192

Direito e Barbarie No Mundo Moderno

Embed Size (px)

Citation preview

  • Antnio Brito

  • Antonio Guimaraes Brito

    DIREITO E BARBRIE NO (I)MUNDO MODERNO:a questo do Outro na civilizao

    2013

  • Universidade Federal da Grande DouradosEditora UFGD

    Coordenador editorial : Edvaldo Cesar MorettiTcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho

    Redatora: Raquel Correia de OliveiraProgramadora visual: Marise Massen Frainer

    e-mail: [email protected]

    Conselho Editorial Edvaldo Cesar Moretti | Presidente

    Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorPaulo Roberto Cim Queiroz

    Guilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti

    Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa

    Impresso: Grfica Triunfal | Assis | SP

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD

    909B862d

    Brito, Antonio Jos Guimaraes Direito e barbrie no (I) mundo moderno : a questo do Outro

    na civilizao / Antonio Jos Guimaraes Brito Dourados-MS : Ed. UFGD, 2013.

    189 p.

    ISBN: 978-85-8147-040-5Possui referncias.

    1. Civilizao. 2. Povos Brbaros. 3. Barbrie. I. Ttulo.

  • SUMRIOAPRESENTAO 07

    1 GENEALOGIA HISTRICA DA BARBRIE

    1.1 Os brbaros no mundo greco-romano 11

    1.2 O herege e a barbrie na viso medieval 16

    1.3 A barbrie dos povos indgenas e a conquista do novo mundo 19

    1.4 Escravismo e barbrie na frica negra 34

    2 EPISTEMOLOGIA (DES)COLONIAL DA BARBRIE

    2.1 Barbrie e o processo civilizador no projeto da modernidade: autoconscincia da corte e cultura dos costumes

    41

    2.2 Mito evolucionista: selvageria, barbrie e civilizao e o racismo cientfico

    55

    2.3 Epistemologia do discurso (des)colonial latino-americano 68

    2.4 Barbrie e (trans)modernidade 84

    3 O RECONHECIMENTO DA EXTERIORIDADE JURDICA E CONCRETA DO SER NO OUTRO: A DESCOLONIZAO JURDICA DA BARBRIE

    3.1 Totalizao ontolgica: barbrie do sujeito 93

    3.2 Barbrie esclarecida e o fracasso civilizatrio 99

    3.3 Filosofia da alteridade, subjetividade e responsabilidade:o face a face

    107

    3.4 O ser e o no-ser na amrica latina 119

  • 3.5 A (re)forma jurdica de ver o outro com base na ticaconcreta da alteridade: o no-brbaro

    125

    3.6 Anticolonialismo, ps-colonialismo, descolonialismoe colonialidade

    129

    3.7 Reconhecimento, exterioridade jurdica e os movimentossociais populares: processo concreto de luta contraa barbrie

    143

    3.8 O movimento dos povos indgenas no Brasil como processo de descolonizao da barbrie 149

    3.9 Da civilizao e barbrie para o direito alteridade 165

    REFERNCIAS 175

  • 7APRESENTAO

    DESCOLONIZAR PRECISO

    Jorge Eremites de Oliveira

    Uma das vantagens de se trabalhar na academia poder conhecer pessoas cujo brilhan-tismo, criatividade, simplicidade, tica e compromisso social impressionam desde o primeiro momento. Foi o que aconteceu comigo quando tive a oportunidade de conhecer o professor Antnio Jos Guimares Brito, em 2010, com quem desde ento tenho mantido profcuas discusses sobre nosso devir na universidade.

    Embora tenhamos distintas trajetrias de vida acadmica, um dos pontos que nos apro-xima diz respeito reflexo crtica sobre as cincias construdas no Ocidente, bem como acerca do dilogo que marca as interfaces entre a Antropologia e o Direito na atualidade. Por isso mes-mo me senti honrado e desafiado ao receber o convite de prefaciar este livro, provocativamente intitulado Direito e Barbrie no (I)Mundo Moderno: a questo do Outro na civilizao. Trata-se da publicao de uma tese de doutorado defendida com sucesso no mesmo ano em que o autor ingressou ao quadro docente da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

    Durante a leitura da obra, lembrei-me que, ao chegar a Dourados, em 1996, quando passei a ministrar as disciplinas de Histria Antiga e Historiografia Brasileira no Curso de His-tria do antigo Campus de Dourados da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, atual UFGD, no imaginava que anos mais tarde estaria to envolvido com a temtica indgena contempornea. Tampouco cheguei a pensar que teria a experincia de trabalhar com opera-dores do Direito e conhecer de perto certas sutilezas do mundo jurdico, algo que cada vez mais exigido durante a elaborao de laudos antropolgicos voltados tomada de decises no mbito dos poderes constitudos na Repblica. De fato, em Mato Grosso do Sul no raramente

  • 8somos escolhidos por certos objetos de estudo, por assim dizer, para determinados trabalhos e dessa forma seguimos em frente com novos desafios registrados na pauta do dia.

    Na verdade, esta situao tem a ver com um conjunto de assuntos marcantes no estado, cujo estudo por vezes custa caro a quem se prope a compreend-los com afinco e a questio-nar as verdades absolutas impostas pelas elites colonialistas locais. Refiro-me aqui, apenas para exemplificar, temtica indgena e no ao termo questo indgena, pois a segunda expresso pode denotar algo como problema, isto , o problema do Outro, aquele que percebido pela maioria da populao regional como o brbaro que atrapalha o progresso da civilizao e da sociedade nacional.

    Nesta perspectiva, apresento dois males que marcam as cincias no Ocidente, inclusive o Direito, que so o evolucionismo e o etnocentrismo, analisados com sofisticao e objetividade neste livro. Isso porque nos dias de hoje, o evolucionismo e o etnocentrismo constituem faces de uma mesma moeda, pois tm uma genealogia histrica em comum e esto de mos dadas aonde quer que o colonialismo se faa presente. So como lentes dos culos com os quais perce-bemos o Outro e, portanto, tm a ver com valores que marcam nossa percepo sobre o mundo e acerca daquilo que a priori julgamos ser certo ou errado. Contudo, o fato que ningum nasce com esses valores. Os seres humanos os aprendem na vida em sociedade e isso ocorre na famlia, na escola ligada educao formal, no local de trabalho, entre colegas da partida de futebol nos finais de semana etc.

    Por isso, a cada captulo que li deste livro, aprendi mais e mais sobre Direito, Antro-pologia e Histria, bem como acerca da importncia iminente de descolonizarmos as cincias construdas no Ocidente, com vistas construo de outro mundo possvel. Mas, afinal de contas, como se pode falar em descolonizar se no Brasil o Perodo Colonial oficialmente ter-minou em 1822, quando Dom Pedro I teria bradado, s margens do Ipiranga, a clebre frase Independncia ou morte?

    Ora, o colonialismo a que me refiro no tem a ver com um passado longnquo e distante de nossa realidade contempornea. Tem mais a ver, isso sim, com um complexo e dinmico conjunto de relaes sociais e de poder, prticas, discursos, procedimentos, posturas, leis, sa-beres, rotinas administrativas etc., que marcam a relao do Estado e das elites das sociedades

  • 9nacionais para com o Outro. Este Outro, grafado com O maiscula ps-moderna para marcar a alteridade, todo aquele que, por ser diferente, visto como desprovido da humani-dade e, por conseguinte, percebido como brbaro. Sim, em nome de um suposto universalismo civilizatrio, negam-se a humanidade ao Outro, em geral: ndios, negros, favelados, sem-terra, sem-teto, homossexuais e muitas outras pessoas para as quais no se reconhece a dignidade inerente ao ser humano.

    Se o colonialismo portugus um dia teve fim por aqui, outras formas de colonialismo passaram a se fazer presentes desde a constituio do Estado Nacional e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Refiro-me, para ser mais especfico e citar um exemplo, ao chamado colonialismo interno, que ocorre no campo econmico, poltico e sociocultural, tal qual apon-tado desde a dcada de 1960 por Pablo Gonzlez Casanova1 e Roberto Cardoso de Oliveira.2 Trata-se de uma categoria particularmente significativa para as coletividades humanas que a ele se opem, em busca do reconhecimento de direitos e da construo de autonomias possveis dentro do prprio Estado-Nao.

    Descolonizar, portanto, tem a ver com o exerccio da alteridade vis--vis com o Outro, com a tica e com o pensamento crtico frente aos desafios apresentados todos os dias no mun-do moderno, marcado pelo universalismo dominador e seu projeto civilizatrio. isso o que nos ensina Antnio Jos Guimares Brito neste seu livro. O autor assim o faz, pois, a partir de refinadas reflexes sobre o processo histrico e sociocultural que marca a construo do Outro no Ocidente, desde a antiguidade clssica at o Brasil atual. Apresenta uma genealogia histrica e uma apurada anlise epistemolgica sobre a barbrie, inclusive em dilogo aberto relativo ao evolucionismo que marca a construo das cincias humanas e sociais na Europa e nas Am-ricas. A partir da, apresenta um estudo de igual importncia sobre a construo do Outro no Direito e o processo em curso sobre a descolonizao jurdica da barbrie.

    1 (1) GONZLEZ CASANOVA, Pablo. Sociedad plural, colonialismo interno y desarrollo. Amrica Latina Revista del Centro Latinoamericano de Ciencias Sociales, Mxico DF, 6, 3, p:15-32, 1963. (2) . Co-, 3, p:15-32, 1963. (2) . Co-3, p:15-32, 1963. (2) . Co-, p:15-32, 1963. (2) . Co-:15-32, 1963. (2) . Co-, 1963. (2) . Co-. (2) . Co-. Co-. Co-lonialismo interno: uma redefinio. In: BORON, Atlio A. et al. (orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: Clacso, 2006, pp. 395-419.2 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A noo de colonialismo interno na etnologia. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A sociologia do Brasil indgena. Braslia, Editora UNB,1978 [1966], pp.75-82.

  • 10

    Por tudo isso, e muito mais, esta obra se apresenta como uma nova e importante refe-rncia a estudantes universitrios e profissionais de vrios campos do conhecimento, sobretudo do Direito, Antropologia, Relaes Internacionais, Histria, Jornalismo e Sociologia, dentre outros que tiverem interesse no assunto. Trata-se, com efeito, de um estudo que no est isola-do no tempo e espao, pelo contrrio. Faz parte de um movimento maior, contemporneo ao que alguns chamam de estudos ps-coloniais, voltado construo de outro Direito. Isso exige um processo de descolonizao do mundo jurdico e de desbarbarizao do Outro, sem o qual impossvel a constituio de um novo Estatuto Jurdico para a humanidade.

    Boa leitura!

  • 11

    1 GENEALOGIA HISTRICA DA BARBRIE

    Gostaria de comear por um esboo da antropologia da barbrie humana. (MORIN, 2009, p. 11)

    1.1 OS BRBAROS NO MUNDO GRECO-ROMANO

    Pois se tudo na Grcia vem de Homero, tudo de Homero vem da barbrie.(MATTI, 2002, p. 91)

    Deste modo a Antiguidade confundia tudo o que no participava da cultura grega depois Greco-romana) sob o nome de brbaro.

    (LEVI-STRAUSS, 1952, p. 20)

    O termo brbaro surgiu no perodo grego antigo, para tratar de todos aqueles que no pertenciam ao mundo grego, ou seja, no falavam o grego (NOVAES, 2004). A palavra brbaro tem origem no termo palrador e apareceu pela primeira vez como indicativo da rudeza da lngua, em um texto de Homero (1962, p. 83), no verso 867, do canto II da Ilada. Trata-se de uma referncia de Homero lngua falada pelo povo Crio, completamente incompreens-vel para o grego. O entrave de se compreender a lngua dos outros povos foi o sentido inicial do termo brbaro na antiguidade grega. A impresso da rudeza da lngua se estendeu, com o tempo, grosseria dos costumes, como tambm ao no reconhecimento do direito do Outro. Para Matti (2002), brbaro, provavelmente, tenha surgido de uma onomatopeia proveniente de bambaino, ou seja, bater os dentes, uma pronncia confusa e desarticulada. Mais tarde, a ideia de barbrie ultrapassou a questo unicamente da rudeza da lngua, implicando uma con-dio humana inferior. Foi na incompreenso da linguagem que a primeira fratura entre civili-zado e brbaro surgiu, denunciando a histrica oposio em relao ao Outro. Na Antiguidade, o Mundo Grego fundamentou essa oposio, limitando a esfera do humano ao crculo da sua

  • 12

    cultura helnica. A barbrie resume a sntese da negao do Outro, a excluso do diferente, e o incio desse processo est na linguagem.

    Para Matti (2002, p. 73), [...] os gregos haviam sentido obscuramente que a unidade de sua civilizao [...] provinha da pureza de uma lngua e de um mundo a que os brbaros no tinham acesso. A distino entre gregos e brbaros, no sentido de povos superiores versus inferiores foi se consolidando no pensamento grego, de tal maneira que foi justificada a escra-vido natural dos brbaros tanto por Plato como por Aristteles. Como ressalta Poumarde (2004, p. 46), [...] o mundo habitado era uma representao circular e etnocntrica. Umbigo do mundo era Delfos, em volta os helenos, e na extremidade, os brbaros. Fencios, persas, egpcios, cartagineses, etruscos, e principalmente os distantes etopes, todos eram brbaros. A condio de brbaro implicava consigo a ausncia do direito de reconhecimento.

    Nesse sentido, observa o filsofo francs Matti (2002, p. 73), [...] o mundo grego bri-lhava assim a partir de seu prprio centro, como uma roupagem sagrada, para expor a ordem e a beleza do cosmos que havia dominado o caos inicial.

    Em uma tragdia de Eurpedes, Ifignia exclamou: Deve o brbaro obedecer ao grego, minha me, e no o inverso, pois eles so escravos e ns somos homens livres (MATTI, 2002, p. 83). Desde a Antiguidade, a barbrie imaginada em relao ao Outro, construda com base na miopia etnocntrica, serve de justificativa para se estabelecer relaes de poder e domnio.

    Um dos textos mais antigos e mais completos sobre a relao entre barbrie e civilizao foi escrito pelo gegrafo grego Estrabo de Amisea (64 a.C. a 24 d.C.). Sua obra chamada Geo-grafia, com 17 volumes, retrata a viso romanizada do mundo, em que todos os outros povos, exceto os romanos e gregos, eram brbaros. Estrabo associou a condio da barbrie aos dife-rentes modos de produo. Enquanto os povos adiantados ou civilizados no sentido de urba-nos dedicavam-se agricultura, comiam po e localizavam-se nas plancies frteis, os brbaros eram combatentes nmades, alimentavam-se de carne e leite e estavam permanentemente em armas. Esses povos, na perspectiva de Estrabo, no tinham outro recurso seno saquear, pois estavam afastados das terras arveis. Trs caractersticas assumem a ideia de Estrabo de brba-ro: a vida fora das cidades, o domnio da brutalidade e, principalmente, o modo de produo com sua localizao geogrfica. Os brbaros no eram povos agrcolas, viviam nas montanhas, em terras menos frteis. Segundo Peschanski (1993), o primeiro trao que os gregos forjaram

  • 13

    dos brbaros a belicosidade dos povos no-gregos. Como relata Tucidides (1966, p. 169), [...] todos os que a se encontravam, mulheres, crianas, foram mortos imediatamente, junto com as bestas e todos os seres vivos. Pois esse povo brbaro dos mais sanguinrios, quando no tem nada a temer. Xenofonte (1967, p. 28) tambm relata que [...] faltam aos brbaros a ordem e sobram a falsidade e a incapacidade de progredir.

    Evidentemente, tanto os gregos, romanos e futuros cristos latinos agiram em muitos momentos com barbrie extrema, no sentido de absoluta crueldade. Como assinala Matti (2002, p. 135), [...] os gregos conduziam-se s vezes como brbaros, os romanos possuam prticas to brutais quanto aos seus invasores, e os cristos, por seu turno, parecero s vezes abdicar de sua f e mostrar-se menos fiis ou imorais que os brbaros.

    Comparando com os gregos, em certa medida, os romanos foram quanto alteridade mais pluralistas. Roma se sentia e se via to plena e soberana que as relaes com os povos brbaros chegaram a ser at amistosas. Isso em face da prpria cultura etnocntrica romana. O Outro tornava-se quase invisvel, sua existncia no importava para o olhar de Roma, pois tudo girava em torno dos interesses do vasto imprio.

    Os povos subjugados pelo poderio militar romano conservavam a liberdade de crena, costume e soberania nas polticas locais. O problema romano eram os tributos. Quanto ao restante, no se envolviam com a vida ntima e poltica dos povos dominados. Casamentos entre romanos e brbaros ocorriam, e o ttulo de cidadania romana era concedido em casos particulares. Como observa Poumarde (2004, p. 59), [...] os romanos no renunciaram a um certo pragmatismo em suas relaes com os outros povos. Esforaram-se para integr-los ao seu sistema, sem procurar assimil-los fora. Eram suficientemente confiantes em sua civili-zao [...]. Exemplos disso so as moedas romanas encontradas em tmulos germnicos, que revelam o intercmbio comercial, como tambm a utilizao dos godos como colonos a partir de 268-270 nas provncias prximas do Danbio e, ainda, a instalao dos francos em 296 na regio da Champagne por ordem do imperador Constncio (GIORDANO, 1985).

    Essa atitude romana teve seus efeitos jurdicos ao longo dos sculos, a formao de um direito comum entre romanos e peregrinos, o jus gentium (POUMARDE, 2004). Isso fica muito claro com o dito de Caracala, ou Constituio Antoniniana de 212 d.C., na qual o imperador outorgou a todos os peregrinos o direito da cidade romana, mas permitindo ter o

  • 14

    prprio direito privado aos que desejassem (POUMARDE, 2004). Esses exemplos revelam o carter mais pluralista dos romanos. Observa Matti (2002, p. 133) que Durante sculos, Roma havia permitido que as tribos brbaras se implantassem no mundo romano, aqum do limes, assinando contratos de federao nos territrios ocupados pelos invasores aos quais dava autonomia.

    Em Roma d.C., a relao com os povos brbaros ocorreu tanto de forma pacfica como belicosa. So duas polticas adotadas:

    De facto, h duas atitudes romanas tradicionais perante os brbaros. A princpio, confor-me as circunstncias e os homens, dispunham-se a acolher os povos que se lhes apinhavam porta e, mediante o estatuto de federados, respeitavam-lhes as leis, os costumes e a ori-ginalidade; desse modo lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito, soldados e camponeses minorando a crise de Mo de obra militar e rural. Os imperado-res que praticaram esta poltica no ficaram com boa reputao junto dos tradicionalistas, para quem os brbaros eram mais bestas que seres humanos e esta segunda atitude foi mais frequente (LE GOFF, 1995, p. 31).

    Durante as invases, os romanos, para se proteger, contaram com o apoio militar tam-bm dos brbaros, em troca de trigo e outras provises. Os povos brbaros guerreavam entre si, como tambm estabeleciam alianas (POUMARDE, 2004). O mundo romanizado, e depois cristianizado, passa tambm a ser barbarizado. Como destaca Matti (2002, p. 136), Todos descobriro no fundo de seu corao que a barbrie, assim como o bom senso, a coisa do mundo mais bem partilhada [...], e complementa [...] os jogos do circo dos romanos ou as converses foradas dos cristos no ficavam nada a dever aos despojos e trofus dos brbaros. Observa-se, por exemplo, o culto cristo, perseguido e proibido por Diocleciano em 304 d.C., passa em 313, por intermdio do dito de Milo, a ser lcito e livre, e depois imposto com o mesmo mpeto de barbrie. Apesar das relaes amistosas entre brbaros e romanos, inmeras batalhas foram travadas, principalmente na fronteira do Reno, em face dos povos germnicos. Tibrio chegou a renunciar margem direita do Reno, adotando para com os germnicos uma poltica defensiva, sinal da impossibilidade de romanizar a Germnia (GIORDANI, 1985, p. 29). O Reno, fronteira entre os romanos e germnicos, era, para a percepo romana, um obstculo natural entre o civilizado e o brbaro (LOT, 1945). A regio fria e cheia de florestas,

  • 15

    habitada pelos germanos, associava-se imagem do brbaro, guerreiro e cruel. Quando se menciona povos germnicos, refere-se a inmeros grupos de diferentes identidades, tais como os cimbros, teutes, queruscos entre outros (GIORDANI, 1985). O prprio Santo Ambrsio exortou os cristos a lutarem contra os brbaros inimigos e destitudos de humanidade (LE GOFF, 1995). importante frisar que imensa a variedade de povos sob a denominao de brbaros, como os hunos, alanos, visigodos, ostrogodos, vndalos, suevos, burgndios, francos, alamanos, bvaros, lombardos, avaros, anglo-saxes e celtas, entre tantos outros subgrupos que se estendiam do norte da frica, Bretanha e sia.

    no sculo IV do perodo cristo que iniciam de forma significativa as invases brbaras e o processo de queda do vasto e quase absoluto Imprio Romano. Conforme Giordani (1985), a primeira migrao desses povos est relacionada com a presena dos hunos nas plancies da Rssia meridional. De acordo com o autor, fugindo dos hunos, os godos penetraram no Im-prio Romano, logo aps os visigodos na Glia meridional e Espanha (418 d.C.), os vndalos e alanos atravessaram a Pennsula Ibrica e se instalaram na frica (429 d.C.) e, finalmente, os germanos, francos e burgndios ocuparam os pases baixos. Esse processo avanou a partir do sculo V, e j em 488 d.C., os ostrogodos se estenderam Itlia, os francos se espalharam pela Glia e os burgndios se estabeleceram no Vale do Rdano. A Bretanha tambm teve de ser defendida, no apenas dos saxes, mas tambm de vrios povos celtas, como os escotos e pictos (GIORDANI, 1985).

    Talvez, de todos os povos brbaros, os hunos tenham sido os mais prximos da imagem da barbrie, como aponta Le Goff (1995, p. 34). Desde a histria da China, esse povo nmade turco-mongol contado pelo vis da barbrie, pelo esprito blico, livre e independente. Ves-tidos de pele, corpo atarracado, pequena estatura, cabea redonda e grande, sempre raspada, bastos bigodes, olhos amendoados e acampados em tendas, assim os hunos eram descritos pelos chineses (GIORDANI, 1985, p. 49). A presena dos hunos na Rssia meridional provocou srias ameaas ao Imprio Romano. No sculo V d.C., o principal lder dos hunos, tila, de-vastou cidades e vilas romanizadas. Segundo Giordani (1985), em 447 d.C., ao sul do Dan-bio, em uma longa faixa deserta de cinco dias de marcha, separando o povo huno do imprio do oriente, tila exige mais um pesado tributo para manter-se em paz, todavia, em 450 d.C.,

  • 16

    partiu para Frana e Itlia e chegou prximo de Roma, aps cercar e queimar muitas cidades.Como se refere Said (1990, p. 68), Na Grcia e na Roma clssicas, os gegrafos, his-

    toriadores, figuras pblicas como Cesar, oradores e poetas contribuam para o fundo de saber taxonmico separando raas, regies, naes e mentes umas das outras [...]. significativo ressaltar que essa catalogao sempre era em benefcio prprio, a fim de provar a superioridade dos gregos e romanos.

    a partir do pensamento greco-romano sobre barbrie que se desenvolveu, ao longo da histria do Ocidente, a ideia antropolgica da negao do Outro, excludo da humanidade reconhecida, e de seu status jurdico.

    1.2 O HEREGE E A BARBRIE NA VISO MEDIEVAL Na transio da Antiguidade para alta Idade Mdia, a barbrie foi assumindo no Oci-

    dente uma conotao bastante impregnada da vocao religiosa. Isso se explica em face da rela-o dos povos brbaros espalhados pela Europa com a cristandade latina. Roma foi espremida pela horda da invaso brbara, e, tendo o cristianismo se oficializado, o sincretismo das cultu-ras pags se confundiram com os movimentos hereges e discordantes do episcopado catlico romano. Os brbaros convertidos em cristos guardaram velhas crenas e prticas litrgicas e, nesse sentido, impregnaram o cristianismo oficial de novos ares. Como afirma Matti (2002, p. 133), No havia mais que civilizar o brbaro, no que Roma havia investido o suficiente, e sim convert-lo, a fim de levar-lhes a salvao. No plano religioso, incontestvel o fato da adeso dos borgonheses e dos visigodos heresia ariana ter cavado um poo entre eles e os romanos fortemente enquadrados por um cristianismo catlico (POUMARDE, 2004, p. 61).

    A ideia da barbrie como negao do Outro por causa da diferena se fortaleceu no per-odo medieval, tendo como resultado a fogueira, a perseguio e o martrio. Por dissidncia reli-giosa, o rosto do brbaro excludo esteve presente no processo hegemnico do poder temporal da Igreja, pois o herege medieval trata-se, em boa parte, do brbaro convertido ou, em ltima instncia, a influncia da cultura pag dos brbaros no seio da cristandade latina romanizada. Como observa Le Goff (1995, p. 38), no entanto, por um curioso acaso que viria a mostrar-se carregado de consequncias, esses brbaros convertidos Ostrogodos, Visigodos, Burgndios,

  • 17

    Vndalos e, mais tarde, Lombardos tinham se convertido ao arianismo, que, depois do Con-clio de Nicia, era uma heresia.

    A converso dos brbaros ao cristianismo provocou um processo de sincretismo espiri-tual, dando origem inclusive a muitas das heresias perseguidas pelo catolicismo. A exemplo dos germanos, conforme destaca Queiroz (1988, p. 14), cristos romanos sentiram-se ameaados no s do ponto de vista material, mas tambm espiritual. E na verdade, a maioria dos germa-nos no eram mais pagos, eram herticos. Pode-se, inclusive, afirmar que o brbaro pago tornou-se o herege no mundo medieval. Tanto a Europa, como seu prolongamento no norte da frica, no incio do sculo VI d.C., estava submetida a herticos, como salienta Queiroz (1988, p. 16), Os visigodos na Espanha, na Aquitnia, na Provena, os borgndios no vale do Rdano, os ostrogodos na Itlia, os vndalos na frica e nas ilhas do Mediterrneo eram todos arianos.

    Nesse sentido, reafirmando a ideia da ligao entre a heresia e os brbaros, observa Gior-dani (1976, p. 112) que Ostrogodos, visigodos, vndalos, burgndios, suevos e lombardos haviam aceito o cristianismo sob a forma ariana e, portanto, eram considerados hereges pela populao catlica. Quanto aos francos, alamanos, alanos e anglo-saxoes eram pagos.

    Um exemplo significativo da influncia do paganismo brbaro nas heresias medievais o caso do herege Amaury de Bene, um dos professores mais ilustres em Paris. Chegou a formular uma concepo claramente pantesta, declarando que [...] tudo em tudo, tudo em deus, deus tudo. Deus simples, a natureza simples. Mas duas substncias simples no diferem entre si. Deus e a matria se confundem (FALBEL, 1977, p. 20). E acrescenta a ideia explici-tamente pantesta [...] deus se conhece refletindo-se na multido de criaturas onde a essncia a nica (FALBEL, 1977, p. 20). Alm das concepes religiosas pags, o brbaro tambm se projetou no herege medieval no tocante ao comportamento sexual desviado. Libertinagem, imoralidade, bruxaria, paganismo, tudo isso revela que o brbaro do mundo antigo greco--romano se transformara no herege medieval. Nos textos medievais, [...] desde muito cedo o hertico identificado como um louco, e a heresia sinnimo de insanidade. No menos rara a relao entre heresia e imoralidade, comportamento sexual aberrante [...] (QUEIROZ, 1988, p. 11). A bruxaria, presente na imagem da heresia, resultado do paganismo dos povos brbaros convertidos. Joana Darc prova suficiente dessa relao entre bruxaria e heresia

  • 18

    (QUEIROZ, 1988). As vozes misteriosas que a jovem Joana ouvia, remetia aos antigos cultos brbaros dos povos celtas que viviam em regies da Frana.

    A origem da palavra heresia vem do grego hairesis, hairen, que significa escolher, nesse sentido, optar pelo caminho da transgresso da f oficial e declarada pelo poder medieval (FALBEL, 1977).

    Durante o perodo medieval europeu, barbrie passou ento a ter forte conotao reli-giosa, confundindo-se com os inmeros grupos e seitas consideradas hereges. Barbrie e heresia associaram-se no mundo cristo da Idade Mdia. As Cruzadas e a Reconquista no eram apenas lutas religiosas, mas tambm batalhas contra a barbrie. Conforme Elias (1994, p. 67), [...] a despeito de toda a sua secularizao, o lema civilizao conserva sempre um eco da cristandade latina e das cruzadas de cavaleiros e senhores feudais.

    De acordo com Fabel (1977), depois da criao do Tribunal Inquisitorial do Santo Of-cio, em 1229, por Gregrio IX, no Conclio de Toulouse, as perseguies foram incessantes, cruis e avassaladoras contra os movimentos herticos, como Tanquelmo na Holanda, morto em 1115; Pedro de Bruys, em 1132; o breto Eudo de Stella, em 1148; Geraldo do Serarelli, em 1260; Dolcino de Novara, em 1307, todos mutilados e queimados, como tambm seus seguidores, pela Igreja Romana. Como aponta Queiroz (1988, p. 66), [...] em 1210 foram queimados em Minerve 140 hereges, 400 em Lavaur, e centenas atirados em calabouos, onde permaneceram at morrer de fome e sede. At no seio da ordem franciscana, surgiram grupos considerados e hereges perseguidos por heresia, como da seita dos Beguinos, ou irmos pobres da penitncia. A partir de 1315 foram presos e queimados muitos Beguinos em Narbona, Toulouse e Catalunha (FALBEL, 1977, p. 80).

    Caso particular de banimento na baixa Idade Mdia foram os cagots. Para alguns, eram descendentes de populaes rejeitadas em razo de sua origem estrangeira, como filhos de prisioneiros sarracenos ou de visigodos, para outros, os contaminados pela lepra, doena de profundo impacto no mundo medieval. Nesse sentido, a hansenase, endmica na Europa oci-dental nos sculos XII e XIII, provocou uma multido marginalizada e despossuda do mnimo respeito humano (POUMARDE, 2004). Alm dos hereges, bruxas e leprosos, a posio dos judeus e principalmente dos ciganos est impregnada da viso brbara medieval. Duran-te o perodo das Cruzadas, houve uma verdadeira ascenso do antissemitismo. Como relata

  • 19

    Poumarde (2004, p. 72), [...] o confronto entre a cristandade e o islamismo fortaleceu uma velha suspeita de conluio entre judeus e muulmanos, de tal maneira que, na segunda metade do sculo XII, desenvolveu-se uma onda de massacres coletivos, como tambm a deciso do IV Conclio de Latro (1215) que determinava o uso da arruela pano circular costurado na roupa , marcando a condio judia estigmatizada. A prpria Peste Negra (1348-1350) foi imputada aos judeus.

    A questo da barbrie medieval est situada com base no parmetro religioso. Como bem ressalta Le Goff (1995, p. 179), A realidade a Cristandade. em funo dela que o cristo da Idade Mdia define o resto da humanidade e se situa em relao aos outros. Defini-tivamente, o brbaro se identifica com o herege e com o infiel medieval.

    1.3 A BARBRIE DOS POVOS INDGENAS E A CONQUISTADO NOVO MUNDO J com as grandes navegaes e a conquista do Novo Mundo, a ideia da barbrie se

    fortaleceu, principalmente em relao aos povos nativos recm-conhecidos, que habitavam as terras novas da Amrica. Nesse momento, coincide o movimento renascentista, afirmao do homem grego-europeu consolidado com o projeto iluminista e o defrontamento com os povos indgenas americanos, aborgenes australianos e mairis da Nova Zelndia, entre outros grupos humanos considerados exticos para o olhar colonizador. Na poca, o brbaro assumiu a feio do indgena. Fica evidente a viso dos colonizadores sobre a barbrie dos povos ind-genas. Os nativos do Novo Mundo eram desprovidos da humanidade. Muito mais do que os brbaros da Antiguidade ou dos hereges medievais, o indgena foi rebaixado para verso mais distante do humano.

    Talvez, por parte da viso do conquistador, a imagem da barbrie nunca tenha ficado to evidente como na feio do ndio, pois os povos indgenas ainda pareciam estar em um estgio anterior barbrie, ou seja, a selvageria. De acordo com Martinez e Santamaria-Benz (2004, p. 562, grifo nosso),

    El trmino brbaro ha sido utilizado con fines polticos y econmicos []. Los indios no escapan a tal situacin, y fueron calificados como brbaros por los espaoles por las siguientes

  • 20

    razones3, conforme complementaram as autoras, 1) La cultura indgena fue percibida inferior a la de los espaoles 2) por fines polticos y econmicos, cuando os espaoles percibieron al Nuevo Mundo como La posibilidad de expansin de su imperio.4

    Referente a isso, Rouland afirma (2004, p. 376) que, em 1851, o governador da Ca-

    lifrnia discursou na Cmara que a guerra contra os ndios [...] continuar at que a raa indgena seja exterminada, e as jurisdies australianas, ainda no incio do sculo XIX, no condenavam os colonos brancos que matassem aborgenes. Os costumes, a vida, as crenas, enfim, todos os traos de manifestao cultural eram radicalmente contrrios vida europeia concentrada no incio da Modernidade. A humanidade diminuda, quando no negada, dos indgenas permitiu toda sorte de explorao, extermnios, torturas e mutilaes. Quando no pela espada, foi pela Bblia a deplorvel colonizao dos ndios (ROULAND, 2004).

    Trata-se de um longo perodo de perseguies e mutilaes contra os povos primeiros, ou indgenas. Las Casas (1991) denuncia a sangrenta histria da conquista, os massacres perpe-tuados pelos espanhis contra os povos indgenas localizados na Amrica Central, Caribe, Ve-nezuela, Colmbia, Peru e Mxico. uma infinidade de relatos principalmente a Brevssima Relacin de La Destruicin de las ndias Ocidentales de mais pura crueldade, desde torturas, mutilaes, estupros, aldeias queimadas, vilas destrudas, saques e doenas propagadas. Como destaca Bueno (1991, p. 24), j em 1550, [...] mais de noventa por cento da populao indge-na do Caribe j estava exterminada. Segundo Rouland (2004, p. 376), [...] estima-se que no comeo do sculo XVI a populao indgena (da Amrica do Norte) era de aproximadamente 4 milhes de indivduos (dos quais 500 mil ocupavam o territrio que hoje o Canad). No fim do sculo XIX, no havia mais que 200 mil. De acordo com Suess (1992), em 1500 somavam 80 a 90 milhes de indgenas e aps um sculo, a populao ndia foi reduzida a 10 milhes. Portanto, o processo de ocupao foi terrivelmente trgico aos povos nativos do Novo Mundo. A crueldade dos conquistadores foi bem denunciada pelo Bispo de Chiapas, Las Casas (1991,

    3 O vocbulo brbaro tem sido utilizado com fins polticos e econmicos [...] Os ndios no escapam dessa situao, e foram classificados como brbaros pelos espanhis pelas seguintes razes. 4 1) A cultura indgena foi designada como inferior a dos espanhis 2) por fins polticos e econmicos, quan-do os espanhis reconheceram no Novo Mundo a possibilidade de expanso de seu imprio.

  • 21

    p. 32): Faziam apostas sobre quem, de um s golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente e mais destramente, de um s golpe lhe cortaria a ca-bea, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um s golpe.

    O autor (1991, p. 32) ainda cita: Arrancavam os filhos dos seios das mes e lhes esfre-gavam a cabea contra os rochedos enquanto que outros os lanavam gua dos crregos rindo e caoando [...].

    Sobram relatos de crueldades e massacres promovidos pelos conquistadores contra os povos indgenas. Essa histria terrvel est impregnada da viso europeia da condio brbara dos indgenas, justificando e permitindo, talvez, o mais extenso e cruel perodo genocida da Histria. Esse processo que passou, conforme Dussel (1993), pelas fases da inveno, desco-berta, conquista e colonizao, manteve presente a noo da barbrie em todos os instantes no defrontamento do europeu com os indgenas. importante destacar nesse processo histrico que a [...] necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus no se excluem (TODOROV, 2003, p. 13).

    O status jurdico do indgena: a barbrie natural

    Constata-se que [...] para a maioria dos espanhis, o gentio americano estava mais prximo dos macacos que dos homens (BRUIT, 1995, p. 117). Como aponta Hanke (1988), apesar da Bula Inter Cetera, de 1493, muitos espanhis continuavam a afirmar que os ndios eram incapazes de ser cristianizados porque eram irracionais e estavam abaixo da escala huma-na para receber a f. Nessa direo, observa Wolkmer (1998, p. 84) que [...] em funo da superioridade dos valores ocidentais e da condio de brbaros e pecadores dos aborgenes, o domnio jurdico dos europeus se legitimava, e cabia aos ndios o dever de se submeterem de maneira pacfica e, caso apresentassem resistncia, poderia ser declarada guerra justa a eles.

    Percebe-se, notoriamente, a presena da barbrie na condio jurdica indgena, muitas vezes colocando em evidente dvida a humanidade destes povos. Apesar de algumas vozes defensoras dos direitos indgenas, representativa a viso da maioria quanto inferioridade da-quelas gentes exticas e selvagens que viviam nas terras do Novo Mundo. Conforme eviden-cia Colao (2006, p. 88), [...] predominava o pensamento de que os indgenas eram brbaros,

  • 22

    incapazes e inferiores, justificando assim a interferncia e a consequente submisso aos euro-peus. De acordo com a autora (2006, p. 87), o jesuta Jos de Costa tinha essa mesma viso a respeito deles, [...] inserindo os indgenas em sua definio de brbaro. Para ele, os brbaros eram aqueles que rechaavam a reta razo, a prtica cotidiana dos homens e se comportavam com rudeza e selvagerismo. Ainda, Solorzano Pereira, em sua obra A Barbrie (ZAVALA, 1971, p. 15), enfatiza que os ndios so [...] carentes de razo, infiis e idlatras, e pela lei natural deviam sujeitar-se aos espanhis, que lhes promoveriam uma vida racional e civilizada.

    Nota-se que a situao de barbrie dos povos indgenas est presente profundamente no discurso colonialista. O indgena figura como um vir a ser humano, ainda de uma humanidade incompleta, carente da condio concreta de reconhecimento. Como relata Todorov (2003, p. 49): de esperar que todos os ndios, culturalmente virgens, pgina em branco espera da inscrio espanhola e crist, sejam parecidos entre si. Tudo no indgena era motivo de estra-nheza, sua nudez desavergonhada, sua estrutura social e principalmente religiosa, sua alimenta-o e seus valores morais. Como escreve Suess (1992, p. 12): O sistema colonial considerava a alteridade dos povos conquistados inferioridade e a reciprocidade de sua economia, que era a base de sua igualdade, improdutividade.

    No foram poucas as teorias formuladas para justificar a servido indgena, tendo em comum entre elas a questo da barbrie intrnseca condio inferior indgena. Na obra De las isls del Mar Ocano, o conselheiro da Coroa Palacios Rubios defende a tese, em 1513, do poder do Papa sobre os ndios e suas terras (COLAO, 2006, p. 790).

    Duas obras importantes da poca, As Dcadas Del Nuevo Mundo, de Martir de Angle-ra, e Histria general de Gonzalo Fernndez Oviedo, apresentavam os ndios de uma forma atrasada e brbara. Bruit (1995, p. 117) descreve a viso de Oviedo a respeito dos ndios: [...] esta gente, por natureza, ociosa e viciada, de pouco trabalho, melanclicos e covardes, viles e mal inclinados, mentirosos e de pouca memria, e de nenhuma perseverana.

    Mais evidente ainda da condio brbara dos ndios encontra-se na descrio de famoso dominicano da poca, frei Toms Ortiz, em 1525, que, apesar de extensa, vale a pena a trans-crio na ntegra relatada por Bruit (1995, p. 119):

    Comem carne humana na Terra firme, so sodomitas muito mais que qualquer outra gerao, no existe nenhuma justia entre eles, andam nus, no tm amor nem vergonha,

  • 23

    so estpidos aloucados. No respeitam a verdade se no em proveito prprio, so in-constantes, no sabem o que um conselho, so ingratos e amigos de mexericos. Se preci-sam embebedar-se, bebem vinhos de diversas ervas e frutos e gros, como cerveja e cidras, e fazem fumos de outras ervas para embebedar-se [...]. So bestiais e fazem questo de ser abominveis nos vcios, os moos no tm nenhuma obedincia nem cortesia com os velhos, nem os filhos com os pais. No so capazes de doutrina nem castigo, so traidores, cruis e vingativos, nunca perdoam, so inimigos de religio. So vadios, ladres, de juzo muito baixo, no guardam f nem ordem. No guardam lealdade os maridos com suas mulheres, nem as mulheres com os maridos. So feiticeiros e agouceiros, covardes como lebres. So sujos, comem piolhos e aranhas e vermes crus no lugar em que os achem, no tm arte nem jeitos de homens. Quando aprendem as coisas da F, dizem que essas coisas so para Castela, que PA eles no valem nada, e que no querem mudar os costumes, no tm barbas e, se alguma cresce, raspam. Com os doentes no tm piedade nenhuma, se o doente est grave, mesmo sendo parente ou vizinho, o abandonam ou o levam aos montes a morrer, deixando junto um pouco de po e gua; quanto mais crescidos, so piores; at dez ou doze anos, parece que puderam ter alguma educao e virtude, mas depois tornam--se como bestas brutas. Enfim, digo que nunca criou Deus gente to viciosa e bestial, sem nada de bondade e ordem.

    No processo do encontro do colonizador com o Outro, a viso da barbrie logo se instalou e, nesse sentido, Todorov (2003, p. 211) destaca que, para os espanhis, [...] a ideia que fazem dos ndios, segundo a qual estes lhes so inferiores, em outras palavras, esto a meio caminho entre os homens e os animais. A noo da barbrie implicava uma negao da hu-manidade do Outro.

    A prpria condio fsica do indgena narrada de forma imaginativa por parte de cro-nistas da poca, como Oviedo (1996, p. 140, grifo nosso) quando descreve: Tambin me ocurre una cosa que He mirado muchas veces en estos indios, y es que tienen el casco de La cabeza ms grueso cuatro veces que los cristianos.5 O autor ainda acrescenta: E as, cuando se les hace guerra y vienen con ellos a las manos, han de estar muy sobre aviso de no les dar cuchillada en La cabeza, porque se han visto quebrar muchas espadas [].6

    5 Tambm me ocorre algo que tenho visto muitas vezes nesses ndios, o fato de que suas cabeas so quatro vezes mais grossas do que a dos cristos.6 E assim, nas guerras, quando os capturam, necessrio ficar de sobreaviso para no lhes esfaquear a cabea,

  • 24

    Em nome dessa barbrie declarada, milhares de aldeias so massacradas, e fogueiras da Inquisio queimam ndios e hereges. consenso, mesmo entre os defensores dos indgenas, a condio da barbrie. Martinez e Santamaria-Benz (2004, p. 56, grifo nosso) apresentam dois posicionamentos diferentes a respeito dos indgenas, entretanto, em ambos, a viso de que o ndio era brbaro est explcita. Relatam primeiro a de quem contra, [...] Seplveda plantea que los indios por su condicin natural (brbara) son inferiores a los espaoles con el fin de justifi-car la guerra contra los indios7; em seguida, expem o pensamento de quem defende, todavia, assumindo a condio da barbrie: Las Casas expone que el indio es brbaro por su condicin religiosa, pero plantea que pueden ser reformados a travs de La evangelizacin.8 Nesse sentido, de outra forma, por meio da benevolncia e da proteo fsica aos indgenas, os defensores dos ndios tambm contriburam para a destruio dos povos americanos. Como acrescenta Gerbi (1996, p. 76), Las Casas, Vasco de Quiroga e outros apologistas dos ndios, so, em certa me-dida, responsveis [...] pelas medidas tutelares humilhantes impostas aos nativos por parte da Espanha; ao se considerar os nativos fracos e tolos, terminava-se por trat-los como menores de idade necessitados de proteo.

    De uma forma ou de outra, por intermdio do soldado ou do missionrio, a dominao dos povos indgenas estava justificada. Essa circunstncia ficou bem demonstrada no debate de Valladolid.

    O debate de Valladolid

    O pice da discusso da condio humana indgena aconteceu com o conhecido debate de Valladolid, entre Seplveda e Las Casas, no mbito do Conselho das ndias em 1550. A grande discusso sobre a natureza jurdica dos ndios travou-se por trs anos, de 1547 a 1550,

    porque se tem visto quebrarem muitas espadas [...].7 Seplveda estabelece que os ndios pela sua condio natural (brbara) so inferiores aos espanhis com o propsito de justificar a guerra contra os ndios.8 Las Casas coloca que o ndio brbaro pela sua condio religiosa, mas estabelece que podem ser melho-rados mediante a evangelizao.

  • 25

    e movimentou grandes juristas da poca. Segundo Poumarde (2004, p. 116), pode-se afirmar que a discusso acerca da legitimidade da conquista tornou-se um [...] debate apaixonado na Espanha do sculo XVI. Os protagonistas foram os clrigos, telogos nutridos principalmente pela doutrina tomista, e os dominicanos ocuparam um lugar central nesse debate. O debate assume, em sua essncia, a discusso entre os que defendem e os que so contrrios desigual-dade entre indgenas e espanhis (TORODOV, 2003). O principal fundamento em debate era a questo das causas justas, ou seja, a legitimidade da Espanha catlica em ocupar as terras recm-conquistadas e, por desdobramento natural, dominar os povos nativos que l viviam, to diferentes cultural e fisicamente do perfil europeu colonizador. O prprio poder real estimulou esses debates, procurando por intermdio dos telogos e juristas uma legitimao satisfatria (POUMARDE, 2004). nesse contexto que as Juntas de Burgos (1510) e a de Valladolid (1550) foram permitidas e incentivadas pelo poder real.

    Para Abril (1994, p. 231, grifo nosso), a questo do debate a [...] legitimidad de las guerras de conquista con vistas a la evangelizacin.9 Nesse sentido, pondera Abril (1994, p. 232, grifo nosso), que [] el resultado final conjunto es exactamente el que pretendia La Corona al convocar oficialmente La Junta: cristianizacin de los indios y su incorporacin al imperio.10 Pois, na verdade, as teses opostas de Las Casas e Seplveda podem ser resumidas em duas ticas:

    a) Etica de La fuerza y de La presion poltica por parte Del Estado colonizador, como instru-mento legtimo y necesario para La pacificacin y la Lena incorporacin Del indio al imprio: paso prvio, a sua vez, para su ulterior evangelizacin y conversin; tarea que as se presume y concibe como ms fcil, ms eficaz y, desde luego, ya enteramente libre para el indio y para los ministros de La Iglesia.b) Etica de La captacin pacfica y de La presin de conciencias por parte de La Iglesia evan-gelizadora, como nico instrumento legtimo y necesario para La libre conversin y La plena incorporacin Del indio a La Iglesia; paso prvio, a su vez, para su ulterior incorporacin plena al imprio; procedimento que as se presume y concibe como ms fcil, ms eficaz y, desde luego,

    9 [...] legitimidade das guerras de conquista visando evangelizao.10 [...] o conjunto do resultado final exatamente o que pretendia A Coroa ao convocar A Junta: cristiani-zao dos ndios e sua incorporao ao imprio.

  • 26

    el nico justo y legtimo para el indio, para La iglesia y para La Corona espanola. (ABRIL, 1994, p. 233, grifo nosso).11

    Significa que, seja pela fora das armas seja pela Bblia, os indgenas estavam condenados a serem incorporados ao modelo colonizador, pois, para o europeu, a viso da barbrie estava projetada na imagem do ndio. Tanto pela tica da violncia fsica quanto da violncia espiritu-al, era necessrio retirar o indgena da barbrie, incorporando-o civilizao, ou destruindo-o em sua selvageria. O debate de Valladolid tem como ponto central, e isso apontado at por Domingo Soto, membro da Junta, a questo da guerra da conquista (ABRIL, 1994). Mas h por detrs da discusso da legitimidade ou das causas justas o debate da barbrie e da huma-nidade indgena. A legitimidade dos colonizadores e dos missionrios sustenta-se durante os sculos XVI, XVII e XVIII exatamente no discurso da barbrie e do atraso humano dos povos indgenas, mesmo tendo sobrevivido tese minoritria e romntica do bom selvagem, que chegou mesmo a conquistar parte do movimento da ilustrao. Como visto, o pior j foi dito sobre a natureza indgena, nos textos dos cronistas, culpando os indgenas de todos os sortil-gios e baixezas de esprito. Como aponta Ramos (1994, p. 45, grifo nosso), [...] en la que el mundo, de acuerdo com las viejas ideas, estaba dividido entre los hombres derivados de las culturas clsicas y los brbaros.12 Com exceo de Las Casas e Juan de Quevedo, contrrios guerra jus-Com exceo de Las Casas e Juan de Quevedo, contrrios guerra jus-ta, Palacios Rubios, Licenciado Gregorio, Alonso de Loaysa, Barrios, Martin de Valncia, Soto, Jimenez, Reginaldo de Morales, Miguel de Salamanca, Enciso, Berbardo de Mesa, Matias de Paz defendem de alguma forma a legitimidade dos colonizadores (GARCIA, 1994, p.113-114).

    11 a) tica da fora e da presso poltica por parte do Estado colonizador como instrumento legtimo e necessrio para A pacificao e a plena incorporao do ndio ao imprio: passo prvio para sua posterior evangelizao e converso; tarefa que se presume e se concebe como mais fcil, mais eficaz e, certamente, j inteiramente livre para o ndio e para os ministros da Igreja.b) tica da aproximao pacfica e da presso de conscincias por parte da Igreja evangelizadora, como nico instrumento legtimo e necessrio para a livre converso e a plena incorporao do ndio Igreja; passo prvio para sua posterior incorporao plena ao imprio: procedimento que assim se presume e se concebe como mais fcil, mais eficaz e, certamente, o nico justo e legtimo para o ndio, para a Igreja e para a Coroa espanhola.12 [...] na que o mundo, de acordo com as velhas ideias, estava dividido entre os homens derivados das cul-turas clssicas e os brbaros.

  • 27

    Ao lado de Las Casas, inclui-se tambm Montesinos e Vitria. Destaca-se a obra de Matias de Paz, cujo ttulo expressivo: De dominium regium Hispanioe super ndios, isto , da soberania do rei de Espanha sobre os ndios (POUMARDE, 2004). Todavia, pode-se crer que o incio do debate de Valladolid seja na Bula Inter Coetera de 1492, na qual o Papa Alexandre VI divide o mundo descoberto entre as potncias colonizadoras, Espanha e Portugal, com a misso de propagarem e exultarem a f catlica aos povos brbaros. Com isso, claro, a concesso territorial (POUMARDE, 2004). A Espanha, por sua vez, j havia, com base no tomismo, promovido uma guerra justa contra os mouros e judeus no processo da Reconquista. Era preciso ver se, no caso dos indgenas, o raciocnio teolgico e jurdico tambm se adequava aos interesses da coroa e dos colonizadores. Como evidencia Poumarde (2004), a equao mais simples seria comparar os indgenas aos infiis. Constata-se que, de certa forma, essa comparao atendia a ideia da barbrie, pois, como mencionado, o herege medieval tratava-se do pago brbaro con-vertido cristandade latina, e os povos indgenas do Novo Mundo da mesma forma no eram cristos catlicos. Alm disso, os ndios ainda afastavam-se muito mais da imagem do europeu branco catlico, tanto pela sua diversidade lingustica como pela nudez, crenas pags e demais relaes sociais tpicas das sociedades amerndias. Inclusive, a tese de que os indgenas eram semijudeus, por mais estranha que parea, foi cogitada para justificar o combate infidelidade religiosa indgena (POUMARDE, 2004).

    Todo discurso de Seplveda, doutor em arte e teologia pelo Colgio de So Clemente de Bolonha, fundamentava-se na ideia escravagista de Aristteles, justificando a dominao dos indgenas pelos espanhis (POUMARDE, 2004). A base de argumentos de Seplveda repousava em duas tcnicas, como afirmam Martinez e Santamaria-Bens (2004, p. 564, grifo nosso): 1) altera algunos elementos Del discurso aristotlico y 2) recurre a cronistas que tenan una percepcin negativa Del indio. Utiliza este trmino con el propsito de justificar La guerra contra los indios.13 A dominao dos povos indgenas e sua converso eram plenamente justificadas por Seplveda entre as causas justas da guerra. Como observa Garcia-Pelayo (1987), todos os casos implicavam em guerra justa: legtima defesa; reconstituio de bens roubados; o castigo

    13 1) altera alguns elementos do discurso Aristotlico e 2) recorre a cronistas que tinham uma percepo negativa do ndio. Utiliza essa designao com o propsito de justificar a guerra contra os ndios.

  • 28

    de malfeitores; o combate heresia; a superioridade cultural. Nesse ltimo caso enquadrava--se a questo dos povos indgenas, naturalmente inferiores aos espanhis. Como escreve o prprio Seplveda (1987, p. 111, grifo nosso): Tales son en suma la ndole y costumbres de estos hombrecillos tan brbaros, incultos es inhumanos, y sabemos que as eran antes de la venida de los espaoles [...]14 Silva Filho (2005, p. 236) assinala que havia uma premissa bsica no pensa-Silva Filho (2005, p. 236) assinala que havia uma premissa bsica no pensa-mento de Seplveda, a noo da inferioridade dos ndios, como se estivessem a meio caminho, entre os homens e os animais. Como relata Bruit (1995, p. 126), Seplveda deixa isso muito claro em sua defesa no debate de Valladolid, [...] porque so, ou menos eram antes de cair sob domnio dos cristos, todos brbaros em seus costumes e a maior parte por natureza. Para Seplveda, historiador oficial de Carlos V, e, destaca-se, preceptor do futuro rei Felipe II, os ndios encontravam-se como sub-homens. Em seu Tratado Democrates alter, declarou que os indgenas eram mesmo brbaros e cruis, por isso estava legitimada a guerra de converso con-tra eles (POUMARDE, 2004, p. 118). Segundo Gonzalez (1984, p. 211, grifo nosso), o livro de Seplveda, Democrates alter, foi analisado e debatido pelos escolsticos da Universidade de Salamanca, sendo condenado [...] el aristocratismo natural implcito en la teoria aristotlica de la esclavitud, a la que se adscribia Seplveda.15

    Nesse sentido, evidente a utilizao da teoria escravista de Aristteles por parte de Seplveda, muito bem relatada por Garcia-Pelayo (1987, p. 29, grifo nosso), quando descreve: La primera justificacin de la guerra com los indios esta constituda por el cumplimiento de la ley natural, entendida en el sentido aristotlico, ya indicado, de domnio de lo perfecto sobre lo imper-fecto []16 O autor acrescenta ainda: Para ser rectamente aplicada esta doctrina se exigen, pues, dos condiciones; el estado de barbarie de los indios y la superioridad de los espaoles. Ambas son extensamente desarrolladas por Sepulveda.17

    14 Tais so em suma a ndole e costumes desses homenzinhos to brbaros, incultos e no humanos, e sabe-mos que assim eram antes da vinda dos espanhis [...] 15 [...] o aristocratismo natural implcito na teoria aristotlica da escravido, qual se inscrevia Seplveda.16 A primeira justificao da guerra com os ndios est constituda pelo cumprimento da lei natural, enten-dida no sentido aristotlico, j indicado, de domnio do perfeito sobre o imperfeito [...]. 17 Para ser perfeitamente aplicada essa doutrina exige-se, pois, duas condies: o estado de barbrie dos ndios e a superioridade dos espanhis. Ambas so extensamente desenvolvidas por Seplveda.

  • 29

    As palavras de Seplveda (1987, p. 106-107, grifo nosso) no deixam dvidas da sua concepo sobre os amerndios:

    Compara ahora estas dotes de prudncia, ingenio, magnanimidad, templanza, humanidad y religin, con las que tienen esos hmbrecilios en los cuales apenas encontrars vestgios de humanidad; que no solo no poseen cincia alguna, sino que ni siquiera conocen las letras ni conservan ningun monumento de su historia sino cierta obscura y vaga reminiscncia de al-gunas cosas consignadas em ciertas pinturas, y tampoco tienen leyes escritas, sino instituciones y costumbres brbaros. Pues si tratamos de las virtudes, qu templanza ni qu mansedumbre vas esperar de hombres que estaban entregados a todo gnero de intemperancia y de nefandas liviandades, y comian carne humana? Y no vayas a crer que antes de la llegada de los cristianos vivian en aquel pacfico reino de Saturno que fingieron los poetas, sino que por el contrario se hacan continua y ferozmente la guerra unos a otros con tanta rabia, que juzgaban de ningun precio la victoria si no saciaban su hambre monstruosa con las carnes de sus enemigos, feroci-dad que entre ellos es tanto ms porttentosa cuanto ms distan de la invencble fiereza de los escitas, que tamben se alimentaban de los cuerpos humanos, siendo por lo dems estos indios tan cobardes y tmidos, que apenas pueden resistir la presencia de nuestros soldados y muchas veces, miles y miles de ellos se han dispersado huyendo como mujeres delante de muy poos espanoles, que no llehaban ni siquiera al numero de ciento.18

    18 Compara agora essas qualidades de prudncia, entendimento, magnanimidade, temperana, humani-dade e religio, com as que tm esses homenzinhos nos quais apenas encontrars vestgios de humanidade; que no somente no possuem cincia alguma, mas que sequer conhecem as letras, nem conservam nenhum monumento de sua histria, seno certa obscura e vaga reminiscncia de algumas coisas assinaladas em certas pinturas, e tampouco tm leis escritas, a no ser noes e costumes brbaros. Ento, se tratamos das virtudes, que temperana e que mansido esperas de homens que estavam entregues a toda espcie de irreflexo e de ver-gonhosas leviandades, e comiam carne humana? E no creias que antes da chegada dos cristos viviam naquele pacfico reino de Saturno que supuseram os poetas, mas, que ao contrrio, faziam-se contnua e ferozmente a guerra uns aos outros com tanta raiva, que julgavam sem preo a vitria e saciavam sua fome monstruosa com as carnes de seus inimigos, ferocidade que entre eles muito mais espantosa medida que se diferenciam da inexpugnvel crueldade dos Escitas, que tambm se alimentavam dos corpos humanos, sendo dessa forma esses ndios to covardes e tmidos, que dificilmente podem resistir presena de nossos soldados e muitas vezes, milhares e milhares deles tem-se dispersado fugindo como mulheres diante de pouqussimos espanhis, que no chegavam nem sequer a um cento.

  • 30

    Apesar da ilustre defesa de Las Casas, Seplveda (1987, p. 117, grifo nosso), citando a antropofagia, o aborto, a idolatria, os crimes sexuais, questiona indignado: Como han podido, pues, otros telogos de gran nombre negar a los prncipes cristianos la facultad de someter a su dom-nio a los paganos que habitan aquellas regiones donde nunca h llegado a penetrar el imprio de los romanos ni el nombre cristo?19

    Como afirma Poumarde (2004, p. 118), [...] transformar os ndios em seres despre-zveis e perversos a fim de explor-los sem nenhuma preocupao de reprovao nem nesse mundo nem no outro: esse foi o objetivo do cnone de Cordoue, Gins de Seplveda.

    Ainda complementa Silva Filho (2005, p. 236) que [...] na viso de Seplveda, a con-quista, na verdade, um ato emancipatrio, porque permite ao brbaro sair de sua barbrie e, de certa forma, esse era o pensamento dominante, quando no pior. A grande discusso entre Seplveda e Las Casas era quanto ao uso da violncia e da escravido natural dos povos indgenas, ou seja, a converso pelo soldado ou pelo missionrio, pela espada ou pela Bblia. Nessa direo, observa Dussel (1993, p. 860) que no possvel [...] duvidar que todos os que andam vagando fora da religio crist esto errados e [...] no devemos duvidar em afast-los dele por um medo qualquer ou mesmo contra sua vontade, e, no fazendo isso, no cumprimos a lei da natureza nem o preceito de Cristo.

    Francisco de Vitoria (2006, p. 83) assim tambm pensa: Se for proposta a f crist aos ndios de modo provvel, ou seja, com argumentos provveis e razoveis com uma vida honesta [...] esto obrigados a aceitar a f em Cristo sob pena de pecado mortal.

    Para os colonizadores, a questo da religio foi um dos principais fatores da condio de barbrie dos indgenas. Como ensina Suess (1992, p. 10), no se deve associar [...] a violncia da Conquista ao carter nacional de espanhis ou portugueses. Na avaliao da Conquista Espiritual das Amricas, no est em jogo a crueldade de uma ou outra nao europeia, mas, sobretudo, a ambivalncia do prprio cristianismo. Percebe-se que o problema da barbrie dos hereges medievais se transporta para os povos indgenas da Amrica em uma verso ainda mais

    19 Como puderam, pois, outros telogos de grandes nomes negarem aos prncipes cristos o direito de sub-meter sob seu domnio os pagos que habitam aquelas regies aonde nunca chegou a penetrar o imprio dos romanos nem o nome Cristo?

  • 31

    radical de desumanidade. O cristianismo centrado no eixo catlico europeu foi um profundo fomentador da ideia da barbrie. Suess (1992, p. 11) refora a ideia quando sustenta: A con-quista espiritual das Amricas, em sua globalidade, no representa ruptura, mas a continuidade da prtica missionria dos sculos ps-constantinos. Em vez dos judeus, dos mouros, dos he-reges ou dos ciganos, agora eram os ndios na verso plena da barbrie e do atraso.

    importante destacar que Las Casas, em sua defesa sistemtica e histrica dos ndios, em resposta a Seplveda, atribuiu quatro sentidos ideia de barbrie, classificando-a em: povos por natureza ferozes, dominados pela desordem, degenerados, piores que as prprias bestas; povos que no dominam a linguagem, carecedores do conhecimento das letras, mas que pos-suem governos e justia; povos que, por seus maus costumes, tornam-se brbaros; os que se encontram distantes da f crist. Para Las Casas os povos indgenas so brbaros apenas porque no conhecem a linguagem, E assim fica declarado, demonstrado e abertamente concludo, que todas estas gentes de nossas ndias so brbaros secundum quid, porque, no tendo exerccio nem estudo das letras, tinham reinos e governos, obedincia e submisso, e se regiam por leis e justia (BRUIT, 1995, p. 130). Para Las Casas, Seplveda, [...] seja por ignorncia, ou por malcia, adulterou contra essas gentes a doutrina de Aristteles [...] (BRUIT, 1995, p. 130). Contudo, Seplveda apoiava-se profundamente em Aristteles e nos argumentos da idolatria e dos sacrifcios humanos como prova da condio brbara indgena.

    Percebe-se que a doutrina de Aristteles foi fundamental para a discusso sobre a natu-reza jurdica dos indgenas e a respectiva barbrie apontada para as gentes das ndias. E que, como destaca Gerbi (1996, p. 75), As melhores intenes para com os indgenas terminam por confirmar-lhes a inferioridade e o avassalamento.

    Francisco de Vitria e a escola de Salamanca

    Alm de Francisco de Vitoria ser um dos fundadores do Direito das Gentes (VILLEY, 2005), representa a influncia e a importncia da Universidade de Salamanca e da escolstica na Espanha. Antes mesmo de Grotius, Vitoria j havia formulado o conceito de direito das pessoas (POUMARDE, 2004). Tomista, defensor [...] do senso da laicidade das fontes de conhecimento do direito, a aptido dos infiis (em particular dos ndios) para desfrutar

  • 32

    da soberania ou do dominium, o pluralismo dos Estados etc. (VILLEY, 2005, p. 382), Vito-ria participou ativamente das questes jurdicas e teolgicas polmicas de seu tempo. Como aponta Villey (2005), Vitoria pode ser definido como um conselheiro de Carlos V, escrevendo e dando pareceres sobre o luteranismo, colnias e divises da Europa, at mesmo sobre o di-vrcio do rei Henrique VIII. Sobre a questo da tica e legitimidade da conquista e a polmica sobre a natureza jurdica dos indgenas, Vitoria tornou-se o grande nome da poca. Participava ativamente das discusses entre cronistas, colonizadores e bispos do Mxico sobre [...] la ra-cionalidade de los indios, los mtodos de evangelizacin y los pretextos de conquistas armadas para la conversin de los infieles.20 (PEREA, 1984, p. 294, grifo nosso). Como relata Perea (1984, p. 294, grifo nosso): Por carta Del Emperador de 31 de enero de 1539 son remitidos a Vitoria los captulos de dudas enviados por Zumrraga sobre La instruccin y conversin de los naturales de Nueva Espaa.21

    Vitoria foi chamado pelo prprio Carlos V a se manifestar sobre a polmica da natureza jurdica e teolgica dos nativos do Novo Mundo. E como declara Vitoria (2006, p. 37), toda a controvrsia e polmica [...] se difundiram por causa dos brbaros do Novo Mundo, chama-dos popularmente de ndios [...].

    Para Vitoria, os ndios no eram escravos por natureza, e ele refutava as teses da ordem concedida Espanha pelo Papa e o uso da violncia para a converso (POUMARDE, 2004). Contudo, apesar de se opor a Seplveda e ideia da condio animal dos ndios, Vitoria sustentou a noo da fraqueza intelectual (debilitas) indgena e a necessidade da tutela e pro-teo da Espanha. Mesmo que as ideias de Vitoria tenham causado polmica na poca, [...] es absurdo suponer um enfrentamiento ente Vitoria y Carlos V, entre la Corona y Salamanca.22 (PEREA, 1984, p. 298, grifo nosso). At mesmo porque, como assevera Perea (1984, p. 299, grifo nosso), Francisco de Vitria nunca acuso al Emperador Carlos V, ni cuestion la legi-

    20 [...] racionalidade dos ndios, os mtodos de evangelizao e os pretextos de conquistas armadas para a converso dos infiis.21 Por carta do Imperador, de 31 de janeiro de 1539, so remetidos a Vitoria os captulos de dvidas envia-dos por Zumrraga a respeito da instruo e converso dos nativos de Nova Espanha. 22 [...] absurdo supor um enfrentamento entre Vitoria e Carlos V, entre a Coroa e Salamanca.

  • 33

    timidade de la conquista. Era un postulado que daba por supuesto y desde el princpio quiso dejar clara constancia.23 O autor acrescenta: La legitimidad de la conquista de las Indias, dice Vitoria, parece materia segura ya resuelta.24

    Em outro momento, Vitoria (2006, p. 38) exps, inclusive, seu total apoio aos reis espanhis, ao declarar que [...] como o imperador Carlos um prncipe justssimo e muito religioso, no se pode acreditar que no tenham investigado e averiguado muito bem tudo o que pudesse afetar a segurana de seu Estado e de sua conscincia.

    Vitoria manifestou-se contra a escravido fsica dos indgenas e o uso da violncia na converso, admitiu constiturem os indgenas comunidades autnomas, baseado no jusgen-tium, mas no descartou a tutela dos ndios pela Coroa da Espanha, justificando o domnio espanhol pela necessidade de proteo (PEREA, 1984). O prprio Vitoria defende o direito da Espanha de evangelizar os indgenas, [...] los cristianos tienen el derecho de predicar y anun-ciar el evangelho en las provincias de los indios.25 (HERNANDEZ, 1984, p. 370, grifo nosso). Se no processo de levar a f crist os chefes indgenas reagissem com violncia, estaria justificada a guerra justa (HERNANDEZ,1984). nesse sentido que argumenta Todorov (1993, p. 147), Tornou-se um hbito ver em Vitoria um defensor dos ndios; mas, se interrogarmos o impacto de seu discurso, em vez das intenes do sujeito, fica claro que seu papel outro [...], ou seja, por outro lado justifica a colonizao, pela necessidade da f e da converso.

    Vitoria (2006, p. 44), em certo momento, afirmou: [...] os ndios, que certamente pa-recem pouco se diferenciar dos animais brutos, so absolutamente incapazes de governar. Isso demonstra a percepo de Vitoria sobre a natureza indgena.

    Nesse mesmo sentido, explica Urbano (2006, p. 27) que

    Vitoria vai converter a escravido natural em servido civil, transformando um modelo natural e de difcil adequao na realidade de seu tempo, em um modelo cultural. O que por natureza no pode ser modificado, porm para o servo civil sempre possvel [...].

    23 Francisco de Vitria nunca acusou o Imperador Carlos V, nem questionou a legitimidade da conquista. Era um postulado que certamente desde o princpio quis deixar clara constncia.24 A legitimidade da conquista das ndias, diz Vitoria, parece matria segura j resolvida. 25 [...] os cristos tm o direito de pregar e anunciar o evangelho nas provncias dos ndios. [...] os cristos tm o direito de pregar e anunciar o evangelho nas provncias dos ndios..

  • 34

    Para Vitoria (2006, p. 57), a demncia do indgena no era natural, e havia indcios de razo, pois, conforme asseverou o telogo de Salamanca (2006, p. 57), o fato de que paream to atrasados e carentes de uso da razo se deve, creio eu, sua m e brbara educao, uma vez que entre ns tambm vemos camponeses pouco diferentes dos animais brutos.

    Portanto, essa educao aos indgenas foi promovida pelos missionrios, capazes de con-duzir aqueles povos do Novo Mundo razo e f crist. O discurso de proteo aos ind-genas de Vitoria obedecia a contextos culturais e histricos bvios do processo de ocupao e colonizao. Inclusive, justificou a permanncia da Espanha junto aos indgenas para salv-los da barbrie: [...] evidente que agora, depois que l se converteram muitos ndios, no seria conveniente nem lcito que o prncipe abandonasse o governo daqueles territrios (VITORIA, 2006, p. 109).

    O que fica evidente, contudo, que Francisco Vitoria tornou-se figura central na Escola de Salamanca, influenciando e formando telogos e juristas como Domingo Soto, Melchor Cano, Martin de Ledesma, Diego Chaves, Vicent Barrn, Domingos de las Cuevas e Diego de Covarrubias. Para Perea (1984), depois de Vitoria, Soto e Covarrubias so as principais fontes da Escola de Salamanca. Para Wolkmer (1998, p. 84). Outro telogo de Salamanca que gran-jeou prestgio a favor da legitimidade da causa indgena foi Domingo Soto, assumindo algumas posturas at mais extremadas do que seu mestre Vitoria. De acordo com Villey (2005), foi Francisco Surez, e sua doutrina, quem concluiu a grande obra de Salamanca. A escola de Vi-toria chegou a formar a principal fonte teolgica sobre a tica da Conquista, criando discpulos nas primeiras universidades americanas, uma verdadeira emigrao intelectual.

    1.4 ESCRAVISMO E BARBRIE NA FRICA NEGRA

    De outra forma, nesse perodo, o escravo africano tambm no era reconhecido como humano, sujeito de direito, mas como coisa, objeto, mercadoria. Como aponta Gorender (1985, p. 47):

    A caracterstica mais essencial, que se salienta no ser escravo, reside na condio de pro-priedade de outro ser humano. Sigamos abreviadamente a argumentao de Aristteles.

  • 35

    A produo, disse ele, precisa de instrumentos, dos quais so inanimados, e outros, ani-mados. Todos os trabalhadores so instrumentos animados, necessrios, porque os instru-mentos inaminados no se movem espontaneamente (as lanadeiras no tecem panos por si prprios). O escravo, instrumento vivo como todo trabalhador, constitui ademais uma propriedade viva. A noo de propriedade implica a de sujeio a algum fora dela: o escravo est sujeito ao senhor a quem pertence.

    Novamente, a perspectiva aristotlica sobre a propriedade, em que o escravo parte do senhor, extenso fsica do seu corpo (ARISTTELES, s/d, p. 42). Segundo Giordani (1967, p. 186) Aristteles sublinha que h pouca diferena entre o servio que nos prestam os animais domsticos e os escravos, pois ambos nos so teis por sua fora corporal.

    Nesse mesmo sentido, Montesquieu (1973, p. 221) refora a ideia da escravido, de-finindo que esta, [...] propriamente dita o estabelecimento de um direito que torna um homem completamente dependente de outro, que o senhor absoluto de sua vida e de seus bens; ou seja, a sujeio pessoal total, a despersonalizao do indivduo, a reduo condio no humana. A viso mais radical de barbrie a desconstituio de sua condio humana, a coisificao de sua natureza, reduzi-lo a objeto, no pessoa, no humano. Como observa Vainfas (1986, p. 34), No ponto de partida, a nossa reflexo se remete ao trfico. A captura, a escravizao e a venda do africano reduziam-no, desde logo, a uma mercadoria, retificando-o, num processo violento de desculturao e despersonalizao. O escravo poderia ser vendido, alugado, doado, penhorado, enfim, todos os exerccios que o proprietrio possui sobre seu bem. A condio de mercadoria e objeto do escravo negro era explcita nas relaes jurdicas, absolu-tamente em todo o processo colonial. As legislaes escravagistas do perodo colonial legitimam a desconstituio humana do escravo, mesmo que em algumas ocasies e lugares procurassem amenizar a contradio instalada entre pessoa e objeto, escravo e mercadoria. Como descreve Davis (1970, p. 74), At bem dentro do sculo XVIII, no era crime, na Carolina do Sul, um proprietrio matar ou mutilar seu escravo no decorrer do castigo.

    O escravo era objeto quando estivesse na condio de vtima, mas como agressor adqui-ria a condio de sujeito, de agente do crime. Era uma posio dbia e cheia de contradies. Essa oposio entre coisa e pessoa, como destaca Malheiro (1866-1967, p. 28), fica evidente no tratamento diferenciado do escravo negro, pois em relao lei penal, o escravo, sujeito

  • 36

    do delito ou agente dele, um ente humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa [...].

    Contudo, quando fosse vtima, acrescenta o autor, o [...] ofensor fique sujeito a indeni-zar o senhor; nesta ltima parte, a questo de propriedade, mas na outra de personalidade.

    Para criminalizar e castigar o escravo reconhecia-se sua capacidade jurdica, sua condio humana, mas, contraditoriamente, ele poderia sofrer todas as violaes por parte de seu senhor, e, mesmo quando surgiram, por uma preocupao exclusivamente comercial e econmica pois um escravo cruelmente aoitado significava algum dia sem trabalho leis que regulamen-tavam os castigos e reconheciam alguns direitos aos escravos africanos, essas legislaes, em sua maioria, no eram cumpridas. Como assinala Gorender (1985, p. 55) em relao a crimes praticados no Brasil contra escravos, No sculo XIX, se a denncia do crime chegasse a alguma autoridade judiciria, esta ficava conivente com o criminoso e atribua a morte do escravo a acidente ou suicdio. Eram Tribunais compostos por brancos, nos quais, tambm, os brancos eram ouvidos. Os poucos processos instaurados eram arquivados e esquecidos (GOULART, 1971).

    Trata-se, na essncia, de desconstituio da condio humana e da configurao da bar-brie. Faz sentido no aspecto de que o brbaro significa o diferente, o estranho, o incompreen-svel. A estranheza tanta, que a intolerncia com a diferena chega a desfigurar sua condio humana. A escravido, em sua natureza, a negao da humanidade do Outro. A falta de liberdade absoluta significa sua condio de fera, besta, prisioneira de sua natureza brbara.

    A escravido, para Davis (1970, p. 46) possui trs elementos constitutivos [...] sua pessoa propriedade de outro homem, sua vontade est sujeita autoridade do seu dono e seu trabalho ou servios so obtidos atravs da coero. Falta, ainda, o carter da hereditariedade, que, via de regra, condena sua prole e geraes futuras mesma sina e destino.

    O negro, nos pores dos navios negreiros, vinha participar do projeto colonizador do Novo Mundo, reforando a ideia da barbrie. No eram humanos, eram escravos, portanto brbaros. A condio de inferioridade absoluta do escravo negro definia a sua situao ante o europeu, humano e civilizado. De acordo com Silveira (1999, p. 97), a melhor escrita sobre a condio do escravo africano redigida por ningum menos que Montesquieu, quando declara

  • 37

    que [...] possuem o nariz to chato que quase impossvel ter compaixo deles. [...] impos-svel admitir que essas pessoas sejam homens [...]. Ainda, salienta que Voltarie (1999, p. 97) observou que A grande questo entre eles (os negros) se so descendentes dos macacos ou se os macacos descendem deles. Nossos sbios disseram que o homem a imagem de Deus: eis aqui uma curiosa imagem do Ser eterno [...].

    Um dos maiores naturalistas da Frana no sculo XVIII, conde Buffon, em sua famosa obra Historia natural, preocupou-se em explicar os tipos humanos, e, sobre os negros africa-nos descreveu, segundo as palavras de Silveira (1999, p. 101):

    Apesar de no ter nenhum conhecimento consistente sobre a frica, Buffon se arriscou a traar do africano um retrato divertido porm massacrante. Para ele, o negro seria desprovido de imaginao, sempre rejeitando o progresso e a mudana, limitando-se a imitar servilmente seus antepassados; seria incapaz at mesmo de cultivar as frteis terras onde vivia. A nica vantagem dos africanos sobre os americanos, segundo a verso buffo-niana, que os negros seriam capazes de escapar da sua eterna preguia e indolncia [...] para cercar as mulheres. Contudo morreriam jovens, mergulhados desde muito cedo na esbrnia, esgotando-se rapidamente em virtude da sua exorbitante atividade sexual. Este retrato picante do africano estava destinado a ter um duradouro sucesso.

    interessante observar que a escravido negra comparada indgena permaneceu em desvantagem em todo o perodo colonial, pois se, em redutos da Igreja, surgiram vozes em defe-sa da causa indgena, o mesmo no ocorreu com o escravismo africano, com rarssimas ou quase inexistentes excees. Ressalta-se tambm, que, ao contrrio dos amerndios, como observa Gorender (1985, p. 125), [...] os africanos chegaram ao Brasil j destribalizados, arrancados do meio social originrio e convertidos fora em indivduos dessocializados. importante mencionar que eram africanos de vrias etnias, com culturas heterogneas, lnguas e costumes diferentes. Mesmo assim, como bem destaca Vainfas (1986, p. 80), Ao contrrio da indgena, a escravido africana nunca chegou a ser questionada nesta poca, sendo objeto de simples observaes, ou surgindo como soluo para o trabalho na colnia em face dos limites que a su-jeio de nativos impunha aos senhores. Poucos, como Anchieta, Cristvo Gouveia, Antonio Vieira, Jorge Benci, Nuno Marques Pereira e Manuel Ribeiro da Rocha, chegaram a debater a legitimidade do escravismo africano. A prpria Igreja, durante o perodo colonial, manteve-se

  • 38

    silenciosamente omissa diante da condio do escravo negro e, muitas vezes, legitimando a escravido com base no sofrimento deste, como defendia Pe. Antonio Vieira (1633, p. 30-31), por exemplo: em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado [...] porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na Sua cruz, e em toda a Sua paixo. A Sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho de trs.

    E, mais adiante, acrescenta, Os ferros, as prises, os aoites, as chapas, os nomes afron-tosos, de tudo isto se compe a vossa imitao, que se for acompanhada de pacincia, tambm ter merecimento de martrio.

    Goulart (1949) resume a posio diferenciada da Igreja quanto aos indgenas e aos afri-canos, considerando que a poltica do Vaticano era de proteo aos ndios americanos e de aprovao da escravido negra. Todavia, essa proteo da Igreja aos indgenas deve ser interpre-tada em relao escravido negra, pois a violncia na converso dos povos indgenas foi aceita pela Igreja, como tambm no impediu que os ndios sofressem durante sculos todas as formas de massacre. O que se quer afirmar que, de certa forma, a Igreja adotou polticas em relao questo indgena, promoveu debates e discusses, enquanto que, no que diz respeito escra-vido africana, foi completamente omissa e conivente com os interesses econmicos coloniais. Gorender (1985, p. 128) observa que, enquanto os ndios contavam [...] em sua defesa com os dominicanos e jesutas e com o prprio Vaticano, os negros tiveram desde cedo sua escravizao sancionada pela Igreja Catlica. Os jesutas, no s recomendaram o emprego de africanos no Brasil como exploraram escravos negros.

    Percebe-se que o tratamento da Igreja quanto escravido indgena e negra no processo colonial foi diferenciado. Dussel (1979, p. 278) ainda observa que A Igreja considera o ndio como homem, no amplo sentido metafsico e antropolgico, mas ao mesmo tempo considera--o socialmente incapaz de igualar-se aos espanhis [...]. Mesmo que de uma humanidade diminuda, infantil e ainda vazia, um movimento expressivo da Igreja trabalhou para o reco-nhecimento da humanidade indgena, entretanto destruindo culturalmente os inmeros povos amerndios. Quanto aos escravos negros, a condio dos africanos teve outro tratamento e outra perspectiva, no apenas econmica, mas tambm antropolgica.

    Durante o Brasil colonial, por exemplo, no houve um s tratado preocupado com a escravido africana (VAINFAS, 1986). A escravido dos indgenas foi objeto de polmica, so-

  • 39

    bretudo entre jesutas, diferentemente do que ocorreu com a escravido negra, que, a rigor, no foi motivo de preocupao ou dvida. De acordo com a carta de Lus Brando, jesuta e reitor do Colgio de Luanda, enviada para o jesuta Alonso de Sandoval, em 1611, nota-se o relativo consenso entre os jesutas sobre o escravo negro, [...] Nunca consideramos este trfico ilcito. Os padres do Brasil tambm no, e sempre houve, naquela provncia, padres eminentes pelo seu saber. E afirma ainda, [...] Assim, tanto ns como os padres do Brasil compramos aqueles escravos sem escrpulos [...]. Na Amrica, todo escrpulo fora de propsito. (HOORNA-ERT; AZZI, 1979, p. 261).

    At a presena dos escravos africanos nas igrejas era proibida, ou porque eram pequenas, ou porque os senhores reclamavam do mau cheiro (LEITE, 1938-1950). Por isso, em alguns engenhos, havia igreja somente para os negros, geralmente conhecida como capela dos pretos.

    Da mesma forma que os indgenas, os povos africanos foram violentamente condenados pela Igreja em virtude das suas manifestaes religiosas e da variedade de sua f. E, naturalmen-te, o processo da converso foi mediante a imposio da fora e do castigo. O paganismo dos negros africanos era tambm um dos critrios de identificao da barbrie. Como cita Benci (1977, p. 56): Entre essas gentes h gente que mais tem de bruto que de gente. H alarves em Guin to rudes e boais, que s o vosso poder (dos senhores) lhes poder meter o Padre Nosso na cabea.

    No Brasil, por exemplo, os letrados coloniais estavam convencidos da legitimidade da escravido africana, a preocupao era apenas tornar a escravido negra mais duradoura, mais estvel, mais produtiva e menos violenta (VAINFAS, 1986). O prprio Gobineau, em visita ao Brasil, afirmou [...] o que fato, a completa ausncia de qualquer educao moral entre os negros, sua depravao natural que absoluta e a reao que ela provoca entre os senhores. (READERS, 1976, p. 114). Trata-se da pior viso sobre os negros, sua permanente condio fora do crculo da humanidade. E pode-se constatar com que intensidade isso se estabeleceu, ao observar o que Gobineau concluiu: No Brasil, como em todo o resto da Amrica, a escravido causou maior mal aos possuidores de escravos do que aos prprios escravos (READERS, 1976, p. 114).

    Nunca havia ocorrido uma experincia de escravido em um nmero to elevado e de maneira to sistematicamente organizada (SILVA FILHO, 2005). Como destaca Vainfas

  • 40

    (1986, p. 32), [...] trabalho compulsrio s populaes nativas e aos africanos, capturados e vendidos como escravos nas colnias, em ritmo e volume at ento inditos. O cruel trfico negreiro caracterstico no incio da Modernidade marca a maior experincia histrica de escra-vismo, inclusive, muitos nomes importantes do renascimento e da ilustrao eram acionistas do comrcio de escravos, entre eles Voltaire, uma das personalidades mais consagradas de Eu-ropa do sculo XVIII. Para Gobineau, em seu Ensaio, a raa negra era ainda inferior amarela (SILVEIRA, 1999), ou seja, os escravos africanos estavam na escala mais inferior e barbarizada da condio humana. O negro [...] um animal que come o mximo possvel e trabalha o mnimo possvel, escreveu Gobineau (SILVEIRA, 1999, p. 109). Na obra La psychologia ethnique, um dos grandes mdicos, escritor e homem pblico, Charles Letourneau, observou sobre os negros Em geral, a repetio rotineira e diria das mesmas prticas criou, entre os pretos selvagens, hbitos maqunicos, que adquiriram uma potncia anloga dos instintos animais (SILVEIRA, 1999, p. 120).

    Nesse sentido, observa-se que o processo da formao do conceito da barbrie radi-calmente presente nos ciclos histricos do Ocidente. Desde a antiguidade grega e romana, nas perseguies religiosas medievais e no encontro dos colonizadores com os povos indgenas e nativos africanos, a ideia da barbrie recorrente. No prximo captulo, analisar-se- de que forma epistemolgica o conceito da barbrie foi implantado no colonialismo e na fundao da Modernidade, identificando os discursos relacionados ao binmio civilizao e barbrie.

  • 41

    2 EPISTEMOLOGIA (DES)COLONIAL DA BARBRIE

    A concepo da barbrie assume carter fundamental na Modernidade, como categoria oposta do projeto civilizatrio iluminista. As teorias fundantes da Modernidade, a vontade universalista e dominadora, fazem da barbrie o principal recurso de justificao do colonia-lismo. Barbrie e colonialismo se confundem, tanto em seus pressupostos tericos como na prtica da experincia histrica. Nesse sentido, a civilizao como cultura dos modos da corte, como represso dos sentidos, privatizao dos corpos e, acima de tudo, como ideia de supre-macia da humanidade, pice da trajetria humana, surge na Modernidade, e do colonialismo se utiliza para massacrar e assassinar milhares de povos; ou seja, civilizao e Modernidade so pleonasmos, e barbrie e colonialismo do as mos no processo histrico genocida da poltica eurocntrica.

    2.1 BARBRIE E O PROCESSO CIVILIZADOR NO PROJETODA MODERNIDADE: AUTOCONSCINCIA DA CORTEE CULTURA DOS COSTUMES

    H, portanto, uma barbrie que toma forma e se desencadeia com a civilizao. (MO-RIN, 2009, p. 15)

    O iluminismo se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os ho-mens. Ele os conhece, na medida em que os pode manipular. (HORKHEIMER, 1991, p. 7)

    [...] civilizao moderna , por essa razo, um pleonasmo. (BAUMAN, 1998, p. 7)

  • 42

    Contexto histrico: modernidade, formao do Estado e iluminismo O curioso nesse momento histrico do Ocidente a oposio contraditria que se insta-

    la. Por um lado, o projeto do humano civilizado, os costumes da corte, o indivduo iluminado pelo racionalismo, e por outro, milhares de pessoas condenadas condio no humana: ndios e negros multido de seres aoitados pela etiquetagem da barbrie. De incio, significativo ressaltar que o processo histrico de afirmao do homem racional, cognitivamente fundado no Iluminismo, fortaleceu o modelo civilizatrio, em oposio diversidade humana, tida como brbara e selvagem. A filosofia iluminista possui um carter tipicamente enciclopedista, catalogrfico, no sentido de organizar a humanidade com base no referencial das luzes. A cons-cincia do progresso e da superioridade acompanha o esprito expansionista do colonialismo. Como bem aponta Cassirer (1994, p. 22), nesse sentido que se apresenta, para o conjunto do sculo XVIII, o problema do progresso intelectual. No existe um sculo que tenha sido to profundamente penetrado e empolgado pela ideia de progresso intelectual quanto o Sculo das Luzes.

    O Iluminismo a sntese de um processo histrico, do renascimento cientfico, das reformas protestantes e da fundao do Estado. A expanso do progresso intelectual norteia-se em um sentido qualitativo, deseja atingir os selvagens e brbaros pela luz da razo, tomando por base uma concepo particular de racionalidade. Como assevera Gerbi (1996, p. 132):

    A Europa das luzes, em sua decisiva tomada de conscincia de si prpria como civilizao nova e caracterstica, com uma misso universal e no mais apenas e simplesmente crist, dava-se conta da necessidade de enquadrar em seus esquemas aquele mundo transoce-nico que havia retirado das trevas, do qual dera uma primeira e sumria impresso, que quase no possua relaes exceto com a prpria Europa e que, depois de haver desfeito as iluses de seus primeiros apologistas do sculo XVI, parecia novamente oferecer paradig-mas exemplares de vida e promessas de futuro esplndido.

    A prpria formao do Estado, a justificativa terica do contrato, possui em comum em Hobbes, Locke e Rousseau a concepo do estado de natureza, e esse estado se assemelha em muito ao da selvageria e da barbrie. Nesse sentido, o Estado Moderno pode ser pensado como

  • 43

    uma fico poltica de combate barbrie, dentro da perspectiva do projeto civilizatrio. Ape-sar de aspectos particulares entre os contratualistas, o estado de natureza deve ser superado e resolvido pelo contrato. Sair do estado de natureza e contratar com o Estado uma outra forma de trocar a barbrie pela civilizao. Como assinala Cassirer (1994, p. 359), O contrato social encarrega-se dessa nova construo: ele transformar o atual estado de coero em estado de razo, a sociedade que obra da necessidade cega numa obra de liberdade. Fora do Estado, a vida irracional, selvagem, brbara. Em relao a isso, indicam Castan, Lebrun e Chartier (1991, p. 23), [...] por um lado, faz das mutaes do Estado e de seus efeitos sobre o espao social o fator decisivo para entender como pde se organizar uma nova diviso dos comportamentos. A criao do Estado elemento fundamental para a concepo de civilizao na Modernidade.

    Conceitos de civilizao e cultura: francesa e alem

    O conceito de civilizao no pacfico e, por si s, implica mais de um sentido. Da mesma forma, pensar em civilizao necessariamente significa pensar em barbrie, pois ambos os termos se apoiam de forma mtua, sendo impossvel trabalhar com um e desprezar o outro. A civilizao se explica pela barbrie, e vice-versa. De um modo geral, a civilizao carrega consigo um sentido avanado de sociedade tecnolgica, fundamentada em valores morais e prticas sociais distintas. Implica uma diversidade de razes e prticas, difundidas tipicamente na sociedade europeia do incio da Modernidade. Como aponta Elias (1994, p. 23):

    O conceito de civilizao refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nvel da tecno-logia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos cientficos, s ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de habitaes ou maneira como homens e mulheres vivem juntos, forma de punio determinada pelo sistema judicirio ou ao modo como so preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada h que no possa ser feito de forma civilizada ou incivilizada. Da ser sempre difcil sumariar em algu-mas palavras tudo que o que se pode descrever como civilizao.

    de se considerar que a noo de civilizao foi fundamental para as principais teorias surgidas na Modernidade, tanto para o materialismo histrico, par