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1 UNIVERSIDADE PARANAENSE – UNIPAR TUTELA ESPECÍFICA DAS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS DE FAZER E DE NÃO FAZER VALDECIR PAGANI UMUARAMA – PARANÁ 2007

Livro - Tutela Específica Das Obrigações Contratuais de Fazer e Não Fazer - Valdecir Pagani

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Tutela Específica das Obrigações Contratuais de Fazer e não Fazer - Professor Valdecir Pagani

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    UNIVERSIDADE PARANAENSE UNIPAR

    TUTELA ESPECFICA DAS OBRIGAES CONTRATUAIS

    DE FAZER E DE NO FAZER

    VALDECIR PAGANI

    UMUARAMA PARAN 2007

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    UNIVERSIDADE PARANAENSE UNIPAR

    TUTELA ESPECFICA DAS OBRIGAES CONTRATUAIS

    DE FAZER E DE NO FAZER

    VALDECIR PAGANI

    Dissertao apresentada no Curso de Mestrado em Direito Processual e Cidadania, da Universidade Parananese Unipar, sob a orientao do Prof. Dr. Luiz Guilherme Bittencourt Marinoni.

    UMUARAMA PARAN 2007

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    Aos meus pais, Vitorino e Anilva, pelo bero que me deram.

    minha esposa Luciane, pois sem sua incomensurvel pacincia, irrestrito apoio e amor incondicional,

    nada disso teria sido possvel. Aos meus filhos, Vitor e Lucas, com a certeza de que as ausncias,

    impostas pelo trabalho, somente aumentam o amor.

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    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, minha eterna gratido ao Prof. Dr. Luiz Guilherme Marinoni, que como orientador do trabalho, me brindou com o tema e generosamente me aconselhou durante toda a realizao do trabalho, demonstrando a este seu eterno aprendiz, que gigantes caminham sobre a terra. Minha gratido, tambm, ao Prof. Dr. Luiz Fernando Coelho, querido amigo, reconhecendo que ele um homem que tem qualidades humanas fora de srie, de imenso contedo jurdico, vivaz, e com amplo conhecimento que lhe permitem discorrer sobre quaisquer assuntos com muita propriedade, o que somente possvel queles cuja vida dedicada com grande amor a cultivar o conhecimento. Agradeo, tambm, a todos os professores do mestrado: Prof. Dra. Mariulza Franco (de saudosa e inesquecvel memria), Prof. Dra. Jussara Suzi Borges Nasser Ferreira; Prof. Dr. Jos Miguel Garcia Medina; Prof. Dr. Adauto de Almeida Tomaszewski; Prof. Dr. Zulmar Fachin, que me honraram com suas aulas e conhecimentos, a quem dedico todo meu carinho, respeito e admirao. Ao Prof. Dr. Jnatas Luiz Moreira de Paula e ao Prof. Dr. Celso Hiroshi Iocohama, em especial, primeiramente pela confiana em mim depositada, alm do incentivo, apoio, sugestes e cobranas. No posso olvidar da penhorar, tambm, meu absoluto e eterno agradecimento ao Prof. Dr. Alessandro Otvio Yocohama, homem de inteligncia e conhecimento impares, s superveis por sua sagacidade e habilidade sem par ao escrever, cuja amizade muito me envaidece e honra. Aos meus colegas de escritrio (Doroteu Trentini Zimiani, Cssia Maria Silva Leandro, Edlson Luiz Zimiani Cabral e Mara Rubia Costa Neto Oliveira), que tudo fizeram para que eu pudesse ter a tranqilidade de terminar este trabalho. E, de uma forma geral, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao deste trabalho.

    PAGANI, Valdecir. Tutela especfica das obrigaes contratuais de fazer e de no fazer. Dissertao (Mestrado em Direito Processual e Cidadania). Universidade Paranaense Unipar, 2007.

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    RESUMO O presente trabalho se prope analisar a tutela especfica das obrigaes contratuais de fazer e de no fazer. Procura analisar os pressupostos ideolgicos que influram na construo de um processo civil que se demonstrou incapaz de dar tutela efetiva aos direitos e as modificaes no pensamento jurdico impostos pela evoluo da sociedade, especialmente no que tange aos conceitos de liberdade, igualdade e legalidade. Observou-se que a noo de supremacia da Constituio e de que os princpios e garantias fundamentais nela albergados tm plena eficcia, impondo-se ao julgador de forma vinculante, de modo a tornar necessrio repensar os conceitos de jurisdio e de ao, de forma a mold-los s perspectivas do Estado Constitucional. Busca investigar as formas de tutela jurisdicional dos direitos, as tcnicas processuais e os meios de coero disponveis para dar efetiva tutela aos direitos. Procura extremar os conceitos de dever e obrigao e, quanto a estas, identificar seu contedo e elementos constitutivos, de modo a poder aquilatar as diferenas entre exigibilidade e responsabilidade e, a partir da, estruturar seus requisitos. Procura, finalmente, delinear a teoria geral do incumprimento e, a partir das necessidades do direito material identificado, definir as formas de tutela especfica das obrigaes de fazer e de no fazer. Palavras-chave: tutela especfica; tcnicas processuais; meios executivos; obrigaes de fazer; obrigaes de no fazer; impossibilidade; inadimplemento; mora; adimplemento imperfeito;

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    PAGANI, Valdecir. Specific perform of the contractual obligations to do and not to do. Composition (Master in Procedural law and Citizenship). Universidade Paranaense Unipar, 2007.

    ABSTRACT The present work if considers to analyze the specific perform of the contractual obligations to do and not to do. Search to analyze the ideological estimated ones that had influenced in the construction of a civil action that if demonstrated incapable to give guardianship accomplishes to the rights and the modifications in the legal thought taxes for the evolution of the society, especially in that it refers to the concepts of set free, equality and legality. It was observed that the basic notion of supremacy of the Constitution and of that the principles and guarantees in the lodged ones have full effectiveness, imposing themselves it the judge of binding form, in order to become necessary to rethink the action and jurisdiction concepts, of form to mold them it the perspectives of the Constitutional State. Search to investigate the procedural forms of jurisdictional guardianship of the rights, techniques and the available ways of coercion to give to effective guardianship to the rights. Search to distinguish the concepts of having and obligation and, how much to these, to identify to its content and constituent elements, in order to be able to assay the differences between liability and responsibility and, from there, to structuralize its requirements. Search, finally, to delineate the general theory of the insult and, from the necessities of the identified material right, to define the forms of specific performance of the obligations to do and not to do. Key-Words: specific performance; procedural techniques; half executives; obligations to do; obligations of not to do; impossibility; breach of contract; deferred payment; imperfect payment;

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    SUMRIO

    Introduo ........................................................................................................................................... 9 1 A ideologia do processo civil clssico............................................................................................ 12 2 Inidoneidade das frmulas clssicas para efetiva proteo dos direitos....................................... 23 3 O direito fundamental tutela especfica....................................................................................... 34 3.1 A funo jurisdicional no estado liberal ...................................................................................... 34 3.2 A funo jurisdicional frente ao neoconstitucionalismo .............................................................. 39 3.3 A funo jurisdicional e o estado constitucional ......................................................................... 43 3.4 A funo jurisdicional e o controle de constitucionalidade ......................................................... 47 3.5 A funo jurisdicional e a teoria dos direitos fundamentais........................................................ 57 3.6 A funo jurisdicional e a tutela especfica................................................................................. 62 4 As necessidades do direito material e a conformao da tutela especfica .................................. 71 4.1 A jurisdio no Estado Constitucional impe um novo conceito de direito de ao .................. 79 4.2 A tutela jurisdicional e a tutela jurisdicional dos direitos............................................................. 85 4.3 Formas de tutela jurisdicionais dos direitos................................................................................ 89 4.3.1 Tutela inibitria......................................................................................................................... 97 4.3.2 Tutela de remoo do ilcito................................................................................................... 101 4.3.3 Tutela ressarcitria em forma especfica............................................................................... 102 4.3.4 Tutela contra o inadimplemento contratual............................................................................ 104 4.4 Tcnicas processuais disponveis ............................................................................................ 109 4.4.1 Sentenas .............................................................................................................................. 116 4.4.1.1 Sentena declaratria ......................................................................................................... 116 4.4.1.2 Sentena constitutiva.......................................................................................................... 117 4.4.1.3 Sentena Condenatria ...................................................................................................... 117 4.4.1.4 Sentena Mandamental ...................................................................................................... 118 4.4.1.5 Sentena Executiva ............................................................................................................ 119 4.4.2 Momento processual de concesso da tutela ....................................................................... 121 4.1.2.1 Tutela antecipada ............................................................................................................... 121 4.4.2.2 Tutela final........................................................................................................................... 134 4.4.3 Meios de execuo disponveis ............................................................................................. 137 4.4.3.1 Meios de coero................................................................................................................ 142 4.4.3.1.1 A multa ............................................................................................................................. 142 4.4.3.1.1.1 A distino entre multa e perdas e danos: conseqncias .......................................... 143 4.4.3.1.1.2 A distino entre multa e clusula penal: conseqncias ............................................ 145 4.4.3.1.1.3 A quantificao da multa............................................................................................... 150 4.4.3.1.1.4 Reviso e execuo da multa....................................................................................... 153 4.4.3.1.1.5 Incidncia da multa ....................................................................................................... 154 4.4.3.1.2 A priso penal por desobedincia ................................................................................... 157 4.4.3.2 Meios de sub-rogao ........................................................................................................ 165 5 A relao jurdica obrigacional..................................................................................................... 170 5.1 Conceito e contedo ................................................................................................................. 170 5.2 Elementos da relao jurdica obrigacional .............................................................................. 172 5.3 Cumulao de prestaes na mesma relao jurdica............................................................. 181 6 A crise na relao jurdica obrigacional: diferenas entre exigibilidade e responsabilidade contratual ........................................................................................................................................ 198 6.1 Exigibilidade .............................................................................................................................. 198

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    6.1.1 Condio ................................................................................................................................ 200 6.1.2 Termo..................................................................................................................................... 203 6.1.2.1 Obrigao com termo ou prazo .......................................................................................... 207 6.1.2.2 Obrigao sem termo ou prazo .......................................................................................... 209 6.1.2.3 Obrigaes de trato sucessivo e obrigaes continuadas ................................................. 212 6.2.1 O evento danoso.................................................................................................................... 219 6.2.2 O nexo de imputao............................................................................................................. 220 6.2.3 O nexo de causalidade .......................................................................................................... 227 6.2.4 O dano ................................................................................................................................... 238 7 A inexecuo das obrigaes ...................................................................................................... 271 7.1 Inadimplemento......................................................................................................................... 272 7.1.1 Inadimplemento total.............................................................................................................. 274 7.1.2 Inadimplemento parcial .......................................................................................................... 274 7.2 Mora .......................................................................................................................................... 275 7.2.1 Mora do credor....................................................................................................................... 279 7.2.2 Mora do devedor .................................................................................................................... 282 7.2.3 Mora bilateral (simultnea e sucessiva) ................................................................................ 287 7.3 Adimplemento imperfeito (violao positiva do contrato) ......................................................... 289 7.3.1 Vcio redibitrio ...................................................................................................................... 296 7.3.2 Evico................................................................................................................................... 306 7.4 Inexecuo antecipada ............................................................................................................. 314 7.6 Constituio em Mora ............................................................................................................... 316 7.6.1 Mora ex re .............................................................................................................................. 316 7.6.2 Mora ex persona .................................................................................................................... 318 8 Prevalncia da tutela especfica sobre a tutela pelo equivalente................................................ 319 9 Tutela especfica das obrigaes contratuais de fazer e no fazer ............................................ 322 9.1 Conceitos e delimitao do objeto ............................................................................................ 332 9.1.1 Fazer ...................................................................................................................................... 332 9.1.2 No fazer................................................................................................................................ 335 9.2 Classificao ............................................................................................................................. 339 9.2.1 Genricas e especficas......................................................................................................... 340 9.2.2 Fungveis e Infungveis .......................................................................................................... 342 9.2.3 De meios e de resultados ...................................................................................................... 347 9.3 Crise no programa obrigacional................................................................................................ 352 9.3.1 Incumprimento definitivo (Inadimplemento)........................................................................... 355 9.3.1.1 Fazer ................................................................................................................................... 355 9.3.1.2 No fazer............................................................................................................................. 362 9.3.2 Incumprimento temporrio (Mora) ......................................................................................... 366 9.3.2.1 Fazer ................................................................................................................................... 369 9.3.2.2 No fazer............................................................................................................................. 378 9.3.3 Cumprimento defeituoso........................................................................................................ 382 Concluso ....................................................................................................................................... 386 Referncias ..................................................................................................................................... 398

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    Introduo

    Com a evoluo tecnolgica, explodiram as formas de prestaes de

    servios, quebrando a hegemonia usufruda pelas prestaes de dar, levando os

    operadores do direito a buscar formas de melhor proteger juridicamente as

    prestaes de fato, pois completamente inadequada tutela ressarcitria ou tutela

    pelo equivalente para efetiva proteo de tais crditos.

    Muito se tem escrito sobre a tutela especifica das prestaes de fazer e de

    no fazer, resultantes de condenao reparatria de cometimento de atos ilcitos. E

    normalmente se tm confundido os conceitos de dever jurdico e de obrigao.

    H o dever jurdico de a ningum lesar (neminem laedere ou alterum non

    laedere), de onde nasce o ilcito (entendido como ato contrrio ao direito), o qual tem

    os seus prprios requisitos para ensejar proteo jurisdicional.

    E h a obrigao contratual entendida essa como uma relao de direito pr-

    existente entre as partes, onde uma delas se obriga a cumprir determinada

    prestao pessoal, de contedo econmico, positivo ou negativo, em proveito da

    outra. Esta, por sua vez, para ser tutelada judicialmente, exige requisitos dspares do

    ilcito.

    Quase nada tem sido escrito sobre a tutela das obrigaes contratuais de

    fazer ou de no fazer, sendo a doutrina praticamente incipiente. Certo que, na

    seara contratual, sequer se fala em ilcito, mas em vencimento ou exigibilidade da

    obrigao, surgindo a necessidade de utilizar institutos outros (exigibilidade,

    incumprimento, inadimplemento, mora, adimplemento ruim, evico, vcio redibitrio,

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    etc...) para definir a espcie de tutela especfica para dar mxima efetividade ao

    direito do credor.

    Apenas por exemplo, o titular do domnio de um determinado imvel urbano

    que, no suportando atos praticados pelo vizinho (fumaa decorrente de queima de

    lixo, som alto em horrio imprprio, etc...), ter que preencher determinados

    requisitos para obstar os atos ilcitos (abuso de direito) praticados. J o titular de um

    contrato celebrado com um pintor, onde este se obrigue a realizar a pintura do

    imvel, para exigir judicialmente o cumprimento da obrigao, ter outro requisito a

    cumprir (exigibilidade da obrigao).

    Por fora do comando emanado pelos princpios do acesso justia, da

    efetividade do processo, da ampla defesa e do contraditrio, tem o legislador e os

    operadores do direito buscado incansavelmente o refinamento das tcnicas de tutela

    dos direitos, assim tambm dos meios coercitivos, com fincas na mxima efetividade

    do processo.

    O processo um instrumento destinado efetiva concretizao dos direito, e

    somente atinge sua finalidade quando capaz de gerar, no plano da realidade,

    resultados exatamente iguais aos que ocorreriam se o ru obedecesse

    voluntariamente os comandos jurdicos.

    A partir da modificao da redao do art. 461 do CPC (pela Lei n 8.952/94),

    nica soluo processual possvel admitida pela legislao processual prstina

    para o caso de incumprimento de prestao de fazer ou no fazer (converso da

    obrigao em perdas e danos), abriu-se a alternativa de exigir a tutela especfica.

    O objetivo deste trabalho, portanto, analisar a tutela especfica das

    obrigaes contratuais de fazer ou de no fazer, e para tanto, investigar as tcnicas

    de tutela e os meios de execuo disponveis no ordenamento jurdico para tal

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    desiderato, traando uma noo sistemtica para a tutela especfica das obrigaes

    de fazer e de no fazer.

    Necessrio investigar a evoluo histrica da funo jurisdicional e

    identificar os fundamentos ideolgicos que inspiraram sua estruturao e seus

    princpios, perpassando a teoria da jurisdio constitucional, definindo os contornos

    da mencionada tutela especfica, assim como as tcnicas processuais e meios de

    coero adequados a dar efetividade referida tutela especfica.

    Na seqncia, apresentar as tcnicas de tutela e os meios de execuo

    adequados a propiciar a tutela especfica, abordando-se o art. 461 do CPC, em seus

    aspectos mais relevantes.

    E, finalmente, analisar o direito das obrigaes, estabelecendo os conceitos

    necessrios (exigibilidade, incumprimento, inadimplemento, mora, adimplemento

    ruim, evico, vcio redibitrio, etc...), incluindo a o estudo das obrigaes de fazer e

    de no fazer, definindo as necessidades do direito material para, finalmente, definir

    as formas de tutela especfica das obrigaes contratuais de fazer e de no fazer,

    lembrando que o foco do trabalho a disciplina civil das obrigaes de fazer e de

    no fazer, e no a disciplina consumerista das mesmas obrigaes, at porque no

    h, na disciplina consumerista, previso ou regulamentao das prestaes

    contratuais de no fazer (exceto a imposio de deveres de no fazer em razo do

    ilcito).

    O trabalho foi realizado pelo mtodo dedutivo (do particular para o geral) e

    indutivo (do geral para o particular), alm da investigao histrica e comparativa.

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    1 A ideologia do processo civil clssico

    O Estado liberal clssico foi construdo sobre a premissa bsica da proteo

    liberdade individual do cidado contras eventuais intervenes dos poderes

    constitudos na esfera privada1, pois at ento

    Imperava a insegurana nas relaes jurdicas; ademais, vrias ordens paralelas vigoravam ao mesmo tempo. Havia um Cdigo de juridicidade para os nobres, outro para o clero, outro para o terceiro estado, sem contar o fato de que as relaes comerciais sofriam entraves decorrentes do sistema vigente de privilgios, monoplios, favores reais, e da inexistncia de um sistema jurdico unificado.2

    A forma encontrada pela burguesia inspirada principalmente nas idias de

    Montesquieu3 - foi a reestruturao do poder poltico e a sua submisso estrita

    legalidade, isto , a construo de um modelo jurdico que estabelea limites ao

    Estado e positive os direitos individuais ansiados pela burguesia, que, livres e

    seguros juridicamente, nenhum obstculo impedir o desenvolvimento das

    potencialidades dos indivduos.4

    que, para Montesquieu, a liberdade consiste no poder de agir nos limites da

    lei. uma liberdade pela e atravs da lei5, que mediante o tratamento igualitrio,

    1 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 35. 2 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 27. 3 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 158-159, e sua teoria da separao dos poderes: o poder legislativo traduz-se no poder de fazer leis, por um certo tempo ou para sempre, e de corrigir ou ab-rogar as que esto feitas. O poder executivo das coisas que dependem do direito internacional ou, simplesmente, o poder executivo do Estado o poder de fazer a paz ou a guerra, de enviar ou receber as embaixadas, de manter a segurana e de prevenir as invases. O poder de julgar ou o poder executivo das coisas que dependem do direito civil o poder de punir os crimes ou de julgar os litgios entre os particulares. 4 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 27-28. 5 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 156: A liberdade o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidado pudesse fazer tudo o que elas probem, no teria mais liberdade, porque os outros tambm teriam tal poder.

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    sem distines de posies sociais entre os indivduos, conduziria segurana

    jurdica6.

    Essa liberdade se operava perante o Estado, mediante a demarcao de

    importante esfera de autonomia do cidado (e da sociedade) contraposta quela do

    Estado7, isolando, pela lei, da esfera da atuao do Estado a esfera das relaes

    sociais e a autonomia privada8, com o objetivo de assegurar ou garantir as

    conquistas da sociedade burguesa9, de maneira que o Estado era responsvel

    apenas pela segurana da sociedade, limitando-se a produzir a lei, a execut-la,

    bem como a censurar sua violao10.

    Para Montesquieu a lei era produto da razo: a lei, em geral, e a razo

    humana, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis polticas e

    civis de cada nao devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa

    razo humana11. E, se a lei era estabelecida pela nao, atravs dos representantes

    6 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 157: A liberdade poltica, num cidado, esta tranqilidade de esprito que provem da opinio que cada um possui de sua segurana; e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um cidado no possa temer outro cidado. 7 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 34. 8 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 35: Ao Estado liberal, sempre juridicamente controlado, no cabe exercer mais que as seguintes funes: manter a ordem interna e conduzir a poltica exterior (ou seja, o fim do Estado nesse caso parece ser unicamente o de promover e manter a segurana necessria para que os indivduos possam livremente desenvolver as suas potencialidades). Tudo o mais cabe sociedade civil, dinamizada pela energia da multiplicidade de indivduos livres e iguais. 9 NORBERTO BOBBIO. Liberalismo e democracia, So Paulo: Brasiliense, 1998, p. 8: O objetivo dos antigos era a distribuio do poder poltico entre todos os cidados de uma mesma ptria: era isso que eles chamavam liberdade. O objetivo dos modernos a segurana das fruies privadas: eles chamavam de liberdade as garantias acordadas pelas instituies para aquelas fruies.. 10 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 36. 11 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 36.

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    do povo (forma) e fundada na razo (contedo), no poderia atentar contra a justia

    ou contra a liberdade12.

    Mas obvio que o poder de julgar como de resto os outros poderes -,

    tambm deveria ser limitado.

    O primeiro limite de atuao do poder de julgar a prpria lei. O Julgador no

    seno um servo, prisioneiro da letra fria da lei, despido de qualquer poder

    criador13, pois os julgamentos devem s-lo a tal ponto, que nunca sejam mais do que

    um texto exato da lei. Se fosse uma opinio particular do juiz, viver-se-ia na

    sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela so assumidos14. A

    funo jurisdicional, assim, restou reduzida a um simples silogismo de aplicar a lei

    ao fato concreto, onde a sentena proferida sobre o caso concreto seria a mera

    reproduo fiel do j decidido genrico-abstractamente pela lei15.

    Segundo Luiz Guilherme Marinoni,

    Essa idia, bem refletida nos escritos de Montesquieu, espelha uma ideologia que liga liberdade poltica a certeza do direito. A segurana psicolgica do indivduo ou sua liberdade poltica - estaria na certeza de que o julgamento apenas afirmaria o que est contido na lei. Ou melhor, acreditava-se que, no havendo diferena entre o julgamento e a lei, estaria assegurada a liberdade poltica.16

    12 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 48. 13 PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio Constitucional um contributo para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora. 1989. p. 96: ...Conhecidos os factos e a lei, o juiz apenas procede a uma operao lgica automtica e forosa, sem nada de juridicamente constitutivo... 14 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 158. 15 PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio Constitucional um contributo para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora. 1989. p. 96. 16 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 36.

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    O Poder de julgar no deveria ter outra preocupao17 seno a pura e simples

    aplicao da lei, no sendo os Juzes mais que a boca que pronuncia as sentenas

    da lei, seres inanimados que no podem moderar nem sua fora nem seu rigor18. O

    poder judicial, assim despojado de qualquer autonomia decisria, de qualquer poder

    criador do direito, torna-se invisvel e nulo19, excludo do poder do Estado, pois no

    tem vontade prpria20.

    Lgico que, se a atividade jurisdicional se limita a reproduzir fielmente a

    soluo j plasmada na lei, claro e evidente que a referida sentena declaratria

    lato sensu21. No se pode olvidar, neste passo que trao comum, na conhecida

    classificao trinria das sentenas (declaratria, constitutiva e condenatria), o

    contedo declaratrio lato sensu.

    Declaratrias so as sentenas destinadas a atribuir certeza a uma

    determinada relao jurdica, declarando a sua existncia ou inexistncia, sua

    validade ou invalidade e, ainda, a falsidade ou no de documento. Cria-se a certeza

    17 CLVE, Clmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2 ed. rev, atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 48-49: A tal ponto chegaram as formulaes jurdicas produzidas como decorrncia normal da concepo clssica do direito que toda uma escola jurdica chegou a defender a tese segundo a qual a preocupao do jurista h de restringir-se norma. Preocupaes com a justia ou com a crtica jurdica soariam alheias funo do jurista. O jurista como tal h de se preocupar, principalmente, com a norma, porque, a norma constitui, afinal, o objeto da cincia jurdica. 18 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 160. 19 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 157: O poder de julgar no deve ser outorgado a um senado permanente mas exercido por pessoas extradas do corpo do povo, num certo perodo do ano, de modo prescrito pela lei, para formar um tribunal que dure apenas o tempo necessrio. Desta maneira, o poder de julgar, to terrvel aos homens, no estando ligado nem a uma certa situao nem a uma certa profisso, torna-se, por assim dizer, invisvel e nulo. No se tm constantemente juzes diante dos olhos e teme-se a magistratura mas no os magistrados. 20 KAUFMANN, Arthur. Filosofia del derecho. Trad. Luis Villar Borda e Ana Mara Montoya. Bogot: Universidad Externado de Colombia, 1999. p. 114: El juez realmente puede ser excluido del poder del Estado porque l no es un rgano dotado con voluntad propia. Pues las sentencias no pueden ser nada diferente a una copia exacta de la ley y para eso slo necesita ojos, el juez es nicamente la bouche qui prononce les paroles de la loi, una criatura sin voluntad, que no puede atenuar la validez y rigor de la ley, y el poder judicial es, en consecuencia, en cierto sentido igual a cero. 21 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 37.

  • 16

    onde havia incerteza22. Dada essa natureza de mero acertamento da relao jurdica

    (e no imposio de sano), se entendeu que no a sentena declaratria

    suscetvel de execuo ulterior e, se o interessado pretender a execuo daquilo

    que foi declarado, ter que faz-lo por ao prpria, isto , por sentena

    condenatria, que viabilizar a execuo por ttulo judicial23.

    Constitutivas so as sentenas que, no obstante contenha em si carga

    declaratria, so destinadas a criar, extinguir ou modificar relaes jurdicas. Isto ,

    alm da declarao do direito, contm um plus que inova na ordem jurdica,

    inovao essa que pode ser positiva (quando cria ou modifica uma relao jurdica)

    ou negativa (quando extingue uma relao jurdica), quando ento designada de

    desconstitutiva. Sua finalidade apenas e to somente inovar na ordem jurdica

    (criao, extino ou modificao), da porque no comporta execuo ou processo

    de execuo fundada em ttulo judicial ulterior ao trmino do processo de

    conhecimento24.

    As sentenas condenatrias so aquelas sentenas que visam impor uma

    sano ao demandado25, como ocorre, por exemplo, a indenizao por perdas e

    danos, abrindo o caminho para o processo de execuo, mediante provocao do

    interessado. Obtida a sentena condenatria, adquire o autor um instrumento

    22 PORTO, Srgio Gilberto. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil Do processo de conhecimento arts. 444 a 495. vol. 6. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 94. 23 ALVIM, Arruda. Coleo Estudos e Pareceres Direito Processual Civil. Vol. 2. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. P. 327. 24 ALVIM, Arruda. Coleo Estudos e Pareceres Direito Processual Civil. v. 2. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. P. 328. 25 PORTO, Srgio Gilberto. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil Do processo de conhecimento arts. 444 a 495. vol. 6. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 94.

  • 17

    jurdico destinado satisfao efetiva de seu direito26, pois uma vez transitada em

    julgado, a prpria sentena condenatria constitui titulo executivo judicial.

    Para uns, a sentena condenatria se traduz em uma declarao mais uma

    sano. Para outros, a sentena condenatria se traduz numa dupla declarao

    (declarao do direito, mais declarao da sano). Luiz Guilherme Marinoni assim

    pe a questo:

    Para Liebman, como sabido, a sentena condenatria tem duplo contedo e dupla funo: declara o direito existente e,alm disso, faz vigorar para o caso concreto as foras coativas latentes da ordem jurdica, mediante aplicao da sano adequada ao caso examinado e nisto reside sua funo especfica, que a diferencia das outras sentenas (funo sancionadora). A sentena condenatria, assim, ao aplicar a sano, constitui a situao jurdica que abre oportunidade para a execuo; no se trata, como se v, de mera declarao da sano, como queria Carnelutti, ao falar em accertamento della responsabilit.27

    Neste passo, diverge Jos Miguel Garcia Medina, argumentando que a

    sentena condenatria nada reprime ou previne, apenas reconhece (=declara) a

    violao ocorrida e a sano a ser aplicada. Isto , a condenao no aplica a

    sano, pois, se aplicar por em prtica, tal aplicao da sano somente pode

    ocorrer aps a sentena condenatria28.

    Como se v, referidas sentenas limitam a ao do julgador vontade da lei.

    Mas no s isso: so caracterizadas, tambm, pela ausncia de executividade. E a

    est outro limite imposto pelo Estado liberal ao poder de julgar: limitado, tambm,

    pela ausncia de fora, eis que no pode cumprir ou executar suas prprias

    decises. So palavras de Montesquieu:

    26 ALVIM, Arruda. Coleo Estudos e Pareceres Direito Processual Civil. v. 2. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. P. 329. 27 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitria. So Paulo: RT, 2003, p. 277. 28 MEDINA, Jos Miguel Garcia. Execuo civil teoria geral e princpios fundamentais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 399.

  • 18

    Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo da magistratura o poder legislativo est reunido ao executivo, no existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleam leis tirnicas para execut-las tiranicamente. No haver tambm liberdade se o poder de julgar no estiver separado do poder legislativo e do poder executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidados seria arbitrrio, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a fora de um opressor.29

    Luiz Guilherme Marinoni, argumenta que havia, na poca, uma natural

    preocupao em relao a eventual arbtrio dos Juzes advindos do antigo regime,

    pois eram considerados aliados da nobreza e do clero, a burguesia nutria justificada

    desconfiana em relao aos juzes. Da mais uma razo para se pretender manter o

    judicirio submisso ao legislativo e destitudo de poderes de execuo30. Razo

    disso, que se retirou dos juzes o poder de imperium.

    Neste respeitante, Nuno Piarra argumenta que:

    primeira vista, a justificao aduzida e obscura, quase um argumento ad terrorem. O mais que se pode intuir que Montesquieu pretende afirmar que uma funo j de si to temvel ao plano factual como a funo judicial, mesmo quando exercida apenas por juzes que no tm acesso directo ao comando da fora pblica, tornar-se-ia muito mais temvel e opressiva quando prosseguida por quem detm simultaneamente as rdeas da fora pblica, ou seja, o poder executivo.31

    Efetivamente, em um modelo de Estado que, no s limitado pelo direito, mas

    extremamente limitado ao direito, no se poderia conceber outra frmula que no a

    lei de um lado, os tribunais e o executivo de outro, justamente destinados a apenas

    e to somente assegurar o cumprimento das leis. Certo , neste passo, que o poder

    judicial na viso liberal no se situa no equilbrio do poder, nem pode ficar ligado

    a nenhum deles. Na verdade, nem poder, eis que atuando mediante sentenas

    29 MONTESQUIEU. Do esprito das leis. Os Pensadores. Vol. XXI. 1 ed. So Paulo: Abril Cultural. 1973, p. 157. 30 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 38. 31 PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio Constitucional um contributo para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora. 1989. p. 99.

  • 19

    declaratrias sem fora executiva32, um poder invisvel e nulo, no j mencionado

    entendimento de Montesquieu. Nem tem autonomia decisria em relao lei nem

    representa nenhuma potncia ou factor de poder, pelo que no tem existncia

    poltica prpria. O poder judicial fica, pois, fora da separao social dos poderes33.

    As classes dominantes, assim, no entendimento de Ovdio A. Baptista da

    Silva,

    ... conseguiram dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desgnios do poder, impondo-lhes a condio de servos da lei; e (b), ao concentrar a produo do Direito no nvel legislativo, sem que aos juzes fosse reconhecida a menor possibilidade de sua produo judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcanar a certeza do direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretao da lei, no momento de sua aplicao jurisdicional pudesse torn-lo controverso e portanto incerto.34

    Demais disso, o direito liberal tinha como primado a garantia da liberdade dos

    cidados, obtida pela delimitao dos poderes de interveno do Estado nas

    relaes privadas (pois o Estado era visto como inimigo pblico35).

    Assim, o respeito autonomia de vontade, isto , liberdade individual

    (ausncia de ingerncia estatal nas relaes entre particulares) levou naturalmente

    incoercibilidade do facere36, e impossibilidade de o Poder Judicirio impor

    multas37, tornando impossvel ao Judicirio atuar sobre a vontade do indivduo.

    32 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 39: A separao entre conhecimento e execuo teve o propsito de evitar que o juiz concentrasse, no processo de conhecimento, os poderes de julgar e de executar. 33 PIARRA, Nuno. A separao dos poderes como doutrina e princpio Constitucional um contributo para o estudo das suas origens e evoluo. Coimbra: Coimbra Editora. 1989. p. 110. 34 SILVA, Ovdio A. Baptista da. Processo e Ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 36. 35 ANDRADE, Jos Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais (na Constituio Portuguesa de 1976). Coimbra: Almedina, 1988, p. 274. 36 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 40: Nesse sentido, o Cdigo Napoleo, no seu art. 1.142, afirmou que toda obrigao de fazer ou no fazer resolve-se em perdas e danos e juros, em caso de descumprimento pelo devedor. A desconfiana em relao aos juzes do Ancien Rgime que j era provocada pela venalidade e hereditariedade dos cargos pblicos - e a conseqente necessidade de mant-los sem poder de imperium, para que no pudessem voltar a fazer o que lhes era

  • 20

    Impende no olvidar que, na classificao trinria, duas das sentenas

    (declaratria e constitutiva) dispensam a execuo, eis que seu objeto se exaure na

    prpria declarao ou constituio (ou desconstituio). Somente a sentena

    condenatria no suficiente a exaurir a tutela, exigindo meios de execuo para

    tornar efetivo (real) o direito reconhecido (declarado) na sentena.

    At porque, qualquer sentena que tenha o dever de repercutir sobre a realidade para a prestao da tutela jurisdicional, deve ser ligada a meios de execuo que sejam efetivamente capazes de proporcionar o resultado por ela objetivado. Uma sentena que tenha que interferir sobre a realidade, mas que destituda de meios de execuo, no serve para a prestao da tutela do direito, e assim constitui um nada, ao menos quando considerada a tutela prometida pelo direito material.38

    Surge, assim, mais um limite ao poder de julgar: o direito liberal definiu os

    meios de execuo e proibiu que outros meios fossem utilizados para execuo da

    condenao. Claro que, quando o sistema jurdico faz depender a execuo de um

    ttulo executivo previamente definido em lei (nulla executio sine titulo), o juiz fica

    neutralizado, com reduzido poder de atuao executiva.39

    Se a sentena condenatria ligada aos meios executivos tipificados na lei, elimina-se a possibilidade de o juiz trabalhar com qualquer outro meio de execuo, controlando-se, dessa forma, a sua possibilidade de arbtrio. Na mesma direo, deixando-se claro que a esfera jurdica do ru, no caso de condenao, no pode ser invadida por meio executivo no previsto na lei, garante-se a liberdade ou a segurana psicolgica do cidado. Essa segurana seria derivada da certeza do direito, ou da garantia de que somente poderiam ser utilizados os meios executivos tipificados na lei.40

    permitido antes da Revoluo, colocando em perigo o novo poder instalado, esto na base do art. 1.142 do Code Napolon ou da idia de incoercibilidade das obrigaes. 37 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 41: Ningum duvida que a impossibilidade do uso da multa, como medida de coero, retira do juiz o poder de atuar sobre a vontade do indivduo. Se assim, evidente que o desejo de impedir o judicirio de atentar contra a liberdade privou o juiz de exercer imperium. Por esse motivo que o juiz, mesmo em uma sentena relativa obrigao infungvel, no podia impor as astreintes. 38 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 42. 39 MEDINA, Jos Miguel Garcia. Execuo civil teoria geral e princpios fundamentais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 141. 40 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 43:

  • 21

    A est o princpio da tipicidade dos meios de execuo, isto , de que a

    esfera privada do devedor somente poder ser invadida no modo e na forma

    tipicamente prevista pela lei processual, como forma de garantir a liberdade

    individual do cidado.

    Por outro lado, alm de reduzir a atuao do Juiz a declarar a lei, imunizar a

    autonomia de vontade de sua atuao, impedir o exerccio do poder de imprio,

    definindo os meios de execuo disponveis, impunha garantir tambm que a

    sentena somente seria proferida aps cognio exauriente, proibindo-se

    julgamentos fulcrados em mera verossimilhana:

    A impossibilidade de tutela fundada em verossimilhana, no procedimento ordinrio clssico (que tem origem no direito liberal), decorre da suposio de que o nico julgamento que poderia afirmar as palavras da lei seria posterior verificao da existncia do direito. Na linha do direito liberal, o processo, para no gerar a insegurana ao cidado, deveria conter somente um julgamento, que apenas poderia ser realizado aps a elucidao dos fatos componentes do litgio.41

    No obstante houvesse a justificativa declarada de que a cognio exauriente

    conduziria certeza do julgador e verdade da sentena, e a garantindo a

    liberdade dos indivduos, partindo-se da premissa de que o juiz humano e falvel, e

    que carrega consigo uma carga cultural e ideolgica, que influi inconscientemente

    em suas decises42, a pretensa busca da verdade utpica. A cognio no

    exauriente foi proibida, assim, em razo da necessidade liberal de controlar o

    judicirio e assegurar a liberdade individual.

    Essa necessidade de proteo da liberdade individual frente ao poder de

    julgar, mais se evidencia nas garantias do contraditrio e da ampla defesa, que no

    41 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 44. 42 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. So Paulo: RT, 1995. p. 43.

  • 22

    ideal liberal serviram para tornar impossvel oferecer proteo aos direitos antes de

    exaurida a cognio, isto , o julgamento (ou antecipao desse julgamento) no

    poderia ser proferido antes de oportunizado s partes o contraditrio e exaurida a

    oportunidade de produo de provas pelas partes. Pelos mesmos motivos, a

    execuo no poderia dar-se antes do trmino da fase de cognio.

    E, a partir dessa premissa bsica, de que a execuo no deve anteceder a

    cognio, foi estabelecido o princpio da nulla executio sine titulo, que quer dizer que

    a execuo no pode ser feita sem ttulo43, isto , de uma sentena condenatria

    antecedente, com a funo de eliminar a incerteza, estabelecendo certeza

    declarao do direito consubstanciado na sentena.

    Em sntese, o processo civil clssico (cognio exauriente e classificao

    trinria das sentenas) baseado na necessidade de isolar o processo do direito

    material (autonomia absoluta do processo), reproduzindo valores do direito liberal

    (garantidor da liberdade dos cidados, obtida pela delimitao dos poderes de

    interveno do Estado nas relaes privadas), onde o juiz inerte, neutro e no tem

    papel criador ou interpretador, devendo apenas reproduzir a lei, de acordo com os

    instrumentos (classificao trinria e tipicidade dos meios de execuo) que a lei pe

    disposio. O respeito autonomia de vontade e ausncia de ingerncia estatal

    nas relaes entre particulares (para preservao da liberdade), levou

    impossibilidade de se impor multas (respeito liberdade e autonomia) e a

    incoercibilidade do facere, tornando impossvel ao Judicirio atuar sobre a vontade

    do indivduo. Ademais, no havia possibilidade de antecipao de tutela, uma vez

    que era impossvel executar o direito (nulla executio sine titulo) antes da segurana

    jurdica (trnsito em julgado da sentena).

    43 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 47.

  • 23

    2 Inidoneidade das frmulas clssicas para efetiva proteo dos direitos

    Vrios fatores contriburam para a inidoneidade do processo civil clssico

    para efetiva tutela dos direitos, tais como o dogma da uniformidade procedimental, o

    distanciamento do processo civil do direito material, a supremacia da reparao pelo

    equivalente e a equiparao do dano ao ato ilcito, isto , somente era possvel a

    tutela de um ato ilcito que produzisse dano.

    Neste sentido, necessria uma pequena digresso histrica.

    Com Chiovenda, seguindo os passos de Mortara, firmou-se no direito italiano

    a escola histrico-dogmtica (ou sistemtica), propugnando uma dogmtica

    acompanhada da histria e da realidade social, e delineando conceitos capazes de

    estabelecer a autonomia cientfica do processo civil, definido como direito autnomo

    de natureza pblica.

    A autonomia propugnada pela escola italiana erigiu um processo civil

    completamente desvinculado do direito material, pois o direito de ao - entendido

    como direito de ir a juzo abstrato e nenhuma relao tem com o direito material,

    e o mesmo se diga do direito de defesa. O mais notvel foi a pretenso de

    estabelecer um procedimento uniforme, capaz de albergar qualquer situao de

    direito material, dado que as sentenas tambm no guardavam relao com o

    direito material, seno com o direito de ao. Essa uniformidade processual um

  • 24

    mito44, pois no possvel negar as diferenas existentes entre as situaes de

    direito material.

    Neste passo, no se pode olvidar que autonomia no se confunde com

    indiferena ou neutralidade. H, sim, ntida interdependncia entre o processo e o

    direito material45, pois o direito material a prpria razo de ser do processo, que,

    ento, deve ser pensado luz da realidade social e do papel que o direito material

    desempenha na sociedade.46

    Conforme Andra Proto Pisani47, o direito processual no indiferente

    natureza dos interesses em conflito, e assim no correto falar em neutralidade do

    processo ou do Juiz (importa, sim, a imparcialidade48), eis que a definio de

    procedimentos idneos para efetiva e adequada tutela jurisdicional aos casos

    concretos depende, em muito, do direito processual civil.49

    Demais disso, calha lembrar que o direito liberal foi estruturado de forma a

    assegurar a liberdade do indivduo frente ao estado e a igualdade meramente formal

    de todos, proibindo qualquer distino. A igualdade material ou substancial era

    completamente ignorada, tornando o processo inacessvel a importante parcela da

    populao, uma vez que formalmente todos os indivduos poderiam ter acesso ao

    44 BECKER, Larcio Alexandre. Contratos Bancrios Execues Especiais. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 206. 45 PISANI, Andra Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994, p. 6. 46 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 56. 47 PISANI, Andra Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994, p. 6. 48MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 56. 49 PISANI, Andra Proto. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994, p. 6: perch sia assicurata la tutela giurisdizionale di una determinata situazione di vantaggio violata, non basta que a livello di diritto processuale sia predisposto un procedimento quale che sia, ma necessrio che il titolare della situazione di vantaggio violata (o di cui si minaccia la violazione) possa utilizzare un procedimento (o pi procedimenti) strutturato in modo tale da potergli fornire uma tutela effettiva e non meramente formale o astratta del suo diritto. Specificando, quindi, quanto detto poco fa, possibile ora dire che il diritto sostanziale sul piano della effettivit, della giuridicit, non della sola declamazione contenuta nella carta stampata esiste nella misura in cui il diritto processuale predispone procedimenti, forme di tutela giurisdizionale adeguate agli specifici bisogni di tutela delle singole situazioni di vantaggio affermate dalle norme sostanziali.

  • 25

    judicirio, pouco importando se materialmente a populao menos privilegiada teria

    condies financeiras de arcar com os altos custos de um litgio judicial. O direito

    processual, na ideologia liberal50, foi estruturado de forma independente da particular

    posio social ou da necessidade concreta do cidado51, completamente indiferente

    s necessidades materiais decorrentes das diferenas entre as pessoas e os bens

    juridicamente tutelados.52

    Por outro lado, o art. 1.142 do Cdigo de Napoleo disps claramente que o

    inadimplemento das obrigaes de fazer e de no-fazer resolvia-se em perdas e

    danos, revelando claramente a influncia do racionalismo liberal de defesa da

    liberdade individual, tornando incoercvel a vontade individual. Por outro lado, a

    noo de igualdade do direito liberal importava no s na indistino entre os

    indivduos, mas tambm entre os diversos bens. Logo, a simples reduo dos bens

    devidos sua expresso pecuniria mecanismo que iguala todas as obrigaes,

    reduzindo-as a um denominador comum: o dinheiro, eis que o objetivo apenas o

    de sancionar o faltoso, repristinando os mecanismos de mercado53, o que explica a

    50 PISANI, Andra Proto. Appunti sulla giustizia civile. Bari: Cacucci, 1982, p. 24: um processo di questo tipo riflette ampiamente lideologi liberal-individualistica Del tempo, ed in particolare la convinzione Che dal libero confronto o scotro delle parti il giudice possa essere messo nella migliori condizione per decidere. Um tale presupposto evidentemente scorretto in quanto d per scontato Che all posizione di eguaglianza formale delle parti corrisponda sempre la loro sguaglianza sostanziale (intesa sai economicamente sai sociologicamente) fra le parti nin esiste quase mai (o quanto meno manca molto spesso), Che la diseguaglianza sostanziali si fiflette necessariamente anche sul processoalterndo il libero confronto o scontro delle parti. Il carattere mistificane prprio del pressupposto terico della eguaglianza meramente formale fa s Che lo scopo Del processo non possa ravvisarsi nel giusto componimento della controvrsia (o, il che lo stesso, nella attuzione della giustizia nei limiti in cui questa contenuta nella legge positiva), ma solo ed unicamente nella composizione della controvrsia, non intessa in quale modo. 51 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 58. 52 SCHMITT, Carl. Teora de la Constitucin. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1996. p. 144: El ideal pleno del Estado burgus de Derecho culmina en una conformacin judicial general de toda la vida del Estado. Para toda especie de diferencias y litigios, sea entre las autoridades superiores del Estado, sea entre autoridades y particulares, sea, entre Estados-miembros, etc.., habra de haber, para ese ideal de Estado de Derecho, un procedimiento en que, sin atencin a la clase de litigio y de objeto litigioso, se dicidiera a la manera del procedimiento judicial. 53 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 59.

  • 26

    constatao de Ovdio A. Baptista da Silva: A funo do Poder Judicirio no mais

    fazer justia, porm acalmar o mercado.54

    Logo, no havia motivo para assegurar ou pensar numa tutela especfica

    (cumprimento in natura da prestao), eis que a tutela pelo equivalente (resoluo

    em perdas e danos, para pagamento em pecnia) no s mantinha a iluso de

    neutralidade do juiz, assegurando a liberdade individual, como tambm mantinha a

    lgica mercantil vigente.

    Como se v, o direito liberal no apenas conformou o processo, mas tambm

    as sentenas sua ideologia de igualdade e liberdade formais. No havia e nem

    poderia haver, na lgica liberal necessidade de tratamento diferenciado em

    considerao s posies sociais ou s necessidades dos direitos envolvidos, eis

    que o importante era a manuteno do status quo, isto e, a economia do mercado,

    fulcrada na fungibilidade (igualdade) da moeda, que permitia a troca das

    mercadorias e servios levando em considerao apenas e to somente a

    equivalncia dos valores das mercadorias ou servios.

    importante vincar, neste passo, que o Estado Liberal no dirigia uma

    poltica destinada a garantir determinadas necessidades sociais, no interferindo na

    sociedade e no processo econmico de modo a tutel-las.55 Sua funo, como j

    dito, era de meramente manter a organizao e a defesa externa, no podendo

    intervir nas relaes individuais, para garantir a liberdade e a igualdade formal entre

    os indivduos. exatamente por isso que se diz que os direitos fundamentais de

    primeira dimenso so produtos da ideologia liberal-burguesa, e se traduzem na

    afirmao dos direitos individuais em relao ao Estado, isto , direitos de oposio

    54 SILVA, Ovdio A. Baptista da. Processo e Ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 22. 55 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitria. 3 ed. So Paulo: RT, 2003, p. 337-338.

  • 27

    ou resistncia, impondo uma rea de no-interveno estatal (vida, liberdade,

    propriedade, igualdade, liberdades de expresso coletiva, participao poltica e

    algumas garantias processuais).56

    Contudo, com a evoluo da sociedade e do prprio Estado, tornou-se

    evidente que a noo de liberdade meramente formal, imposta pelo direito liberal, j

    no mais correspondia s necessidades da sociedade. Os direitos fundamentais de

    segunda dimenso resultaram dos graves problemas sociais e econmicos

    decorrentes da industrializao, no mais buscando a liberdade de e perante o

    Estado, e sim a liberdade por intermdio do Estado (direito de participar do bem-

    estar social). a igualdade material com cunho positivo: assistncia social, sade,

    educao, trabalho, as liberdades sociais (sindicalizao, direitos trabalhistas),

    etc...57

    bvio que a tutela pelo equivalente no se coaduna com a igualdade

    material, de cunho positivo, onde incumbe ao estado agir para efetiva tutela dos

    direitos, isto , estabelecer meios ou tcnicas processuais adequadas para

    proporcionar aos cidados exatamente aquilo que as normas lhe atribuem. Como

    exemplos candentes, se tem a tutela dos direitos do consumidor e do meio

    ambiente, que restariam completamente desprotegidos pela simples tutela pelo

    56 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 57-60. 57 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 57-70: O reconhecimento progressivo de direitos fundamentais um processo cumulativo e de complementariedade, e no de alternncia. Por isso, preferido o termo dimenses e no geraes (que d a falsa impresso de substituio). No podemos olvidar, que existem ainda os direitos fundamentais de terceira dimenso, tambm denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princpio, da figura do homem-indivduo como seu titular, destinando-se proteo de grupos humanos (famlia, povo, nao), e caracterizando-se, conseqentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. So os direitos paz, ao desenvolvimento, autodeterminao dos povos, ao meio-ambiente, qualidade de vida, comunicao, ao patrimnio histrico e cultural... E, ainda, h aqueles que sustentam uma quarta dimenso dos direitos fundamentais, a qual composta pelos direitos democracia (no caso, a democracia direta) e informao, assim como pelo direito ao pluralismo. a globalizao dos direitos fundamentais.

  • 28

    equivalente, exigindo a construo de uma tutela especifica58 a tornar efetivo cada

    um dos direitos reconhecidos em lei.

    Mesmo na seara contratual essa concluso (necessidade de tutela especfica)

    se impe, uma vez que impensvel em um sistema de igualdade material -

    atribuir ao contratante a possibilidade de alterar livremente o contrato, satisfazendo

    em pecnia sua obrigao (de dar fazer ou no fazer) ao seu livre arbtrio, ficando

    imune s oscilaes do mercado e fragilizando a posio contratual do outro

    contratante, em completo desrespeito aos interesses e necessidades deste.

    Considerando a ideologia liberal de garantir o indivduo contra o Estado,

    buscado a no interveno do Estado na esfera particular, surgiu a impossibilidade

    de o Estado atuar sobre a vontade do individuo (incoercibilidade do facere) e a

    uniformizao das conseqncias do inadimplemento nas perdas e danos,

    traduzindo o dinheiro como denominador comum de todas as obrigaes.

    E, para esse desiderato de uniformizao, foi estabelecida como tcnica

    processual preferencial a sentena condenatria, que aliada incoercibilidade do

    facere e com liame direto e necessrio aos meios de execuo expressamente

    previstos na lei (tipicidade dos meios de execuo), impedia que o Julgador pudesse

    determinar, frente ao caso concreto, a modalidade executiva que proporcionasse

    melhores resultados diante do caso concreto. Isto , inviabilizava a possibilidade de

    tutela especfica. 59

    Mas no s isso. A unificao estabelecida pelo direito liberal entre a

    ilicitude e o dano, geraram conseqncias importantes para o processo civil.

    58 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 62: Aqui, h conscincia de que os bens e as pessoas merecem tratamento diferenciado, e assim assume importncia a tutela especfica e, conseqentemente, a forma procedimental capaz de proporcion-la. 59 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 64.

  • 29

    Como j vincado, na viso do direito liberal todos os direitos eram passveis

    de reduo ao denominador comum do dinheiro, uma vez que, na lgica da

    economia de mercado, o interesse era unicamente no valor de troca das diversas

    mercadorias e servios. E, por essa tica, todos os direitos podiam ser

    adequadamente tutelados pelo ressarcimento em pecnia. Razo disso que

    O liberalismo clssico no tinha necessidade diante dos direitos e bens que considerava nem a possibilidade em razo da maneira como enxergava as relaes entre o Estado e os particulares de conferir funo realmente preventiva ao processo de conhecimento. Sendo assim, a ilicitude, diante do processo civil, podia ser reduzida responsabilidade civil.60

    O que o direito liberal no percebeu foi que o dever de reparar no se

    confunde com formas de reparao, bem como o ilcito no se confunde com os

    danos.

    A reparao ou indenizao no pagar dinheiro, mas sim reconduzir o

    lesado ao status quo ante, e toma feio, em regra, de obrigao de fazer (reparar).

    De outro lado, quando se utiliza o verbo reparar se est ancorando a proteo

    apenas e to somente quando houver dano, deixando completamente desprotegido

    o direito quando no houver dano (e a, pela tica liberal, no haver o que reparar).

    Claro e evidente que os atos contrrios ao direito (atos ilcitos) que no produziram

    danos estariam completamente desamparados.

    Com a evoluo dos direitos, tornou-se necessrio estabelecer uma tutela

    para remover o ato ilcito ou para impedir a ocorrncia do dano? exemplo

    candente e expressivo a exposio venda de produto nocivo sade do

    consumidor (CDC, art. 82). Se o produto ainda est exposto e no foi vendido,

    ainda no ocorreu o dano, mas h ilcito. A busca e apreenso desses produtos

    60 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 66.

  • 30

    caracteriza ldimo exemplo de tutela de remoo do ilcito, eis que realizada sem a

    necessidade da presena do elemento dano.

    Segundo Luiz Guilherme Marinoni,

    Quando o ilcito civil identificado com o dano, conclui-se, de forma apressada, que no h ato contrrio ao direito que, no provocando dano, deva ser sancionado civilmente. O dano uma conseqncia meramente eventual do ato contrrio ao direito, pois esse ltimo pode, ou no, ger-lo. O fato de uma transgresso no ter produzido dano, no permite que o processo civil possa deix-la de lado, como se no mais importasse ou tivesse significao. Quando se toma em considerao a funo de proteo das normas jurdicas no-penais, no difcil perceber que, em determinados casos, um ilcito ainda que configurando ao que se exaure em um nico instante pode possuir eficcia continuada, como no caso de exposio venda de produtos nocivos sade do consumidor.61

    Assim, atualmente no h como ignorar a necessidade de estabelecer tutelas

    capazes de assegurar to somente a remoo do ato ilcito, isto , preocupada

    apenas e to somente com o ato contrrio ao direito, desvinculada da ocorrncia

    ou no do dano, buscando secar a fonte dos danos (e com isso, impedir a

    ocorrncia dos danos ou sua continuidade) mediante a remoo do ilcito. Por bvio,

    nada impede a cumulao com tutela ressarcitria se j ocorreram danos, utilizando-

    se a remoo para evitar a continuidade da produo dos dados.

    Assim como o processo de conhecimento foi estruturado pelo direito liberal

    para atuar apenas e to somente na reparao do dano, evidente que o mesmo

    era completamente ineficaz para preveno do dano. Do mesmo modo, a tutela

    cautelar, que por ser instrumental (garantia da efetividade do processo de

    conhecimento), no poderia assumir tal feio, pois o instrumento jamais poderia

    atingir um resultado que a prpria tutela final no poderia conceder. Embora se

    possa dizer que a tutela cautelar dirigida contra o perigo possa ter funo preventiva,

    certo que ela no foi instituda para evitar a violao do direito, mas sim porque a

    61 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 68.

  • 31

    violao pode trazer conseqncias que podem constituir prejuzos no reparveis

    atravs da tutela final.62

    A tutela inibitria ou de remoo do ilcito no podem ser confundidas com

    tutela cautelar, pois no so instrumentais ou assecuratrias de outras tutelas. De

    fato, invivel que a tutela cautelar possa extrapolar os limites de dar garantia ao

    processo, passando a dar tutela ao prprio direito material, assim no s tornar sem

    sentido a prpria ao principal, como eliminar a prpria caracterstica da

    instrumentalidade que lhe foi concedida.63

    O fato de se designar algumas cautelares como satisfativas, eis que bastava

    a cautelar para satisfazer os interesses do autor, independentemente de uma ao

    principal, decorreu do fato de que se buscava uma tutela contra o ilcito e no contra

    o dano. Com isso, caracterizou-se o uso desvirtuado da cautelar, pois no criada

    para inibir ou remover o ilcito, tornando a cautelar um processo principal, um vez

    que o processo de conhecimento era inidneo para prestar tutela preventiva

    (inibitria ou de remoo do ilcito).

    Atualmente,

    As aes inibitria e de remoo do ilcito so autnomas, e assim devem ser veiculadas atravs do processo de conhecimento, especificamente por intermdio de um procedimento dotado de tcnica antecipatria e das sentenas mandamental e executiva. Atualmente, diante de uma leitura adequada dos arts. 461 do CPC e 84 do CDC, no h como ignorar que os direitos inibio e remoo do ilcito podem ser efetivamente exercidos atravs de ao de conhecimento, o que no mais justifica o uso distorcido da ao cautelar. 64

    Por outro lado, embora a sentena declaratria possa ser admitida antes da

    violao do direito, eis que tem por finalidade apenas a declarao (no incidindo

    62 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 72. 63 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitria. 3 ed. So Paulo: RT, 2003, p. 256. 64 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 79-80.

  • 32

    sobre a vontade do ru), no tem ela funo preventiva, pois no tm efetividade.

    Conforme Jos Carlos Barbosa Moreira, a sentena declaratria s ter funo

    preventiva desde que a parte vencida saia tambm convencida e se resolva a

    cumprir a obrigao em tempo oportuno.65 que tal sentena forjada na ideologia

    liberal no tem fora para evitar que o ru pratique o ato ilcito, pois o remdio

    fraco: basta pensar que, na eventualidade do inadimplemento, o titular do direito

    lesado ter de voltar a juzo para pleitear a condenao do infrator, ao qual se

    concede assim uma folga em boa medida tranqilizadora.66 Se no acatada a

    deciso declaratria pelo ru, restaria ao prejudicado apenas e to somente ao

    ressarcitria contra o infrator, para haver os danos causados pelo ato contrrio ao

    direito.

    Por fim, impe no olvidar que o ressarcimento pode ser realizado no s

    mediante o equivalente em dinheiro, mas tambm na forma especfica, surgindo a

    possibilidade de o Juiz impor ao ru multas (astreintes), agindo sobre a vontade do

    infrator, como forma de dar efetividade67 ao dever de reparar, visando convencer o

    infrator a reparar diretamente ou por intermdio de terceiro. A superao da

    ideologia liberal que via na imposio de multa um indevido atentado contra a

    liberdade individual - imprescindvel efetividade da tutela especfica das

    obrigaes.

    Enquanto a tutela especfica busca o idem (satisfao aos direitos de forma in

    natura, isto , tencionando satisfazer a res in iudicium deducta, o direito deduzido

    pela parte, cumprindo ou fazendo cumprir exatamente aquilo que devido: 65 MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Tutela sancionatria e tutela preventiva. Temas de Direito Processual 2 Srie. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1988, p. 27. 66 MOREIRA, Jos Carlos Barbosa. Tutela sancionatria e tutela preventiva. Temas de Direito Processual 2 Srie. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1988, p. 27. 67 MARINONI, Luiz Guilherme. Tcnica processual e tutela dos direitos. So Paulo: RT, 2004. p. 77: a imprescindibilidade do uso da multa para dar efetividade ao ressarcimento na forma especfica evidente.

  • 33

    praestatio vera rei debitae), a tutela pelo equivalente a tutela clssica, forjada no

    Estado Liberal clssico, eminentemente patrimonialista, e por isso supunha que os

    direitos poderiam ser adequadamente tutelados por intermdio da tutela ressarcitria

    (in quod interest). Da que, contra o ilcito, a nica forma de tutela era a da reparao

    em dinheiro (se todas as pessoas so iguais, no h razo para tratar

    diferentemente os bens, sendo suficiente o ressarcimento em pecnia para manter o

    mercado em funcionamento).

    A unificao dos conceitos de ilicitude e responsabilidade, fez supor que o

    bem juridicamente protegido era a mercadoria a res dotada de valor de troca -, e

    que a tutela privada do bem o ressarcimento do equivalente ao valor econmico da

    leso, mediante execuo por expropriao de bens. Ora, o dever de reparar

    (responsabilidade decorrente do ilcito) no se confunde com o ressarcimento, isto ,

    com as formas que podem ser utilizadas para a reparao (pecnia ou em forma

    especfica). Ressarcir no tem o sentido apenas de indenizar (tornar indene, pagar

    em dinheiro o valor equivalente ao dos danos causados), mas tambm o de

    restaurar, recompor in natura o que foi danificado, mediante a imposio de

    prestaes positivas (fazer) ao agente do ilcito, por parte do Julgador, sob pena

    coero (multa ou astreintes). A partir do momento em que se amplia o conceito de

    ressarcimento, no mais pode o devedor escusar-se de reparar na forma especfica

    sob o argumento de autonomia de vontade (ningum pode ser obrigado a fazer ou

    deixar de fazer alguma coisa, seno em virtude de lei).

    Assim, dissociando-se os conceitos de ilcito e dano, pode-se perceber que o

    dever de reparar (responsabilidade) no se confunde com as formas de reparao

    (resultado no plano do direito material: pelo equivalente ou em forma especfica), e

    se percebe que h atos contrrios ao direito que, ainda que no produzam danos,

  • 34

    podem e devem ser sancionados pelo processo civil, mediante a utilizao das

    tutelas especficas: inibitria e de remoo do ilcito. O ilcito, mesmo sem

    repercusso danosa, no deixa de ser ilcito, sendo completamente ilgico a prtica

    de ato contrrio ao direito ao simples argumento de que, se no causa dano,

    permitido.

    Historicamente, o processo se desenvolveu para evitar ou reparar o dano,

    sendo que o ilcito somente existia atrelado ao conceito de dano. Como o direito

    brasileiro no havia realizado a distino entre o ilcito e o dano, confundiu tutela

    contra o ilcito (inibitria ou remoo do ilcito), com tutela contra o dano. Por isso,

    procurando responder s necessidades de efetividade do processo e na ausncia de

    instrumento, utilizou-se dos conceitos ento conhecidos (dano ou probabilidade de

    dano) para possibilitar a inibio do ilcito ou sua remoo, utilizando para isso da

    medida cautelar inominada (e caracterizando, assim, o uso desvirtuado da cautelar).

    3 O direito fundamental tutela especfica

    3.1 A funo jurisdicional no estado liberal

    Ainda tem invulgar fora, entre ns, a noo chiovendiana de que a jurisdio

    tem a funo de atuar a vontade concreta da lei68, formulando o juiz uma norma

    individual para o caso concreto (justa composio da lide69). Referidos conceitos so

    frutos da ideologia liberal dominante na poca em que foram formulados,

    proclamando a supremacia da lei, independentemente de quaisquer consideraes

    68 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de direito processual civil. So Paulo: Saraiva, 1969, v. 2, p. 55. 69 CARNELUTTI, Francesco. Sistema di diritto processuale civile. Padova: Cedam, 1936, v. 1, p. 40.

  • 35

    sobre justia. Substituram o absolutismo real pelo absolutismo legislativo, reduzindo

    o direito lei70. Pelo princpio da legalidade formal, todo o direito est contido na lei,

    cuja validade dependeria nica e exclusivamente da competncia legislativa e a

    regularidade das formas de sua produo, sem qualquer preocupao com a noo

    de justia.71

    Dentro dessa ideologia, ntida era a superioridade do legislativo, a quem

    incumbia fazer a lei. Aos cidados, era permitido realizar tudo o que no fosse

    expressamente proibido pela lei. Ao executivo cabia apenas atuar quando autorizado

    pela lei e, mesmo assim, dentro dos seus estreitos limites. Ao Judicirio, como j

    visto, cabia apenas e to somente aplicar a lei, ou melhor, revelar a vontade da lei,

    sem qualquer possibilidade de interpretao72.

    Importante lembrar que a legalidade era estreitamente ligada ao princpio da

    liberdade. Assim, as normas jurdicas deviam ser gerais e abstratas. Na

    generalidade, a garantia de igualdade ou de no discriminao dos indivduos, e

    assim garantindo a liberdade (no discriminando ningum). Pela abstrao, a

    garantia da estabilidade do ordenamento jurdico, pois no s eliminava a

    70 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dctil: Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascn. 3 ed., Madrid: Trotta, 1999, p. 24: El Estado de derecho y el principio de legalidad suponan l reduccin del derecho a la ley y la exclusin, o por lo menos la sumisin a la ley, de todas las dems fuentes del derecho. 71 FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Edicin de Antonio de Cabo Y Gerado Pisarello. Madrid: Editorial Trotta, 2 ed, 2005, p. 52-53: En efecto, el postulado del positivismo jurdico clsico es el principio de legalid formal, o, si se quiere, de mera legalid, como metanorma de reconocimiento de las normas vigentes. Conforme a l, una norma jurdica, cualquiera que sea su contenido, existe y es vlida en virtud nicamente, de las formas de su produccin. Como sabemos, la afirmacin de este postulado provoc un radical cambio de paradigma respecto del derecho premoderno: la separacin entre derecho y moral, es decir, entre validez y justicia, como consecuencia del carcter totalmente artificial y convencional del derecho existente. 72 SILVA, Ovdio A. Baptista da. Processo e Ideologia. O paradigma racionalista. Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 27. atravs do processo de conhecimento, ordinrio por natureza, que o sistema retira do magistrado o poder de imprio de que se valia o pretor romano, ao conceder a tutela interdital. por meio dele que o sistema pretende manter a neutralidade melhor, a passividade do juiz durante o curso da causa, ara somente depois de haver descoberto a vontade da lei (Chiovenda), autorizar-lhe a julgar, produzindo o sonhado juzo de certeza.

  • 36

    necessidade de novas leis sobre o mesmo assunto, como tambm impossibilitava ao

    Judicirio interpret-la.73

    Na lgica liberal-burguesa, a Constituio era intangvel, mas s para evitar a

    restaurao do poder do Regime Antigo, pois podiam ser modificadas para

    beneficiar a burguesia e, nessa perspectiva, podiam ser ditas Constituies

    flexveis.74 E, desta forma, no impossibilitava as transformaes desejadas pelos

    detentores do poder. A unidade da lei no era propiciada pela Constituio, mas sim

    pelo poder poltico e social do parlamento, e sua coerncia advinha da coeso

    poltica da classe burguesa, cuja ideologia permeava todo o ordenamento jurdico.

    De modo que a unidade do ordenamento no precisava ser garantida por uma

    norma, na medida em que estava alicerada nos valores da fora poltica

    burguesia - que sustentava o Parlamento.75

    Inspirado nessa matriz ideolgica nasceu o positivismo jurdico, declarando a

    neutralidade do julgador e limitando a atividade do julgador descrio da norma e

    declarao da vontade da lei, sem qualquer preocupao com o seu contedo. Por

    importar em verdadeira simplificao das funes jurdicas, reduzidas que foram

    mecnica aplicao da lei76, o positivismo jurdico, originariamente concebido para

    73 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dctil: Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascn. 3 ed., Madrid: Trotta, 1999, p. 29. 74 MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdio no Estado Contemporneo. Estudos de Direito Processual Civil. Homenagem ao professor Egas Dirceu Moniz de Arago. Coord. Luiz Guilherme Marinoni. So Paulo: RT, 2005, p. 16. 75 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dctil: Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascn. 3 ed., Madrid: Trotta, 1999, p. 30: .. el principio de lealidad taduca en trminos constitucionales la hegemonia de la burguesa, que se expresaba en la Cmara representativa, y el retroceso del ejecutivo y de los jueces, que de ser poderes autnomos pasaban a estar subordinados a la ley. 76 ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dctil: Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascn. 3 ed., Madrid: Trotta, 1999, p. 33: Su significado supone una reduccn de todo lo que pertenece al mundo del derecho esto es, los derechos Y la justicia a lo dispuesto por la ley. Esa simplificacin lleva a concebir la actividad de los juristas como un mero servicio a la ley...

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    manter a ideologia do Estado liberal, transformou-se, ele mesmo, em ideologia77,

    servindo para manuteno do status quo das classes dominantes.

    O conceito de jurisdio atrelado atuao da vontade da lei reproduzia os

    valores do Estado Liberal, isto , a igualdade formal, a liberdade individual mediante

    a no interveno do Estado nas relaes particulares, a separao dos poderes

    marcando a subordinao do judicirio ao legislativo e, ainda, a expresso mxima

    do positivismo jurdico: a supremacia da lei. A funo da jurisdio, assim, era de

    proteger os direitos subjetivos dos particulares - e para isso deveria aplicar a lei -,

    viabilizando a reparao do dano. Era impensvel atuao judicial antes de uma

    violao de direito subjetivo, dado que a atuao do Juiz, sem a existncia de uma

    violao da lei, seria vista como um atentado liberdade individual.78 Ademais, a

    reduo dos bens sua expresso pecuniria (satisfao de perdas e danos) era

    considerado um mecanismo que tornava todos iguais pelo valor do equivalente em

    dinheiro -, inviabilizando a tutela especfica. Impensvel era, nessa poca, a tutela

    preventiva, conforme j visto no item anterior.

    O conceito de jurisdio moldado no seio do Estado Liberal revela a

    preocupao em salientar que a jurisdio exerce um poder voltado afirmao do

    direito objetivo ou do ordenamento jurdico. 79

    Segundo Luiz Guilherme Marinoni80 deve-se a Lodovico Mortara a

    transposio do processo civil da esfera privada (posto a servio dos particulares)

    77 MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdio no Estado Contemporneo. Estudos de Direito Processual Civil. Homenagem ao professor Egas Dirceu Moniz de Arago. Coord. Luiz Guilherme Marinoni. So Paulo: RT, 2005, p. 17. 78 MARINONI,