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1 DIGRESSÃO SOBRE A FIDELIDADE E A GRATIDÃO 1 Georg Simmel A fidelidade figura entre os mais importantes modos gerais de conduta para as ações recíprocas mais heterogêneas – não só materiais mas sociológicas – que se dão entre os homens. Aplica-se tanto, nos casos de superioridade e de subordinação, de paridade e coordenação; nos de antagonismo coletivo contra um terceiro como nos de amizade coletiva, na família como no Estado, no amor como na relação com o grêmio profissional, em todos estes produtos sociais se olharmos tão somente a sua constelação sociológica, a fidelidade – o mesmo valendo para seu oposto, a infidelidade – são importantes por assim dizer, como forma sociológica de segunda ordem, como o suporte dos diversos gêneros de relação que nascem e perduram entre os elementos sociais. Em geral, a fidelidade se comporta, no que tange as formas sociológicas que mantém como estas no que diz respeito aos motivos e conteúdos materiais da existência social. Sem o fenômeno a que chamamos fidelidade a sociedade não poderia existir durante muito tempo com a mesma forma. Os motivos que sustentam a sua conservação – interesse dos elementos sociais e sugestão, coação e idealismo, costume mecânico e sentimentos de dever, amor e de inércia – não poderiam impedir a desagregação da sociedade, se a eles não se juntasse o complemento da fidelidade. Certo é que não se pode determinar a medida e a importância destes elementos em cada caso isolado, porque a função prática da fidelidade é sempre a de substituir um outro sentimento que dificilmente terá desaparecido sem deixar rastros; e então a parte que corresponde a esse sentimento e a que se pode atribuir a fidelidade se fundem num resultado total que resiste à análise quantitativa. Por esse caráter completar que a fidelidade assume, expressões como “amor fiel” podem de certo modo induzir ao erro. Quando entre dois seres humanos persiste o amor, para que a fidelidade? Se os indivíduos não se unem 1 Tradução livre de Simone Carneiro Maldonado, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.

Digressão Sobre a Fidelidade e a Gratidão (Georg Simmel)

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    DIGRESSO SOBRE A FIDELIDADE E A GRATIDO1 Georg Simmel

    A fidelidade figura entre os mais importantes modos gerais de conduta para as aes recprocas mais heterogneas no s materiais mas sociolgicas que se do entre os homens. Aplica-se tanto, nos casos de superioridade e de subordinao, de paridade e coordenao; nos de antagonismo coletivo contra um terceiro como nos de amizade coletiva, na famlia como no Estado, no amor como na relao com o grmio profissional, em todos estes produtos sociais se olharmos to somente a sua constelao sociolgica, a fidelidade o mesmo valendo para seu oposto, a infidelidade so importantes por assim dizer, como forma sociolgica de segunda ordem, como o suporte dos diversos gneros de relao que nascem e perduram entre os elementos sociais. Em geral, a fidelidade se comporta, no que tange as formas sociolgicas que mantm como estas no que diz respeito aos motivos e contedos materiais da existncia social.

    Sem o fenmeno a que chamamos fidelidade a sociedade no poderia existir durante muito tempo com a mesma forma. Os motivos que sustentam a sua conservao interesse dos elementos sociais e sugesto, coao e idealismo, costume mecnico e sentimentos de dever, amor e de inrcia no poderiam impedir a desagregao da sociedade, se a eles no se juntasse o complemento da fidelidade. Certo que no se pode determinar a medida e a importncia destes elementos em cada caso isolado, porque a funo prtica da fidelidade sempre a de substituir um outro sentimento que dificilmente ter desaparecido sem deixar rastros; e ento a parte que corresponde a esse sentimento e a que se pode atribuir a fidelidade se fundem num resultado total que resiste anlise quantitativa.

    Por esse carter completar que a fidelidade assume, expresses como amor fiel podem de certo modo induzir ao erro. Quando entre dois seres humanos persiste o amor, para que a fidelidade? Se os indivduos no se unem

    1 Traduo livre de Simone Carneiro Maldonado, professora do Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia da Universidade Federal da Paraba.

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    desde sempre pela fidelidade e sim por uma disposio genuna, absolutamente primria, do amor, para que ter de surgir dez anos depois a fidelidade para proteger esse enlace, posto que segundo nossa hiptese, aquele amor permanea idntico ao cabo de dez anos e conserve a mesma fora de unio dos primeiros momentos. Se o senso comum quiser chamar de amor fiel o amor que simplesmente dura, nada temos a objetar; no importam as palavras. preciso fazer constar que existe um estado anmico particular e sociolgico que assegura a perdurao de um vnculo e que sobrevive a essas foras com as mesmas virtudes sintticas que elas tiveram. A este estado de alma s se pode chamar fidelidade, ainda que a palavra implique tambm outra significao radicalmente distinta, a saber: a persistncia daquelas foras aglutinantes primeiras. Poder-se-ia definir a fidelidade como o poder de perseverar a alma em um caminho uma vez empreendido, mesmo depois de passado o efeito do que a tenha impelido a seguir esse caminho. Refiro-me aqui exclusivamente fidelidade no sentido de uma disposio anmica, que atua de dentro para fora; no em uma conduta meramente externa, como por exemplo, o conceito jurdico de fidelidade no casamento que nada tem de positivo, a no ser de que no haver infidelidade.

    fato relevante para a sociologia o fato de que muitas relaes persistam sem variaes na sua estrutura sociolgica, mesmo quando j tenha desaparecido o sentimento ou o impulso prtico a que porventura devessem sua origem. A verdade geralmente inegvel que diz: destruir mais fcil do que construir, se pode aplicar sem reservas a certas relaes humanas. certo que a gnese de uma relao requer um determinado nmero de condies positivas e negativas e que a falta de uma s delas impede desde logo o nascimento do dito vnculo. Mas uma vez que a relao esteja criada, a ulterior falta dessa condio sem cuja concorrncia no tivesse nascido, nem sempre causa sua destruio. Por exemplo, uma relao ertica, nascida a partir da beleza corporal pode muito bem sobreviver ao desaparecimento dessa beleza e at a sua mutao em feira. Diz-se dos Estados, que s se conservam pelos mesmos meios pelos quais foram fundados. Mas essa verdade apenas parcial e no pode absolutamente considerar-se como um princpio geral de socializao.Melhor seria dizer que essa trava sociolgica por assim dizer que tenha sido seu bero, desenvolve uma fora de conservao, uma consistncia

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    de forma independente dos motivos aglutinantes que atuaram na sua origem. Uma vez constitudas as associaes.na ausncia desse seu poder de perdurao, a sociedade se desmancharia a cada momento ou se modificaria de maneira imprevisvel. A conservao da unidade formal se verifica psicologicamente devido a muitos e diversos fatores, intelectuais e prticos, positivos e negativos. Entre eles aparece a fidelidade como o fator de carter sentimental, ou, melhor dito, a fidelidade a prpria conservao do sentimento na sua projeo sobre o plano do sentimento. O sentimento em questo cuja qualidade s pode ser determinada na sua realidade psquica, se aceite ou no o que est dito como noo de fidelidade pode ento definir-se assim: as relaes que se tecem entre os indivduos corresponde neles a um sentimento especfico, um interesse, um impulso que se refere e da ordem da relao. Se a relao se prolonga, aqueles estados anmicos que criaram o vnculo se metamorfoseiam muitas vezes, se bem que sem sempre numa forma peculiar a que chamamos fidelidade, e que por assim dizer o coletor psicolgico, a forma unitria ou total dos afetos, interesses e motivos de juno os mais vrios, os quais por distintos que sejam em sua origem, ao ingressar assumem na forma de fidelidade certa uniformidade que favorece o carter duradouro desse sentimento. No ento a fidelidade aquilo a que se alude quando se diz amor fiel, adeso fiel e que significa um certo modo de ser ou uma quantidade temporal de um sentimento j definido. Na minha opinio a fidelidade um estado de alma peculiar referido a uma relao e independente dos sujeitos especficos que sustm com sua vontade ou sentimento o contedo dessa relao. Essa relao anmica dos indivduos por diferentes que sejam os graus de sua manifestao, figura entre as condies a priori da sociedade, aquelas que ao menos no que conhecemos de sua existncia, tornam possvel a sociedade: aquelas condies que ainda que se manifestem nos graus distintos mais extremos, nunca podem descer ao ponto zero. O homem absolutamente infiel a quem fosse absolutamente impossvel passar de outros afetos geradores das relaes humanas a um sentimento peculiar que objetive a conservao das relaes, um fenmeno inimaginvel. Assim, poder-se-ia definir a fidelidade como uma concluso indutiva do sentimento. Neste ou naquele momento ter existido uma relao: a o sentimento em formal analogia com a induo terica busca e encontra a conseqncia: Assim ento existe tambm num momento

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    ulterior. E do mesmo modo que na concluso intuitiva intelectual no necessrio, por assim dizer, estabelecer como dado o caso posterior porque a induo nos poupa desse esforo do mesmo modo, em muitos casos, j no momento posterior no encontra a realidade do sentimento e do interesse, ao contrrio, o supre e repe com este estado engendrado pela induo a que chamamos fidelidade. Em muitas relaes e associaes dos homens deve levar-se em conta (e isso est nos fundamentos sociolgicos) que o mero costume de estarem juntos, a simples persistncia de uma relao durante algum tempo, comporta esta concluso indutiva do sentimento. Isso viabiliza o conceito de fidelidade e implica num aspecto muito importante: o estado sociolgico extrnseco, a convivncia de certo modo determina os sentimentos que propriamente lhe correspondem ainda que no tenham existido no princpio, ao estabelecer-se a relao. Aqui, o processo da fidelidade se torna de certo modo retrgrado. Os motivos anmicos que travam uma relao do lugar a que nasa o sentimento especfico da fidelidade ou nele se metamorfoseiem. Mas se se produz uma relao, por qualquer razo extrnseca ou um motivo anmico que no corresponda ao verdadeiro sentido da unio, se desenvolve igualmente para com ela a fidelidade e esta permite que se desenvolvam por sua vez os sentimentos mais profundos adequados a esta relao, de maneira que a legitimam, por assim dizer, per subsequens matromonium animarum. O que se costuma dizer quando se fala de casamentos convencionais ou acertados por razes extrnsecas que o amor advir no deixa de estar justificado. Uma vez que a persistncia da relao tenha encontrado sua correlao psicolgica na fidelidade, acabam por seguir a esta os afetos, os interesses sentimentais e condies interiores que em vez de aparecer no seu lugar lgico que seria o comeo de uma relao, se mostram como resultado final. Tal processo no poderia se manifestar sem a intermediao da fidelidade, do sentimento orientado para a conservao da relao como tal. Da mesma maneira que na associao de idias, uma vez que a representao B se tenha enlaado representao A, esta atua tambm na direo inversa, e quando B se apresenta, desperta na conscincia a representao A; assim digo uma forma sociolgica conduz ao estado interior que lhe corresponde, como este leva quela. Para diminuir o nmero de crianas abandonadas nas Rodas dos Enjeitados, estabeleceu-se na Frana em meados do sculo XIX, o chamado

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    socorro temporrio, certa quantia que era repassada s mes solteiras que quisessem cuidar dos filhos. Os que promoveram essa disposio advogaram em seu favor, alegando que a experincia revelava que, em quase todos os casos, tendo guardado o filho junto a si um certo tempo, desapareceria o perigo de que a mulher o viesse a abandonar. O sentimento natural da me para com o filho, que deveria inclin-la a t-lo consigo nem sempre atua desde o principio. Mas se conseguiu, por razes extrnsecas como o proveito desse socorro temporrio, conduzir mes a manter os filhos consigo, mesmo que por uma temporada, a relao extrnseca teria desenvolvido gradualmente o seu fundamento sentimental.

    Estas constelaes psicolgicas aparecem com bastante clareza no fenmeno dos renegados. Neles se observa uma tpica fidelidade para com seu novo partido poltico, religioso ou de outro tipo, fidelidade que sobrepuja em cime e convico ceteris paribus a fidelidade dos elementos que pertencem a esse partido desde sempre. Isso chega ao extremo de que em muitas ocasies, na Turquia nos sculos XVI e XVII, os turcos de nascimento no podiam ocupar cargos elevados na corte, que eram confiados exclusivamente aos janzaros, cristos de nascimento que voluntariamente haviam renegado sua religio ou filhos de cristos roubados de seus pais e educados como turcos.Estes eram os sditos mais fiis e mais ativos. Parece-me que essa fidelidade peculiar ao renegado repousa em que as circunstncias em que entrou na nova relao atuam mais tempo nele, mais perduravelmente do que se tivesse vivido ingenuamente e sem interrupo na confisso anterior. Se a fidelidade de que estamos falando a prpria vida da relao refletida no sentimento e indiferente ao desaparecimento eventual dos motivos originrios que a estabeleceram, ento atuar com tanta maior energia e segurana quanto mais tempo dure a colaborao daqueles motivos e quantas menos provas de resistncia se exijam a fora de forma pura, da relao como tal. Ocorreria de modo muito particular no renegado a clara conscincia de que no pode retroceder e de que para ele, como por uma espcie de sensibilidade diferencial, a relao anterior de que se separou irrevogavelmente continua a constituir o fundo da relao atual. Por assim dizer, o renegado repelido uma e outra vez por aquela, e precipitado nesta. Assim, a fidelidade nele particularmente forte porque ainda contm aquilo de que a fidelidade pode prescindir, a saber, o prolongamento consciente

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    dos motivos que deram lugar relao, a qual se amalgama com a fora puramente formal desta relao mais solidamente do que nos casos em que falta este passado contraditrio e essa impossibilidade de poder mudar e voltar atrs.

    A mera estrutura conceitual da fidelidade mostra que se trata de um sentimento sociolgico, ou se se quer, orientado sociologicamente. Outros sentimentos, por muito que enlacem uns homens aos outros, tm no obstante uma maior proporo de solipsismo. Mesmo o amor, a amizade, o patriotismo, o sentimento do dever social, consistem antes de tudo num afeto que ocorre e persiste no prprio sujeito, um afeto imanente a ele como se revela claramente na frase de Philina: Se eu te amo, o que isso importa a ti? Assim pois, estes afetos, apesar da sua infinita importncia sociolgica so antes de tudo estados do sujeito.Certo que s nascem graas ao,influxo de outros,indivduos ou grupos. Mas nascem antes mesmo que esse influxo se tenha transformado em ao recproca; ao menos no necessitam, ainda que se dirijam a outros seres, que a relao com eles seja seu contedo suposto ou real. Este justamente o sentido da fidelidade (de que estamos falando, mesmo que na linguagem usual tenha outros significados). Fidelidade a palavra justa para designar o sentimento peculiar que no se refere nossa posse de outrem como um bem eudemonista que sente, nem to pouco ao bem-estar do outro, como valor objetivamente contraposto ao sujeito, referindo-se antes manuteno da nossa relao com outro. A fidelidade no estabelece esta relao e em conseqncia no pode ser voltada aos outros dentro de cada indivduo. As duas capas, interna e externa, seguem um tempo diferente de evoluo e com freqncia essencial forma externa, o no evoluir na realidade. O mximo de estabilidade externa nas relaes interiormente variveis, nos oferecido pelas formas jurdicas: a forma matrimonial que resiste, inflexvel a transformaes da relao pessoal entre os cnjuges; ou o contrato entre dois scios que repartem ao meio os lucros mesmo quando um executa todo o trabalho e o outro nada faz; ou o pertencimento a uma comunidade religiosa ou cidad, mesmo que alheia ou antiptica ao indivduo.Deixando de lado esses dois casos ostensivos, pode se observar a cada passo como as relaes que se estabelecem entre indivduos ou grupos tendem, imediatamente a consolidar sua forma; como isso constitui um preconceito mais ou menos rgido para o desenvolvimento ulterior da relao

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    e como, por sua parte, (esses indivduos) no esto em condies de adaptar-se vida vibrante, s mudanas suaves ou intensas da correlao mtua. Por fim, aqui s se repete a discrepncia que existe dentro do indivduo. A vida interior que sentimos como fluncia, processo incessante, surgimento e desaparecimento de pensamentos e estados sentimentais se cristaliza, ainda para ns, em frmulas e direes rgidas, s vezes unicamente pela razo de que a captamos em palavras. Mesmo, como amide acontece que no se chegue a inadequaes concretas, sensveis aos indivduos; mesmo que em casos afortunados, a rgida forma exterior represente o centro de gravidade ou ponto morto em redor do qual a vida oscila na mesma medida para um lado e para o outro, subsiste sempre a oposio formal constitutiva entre a fluncia, a essencial mobilidade da vida subjetiva e anmica e a capacidade de suas formas que no expressam nem do forma a um ideal, a uma oposio com respeito sua realidade, mas precisamente a essa vida. E posto que as formas externas, na vida individual assim como na social, no fluem, como a evoluo interna, mas permanecem fixas por algum tempo, seu esquema consiste em adiantar-se realidade interior ou ento ficar relegadas.

    Precisamente nos casos em que formas decrpitas se espedaam e se fundem nos embates da vida palpitante esta oscila para um dos seus extremos e cria formas prematuras que se adiantam vida real, sem poder ainda ser cabalmente preenchidas por ela. Isso acontece, por exemplo, nas relaes pessoais em que entre amigos, algum parece j desde algum tempo, de uma dureza inadequada cordialidade do trato, e o tu resulta ainda, pelo menos no comeo, um tanto excessivo, diante da antecipao de uma intimidade plena ainda inexistente. Acontece tambm nas mudanas de constituio poltica que as formas caducas, j convertidas em opresso insuportvel, sejam substitudas por outras mais soltas e lassas antes que a realidade das foras polticas e econmicas estejam maduras para tal, estipulando critrios onde o que antes havia era muito estreito. . Entre os dois casos, h toda uma srie de outras intermediaes.

    Diante deste esquema da vida social, a fidelidade no sentido aqui exposto possui o seguinte significado: que graas a ela, a interioridade flutuante, as pessoas adquirem o carter de uma forma fixa e estvel na relao imediata e do seu ritmo objetivo se converte precisamente, no contedo da vida

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    subjetiva, sentimental. Prescindindo das incontveis modificaes e entrelaamentos com que se mostra cada caso concreto, a fidelidade a ponte, a conciliao daquele dualismo essencial e profundo que se abre entre a forma da vida interior do indivduo e a forma de socializao se bem que esta seja mantida pela outra. A fidelidade a disposio anmica por cuja virtude a alma, se bem que esteja em contnua mudana e fluxo, se assemelha intimamente estabilidade prpria da relao superindividual. Graas a ela, a alma recebe um contedo que vai constituir o sentido e o valor da vida realmente vivida; contedo que, tendo sido criado por ela, tem forosamente que contradizer o ritmo ou o no ritmo desta vida.

    No sentimento da gratido se manifesta tambm o carter sociolgico, se bem que em muito menor grau do que na fidelidade. Mesmo assim nunca ser demasiado estimar a importncia sociolgica da gratido. A exigidade das suas manifestaes concretas que contrasta com a imensido dos seus efeitos a causa que parece ter ocultado at agora de que a vida e a coerncia da sociedade variariam de maneira incalculvel, sem o fato da gratido.

    Em primeiro lugar, a gratido complementa a ordem jurdica. Todo intercmbio humano repousa sobre o esquema de entrega e equivalncia. Se no vejamos; para grande nmero de entregas e prestaes, a equivalncia pode ser imposta. Em todas as trocas econmicas que se realizam em forma jurdica; em todas as obrigaes que emanam de uma relao regulada no direito, a organizao jurdica obriga mudana de prestao e contraprestao e zela por essa reciprocidade, sem a qual no existiriam a coeso e o equilbrio social. Mas existem tambm muitas outras relaes em que a forma jurdica no intervm e nas quais no cabe dizer que seja obrigatria a compensao do favor anterior. Nestes casos, a gratido aparece como elemento, tecendo o vnculo da reciprocidade, da prestao mtua, mesmo que no venha a garantir nenhuma coao exterior. Assim, a gratido um complemento da forma jurdica, no mesmo modo que acontece com o sentido de honra.

    Para situar este vnculo no seu verdadeiro lugar, sem menoscabar a sua peculiaridade, preciso antes se dar claramente conta de que a ao pessoal de um homem, sobretudo quando se exerce em coisas como, por exemplo, no roubo ou no presente, formas primitivas de mudana de propriedade se desenvolve no sentido de se converter em troca, tomando esta palavra na sua

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    significao objetiva. A troca a ao mtua entre dois homens, transformada em coisa. Quando um deles d uma coisa e recebe do outro uma coisa do mesmo valor, a espiritualidade pura da relao entre ambos injetada nos objetos. E essa materializao da relao, essa sua introjeo nas coisas que se do e se recebe, chega a ser to perfeita, que na economia mais desenvolvida desaparece completamente a interao pessoal e as mercadorias adquirem uma vida prpria, independente. As relaes entre as mercadorias, o ajuste do seu valor, se realizam automaticamente por simples clculo e os homens ficam reduzidos a meros executores das tendncias a compensar-se e transferir-se que as mercadorias tm nelas mesmas. O igual se troca pelo que objetivamente igual; e se o homem ficar alheio a esse processo, se bem que o realize em interesse prprio, a relao entre eles se transformou numa relao entre objetos.

    Vejamos; a gratido se engendra nas e pelas aes recprocas entre os homens; mas se desenvolve para o seu interior do mesmo modo que a relao entre as coisas se desenvolvem para fora. A gratido o resduo subjetivo do ato de receber ou do ato de entregar. Do mesmo modo que com a troca de objetos, a ao recproca baixa vo sobre o ato imediato da correlao, e assim na gratido este ato se soma pelas suas conseqncias, pela sua significao subjetiva, por seu eco espiritual, no fundo da alma. s gratido, por assim dizer, a memria moral da humanidade. Distingue-se da fidelidade por ser de natureza prtica e impulsiva e mesmo que permanea no interior, constitui a potencialidade de novas aes, ponte ideal que a alma, por assim dizer, encontra sempre diante de si para responder ao mais leve estmulo eu talvez sem a gratido fosse ineficaz construindo uma nova ponte que a aproxime dos outros homens. Toda socializao, passada j sua ordem primeira, repousa sobre o fato de que os vnculos continuam atuando alm do momento em que nasceram. Seja amor ou cobia, obedincia ou dio, sociabilidade ou sede de poder que desencadeie uma ao de homem a homem, o estado anmico que uma relao cria, no se esgota na ao, mas de certo modo continua vivendo na prpria situao sociolgica por ele criada.A gratido um desses prolongamentos no sentido mais categrico; a continuidade ideal de um vnculo, mesmo depois de rompido, ainda depois de estar cancelado de longo tempo o ato de dar e receber. Se bem que a gratido seja um afeto pessoal ou

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    lrico, se se quiser, se torna o mais intenso lao de unio, em razo do seu movimento de lanadeira pelo interior da sociedade. A gratido o frtil terreno sentimental em que no s frutificam aes isoladas de um para o outro, mas que pela sua prpria existncia que costuma ser inconsciente e entretecida com motivos de outro gnero, prolifera nos atos humanos uma modificao ou intensidade peculiar, em enlace com os anteriores, uma entrega desinteressada da personalidade, uma continuidade da vida comum. Se de repente se apagasse a reao de gratido que persiste no esprito por uma ao anterior, a sociedade tal como se nos apresenta, pelo menos deixaria de existir. Se entre todos os motivos que envolvem os homens interna e exteriormente, considerarmos at que ponto implicam em troca fatores que em boa parte constituem a sociedade, no apenas conservando-a e formando-a veremos que a gratido o motivo que produz por um espontneo motivo interior, a compensao a um benefcio recebido, nos casos em que essa compensao no imposta de fora para dentro. O benefcio no somente uma ddiva material de uma pessoa, mas tambm sentimos agradecimento para com o artista e o poeta, para ns desconhecidos, e este fato estabelece incontveis vnculos, ideais e concretos, distantes ou estreitos, entre os que esto to plenos de gratido para com um mesmo doador. E mais; no s ficamos agradecidos pelo que faz mas este mesmo sentimento de gratido o nico que podemos empregar para designar o sentimento com que, constantemente, reagimos diante da simples existncia de certas personalidades: estamos agradecidas por existirem, por podermos viver sua existncia. E os vnculos mais sutis e obscuros desse sentimento nascem com freqncia independentemente dos dons concretos recebidos; deste sentimento que oferece toda a nossa personalidade ao outro, como por um dever de gratido porque a recompensa adequada justamente a toda a sua personalidade.

    O contedo concreto da gratido, quer dizer as respostas a que nos move, d lugar a que em cada caso variem seus efeitos recprocos, cuja tenuidade, por maior que seja, no reduz sua importncia na estrutura das nossas relaes. A interioridade dessas relaes comporta uma extraordinria riqueza de matizes nos casos em que um presente recebido exige pela sua tonalidade espiritual, uma correspondncia de classe muito distinta. Assim um d ao outro algo espiritual, valores intelectuais, e o outro demonstra sua gratido

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    devolvendo-lhe valores afetivos; ou pode ser tambm que o doador/donante oferea ao outro a sugesto esttica ou de outro gnero da sua personalidade e o outro, de natureza mais forte, responde infundindo ao primeiro fora de vontade, resoluo, constncia. Mas provavelmente no haja reciprocidade alguma de vez que o dado e o recebido, o cargo e a data se refiram em dualidades homogneas, exatamente iguais. Nestes casos, a disparidade entre o dado e o recebido, irremedivel em todas as relaes humanas alcana seu grau superlativo; e aquele em que este dessemelhana absoluta e consciente, constituem um problema difcil do ponto de vista tanto tico como terico dessa Sociologia que chamaramos interna. Na verdade, mais de uma vez a situao assume um tom de leve inadequao interior quando um oferece ao outro suas riquezas intelectuais sem comprometer apenas seu corao, enquanto o outro no sabe dar em troca nada mais que amor.Todos estes casos tm algo de fatal para o sentimento porque fazem lembrar de certo modo a compra-venda. A diferena entre a troca em geral e a compra-venda est em que neste ltimo conceito se acentua o fato de que a troca atinge duas coisas completamente heterogneas que s se podem juntar e comparar pelo seu valor monetrio. Assim, no tempo em que no existia a moeda metlica, o trabalho manual podia ser pago com vacas ou com cabras; estas eram coisas heterogneas que eram trocadas e comparadas em virtude do seu valor abstrato, econmico. Na moderna economia monetria a heterogeneidade alcanou o pice. Pois como o dinheiro representa o geral quer dizer o valor de troca dos objetos permutveis no tem condies de expressar peculiaridades individuais. Se bem que nos objetos, enquanto negociveis, se desvalorize, desprezando o carter individual com respeito ao geral que todas estas coisas tm em comuns com as coisas vendveis e, sobretudo, com o dinheiro. Algo dessa heterogeneidade essencial existe nos casos acima citados, em que dois homens oferecem um ao outro produtos heterogneos de sua intimidade, nos quais a gratido pela ddiva se expressa por assim dizer numa moeda completamente distinta. Por esta razo a troca adquire algo do carter aprioristicamente inadequado, de uma compra-venda. Compra-se amor dando inteligncia; compra-se o encanto de um homem de cujo trato se quer gozar, dando-lhe em troca a inspirao e a fora de vontade que este homem deseja sentir sobre sua pessoa ou quer que se lhas infunda.

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    No obstante, esse sentimento de inadequao ou de demrito s se apresenta quando as ofertas recprocas atuam como objetos soltos, intercambiveis, quando a gratido mtua diz respeito unicamente ao benefcio recebido, ao contedo permutado. Mas o homem, especialmente nas relaes aqui estudadas, no o comerciante de si mesmo. Suas qualidades, foras e funes que dele emanam, no recaem sobre ele como mercadorias sobre um mostrurio. Ao contrrio, muito importante compreender e sentir plenamente que o homem, ainda que s d coisas soltas, mesmo que s oferea um aspecto da sua personalidade, pode estar ntegro neste aspecto e entregar toda a sua personalidade na forma dessa energia isolada, desse atributo nico, como diria Spinoza. Aquela inadequao s se apresenta quando a diferenciao, dentro do mtuo comrcio, est to desenvolvida que o que um d ao outro j poder ter-se desligado da totalidade da pessoa. Mas se no for assim, engendra-se com uma pureza assombrosa, uma combinao em que a gratido igualmente uma reao com respeito ao benefcio e ao benfeitor. Na prestao restitutiva, aparentemente objetiva, que s responde a um obsquio e s consiste em outro, pode acontecer que graas a essa maravilhosa plasticidade da alma, seja entregue ou recebida a subjetividade integral de um e do outro.

    O caso mais representativo se apresenta quando a disposio ntima e total da alma, imbuda de gratido para com o outro, no consiste simplesmente em que, por assim dizer, se propaga alma inteira a reao de gratido (que est circunscrita a limites precisos), mas que consiste numa atitude tal, que todos os bens e favores que recebermos do outro nos aparecem como simples causas ocasionais em que se realiza uma relao pessoal j predeterminada na constituio ntima da alma. Neste caso, o que chamamos gratido e que tem sido aplicado a essa disposio de nimo, estendendo ao todo a denominao vlida para uma de suas manifestaes; neste caso, digo, a gratido penetra muito mais fundo que a forma comum do obrigado que damos por um objeto. Podemos dizer que a gratido, nestas zonas profundas no consiste em corresponder ao obsquio, a no ser na conscincia de que no se o pode corresponder; consiste na conscincia de que h algo aqui que se soma alma do agraciado como num estado permanente, diante do outro, algo que leva

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    conscincia o vislumbre de um vnculo infinito, impossvel de esgotar ou realizar perfeitamente em nenhuma manifestao ou ao finita.

    Este fenmeno se relaciona com outra incomensurabilidade profunda e essencial s relaes compreendidas sob a categoria de gratido. Como recebemos um favor, quando a outra pessoa comeou nos fazendo um favor, nunca poderemos recompens-la com um obsquio subseqente ou com um favor restitutivo nem que este obsquio ou favor sejam, de direito e de fato, superiores ao primeiro. E a razo que no primeiro favor existe uma espontaneidade que j no existir na resposta. Pois a esta estamos eticamente obrigados; nela atua a coero, que sem ser social nem jurdica, moral, e no deixa de s-lo por isso. A primeira demonstrao que brota plena, espontnea da alma, possui uma liberdade que o dever no tem, mesmo o dever da gratido. Este carter do dever j havia sido decretado por Kant como num golpe de estado ao afirmar que o cumprimento do dever e a liberdade so idnticos. Mas Kant confundiu o lado negativo com o lado positivo da liberdade. Somos livres em aparncia, para cumprir ou no cumprir os deveres que sentimos, idealmente, sobre ns. Mas na realidade s somos plenamente livres quando no os cumprimos. O cumprimento do dever resulta de um imperativo moral, de uma coero que equivale, internamente coero jurdica da sociedade. A plena liberdade s est no lado do omitir, no no do fazer a que sou impelido precisamente por ser meu dever do mesmo modo que sou impelido a corresponder a um presente por t-lo recebido.S quando nos adiantamos, somos livres. E esta a razo pela qual no primeiro oferecimento, que no provm de gratido alguma, existe uma beleza, uma espontaneidade, uma ecloso e entrega ao outro, que parte do virgin soil da alma, e que no pode ser compensada por nenhuma entrega completa, mesmo que objetivamente esta seja de valor maior. Sempre fica um resto que se expressa no sentimento aparentemente injustificado, se nos ativermos ao valor concreto da demonstrao de que no podemos corresponder a um presente; porque nele palpita uma liberdade que a nossa correspondncia no pode possuir, precisamente por ser correspondncia. Talvez por isso muita gente no goste de receber presentes nem de precisar de hospitalidade. Se o benefcio e a gratido girassem unicamente em torno do objeto dado, essa repugnncia seria incompreensvel porque caberia simplesmente compensar o presente e cancelar

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    por completo a obrigao interior. Mas talvez essas pessoas obedeam ao instinto de que a resposta no possa conter esse fator decisivo, a liberdade do dom primeiro e, em conseqncia, ao aceit-lo se expem a contrair uma obrigao incancelvel. O fato dessas pessoas freqentemente possurem forte af de independncia e individualidade, indica que a situao de gratido comporta certa matriz de vnculo indestrutvel, de certo character indelebilis (carter indelvel. N.T.) moral. Uma vez aceita uma prestao, uma oferenda, um benefcio, se estabelece uma relao ntima que nunca se extingue por completo, porque a gratido talvez seja o nico estado sentimental que pode ser moralmente exigido e realizado em todas as circunstncias.

    Quando nossa realidade ntima por si mesma ou em resposta a algo exterior nos impede de continuar amando, continuar venerando, continuar estimando esttica, tica ou intelectualmente ainda podemos continuar a agradecer a quem tenha um dia merecido a nossa gratido. A alma se adapta com a maior flexibilidade a esta exigncia a ponto de que se no se pronuncie uma sentena mais radical a respeito de nenhum outro defeito do sentimento que com respeito ingratido. Nem sequer a fidelidade interior merece igual rigor. H relaes que por assim dizer explodem com um determinado caudal de sentimentos e cuja natureza implica irremediavelmente que o caudal se esgote pouco a pouco, de maneira que seu fim no supe nenhuma verdadeira infidelidade. S que, em suas fases iniciais estas relaes no se distinguem daquelas que para seguir a metfora vivem das rendas, e nas quais por muito que seja o apaixonamento e a prodigalidade, o capital permanece intacto. Um dos erros mais freqentes nos homens considerar como renda o que na realidade capital e, portanto, orquestrar um vnculo de modo que sua ruptura se converta em infidelidade. Mas no se trata de um defeito ou descumprimento que provenha da liberdade da alma, e nada mais que a evoluo lgica de uma existncia que foi calculada a partir de dados equivocados. A infidelidade irremedivel nos casos em que uma transformao real do indivduo, e no simplesmente o fato de descobrir uma iluso da conscincia, transforma os pressupostos sobre que se assentava a relao. possvel que a maior tragdia das nossas relaes nasa da mistura impossvel de racionalizar, constantemente oscilante de elementos estveis e variveis em nossa natureza. Quando tivermos ingressado numa relao com a totalidade da nossa

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    essncia, talvez persistam e se estabilizem muitos de nossos haces, a maior parte voltados para fora e outros puramente interiores, na mesma inclinao e estado; outros no entanto se desenvolvem voltados para interesses, finalidades, convenincias completamente novos, que terminam por atirar o nosso ser na sua totalidade, por outras direes. Assumem outros encaminhamentos.

    Ento nos distanciamos daquelas relaes nos referimos aqui apenas interioridade, no ao cumprimento exterior do dever com uma espcie de infidelidade que no inteiramente inocente por persistirem ainda muitos ns que deveriam estar desatados mas tambm no totalmente culpvel porque j no somos a mesma pessoa que entrou na relao; quer dizer, desapareceu o sujeito a quem se poderia imputar a infidelidade. Por outro lado, quando se extingue a gratido, no porque a nossa sensibilidade se sinta exonerada da sua essncia mais ntima. O sentimento de gratido parece alojar-se num ponto do nosso interior que no pode mudar, e ao qual exigimos persistncia com mais direito ainda do que a sentimentos mais apaixonados e inclusive mais profundos. Esta imortalidade peculiar gratido, que ainda quando se corresponda com uma contraprestao igual ou maior, no obstante deixa sempre um saldo devedor inclusive nas pessoas que intervm na relao; isso faz com que a gratido nos aparea como um dos laos to slidos como sutis que existem entre os homens. Em toda relao duradoura se oferecem mil ocasies de gratido, e mesmo as mais fugazes no deixam de contribuir de algum modo a la mutua trabazn. Somam-se a isso nos casos melhores (com razo se diz estar obrigado ao outro pelo agradecimento) que no se pode resgatar por qualquer prestao concreta que seja. A gratido um dos fios microscpicos, mas infinitamente tenazes que mantm unidos os elementos da sociedade e finalmente, os junta a todos numa vida estvel e comum.