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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
DIÁLOGOS ENTRE RAÇA, GÊNERO E LINGUAGEM: A DECLARAÇÃO
DA NEGRITUDE DE MULHERES EM GRUPOS ONLINE BRASILEIROS
SOBRE TRANSIÇÃO CAPILAR
Bianca Assis Oliveira de Paula1
Resumo: Esta pesquisa pretende compreender a relevância da declaração da negritude na luta contra
as estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial no Brasil.
Assim, tenho como objetivos específicos investigar como as identidades/identificações raciais negras
das mulheres são construídas, dialogicamente e pela linguagem, em três grupos privados sobre a
transição capilar no Facebook e analisar os efeitos dos protagonismos de mulheres negras nos seus
enunciados publicados nestes grupos. Neste sentido, me embasarei em teóricos/as como Césaire
(2010), Gomes (2012), Fanon (1989), (Hall, 2003 e 2015), Mbembe (2014) e Munanga (2012).
Quanto à metodologia de pesquisa, os instrumentos de geração de dados são postagens publicadas
por mulheres negras em três grupos virtuais privados na rede socia mencionada sobre Transição
Capilar. A análise de dados se ancora em uma perspectiva discursiva enunciativa da linguagem como
proposto por Bakhtin (1997) e Maingueneau (2005). Os resultados iniciais mostram que,
potencializada pelas plataformas de interação online, a mobilização destas mulheres em torno dos
seus cabelos naturais – discursivamente percebido como um dos símbolos de sua negritude-, disputam
significados raciais, provocam as estruturas de invisibilização da diversidade estética e agregam
outras mulheres para entrar neste processo.
Palavras-chave: Negritudes, Identidades, Gênero, Redes Sociais, Análise do Discurso.
Este trabalho baseia-se na minha pesquisa de mestrado em processo de elaboração, na qual
viso, a partir de um breve levantamento histórico do uso político do termo Negritude, especificamente
a autodeclaração de raça dos povos pretos de descendência africana na diáspora em resposta ao
racismo2, e da importância do movimento da Negritude no Brasil e sua relevância na luta contra as
estruturas racistas que silenciam as tensões raciais baseadas no mito da democracia racial do país até
os dias de hoje, compreender a potência dos movimentos de Transição Capilar articulados em grupos
de interesse no Facebook, de forma que a textura natural crespa e/ou cacheada dos cabelos se
configura como um gatilho racial identitário de resistência e de combate ao racismo.
O artigo se divide em 6 sessões. Na primeira intitulada “Identidade, racialização e
colonialismo” situamos o contexto sócio-histórico em que se produzem os sentidos de identidade e
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ sob orientação do Dr.
Fabio Almeida e coorientação da Dra. Glenda Melo, natural do Rio de Janeiro-Brasil. 2 Tido como crença no postulado da hierarquização entre as raças, que mesmo não possuindo embasamento biológico de
comprovação científica, articula-se simbólica e discursivamente de forma dialógica, produzidas e sendo concretamente
produtoras de exclusões socioeconômicas a determinados grupos denominados negros, em detrimento de outros que
colhem as vantagens desta exploração, os brancos.
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negritude, seja de forma atribuída impositivamente pelos grupos opressores ou declarada voluntária
e politicamente pelos grupos oprimidos. Na segunda, “Racismo e embranquecimento”, refletimos
sobre a institucionalização do racismo e as violências concretas e simbólicas produzidas por estes na
população negra. Na terceira sessão denominada “Resistência e reexistência”, refletimos sobre as
lutas identitárias travadas pelos movimentos negros e sua auto-reinvenção no sentido de afirmar-se
sócio-politicamente. Na quarta sessão, contextualizamos os grupos do Facebook onde são produzidos
os dados da análise na sessão subsequente, com o intuito de verificar os sentidos de negritude
enunciados por mulheres a partir da (re)descoberta da textura original de seus cabelos crespos e
cacheados. Por fim, encerramos com as considerações finais.
Identidade, racialização e colonialismo
Os grandes tráficos negreiros árabes e europeus entre os séculos VIII e XVIII e a
mundialização da hegemonia ocidental no século XVI, embasados em uma visão racista, fizeram da
perda da autonomia cultural, o avassalamento político e a escravização, problemas que não eram
particularmente raciais, concretamente relacionados e essencializados à condição do negro. No
contexto colonial de expansão das potências europeias além-mar, constroem-se as instituições sociais
e políticas modernas, e cristalizam-se as noções sobre o ser humano, orientadas por noções de raça e
de civilidade, no século XVI, que delimitarão de forma totalitária e naturalizante três compartimentos
geográficos: a Europa branca, a Ásia amarela e a África negra (MOORE, 2010). Em contextos como
o colonial, de encontros entre diferentes povos e de dominação e exploração, observa-se complexas
formas de conservar e/ou transformar e rearticular as identidades dos grupos humanos.
A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo
humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura
para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição) E a definição dos outros
(identidade atribuída) tem funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território
contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos,
psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994, p. 177-178)
Gomes (2012) articula a compreensão sobre identidade baseando-se em dois intelectuais:
Silvia Novaes e Jacques d'Adesky. Novaes (1993) considera a identidade como um conceito vital
para grupos contemporâneos que o reivindicam, sendo um recurso para criação de um "nós" coletivo
que só pode ser usado no plano do discursivo, visto que a igualdade não pode ser verificada muito
objetivamente, no entanto, configura-se como recurso indispensável ao sistema de representações de
um grupo social. É considerada, também, um instrumento de visibilidade dos grupos submetidos ao
apagamento historicamente, portanto, a identidade não é inata, é uma forma de ser no mundo e nas
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relações, partindo de uma construção sócio-histórica, e não de uma essência. A ênfase na identidade
resultaria da ênfase na diferença. E por outro lado, Jacques d'Adesky (2001) formula a identidade
como interação. Nenhuma identidade pode ser construída no isolamento, pois para ele a ideia de si
necessariamente se soma ao reconhecimento do outro. As identidades (interiores e exteriores) são
formadas em diálogo aberto, dependendo constantemente das relações dialógicas estabelecidas com
outros.
Sobre a questão identitária, alguns dilemas permanecem, pois é um grande desafio
compreender um conceito como a Negritude e sua abrangência vasta e complexa sobre diversos
grupos humanos de africanos no continente e descendentes na diáspora, e para isso, Munanga (2012)
nos ajuda, apontando a articulação dos grupos excluídos pelas estruturas decorrentes do colonialismo
ao formular que a caracterização da identidade cultural de um indivíduo ou grupo se dá por três
fatores: o fator histórico3, o fator linguístico4 e o fator psicológico5.
A busca da identidade negra não é, no meu entender, uma divisão de luta dos oprimidos. O negro tem
problemas específicos que só ele sozinho pode resolver, embora possa contar com a solidariedade dos
membros conscientes da sociedade. Entre seus problemas específicos está, entre outros, a alienação do
seu corpo, de sua cor, de sua cultura e de sua história e consequentemente sua “inferiorização” e baixa
estima; a falta de conscientização histórica e política, etc. Graças à busca de sua identidade, que funciona
como uma terapia de grupo, o negro poderá despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se
em pé de igualdade com os outros oprimidos, o que é uma condição preliminar para uma luta coletiva.
A recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de
atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede
material de todos os aspectos da identidade. (MUNANGA, 2012, p. 19)
É neste sentido abordado por Munanga, que compreenderemos a importância da organização
das mulheres em grupos online sobre Transição Capilar e a rede de encorajamento e reconstrução da
autoestima e da beleza de um de seus traços negros, que seria a textura crespa e/ou cacheada natural
de seus cabelos, que, não por coincidência, mas por pertencerem a uma sociedade estruturalmente
racista e historicamente exultante de seu progressivo embranquecimento, fora escondido sob alisantes
químicos e físicos por anos a ponto de não lembrarem como são, durante o processo inquietante de
espera para o corte total dos resquícios da química.
A negritude e/ou identidade negra no Brasil, tem sua marca na cor da pele, mas não se delimita
às questões biológicas. A negritude se estabelece em uma história comum de opressão, exploração e
3 Sentimento de continuidade compartilhado – consciência da perda da história na diáspora e necessidade simbólica
de uma África idealizada. 4 Criam-se outras linguagens que constituem identidade: estilos de cabelo e penteado e estilos musicais, por exemplo. 5 Não possui base biológica, mas o compartilhamento por um grupo de condições sócio-economicas e estruturas
sociais historicamente condicionadas.
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desumanização sofrida por povos que a colonização ocidental branca europeia chamou de negros,
destruindo e negando sua cultura. Esta atribuição de raça dada pelo opressor é aprisionante,
objetificante, essencialista e reducionista, enclausurando as pessoas de pele preta, parda e traços
negroides à funções socioeconômicas, psicológicas e culturais pré-estabelecidas e inferiorizantes, não
se estranha, por exemplo, o alvoroço nas redes sociais ao ser divulgada na internet uma foto da
Michelle Obama6, ex primeira-dama dos Estados Unidos, com seus cabelos crespos naturais pela
primeira vez após oito anos em que sua função numa casa chamada “Branca” provavelmente não a
permitisse. Na reflexão de Césaire (2010, p. 108) a negritude não se circunscreveria no campo das
subjetividades particulares, nem na metafísica e nem na filosofia, não é uma pretensiosa concepção
do universo, a negritude é, concretamente, uma maneira de viver a história dentro da história.
O racismo e o embraquecimento
Não é um tópico simples a questão de como uma mulher negra deveria ou não usar seus
cabelos. A questão principal da reflexão não é afirmar como se faz para ser mais ou menos negra,
mas sim, refletir sobre as imposições raciais e de gênero feitas, seja afetivamente, institucionalmente,
simbolicamente ou socio-economicamente aos corpos e cabelos crespos ou cacheados de mulheres
negras, sem que possam ter escolha, seja ela simbólica ou não, como acontece nas constantes recusas
de ofertas de emprego às mulheres sob justificativa de não terem a aparência capilar adequada. No
Brasil, o embranquecimento da população foi institucionalizado, nos séculos XIX e XX, por
legislações e políticas públicas, no sentido de trazer imigrantes europeus para embranquecer a
população para que os traços negroides fossem eliminados ao longo dos anos pela miscigenação,
tornando-a assim, progressivamente com o clareamento da pele, “mais civilizada”. Nesse contexto, a
identidade negra assume caráter não apenas subjetivo e simbólico, mas político, por compreender
uma tomada de consciência da exclusão de um grupo racial da participação na sociedade que ajudou
a construir através do trabalho escravo, além de toda a contribuição cultural, política, econômica e
social dada pela população negra (GOMES, 2012).
Segundo Munanga (1994), é difícil conciliar a projeção ideológica do país por estar presa nas
malhas do mito da democracia racial.
Ao falarmos sobre a questão racial no Brasil, em específico, tocamos em um campo mais amplo.
Falamos sobre a construção social, histórica, política e cultural das diferenças. É o que chamamos de
6 Ver matéria divulgada em 03/04/2017 em https://oglobo.globo.com/mundo/michelle-obama-aparece-em-foto-com-
os-cabelos-ao-natural-21153409
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diversidade cultural. A diversidade cultural está presente em todas as sociedades e a questão racial
brasileira localiza-se dentro do amplo e complexo campo da diversidade cultural. Por isso, refletir sobre
a questão racial brasileira não é algo particular que deve interessar somente às pessoas que pertencem
ao grupo étnico/racial negro. Ela é uma questão social, política e cultural de todos(as) os(as)
brasileiros(as) (GOMES, 2012, p.51)
A hierarquização das diferenças raciais nos contextos de dominação política, econômica e
cultural transforma-se em manutenção de privilégios, portanto, é importante enfatizar que a reflexão
sobre a questão racial não deve ser exclusiva aos negros. Não é a discussão sobre o racismo que acirra
o conflito entre as raças, e sim, o silenciamento que reforça o racismo e a discriminação. Gomes
(2012) reforça ainda que mais do que falar sobre racismo, é preciso se aprofundar em como se fala,
compreender o que se fala, e partir para a ação.
Em meio à enorme paleta brasileira de tons de pardos e pretos, destaca-se a situação dos
cabelos crespos e cacheados alterados quimicamente, independentemente da cor da pele do sujeito,
embora com força avassaladora entre as mulheres negras pretas e pardas, cujo grau de negritude
precisaria ser “atenuado”. É preciso perceber o quanto as características capilares de uma pessoa
trazem em sua carga simbólica tanto a afirmação da subjetividade, quanto a construção identitária
coletiva e ritual, dadas as formas como a materialidade estética dos cabelos revela a aceitação ou
recusa de normas e padrões, os cabelos sinalizam as identidades dos indivíduos nas suas mais diversas
esferas.
É importante relacionar o fenômeno do racismo às formas concretas de modos de viver que
este impõe. O racismo hierarquiza os grupos étnicos baseado em valores inventados por uma elite
dominante do capital, das empresas, da mídia, do governo e da educação que detinha num primeiro
momento, os acessos tecnológicos, realidade que vem sendo alterada com a web interativa chamada
por alguns teóricos de 2.0 como veremos a seguir.
Resistência e Reexistência
O termo resistência sugere uma força que se estabelece contra outra força, com intuito de
neutralizá-la, por isso é muito utilizada ao descrever o movimento dos grupos oprimidos política e
economicamente, como é o caso dos negros. Reexistência, no entanto, é um termo que tem sido muito
utilizado por pensadores latino-americanos com o intuito de descrever o esforço que ultrapassa a
resistência, a sobrevivência por si só: é preciso ir além! Reexistência como a vida que ultrapassa as
barreiras que se lhe impõe, como as águas de um rio que transbordam sobre suas contenções, sendo
a reexistência, neste caso, a possibilidade da população negra de reescrever seus caminhos e libertar-
se dos aprisionamentos impostos.
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A Negritude se consolida como movimento político e estético na década de 1930 pela ação
conjunta dos intelectuais negros Aimé Césaire, da Martinica, Léopold Sédar Senghor, do Senegal, e
Léon-Gontran Damas, da Guiana. Muito embora Césaire fosse um de seus grandes articuladores
teóricos, ele nunca reivindicou a paternidade do conceito, ao invés disso, Césaire afirma que a
Negritude se “pôs de pé” e teve suas bases fincadas pela primeira vez no Haiti, no episódio da sua
revolução ocorrida entre 1791 e 1804.
A Revolução Haitiana foi pioneira na constituição de um contraponto político-teórico inteligível do
Mundo Negro à metavisão racializadora. Lá, elaborou-se pela primeira vez, e de maneira global, uma
resposta do mundo africano escravizado ao mundo ocidental, hegemônico e escravagista. Aquilo que,
hoje, reconhecemos como Negritude foi colocado de maneira radical e inequívoca diante do mundo,
então dominado totalmente pelo Capitalismo predador, expansionista e militarista do século XIX.
O Haiti produz a primeira Revolução radical de essência antirracista, anticolonialista e anti-imperialista.
Um desafio global à proposta monstruosa da desigualdade congênita entre as raças humanas e a
superioridade natural de uma sobre a outra. Ela é o grande divisor de águas da modernidade, relativo à
reivindicação fundamental dos direitos inerentes à condição humana (MOORE, 2010, p.9.)
A Negritude não deveria ser compreendida, portanto, como uma elaboração de alguns
intelectuais, mas como uma ampla, potente e transformadora proposta de ação e de pensamento social
amadurecida tanto no continente africano quanto dos seus descendentes na diáspora. (MOORE, 2010)
Césaire (2010) define a Negritude em três palavras: identidade, fidelidade, solidariedade.
Dizer-se negro é esvaziar uma palavra de seus aprisionamentos pejorativos e ressignificá-la como
fonte de orgulho. A importância das declarações de raça negra a partir dos cabelos naturais nos grupos
estudados se dá porque asssumir a negritude é assumir também o desprezo, neutralizar as agressões
e desenvenenar a cultura para transformá-la em fonte de orgulho ao recarregá-la com um novo
sentido. Negritude como operação de “desintoxicação semântica” e de “constituição de um novo lugar
de inteligibilidade da relação consigo, com os outros e com o mundo.” (CÉSAIRE, 2010 p.53)
Grupos sobre Transição Capilar no Facebook
As produções discursivas de mulheres em processo de Transição Capilar7 e suas identidades
negras são construídas também discursivamente neste processo demarcado por longas trocas de
angústias não apenas em relação às duas texturas diferentes dos seus cabelos durante a espera, mas
às implicações sociais, familiares, de relacionamento, trabalho e desafio aos padrões de beleza
7 Processo pelo qual as mulheres passam ao deixar seus cabelos naturais crescerem para assumi-los como são, e
portanto precisam esperar que as químicas alisantes e relaxantes usados por muitos anos sejam cortadas aos poucos ou de uma vez por todas, ao realizarem o BC (big chop/grande corte)
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eurocêntricos, dúvidas, dicas de cuidados, incentivos, suporte e auto-estima. Estes discursos que
pretendemos analisar são gerados em grupos fechados na rede social Facebook, e para compreender
o contexto do córpus selecionado no âmbito dos gêneros dos discursos (BAKHTIN, 1997/2014), é
fundamental resgatar rapidamente algumas reflexões a respeito das mídias sociais, e das plataformas
online, nas quais os enunciados que serão analisados foram recolhidos e perceber de que maneira as
escolhas de forma e conteúdo presentes nos enunciados, constroem significados e dão pistas a respeito
de seus sentidos.
Os suportes online8 de produção de discursos nos ajudam a compreender as intrínsecas
relações entre a materialidade dos enunciados e suas implicações dialógicas na sociadade, visto que
a linguagem provoca mudanças na comunicação e na construção de sentidos, ao mesmo tempo em
que é afetada por elas. David Barton e Carmen Lee resgatam a ideia de Berker (2005) de
“domesticação da tecnologia” que se refere a como os processos pelos quais as redes sociais como o
Facebook fazem parte das experiências vividas pelas pessoas em suas casas, trabalho, estudos e
família, compartilhando e tendo acesso à fotografias e relatos pessoais uns dos outros; esta
possibilidade de conteúdo autogerado e interatividade é possível devido às construções dos sites na
chamada WEB 2.0. A tecnologia das mídias como a televisão transmitiam notícias e discursos que
mesmo partindo de um enunciador específico, não deixa de ser dialógica, pois se direciona a um
telespectador ativo, entretanto, esta ferramenta da WEB 2.0 permite, através das estruturas de
comunicação online, a troca constante e as construções interativas. Kress (2003) aponta quatro
mudanças silmutâneas decorrentes da tecnologia na vida contemporânea, assim como nas
instituições, nas mídias, na economia e nos processos gerais de globalização. A primeira se refere às
mudanças nas relações de poder social, que desconstroem e reconstroem hierarquias, como veremos
nas postagens selecionadas nos grupos a recorrente prática das mulheres de desafiar os padrões de
beleza eurocêntricos outrora não questionados pela mídia em suas vivências; mudanças na estrutura
econômica, tendo em vista o papel fundamental da informação e da linguagem, como é possível
verificar nos produtos capilares que lidam diretamente com este nicho de mercado, que mudam as
frases de suas embalagens de acordo com o movimento de aceitação dos fios crespos e cacheados
naturais não mais se referindo a estes como fadados a serem “controlados”, “domados” ou
“disciplinados”; mudanças comunicacionais com um deslocamento constante da escrita para as
8 Entendendo como online todas as formas de comunicação utilizadas em dispositivos de rede
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imagens, e por fim a questão das virtualidades tecnológicas, e a adesão das telas em detrimento dos
papéis.
Em suma, a linguagem tem função fundamental nas novas relações contemporâneas, e
partindo da visão discursiva que compreende os enunciados como materialidade e sua impossível
dissociação das relações sociais simbólicas e concretas, pretendemos analisar quais são os sentidos
presentes nos textos destas mulheres que nos permitam perceber como se constroem as alteridades e
identidades de gênero e de raça negra a partir do processo de assumir os cabelos crespos e cacheados
naturais.
Análise
Ressalto as primeiras partes do trabalho quando refletimos sobre os contextos de construção
discursiva das identidades negras brasileiras, do racismo e dos corpos e cabelos enquanto traços
marcantes da racialização, assim como as plataformas online de construção destes enunciados
enquanto gênero do discurso, que são os grupos fechados sobre Transição Capilar no Facebook.
Dentre as postagens coletadas ao longo dos últimos 3 anos (de 2013 a 2016) podemos observar
a recorrência de alguns temas sob os quais classificamos as postagens, são eles: Declaração de Raça
- quando a pessoa faz a associação direta dos seus cabelos naturais à sua negritude, seja com uma
indicação de sempre ter sido, ou de ter “se tornado” negra a partir do corte e ainda em alguns casos,
com a dúvida do seu pertencimento ou não à raça negra, geralmente quando há pouca pigmentação
na pele apesar da crespura dos fios; Liberdade - é importante ressaltar a característica comum ao uso
da palavra “livre” nos enunciados das mulheres, pois em quase sua absoluta maioria de todo o material
coletado, esta palavra é usada após o ápice da razão de ser do grupo, o grande corte, também
conhecido com BC (big chop) e se refere ao corte que elimina de vez as partes com química dos
cabelos. As mulheres usam a palavra “livre” para expressar algumas relações que se criam a partir do
momento que se decide terminar a transição e se desfazer das pontas dos cabelos que ainda possuem
os resquícios da química; Relacionamentos - agrupando as postagens referentes à aceitação e não
aceitação de seus parceiros à sua decisão de mudança tanto da textura, quanto ao comprimento dos
cabelos, que é quase inevitável visto que não são muitas as mulheres que conseguem esperar o cabelo
crescer tanto e o cortam ainda bem curto, as denúncias de machismo e a auto-afirmação das mulheres
que preferem ser quem são a estar com alguém que não as aceita; Trabalho - agrupando as postagens
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relacionadas a perder vagas em entrevistas de emprego, ou de assédio de superiores quanto às suas
aparências não “padronizadas”; Denúncias de Racismo - aparecem em postagens dos temas mais
diversos e geralmente vêm acompanhadas de prints de conversas pessoais ou de postagens de outros
amigos e conhecidos nas suas timelines pessoais e; Motivações para entrar em Transição - onde as
mulheres narram suas histórias, seus incentivos, encorajamentos, fotografias de “antes e depois” e
afins.
Cada tema acima relacionado (declaração de raça, liberdade, relacionamentos, trabalho,
denúncias de racismo e motivações para entrar em transição) renderia uma dissertação inteira, dadas
as profundas implicações e diversidade dos assuntos, portanto, para este trabalho específico,
focaremos no tema Declaração de Raça, para o qual daremos 3 exemplos de postagens e analisaremos
uma delas em seus detalhes.
A abordagem de cada tema se deu a partir do plano discursivo do vocabulário, de forma que
na caixa de busca de assuntos dentro dos grupos, digitei as palavras “raça”, “ser negra”, “negra” e
“negritude” e colhi as postagens dos últimos 3 anos, com a autorização das administradoras do grupo
e das autoras das postagens, para observar quais são as possíveis relações e implicações sociais
presentes nos enunciados e na construção dos sentidos.
As Figuras 1, 2 e 3, abaixo, são reproduções do Facebook e exemplificam o tema sobre a
Declaração de raça:
Vamos analisar o primeiro texto:
“hoje feliz com os elogios e certa de que cabelo cresce”
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O dêitico temporal sinaliza que a partir de um dado momento – hoje - a enunciadora passa a
ser feliz, pois provavelmente antes não era.
Há a possibilidade de o cabelo pequeno/curto ser a razão da não felicidade visto que a
felicidade pode vir tanto da certeza que cabelo cresce, quanto do surgimento de elogios a partir do
“hoje”, logo, do reconhecimento positivo por parte de terceiros dos seus cabelos naturais.
“Minha melhor decisão, foi retornar aos meus cachos...” Compreender a relevância no fator escolha
elucidado pela palavra “decisão” neste rompimento estético com o padrão eurocêntrico colonizador,
sem perder de vista a perspectiva de que um rompimento opcional com a “ditadura dos alisados” não
se transforme numa outra ditadura (de cabelos naturais crespos e cacheados)
“meu natural é vida...”
No início do texto a enunciadora indica os 9 meses que esperou em transição “sem (passar)
química” até os 4 últimos meses desde que fez o “bc” (big chop – grande corte). O enunciado fala
dos desdobramentos desta decisão- os elogios e a constatação de que o cabelo cresce-, portanto, a
“vida” a que se refere quando fala do cabelo natural, pode se opor à falta de vida/vitalidade nos seus
cabelos com química antes de entrar neste processo.
“minha negritude minha melhor escolha...”
Retomando os conceitos de construção discursiva da raça (HALL, 2003 e 2015 e MBEMBE,
2014), e de discurso enquanto ação e materialidade (BAKHTIN, 1997/2014), este enunciado atribui
sentido à negritude a associando aos próprios cabelos naturais crespos/cacheados que são um traço
estético fenotípico, e esta associação permite presumir que é possível ser ou deixar de ser negra a
partir da alteração deste único traço físico. O uso reincidente do termo “minha” demarca uma potura
de identificação, pertencimento. Escolher a negritude é acolher e co-construir um discurso e a própria
identidade.
Considerações finais
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Uma busca por se reconhecer nas diferenças, e na não-identificação com a padronização
ocidentalista mercantilizada cuja globalização facilitou, sendo esta referência discursiva imaginada,
Hall (2003 e 2015) provoca que os grupos não retornam às suas raízes, e sim (re)negociam seus
percursos. Stuart Hall associa a globalização e a modernidade apontando as necessidades dos
diferentes grupos deslocados em espaço e tempo, citando a ideia de tradições inventadas (GILROY,
1994), de invocar uma narrativa original em um passado comum, para desta forma, utilizar a história,
a linguagem e a cultura na produção de uma compreensão do que eles se tornam, e não do que
essencialmente são.
A partir da reflexão presente neste trabalho, partindo da compreensão da formação identitária
de caráter discursivo de grupos pelo viés do que as une e o que as diferencia de outros numa sociedade
globalizada e com fronteiras diluídas, de forma fluida e híbrida, que são as texturas crespas e
cacheadas dos seus fios, queremos ressaltar que os enunciados que envolvem as atitudes estéticas
concretas destas mulheres provocam as estruturas, questionam padrões estéticos eurocêntricos e
monolíticos, disputam significados, resistem às opressões e denunciam os discursos racistas
aprisionantes e mantenedores de opressões estruturantes da sociedade brasileira.
Aceitando-se, a mulher negra em seus mais diversos tons de pele, afirma-se cultural, moral,
física e psiquicamente. Ela se reivindica com a convicção que outrora a fazia admirar e assimilar o
branco. Ela assumirá a cor e a textura capilar negadas e verá nela traços de beleza e de feiura como
qualquer ser humano. A Negritude é fruto também de um desejo urgente de contestar a marginalidade
e descobrir uma identidade, daí a volta enfática às “origens”. A luta não significa necessariamente
um retorno às tradições, mas a construção de uma solidariedade que negue a supremacia colonizadora
em relação ao povo dominado, e a necessidade de identificação tem por finalidade a resolução deste
conflito. A luta por esta identificação deve ultrapassar o indivíduo e se engajar no movimento das
massas, de forma que se questione a própria estrutura de dominação em sua globalidade.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014
BARTON, David; LEE, Carmen. Linguagem online: textos e práticas digitais; tradução Milton
Camargo Mota. Ed. 1. São Paulo, Parábola Editorial, 2015
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a negritude. Carlos Moor (org.). Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
GOMES, Nilma Lino. MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO: RESSIGNIFICANDO E
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HALL, Stuart. A identidade em questão e Nascimento e morte do sujeito moderno. In: A
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Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.
HALL, Stuart. Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Organização Liv Sovik. Tradução
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MBEMBE, Achile. Crítica da Razão Negra. Lisboa, 2014. Antígona.
MUNANGA, Kabengele. Negritude. Usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
Dialogues between race, gender and language: The declaration of women's blackness in
Brazilian online groups about Hair Transitioning Astract: This research intends to understand the relevance of the declaration of blackness in the
struggle against racist structures that silence racial tensions based on the myth of racial democracy in
Brazil. Thus, my objectives are to investigate how black racial identities/identifications of women are
built, dialogically and through language, in three private Brazilian groups about hair transitioning on
Facebook, and analyze the effects of the black women protagonisms in their statements published in
these groups. In this sense, I will be based on theoreticians such as Césaire (2010), Gomes (2012),
Fanon (1989), (Hall, 2003 and 2015), Mbembe (2014) and Munanga (2012). As for the research
methodology, the data generation tools are posts published by black women in three private virtual
groups in the social network, mentioned above, about Hair Transitioning. The data analysis is based
on an enunciative and discursive perspective of language as proposed by Bakhtin (1997/2014). Partial
results suggest that powerment provided by online interaction platforms and the mobilization of these
women around their natural hair - discursively perceived as one of the symbols of their blackness-,
compete for racial meanings, provoke the racist structures that cause invisibility or pejorativization
of aesthetic diversity and encourages other women to enter this process.
Keywords: Blackness. Hair Transitioning. Speech.