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HENRY KISSINGER

I{EVISÃO CIENTír-ICA

HENRIQUE LAGES RIBEIROJOAQUIM COELHO ROSA

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26Vietname: a estrada do desespero;

Kennedy e Johnson

Como terceiro prcsk'crne consecutivo obrigado a enfrentar () problema daIndochinu. John F. Kenncdy herdou uma série de premissas políticas bemcstabelecidas, Tal como os seus antecessores, Kennedy considerava o Vietnameum elo essencial da situação geopolítica geral da América. Tal como Trurnane Eisenhower, acreditava que evitar uma vitória comunista no Vietnarne era uminteresse vital da América. E, tal como os SeUS anrecessores, considerava ogoverno comunista de Hanói sucedâneo do Kremlin. Em suma, concordava comas duas administrações anteriores em que a defesa do Vietname do Sul eraessencial para a estratégia geral de contenção global.

Embora a política de Kennedy para o Vietname fosse, em muitos aspectos,uma continuação da de Eisenhower, havia diferenças importantes. Eisenhowerencarara o conflito como um soldado - como uma guerra entre duas entidadesdistintas, o Vietname do Norte e o Vietname do Sul. Para a equipa de Kennedy,os ataques Vietcong ao Vietname do Sul não constituíam uma guerra tradicional,mas antes um conflito quase civil, caracterizado pelo fenômeno relativamentenovo da guerra de guerrilha. A solução preferida pela equipa de Kennedy eraa de os Estados Unidos conseguirem fazer do Vietname do Sul uma nação- social, política, econômica e militarmente - para que pudesse derrotar asguerrilhas sem pôr em risco vidas americanas.

Ao mesmo tempo, a equipa de Kcnnedy interpretava o aspecto militar doconflito em termos ainda mais apocalípticos do que os seus antcccssores. En-quanto Eiseuhowcr vira <I ameaça militar ao Victnamc pelo prisma da guerraconvencional, a equipa de Kcnnedy pensava - prematuramente, corno mais

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tarde se compreendeu - que já existia um empate nuclear entre os EstadosUnidos e a União Soviética, que, nas palavras do secretário de Estado da DefesaRobert McNamara, tornava irnpensâvel uma guerra generalizada. A administra-ção estava convencida de que, pelo seu desenvolvimento militar, estava afastadaa oportunidade de os comunistas travarem guerras limitadas do tipo da Coreia.por um processo de exclusão veio a considerar a guerra de guerrilha a vaga dofuturo e a resistência a ela o último teste à capacidade da América par.i contero comunismo.

Em 6 de Janeiro de 1961, duas semanas antes da tomada de posse de Kennedy,Kruchtchev classificou as «guerras de libertação nacional» como «sagradas» eprometeu prestar-lhes o apoio soviético. A jovem Nova Fronteira de Kennedyencarou esta promessa como uma declaração de guerra contra a sua esperançade prestar novo fôlego às relações da América com o mundo em desenvolvi-mento. Hoje o discurso de Kruchtchev é largamente entendido como tendo sido,essencialmente, dirigido aos seus espinhos deológicos de Pequim, que o acusa-vam de desvio do leninismo, por ter acabado de adiar pela terceira vez o ultimatode Berlirn, e das reservas frequentemente expressas face à guerra nuclear. Naaltura, porém, Kcnnedy, no seu primeiro discurso sobre o estado da União, em31 de Janeiro de 1961, encarou o discurso de Kruchtchev como prova das «ambi-ções de domínio do mundo» alimentadas pela União Soviética e pela China -«ambições que muito recentemente haviam reafirmado vigorosamerue»',

Em Setembro de 1965, durante a administração Johnson, ocorreria (J mesmomal-entendido em relação" China, quando o manifesto do ministro chinês daDefesa Lin Pino sobre a «guerra popular» falava grandiloquentcmente de «cer-car» as potências industriais mundiais COI11 revoluções em todo o TerceiroMundo". A administração Johnson interpretou esta afirmação C0l110 um aviso deque a China poderia intervir em Hanói, ignorando o texto subjacente de Lin, quesublinhava a necessidade de confiança entre revolucionários. Reforçado pelocomentário de Mao segundo o qual os exércitos chineses não iriam para oestrangeiro, pretendia igualmente sugerir que a China não tinha intenção de seenvolver novamente nas guerras comunistas de libertação. Aparentemente,ambos os lados da guerra da Coreia tinham aprendido a mesma lição; estavamdeterminados a não a repetirem.

As interpretações feitas pelas administrações Kennedy e Johnson das declara-ções comunistas fizeram com que a Indochina deixasse de ser considerada umabatalha entre muitas da guerra fria. Para a Nova l-romeira, a lndochina represen-tava a batalha decisiva, que determinaria se a guerra de guerrilha podia ser detidae a guerra fria vencida, A interpretação que Kennedy fazia do conflito C0l110 urnaconspiração global coordenada levou-o a concluir que o Sueste asiático era o lugarcerto para restaurar a sua credibilidade, depois de ter sido intimidado por Kruch-tchev na cimeira de Viena em Junho de 1961. «Agora temos um problema» disseele a Jarnes Reston, então jornalista principal do New York Times, «que é o detentarmos dar credibilidade ao nosso poder e o Vietnarne parece o lugar cCI10).»

Tal como numa tragédia clássica em que o herói é conduzido, impercepti-velmente e passo a passo, para o seu destino por acontecimentos aparentemente

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laleatórios, a entrada da administração Kennedy no Vietname foi feita por meiode uma crise à qual os seus antecessores tinham sido poupados - o futuro doLaos, Poucos povos mereceram menos o sofrimento que os atingiu do que osdóceis e pacíficos laocianos. Entalados entre as imensas cadeias de montanha,viradas para o Vietnarne e o largo rio Mekong, que marca a fronteira com aTailãndia, os povos do Laos nada pédiarnaos seus belicosos vizinhos, exceptoserem deixados em paz. Porém, este foi um desejo que o Vietname do Nortejamais Ihes concedeu, Depois de Hanói ter iniciado a guerra de guerrilha noVietname do Sul em 1959, as pressões sobre o Laos aumentaram inevitavel-mente. Se Hanói tivesse tentado abastecer as forças da guerrilha pelo sul, atravésde território vietnamita, teria de se infiltrar na chamada zona desmilitarizada, alinha de demarcação que dividia o Vietname e que se estendia por cerca de64 km ao longo do paralelo 17. Esta distância poderia ter s ido encerrada peloexército sul-vietnamíta com o auxílio americano. Ou então os Norte-Vietnarnitasteriam de lançar um ataque de unidades militares organizadas ao longo doparalelo 17, o que quase de certeza provocaria a intervenção americana e,possivelmente, da SEATO - algo que Hanói nunca pareceu disposta a arriscaraté 1972, numa fase avançada da guerra do Vietnarne.

Segundo a fria lógica que caracterizou a estratégia comunista no decurso detoda a guerra, Hanói concluiu que a inflitração no Vietname do Sul através doLaos e do Camboja envolveria menores penalizações internacionais do que umataque frontal ao paralelo 17. Embora a neutralidade do Laos e do Cambojativesse sido garantida pelos acordos de Genebra de 1954 e reafirmada pelotratado da SEATO, Hanói fez um juízo correcto. Com efeito, anexou a estreitafaixa de terra do soberano Laos e estabeleceu bases tanto aí como no Carnbojasem qualquer oposição significativa da comunidade internacional. Na realidade,o que era entendido como opinião mundial estava de acordo com o bizarroraciocínio de Hanói: foram os esforços americanos e sul-vietnarmtas para inter-romperem a vasta rede de infiltração em solo neutral que foram punidos como«expansões» da guerra.

A estreita faixa do Laos proporcionou aos Norte- Vietnamitas vias de acessoatravés de uma cobertura de selva com cerca de 1100 km ao longo de toda afronteira do Vietname do Sul com o Laos e o Camboja. Em 1959 mais de 6000soldados norte-vietnarnitas movimentaram-se para o Laos com a ostensiva mis-são de apoiarem o Pathet Laos comunista, que, desde os acordos de Genebra de1954, fora imposto por Hanói nas províncias do Noroeste ao longo da fronteiravietnamita.

Como militar, Eisenhower compreendera que a defesa do Vietname do Sulteria necessariamente de começar no Laos. Segundo parece, durante a transiçãodisse a Kennedy que estava preparado, para intervir no Laos, se necessáriounilateralmente. As primeiras declarações de Kennedy acerca do Laos coincidi-ram com as recomendações de Eisenhower. Numa conferência de imprensarealizada em 23 de Março de 1961 avisou: «/\ segurança de todo o Suesteasiático será posta em perigo se o Laos perder a sua independência neutra!.A sua segurança coincide com a segurança de todos nós - numa verdadeira

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neutralidade respeitada por todos'» No entanto, ao apresentar a sua nova polí-tica de defesa, apenas cinco dias mais tarde, Kennedy insistiu em que «osproblemas básicos com que o mundo hoje se defronta não são susceptíveis deuma solução militar»". Embora não inteiramente inconsistente com e decisão dedefender o Laos, esta declaração não era exactamente um apelo à acção militar,Hanói nu (1c.a,te~~,"çI(lvidasde que estava em guerra e usaria todos os meios à suadisposição para a gànhar. Kennedy mostrava-se mais ambíguo. Esperava conse-guir conter os comunistas através de meios políticos e de soluções de compro-misso, se fosse possível. "

Em /\bril de 1961, abalado pela baía dos Porcos, Kennedy decidiu-se contraa intervenção, preferindo antes confiar nas negociações para defender li neutra-lidade do Laos. Removida a ameaça de intervenção americana, era tido comocerto que as negociações relativas à neutralidade confirmariam o domínio deHanói. De facto, era a segunda vez que Hanói vendia a neutralidade do Laos,já se tendo comprometido a respeitá-Ia na Conferência de Genebra de 1954.

Enquanto desenvolviam a rede logística que mais tarde seria conhecida comoa pista de Ho Chi Minh, os Norte-Vietnamitas adiaram as negociações duranteum ano. Finalmente, em Maio de 1962 Kennedy enviou fuzileiros para a vizinhaTailândia, Isto levou à rapida conclusão das negociações, Foi ordenada a retiradado Laos de todas as tropas e conselheiros militares estrangeiros através de pontosde controle internacionais. Todos os conselheiros americanos e taílandeses dei-xaram o país como previsto; dos mais de 6000 militares norte-vietnamitas quehaviam sido destacados para o Laos, saíram exactamente 40 (sim, 40) pelospontos de controle internacionais. Quanto aos restantes, Hanói negou descara-damente a sua presença. Agora a estrada para o Vietname do Sul estava com-pletamente aberta,

Demonstrou-se, assim, que Eisenhower tivera razão. Se a lndochina era real-mente a pedra angular da segurança americana no Pacífico, como 03 dirigentesde Washington proclamavam há mais de uma década, o Laos era um local maisadequado para a defender do que o Vietnarne; na realidade, talvez fosse o únicosítio possível para defender a lndochina. Embora o Laos fosse um país remotoe cercado, os Norte- Vietnamitas, como estrangeiros temidos e odiados, não po-deriam ter travado uma guerra de guerrilha no seu solo, A América poderia tertravado aí a espécie de"guerr a convencional para a qual o seu exército tinha sidotreinado e as tropas tailandesas teriam, quase de certeza, apoiado os esforçosamericanos. Confrontada com tais perspectivas, Hanói poderia perfeitamente terrecuado e esperado um momento mais propício ao desencadear da guerra total.

No entanto, uma análise estratégica tão objectiva foi considerada inadequadapara um conflito que ainda era largamente concebido em termos ideológicos.(Nem era esta .~.f11inhaprópria opinião na época.) Durante uma década os diri-gentes americanos tinham tomado posição no sentido de defenderem 6 Vietname,porque este representava um elemento-chave do conceito de defesa da Ásia;rever essa estratégia, passando subitamente a considerar um remoto e atrasadoreino na montanha como o fulcro da teoria dos dominós, poderia ter perturbadoo Consenso interno."

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Por todas estas razões, Kennedy e os seus conselheiros concluíram que aIndochina tinha de ser defendida no Vietname do Sul, onde a agressão comunistatinha algum significado para os Americanos, independentemente do facto deterem acabado de tomar urna decisão que tomaria essa tarefa praticamenteimpossível do ponto de vista militar. Porque não só as vias de abastecimentoatravés do Laos estavam completamente abertas, como o astucioso e inconstantegovernante do Carnboja, o príncipe Sihanouk, decidiu que os dados estavamlançados e concordou com o estabelecimento de bases comunistas ao longo detoda a fronteira entre oCarnboja e o Vietname do Sul. Assim, estava definidauma outra situação de paradoxo: se as bases cambojanas fossem deixadas intac-tas, os Norte- Vietnamitas poderiam atacar o Sul e retirar em segurança pararepousarem e restaurarem as forças, tornando impossível a defesa do Vietnamedo Sul; se as bases fossem atacadas, o Vietname do Sul e os seus aliados seriamdenunciados por cometerem «agressões» contra um país «neutral».

Defrontado com uma crise sobre Berlim, a sua relutância em arriscar umaguerra no Laos, mesmo na fronteira com a China, num país do qual nem sequerI -% do público americano ouvira falar, era compreensível. A alternativa, aban-donar definitivamente a Indochina, nunca foi considerada. Kennedy era avessoa inverter uma década de comprometimento bipartidário, especialmente norescaldo da baía dos Porcos. A retirada também teria significado aceitar a derrotanaquilo que era visto como um teste para vencer a nova estratégia comunista daguerra de guerrilha. Sobretudo, Kennedy acreditava nos conselhos que recebia,nomeadamente que <1 ajuda americana permitiria às forças militares sul-vietna-rnitas derrotar as guerrilhas comunistas. Nesses dias de inocência nenhum diri-gente americano de qualquer partido tinha a menor suspeita de que a Américase dirigia para uma situação insustentável.

Kennedy detinha um recorde de comentários oficiais sobre a Indochina quese estendiam por mais de uma década. Já em Novembro de 195 I abordara umtema que jamais mais abandonaria: a força, por si só, não era suficiente paradeter o comunismo; os aliados americanos nessa luta teriam de construir umabase política para ela:

Deter o avanço comunista para sul faz sentido, mas não apenas através daconfiança na força das armas, A tarefa será antes criar um fone sentimento nativoanticornunista nessas áreas e confiar nele como ponta de lança da defesa, em vez denas legiões do general dó' Lattre (comandante francês na lndochina)".

Em Abril de 1954, durante a campanha da acção unitária de Dulles parasalvar Dien Bien Phu, num discurso no Senado, opõs-se à intervenção enquantoa Indochina continuasse a ser uma colónia francesa". Em 1956, depois de aFrança ter retirado e de o Vietname do Sul se ter tornado independente, Kennedyestava pronto para se juntar à ortodoxia dominante: «Esta é a nossa semente -não podemos abandoná-la.» Ao mesmo tempo reiterava que o conflito, mais doque militar, era um desafio político e moral, «num país onde os conceitos delivre empresa e de capitalismo não têm qualquer significado, onde a pobreza ea fome não são inimigos do outro lado do paralelo 17, mas inimigos internos [... )

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o que devemos oferecer-Ihes é uma revolução - uma revolução política,econórnica e social, de longe superior ao que os comunistas possam oferecer».Estava em jogo nada menos do que a credibilidade americana: «E, se cair vítimade qualquer dos perigos que ameaçam a sua existência - comunismo, anarquiapolítica, pobreza e o resto -, então os Estados Unidos serão justificadamentetidos como responsáveis e o nosso prestígio na Ásia baixará ainda maís',»

Kennedy parecia querer dizer que o truque estava C;l1 tornar a vítima menosvulnerável à agressão. Esta abordagem viria a gerar um novo conceito, até entãonunca encontrado no vocabulário diplomático e que ainda hoje permanece - anoção de «construção da nação». A estratégia preferida por Kennedy era forta-lecer os Sul- Vletnarnitas, de forma que eles próprios pudessem resistir aoscomunistas. A acção cívica e as reformas internas eram enfatizadas e a retóricaoficial foi modificada de forma a sugerir que o prestígio e a credibilidadeamericanos, mais do que a segurança, estavam em jogo no Vietnarne.

Cada nova administração forçada a lidar com a lndochina parecia ser maisprofundamente arrastada para o pântano. Truman e Eisenhower tinham estabe-lecido o programa de assistência militar; a ênfase de Kennedy sobre a reformaconduziu a um maior envolvimento americano na política interna do Vietnamedo Sul. O problema consistia em que as reformas e a construção da nação noVietname do Sul levariam décadas a dar fruto. Na Europa, nos anos 40 e 50, aAmérica tinha apoiado países estabelecidos com fortes tradições políticas, alar-gando a ajuda do plano- Marshall e por meio da aliança militar da NATO. Maso 'lietname era um país .nteiramente 1I0VO e não tinha instituições para partirpara a construção. O dilema central passou a residir no facto de o objectivopolítico americano de instituir no Vietname do Sul uma democracia estável nãopoder ser atingido a tempo de alcançar uma vitória sobre a guerrilha, que era oobjectivo estratégico da América. A América teria de modificar os seus objec-tivos militares ou os objectivos políticos.

Quando Kennedy tomou posse, a guerra de guerrilha no Vietname do Sultinha atingido urn nível de violência suficiente para impedir a consolidação dogoverno de Ngo Dinh Diem, sem, no entanto, chegar ainda a levantar dúvidasquanto à sua sobrevivência. Esta representação aparente da actividade da guer-rilha induziu a administração Kennedy na ilusão de que um esforço adicionalrelativamente pequeno poderia levar à vitória total. No entanto, a acalmiatemporária era sobretudo devida à preocupação de Hanói em relação ao Laos;como se viu mais tarde, era a calma antes da tempestade. Uma vez abertas asnovas vias de abastecimento através do Laos, a guerra de guerrilha no Sulcomeçou novamente a acelerar e os dilemas da América tomaram-se progres-sivamente insolúveis.

A administração Kennedy iniciou a viagem até ao pântano vietnarnita emMaio de 1961, com o envio de uma missão a Saigão chefiada pelo vice-presi-dente Johnson, destinada a «determinar» a situação. Tais missões indicam inva-riavelmente que já foi tomada uma decisão. Nenhum vice-presidente está emposição de efectuar um julgamento independente sobre uma guerra de guerrilhacom um ano de existência numa visita de dois ou três dias. Embora o seu acesso

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aos relatórios e telegramas dos serviços secretos seja normalmente alargado(dependendo do presidente), não dispõe do pessoal adequado a uma análiseextensiva e de nenhu:n para avaliação. As missões vice-presidenciais no estran-geiro são normalmente concebidas para ?umentarem o prestígio americano oupara darem credibilídade a decisões já tomadas.

A viagem de Johnson ao Vietname é um exemplo de escola destas regras.Antes de anunciar a missão, Kennedy encontrou-se com o senador J. WilliamFullbright, presidente da Comissão de Relações Externas do Senado, e avisou--o de que, possivelmente, seria necessário enviar tropas americanas para oVietname e para a Tailândia. O senador Fullbright prometeu o seu apoio se ospróprios países envolvidos pedissem ajuda', A reacção de Fullbright foi classi-camente americana. Um Richelieu, um Palmerston ou um Bismarck teriamperguntado qual o interesse nacional que estava a ser servido. Fullbright estavamais preocupado com a posição legal e moral da América.

Em simultâneo com a partida de Johnson, uma directiva do Conselho deSegurança Nacional datada de II de Maio estabelecia a prevenção do domíniodo Vietname do Sul pelos comunistas como objectivo nacional da América.A estratégia era «criar nesse país uma sociedade cada vez mais democrática eviável» através de acções militares, políticas, económicas, psicológicas e secre-tas'". A contenção estava a transformar-se em construção de uma nação.

Johnson relatou que o maior perigo na Indochina não era o desafio comunista- que, por razões inexplicadas, descrevia como «temporário» -, mas a fome,a ignorância, a pobreza e a doença. Johnson classificava Diem como admirável,mas «distante» do povo; a única escolha da América, dizia, era apoiar Diem ousair!'. O Vietname do Sul podia ser salvo se os Estados Unidos agissem rápidae decisivamente. Johnson não explicava de que modo poderiam os EstadosUnidos erradicar a fome, a pobreza e a doença dentro de um período de temporelevante para o ritmo da guerra de guerrilha.

Tendo enunciado o princípio, a administração estava obrigada a estabelecerimediatamente uma política. No entanto, no decurso dos três meses seguintesesteve preocupada com a crise de BerJim. Na altura em que pôde voltar-senovamente para o Vietname, no Outono de 1961, a situação da segurança linha--se deteriorado a tal ponto' que só poderia ser aliviada por intermédio de qualquertipo de intervenção militar americana.

O general Maxwell Taylor, conselheiro militar do presidente, e Walt Rostow,do planeamento político do Departamento de Estado para a política de planeá-mento, foram enviados ao V .etname para desenvol verem uma política apro-priada. Ao contrário do vice-presidente, Taylor e Rostow eram membros docírculo íntimo de conselheiros de Kennedy; tal como Johnson, mesmo antes deabandonarem Washington, tinham ideias. bem definidas sobre a política daAmérica para o Vietname. O verdadeiro objecüvo da sua missão era determi-narem a escala e a forma pela qual a América deveria aumentar o seu envolvi-mento.

Finalmente, Taylor e Rostow recomendaram um aumento massivo do papelda América como conselheira da administração sul-vietnarnita a todos os níveis.

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Deveria ser enviada uma chamada força de logística militar composta por 8000homens, alegadamente destinada a ajudar no controle das cheias no delta doMekong, mas, na realidade, equipada com suporte de combate suficiente parase defender a si própria; da recomendação fazia igualmente parte um aumentosignificativo dos conselheiros civis.

De facto, o resultado foi um compromisso entre aqueles que, na administra-ção Kennedy, queriam limitar a participação americana no Vietname a um papelde conselheira e aqueles que favoreciam a imediata introdução de tropas decombate. A última corrente estava longe de ser unânime acerca de qual deveriaser a missão das tropas de combate americanas; só estava de acordo nasubestirnação da magnitude do problema. O subsecretário de Estado da Defesaem exercício, William Bundy, calculou que a introdução de cerca de 40 000tropas de combate, como fora recomendado pela junta de chefes de estado--maior, tinha uma hipótese de 70 % de «deter as coisas»!', Uma vez que a guerrade guerrilha não conhece meio-termo entre a vitória e a derrota, «deter as coisas»significaria, evidentemente, apenas adiar a queda, pondo em r_heque acredibilidade global da América. Bundy acrescentou prescientemente que aquiloque descrevera como 30 % de hipóteses de insucesso envolveria um resultadosemelhante ao que a França sofrera em 1954. Ao mesmo tempo, o secretário daDefesa, Robert McNamara, e a junta de chefes de estado-maior calcularam quea vitória exigiria 205 000 americanos, caso Hanói e Pequim interviessem aber-tamente ". Finalmente, este número revelar-se-ia inferior a metade do número deefectivos que a América empenhou só na luta contra Hanói.

O compromiso burocrático reflecte frequentemente a esperança subconscien-te de que, entretanto, suceda alguma coisa susceptível de resolver o problemapor si próprio. Mas no caso do Vietname não havia qualquer base concebívelpara tal esperança. Com as estimativas oficiais variando entre 40 00\) homenspara um empate e 205 000 para a vitória, a administração Kennedy tinha deencarar o empenhamento de 8000 homens como desgraçadamente inadequadoou apenas como a primeira' prestação de um sempre crescente envolvimentoamericano. E, embora a probabilidade de 70 % de «deter as coisas» pudesseparecer atraente, esta probabilidade tinha de ser comparada com o impactoglobal de um desastre semelhante ao que a França sofrera.

O movimento encaminhava-se claramente na direcção de futuros aumentos,uma vez que Kennedy não alterara a sua afirmação do que estavc em jogo. Em14 de Novembro de 196 I disse aos seus conselheiros que a reacção dos EstadosUnidos à «agressão» comunista seria «analisada de ambos os lados da cortinade ferro [... ] como medida das intenções e da determinação da administração».Se a América preferisse negociar, em vez de enviar reforços, poderia, "de facto,ser considerada mais fraca do que no Laos»14. Recusou a proposta de ChesterBowles e AverelJ Harriman no sentido de uma «negociação» destinada aimplementar os acordos de Genebra de 1954, um eufemismo para o abandonodo esforço no Vietname do Sul.

Mas, se as negociações fossem rejeitadas e o reforço considerado inevitável,um compromisso americano aberto só poderia ser evitado se Hanói recuasse.

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Isso, porém, teria exigido um reforço, não meramente crescente, mas massivo,partindo do princípio de que seria de todo realizável. A América não estavapreparada para compreender que a verdadeira opção era entre Ó empennamentototal e a retirada e que o caminho mais perigoso era a escalada gradual.

Infelizmente a escalada gradual estava na ordem do dia. Destinada a detera agressão sem uma excessiva aplicação de força, tinha o objectivo mais lato deevitar que o planearnento militar escapasse àsdecisões políticas, como aconte-cera nas vésperas da Primeira Guerrá Mundial. A resposta gradual fora Conce-bida originalmente como estratégia da guerra nuclear - um aumento crescentedestinado a evitar um .holocausto total. Porém, quando aplicado à guerra deguerrilha, corria o risco de implicar uma escalada interminável. Cadaempenhamento limitado envolvia o perigo de ser interpretado como inibição enão como decisão, encorajando assim o adversário a prosseguir a escalada,tempo suficiente para resolver a questão, poderia pensar, se e quando os riscosse tomassem efectivamente intoleráveis.

Uma maior atenção à memória histórica teria indicado que os dirigentes deHanói não estavam prestes a serem desencorajados pelas esotéricas teoriasestratégicas americanas, que tinham gênio suficiente para vencerem a tecnologiaocidental e que a democracia não era um dos seus objectivos nem um sistemaque admirassem. As alegrias da construção pacífica não tinham qualquer atracotivo para estes endurecidos veteranos das solitárias prisões francesas e de déca-das de guerra de guenilha. A versão americana de reforma só lhes suscitava des-prezo. 'r'inham lutado e sofrido durante toda a vida para estabelecerem umVietname unificado e comunista e para expulsarem a influência estrangeira.A sua única profissão era a guerra revolucionária. Se a América tivesse procu-rado pelo mundo rodo, não poderia ter encontrado adversário mais intratável.

Segundo Roger Hilsman, então director dos serviços secretos e de investiga-ção do Departamento de Estado, o objectivo da América era reduzir os Vietcongsa «um bando de salteadores esfomeados e sem lei, devotando todas as suasenergias à própria soorevívêncta»!'. Mas qual a guerra de guerrilha que ofereciaum precedente histórico para tal resultado? Na Malásia 80000 britânicos e duasvezes este número de soldados mal aios tinham precisado de cerca de treze anospara derrotarem um inimigo que não somava mais de 10 000 homens, nãodispunha de qualquer apoio externo significativo nem de linhas de comunicaçãoseguras e tinha poucas oportunidades de aumentar os seus efectivos, NoVietname o exército da guerrilha contava com efectivos da ordem das dezenasde milhares e o Norte tinha-se organizado como zona de retaguarda da batalha,tinha construido bases. ao longo de centenas de quilómetros de fronteira emantinha permanentemente a opção de intervir com o experiente exército norte--vietnamita sempre que o exército da guerrilha era demasiado pressionado.'

A América colocara-se a si mesma numa situação que, na melhor das hipó-teses, poderia resultar num empate, segundo exigências da estimativa de 40 OOQsoldados de Bundy, da qual ainda se estava longe. Quando Kennedy tomouposse, o número de militares americanos no Vietnarne andava próximo dos 900.No final de 1961 tinha ascendido a 3164 e, quando Kennedy foi assassinado, em

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1963, O número já era de 16263, com tendência para aumentar. Em 1960 onúmero de americanos mortos era de 5, em 1961 de 16, em 1963 de 123 e em1964, o último ano de paz antes de serem enviadas unidades .Ie combateamericanas, o número subira para mais de 200. Porém, a situação militar nãotinha melhorado significativamente.

Quanto mais o papel militar da América no Vietname do Sul se expandia,mais a América enfatizava a reforma política. E, quanto mais Washingtoninsistia na mudança interna, mais a guerra se americanizava. Na sua primeiraanálise da defesa, em 28 de Março de 1961, Kennedy reafirmou o seu temacentral: fosse qual fosse o poderio das armas estratégicas americanas, estas pode-riam, no entanto, ser lentamente espicaçadas nas periferias «por forças desubversão, infiltração, inrimação, agressão indirecta au encoberta, revoluçãointerna, chantagem diplomática e guerra de guerrilha": - perigos que, no final,só poderiam ser vencidos pela reforma política e social, permitindo ãs potenciaisvítimas ajudarem-se a si mesmas.

A administração Kermedy.tomou como verdadeiro aquilo que acabaria porse revelar como um dos muitos dilemas insolúveis da Indochina; a insistênciasimultânea na reforma política e na vitória militar criou um círculo vicioso.Dentro de vastos limites, as guerrilhas estavam em posição de determinarem aintensidade da guerra e, assim, o nível de segurança, que era, 1'\0 curto prazo,completamente independente do ritmo da reforma. Quanto maior fosse a inse-gurança, mais severo se tornaria o governo de Saigão, E, enquanto Washingtonconsiderasse os sucessos da guerrilha como resultado. mesmo parcial. da lenti-dão da reforma, Hanói podia manobrar de modo a aumentar a pressão americanasobre o governo de Saigão, que procurava minar. Apanhado entre os ideólcgosfanáticos de Hanói e os idealistas inexperientes de Washington, o governo deDiem foi ficando cada vez mais rígico e acabou por cair.

Mesmo um dirigente político menos imbuído das tradições rnand uins do queDiem teria considerado desanirnadora a tarefa de construir uma democraciapluralista no meio de uma guerra de guerrilha e numa sociedade fragmentada por'regiões, seitas e clãs. Todo o empreendimento americano estava eivado de faltade credibilidade, não tanto porque os dirigentes americanos estivessem a enga-nar o público, mas porque se enganavam a si próprios quanto às suas capacida-des, incluindo a facilidade com que as instituições que lhes eram familiarespodiam ser transferidas para outras culturas. Basicamente, a administraçãoKennedy estava a implementar pressupostos '.vilsonianos. Tal corno Wilsonacreditara que as noções americanas de democracia e de diplomacia poderiamser enxertadas na Europa sob a forma dos catorze pontos, assim a administraçãoKennedy procurava dar aos Vietnamitas regras essencialmente americanas pelasquais deveriam governar-se. Se no Sul os déspotas pudessem ser depostos e osbons democratas em passados, o contlito que dilacerava a Indochina certamentese diluiria.

Cada nova administração americana procurava fazer depender o aumento dasajudas ao Vietname das reformas. Eisenhower fizera-o em 1954; Kcnncdy roiainda mais insistente em 1961, ligando um aumento maciço da ajuda ao facto

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de ser garantido aos Estados Unidos um papel de conselheiro a todos os níveisde governo. Como era previsível, Diem recusou; os dirigentes das lutas deindependência raramente encontram vantagens em situações de tutela. O senadorMansfíeld, ao visitar o Vietname no final de 1962, inverteu a sua opinião ante-rior (v. capítulo 25) e concordou que o governo de Diem «parece mais distante,e não mais próximo, de alcançar um governo popularmente responsável e efi-caz»".

Esta opinião estava correcta. No entanto, a questão-chave era a de saber emque medida estas condições se deviam à incapacidade do governo, a um abismocultural entre a América e o Vietname ou às depredações das guerrilhas. Asrelações entre a administração e Diem deterioraram-se ao longo de 1963. Osmeios de comunicação, que informavam a partir de Saigão e até então tinhamapoiado o envolvimento americano, tornaram-se hostis. As críticas não discu-tiam os objectivos americanos como fariam mais tarde, mas sim a praticabilidadede instituir um Victname do Sul democrático e não comunista em associaçãocom um dirigente repressivo como Diem. Diern era mesmo suspeito de consi-derar a possibilidade de um compromisso com Hanói - exactamente o mesmocaminho que, alguns anos mais tarde, um outro presidente sul-vietnamita,Nguyen Van Thieu, seria acusado de rejeitar.

O rompimento final com Saigão foi provocado por um conflito entre osbudistas sul-vietnarnitas e Diem, cujo governo tinha emitido um édito queproibia as seitas, os grupos religiosos e os partidos políticos de hastearembandeiras. Ao executarem esta ordem, os soldados tinham disparado contramanifestantes budistas que protestavam, matando vários deles em Hue, no dia8 de Maio de 1963. Os manifestantes tinham queixas graves, que em breve foramregistadas pelos meios de comunicação internacionais - embora a falta dedemocracia não fosse urna delas. Os budistas, que eram tão autoritários cornoDiem, negavam-se a apresentar qualquer reclamação a que Diem devesse cor-responder caso estivesse inclinado a tal. Em última análise, não se tratava deurna questão de democracia, mas sim de poder. Paralisado pela guerra deguerrilha e pelas próprias incapacidades, o governo de Diem recusava-se a fazerconcessões. Washington multiplicou as suas pressões sobre Diem no sentido deque o fizesse e exigiu a demissão de seu irmão, Ngo Dinh Nhu, encarregado dasforças de segurança, urna démarche que Diem entendeu como uma jogada depoder para o deixar à mercê dos seus inimigos. O rompimento final ocorreu em21 de Agosto, quando os agentes de Nhu atacaram alguns pagodes e prenderam1400 monges.

Em 24 de Agosto o recém-chegado embaixador Henry Cabot Lodge traziainstruções para exigir a demissão de Nhu e avisar Diem de que, se recusasse, osEstados Jnidos teriam de «encarar. a possibilidade de o próprio Diem não podermanter-se no poder>' 18. Os chefes rriilitar~s de Saigão foram formalmente noti-ficados de que o futuro apoio americano dependia da demissão de Nhu, algo queos interlocutores vietnamitas de Lodge entenderam significar que Diem tinha deser deposto. Subsequenternente, Kennedy e McNamara repetiram em públicoessencialmente as mesmas exigências. Com receio de que os generais não

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entendessem a sugestão, foi-lhes comunicado que os Estados Unidos lhes facul-tariam «apoio directo durante qualquer período intermédio de colapso do meca-nismo do govemo centrab-", Os generais sul-vietnamitas levaram quase doismeses a ganhar coragem para reagirem aos estímulos do seu insistente aliado.Finalmente, em I de Novembro derrubaram Diem, matando-o a ele e a Nhu.

Encorajando a deposição de Diem, a América ultimou o seu envolvimentono Vietname. Em última análise, todas as guerras revolucionárias tostão relacio-nadas com a legitimidade governamental; minar essa legitimidade é o principalobjectivo das guerrilhas. A deposição de Diem entregou de mão beijada talobjectivo a Hanói. Em consequência do estilo feudal de governo de Diern, a suaqueda afectou todos os sectores da administração civil até ao nível das aldeias.Agora a autoridade tinha de ser reconstruída a partir do zero. E a história ensina--nos a lei de ferro das revoluções: quanto mais alargada for a erradicação daautoridade existente, mais os seus sucessores terão de apoiar-se na força brutapara se estabelecerem. No final a legitimidade implica uma aceitação não com-pulsiva da autoridade; li sua ausência transforma toda a competição num testede força. Antes do golpe sempre existira, pelo menos em teoria, a possibilidadede a América recusar envolver-se directamente em operações militares, à seme-lhança do que Eisenhower fizera quando, quase dez anos antes. recuara navéspera de Dien Bien Phu. Uma vez que o golpe tinha sido justificado parafacilitar urna continuação mais efectiva da guerra, a retirada desaparecera comoopção política.

A deposição de Diem não uniu o povo sob o comando dos generais. comoWashington esperara. Embora o New York Times saudasse o golpe corno umaoportunidade «no sentido de desencorajar novas incursões comunistas no Suesteasiáuco'?», sucedeu exactamente o oposto. O fundamento de urna sociedadepluralista é o consenso sobre os valores subjacentes, que implicitamente impõeum limite às reivindicações dos indivíduos ou grupos concorrentes. No Vietnarneeste consenso revelara-se fraco desde o início. O golpe destruiu a estrutura quefora erguida no decurso de uma década, deixando no seu lugar um grupo degenerais concorrentes sem qualquer experiência ou implantação política.

Só no ano de 1964 ocorreram sete novas mudanças de governo. nenhuma dasquais instituiu sequer uma aparência de democracia e sendo todas resultantes deurna ou outra espécie de golpe. Os sucessores de Diem, não possuindo I) seuprestígio como nacionalista e figura paternal ao estilo dos mandarins, tinhampoucas opções para além de confiarem a guerra aos Americanos. A seguir àdeposição de Diem comen.ou-se justamente que «a questão não será como enco-rajar a instituição no Vietname do Sul de um regime que a América possa apoiar,mas encontrar um que possa apoiá-Ia na luta contra os comunistas vitoriosos»!',

Os agentes ,c!P poder em Hanói agarraram imediatamente esta oportunidade.Um comité central do partido comunista reunido em Dezembro de 1963 definiua nova estratégia: as unidades da guerrilha seriam reforçadas e a infiltração noSul acelerada. Mais importante do que tudo, seriam introduzidas unidades regu-lares norte-vietnamitas: «Está na altura de o Norte aumentar o apeio ao Sul, oNorte tem de assum~ mais directamente o seu papel de base revolucionária de

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toda a nação".» Pouco depois a 325.' divisão regular norte-víetnamita começoua deslocar-se para sul. Antes do golpe a infiltração nortista consistira sobretudoem sulistas que haviam sido reagrupados em 1954; depois, a percentagem denortistas subiu constantemente até que, depois da ofensiva do Tet em 1968,quase todos os infiltrados eram norte-vietnamitas. Com a entrada de unidadesregulares do exército norte-vietnarnita, ambas as partes tinham cruzado o seuRubicão.

Pouco depois da deposição de Diern; Kennedy foi assassinado. O novopresidente, Lyndon Baines Johnson, interpretou a intervenção de unidades regu-lares norte-vietnarnitas como um caso clássico de agressão directa. A diferençaresidia em que Hanói estava a concretizar uma estratégia, ao passo que Washing-ton tinha apenas teorias contrárias, nenhuma das quais foi levada até ao fim.'

Suspensa entre o anseio de uma vitória não militar e a previsão de umdesastre militar, a América debatia-se num trágico dilema. Em 21 de Dezembrode 1963 McNamara comunicou ao novo presidente que a situação de segurançano Vietname se tomara penurbadora. A América já não podia continuar a evitara opção que sempre estivera implícita: a escalada dramática do seu envolvirnentomilitar ou a queda do Vietname do Sul. A administração Kennedy temera entrarna guerra ao lado de um- aliado não democrático; a administração Johnsonreceava mais abandonar o novo e não democrático governo de Saigão do queparticipar na guerra.

Em retrospectiva, o último momento em que a América poderia ter retiradocom custos toleráveis - ainda que bastante pesados - teria sido imediatamenteantes ou após a deposição de Diern. A adminstração Kennedy estava certaquando afirmara que não poderia vencer com Diem. A administração Johnsoniludiu-se a si própria ao acreditar que podia vencer com os seus sucessores.À luz do que se seguiu ao golpe, teria sido mais fácil para a América libertar--se, deixando Diem cair em resultado da própria inépcia ou, pelo menos, nãointervindo nas negociações que, segundo se suspeitava, mantinha com Hanói.Kennedy estivera analiticamente correcto ao recusar qualquer desses esquemascom o fundamento de que levariam inevitavelmente à conquista do poder peloscomunistas. O problema estava no facto de a América não estar preparada paradefrontar as implicações da solução nem para aceitar o provável resultado dedeixar as coisas correrem o seu curso.

Alguns antigos membros da administração Kennedy têm dito que, depois daseleições presidenciais de 1964, o presidente tencionava retirar as forças arnerí-canas, que ainda estavam a aumentar. Outros, igualmente bem colocados, têm--no negado. Tudo o que pode dizer-se quanto às intenções últimas de Kennedyé que cada reforço sucessivo enviado para o Vietname tornava as suas opçõesmais duras e as consequências, quer do empenhamento, quer da retirada, maisdolorosas e dispendiosas. E em cada mês que passava a parada americanatomava-se mais alta, primeiro apenas militarmente, mas em breve também emtermos da posição internacional da América.

O assassínio de Kennedy tornou ainda mais difícil o abandono do Vietnamepela América. Se, na realidade, Kennedy fora atormentado pela compreensão de

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que a América enveredara por uma via insustentável, só tinha de inverter umadecisão própria; Johnson, por seu lado, teria de rejeitar a aparente política de umantecessor falecido e reverenciado. Especialmente porque nenhum dos conse-lheiros herdados de Kennedy recomendou a retirada (com a notável excepção dosubsecretário de Estado George Ball, que, no entanto, não pertencia ao círculoíntimo). Teria sido necessário um dirigente extraordinariamente autoconfiante econhecedor para empreender uma retirada de tal magnitude imediatamente apósa tomada de posse. E, quando se tratava de política externa, Johnson mostrava--se extremamente inseguro.

Em retrospectiva, o novo presidente teria feito bem se tivesse efectuado umaanálise destinada a determinar se os objectivos políticos e militares, em nomedos quais a América já investira tanto, seriam viáveis, por que meios e em queperíodo de tempo - na realidade, para determinar se as premissas quo tinhamgerado tais compromissos estariam correctas. À pane o facto de Johnson terdescoberto que os sofisticados ajudantes que herdara de Kennedy eram unani-memente a favor de tentar obter uma vitória no Vietname (mais uma vez, comexcepção de George Ball), é duvidoso que, se tal análise tivesse sido feita, oresultado tivesse sido significativamente diferente. No Departamento da Defesae na Casa Branca havia maníacos das análises. Eram homens de uma inteligênciaextraordinária, mas faltava-lhes um critério que lhes permitisse avaliar umdesafio tão diferente da experiência e da ideologia americanas.

A motivação inicial da América para se envolver fora a ideia de qUI!a perdado Vietnarr.e levaria ao colapso da Ásia não comunista e à acomodação do Japãoao comunismo. Nos termos dessa análise, ao defender o Vietname, a Américaestaria a combater por si própria, independentemente de o Vietname do Sul serum país democrático ou de alguma vez poder vir a sê-Io. Porém, tal análise erademasiado geopolítica e orientada por razões de poder para a sensibilidadeamericana e em breve foi vencida pelo idealismo wilsoniano. Uma administra-ção após outra tinham tentado desempenhar uma dupla tarefa, cada uma dasquais já seria difícil de realizar: a derrota do exército da guerrilha com basesseguras a toda a volta de uma periferia alargada e a democratização de umasociedade sem qualquer tradição pluralista.

No caldeirão do Vietnarne. a América aprenderia que existem limites mesmopara a mais sacrossanta das fés e seria obrigada a encarar o abismo que podecavar-se entre o poder e os princípios. Precisamente porque a América semostrou relutante em aceitar lições tão contrárias à sua experiência histórica éque lhe foi mais difícil aceitar as suas perdas. Assim, a dor associada a arribasas frustrações resultou, não das suas piores qualidades, mas das melhores.O facto de a América rejeitar o interesse nacional como base da sua políticaexterna lançara o país à deriva num mar de moralismo indiferenciado..

Em Agosto de 1964 um presumido ataque norte-vietnamita ao contra torpe-deiro Maddox deu origem a um ataque retaliatório americano contra o Vietnamedo Norte que foi apoiado quase unanimemente pelo Senado, através da chamadaresolução do golfo de Tonquim. Por sua vez, esta resolução também foi usadapara justificar ataques aéreos de retaliação ocorridos alguns meses antes. Em

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Fevereiro de i965 um ataque a um aquartelamento de conselheiros americanosna cidade de Pleiku, nos planaltos centrais, desencadeou um ataque aéreo ame-ricano de retaliação ao Vietname do Norte, que rapidamente se transformounuma campanha de bombardeamento sistemático, com o nome de código «Tro-voada retumbante», Em Julho de 1965 as unidades de combate americanasestavam completamente empenhadas e a presença de soldados americanos come-çou a aumentar, atingindo os 543 000 homens no início de 1969,

Subsequentemente, a questão de saber se a administração Johnson forainteiramente honesta Com o povo americano acerca do ataque ao Maddox tor-nou-se parte do debate cada vez mais azedo acerca do Vietnarne. Foi usada tantopara desacreditar a resolução do golfo de Tonquim como a participação ameri-cana nos combates. Não há dúvida de que a resolução do golfo de Tonquim nãofoi baseada numa completa apresentação dos factos, mesmo tendo em conta aconfusão do combate. Mas também não foi um factor decisivo para oernpenhamento da América nos combates no Vietname, Ao invés, foi apenas umpequeno passo ao longo de uma estrada que teria conduzido a América aomesmo destino, dadas as convicções que animavam todas as personalidadesdirigentes.

Os métodos usados para obter a resolução de Tonquim não teriam sido hojepossíveis, pois a democracia americana está mais aperfeiçoada. Ao mesmotempo, nem as tácticas nem a candura de Johnson foram significativamentediferentes das usadas por Franklin Delano Roosevelt quando conduziu a Amé-rica ao envolvimento na Segunda Guerra Mundial - por exemplo, o relato nãocompletamente franco que Roosevelt fez do torpedeamento do contratropedeiroGreer, o pretexto para envolver a América numa batalha naval no Atlântico em1941. Em qualquer destes casos, um presidente definia unilateralmente aquiloque a América não toleraria: a vitória dos Alemães nos anos 40, a tomada daIndochina na década de 60. Ambos os presidentes estavam preparados paracolocarem as forças.militares do seu país no caminho do mal e para responde-rem, se, tal corno era provável, o mal realmente os atingisse, Em qualquer destescasos, a decisão final de entrar na guerra foi baseada em considerações que iammuito além dos incidentes imediatos.

O pesadelo do Vietname não está na forma como a América entrou na guerra,mas na razão por que o fez sem uma avaliação mais cuidaJosa dos custosprováveis e dos resultados potenciais. Uma nação não devia enviar nieio milhãodos seus jovens para um continente distante ou pôr em risco a sua posiçãointernacional e a sua coesão interna a menos que os seus dirigentes fossemcapazes de definir os respectivos objectivos políticos e apresentar uma estratégiarealista para os alcançar- como o presidente Bush faria mais tarde relativamenteà guerra do Golfo, Washington deveria-ter colocado a si própria duas questõesbásicas: seja possível estabelecer a democracia e alcançar uma vitória militarmais ou menos simultaneamente? E, ainda mais crucial, os benefícios justifica-riam os custos? Os presidentes, ou os conselheiros presidenciais, que envolve-ram a América na guerra terrestre no Vietname tomaram como certa a respostaafirmativa.

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A condução bem-sucedida de uma guerra de guerrilha exige uma subtilmistura de estratégias militares e políticas. Porém, os chefes militares america-nos nunca se haviam sentido à vontade na coordenação de objectivos militarese políticos. No decurso da guerra do Vietname os meios foram sempre insu-ficientes para os objectivos visados e os objectivos só poderiam ser alcançados- se possível - mediante riscos que Washington não estava disposta a correr.

Uma das principais liçõec tiradas da guerra da Coreia deveria ter sido a deque guerras prolongadas e inconclusivas abalam o consenso interno da América.No entanto, Washington parecia ter retirado exactamente a conclusão oposta: aorigem da frustração na Coreia fora o avanço de MacArthur para lalu e a suaprocura de uma vitória total e imediata. A esta luz, o resultado da guerra daCoreia foi reinterpretado como o sucesso de ter evitado uma vitória chinesa:O envolvimento da América no Vietname foi conscientemente limitado a umobjectivo semelhante: sem provocar a intervenção chinesa, demonstrar aoVietname do Norte que não lhe seria permitido tomar o Vietname do Sul e que,por isso, a sua única opção era negociar. Mas negociar com que finalidade -especialmente perante um inimigo para quem qualquer compromisso equivaliaà derrota? Os dirigentes americanos certamente tinham esquecido que os últimosdois anos da guerra da Coreia e o período do macarthismo quase tinham cindidouma sociedade americana impaciente com os empates prolongados. .

Teoricamente, ~Ó duas estratégias têm hipóteses de prevalecerem numaguerra de guerrilha, Uma é essencialmente defensiva e procura privar 0 adver-sário do controle da população. Esta estratégia exige o estabelecimento de umasegurança quase total para uma percentagem de população suficiente, de modoque os ganhos da guerrilha ent~e a restante não sejam consistentes com oestabelecimento de uma base política coerente. O general Maxwell Taylorparecia ter em mente uma estratégia semelhante quando recomendou o estabe-lecimento de uma série ele enclaves protegidos por forças americanas, enquantoo exército sul-vietnamita procurava impedir a consolidação de uma Z011t1 comu-nista claramente definida sem tentar defender cada distrito dia e noite. A segun-da estratégia possível seria atacar alvos que as guerrilhas tivessem de defender,como santuários, depósitos de mantimentos e bases - por exemplo, interceptara pista de Ho Chi Minh por meio de forças terrestres e bloquear simultaneamenteos portos norte-vietnamitas e cambojanos que serviam esses santuários. Estaestratégia - pelo meno~ conceptualmente - poderia ter conduzido de modorelativamente rápido à guerra de desgaste que os militares americanos buscavamtão desesperadamente e forçado um resultado negociado.

O que nunca poderia funcionar era a estratégia realmente adoptada pelaAmérica: a miragem de estabelecer uma segurança a 100 % em 100 % do paíse tentar desgastar ,\~ guerrilhas por meio ele operações de busca e destruição .Fosse qual fosse a dimensão ela força expedicionária, nunca poderia revelar-sesuficiente face a um inimigo cujas linhas de abastecimento se situavam fora doVietname e que possuía vastos santuários e uma vontade feroz. No final de 1966o primeiro-ministro norte-vietnamita Pham Van Dong disse a Harrison Salisbury,do New York Times, que, embora os Estados Unidos fossem de longe rnilitarmen-

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americanos preparados para morre: pelo Vietname e para lutar durante o temponecessário para sobreviver aos Americanos". Esta declaração veio a provar-secorrecta.

Johnson rejeitou resolutamente qualquer «expansão» da guerra. Washingtontinha-se convencido de que os quatro estados indochineses eram entidadesseparadas, se bem que os comunistas os tratassem como um único cenário háduas décadas e estivessem a conduzir uma :estratégia coordenada relativamentea todos eles. Além disso, a avaliação de Washington quanto ao contexto inter-nacional global tomara-os excessivamente preocupados com a intervenção chi-nesa, ignorando a declaração de Lin Piao segundo a qual os exércitos chinesesnão iriam para o estrangeiro, que foi reiterada por Mao a Edgar Snow, jornalistaamericano simpatizante dos comunistas chineses. Mao disse a Snow que a Chinanão tinha tropas no exterior das suas fronteiras e não tinha qualquer intenção delutar contra quem quer que fosse, excepto se o seu território fosse atacado".E roi assim que em duas guerras diferentes separadas por uma década e meia aAmérica teve de pagar um preço por não tomar a sério as declarações chinesas:na Corei a ignorara os avisos chineses e marchara para o Ialu, desencadeando aintervenção chinesa; no Vietname menosprezou as garantias de não intervençãodadas pelos Chineses, o que a levou a rejeitar a única estratégia que poderia ter--lhe dado a vitória.

Preocupado com a intervenção chinesa, determinado a manter a opção de umabrandamento das tensões com a União Soviética e ansioso por manter umconsenso quanto ao seu programa interno de grande sociedade, Johnson optoupor meias medidas, que puseram em jogo a posição internacional da Américasem alcançar os objectivos visados. Tentando conciliar o objectivo de derrotaruma conspiração global com o desejo de evitar um cont1ito global, a políticaamericana só conseguiu estultificar-se.

O desgaste não podia funcionar enquanto as guerrilhas pudessem escolherquando e onde queriam lutar. As operações aéreas contra o Vietname do Norte,concebidas para provocarem um prejuízo cada vez maior, mostraram-se incon-clusivas, porque o sistema de transportes norte-vietnarnita era demasiado rudi-mentar para ser atingido e demasiado pouco essencial para servir de alvonevrálgico, O empate servia os interesses de Hanói - especialmente um empatelimitado ao território do Vietname do Sul e que causava aos Americanos pesadasbaixas. Todas estas frus trações originaram na América uma oposição crescenteà guerra - uma oposição cujo ponto de partida foi o apelo à cessação dessamesma campanha de bornbardeamentos, que supostamente devia fazer com-preender a Hanói que nunca poderia vencer.

Washington estava a tentar provar que a agressão não compensa e que aguerra de guerrilha não seria a vaga do futuro. O que não logrou compreenderfoi a forma como o adversário calculava os custos e benefícios. Johnson pensouque a saída era expressar moderação, tranquilizar Hanói e oferecer um compro-misso. No entanto, todas estas qualidades eram muito mais susceptíveis deencorajarem Hanói a persistir e, de caminho, ensinar à América que não há

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recompensa para quem perde com moderação. Johnson explicou da seguinteforma os objectivos da América:

Não estamos a tentar destruir o Vietname do Norte. Não estamos a tentarmodificar o seu governo. Não estamos a tentar estabelecer bases permanentes noVietname do Sul (...]

[...] Estamos lá porque estamos a tentar fazer com que os comunistas doVietname do Norte deixem de disparar contra os seus vizinhos [...) para demonstrarque a guerra de guerrilha, inspirada por uma nação contra outra nação, nunca podeser bem sucedida [...] Temos de continuar até que os comunistas do Vietname doNorte compreendam que o preço da agressão é demasiado alto - e consintam numacordo pacífico ou concordem em parar de lutar [...)25.

Queria que os dirigentes comunistas de Hanói entendessem que

[...) no momento em que compreenderemque uma vitória militar está fora de ques-tão e desistirem de"usar a força, encontrar-nos-ãopreparados e ansiosos por agirmosda mesma forma [...] Queremos uma paz honrosa para o Vietname. A chave paraessa paz está nas nossas mãos. S6 temos de usá-ta".

Johnson não merecia o ódio e o ridículo que tais apelos provocaram. Afinal,estava apenas a reafirmar os princípios americanos tradicionais. Mas nem elenem a sua sociedade dispunham de conceitos que Ihes permitissem compreenderum adversário que encarava essas garantias como irrisórias, um adversário paraquem, além do mais, a definição americana de compromisso soava corno umapelo à rendição na batalha de uma vida.

Para os duros e devotados dirigentes de Hanói, o conceito de estabilidade nãotinha significado operacional. Haviam passado toda a vida adulta a lutar pelavitória, primeiro contra a França e agora contra uma superpotência. Em nomedo comunismo, tinham infligido ao seu povo incríveis sofrimentos. «Deixar ovizinho em paz» era a única coisa que os dirigentes de Hanói seriam v.sceral-mente incapazes de fazer. Bismarck dissera uma vez que a unidade alemã nuncaseria alcançada pela negociação, mas «pelo sangue e pela espada», e era preci-samente esta a opinião de Hanói sobre a unidade vietnamita.

Americanos de todas as convicções continuavam a apelar a Hanói paraparticipar numa qualquer solução democrática e queimavam o cérebro tentandoconceber esquemas eleitorais funcionais. No entanto, nenhum dos elementos dopensamento americano em matéria de assuntos externos tinha o mínimo atrac-tivo para Hanói, excepto como instrumentos susceptíveis de confundirem osAmericanos. Tendo estabelecido uma das mais rígidas ditaduras do mundo, opolitburo de Hanói nunca aceitaria tomar-se simplesmente um partido políticoentre muitos outros no Sul. Hanói não tinha qualquer incentivo concebível paradeixar de usar a força; afinal, enquanto não perdesse tinha a possibilidade devencer e, sem dúvida, não estava a perder - na realidade, a estratégia arneri-cana, expressamente dirigida para o empate, afastava a possibilidade de derrotade Hanói. A oferta de Johnson de um programa de reconstrução massivo abertoa todos, incluindo o Vietname do Norte, caiu em orelhas surdas", Hanói queria

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a vitória, não ajuda ao desenvolvimento, e, com arrogância característica, agiacomo se não houvesse necessidade de escolher entre ambas.

Quando a maré da opinião pública americana se voltou contra a guerra, oscríticos de Johnson passaram a culpá-lo ai,.~a mais gritantemente pelo empatediplomático. Até aí, enquanto estas acusações implicavam que Johnson sentiarelutância em negociar, falhavam o alvo. A ansiedade de Johnson pelo início dasnegociações era palpável ao ponto de ser derrotista. E convenceu Hanói de que,provavelmente, a dilação suscitaria ofertas ainda mais generosas. Johnson orde-nou sucessivas interrupções dos bombardeamentos (nas suas memórias afirmaque foram deza.seis), não deixando dúvidas de que os Estados Unidos pagariamum preço de entrada unilateral para que as negociações tivessem início; Hanóitinha todos os incentivos para elevar esse preço o mais possível.

Estive envolvido numa das iniciativas que ilustram tanto a impaciência daadministração Johnson para começar as negociações como a habilidade deHanói para usar essa impaciência para servir os seus próprios fins. O meu próprioenvolvimento com o Vietname evoluiu bastante gradualmente. Ao longo dadécada de 50 o meu pensamento sobre política externa concentrara-se na Europae na estratégia nuclear. A administração Kennedy incluía muitos indivíduos queadmirava e a minha predisposição era favorável ao seu esforço na Indochina,embora sem dar muita atenção à questão. Só comecei a pensar seriamente noVietname depois de três visitas àquele país, em 1965 e 1966, como consultorpara a paz do embaixador Lodge. Estas ocasiões deram-me a oportunidade devisitar muitas províncias do Vietname do Sul e de manter discussões com oschamados relatares provinciais da embaixada americana - um grupo extraordi-nariamente devotado e hábil de jovens funcionários dos Negócios Estrangeiroscolocados em vários distritos por todo o país. Estas visitas convenceram-me deque a guerra não poderia ser ganha com a estratégia dominante' e de que aAmérica teria de se libertar negociando com Hanói, embora não tivesse ideiasprecisas sobre o conteúdo de tais negociações.

No Verão de 1967 participei numa das chamadas conferências Pugwash decientistas preocupados com o desarmamento nuclear. Dois dos participantes, quetinham ouvido falar das minhas visitas à Indochina, abordaram-me com aquiloque me pareceu uma proposta intrigante. Raymond Aubrac, funcionário daOrganização Mundial de Saúde, tinha travado conhecimento com Ho Chi Minhem 1946, quando o dirigente comunista de Vietnan.e se hospedara na sua casade Paris no decurso de negociações com a França. Aubrac ofereceu-se paravisitar Hanói acompanhado por um colega cientista do movimento para a paz,Herbert Marcovich, para apelar pessoalmente a Ho Chi Minh em matéria denegociações. Informei Bundy, que assumira as funções de subsecretário deEstado, e o secretário da Defesa McNamaraó"Estes encorajaram a visita desdeque os dois cientistas viajassem particularmente e não pretendessem representara opinião oficial da América,

Aubrac e Marcovich viajaram para Hanói, onde foram recebidos por Ho ChiMinh. Depois de apresentar a ritualizada condenação da «agressão» americana,Ho Chi Minh sugeriu que Hanói estaria disposta a negociar desde que os Ameri-I

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canos deixassem de bombardear o Vietname do Norte. Mai Van Bo, repre-sentante diplomático de Hanói em Paris, foi designado como contacto oficial.

Seguiram-se várias conversas. por meio de um procedimento bastante com-plicado e à margem da diplomacia. Uma vez que Hanói se recusava a comunicardircctarnente com Washington antes da interrupção dos bombardeamentor, comocidadão privado. servi de intermediário, Mesmo assim. Hanói, reserv.mdo até aofim cada uma das suas armas negociais, não autorizava o seu representante anegociar nem sequer com um americano não oficial. Assim, recebia as mensa-gens de Washington, normalmente do secretário McNamara, e passava-as aosdois franceses, que as entregavam a Mai Van Bo juntamente com as explicaçõesque fora autorizado a facultar. McNamara estava ansioso por pôr termo à guerrae imolorava-me repetidamente que tentasse extrair dos meus interlocutoresinvisíveis alguma sugestão, por mais oblíqua que fosse, que lhe permitissepromover a causa de lima solução negociada,

Assisti a uma parte da reunião entre o presidente Johnson e os seus conse-lheiros na qual foi preparada a oferta final americana. Era evidente que todosos instintos de Johnson se revoltavam contra a interrupção dos bornbardeamen-tos, Inseguro como estava do seu domínio da política externa. Johnson tiverasuficiente experiência política para duvidar das vantagens de abrir uma negocia-ção com uma concessão unilateral. Porém, estava desesperado por terminar aguerra, esgotado pelas críticas internas e pouco disposto a contrariar os con-selheiros, impacientes por tentarem a via diplomática, No final Johnson cedeu.O resultado foi a chamada fórmula de San Antonio. concebida depois de eu terabandonado a sala, e que Johnson apresentou num discurso proferido nessacidade em 29 de Setembro de 1967:

Os Estados Unidos estão dispostos a fazer cessar todos os bornbardeamentosaéreos e navais ao Vietname do NOite se isso conduzir imediatamente a discussõesprodutivas, Evidentemente, partimos do princípio de que, enquanto as negociaçõesestiverem em curso. o Vietnarne do Norte não tentará aproveitar-se dessa cessaçãoou limitação dos bombardeamentos",

A fórmula de San Antonio foi um dos pontos de viragem decisivos da guerra.A América mostrou-se disposta a cessar a acção militar contra o Vietname doNorte - uma obrigação precisa - em troca de conversas «produtivas». desdeque Hanói não se aproveitasse da cessação dos bombardeatllento~, Não foramavançados quaisquer critérios para definir o significado de «produtivo» ou de«aproveitar-se», No entanto, tendo demonstrado a sua capacidade para manipu-lar o debate interno americano, Hanói não poderia ter muitas dúvidas de quequalquer tentativa americana para derrogar uma cessação dos bombardeamentosse mostraria controversa e morosa, «Não se aproveitar» da cessação não pareciacertamente obrigar Hanói a cessar a guerra de guerrilha ou a abandonar por issoo que estivesse a fazer; no máximo, a cláusula significava que Hanói não deveriaacentuar uma estratégia de vitória.

Era característico das tácticas negociais de Hanói recusar até mesmo umaoferta tão unilateral. Na realidade, Hanói usou a oferta como rede de segurança

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para proteger o esforço militar total que estava prestes a desencadear. Poucosdias depois o meu canal com Hanói foi cortado. Os Norte-Vietnamitas, tendocompreenciido que o preço da cessação dos bombardeamentos americanos eratão modesto como abstruso, procuraram aumentar as pressões sobre Johnsonantes de se sentarem para falarem e aceitarem a proposta. Faltavam apenasalguns meses para a ofensiva do Tet,

Hanói tinha pressentido correctarnenteque o crescente descontentamento dosAmericanos não suportaria mais o empate no Vietname do que o tolerara naCoreia. Porém, havia uma diferença qualitativa na natureza das controvérsiasinternas que se seguiram. A sensatez do envolvimento americano na Coreianunca fora contestada; o desacordo respeitara somente às medidas necessáriaspara ser bem-sucedido. Relativamente ao Vietname, o largamente generalizadoconsenso inicial quanto à política dos Estados Unidos evaporou-se de repente.Na Coreia os críticos da administração desejavam que os Estados Unidos fizes-sem mais; a alternativa à política de Truman fora a estratégia de escalada deMacArthur. No Vietname a esmagadora maioria dos críticos exigiam a reduçãodo esforço americano - e, a seu tempo, o abandono total; as opiniões iam desdea modificação da estratégia da América até à retirada incondicional. Na Corei aos adversários da América ter-se-iam defrontado com uma alternativa muito piorcaso a oposição tivesse vencido. No Vietname, depois de a extensão dos dilemasinternos se ter tornado óbvia, Hanói compreendeu rapidamente que uma diplo-macia de adiamento ai iada a pressões mil itares funcionaria a seu favor. A res-ponsabilidade dos irnpasses seria imputada à falta de iniciativa diplomática daadministração Johnson e as contínuas baixas americanas conduziriam a apelosao fim da escalada, se não ao abandono da guerra.

As críticas à política americana relativa ao Vietname começaram de formabastante convencional, sendo levantadas questões razoáveis quanto a saber se aguerra poderia ou não ser ganha e sobre a relação entre os meios e os fins. Em11 de Março de 1968 Walter Lippmann aplicou ao Vietname a sua já bemconhecida crítica de contenção. A América, argumentava, tinha-se excedido ea política de contenção estava a destruir qualquer equilíbrio racional entre osobjectivos nacionais e os recursos por meio dos quais poderiam ser realizados:

O facto é que os seus [de LBJ) objectivos de guerra são ilimitados: prometema pacificação de toda a Ásia, Para fins tão ilimitados não é possível ganhar umaguerra com meios tão limitados, Porque os nossos objectivos não têm limites, temosa certeza de que seremos «derrotados>",

Para simbolizar a irrelevãncia das categorias tradicionais de pensamentoquando aplicadas ao Vietname, Lippmann colocou a palavra «derrotados» entreaspas, querendo significar que o Vietname era irrelevante para a segurança daAmérica. Desse ponto de vista, a retirada 'fortaleceria a posição global daAmérica.

A mesma ideia já tinha sido defendida em 1966, quando o senador Fullbrightcriticara os Estados Unidos por sucumbirem à «arrogância do poder», confun-dindo o «poder com a virtude e as responsabilidades fundamentais com uma

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missão universal-?», Menos de dois anos antes Fullbright tinha admoestado deGaulle por «confundir a situação», propondo a neutralidade do Vietname. Naaltura Fullbright avisara que tal caminho poderia «desencadear uma cadeia deacontecimentos imprevisível, porque a França não é uma força militar impor-tante nern uma força económica importante no Extremo Oriente e, portanto, seráimprovável que consiga controlar ou influenciar grandemente os acontecimentosque a sua iniciativa poderá precipitar», Em 1964 Fullbright só discernira duasopções «realistas»: «a expansão do conflito de uma forma ou de outra ou umesforço renovado para apoiar a capacidade de os Sul-Vietnamitas prosseguirema guerra com êxito à escala actual»!'.

O que acontecera em menos de dois anos para persuadir o senador a degradaro estatuto do Vietname de vital para periférico? E por que reflectia arrogânciao facto de a administração Johnson ter, entretanto, levado a cabo ambas asrecomendações de Fullbright? Os dirigentes da América, fiéis aos seus valorestradicionais, não tinham ficado satisfeitos por a assistência americana aoVietname ter sido fundamentada com base na segurança, que, mais cedo ou maistarde, iria permitir um debate sobre os custos e os benefícios, Pondo a questãoem termos de levar a democracia ao Sueste asiático, abandonaram todos ospontos de paragem lógicos ao entrarem e - do modo como as coisas se desen-rolaram - também ao saírem.

Os críticos da guerra viajavam pela mesma estrada que os dirigentes que aconduziam, mas na direcção oposta. Começaram por basear as suas conclusõesem fundamentos eminentemente práticos: era impossível vencer a guerra, oscustos excediam os benefícios e a América estava a exceder-se. Mas os críticos,que eram produto do mesmo idealismo americano, alargaram rapidamente a suacrítica ao plano moral, em duas fases: primeiro, com o fundamento de que,moralmente, havia realmente pouca diferença entre Hanói e Saigão, o queclaramente eliminava a justificação ideológica para a guerra; em segundo lugar,a persistência da América na guerra reflectia, não um erro prático de julgamento,mas uma podridão moral no cerne do sistema americano. Consequentemems,uma política que tinha gozado de apoio quase universal transformou-se, noperíodo de dois anos, em condenação da moralidade de toda a política externaamericana e, pouco tempo depois, numa crítica à própria sociedade americana,

No período pós-Segunda Guerra Mundial a América tivera a sorte de nuncaser obrigada a escolher entre as suas convicções morais e a sua análise estraté-gica. Todas as decisões-chave tinham sido prontamente justificadas como visan-do a promoção da democracia ou a resistência à agressão. Porém, o Vietnamedo Sul não podia, nem mesmo com muita imaginação, ser descrito como demo-crático. Todos os regimes que se sucederam a Diem se sentiram cercados; os ge-nerais sul-vietnamitas que até então eram desconhecidos do público não se mos-travam ansiosos por testarem a sua popularidade nas sondagens. Um argumentoconvincente poderia ser o de que os novos governantes de Saigão er un muitomenos repressivos do que os de Hanói. Na realidade, este argumento era frequen-temente apresentado, mas nunca tomado a sério, O relativismo moral era ina-ceitável para uma nação educada na fé na absoluta distinção entre o bem e o mal.

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Os críticos argumentavam cada vez mais que, se Saigão não conseguiasatisfazer plenamente os padrões democráticos - o que em consciência sabiamser impossível -, merecia ser abandonada. À medida que o tempo passava, ateoria dos dominós, que fora a premissa fundamental de segurança em que sebaseara a defesa do Vietname durante quase vinte anos, foi, primeiro, abando-nada e, depois, ridicularizada. Num dos artigos mais penetrantes, RichardRenfield, professor de Yale, combinou a crítica da ultrapassagem dos limitesestratégicos de Lippmann com a acusação de que arnbas as partes do conflito doVietname eram moralmente equivalentes: daí que a guerra não tivesse sentido.No Vietname, argumentava, a América não estava a resistir à agressão, mas,sobretudo, a apoiar forças conservadoras contra a mudança social",

Os críticos apontavam as muitas inconsistências de Saigão para demonstra-rem a inaceitabilidade moral do esforço americano. Em 1968 Jarnes Restoncolocou a questão que atormentava tantos americanos: «Qual é o fim capaz dejustificar tal massacre? Como poderemos salvar o Vietname se o destruirmos nabatalhaP'» Em 1972 Fullbright declarou que Johnson nunca entendera que «aquestão não era entre um "povo livre" e um "regime totalitário", mas entresistemas totalitários rivais; de facto, esta não era uma guerra de agressão inter-nacional, "directa" ou de outro tipo, mas uma guerra anticolonial, primeiro, e,em seguida, uma guerra civil '!».

Nessa altura a televisão começara a tomar-se popular. As emissões regularesda noite atraíam audiências na ordem das dezenas de milhões, muito mais gentedo que até mesmo o mais popular jornalista da imprensa escrita podia sonharatingir durante toda a sua vida. E possuíam a vantagem das imagens visuais, quefuncionavam como editorial permanente. Os noticiários evidenciavam umabusca de drama e de espectáculo que, mesmo com a melhor das intenções, nemsempre era equilibrada, que mais não fosse porque era tecnicamente impossívelfilmar as atrocioades cometidas pelos Vietcongues nas áreas sob o seu controle.O apresentador das notícias tornou-se uma figura política, no sentido de que sóum presidente poderia chegar a tanta gente - e certamente não tão regularmente.

Durante toda a era do pós-guerra os Americanos responderam aos apelos dosseus dirigentes ao sacrifício a fim de apoiarem sociedades distantes. No cadinhodo Vietname o excepcionalismo americano - a crença na aplicabilidade univer-sal dos valores americanas -, que tinha conferido tanta força à reconstrução dopós-guerra, começou a virar-se contra si próprio e a adoptar U!T1aespécie depolítica de terra queimada moral. À medida que as baixas aumentavam, a críticaà política internacional americana passava da contestação da eficácia dessapolítica para a constestação da sua própria necessidade - de um ataque ao valordo aliado vietnamita da América para um ataque ao valor da própria América,não apenas em relação ao Vietname, más também globalmente.

O que conferiu especial pungência aos ataques à capacidade da América paraconduzir uma política global foi o facto de terem a sua origem, em larga escala,nas universidades e na comunidade intelectual, que até aí produzira os maisdedicados defensores do idealismo internacional americano". Envolvidos porKennedy no processo de tomada de decisões, muitos rnentores intelectuais

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sentiram-se abalados quando o seu assassínio pôs abruptamente termo à NovaFronteira e ainda mais abalados pelos protestos dos seus estudantes contra 11

guerra. As modalidades de saída do Vietname deixaram de ter qualquer interessepara eles; sob pressão dos próprios alunos, muitos professores inclinavam-secada vez mais no sentido de uma retirada unilateral e incondicional.

Questionando as certezas de vinte anos de uma política externa bipartida, aala radical dos protestos contra o Vietname ridicularizava o anticornunisrnocomo um sentimento arcaico: «Recusamo-nos a ser anticomunistas.», disseramdois peregrinos a Hanói, Staughton Lynd e Tom Hayden. «Insistimos em afirmarque o termo perdeu todo o anterior conteúdo específico. Ao invés, funcionacomo a categoria-chave do pensamento abstracto que os Americanos utilizampara justificarem uma política externa que muitas vezes não é mais sofisticadado que a pura e simples violação".» Mesmo Hans Morgenthau, o decano dosfilósofos americanos do interesse nacional, foi levado a proclamar a imoralidadeda América: «Quando falamos da violação das regras bélicas, temos de noslembrar de que a violação fundamental, aquela de que emergem todas as outrasviolações específicas, é o travar de uma guerra como esta".»

Para os dirigentes da geração que fora educada nas verdades essencialmenteincontestáveis da guerra fria, estas manifestações eram verdadeiramente cho-cantes. Lyndon Johnson, ele próprio um dos criadores do consenso do pós--guerra, não sabia como lidar com um ataque comandado pelos homens emulheres das mais importantes universidades, por cuja aprovação ansiava naproporção directa da sua incapacidade para dialogar com eles. David Halbertam,que em 1966 era um crítico acerbo da guerra, afirmara anteriormente «que oVietname faz parte desse empenhamento global dos EUA [...] é talvez uma dascinco ou seis nações do mundo verdadeiramente vitais para os interesses dosEUA. Se é assim tão importante, pode merecer um maior empenhamento danossa parte>'».

Johnson reagiu apelando às ortodoxias dos seus antecessores, de Truman aKennedy. Mas estas já soavam aos ouvidos dos críticos como ultrapassadas emesmo irrelevantes. As suas ofertas de negociação incondicional foram recusadaspelos dirigentes de Hanói, que eram demasiado subtis na sua arte para propor-cionarem uma válvula de escape para os motins internos na América. Paraenfrentar a maré, Johnson modificou gradualmente a sua posição negocial,deixando de exigir a retirada dos Norte- Vietnarnitas antes de os Americanossuspenderem as hostilidades, para passar à fórmula de San Antonio, em que secomprometia a suspender os bombardeamentos antes de dar início às negocia-ções; e também deixou de recusar-se a falar com a frente de Hanói no Sul, aFrente de Libertação Nacional (ou FLN), passando a concordar em falar com osseus representantes-individuais e, finalmente, concordando com a participaçãoda FLN nas negociações como entidade política. Tentou também seduzir Hanóicom um programa de ajuda económica a toda a Indochina. Cada uma destasjogadas foi considerada por Hanói inadequada e pela maioria dos críticos ame-ricanos não sincera. O debate nacional polarizou-se entre a vitória, para a qualnão existia estratégia, e a retirada, para a qual não existia política.

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Os críticos mais moderados da administração - o grupo ao qual eu pró-prio pertencia - incitavam a um compromisso negociado. Porém, o ver-dadeiro obstáculo a esta solução não era Washington, mas Hanói. Os comu-nistas norte-vietnamitas não tinham passado uma vida inteira de luta mortalpara a terminarem a partilhar o poder ou a reduzir a escala da guerra deguerrilha, o seu meio de pressão mais eficaz. Os comunistas vietnamitasnão eram mais capazes do que o fora ,E~ta\il)e uma geração antes de se con-tentarem com a esperança, igualmentê irrealista, de uma negociação inde-pendente de um qualquer equilíbrio de poder subjacente ou apenas deixadaao próprio processo de negociação. As frequentes garantias de Johnson de queseria flexível e aberto pareciam a Hanói, simultaneamente, ingênuas e irrele-vantes.

Ironicamente, a América teria de pagar pelo compromisso o mesmo preçoque pela vitória. Hanói s6 aceitaria um compromisso se se sentisse demasiadofraca para vencer - ou seja, depois de ter sido derrotada. A América só poderiademonstrar moderação depois da guerra, não no decurso dela. Todas as «solu-çõese-padrão - tanto da administração como dos críticos moderados - foramtomadas irrelevantes pela implacável determinação de Hanói. Um cessar-fogo,que aos Americanos parecia uma forma desejável de pôr termo à matança,segundo o ponto de vista de Hanói, tiraria aos Americanos o incentivo pararetirarem. Um governo de coligação, que não seria mais do que uma pena nocaminho da tomada do poder pelos comunistas, parecia aos dirigentes de Hanóique garantiria a sobrevivência de Saigão.

A verdadeira opção com que a América se defrontava não era entre a vitóriae o compromisso, mas sim entre a vitória e a derrota. A diferença entre os Norte--Vietnamitas e os Americanos era que Hanói compreendera essa realidade, aopf'SSO que nem Johnson nem os seus críticos mais moderados conseguiamadmiti-Ia. Os praticantes da Realpolitik em Hanói estavam convencidos de queo destino do Vietname seria resolvido pelo equilíbrio das forças no terreno-não à mesa de conferências.

Em retrospectiva, restam poucas dúvidas de que a América não necessitariade pagar qualquer preço pela abertura das negociações. Hanói já tinha decididonegociar antes das eleições presidenciais de 1968, mesmo que apenas paracomprometer ambos os partidos políticos numa solução negociada. Mas osdirigentes de Hanói não estavam dispostos a entrar em negociações sem primeirofazerem um esforço importante no sentido de inclinarem a situação militar a seufavor. A ofensiva do Tet, que ocorreu no ano novo lunar, ou Tet, tornou-se oinstrumento privilegiado para melhorarem a sua posição negocia!. Todos osanos, incluindo 1968, eram negociadas tréguas nessa época. Apesar disso, em 30de Janeiro as forças comunistas lançaram uma grande ofensiva contra trintacapitais de província sul-vietnarnitas. Conseguindo uma surpresa total, tomaramalvos importantes em Saigão, atingindo mesmo os terrenos da embaixada dosEstados Unidos e o centro de operações do general Westmoreland. Hue, a antigacapital, caiu nas mãos dos comunistas, que a defenderam durante vinte e cincodias.

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Militarmente, a ofensiva do Tet é hoje reconhecida como uma importantederrota comunista", Foi a primeira vez que a guerrilha emergiu e se envolveuem combate aberto. A decisão de lançar um grande ataque a nível nacionalol.rigou-a a lutar em campos de batalha que normalmente não escolheria.O superior poder de fogo dos Americanos destruiu quase toda a infra-estruturada guerrilha, tal como os livros de estratégia do exército dos Estados Unidostinham prevjsto. .Durante o resto da guerra as guerrilhas vietcongues deixaramde ser uma força efectiva; quase toda a luta foi travada pelas unidades regularesdo exército norte-vietnamita.

Em alguns aspectos, a ofensiva do Tet justificou a doutrina militar daAmérica. Apostando tudo num único lance de dados, os comunistas aceitarama batalha de desgaste que a estratégia americana desejara. Talvez tenham sofridobaixas mais pesadas do que os relatórios oficiais sugerem, ou talvez tenhamcontado com a impaciência da América em iniciar negociações para Ihes servi-rem de rede de segurança.

Não obstante, a ofensiva do Tet transformou-se numa impor (ante vitóriapsicol6gica para Hanói. Podemos reflectir com alguma melancolia no curso dosaçontecimentos caso os dirigentes americanos tivessem exercido pressão sobreas principais unidades norte-vietnarnitas, agora privadas do escudo da guerrilha,Se a América tivesse realmente ido a fundo, talvez Johnson tivesse conseguidoobter as negociações incondicionais que havia proposto e talvez mesmo umcessar-fogo incondicional. Isto é sugerido pela rapidez - menos de setenta eduas horas - com que Hanói aceitou a nova oferta de Johnson para negociar;acompanhada de uma cessação parcial dos bombardeamentos baseada na fórrnu-Ia de San Antonio.

Porém, os dirigentes americanos estavam fartos e não apenas porque aopinião pública os abandonara. As sondagens demonstravam que 61 % dosamericanos se consideravam falcões e 23 % pombas, ao passo que 70 % erama favor da' continuação dos bornbardeamentosw, O grupo que perdeu a calmarepresentava exactamente as figuras da situação, que sempre tinham apoiado aintervenção. Johnson reuniu um grupo de dirigentes das administrações anterio-res, na maioria falcões, incluindo homens decididos como Dean Acheson, JOI1OMcCloy. McGeorge Bundy e Douglas Dillon, entre outros. Por larga maioria,aconselharam o fim da escalada e a liquidação da guerra começou. Dadas asatitudes de Hanói, ainda não totalmente compreendidas, esta decisão tinha designificar o início da derrota. Para dizer a verdade, concordei de uma maneirageral com estes «sábios», o que demonstra que os pontos de viragem são maisfáceis de reconhecer em retrospectiva do que no momento em que ocorrem.

Em 27 de Fevereiro de 1968 o apresentador de televisão Walter Cronkite,então no auge da sua influência, enviou ondas de choque por toda a Casa Brancaao prever o desastre:

Parece agora mais certo do que nunca que a experiência sangrenta do Vietnamevai terminar com um empate, O quase certo cenário de guerra deste Verão só poderáterminar com verdadeiras negociações bilaterais ou numa terrível escalada; e emcada meio que usarmos de escalada o inimigo poderá igualar-nos l..,J".

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II

A última afirmação era questionável em grande medida; não podia simples-mente ser verdade que o Vietname do Norte fosse o único país da história amostrar-se impermeável a qualquer cálculo concebível de riscos e benefícios.Era verdade que tinha um limiar de sofrimento superior à maioria dos países,mas não obstante existia um limiar. E a última coisa em que Hanói estavainteressada era em negociações bilaterais. Ainda assim, a hipérbole de Cronkitecontinha uma verdade importante: o ponto de ruptura de Hanói excedia clara-mente o da América.

O WaLl Street Journal, que até aí tinha apoiado a administração, tambémabandonou o barco, perguntando retoricamente se os desenvolvimentos estavama «reduzir a nada os nossos meritórios objectivos iniciais? ... Se praticamentenada deverá restar de governo ou nação, o que há para ser salvo, para quê?»O jornal pensava que, «se ainda não o fez, o povo americano devia estar apreparar-se para aceitar a perspectiva de que todo o esforço no Vietname podeestar condenado»:", Em 10 de Março a NBC concluiu um programa especialsobre o Vietname com aquilo que estava a tomar-se rapidamente um refrãovulgar: «Pondo de lado todos os outros argumentos, chegou a hora de decidirmosse não será vão destruirmos o Vietname a fim de o salvarmos".» Em 1"5 deMarço a revista Time juntou-se ao coro: «1968 trouxe consigo a consciência deque a vitória no Vietname - ou mesmo um acordo favorável- pode não estarao alcance da maior potência do mundo"»

Os principais senadores entrararn na refrega. Mansfield declarou: «Estamosno lugar errado e a travar o tipo de guerra errado".x Fullbright levantou a ques-tão da «autoridade da administração para expandir a guerra sem o consentimentodo Congresso e sem qualquer discussão ou consideração pelo Congresso»:",

Sob o impacto de tais ataques, Johnson cedeu. Em 31 de Março de 1968anunciou uma cessação parcial unilateral dos bornbardearnentos na área a nortedo paralelo 20, que seria seguida de uma cessação total, assim que se iniciassemnegociações substantivas. Declarou que mais nenhuns reforços substanciais se-riam enviados para o Vietname e reiterou a garantia frequentemente invocadade que «o nosso objectivo no Vietname do Sul nunca foi a aniquilação doinimigo»!'. Seis semanas depois de Hanói ter violado um cessar-fogo formal,lançando um ataque devastador a instalações americanas e matando milhares decivis só em Hue, Johnson convidou os dirigentes de Hanói a participarem nodesenvolvimento econórnico do Sueste asiático, uma clara sugestão de perspec-tivas de ajuda económica. Anunciou também que não se recandidataria à pre-sidência. O presidente que enviara 500000 soldados para o Sueste asiáticodeixaria ao seu sucessor a tarefa de os fazer regressar.

Foi uma das decisões presidenciais mais funestas do período do pós-guerra.Se Johnson não tivesse anunciado a sua dramática renúncia, poderia ler dispu-tado a eleição sobre a questão do Vietname e garantido um mandato popular deuma forma ou de outra. Se a saúde não lhe permitia arriscar um segundomandato, Johnson devia ter mantido a pressão sobre Hanói durante o resto doseu mandato a fim de deixar abertas ao seu sucessor as melhores opções possí-veis, para qualquer das hipóteses em que ele e o Congresso concordassem após

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as eleições. Dada a fraqueza de Hanói no rescaldo do Tet, uma política depressão em 1968 teria quase certamente produzido urna muito melhor postura denegociação do que aquela que finalmente surgiu.

Ao deter a escalada e, simultaneamente, renunciar à candidatura e propornegociações, Johnson combinou todas as desvantagens. O seus sucessores poten-ciais rivalizaram uns com os outros em promessas de paz, mas sem Ihes defini-rem os termos. Assim, quando as negociações se iniciaram, estava n criadas ascondições para a desilusão pública. Hanói ganhara uma cessação dos bornbardea-mentos em troca de discussões essencialmente processuais e foi-lhe dada aoportunidade de restaurar as suas infra-estruturas no Sul, embora com pessoalnorte-vietnamita. Não tinha qualquer incentivo para entrar num acordo comJohnson e tinha todas as razões para repetir o mesmo teste de força com o seusucessor.

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