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    A flosofa da Histria de R. G. Collingwood:

    duas contribuies1*

    CRISIANO ALENCAR ARRAIS1

    Universidade Federal de Gois

    Resumo: Neste artigo procuro analisar a losoa da histria de R. G. Collingwood.Para tanto, divide-se em trs momentos. Primeiro, um balano geral das idias desteautor e de suas principais caractersticas enquanto lsoo. Depois, examino o con-troverso conceito de re-enactment luz de seus principais intrpretes e dos manus-critos publicados nos ltimos anos. Por ltimo, a ttulo de concluso, indico duaspossveis contribuies da losoa da histria collingwoodiana para o pensamento

    histrico atual: seu conceito de imaginao histrica - cuja tarea tornar o passadoum objeto acessvel ao pensamento por meio de um modelo construtivo de inter-polao entre as armaes eitas pelas ontes com outras, deduzidas das mesmas - ede autonomia do historiador o resultado da crtica ao conceito de documento e dehistoriograa, transormadas em provas e no em autoridades. Este dois conceitosesto, segundo julgo, na raiz da revoluo copernicana que eleva a histria ao statusde disciplina cientca.Palavras-chave: Robin. G. Collingwood; Filosoia da histria; ImaginaoHistrica.

    Abstract: In this paper I analyze the philosophy o history o R. G. Collingwood.o this, divided it into three stages. First, a general explanation about the ideas oauthor and its main characteristics as a philosopher. Ten, I examine the controver-sial concept or re-enactment in light o his interpreters and manuscripts publishedin recent years. Finally, in conclusion, I indicate two possible contributions to thecollingwoodian philosophy o history to the current historical thought: his concepto historical imagination - whose job is to make the past accessible to an object thou-

    ght through a constructive model interpolation between the statements made by* Artigo submetido avaliao em evereiro de 2010 e aprovado para publicaoem maro de 2010.

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    other sources, less the same - and autonomy o the historian - the result o criticism othe concept document and historiography, transormed into evidence, not authority.Te two concepts are, I believe, the root o the Copernican revolution which bringsthe history to the statuso a scientic discipline.Key-words: Robin. G. Collingwood; Philosophy o History; HistoricalImagination.

    Inicio este artigo com uma constatao: a obra e as contribuies de R. G.

    Collingwood para as investigaes no campo da eoria da Histria sopouco conhecidas no Brasil. O que pode ser comprovado pela discreta e

    parcimoniosa recepo que a Filosoa da Histria collingwoodiana assimcomo boa parte da historiograa britnica, exceo do pensamento marxis-ta possui em nosso pas. Geralmente, o conhecimento da obra deste proes-sor de Oxord reduz-se ao seu trabalho pstumo e ragmentrio, Te idea ohistory(1946), que oi revisado e editado por um discpulo, alguns anos apssua morte. E mesmo assim, sua ateno volta-se mais para o desenvolvimentoda idia de histria, desde a historiograa clssica at o sculo XIX, do quenecessariamente para sua proposta losca.2

    Parte desse desconhecimento, entretanto, deve-se ao prprio tempera-mento pouco comedido de Collingwood. Sua reputao era a de ser um lobosolitrio entre os lsoos de Oxord, principalmente no perodo imediata-mente anterior deagrao da Segunda Guerra Mundial (Collingwood,2002). Seus ataques diretos poltica de conciliao adotada pelo Governo

    britnico rente ao ortalecimento da Alemanha nazista e o agravamento deseu estado de sade ao nal da dcada de 1930 apenas reoraram sua predis-posio ao isolamento intelectual.

    Esse relativo desconhecimento no Brasil, entretanto, no encontraeco no panorama intelectual de lngua inglesa. Nas dcadas seguintes suamorte, a obra de Collingwood oi constantemente visitada por autores comoP. Gardiner, (1961), L. Mink (1969), A. Donagan (1962) e W. G. Walsh

    (1978). W. B. Gallie (1968), por exemplo, posiciona este autor entre as maio-res contribuies para a losoa crtica da histria, at o seu tempo, ao ladode Cournot, Dilthey e Rickert. W. Dray (1994, p. 82) arma que

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    qualquer pessoa amiliarizada com os rumos que a -losoa analtica da histria tomou nas ltimas quatrodcadas ter uma surpresa com o alcance da obra nopublicada de Collingwood que (...) antecipa no somen-te os interesses mas em alguns casos at mesmo a lingua-gem daqueles autores que trabalharam com essa tradio(...). Ainda mais impressionante a intensidade com queCollingwood antecipa aqui os argumentos e modos deanlise de muitos daqueles que tomaram parte na assim

    chamada controversia sobre a coverin law model, nointerior do debate sobre a natureza da explicao histri-ca (como por exemplo, Hempel, Donagan, Mink) (Dray,1994, p. 82).

    Enquanto Ankersmit (2007), em seu poscio Analitycal philosophy ohistory, reconhece na inuncia do intencionalismo collingwoodiano uma

    das mais importantes idias que dominaram a Filosoa da Histria anglo-saxentre as dcadas de 1950 e 1970 uma possvel justicativa para a parcimo-niosa recepo da obra de Arthur Danto no cenrio acadmico. Alm disso,nos ltimos anos, com a descoberta de uma grande quantidade de manuscri-tos no publicados, que caracterizariam o projeto losco collingwoodianode constituio de uma mapa do conhecimento humano, o interesse por suaobra parece ter ganho um novo lego.3

    Morte prematura, obra ragmentada, em parte desconhecida, aleato-riamente editada e no revisada: estes aspectos azem com que a Filosoada Histria de Collingwood deva ser tratada com algumas reservas. esseum aspecto que chama a ateno, por exemplo, em Te idea o history. At adata de sua morte, Collingwood havia conseguido revisar apenas a primeiraparte da obra, reerente Introduo e Primeira Parte (Historiograa Gre-co-Romana). Quanto ao restante do livro em que pese a impossibilidadede reviso por parte do autor, cuja sade ragilizara-se aps ter contrado

    varicela , apesar de repleto de insightsimportantes, encontra srias dicul-dades interpretativas, como na anlise de autores como Herder (uma espciede cadinho intelectual das teorias raciais que dominaram a primeira metade

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    do sculo XX), Marx (uma losoa que sujeitou a histria ao domnio das

    Cincias da Natureza) e Dilthey (proximidade com os princpios do natu-ralismo, reduzindo a vida espiritual aos seus aspectos siolgicos). De outraordem so as questes que surgem com a leitura das conerncias publicadasneste livro, sob a alcunha de Epilegmenos. Apesar de conter alguns dos maisimportantes artigos de Collingwood, sua edio acabou por reunir textos deperodos diversos e pouco produtivos em termos de apresentao geral dasidias do autor. Alm disso, o vocabulrio utilizado por Collingwood, apesarde sosticado, gera conuses e mal-entendidos. Apenas com um olhar so-

    bremaneira compreensivo, suas categorias podem ser retomadas em dias at-uais, principalmente em virtude do renamento do instrumental terico noque se reere a conceitos como interpretao, explicao, narrativa histrica ecincia histrica. Por ltimo, h que se lembrar de seus estudos arqueolgi-cos, importantes tanto para sua ormao como historiador quanto para oavano do conhecimento histrico de sua poca. Neste caso, apesar de tersido considerado, na dcada de 1930, como o maior especialista em Arqueo-

    logia e Roma-britnica, atualmente, seus estudos possuem pouca validadeemprica.

    Apesar de transitar por uma srie de temas, tais como Filosoa, re-ligio, Antropologia, cosmologia e esttica, o principal campo de atuao deCollingwood era a Arqueologia da Gr-Bretanha no perodo de ocupaoromana por meio do qual era mais conhecido em sua poca e Filosoa daHistria. E oi justamente procurando associar esses dois campos de interesse

    que Collingwood desenvolveu o mtodo de trabalho que, posteriormente,daria origem sua idia de re-constituio da experincia passada, aplicada,naquele momento, s discusses loscas tratadas em Speculum Mentis:

    Achei essa no apenas uma deliciosa tarea, mas ummagnco exerccio, para acompanhar os trabalhos doslsoos contemporneos cuja viso diere muito da mi-nha prpria, (...) para reconstruir os seus problemas na

    minha mente, e para estudar, muitas vezes com anima-da admirao, a maneira com que eles tinham tentadoresolv-los. (...) Esta orma de tratar o pensamento deoutras pessoas, embora ormalmente dedutvel de minha

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    lgica de pergunta e resposta, tinha se tornado um h-bito muito antes de eu comear a trabalhar com ela.Pensar dessa maneira sobre os lsoos e no por mimmesmo, como eu havia intudo, pensar sobre eleshistoricamente (Collingwood, 2002, p. 57-58).

    importante notar, nessa precedncia experimental do mtodo queseria desenvolvido anos mais tarde, dois elementos. Primeiro, sua associaocom a concepo de que a Filosoa uma reexo em segundo nvel, ou seja,

    um pensamento sobre o prprio pensamento, como mais tarde conrmariasua denio sobre o signicado do termo Filosoa da Histria (Colling-wood, 2005, p. 3). Em segundo lugar, em oposio s generalizaes poucoelizes a que oi submetido esse lsoo, reunidas sob a alcunha de idealista,ao notar a liao baconiana deste mtodo, na medida em que o autorindica a necessidade da realizao, por parte do historiador, de uma tareasemelhante do cientista, qual seja, decidir o que pretende saber, ormulando

    essa pretenso na orma de uma pergunta e descobrir os meios de obrigar anatureza a responder s mesmas (Collingwood, 2005, p. 269). Donagan(1962) v nessa associao uma tentativa rustrada de aproximao dos m-todos da Cincias da Natureza com os mtodos da Histria. Opinio esta queaproximaria Collingwood das concepes realistas com as quais ertou emseus anos de ormao (em especial, J. C. Wilson e G. E. Moore). Essa umaarmao um tanto exagerada, mas que possui sua raison d`tre, na medidaem que, como arma Dussen (1981), a partir do nal dos anos 1920 obser-va-se uma mudana na concepo collingwoodiana acerca do signicado doconhecimento histrico, ruto de suas experincias no campo da arqueologiae de sua leitura crtica da Escola de Green e em especial, F. H. Bradley. Almdisso, o prprio mtodo apresentado oi construdo, segundo suas observa-es, em decorrncia da sua insatisao com o carter intuicionista e poucometdico da tendncia realista de sua poca (Collingwood, 2002, p. 25).Dessa experincia que o autor derivar seu projeto de garantir a autonomia

    da Histria rente aos outros campos do conhecimento, como exporei maisadiante. tambm a partir desse ltro que o autor realizar sua leitura datradio idealista continental e da tradio neo-kantiana alem, em especial

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    da obra de Dilthey, que marcar sua proposta de re-constituio da experin-

    cia passada, que passo a analisar a seguir.

    Re-enactment: re-constituio, re-construo, re-pensar o pensamento

    O ponto mais delicado da Filosoa da Histria collingwoodiana suaarmao de que toda a histria histria do pensamento. Ele escreve: Histriano signica saber que eventos se seguiram a qu. Signica transportar-se parao interior da mente das outras pessoas, observando, nessa situao, por meio

    dos seus olhos, e pensar por si mesmo se a orma que a mesma oi abordadaera o caminho certo (Collingwood, 2002, p. 57-58). A citao anterior ape-nas uma das ormas por meio das quais Collingwood enuncia seu polmicoconceito, apontando, porm, dois elementos importantes: a concepo deHistria como algo que vai alm da mera reunio de eventos e a necessidadede uma perspectiva crtica.

    Mesmo em outras passagens a ambiguidade persiste. Por vezes o au-

    tor reere-se reatualizao e em outras reconstituio ou reconstruo. alconuso reora a impreciso de utilizao desse termo e, consequentemente,de interpretao na obra collingwoodiana. Foi o que ocorreu nas dcadas de1950 e 1960, na medida em que oi associado a uma espcie de psicologismotranscendente. Esse tipo de interpretao, entretanto, derivada de um redu-cionismo literal do arcabouo conceitual utilizado por Collingwood, casoestivessem corretas, negariam qualquer relao com as principais inunciasdo prprio autor, tais como Vico e Croce, e, ao mesmo tempo, sua clara

    tendncia neo-kantiana, oriunda de sua admirao por Dilthey. Face a isso, preciso, inicialmente se opor e rejeitar essa perspectiva, por meio da con-siderao que o prprio autor az a este respeito:

    Jamais saberemos qual o cheiro das ores do jardim deEpicuro, ou como Nietzsche sentia o vento em seu cabe-lo, enquanto caminhava pelas montanhas. No podemos

    reviver o triuno de Arquimedes ou a amargura de Mrio,mas as provas do que estes homens pensavam esto emnossas mos, e ao recriar estes pensamentos em nossasprprias mentes por meio da interpretao dessas provas,

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    conseguimos saber que, na medida em que existe conhe-cimento, que os pensamentos que ns criamos eramdeles (Collingwood, 2005, p. 296).

    Em Te principles o historyCollingwood explicitou a diculdade emse trabalhar com o termo pensamento. Num dos trechos deste manuscrito,o autor declara sua opo por derivar sua denio do grego[ato depensar] [coisa pensada]. E completa: histria no signica re-pensar

    o que tinha sido pensado antes, mas pensar por si mesmo como re-pens-lo.O estudante de matemtica um historiador da matemtica na medida emque ele pensa: eu estou aqui pensando o que Pitgoras pensou antes de mim(Collingwood, 1999, p. 223). Procedimento reconstrutivo (ruto de suaascendncia historicista) e aut ocrtico (o primado da razo prtica ilumi-nista kantiana) so, portanto, os dois eixos a partir dos quais o conceito dere-enactmentdeve ser compreendido.

    Ocorre porm, que somente a partir de 1928 tal noo comea a ser

    claramente expressa. tambm neste perodo que a prpria concepo acercada natureza do conhecimento histrico sore substanciais modicaes. As-sim, se por exemplo, em suas Lectures on the Philosophy o historyde 1926 (quena verdade inauguram suas reexes no campo da Filosoa da Histria), a histriaera denida como o estudo dos acontecimentos passados (Donagan, 1962), apartir de 1928, em Outlines o a Philosophy o history, o objeto dos estudoshistricos agora restringido apenas para o campo dos assuntos humanos.

    Essa mesma denio ser seguida ao longo de toda a dcada de 1930, edesenvolvida em alguns de seus principais textos, marcando um redireciona-mento undamental nas reexes de Collingwood e ornecendo a base a par-tir da qual sua noo de re-enactementpoder desenvolver-se. 4 Isso porque,ao invs de procurar aproximar a histria enquanto disciplina cientca docampo das cincias da natureza, o autor az o caminho inverso, por meio daconcluso de que:

    a cincia natural, como uma orma de pensamento, exis-te e existiu sempre em um contexto histrico e dependepara sua existncia do pensamento histrico. A partir dis-

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    so, me aventuro a inerir que ningum poder compreen-der a cincia natural a no que compreenda a Histria:e que ningum poder responder pergunta sobre oque a natureza a no ser que saiba o que a histria(Collingwood, 2006, p. 243).

    O conhecimento da natureza seria, neste sentido, conorme concluiem Te idea o nature, dependente de outra orma de pensamento, qual seja,a Histria. Essa mesma associao reorada nas consideraes que tece so-

    bre a natureza dos eventos estudados pelo historiador, tomando agora comoreerncia a idia de que os mesmos caracterizam-se por possuir uma iden-tidade interna e externa. Ou seja, ao contrrio das Cincias da Natureza, asaes com as quais o historiador se ocupa no so meros eventos, mas pensa-mentos expressos em atos, sem que isso signique a reduo de um ao outro.Pensamento em ao, segundo Walsh (1978) e no a mera especulaoabstrata. O pensamento seria, assim, algo que est para alm de um uxocontnuo de conscincia ou uma sucesso de estados imediatos que possuem

    uma limitao temporal. Nesse sentido, dizer que um pensamento existe ape-nas no interior de seu contexto reduzir a existncia de um pensamento suaexperincia imediata. O pensamento uma atividade que est ora dessa cor-rente imediata da conscincia, que capaz de apreender sua estrutura geral egarantir aos indivduos a apreenso das experincias humanas individuais ecoletivas: S se pode conhecer a atividade mental de outra pessoa a partir dasuposio de que essa atividade pode ser reconstituda em sua prpria mente

    (Collingwood, 2005, p. 288). Negar isso signica negar a possibilidade deconhecer qualquer evento, esteja ele ocorrendo ou no no passado, ou seja, admitir que o nico pensamento existente o seu prprio.

    Os trabalhos de Collingwood sobre losoa da arte tambm nosauxiliam a esclarecer um pouco mais essa denio. Em Te principles oart, Collingwood az uma importante distino entre a atividade imagi-nativa do artista e sua maniestao externa.

    A msica, a obra de arte, no uma coleo de rudos,mas sim a melodia na cabea do compositor. Os rudosproduzidos pelos executantes e ouvidos pela audincia

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    no so em absoluto a msica; so apenas meios pelosquais os ouvintes, se ouvirem inteligentemente (...) po-dem reconstruir para si mesmos a melodia imaginriaque existiu na cabea do compositor (apudRidley, 2001,p. 30)

    A proximidade com os undamentos da noo de re-enactement evi-dente na medida em que, conorme a opinio expressa, preciso um esoroimaginativo (neste caso especco, do auditrio) capaz de extrair algo que

    est alm do mero conjunto de rudos. E completa:

    Quando algum l e entende um poema, ele no estsimplesmente entendendo a experesso do poeta de suasprprias emoes, isto , das emoes do poeta; o queo ouvinte esta expressando so suas prprias emoes,pelas palavras do poeta, que assim se tornaram suas pr-prias palavras. Como arma Coleridge, sabemos que umhomem um poeta pelo ato de que ele nos az poetas(apud. Ridley, 2001, p. 53).

    O resultado desse esoro imaginativo a ampliao da capacidadecompreensiva do observador que ultrapassa, assim, a mera apreciao instru-mental: ele re-constri, em sua prpria mente, o processo por meio do qual oartista levou a termo sua obra.

    Uma importante observao eita pelos crticos da obra de Collingwood

    que sua teoria apenas seria vlida para aes que so intencionais ou racio-nalmente planejadas (o ato de re-pensar em sua prpria mente s poderia serexecutado no interior de aes planejadas, e de maneira intencional) umanase conrmada pelos exemplos trabalhados em Te idea o history(o C-digo de eodsio, a geometria euclidiana e a losoa de Plato).Alm disso,segundo Donagan (1962), o individualismo metodolgico collingwoodianorestringe a inteligibilidade dos eventos passados a aes praticadas por indi-

    vduos sobre outros indivduos. Seus exemplos tematizam este tipo de relao.A partir da que Collingwood generaliza suas consideraes sobre a Histriacomo histria do pensamento. Essa espcie de intencionalismo ignora outra

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    classe de eventos histricos que no podem ser considerados apenas como

    um problema de explicao em termos de ao ou pensamento expressopor meio de ao de indivduos sobre indivduos ou grupo de indivduos. bem verdade que em seus manuscritos sobre olclore, Collingwood

    indica a possibilidade de se pensar emoes racionais, como nos casos dossistemas totmicos, em que certas emoes so cultivadas no interior de umsistema de regras e ormas de controle socialmente articuladas (Arnau, 2006).Alm disso, a arte pode tambm ser considerada como um tipo de expressode emoes e mesmo a relao entre racionalidade e sentimento parece conter

    mais elementos que aqueles indicados em Te Idea o History.

    Collingwood ilustra sua posio com o exemplo da cons-truo de uma ortaleza. A ortaleza, por si s, um textopara ser lido, o incio e no o m de uma investigaohistrica. Um ocial em um determinado local e horadecidiu dar incio a construo de uma ortaleza para umdeterminado m. Era apenas um acampamento? Um lu-gar para guardar provises e transporte? Uma ortalezacontra o inimigo? Ou at mesmo uma orma de bloque-ar suprimentos para o inimigo. Seja ele qual or o queo historiador decida qual era seu propsito, ele est rei-vindicando um insightna mente da pessoa que ordenousua construo. Podemos descobrir que um determina-do tipo de perigo oi prevalente nessa rea e que o orteoi concebido para proteger contra ele. Medo do perigo

    percebido necessariamente acompanhado da escolha ra-cional para proteo contra ela. Este um exemplo doque Collingwood chama de emoo essencial. Ela estnecessariamente vinculada ao pensamento da pessoa queexecuta uma ao (Boucher, 1997, p. 325).

    Exemplo similar ornecido em An autobiography ao analisar aconstruo de muralhas romanas (Collingwood, 2002, p. 128-132). Da

    porque a relao entre emoo e pensamento contm muita dubiedade naobra deste autor. Ele resume esta concepo na continuidade de uma de suasamosas armaes:

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    toda a histria a histria do pensamento. Isto incluia histria de emoes, desde que essas emoes estejamessencialmente relacionadas a pensamentos e questese no de quaisquer emoes que possam ocorrer paraacompanh-los, tampouco no que diz respeito ao assun-to de outros pensamentos que podem acompanh-los(Collingwood, 1999, p. 61).

    Em que pese estas consideraes, possveis apenas recentemente, graas

    descobertas de manuscritos e cadernos de anotaes, a alta de sistematici-dade dessas reexes impede uma leitura clara deste tema. Outro problemase impe ao questionar como executar o tipo de exerccio re-construtivo aquialudido. Esta , na verdade, a pergunta que a maioria dos crticos se concen-tra. Para Dray (1999), por exemplo, tal noo s pode ser completamente in-terpretada na medida em que a relacionamos com a leitura que Collingwoodaz da noo de compreenso emptica (verstehen). Walsh (1978) tambmpercebeu essa possibilidade de leitura, apontando Dilthey como ponto de

    inexo da leitura collingwoodiana da tradio hermenutica. Inclusive coma utilizao do termo pensamento, mesmo que o prprio Dilthey tenhapreerido o termo vivncia (erlebnis) para descrever a idia da experinciahumana em seu sentido mais amplo. Esta preerncia indica, segundo Walsh,uma nase nas operaes intelectuais executadas pelos indivduos. O que oleva a considerar que, para a teoria collingwoodiana, somente os pensamen-tos seriam capazes de serem re-constitudos.5

    Essa leitura e apropriao, amplamente conrmada no somente pelostextos de Collingwood, mas tambm por pensadores vinculados prpriatradio, reora a tese de que o princpio histrico da compreenso [emCollingwood] de que o uxo da realidade um produto inteligvel e noredutvel a entidades xas como o pensamento grego ou a leis xas, como nascincias modernas (Dussen, apudColingwood, 2005, p. xxxvi). Pensamentoe compreenso podem ento ser reunidos no interior de um mesmo procedi-mento, undamentalmente ilativo. Nesse sentido, re-constituir o pensamentodos indivduos do passado equivale a empreender uma descoberta pelo sig-nicado da ao. E isso s possvel por meio da visualizao das alternati-vas possveis e das razes que levaram o agente a agir da orma como agiu,

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    re-constituindo a experincia do mesmo. As condies para que esse tipo de

    histria seja possvel so duas: primeiro, que o pensamento seja expresso,seja naquilo que chamamos de linguagem ou em uma das muitas ormas deatividade expressiva. Em segundo lugar, o historiador seja capaz de pensarmais uma vez para si prprio o pensamento cuja expresso ele est a tentarinterpretar (Collingwood, 2002, p. 111).

    O instrumento utilizado para essa aproximao pode ser encontrado,segundo julgo, na incorporao da noo de pensamento mediado6 no hori-zonte conceitual collingwoodiano, identicando por tal, o procedimento de

    leitura, compreenso, acompanhamento das idias dos indivduos, expressasnas ontes e de reargumentao (Collingwood, 1981, p. 363-364). Em Teprinciples o historyCollingwood trabalhava com perspectiva semelhante aoconsiderar que o problema mais importante relacionado a uma onte no saber se ela verdadeira ou alsa, mas descobrir o que ela signica. Almdisso, em A Histria como re-constituio da experincia passada, desen-volver plenamente este conceito no intuito de responder a uma pergunta

    de ordem gnosiolgica: Como, ou em que condies, pode o historiadorconhecer o passado?". Aps rearmar seu posicionamento clssico "o histo-riador tem de re-constituir o passado em sua prpria mente" o autor identi-ca dois atos mentais que garantem a validade deste procedimento: primeiro,a identicao do ato de pensamento prprio do historiador, "o meu atode conhecimento este", depois, a identicao do ato de pensamento dooutro, "pela maneira como ala, percebo que o seu ato este". por meio

    deste procedimento que o ato de pensamento re-constitudo pelo historiador,pertencente a outra pessoa, passa a ser do historiador, "na medida em que ore-constitumos" (Colligwood, 1981, p. 351).

    Encontra-se aqui, nalmente, uma ltima e decisiva caracterstica doconceito collingwoodiano de re-constituio, que retoma a noo de pensa-mento mediado: a capacidade de reviver o pensamento dos indivduos dopassado no implica na perda de sua identidade e, ao mesmo tempo, nopode ser repetido no vcuo. Ele precisa ocorrer "sempre, num dado contexto,

    devendo ser o novo contexto precisamente to adequado como o antigo".Neste processo de re-constituio necessrio que o historiador esteja pre-parado com uma experincia sucientemente parecida com a da pessoa, "de

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    modo a tornar esses pensamentos orgnicos em relao reerida experin-

    cia" (Collingwood, 1981, p. 363) e, ao mesmo tempo, que pense em outrascoisas capazes de auxiliar no julgamento que pretende re-constituir. Essa un-o mediadora do pensamento constitui, ao meu ver, a essncia da concepocollingwoodiana de re-enactment, na medida em que torna inteligvel, para opresente, os pensamentos dos indivduos do passado. E completa:

    A nica maneira de saber se um argumento vlido, expe-rimentando-o, testando-o, para ver se ele realmente pode

    ser pensado. A insistncia em que re-constituio deve sercrtica, assim, aponta para uma dimenso quasi-normativada compreenso histrica. Compreender correctamenteuma ao de um modo propriamente histrico emcerto sentido, perceb-lo como tendo sido to adaptados circunstncias como o agente o viu (Collingwood,1999, p. 55-56).

    Isso porque, conorme Collingwood lembra, reetir historicamente ex-ige uma justicao acerca das escolhas que o historiador az em relao aosatos que estuda, expondo tanto para si prprio como para os outros, os un-damentos em que se baseou. Exige, portanto, um pensamento crtico, capaze disposto a reconstituir, para si os pensamentos dos outros para vericar seoram pensados corretamente (Collingwood, 1981, p. 310).

    Duas contribuies

    Dadas as ponderaes at agora indicadas, a ttulo de concluso, gos-taria de indicar duas contribuies da eoria da Histria de R. G. Collin-gwood para o pensamento histrico contemporneo. A primeira delas dizrespeito ao conceito de imaginao histrica.

    O conceito de imaginao histrica est associado ao que Collingwoodintitula critrio da verdade histrica, ou seja a idia de que a histria, sendoum tipo de conhecimento dedutivo daquilo que transitrio, no pode ex-trair certezas das ontes porque a veracidade das armaes da prpria onte

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    que est em questo: [...] para o historiador no pode haver nunca on-

    tes autorizadas, porque estas proerem um veredicto que s ele pode lanar(Collingwood, 1981, p. 294). Por isso o historiador deve transcender aquiloque as ontes lhe dizem atravs de um modo construtivo (Belvedresi, 1997),procedendo a uma interpolao entre as armaes eitas pelas ontes comoutras, deduzidas das mesmas. Essa interpolao apriorstica, ou seja, umaconstruo a partir daquilo que exigido pela evidncia. Ela se constitui pormeio de um processo imaginativo, utilizando para sua re-construo a relaoentre dois processos. A elaborao da conexo interna entre os dois eventos (a

    posio de um navio, em alto-mar em E1t1 e E2t2, por exemplo) caracterizaa imaginao a priori, da qual a imaginao histrica constitui um de seusdesdobramentos especializados. ela tambm que produz a continuidadeprpria da narrativa histrica. E justamente por isso se caracteriza por terum papel que no propriamente ornamental, mas estrutural [...] ela que,atuando no caprichosamente, como antasia, mas sob a orma apriorstica,executa todo o trabalho de construo histrica (Collingwood, 1981, p. 298).

    O conceito de imaginao histrica tambm chamou a ateno de LouisMink (1969), que percebeu no mesmo, caso aceito na prtica historiadora, alegitimao das perspectivas de tipo subjetivistas e idiossincrticas, na medidaem que, segundo seu juzo, destri a distino entre Histria e co. Essa as-sociao tem certo undamento: o prprio Collingwood indica o paralelismocom a obra do romancista no momento da narrao dos eventos, da descriode situaes e da anlise de personagens, alm de sustentar a importnciada imaginao livre, utilizada pelo artista, como uma das ormas assumidaspela imaginao a priori. A divergncia entre estes dois tipos de narrativa,porm, divisado na medida em que o quadro que o historiador constriobjetiva a veracidade, associada a uma descrio que, ao mesmo tempo: 1.esteja situada temporal e espacialmente; 2. mantenha uma coerncia internae com o mundo histrico que est descrevendo; 3. estabelea uma relaocom as provas (Collingwood, 1981, p. 303). Alm disso, ao contrrio deum romancista, a narrativa produzida sob o controle da imaginao histrica

    no age partindo de uma simples questo de preerncia particular em relaos ontes utilizadas, mas de uma preerncia relacional, buscando estabelecera coerncia entre o mundo histrico constitudo na mente do historiador e

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    os atos pressupostos, oriundos do trabalho de crtica realizada pela imagi-

    nao histrica. Muito embora a resposta a essa possvel aproximao entreos dois tipos de narrativa seja plenamente sustentvel, na medida em que oconceito de imaginao histrica aplicado em sua plenitude, duas correesdevem ser lembradas. Por um lado, no se trata necessariamente de coernciainterna (visto que a coerncia interna, no um dado, mas uma atividadere-construtiva), mas de implicao mtua entre os ambientes que descreve.Alm disso, a interpretao deve liberar este mundo histrico das conusesque resultam em considera-lo como uma quase-totalidade substancial, paraconcebe-la como aspectos de um recorte espao-temporal, na medida em queeste mundo histrico concebido como uma idia sem contedo descritivo,conorme reconheceu Gallie (1968, p. 58-59).7

    J Boucher reconheceu no conceito de imaginao histrica umaproximidade com a losoa hermenutica de Gadamer, na medida em quereconhece que o problema postulado pelos dois atores (o que ocorre quandointerrogamos um texto?) possui respostas similar:

    A resposta de Gadamer que o nosso horizonte se undecom o do texto. Isso no uma questo de mtodo, massim uma condio ontolgica. Pode-se ir adiante e ar-mar que o modo como esses horizontes se undem podeser regulado atravs da adoo de um mtodo. o mesmocaso, penso eu, de Collingwood. Quando nos engajamos

    na interpretao histrica, quer queiramos ou no, nossaimaginao a priorientra em jogo. Essa uma condioontolgica da compreenso. Mas a orma como ela entraem jogo uma questo de mtodo histrico, por issoo historiador deve justicar a sua leitura da prova, emoutras palavras, o mtodo histrico impe imaginaoa priorido historiador condies para os quais a imagi-nao a prioride um romancista histrico no domina. A

    doutrina de Collingwood no , portanto, radicalmentesubjetivista, um reconhecimento da responsabilidadepessoal na interpretao (Boucher, 1997, p. 316).

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    Certamente, o prprio Gadamer reconhece alguma proximidade en-

    tre seu pensamento e o mtodo collingwoodiano de perguntas e respostas(Gadamer, 2002, p. 459-462), muito embora perceba as limitaes de suainterpretao ao criticar as categorias utilizadas pelo autor de Te idea o His-tory para se aproximar do procedimento hermenutico. Em uno dessaprimazia do historiador rente s provas, Belvedresi (1997) utiliza o termoconstrucionismo histrico para denir o mtodo collingwoodiano. Issoporque, segundo aquela autora, para Collingwood, no existem eventoshistricos independentemente da tarea construtiva do historiador. Neste

    caso, a tese construtiva salienta o valor das provas e de sua interpretao, quesustentam a veracidade de uma narrativa histrica, no porque se adequea um ato (ou seja, o descreva corretamente), mas porque 1. ornece umainterpretao coerente com as provas disponveis, 2. toma em consideraoa prova considerada relevante pela comunidade cientca dos historiadores(Belvedresi, 1997, p. 198). Assim, as provas histricas apenas se tornam oque so se o pensamento histrico assim o considerar, se ela or criada, nodescoberta.

    Conclui-se da que um tipo de histria construtiva s seria possvel namedida em que, ao longo de todo o processo de produo do conhecimento(no ato de seleo, interpolao e critica), a imaginao histrica osse ativada.Nesse sentido, tanto os vestgios do passado quanto a historiograa deveriamassumir um mesmo status: de prova. Por prova, Collingwood concebe tudoaquilo que o historiador utiliza em sua reconstituio imaginativa, a partir domomento que lana uma questo sobre o passado. Da porque o problema da

    imaginao histrica s pode ser plenamente executado na medida em quese rearma a idia da Histria como cincia autnoma, e o historiador comoresponsvel por todas as inormaes que sustenta em seu trabalho. que asua teia de construo imaginativa [...] no pode extrair sua validade do actode estar [...] presa a certos actos. [...] Quer aceite quer rejeite, modique oureinterprete aquilo que lhe comunicam as chamadas autoridades, ele que responsvel pelas armaes que [...] az (Collingwood, 2005, p. 244). Essemtodo de inquirio est brilhantemente desenvolvido em um pequeno textode Te idea o history, intitulado Quem matou John Doe, em que comparao trabalho do historiador com o de um detetive que deseja desvendar umcrime, por meio do mtodo de investigao judiciria.

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    A segunda de suas contribuies est diretamente associada ao conceito

    de imaginao histrica, sendo, neste caso, uma conseqncia imediata dautilizao deste conceito em toda a sua plenitude. Ela envolve a temticada responsabilidade pessoal do historiador no ato da interpretao umaspecto apenas esboado na conerncia que leva o ttulo de ImaginaoHistrica, publicada em Te idea o History. Mas nos manuscritos e notasencontradas e publicadas por J. V. Dussen e W. Dray sob o ttulo de Teprinciples o history, este tema retomado na medida em que se coloca aquesto acerca dos princpios que movem a seleo dos eventos a serem

    narrados pelo historiador. al escolha est relacionada possibilidade deiluminao dos mesmos. Nesse sentido, os eventos escolhidos so impor-tantes, no intrinsecamente, mas em relao linha que [o historiador]persegue em seu inqurito (Collingwood, 1999, p. 229).

    Esse tipo de seleo e conduo da pesquisa possui relao com modeloreconstrutivo associado Histria. De um lado, ento, teramos um tipode probabilidade trabalhada nas Cincias da Natureza, ou seja, aquela queimplica na possibilidade de vericar a validade de determinadas premissas,

    ou seja, uma demonstrao de que certa predio a melhor possvel, luzda denio e considerando todas as hipteses possveis acerca da regulari-dade que a seqncia exibe (Putnam, 1975, p. 148). De outro, teramos aprobabilidade histrica, associada ao domnio da tica: Pensar em algo comoprovvel no produzir um julgamento ou armar uma proposio sobre ela,mas assumir uma atitude prtica para com ele uma atitude que consisteessencialmente na inteno de non liquetcomo se osse sim (Collingwood,1999, p. 232).

    A direo dada pela oportunidade que temos de lanar luzsobre o problema que ocupa nossas mentes. Se importantesignica o que importante para ns, como historiadores,porque lana luz sobre nossos problemas, e se seleo signi-ca perseguir certa linha de inqurito, certamente verdadeque o historiador, na medida em que ele bom historiador,seleciona o que importante, isto , persegue uma linha

    de inquirio que ele julga mais provvel para resolver osproblemas que esto em sua mente (Collingwood,1999, p. 230-231).

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    Como ca evidente na citao acima, o modelo reconstrutivo do his-

    toriador obedece a um imperativo necessariamente individual. Ao assumiresse tipo de conduta (necessria para a ormulao de juzos relacionais queorientam a prtica historiadora) o conceito de autonomia ganha relevo. Porautonomia, Collingwood pretende enatizar a condio existencial para a cer-ticao da Histria como disciplina cientca, qual seja, o direito e o deverque o historiador possui de escolher os mtodos prprios para a soluo dosproblemas que levanta no exerccio de sua cincia. Essa perspectiva conr-

    mada em An autobiographyao analisar as descobertas arqueolgicas de suapoca:

    Eu tinha aprendido por experincia prpria que a histriano se az com tesoura e cola, mas est muito mais prxi-ma da noo baconiana de cincia. O historiador tem dedecidir exatamente o que quer saber, e se no houver umaautoridade para dizer-lhe, como de ato nunca existe (um

    ensinamento do tempo), ele tem de encontrar um sitio oualgo que tenha uma resposta escondida na mesma, e obter aresposta, por bem ou por mal. (Collingwood, 2002, p. 81).

    Essa escolha implica tambm numa relao muito particular entre ohistoriador e o material que utiliza para a produo de sua narrativa histricana medida em que o mesmo se torna responsvel por aquilo que ser inserido

    em seu texto. Essa condio expressa desde o ato de seleo dos documentosutilizados por ele:

    nenhum historiador, a no ser os maus, simplesmente re-produz as autoridades sem proceder a uma seleo. ohistoriador que responsvel por aquilo que ser inseridoem sua histria e no as autoridades. A autonomia dohistoriador exemplicada pelo ato de que estas autori-

    dades revelam certas ases em um processo histrico, maspodem no dar importncia ases intermedirias. Ohistoriador deduz a partir da evidncia as lacunas que as

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    autoridades deixam de empregar seus prprios princpiosmetodolgicos e os critrios de relevncia e convenincia.Isto o que Collingwood chamaria de histria constru-tiva, isto , o ato de impor sobre declaraes tomadas deautoridades, outras declaraes que ns emprestamos apartir delas (Boucher, 1997, p. 314).

    Essa condio existencial da histria como disciplina cientca est asso-ciada, tambm, em seu ato de crtica, quando as autoridades (do documento)

    so colocadas em xeque, interrogadas e, em alguns casos, desautorizadas. Parao autor, a histria verdadeiramente cientca transormaria tais autoridades emvestgios, indcios por meio dos quais o historiador questiona, no se eles es-tavam certos ou errados, mas sim o que eles signicavam (Collingwood, 2005,p. 260-275). Sua tarea seria, neste caso, re-construir o passado a partir dasprovas que o mesmo legou ao presente, de orma que o passado re-construdono ser aquilo que realmente aconteceu, mas o resultado do trabalho crtico

    do historiador.Essa ltima condio, enm, implica a verdadeira revoluo coperni-cana ocorrida no conhecimento histrico, com a constituio de um corpusorganizado de conhecimentos cristalizado somente no sculo XIX com osgrandes mestres do ocio que procede de maneira inerencial, do conhe-cido para o desconhecido, conorme vinha ocorrendo com as Cincias daNatureza, desde o sculo XVII. Fato esse indicador de que a distino entreHistria e cincia seria uma questo temporal e no epistemolgica vistoque esta ltima se tornou objeto de reexo losca muito antes da Histriae edicar esse tipo de dualismo alsicar tanto a cincia quanto a histria,mutilando cada uma delas em um elemento essencial para o conhecimento[...] e apresenta-las [a histria ou as cincias da natureza] como ormas ilegti-mas de conhecimento (Collingwood, 1924, p. 451) e de que os princpiosde certicao da histria no seriam apenas externos ela (mtodos, teorias,paradigmas etc.), mas uma criao que trabalha por meio de analogias eilaes sobre os eventos estudados.

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    Notas1 Doutor em Histria pela UFMG. Proessor Adjunto de eoria e Metodologiada Histria da UFG. E-mail: [email protected] A quarta parte de Idea o History, intitulada Epilogmenos, , na verdade, areunio de alguns manuscritos oriundos de conerncias, artigos e textos que, poca da publicao, no poderia constituir, segundo o editor, uma obra se-parada. Da a incoerncias, sobreposies e descontinuidades entre os supostoscaptulos, elaborados em momentos distintos da carreira de Collingwood e comobjetivos dierentes, entre 1935 e 1939.3 Entre os artigos publicados em peridicos, C. por exemplo: Arnau, 2006;Belvedresi, 1997; Boucher, 1997; Kemp, 2003; Roldn, 1991; Dussen, 1997. Oreerido projeto est esboado em Speculum Mentis(1924), ao distinguir cincograndes ormas de experincia: arte, religio, cincia, histria e losoa, todaselas com pretenses de verdade (Durval, 1924). E pode ser pode ser visualizadonos temas tratados em algumas de suas obras, como Outlines o a Philosophyo Art (1925), An Essay on Philosophical Method(1933), Te Principles o Art(1938), An Essay on Metaphysics(1940) e Te Idea o Nature(1945).4

    Na verdade o termo j havia aparecido esporadicamente em outros momentos,como por exemplo em Religion and Philosophy(1916), em Croces Philosophy oHistory(1921) e em Oswald Spengler and the Teory o Historical Cycles(1927),mesmo que ainda no plenamente desenvolvidas. C. Dray, 1999, p. 33.5 Como hiptese a ser investigada, essa preerncia tem suas razes, por um lado,na inuncia que Collingwood recebeu do contexto losco ingls das dcadasde 1920 e 1930, especialmente de Wittgenstein e G. Ryle, e por outro lado,como sabido, de Benedetto Croce.6

    Na verdade, a traduo literal seria pensamento em sua mediao (thougthin its mediation), utilizado por Collingwood para descrever o processo de re-constituio do pensamento de Plato ao escrever o eeteto. C. Collingwood,2005, p. 301.7 Muito embora esboada, a explicao de Collingwood para o conceito de imag-inao histrica em muitos momentos apresenta dissonncias com sua produohistoriogrca, como no caso de sua contribuio Roman Britain and the Eng-lish Settlements, em que o autor interpola causas, caractersticas, episdios con-

    strudos livremente, colocando lado a lado, ato e especulao e extensos vos deimaginao (Bagby, apud. Dray, 1999, 191-192).