpretação da Escritura inclui uma permanente

análise ideológica de toda a realidade, inclusive da realidade teológica. Somente uma

circularidade do pensamento – círculo hermenêutico –, que tenha presente as questões mais

candentes, e que volte à Escritura em busca de uma resposta, poderá manter a teologia em sua

base revelada.

No entanto, o diálogo com as ciências esbarra num limite. A análise das condições da

ciência sociológica e a consideração de elementos importantes da epistemologia teológica nos

deram conta de que o compromisso pela humanização se configura como opção política. Ou

seja, a certo ponto o teólogo deverá fazer opções baseadas em dados sobre os quais as ciências

ainda não dispõem de instrumental de verificação. A opção política, exatamente por ser tal, ou

seja, por não se fundamentar em dados empíricos comprovados cientificamente,

111

inexoravelmente colocará no horizonte da teologia a questão dos dados transcendentes na

existência humana.

2. Se olharmos bem, o que foi dito no parágrafo anterior e desenvolvido no capítulo

primeiro, por pura lógica, delineia as linhas gerais da análise antropológica de Segundo, da

qual resultam os fundamentos epistemológicos. Neste ponto, a capacidade de diálogo de

nosso autor alcança o nível mais geral e profundo. Ela questiona a maneira costumeira com

que se compreende a vida humana seja no plano pessoal, seja no social. Em uma palavra,

chega-se a demonstrar que todo homem se deixa orientar por uma fé – aposta em dados que

transcendem a própria capacidade de verificação – e na medida do possível lança mão de

meios – ideologias – que tornem possível a sua realização.

Os problemas humanos mais urgentes, os que ultrapassam a periferia da existência

para atingir o seu centro, pertencem todos a estas duas dimensões antropológicas básicas. Tal

constatação permite a Segundo dialogar com o homem de hoje despojado de catalogações

sociológicas e religiosas. Chega-se dessa maneira a demonstrar que o que pode colocar os

homens em acordo (ou desacordo) é a esfera do sentido – os valores, a fé antropológica. As

ideologias, ou as ciências, são sistemas de eficácia de que os homens se utilizam para realizar

aquilo sobre o qual concordam existencialmente.

3. Estes pressupostos epistemológicos serviram para configurar o aparelho científico

que nosso autor utilizou para “colocar” o homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. A análise

antropológica demonstrou que o que causa interesse entre as pessoas é o seu universo de

significação. Isto vale para toda situação de encontro entre pessoas, tanto mais com Jesus.

Em uma palavra, o que em Jesus poderá interessar ao homem de hoje não é tanto a sua

ideologia – os meios: palavras e sinais, de acordo com a terminologia empregada por Segundo

–, mas os seus valores. A chave política, inerente aos meios utilizados por Jesus para anunciar

o Reino aos pobres de Israel, nos dá acesso aos valores deste Reino, ou seja, aos valores de

Jesus mesmo.

A reflexão cristológica deverá de algum modo extrair o sentido de Jesus – seus

valores, sua fé – do contexto situado onde pôde e quis anunciar o Reino, para fazê-lo

significativo e interessante ao homem de hoje. No que se refere a isto, Segundo apresenta

Paulo como paradigma de teólogo. De fato sua cristologia humanista faz uma generalização

antropológica do significado de Jesus de Nazaré para o homem que já não está no contexto de

Israel.

112

4. O presente estudo, dadas as suas dimensões e o curto período de que dispúnhamos

para realizá-lo, deixa várias possibilidades para futuros estudos. Assim, por exemplo, se

poderia analisar a maneira como Segundo dialoga em sua reflexão cristológica com as mais

variadas ciências e correntes de pensamento. Seu recurso à chave evolutivo-cósmica para

pensar o sentido de Jesus, e até mesmo desdobramentos posteriores de seu pensamento, dado

que sua elaboração teológica não termina em sua cristologia.

BIBLIOGRAFIA

1. Principal a) Livros SEGUNDO, Juan Luis. Teología abierta para el laico adulto. Vol. II. Gracia y condición humana. Buenos Aires, México: Carlos Lohlé, 1969.

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115

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APÊNDICE

Biografia∗

Esta Biografía pertenece a parte de un trabajo sobre Juan Luis Segundo preparado por

Ivonne Clerc, Carlos Gutiérrez, José Irureta Goyena y Elbio Medina, en Montevideo,

Uruguay (1996).

1925 Nace en Montevideo el 31 de octubre.

1941 Luego de realizar sus estudios primarios y secundarios en el Colegio Sagrado

Corazón, ingresa a la compañía de Jesús el 12 de marzo. Hizo los votos religiosos y

los primeros pasos de su formación como jesuíta en Córdoba (Argentina).

1946 Estudia filosofía en el seminario de San Miguel (Argentina). Se licencia con la tesis

"Existencialismo: Filosofía y Poesía", en 1948.

1949 Hace su primer año de magisterio en el Colegio Sagrado Corazón como profesor de

Filosofía y Literatura. Publica en 1953, mimeografiado, el registro de sus clases:

"Orientaciones Literarias: Apuntes de clase".

1952 Realiza un año de estudios de teología en el seminario San Miguel (Argentina) y los

culmina en la Facultad de Teología de los Jesuítas San Alberto, en Eegenhoven,

Lovaina (Bélgica). Se licencia en Teología en 1956 con la tesis: "La Cristiandad ¨una

utopía?". En Lovaina participa en un curso sobre la teología de la gracia, dictado por

Leopoldo Malevez. Sostiene Segundo "a partir de un enfoque que ya aparece en el II

Concilio de Orange del año 529, y que diez años después se encuentra en los

documentos del Vaticano II: la gracia de Dios está siempre implícita en la naturaleza

humana. No se debe entonces compartimentalizar lo sagrado y lo secular, manteniendo

una perspectiva balanceada".

1955 Es ordenado Sacerdote el 15 de agosto y su tercera probación la hace en 1957 en Paray

le Monial.

∗ Esta biografia foi disponibilizada no Site dedicado exclusivamente ao estudo de Juan Luis Segundo. Citamo-la

textualmente por sua completeza e objetividade. http://www.juanluissegundo.com/pdf/biografia.pdf. Acessado em 05/06/2007.

117

1958 En la Facultad de Letras de la Sorbona, bajo la dirección de Gandillac, consagra los

años siguientes a preparar su "Doctorar d'Etat". Lo obtiene en 1963. Su tesis principal

trata sobre el pensamiento de Nicolas Berdiaeff y es publicada con el título "Berdiaeff,

una reflexión cristiana sobre la persona", (Ed. Aubier, Paris) subvencionada por el

"Comité National pour La Recherche Scientifique". La tesis complementaria la realiza

bajo la dirección de Paul Ricoeur, con el título "La cristiandad, ¨una utopía?". Retoma

su tesis para la licenciatura en Teología.

Los autores que tuvieron mayor influencia en su obra no fueron todos teólogos "Debo

mucho al primer Rahner, pero los que influyeron más profundamente en mí son

autores tanto filósofos como teólogos, como por ejemplo N. Berdiaeff y me atrevería

también a decir el Jean Paul Sartre de la primera época y de las primeras obras de

teatro, tratando el problema de la libertad. En cuanto a la filosofía de la ciencia, la

epistemología y la antropología, debo mucho a Teilhard de Chardin entre los católicos

y a Gregory Bateson entre los no creyentes".

1961 Comienza en Montevideo su actividad como conferencista impulsando y orientando

los "Cursos de Complementación Cristiana". En ellos se analizaba la problemática

económica, social y política en forma compatible con una actualizada comprensión de

la fe. Estos cursos duran hasta 1964.

Combina su actividad en Uruguay con sus trabajos en el continente. En Chile trabaja

con R. Vekemans sobre un "Ensayo de Tipología Socioeconómica Latinoamericana" y

con R. Poblette un "Ensayo de Tipología Política de América Latina".

Es asesor de Pax Romana.

1962 Participa en los Cursos Internacionales de Verano de la Universidad de la República

(Uruguay) con tres conferencias sobre "La Concepción Cristiana del Hombre".

1963 Integra la Dirección de la Sociedad Uruguaya de Filosofía como Vocal. En 1961 había

participado de un Simposio organizado por dicha Sociedad y la Comisión Nacional de

UNESCO sobre "El Fracaso de la Sanción Jurídica Universal Objetiva de los

Derechos Humanos".

Desde 1960 e intensificándose a la fecha, es su participación como colaborador de

diversas publicaciones periódicas, académicas y de opinión. En Uruguay: Semanario

Marcha, Cuadernos de Marcha, Cuadernos Latinoamericanos de Economía Humana,

Revista Víspera, Cuadernos Uruguayos de Filosofía, diario Epoca, diario El Bien

118

Público. En América: Revista Mensaje (Chile). Revista Interamericana de Sociología

(Colombia), University of Notre Dame Press (U.S.A.), Orbis Book (U.S.A.). En

Europa: Concilium (Holanda), Etudes (Francia), Misceláneas Comillas (España).

1965 Funda junto a otros compañeros jesuítas y dirige (hasta 1971) el Centro de

Investigación y Acción Social (CIAS) Pedro Fabro. Las actividades del Centro se

especializaron en investigaciones socioreligiosas y se difundieron en cursos, en

conferencias, y en la revista Perspectivas de Diálogo.

Su obra básica "Teología Abierta Para el Laico Adulto" de cinco volúmenes y editada

por C. Lohlé‚ en Argentina, es fruto del trabajo y la experiencia del Centro Pedro

Fabro, compuesto por un grupo de teólogos que son al mismo tiempo especialistas en

ciencias humanas, tales como antropología, sociología, economía, etc. Su esfuerzo, en

el que colaboran laicos, va a ser repensar el mensaje cristiano en íntima conexión con

la sociedad latinoamericana.

Es asesor en temas de Eclesiología en el Departamento de Pastoral del CELAM.

Comienza una fecunda actividad como guía en pequeños grupos de reflexión

teológica. Es a partir de esa comunicación contextuada que va tomando forma y

organizando su reflexión teológica, que luego plasma en su prolífica obra escrita.

Esta actividad la mantendrá hasta el fin y no sólo en Montevideo, sino también en

Caxias do Sul y San Pablo (Brasil).

1970 En el Encuentro de Petropolis (Brasil) presidido por Monseñor Ivan Illich comienza

un contacto regular con otros teólogos latinoamericanos desde centros de interés

afines. Junto al teólogo Gustavo Gutiérrez presenta diferentes ponencias que

constituyen el marco de la naciente Teología de la Liberación.

Toda su obra se inserta en la Teología de la Liberación. Si bien nunca ocultó sus

posiciones críticas (adoptadas desde un rigor metodológico incontestable) en torno a

algunos planteamientos de dicha teología o al menos, de algunos de sus más

calificados representantes. La constante preocupación de Segundo por dar razón de la

fe lo ha llevado a revalorizar el papel del intelecto en ese campo y en el de la praxis

histórica, y a reflexionar sobre las relaciones entre la función intelectual y la salvación

cristiana. Esto sitúa como sus centros de interés la relación del acontecer humano y el

reino de Dios, entre las opciones políticas y la esperanza cristiana.

119

1972 Participa con seminarios y conferencias de uno de los eventos fundacionales de la

naciente Teología de Liberación, el encuentro "Fe Cristiana y Cambio Social en

América Latina", organizado por el Instituto Fe y Secularidad, El Escorial, Madrid

(España).

1974 Desarrolla un curso sobre "Liberación de la Teología" en la Cátedra de Estudios

Ecuménicos de la Divinity School de la Universidad de Harvard (U.S.A.).

Distinguen su libro "The Sacraments Today" con el "Best Book in 1974 Liturgy" por

la Catholic Press Association, New York (U.S.A.).

1975 El gobierno de facto clausura la revista Perspectiva de Diálogo y se dispersa la

actividad del Centro Pedro Fabro, que se cerrará más tarde.

1978 Comienza sus Cursos Anuales de Teología en la Parroquia San Juan Bautista de

Pocitos (Montevideo), que se dictarán todos los meses de setiembre, hasta 1989.

1980 En el Centro de Orientación Misionera de Caxias do Sul (Brasil) realiza Cursos

Anuales de Teología, que se extenderán hasta 1994.

A partir de este año se incrementa su actividad como Profesor invitado en distintas

Universidades del mundo. Universidad de Birmingham (U.S.A.), Universidad de

Minnesota (U.S.A.), Universidad de Comillas (España), Universidad de Camberra y

Queensland (Australia), Universidad de Toronto y Montreal (Canadá ), Universidad de

Dublín (Irlanda).

1982 Colabora con la revista La Plaza, Las Piedras (Uruguay) con el artículo "Clemencia

para los vencidos". La dictadura clausura definitivamente la publicación por éste y

otros artículos.

1987 Conferencia sobre la "Teología de la Liberación" en el Paraninfo de la Universidad de

la República (Uruguay).

1988 Cursos regulares bianuales que dicta en el Centro Sèvres (Paris) de la Compañía de

Jesús y en la Universidad de Lyon (Francia), hasta 1994.

1989 Conferencia en La Ronda, Huelva (España) sobre "Premisas socioeconómicas

implícitas y explícitas de la Teología de la Liberación".

120

1990 Primer Premio al Mejor Libro de Teología de 1990 por su libro: "Jesus devant la

conscience moderne: Le Christianisme de Paul" otorgado por la revista "Il Est Une

Foi". Francia.

Es designado Asesor del Consejo Mundial de Iglesias, Ginebra (Suiza).

1992 "Crítica y Autocrítica de la Teología de la Liberación" es la ponencia central que le

fue solicitada para el encuentro de evaluación de esta corriente, realizado en El

Escorial, Madrid, España, a veinte años del fundacional, "Fe Cristiana y Cambio

Social en América Latina".

1996 Fallece en Montevideo el 17 de enero, a los 70 años de edad.

ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 7

CAPÍTULO I: PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO ............................................................ 10

1. REVELAÇÃO E HISTÓRIA.............................................................................................. 10 1.1. O diálogo como preocupação de base para toda a teologia................................................10 1.2. Revelação de Deus: amor criador na história dos homens..................................................12 1.3. Do diálogo com o homem de hoje ao interesse por Jesus de Nazaré ...................................14 1.4. Cristologia, diálogo e método ............................................................................................15

2. DIÁLOGO E LIBERTAÇÃO: O CÍRCULO HERMENÊUTICO ............................................... 17 2.1. Definição...........................................................................................................................18

2.1.1. Palavra de Deus: novidade radical a serviço da liberdade humana ...............................18 2.1.2. O compromisso pela humanização como critério hermenêutico ...................................22

2.2. Descrição e qualificação....................................................................................................23 2.2.1. Passos para uma interpretação teológica libertadora da Escritura .................................23 2.2.2. O diálogo com as ciências ...........................................................................................26

2.3. Plausibilidades ..................................................................................................................29 2.3.1. Sobre a possibilidade de colaboração entre teologia e ciências sociais .........................29 2.3.2. A armadilha da ciência................................................................................................32

3. A OPÇÃO POLÍTICA E O FAZER TEOLÓGICO ................................................................. 34

3.1. O compromisso de mudar o mundo vem antes ....................................................................35 3.1.1. O terreno movediço do compromisso ..........................................................................35 3.1.2. A superação das reservas em relação ao político..........................................................36

3.2. A teologia vem depois. .......................................................................................................38

CAPÍTULO II: FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS............................................. 40

1. A CENTRALIDADE DA PESSOA ...................................................................................... 40 1.1. A liberdade como experiência central da pessoa ................................................................40 1.2. A criatividade como exteriorização da liberdade................................................................44

2. FÉ ANTROPOLÓGICA.................................................................................................... 45

2.1. Liberdade e sentido............................................................................................................45

122

2.2. A fé antropológica como instância de absolutização ..........................................................47 2.3. A fé antropológica como fator de compreensão da realidade..............................................49

3. IDEOLOGIA .................................................................................................................. 52

3.1. Liberdade e eficácia...........................................................................................................52 3.2. A realidade objetiva como instância de relativização .........................................................55

4. DISTINÇÃO E COMPLEMENTARIEDADE ENTRE FÉ ANTROPOLÓGICA E IDEOLOGIA....... 56 4.1. O potencial crítico do fracasso...........................................................................................57 4.2. A mútua exclusão entre fé e ideologia ................................................................................59 4.3. A elaboração científica ......................................................................................................60 4.4. A reflexão filosófica. ..........................................................................................................61 4.5. A linguagem.......................................................................................................................62

5. O ABSOLUTO NA EXISTÊNCIA HUMANA ........................................................................ 63

5.1. Os dados transcendentes....................................................................................................63 5.2. A fé religiosa .....................................................................................................................65

CAPÍTULO III – REFLEXÃO CRISTOLÓGICA .......................................................... 70

1. UMA CRISTOLOGIA NA PERSPECTIVA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL ........................... 70 1.1. Uma cristologia para o homem de hoje ..............................................................................71 1.2. A questão da linguagem.....................................................................................................74 1.3. A “história” de Jesus: fundamento da cristologia ..............................................................77 1.4. Os dois começos de Jesus: história e interpretação ............................................................83

2. INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA. A CHAVE POLÍTICA NOS SINÓTICOS ................................. 86

2.1. A fé antropológica de Jesus de Nazaré ...............................................................................87 2.2. A ideologia de Jesus de Nazaré..........................................................................................91 2.3. Os dados transcendentes de Jesus de Nazaré......................................................................95

3. GENERALIZAÇÃO ANTROPOLÓGICA: A CHAVE DE PAULO......................................... 100 3.1. O método de Paulo. A chave antropológica......................................................................101 3.2. Os mecanismos de escravização do homem......................................................................103 3.3. A experiência da liberdade...............................................................................................107

CONCLUSÃO.................................................................................................................. 110

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 113

APÊNDICE ...................................................................................................................... 116