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Discussões jurídicas contemporâneas .......................................................................... - 1 - A A r r l l e e m m A A l l m m e e i i d d a a D D u u a a r r t t e e d d e e S S o o u u s s a a   n n g g e e l l a a F F e e r r r r e e i i r r a a d d a a S S i i l l v v a a W W i i l l s s o o n n M M e e d d e e i i r r o o s s P P e e r r e e i i r r a a O O r r g g a a n n i i z z a a d d o o r r e e s s Discussões jurídicas contemporâneas. Coletânea de estudos 2 VirtualB B B Books Editora Discussões jurídicas contemporâneas .......................................................................... - 2 - © Copyright 2015, organizadores e autores. 1ª edição 1ª impressão (publicado em junho de 2015) Todos os direitos reservados, protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização dos organizadores e autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) DISCUSSÕES JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS. COLETÂNEA DE ESTUDOS 2 Arlem Almeida Duarte de Sousa, Ângela Ferreira da Silva, Wilson Medeiros Pereira Organizadores. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2015.14x20 cm. 154p. ISBN 978-85-434-0583-4 1. Direito. Brasil. Título. CDD- 340 _______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

Discussões jurídicas Dados Internacionais de Catalogação ...funorte.edu.br/wp-content/uploads/2017/09/Discussoes_juridicas... · Graduada em Letras Português/Francês e suas

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Discussões jurídicas contemporâneas

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Discussões jurídicas

contemporâneas. Coletânea de estudos 2

VirtualBBBBooks Editora

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© Copyright 2015, organizadores e autores. 1ª edição

1ª impressão

(publicado em junho de 2015) Todos os direitos reservados, protegidos pela Lei 9.610/98. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, em qualquer meio ou forma, nem apropriada e estocada sem a expressa autorização dos organizadores e autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) DISCUSSÕES JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS. COLETÂNEA DE ESTUDOS 2 Arlem Almeida Duarte de Sousa, Ângela Ferreira da Silva, Wilson Medeiros Pereira Organizadores. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2015.14x20 cm. 154p. ISBN 978-85-434-0583-4 1. Direito. Brasil. Título. CDD- 340

_______________ Livro editado pela VIRTUALBOOKS EDITORA E LIVRARIA LTDA. Rua Porciúncula,118 - São Francisco Pará de Minas - MG - CEP 35661-177 - Tel.: (37) 32316653 - e-mail: [email protected] http://www.virtualbooks.com.br

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ORGANIZADORES

Ângela Ferreira da Silva Pedagoga. Graduada em Normal Superior Anos Iniciais/Educação Infantil e em Pedagogia Licenciatura - Faculdades Integradas do Norte de Minas.

Especialista em Pedagogia nos Espaços não Escolares, Supervisão e Inspeção Escolar. Atualmente é Assistente Administrativo Pedagógico – Funorte. Tem experiência na área da Educação, com ênfase em Educação

nas séries iniciais e Secretaria Acadêmica.

Árlen Almeida Duarte de Sousa

Professor do curso de Graduação em Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas.

Coordenador de Pesquisa do Curso de Graduação em Direito. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Montes Claros –

Unimontes. Doutorando em Ciências da Saúde pela Unimontes.

Wilson Medeiros Pereira Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade

Estácio de Sá/ Rio de Janeiro. Juiz Federal (TRF1ª Região). Especialista em Direito Econômico e Empresarial e em Direito Público.

Professor e Coordenador do Curso de Direito da Funorte.

REVISORA

Cássia Maria Aquino Suzart. Graduada em Letras Português/Francês e suas literaturas pela Universidade

Estadual de Montes Claros _ FUNM / UNIMONTES. Especialista em Linguística Aplicada- Leitura e Produção Textual. Possui experiência em

docência em cursos médio e superior, cursos preparatórios, pré-vestibulares, consultorias e na coordenadoria da Educação a Distância/Polo

(EAD) Norte de Minas. Sócia- proprietária, coordenadora e docente no Logos Sociedade Educacional Montes Claros-MG, área de Português.

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CONSELHO EDITORIAL

Jaime Mendonça editor

Evane Machado Assistente editorial

Lívia Machado Revisora

Fabrício Caetano Rios Preparador de texto

Marcus Vinicius Marinho designer

Adriano Correa Barros Marcos Otávio Leite Impressores

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APRESENTAÇÃO

A Instituição de Ensino Superior é considerada a maior

ferramenta utilizada na construção e disseminação do conhecimento científico, pois proporciona aos estudantes e docentes um ambiente de reflexão. Dentro desse contexto, percebe-se que a produção científica se tornou parte essencial no crescimento profissional do estudante da área do Direito.

Uma Instituição de Ensino estabelece laços perenes com seus estudantes, devendo acompanhar e estimular a inserção deles no mercado de trabalho. Pensando nisso, o Curso de Direito da Funorte colocou em execução um projetor desafiador com seus acadêmicos e egressos. Com fincas ao estímulo e desenvolvimento da pesquisa científica, os melhores trabalhos de conclusão de curso serão publicados em livro ou revista de alcance nacional.

A presente obra é a primeira publicação advinda desse projeto. Após uma percuciente análise, foram escolhidos onze trabalhos de conclusão de curso, os quais dispõem sobre variados temas e que provocam grandes debates no mundo jurídico. Indubitavelmente, não se propõe estancar as discussões tratadas, mas fornecer e/ou sugerir aos leitores possíveis e novas perspectivas dos temas abordados.

Os organizadores.

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PREFÁCIO

Ainda me pergunto o que levou aos organizadores

desta prestigiada obra a me escolherem para prefaciar esse

livro. A tarefa a mim confiada deixou-me extremamente

honrada, mas também preocupada de não conseguir levar a

cabo tão importante tarefa.

Preocupei-me de não ser capaz de demonstrar, em

poucas linhas, a importância da obra e o orgulho de participar

dessa equipe. Entretanto, após a leitura dos artigos, que trazem

temas tão relevantes e contemporâneos, percebi, expostas em

cada capítulo, a dedicação, a inteligência, a eloqüência e a

riqueza de conhecimentos de seus autores.

Sinto-me honrada por ser colega de academia dos

professores e por ter participado da formação de tão brilhantes

profissionais – alunos formados em nossa Instituição.

Além da excelente formação profissional promovida

pelo Curso de Direito da Funorte, o despertar para a pesquisa

científica, desenvolvida pelos profissionais que nele atuam,

carreia para o Curso mais um diferencial. A publicação de

livros é fruto dessa alvissareira estratégia.

Montes Claros e todo o acervo jurídico nacional

ganham uma brilhante obra, publicada por mestres e

aprendizes do curso de Direito das Faculdades Integradas do

Norte de Minas.

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O que mais dizer? Aproveitem a leitura e enriqueçam

seus conhecimentos!

Cinara de Jesus Fagundes Silva

Advogada, formada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pós-Graduada em Ciências Penais pela Unimontes, Diretora do Campus São Norberto da Funorte, Secretária-Geral da Funorte-Fasi.

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SUMÁRIO Apresentação / 00

OS DIREITOS SOCIAIS E A RESERVA DO POSSÍVEL: A GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ACESSO À SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO / 00 Danilo Soares de Oliveira Wilson Medeiros Pereira A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS / 00 Lorrany Ribeiro Cavalcante Antônio Luiz Nunes Salgado EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA: natureza jurídica / 00 Pablo Isidoro Rodrigues

Vinícius Rodrigues Pimenta

EUTANÁSIA: DIREITO À VIDA X DIREITO À MORTE DIGNA / 00 Tatiane Santos Neves Adriano De Abreu Silva POSSIBILIDADE DE REVISÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA FRENTE AO ABORTO: SAÚDE DA MULHER E O DIREITO DE AUTONOMIA SOBRE O PRÓPRIO CORPO / 00 Wanessa Diniz Veloso Gisele de Cássia Gusmão

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OS DIREITOS SOCIAIS E A RESERVA DO POSSÍVEL: A GARANTIA CONSTITUCIONAL DE ACESSO À SAÚDE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO

ESTADO

Danilo Soares de Oliveira*

Wilson Medeiros Pereira**

Introdução

Os direitos sociais possuem assento constitucional de direitos fundamentais do homem, ou seja, estão enunciados em normas constitucionais que têm, por escopo, proporcionar melhores condições de vida ao ser humano. Esses direitos mencionam deveres de prestação positiva, porque resultam de uma ponderação de princípios e valores contrapostos, restringindo-se aos direitos mínimos, configurando o direito a prestações positivas destinadas a assegurar o mínimo existencial. Dentre os direitos sociais, temos, por destaque, o direito à saúde.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988, no capítulo destinado à Seguridade Social, traz, em seu artigo 196, o direito à saúde como dever do Estado que deve promovê-lo em políticas

* Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas (FUNORTE). Advogado. Assessor jurídico do município de Francisco Sá- MG. Secretário Executivo do CIS – Grão Mogol, (Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região de Grão Mogol). Pós-graduando em Micropolítica da Gestão e Trabalho em Saúde pela Universidade Federal Fluminense. ** Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá/ Rio de Janeiro. Juiz Federal (TRF1ª Região). Professor do Curso de Direito da Funorte.

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sociais e econômicas visando à redução do risco de doenças, proporcionando acesso universal e igualitário aos seus destinatários. Nesse sentido, a saúde é um bem jurídico de todos tutelado pelo Estado, por ter status de direito público e subjetivo.

Entretanto, nos últimos tempos, surgiram questões de avançada polêmica, que se estabelecem como base norteadora deste capítulo, pois como o Estado garantirá esse direito como fundamental, se os seus recursos são escassos e devem tutelar a todos? Procura-se, neste capítulo, fazer a interface entre o direito à saúde como direito social, fundamental à dignidade da pessoa humana e a obrigação do Estado em prestá-la, frente ao princípio da reserva do possível. Essa expressão foi criada pelo Tribunal Constitucional Alemão, segundo o qual as limitações de ordem econômica podem comprometer, sobremaneira, a plena implementação dos ditos direitos sociais, tal qual o direito à saúde.

O presente capítulo busca investigar precisamente esse fenômeno, a partir de uma concepção analítica dos direitos fundamentais sociais, em ter o direito à saúde. 1 Direitos sociais na carta constitucional de 1988

Os direitos sociais adquiriram dimensão jurídica a partir do momento em que as constituições passaram a abarcá-los sistematicamente, no início na Constituição mexicana de 1917. A primeira Constituição brasileira a dedicar um título sobre a ordem econômica e social foi a de 1934, que teve como influência a Constituição Alemã de Weimar e continuou nas constituições vindouras.

A Carta Magna promulgada em 1988 introduziu uma nova ordem jurídica no Brasil, em reflexo aos anseios e perspectivas das camadas mais diversas da população,

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voltada, sobretudo para o respeito aos direitos humanos, à dignidade da pessoa humana, em um ambiente plural e democrático. Estruturada, de forma “compreensiva”, ela consagrou valores do Estado Liberal e do Estado Social, buscando, com isso, criar organismos capazes de realizar um ideal de sociedade plural, justa e igualitária.

Uma das inovações mais marcantes do texto constitucional de 1988 foi o enquadramento de uma série de direitos antes relegados à ordem social e econômica como autênticos direitos fundamentais, os chamados direitos fundamentais sociais. Com isso buscou-se minimizar a desigualdade econômica que marca a sociedade brasileira, bem como conferir direitos que contemplassem todos os cidadãos de modo a lhes garantir condições dignas de sobrevivência e participação nos processos democráticos. É o que se depreende do artigo 6° da Constituição, segundo o qual todos têm direito à educação, à saúde, à moradia, à assistência social, à previdência e ao lazer. Desse modo, a Carta Magna determinou ao Estado que não permanecesse inerte e atuasse, de forma concreta e efetiva, na realidade social, fomentando, aprovisionando e garantindo tais direitos. Na lição de José Afonso da Silva:

Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se conexionam com o direito da igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível

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com o exercício efetivo da liberdade. A Constituição protege a cura e a prevenção de doenças através de medidas que asseguram a integridade física e psíquica do ser humano como consequência direta do fundamento da dignidade da pessoa humana. (2005, p. 307- 309).

Conforme ensinamento acima, os direitos sociais

possuem status de direitos fundamentais de segunda dimensão e têm, como base, as liberdades reais ou concretas, que buscam impor diretrizes ao Estado que garantam a existência humana digna como forma de promoção da liberdade, igualdade e, consequentemente, da dignidade da pessoa humana. Esses princípios norteadores dos direitos sociais encontram-se amplamente difundidos na nova ordem constitucional por base no Estado Democrático e Social de Direito.

Faz-se necessário compreender que a garantia de efetividade dos direitos sociais, como prestações positivas do Estado, está necessariamente ligada à capacidade de destinação de recursos públicos essenciais ao cumprimento do ideal constitucional, por se tratar de matéria estritamente vinculada não apenas a ordem política, mas, também, econômica estatal.

Nesse contexto, os direitos sociais são tidos como prestações estatais positivas que são efetivadas a partir de um agir estatal que possibilita a efetivação aos direitos coletivos. Portanto não devem ser vistos como direitos contra o Estado, mas como uma forma de atuação Estatal que busca assegurar direitos fundamentais como saúde, educação, cultura, moradia, alimentação, dentre outros. “Desta forma, ao passo que os direitos individuais se apresentam como liberdades em face ao Estado, os direitos sociais representam defesas do

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indivíduo em face da dominação de outros indivíduos” (BARROSO, 200a 8, p. 97).

Assim, o reconhecimento e a consequente intervenção do Estado, na efetivação das garantias sociais, possibilitam uma atuação mais precisa em prol dos que, em condições desiguais, são governados. “A sua aplicabilidade se traduz em uma obrigação de fazer, uma atividade positiva, uma ação por parte do Estado, que leva a efeito o reconhecimento dos direitos sociais e, consequentemente, torna possível o exercício de direitos e liberdades fundamentais em conjunto” (QUEIROZ, 2009, p. 291).

Esse é o ponto central no debate a respeito da exigibilidade dos direitos sociais, pois para a tutela de um determinado direito social como o acesso à saúde, no caso concreto, esse pode obrigar o Estado a realizar gastos públicos e, uma vez que os recursos públicos disponíveis são menores do que o necessário para oferecer a todos os cidadãos os direitos que a Constituição prevê, muitas vezes, a Administração não tem ou não pode dispor dos recursos necessários para atender, de forma efetiva e concreta, um direito tão essencial como a saúde.

2 A efetividade da aplicação das normas de direitos sociais

O Estado opera mediante a efetivação normativa e a implementação de serviços públicos, ao deliberar e exercer políticas sociais, cunhar direitos e promover sua aplicabilidade e efetividade.

É predominante, na doutrina pátria, no tocante à aplicabilidade da norma constitucional, que ela se dá com una sistemática tripartida. Nesse contexto, encontramos as normas de eficácia plena_ aquelas que possuem efeitos imediatos, ou normas de eficácia contida, cujos efeitos podem ser limitados.

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Finalmente as normas de eficácia limitada_ dependentes de legislação posterior que as regulamentem e podem, ainda, serem divididas em normas de princípio institutivo e de princípio programático.

Neste contexto, descreve a professora Angélica Padilha Servegnini (2013, p.08):

Os direitos e garantias fundamentais explícitos são os preceitos elencados no título II da Constituição da República, e neles estão inclusos os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade, os direitos políticos e os direitos dos partidos políticos. Uma interpretação literal do preceito constitucional permitiria acreditar que todos os direitos e garantias fundamentais seriam normas de eficácia plena, já que eivados de aplicabilidade imediata. Entretanto, quer pela atual conjuntura socioeconômica brasileira, ou pelos inúmeros outros métodos de interpretação constitucional existente, tal determinação, principalmente no que diz respeito aos direitos sociais, não é aplicada. Muito embora sejam usadas buscando indicar sinonímias, a doutrina apresenta diferenciação no emprego dos termos “eficácia jurídica”, que é a capacidade de uma norma constitucional de produzir efeitos jurídicos, e a “efetividade”, que é o desempenho concreto da função precípua do direito, é a materialização da norma jurídica no mundo dos fatos. Sendo aquele o dever ser, enquanto esta representa o ser.(2013, p. 8).

Assim, os princípios definidores dos direitos e garantias individuais têm aplicabilidade imediata e eficácia plena, enquanto preceitos garantidores de direitos sociais,

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culturais e econômicos nem sempre revelam tal eficácia. Para José Afonso da Silva:

O enunciado Constitucional abrange as normas que preveem os direitos sociais e coletivos e, em regra, pela Constituição vigente, estas também tendem a ter uma exigência imediata, contudo, algumas, principalmente as que mencionam lei integrativa são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. (2005, p. 278).

As normas de eficácia limitada de princípio programático sobre direitos sociais são as mais comuns no texto constitucional; tais preceitos estabelecem metas e finalidades por meio das quais o legislativo ordinário se baseia para concretização adequada. “Essas normas não representam meras recomendações ou sugestões; são na verdade programas, com base no direito aplicado, que buscam a realização de metas e finalidades pelo ente estatal” (KRELL, 2006.p.20).

Nesse sentido, as normas de caráter programático têm como objeto principal a efetivação de ideais sociais que devem ser alcançados, por meio de ações concretas que se consubstanciam em programas políticos governamentais promovidos no Estado democrático de direito. Como é o caso do acesso à saúde, promovido por ideias programáticas advindas da norma principiológica.

Portanto, o que se observa é que o ideal de garantia do exercício efetivo de acesso ao direito fundamental e prioritário como o acesso à saúde, deve ser o basilar ensejo no Estado Democrático de Direito, embora seja um real desafio, principalmente diante da insuficiência de recursos financeiros.

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3 Direito à saúde na Constituição da República de 1988.

A saúde está asseverada, na Constituição, como um direito de todos. O artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”. Sendo assim, a saúde recebeu tratamento de direito público subjetivo.

Ao Poder Público compete estabelecer e programar políticas sociais e econômicas que tenham, por objetivo, garantir aos cidadãos o acesso universal e igualitário à assistência médico hospitalar. A descrição prevista, no artigo 196, possui caráter programático, tendo como destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a ordem federativa do Estado brasileiro. A Constituição tem, por objetivo, promover a cura e a prevenção de doenças com mecanismos que assegurem a integridade física e psíquica do ser humano como resultado direto do fundamento da dignidade da pessoa humana.

Embora entendido como um direito constitucional de caráter programático, o direito à saúde confunde-se com o direito fundamental de premissa maior_ o direito à vida. Entretanto essa dimensão prestacional do direito à saúde colide com a insuficiência de recursos financeiros do Estado face às eternas demandas da sociedade, haja vista que a formulação e implementação de políticas públicas pressupõem a realização de escolhas pelo poder público que, invariavelmente, afetam, de maneira distinta, as diferentes frações da sociedade.

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4. Princípios norteadores do direito à saúde

Princípio, palavra emanada do latim principium, principii, denota “fonte”, “origem”, “base”. Paulo de Barros Carvalho ensina que “Princípios são linhas diretivas que informam e iluminam a compreensão de segmentos normativos, imprimindo-lhes um caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas” (1991, p. 90).

Para Celso Ribeiro Bastos (1999.p.154),

São os princípios constitucionais aqueles valores albergados pelo Texto Maior a fim de dar sistematização ao documento constitucional, de servir como critério de interpretação e finalmente, o que é mais importante espraiar os seus valores, pulverizá-los sobre todo o mundo jurídico.

Nesse ensaio, em sede do direito à saúde, serão abordados os princípios da igualdade e da proporcionalidade.

4.1. Princípio da igualdade

O princípio da igualdade, desde a sua criação até a

atualidade, foi interpretado das mais diversas formas. Na concepção Aristotélica, o princípio da igualdade consiste em “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam”.

Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 41) esclarece em que “hipótese pode a lei estabelecer discriminações e em que situações, inversamente, o discrímen legal colide com a isonomia”. No entendimento do jurista, as discriminações são admissíveis quando houver uma correlação lógica entre o fator de discrímen legal e a desequiparação

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procedida e que esteja alinhado com os interesses apresentados na Constituição da República.

Em síntese, segundo Mello, existe necessidade da concorrência de quatro elementos, para que não se fira o princípio da isonomia. Em primeiro lugar, que a falta de equiparação não atinja, de modo atual e absoluto, a um só indivíduo. Em segundo lugar, que as situações ou pessoas não equiparadas pela regra de direito sejam, efetivamente, distintas entre si; vale dizer, possuam características e traços a fim de diferenciá-las. Em terceiro, que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatos diferenciais existentes e a distinção de regime em função deles, estabelecida pela norma jurídica. E, em quarto e último ponto, que, em concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundamentada, em razão valiosa_ ao lume do texto constitucional_ para o bem do público.

Nesse sentido, a interferência do Poder Judiciário, no sentido de dar efetividade ao direito à saúde, pode incidir em desrespeito ao princípio da igualdade como, por exemplo, nas situações de fila para transplante de órgãos em determinados tratamentos. Aqueles que estão na fila são preteridos, uma vez que a decisão judicial, para atender aquele outro, tem que ser respeitada. Lado outro, nem todos reúnem condições necessárias para ingressar ao Judiciário visando à satisfação do seu pleito. 4.2 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, na ótica do critério da estrita necessidade, também conhecido como princípio da vedação de excesso, é capaz de impedir agressões que possam

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vir a ocorrer sob o fundamento do direito à saúde. Exemplifica-se, na seguinte hipótese, se um dado tratamento médico pode ser realizado no Brasil, de forma eficaz e a baixo custo, seria uma violação ao princípio da proporcionalidade, a medida que determinasse que esse procedimento fosse realizado no exterior, acarretando maiores custos ao Poder Público. Por outro lado, também não seria razoável garantir um tratamento de alguém que esteja acometido de stress, à custa do Estado, em um determinado centro de beleza.

Segundo a Subprocuradora Geral do

Distrito Federal, Leny Pereira da Silva (2013, p. 24): Os direitos fundamentais, devido à carga axiológica neles constantes, peculiar de normas-princípios, convivem em conflito permanente, restringindo-se mutuamente. Por essa razão, quando há um conflito entre direitos fundamentais, é possível restringir o raio de alcance de um desses direitos com base no princípio da proporcionalidade, objetivando dar maior efetividade ao outro direito fundamental em questão. Assim, a proporcionalidade serve como critério de aferição da legitimidade de limitações aos direitos fundamentais. A doutrina, guiada em decisões da Corte Constitucional Alemã, tem mostrado três dimensões ou discernimentos do princípio da proporcionalidade, quais sejam a adequação, a necessidade ou vedação de excesso e a proporcionalidade. Em sentido restrito, será admissível uma limitação a um direito fundamental se estiverem presentes na medida limitadora todos esses aspectos. Esses critérios citados correspondem, respectivamente, às seguintes perguntas mentais que devem ser feitas para se considerar a validade de medida limitadora: a)

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o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado almejado? b) o meio escolhido foi o ‘mais suave’ ou o menos oneroso entre as opções existentes? c) o benefício alcançado com a adoção da medida buscou preservar direitos fundamentais mais importantes (axiologicamente) do que os direitos que a medida limitou? Nesse sentido, caso todas as respostas sejam afirmativas será legítima a limitação ao direito fundamental.

Portanto o princípio da proporcionalidade não é útil

apenas para verificar a validade material dos atos do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que limitam direitos fundamentais como o direito à saúde, mas, também, para observar a própria legitimidade da decisão judicial, neste aspecto um verdadeiro limite à decisão jurisdicional. O juiz, ao garantir um direito fundamental, deve estar ciente de que sua ordem deve ser adequada, necessária, não excessiva e proporcional em sentido estrito.

5 Direito à saúde e sua prestação pelo estado

A Constituição da República preconiza que todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes, no Brasil, têm assegurado direito à saúde. Afirma, ainda, que o Estado tem o dever de garantir o acesso às ações e serviços de saúde, com o objetivo de oferecer uma assistência integral, universal e igualitária a todos os cidadãos para promoção, prevenção e recuperação da saúde.

Com o advento a Constituição da República de 1988, muitas ações jurídico-institucionais criaram as condições de viabilização plena do direito à saúde no Brasil. Nesse contexto, ressalta-se a Lei nº 8.080/90, que define e estrutura o funcionamento dos serviços de saúde; a Lei nº 8.142/90, que

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garante a participação dos usuários do sistema na gestão desses serviços e a transferência de recursos financeiros intergovernamentais e a Portaria nº 3.916, que aprova a Política Nacional de Medicamentos.

A Carta Magna de 1988, no seu art. 198, versa sobre as ações e os serviços públicos de saúde que devem ser garantidos a todos os cidadãos para a sua promoção, proteção e recuperação, isto é, dispõe sobre o Sistema Único de Saúde – SUS. Esse é um sistema público de saúde cuja finalidade é proporcionar o acesso à saúde, de forma gratuita, a todos, independente de crença, cor, classe social, uma vez que todos têm o mesmo direito. Esse sistema, em sua atribuição deve garantir ao cidadão o acesso às ações e aos serviços públicos de saúde, conforme campo demarcado pelo art. 200 da Constituição da República bem como legislação esparsa específica.

O Sistema Único de Saúde concebe um direito social previsto constitucionalmente, regido pelos princípios de universalidade, igualdade, integralidade e participação popular, bem como pela defesa da saúde como um direito humano. A universalidade do atendimento, presente no ordenamento jurídico brasileiro, está ligada à gratuidade no acesso aos serviços, independentemente de nacionalidade, classe social ou contribuição para o Fundo Nacional de Saúde, àqueles cidadãos que necessitarem de um serviço de atendimento à saúde, logo tem, como objetivo, modificar as desigualdades na assistência à saúde de toda a população. Esse atendimento público torna-se obrigatório a qualquer pessoa, sem nenhum tipo de discriminação; todavia, quando a discussão é o financiamento desse direito social fundamental pelo Estado, é preciso indagar se a saúde é realmente um direito de todos e se o Estado, de fato, pode garantir tal direito

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de forma plena. Nesse contexto, enfatiza Ingo Sarlet (2008, p. 149) que:

[...] bastou fossem contemplados nas Constituições os denominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentais que dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais e humanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condição de direitos fundamentais destas posições jurídicas.

Assim, embora exista expressa a previsão

constitucional outorgando aos entes políticos, à União, aos Estados e Municípios a promoção e efetivação da garantia de acesso à saúde, muitas vezes esse direito é negado e a justificativa é a insuficiência de recursos, principalmente financeiros.

6 A saúde como direito de todos e dever do Estado e o princípio da reserva do possível

Advinda da Alemanha, da década de 1970, a teoria da

reserva do possível versa que a concretização dos direitos fundamentais dependentes de atuação positiva estão sob a reserva da capacidade financeira do Estado, uma vez que esse necessita de recursos para fazer saciar as inúmeras demandas sociais. Nesse sentido, a falta de recursos obriga o Poder Público a tomar difíceis decisões, relacionadas à melhor alocação desses recursos.

Em relação às políticas públicas de saúde, a aplicação da reserva do possível engloba uma extensão especial, uma vez que esse direito fundamental está revestido de maior significância - o direito à vida –confrontado com

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questões de caráter financeiro e, em última instância, com o próprio direito à vida. No entendimento de Barroso (2007, p. 61):

Aqui se chega ao ponto crucial do debate. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.

Essa observação, quanto à ponderação desses valores tem como fundamento um demasiado ativismo judicial, na medida em que, cada vez mais, os indivíduos buscam o Poder Judiciário para amparo dos mandamentos constitucionais garantidores do direito subjetivo à saúde.

Ana Paula Barcellos (2008, p. 261-262) define a expressão reserva do possível em sua obra, nos seguintes termos:

De forma geral, a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante da necessidade quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta – é importante lembrar que há um

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limite de possibilidades materiais para esses direitos.

Em síntese, o princípio da reserva do possível regula a possibilidade e o alcance da atuação estatal no que se alude à efetivação de alguns direitos sociais e fundamentais, tais como o direito à saúde, ao condicionando à prestação do Estado e à existência de recursos públicos disponíveis.

Fala-se em reserva do possível à brasileira, como lembra Fernando Facury Scaff (2008, p. 149):

Utiliza-se do argumento de que “as necessidades humanas são infinitas e os recursos financeiros para atendê-las são escassos”. Não se pode adotar, contudo, esse entendimento, porque “ninguém tem necessidades, porém ideias sobre as necessidades”, isto é, as pessoas têm “prioridades, graus de necessidade” (WALZER, 2003, p. 88).

Nesse sentido, cabe destacar que o caráter subjetivo pleno dos direitos sociais não é pacífico na doutrina, em especial o direito à saúde. Para alguns doutrinadores, as normas constitucionais, que versam sobre direitos sociais, possuem caráter programático e, nesse sentido, limita-se a fornecer diretrizes e orientações ao Poder Público, ou seja, o direito subjetivo surgirá como resultado das políticas públicas implantadas por meio de legislação infraconstitucional. Esse entendimento pauta-se pelo imperativo de sobrepor os interesses coletivos aos individuais. Sendo assim, o que se pode perceber, na doutrina pátria, é que não existe uma posição clara quanto à aplicabilidade do chamado princípio da reserva do possível, nas ações que versam sobre o direito de

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acesso à saúde, por ser, ainda, uma análise subjetiva de cada caso concreto.

Existe outra questão a ser analisada quando se trata da efetividade do direito à saúde, já que a necessidade de previsão orçamentária é apontada, muitas vezes, como um limite à atuação do Estado para a efetivação de direitos sociais. A Constituição da República de 1988 veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (art. 167, inc. I), a realização de despesas que excedam aos créditos orçamentários (art. 167, inc. II), bem como a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (art. 167, inc. VI).

Depreende-se, assim, que houve uma preocupação do constituinte em delinear todas as despesas realizadas pelo Poder Público. Todavia é evidente que isso não impede o juiz de ordenar que o Poder Público realize determinada despesa para fazer valer um dado direito constitucional, até porque as normas em embate (previsão orçamentária versus direito fundamental a ser concretizado) estariam no mesmo plano hierárquico.

Ainda merece assento, nesse contexto, a questão relacionada com o princípio da separação de Poderes, uma vez que o caráter programático das normas concernentes aos direitos sociais contidos, na Constituição da República, garante aos gestores do Poder Público o direito e a discricionariedade para estabelecer e programar as políticas públicas indispensáveis ao atendimento das necessidades da sociedade. Entretanto, essa prerrogativa dos Poderes Executivo e Legislativo não é absoluta, como mostra o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal

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(STF), Celso de Mello, Relator da ADPF 45 MC/DF, nestes termos:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.

Assim, segundo entendimento do Ministro Celso de Mello, o desempenho estatal deve pautar-se pelo acolhimento das condições mínimas garantidoras da sobrevivência e da dignidade do indivíduo; porém a própria definição desse núcleo existencial mínimo, capaz de proporcionar a vida e a dignidade do indivíduo, é de complexo assentamento e limitação, além de estar subordinada a reservas de cunho financeiro para sua execução. Tal fato é a origem de numerosas discussões doutrinárias e interpretações

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constitucionais, além de diversas teorias, tal qual a reserva do possível. Por outro lado, é verdade que o estado democrático é um estado vinculado à Constituição e à lei e essa vinculação abrange, também, o Poder Judiciário, que não pode exercer funções e tomar decisões que não cabem às suas competências constitucionais.

Nesse sentido, é importante ressaltar que, sendo o orçamento aprovado por uma lei específica do Poder Legislativo, carece de legitimidade o ato de um juiz que proponha alterar essa lei, modificando a afetação das receitas constantes da lei do orçamento, ou que imponha ao Executivo o dever de alterar para que se possa cumprir a sentença de um juiz. O Poder Judiciário e o Poder Executivo não podem usurpar a competência reservada ao Poder Legislativo. Permitir o contrário seria abrir um caminho ameaçador do ponto de vista da estrutura do estado democrático. 7 Direito à saúde e o princípio da reserva do possível na jurisprudência do STF e dos tribunais

Com o advento da Constituição da República de

1988, as decisões do STF relacionadas ao direito à saúde sofreram importantes e consideráveis mudanças. Ainda assim, não se constata um caráter uniforme na jurisprudência do Tribunal que possa definir visivelmente uma convergência.

O Ministro Celso de Mello, na Petição 1246 de sua relatoria, expressa, de forma clara, o entendimento do STF predominante em suas decisões até o momento. Nota-se que a Suprema Corte brasileira entende que questões de ordem apenas econômica não podem servir como argumento para impedir a tutela constitucional do direito à saúde e, consequentemente, à vida. Nas palavras do Ministro:

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Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida.

Nesse entendimento, a ADPF 45 MC/DF, de 2004, concebeu um importante marco no entendimento da Suprema Corte brasileira ao abordar a questão da reserva do possível, não obstante tenha apontado visivelmente que esta não poderia ser evocada para negar ao cidadão condições mínimas de existência:

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...] "Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para,

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em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

Apesar de ter sido julgada e prejudicada pela perda de objeto e não ter oferecido implicações práticas, a ADPF 45 MC/DF representou uma importante transformação na jurisprudência concretizada até então.

Ainda nesse aspecto, a Ministra do STF Carmen Lúcia Antunes Rocha (2005, p. 455), em artigo para a Revista Latino- Americana de estudos constitucionais se expressa:

Os estados não podem dispor de recursos financeiros suficientes para adotar políticas públicas concernentes à saúde necessárias, a fim de garantir plena e integralmente os direitos sociais relacionados a este conteúdo. Mas o cidadão, em estado de penúria e necessidade incontornável e imediata, pode e deve pleitear, inclusive judicialmente, que esse seu direito seja assegurado por determinada medida estatal. A reserva do possível considera que pode ter situação em que a sociedade não seja atendida, mas cidadãos que demonstrem contingência insuperável, sim. Exemplos disso são as situações em que alguém demande determinada providência médica, exames específicos, cirurgias ou medicamentos que são consagrados nas práticas políticas para todos. Aquele que precisar de qualquer dessas providências e que demonstre as que elas compõem o conteúdo do seu direito fundamental poderá exigir sua prestação pelo Estado, ou até mesmo pela sociedade por meio de suas organizações, instituições as quais deverão ser ressarcidas pelo ente estatal competente.

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Por outro lado, Ministra Ellen Gracie, em um dos seus julgados, suspendeu uma decisão que determinava o fornecimento de medicamentos para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantados pelo Estado de Alagoas. Com fundamento na escassez de recursos e na necessidade de limitação de gastos para o atendimento de um número maior de pessoas, a Ministra declarou estar configurada lesão à ordem pública, já que “a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde” (RE nº 422.489/AL-AgR, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Graice, DJ de 18/11/10).

No parecer da Ministra, o artigo 196 da Constituição destina-se à concretização de políticas públicas que visem a alcançar a população como um todo e não atender casos individualizados.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2006, contrariando o princípio da impenhorabilidade dos bens públicos, decidiu que “é lícito ao magistrado determinar o bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde” (REsp. 832.317/RS, julgado em 19.09.2006, DJ 08.11.2006, 178).

Em outra ação julgada, em 21.08.2008, o STJ decidiu com esta dimensão: “Os direitos fundamentais à vida e a saúde são direitos subjetivos inalienáveis, constitucionalmente consagrados, cujo primado em um Estado de Direito Democrático como o nosso, que reserva especial proteção à dignidade da pessoa humana, há de superar quaisquer espécies de restrições legais” (AgRg no REsp 10002335/RS publicado em 22.09.2008).

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Como se nota, a jurisprudência do STJ e também do STF tem sido sempre, com raras exceções, no sentido de reconhecer o dever do estado de fornecer, gratuitamente, medicamentos e tratamentos médicos tendo como fundamente precípuo o direito à vida.

Para tanto a jurisprudência pátria não deve entender esse preceito fundamental, por conceber o direito à saúde como um direito individual, no qual o cumprimento se restrinja a um pedido judicial. No entendimento de Fernando Scaff (2008, p.92), “aprisiona-se o interesse social e concede-se realce ao direito individual”.

Assim, denota-se a consolidação da jurisprudência dos tribunais superiores pátrios quanto à possibilidade do Judiciário garantir direitos fundamentais sociais, atribuindo-lhes a efetividade indispensável à sua fruição. Para tanto, a ponderação de valores deve ser o instrumento norteador para esclarecer a questão debatida, devendo o juiz aplicá-la, com razoabilidade e bom senso, que devem lastrear as decisões judiciais como forma de efetivação à verdadeira justiça.

8 Considerações finais

A saúde, como direito de natureza subjetiva pública, deve ser garantida pelo Estado mediante condutas positivas. Com base nesta premissa e mediante as inúmeras demandas judiciais, hodiernamente, em trâmite, nos tribunais pátrios, ao pleitear o fornecimento de medicamentos, exames ou tratamentos de saúde, constata-se que o cidadão deseja a consolidação, por meio do Poder Judiciário, de direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988.

Todavia, políticas públicas, para realização de direitos sociais, exigem do Estado altos investimentos e disponibilidade de recursos que, na maioria das vezes, são

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menores do que o necessário para garantir a todos os cidadãos os direitos que a Constituição prevê. Dessa forma, muitas vezes a Administração não tem, ou não pode dispor dos recursos suficientes para a concreta satisfação de um direito tão essencial como a saúde, por isso a reserva do possível se apresenta, em determinadas situações, como fundamento para a negativa por parte do Estado no que diz respeito a demandas relacionadas à saúde.

Por outro lado, a saúde é um direito fundamental que necessariamente dignifica um bem maior, a vida. Assim, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurando pela própria Constituição, ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro secundário do Estado, e uma vez configurado esse dilema, a ética jurídica deve impor ao julgador apenas uma razão, o respeito indeclinável à vida.

A questão aqui apresentada está longe de uma solução. A escassez de recursos é real e impõe ao gestor público a realização de escolhas que venham ao encontro dos reais anseios da sociedade, quase sempre por meio da tomada de decisões difíceis. Por outro lado, o direito constitucional à saúde está no cerne do mínimo existencial necessário à dignidade da pessoa humana.

Embora não se vislumbre uma solução única e imediata para o problema da efetividade do direito à saúde no Brasil, é imperiosa a necessidade de uma rediscussão por parte dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário visando a um aprimoramento das políticas públicas de saúde, mediante a racionalização de gastos, o adequado planejamento e a realização de investimentos no setor.

Enquanto isso o Poder Judiciário, como responsável pelo cumprimento de preceitos constitucionais fundamentais_ tal qual o direito à saúde, deve atuar em prol dessa garantia,

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primando pelo caráter universal do atendimento, privilegiando a sociedade como um todo e respeitando os limites orçamentários correspondentes.

9 Referências

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BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6ª Edição. Vol. I. São Paulo, Editora Saraiva 2007.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário. 3ª edição. São Paulo, SP; Saraiva 1999.

KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª edição. São Paulo, SP, Malheiros 2007.

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo: introdução. 3ª Edição. Vol. I. São Paulo, Editora Malheiros, 2007.

QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional. As Instituições do Estado Democrático e Constitucional. São Paulo, SP: RT; Coimbra, 2009.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para eficácia dos

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direitos fundamentais. Revista Trimestral de Direito Público, n. 16, 1996, p. 46 apud KRELL, Andreas J., op. cit., p. 20.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (2005). O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais, jan./jun., n.5, p. 439-461.

SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. . In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais – orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 149-172.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24ª. Edição. São Paulo, Editora Malheiros, 2005.

SILVA, Leny Pereira da. Direito à saúde e o princípio da reserva do possível. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/DIREITO_A_SAUDE_por_Leny.pdf> Acesso em: 27 set. 2013.

SERVEGNINI, Angélica Padilha. A efetividade dos direitos sociais diante da atual conjuntura econômica: a reserva do possível e mínimo existencial frente ao direito à moradia e o direito à alimentação. Disponível em: <http://www.periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/viewFile/1492/1258> Acesso em: 15 set. 2013.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES TRIBUTÁRIOS

Lorrany Ribeiro Cavalcante*

Antônio Luiz Nunes Salgado**

Introdução

O presente artigo objetiva analisar a aplicação do Princípio da Insignificância aos crimes tributários e, secundariamente, verificar quais os requisitos para que seja possível tal aplicação.

O tema está amplamente discutido pelos Tribunais Superiores e pelos doutrinadores do direito, coexistindo dois parâmetros legais que, possivelmente possam ser seguidos_ de um lado a Lei 10.522/2002 e, de outro, as Portarias 75 e 130/2012_ que divergem quanto ao valor estabelecido para que se torne insignificante a ofensa tributária.

Além dessa divergência, as duas figuras da relação tributária, contribuinte e Estado, se colocam na discussão quanto à aplicação ou não do princípio. O primeiro enquanto parte mais fraca na relação tributária e o segundo por ter, no

* Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas (FUNORTE). Advogada militante. Pregoeira Oficial e Presidente de Comissão de Licitação no Município de Luislândia. ** Bacharel em Direito e especialista em Gestão Contábil e Controladoria pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES; Advogado militante; Presidente do Conselho de Ética e Disciplina da 11ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Montes Claros/MG; Professor de Direito do Trabalho, Prática de Processo do Trabalho, Ética e Estatuto da OAB e Legislação Tributária nos cursos de Direito e Administração das Faculdades Integradas do Norte de Minas (FUNORTE).

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tributo, o meio de manutenção e estruturação da própria sociedade.

A elaboração desta pesquisa se justifica em dois vieses, um em favor do Estado e outro, em favor do cidadão. Para o Estado importará saber, a partir de que ponto, que lesão de ordem tributária constituirá de fato um crime, ou seja, a partir de que ponto caberá ao Ministério Público mover a máquina Judiciária e buscar punição ao infrator. Com essa definição, o esforço punitivo estatal poderá ser concentrado nos casos que realmente atentem contra o patrimônio público, promovendo maior celeridade judicial. De outro lado, para o cidadão, restará clara a incursão ou não em figura típica, afastando o risco de punições por ofensas irrisórias e de tratamentos díspares entre as diversas unidades judiciárias.

A investigação buscou, ainda, responder qual a melhor adequação à aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários, que servirá de parâmetro para outros estudos doutrinários e para futuras aplicações pelo Poder Judiciário.

Nesse sentido a pesquisa se concentrou em responder o problema de pesquisa: a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância aos crimes tributários; bem como, secundariamente, em caso de definição pela aplicação, qual o valor que deverá ser considerado, insignificante, com relação a tais crimes.

Por fim, quanto ao método, este estudo se erigiu na revisão de literatura, mais especificamente a revisão bibliográfica, que para Prodanov (2013, p.79) permite rever o conhecimento produzido em pesquisas prévias, valendo-se do método dedutivo quanto aos aspectos conceituais dos crimes tributários e do Princípio da Insignificância e do método indutivo quanto à análise das jurisprudências dos Tribunais Superiores. Foram pesquisadas também doutrinas jurídicas,

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revistas científicas e artigos científicos que versam sobre o tema, sem limite temporal, encontrados em bases indexadas e ainda decisões judiciais das cortes superiores: Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. 1 O crime tributário no direito brasileiro

O Direito não é autônomo, se concretiza mediante os

acontecimentos sociais provenientes das ações humanas, existentes no meio social e exerce seu papel normatizador em função da própria sociedade. Assevera Vilanova (2006, p.42): “Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito”.

Destaca-se a importância do direito em uma sociedade, pois é através desse que o meio social se atualiza e modifica, todavia é justamente com a criação das leis que se organiza a sociedade e se estabelecem quais são os possíveis comportamentos dos indivíduos.

Desse contexto, tem-se a construção do Direito Tributário, seus institutos, sua evolução e diálogo com outros ramos do Direito. Da relação com o Direito Penal, extrai-se a criminalização da conduta contrária ao interesse do Estado e, portanto, a tutela coercitiva da cobrança do tributo. Ainda que o tributo não esteja especificado no rol dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal, pode ser tido como um elemento essencial à manutenção do Estado. Logo é através da tributação que se mantém e organiza a sociedade em geral.

E, para uma melhor compreensão acerca da essencialidade da cobrança do tributo para a sociedade em geral, seguem-se os ensinamentos de Ávila (2009, p. 18):

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Os tributos não têm apenas natureza fiscal, com o objetivo de arrecadar recursos para o Estado, embora seja esta a sua função primordial, já que eles são necessários para a manutenção da própria entidade política e para o cumprimento de suas funções essenciais nas áreas da saúde, saneamento básico, segurança, educação, justiça, obras de infra-estrutura, etc. Algumas espécies tributárias assumem a natureza extrafiscal porque não se destinam apenas a arrecadar recursos aos cofres públicos, mas têm o escopo de estimular ou desestimular o uso ou consumo de determinados produtos ou mercadorias, de proteger a balança comercial do País, de evitar a manutenção de propriedades improdutivas, etc.

Por tal afirmação, o tributo ultrapassa sua natureza

meramente fiscal ou extrafiscal, alcançando importância para a organização da sociedade como um todo, pois, exerce seu papel arrecadador e normatizador, ao buscar sempre uma melhor estrutura social e financeira. Vieira (2013, p. 84) contextualiza, historicamente, esse mecanismo regulatório como a gênese do Direito Econômico, pós a primeira Grande Guerra e à crise de 1929 no início do século XX.

A proteção penal à ordem tributária se deu, no âmbito constitucional no Título VI da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre o sistema de tributação e orçamento e, no plano infraconstitucional, pela criação da Lei 8.137 de 1990 que trata dos crimes contra a ordem tributária (BRASIL, 2014a). Foram instituídos tipos penais que buscam a proteção efetiva da ordem tributária, de modo que somente será exercida a pretensão punitiva quando houver o

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inadimplemento da obrigação tributária constituída em favor do Estado.

Ressalta Ávila (2009, p.13) que a Constituição Federal consagrou a autonomia ao Direito Tributário, ao estabelecer os princípios, as competências, os limites ao poder fiscal.

Por seu turno, a Lei 8.137 de 1990 é vista como de grande valia para o sistema jurídico, pois estabelece meios punitivos contra ofensas que atinjam, direta ou indiretamente, toda a sociedade. O ato de sonegação ou omissão de algum tributo retira, de toda a coletividade, o instrumento para a manutenção de todo o corpo social. Vieira (2013, p. 93) afirma que “a Lei 8.137/90 busca impedir que o Estado seja literalmente minado em suas bases por conta dos enormes desfalques causados por um punhado de criminosos travestidos de empresários”.

Nesse sentido, a ordem tributária foi posta à condição de bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Nesse sentido, esclarece o mesmo autor:

O direito penal tributário, como o próprio nome diz, está superposto ao direito tributário, pois, para que haja um crime desta ordem, necessária a constatação de um ilícito tributário. Este ramo do direito regula a instituição, a cobrança e a fiscalização de tributos da União, Estados e Municípios perante os particulares para a satisfação da coletividade. Trata, portanto, da relação entre os contribuintes e o fisco. É um conjunto de normas jurídicas que viabilizam a arrecadação de tributos e, por conseqüência, a satisfação da coletividade, de maneira geral. (VIEIRA, 2013, p. 81)

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A autonomia do Direito Tributário, defendida por Carvalho (2010, p. 47), se estabelece pelo conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos. Tal consideração somada ao conceito de delito definido por Jesus (1999, p.151), “crime é um fato típico e antijurídico”, corrobora com o conceito de crime tributário estabelecido por Carvalho (2010, p. 583) como “a não prestação do objeto da relação jurídica tributária. Essa conduta é tida como antijurídica, por transgredir o mandamento prescrito, e recebe o nome de ilícito ou infração tributária”.

Para configuração do ilícito penal necessária à presença de uma conduta típica, descrita no Código Penal, é antijurídica, porque contraria a uma norma jurídica imposta. Quanto ao crime tributário, é indispensável a redução ou a supressão de tributos para que se efetue a sua consumação. Da relação entre o Fisco_ Estado_ e o contribuinte tem-se que, aquele que não paga o tributo a si imposto, pela própria vontade e consciência, pratica uma infração contra a ordem tributária, a seu próprio favor e em total prejuízo para o Estado.

A intervenção do Direito Penal, nas relações tributárias, exige a observância do Princípio da Legalidade na instituição e a cobrança do tributo. Nesse sentido, o Código Tributário Nacional traz no artigo 97, inciso V: “somente a lei pode estabelecer a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”. E também, o Princípio Constitucional da Anterioridade da Lei, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal que reza: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” BRASIL, (2014 b).

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Assim, a Lei 8.137 de 1990, em seus artigos 1º e 2º, especifica as condutas consideradas como crimes, com destaque os seguintes verbos: omitir, fraudar, falsificar, negar, deixar de recolher tributo na forma da lei.

Quando praticadas algumas dessas condutas, de modo a não afetar largamente os interesses coletivos, devem ser utilizados meios administrativos para a correção de determinado ilícito. Todavia se o artifício utilizado para a configuração do delito for extremamente fraudulento a persecução penal deve ser adotada, como meio de proteção do coletivo. Nesse sentido, esclarece Fragoso (2004, p. 67-68):

Estamos convencidos de que a incriminação da fraude fiscal constitui, num país como o nosso importante elemento de uma séria política tributária. Esse tipo de ilícito, entre nós, não ofende o mínimo ético e o cidadão não tem consciência de que o cumprimento da obrigação tributária constitui um dever cívico, cuja transgressão ofende gravemente a economia pública, e, pois, interesses fundamentais da comunidade. A violação desse dever pode apresentar-se como simples atitude passiva de descumprimento da obrigação tributária, fato adequadamente sancionado através de medidas de natureza administrativa (multa). Todavia, pode apresentar maior gravidade, quando o descumprimento da obrigação tributária se realiza através do engano e da fraude, com o emprego de meios tendentes a induzir em erro a autoridade, iludindo o pagamento do tributo. Em tais casos é imperativa a sanção penal, que existe em muitos países, de longa data.

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2 O princípio da insignificância

A proteção dos bens jurídicos mais importantes por sanções penais pode restringir a liberdade, como a aplicação da pena privativa de liberdade, pois possibilita e, ao mesmo tempo, impõe limites, ao chamado jus puniendi, que consiste no poder de punir conforme os ditames da Lei, atribuído tão somente ao Estado. O direito penal tem a prevenção da ocorrência de delitos como finalidade e, caso esses venham a ocorrer no mundo dos fatos, têm o caráter de servir de parâmetro legal para uma possível punição OLIVÉ et al, (2011).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, vários paradigmas interpretativos do direito ganharam relevância na área jurídica, com destaque à valoração dos princípios constitucionais. Brecho (1999, p.438) afirma que “os princípios são mais importantes que as regras, pois auxiliam na interpretação do sistema, no julgamento das causas e na própria elaboração de novas leis”.

Importante salientar os ensinamentos de Rodrigues (2011, p. 09):

Inexiste sobre os princípios, assim como em diversos institutos do Direito, uma única definição. Aliás, sequer existe uma definição legal de princípio. Cabe à doutrina definir o que é um princípio e sugerir os modos de sua aplicabilidade, os quais podem ser aceitos ou não pelos tribunais.

Ainda que não se tenha uma definição jurídica única

sobre os princípios, esses podem ser tidos como fontes de integração da lei, valendo ressaltar a definição de princípio estabelecido por Melo (2001, pág. 95):

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Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dar sentido harmônico.

Neste estudo, prioriza-se o Princípio da

Insignificância, que remonta ao Direito Romano, com base no provérbio “minimisnomcuratpraetor”, que consiste no pretor não cuidar de minudências (OLIVÉ, 2011).

Para Carvalhido (et al, 2009) o Princípio da Insignificância, também chamado de bagatela, surge após a segunda Grande Guerra, em decorrência de pequenos furtos ocorridos na Europa, como proteção a bens materiais valorados economicamente.

Com base no Princípio da Insignificância, o direito penal não deve se inquietar com lesões mínimas, ou seja, deve se preocupar apenas com aquelas condutas relevantes que acarretem lesão grave a determinado bem jurídico, tornando-se intolerante para a sociedade. Assim, é o pensamento Gomes (2002, p.89):

Em um Estado Constitucional que se define, com efeito, como democrático e de Direito, e que tem nos direitos fundamentais seu eixo principal, não resta dúvida que só resulta legitimada a tarefa de criminalização primária recai sobre condutas ou ataques concretamente ofensivos a um bem jurídico, e mesmo assim não todos os ataques, senão unicamente os mais graves.

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Partindo-se dessa mesma premissa, pode-se afirmar que somente haverá uma participação efetiva do caráter repressivo do direito penal, quando houver relevantes lesões aos valores por ele especificados. Não ocorrendo nenhuma lesão significantiva, ou risco sério de lesão aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, ele não deve atuar. Assim, estabelece Toledo (1982, p. 133):

Segundo o Princípio da Insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do artigo 334, parágrafo 1°, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do artigo 312 não pode ser dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amênduas; a injúria, a difamação e a calúnia dos artigos 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem consequências palpáveis; e assim por diante.

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Ainda sobre a mensuração do que pode ser considerado irrisório, ou de grande relevância, expõe-se a contribuição de Gomes (2009, p.15):

Conceito de infração bagatelar: infração bagatelar ou delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevância (ou seja: insignificante). Em outras palavras, é uma conduta ou um ataque ao bem jurídico tão irrelevante que não requer a (ou não necessita da) intervenção penal. Resulta desproporcional a intervenção penal nesse caso. O fato insignificante, destarte, deve ficar reservado para outras áreas do Direito (civil, administrativo, trabalhista etc.). Não se justifica a incidência do Direito Penal (com todas as suas pesadas armas sancionatórias) sobre o fato verdadeiramente insignificante.

O Direito Penal deve ser tido como ultima ratio, isto

é, última alternativa a ser adotada contra quem pratica determinada conduta infrativa, uma vez que possui um caráter fragmentário e subsidiário alcançando, assim, somente aquelas infrações cuja prática possa trazer uma séria repercussão social e grande prejuízo ao bem juridicamente tutelado, no âmbito do direito tributário, no direito ambiental, no direito civil ou qualquer outro ramo do direito que receba proteção penal. Ressalta Batista (1996, p. 86-87):

A subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua fragmentariedade, deriva de sua consideração como “remédio sancionador extremo”, que deve, portanto ser ministrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente; sua intervenção se dá unicamente quando fracassam as demais barreiras

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protetoras dobem jurídico predispostas por outros ramos do direito.

Conclui Toledo (2002, p.134) que o fato, por sua

insignificância, uma vez excluído da tipicidade penal, pode receber outro tratamento, mais adequado, como ilícito civil, administrativo etc., não ficando necessariamente sem repercussão no direito.

A aplicação do Princípio da Insignificância defendida por Roxin (1993, p. 28) também permite novo enquadramento da conduta:

O Direito Penal é de Natureza Subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do Direito Civil ou do Direito Público, o Direito Penal deve retirar-se.

Ademais, na concepção de Roxin (1993), o princípio

tem o condão de excluir a tipicidade material da conduta, logo, ainda que ocorra formalmente a prática da infração penal, não haverá crime, uma vez que a insignificância da lesão afasta a intervenção penal. A simples tipicidade formal tornou-se incapaz de configurar uma infração penal.

Bitencourt (2008, p. 21) destaca os mesmos pontos, concluindo de forma semelhante:

[...] é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob ponto de vista formal, não apresenta nenhuma

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relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado.

Pode-se dizer que há no Princípio da Insignificância,

como fundamento jurídico principal, que possibilita o seu reconhecimento, o artigo 59, caput, do Código Penal, (BRASIL, 2014c) que aduz:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Vale ressaltar, ainda, quanto à extensão de

aplicabilidade do Princípio da Insignificância, a afirmação de Prestes (2003, p. 36), para quem o princípio é geral, o ordenador do Direito Penal e não se restringe aos fatos de natureza patrimonial, “Cunhá-lo, com base na patrimonialidade, é amputar uma grande parcela de sua aplicabilidade esvaziando-o quase que por completo”.

Por fim, o Princípio da Insignificância divulga o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, no sentido de que para o Estado importará saber a partir de que ponto a lesão jurídica constituirá de fato um crime, ou seja, a partir de que ponto caberá ao Ministério Público e à máquina Judiciária buscar punição ao infrator.

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3 A aplicação do princípio da insignificância nos crimes tributários - STJ e STF

Desde muito tempo faltam doutrina e jurisprudência suficientemente elaboradas no sentido de apontar quais seriam os requisitos de validade para que fosse possível a aplicação do Princípio da Insignificância. Atualmente, vem sendo aplicado pelas Cortes Superiores aos crimes comuns e aos do ramo especial do direito, como o caso vertente dos tributários.

A aplicação do Princípio da Insignificância encontra respaldo, também, na doutrina brasileira, uma vez que tal princípio é tido como princípio fundamental do Direito Penal. Nesse sentido, assevera Silva (2008, pág. 1):

Assim, é possível dizer que o Princípio da Insignificância vem a lume e impõe-se em razão da necessidade de se vislumbrar, na estrutura do tipo penal, um conteúdo material que leve à percepção da utilidade e da justiça de imposição de pena ao autor de um delito. Configura-se, pois, num meio qualificador dos valores da estrutura típica do Direito Penal, já que em face de sua adoção não mais se contenta a simples adequação do fato à norma, com um caráter puramente legalista.

Mesmo diante desse reconhecimento jurisprudencial

e doutrinário, ainda há estudiosos e aplicadores do direito que não reconhecem tal instituto, com o argumento de que toda e qualquer infração merece ser criminalmente punida, ainda que seja irrelevante, sob o risco de se ferir o Princípio da Segurança Jurídica.

Prossegue-se esse estudo apontando como é feita a aplicação nos Crimes Tributários, sob a ótica dos Tribunais Superiores, que são o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o

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Supremo Tribunal Federal (STF). Ambos os Tribunais entendem pela aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários no Brasil. Há contradição quanto a qual legislação deve ser observada, coexistindo dois parâmetros legais divergentes, que estabelecem quantias que devem ser consideradas ínfimas para a execução fiscal.

De um lado há o entendimento tradicional da Lei 10.522 de 2002 (BRASIL, 2014 d) quanto aos limites para a aplicação do princípio, estabelecendo que, aplicar-se-á o Princípio da Insignificância nos crimes tributários cujo valor não ultrapasse o limite de R$10.000,00 (dez mil reais).

Noutro giro, encontra-se um entendimento atualizado do Ministério da Fazenda, em suas portarias 75 e 130, ambas de 2012, onde se estabelece que deve ser observado, como limite máximo exigido para a aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários, o valor de R$20.000,00 (vinte mil reais).

Assim dispõe o art. 1° da Portaria 75 de 2012 (BRASIL, 2014 e):

Art.1° Determinar: A não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$1.000,00 (mil reais); O não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$20.000,00 (vinte mil reais).

De forma isonômica o art. 2° da Portaria 130 de 2012 (BRASIL, 2014 f) reza:

Art. 2° O Procurador da Fazenda Nacional requererá o arquivamento, sem baixa na distribuição, das execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor

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consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), desde que não conste dos autos garantia, integral ou parcial, útil à satisfação do crédito.

As divergências entre os tribunais superiores acerca

da aplicação do princípio surgem exatamente no ponto de análise sobre qual parâmetro legal deve ser seguido, se o entendimento tradicional da Lei 10.522 de 2002 ou o atual das Portarias 75 e 130 de 2012.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem obedecido ao valor estabelecido pela Lei 10.522 de 2002, sob o argumento de que Portaria não tem força normativa para excluir o entendimento de uma Lei, para aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários. Nesse sentido, tem-se o paradigma, naquele tribunal, o acórdão do Processo n° REsp 1112748/TO, originalmente publicado ainda em DJe 13/10/2009 (BRASIL, 2014 g), que dispõe:

EMENTA: RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF/88. PENAL. ART. 334, § 1º, ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. I - Segundo jurisprudência firmada no âmbito do Pretório Excelso - 1ª e 2ª Turmas - incide o Princípio da Insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art.20 da Lei nº 10.522/02.

Certo é que, para o Superior Tribunal de Justiça é

possível a aplicação do Princípio da Insignificância desde que observado o valor adotado pela Lei 10.522/02, qual seja, R$

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10.000,00 (dez mil reais). Assim foi o voto do Ministro Relator Félix Fischer, seguido à unanimidade:

Muito embora esta não seja a orientação majoritária desta Corte, mas em prol da otimização do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposição de recursos ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei nº 11.672/08, é de ser seguido, na matéria, o escólio jurisprudencial da Suprema Corte. O valor das mercadorias apreendidas totaliza R$8.759,00 (oito mil setecentos e cinqüenta e nove reais), o que enseja a aplicação do princípio da insignificância. Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO à apelação.

Por outro lado, no âmbito do Supremo Tribunal

Federal, pode-se observar que também se tem aplicado o Princípio da Insignificância nos crimes tributários. Todavia, a Suprema Corte entende que deve ser aplicado o valor protegido pela Portaria, uma vez que é o valor atualizado que deve ser amplamente observado nos casos que envolvem matéria penal tributária. Desta forma, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em um acórdão, paradigma no Processo n° Habeas Corpus 120.617/PR (BRASIL, 2014 h), publicado ainda em DJe 20.2.2014, que reza:

EMENTA: HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. DESCAMINHO. VALORINFERIOR AO ESTIPULADO PELO ART. 20 DA LEI 10.522/2002. PORTARIAS 75 E 130/2012 DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. A pertinência do Princípio da Insignificância deve ser avaliada

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considerando-se todos os aspectos relevantes da conduta imputada. 2. Para crimes de descaminho, considera-se, para a avaliação da insignificância, o patamar de R$ 20.000,00, previsto no art 20 da Lei n.º10.522/2002, atualizado pelas Portarias 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda. Precedentes. 3. Na espécie, aplica-se o Princípio da Insignificância, pois o descaminho envolveu elisão de tributos federais que perfazem quantia inferior ao previsto no referido diploma legal. 4. Ordem concedida.

No acórdão acima exposto, vale destacar os votos da

Ministra Rosa Weber e do Ministro Marco Aurélio. A Ministra Rosa Weber deu provimento ao Habeas Corpus, sob o argumento de que o valor R$10.000,00 (dez mil reais), estabelecido pelo Artigo 20 da Lei 10.522 de 2002, foi atualizado para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) com as Portarias 75 e 130 de 2012, e que a Suprema Corte já havia se posicionado nesse sentido, logo se acata o entendimento da Portaria e, consequentemente, exclui-se a tipicidade da conduta e que não exceda o valor fixado pelas Portarias. Já o Ministro Marco Aurélio negou provimento ao Habeas Corpus, com fundamento em que a responsabilidade penal independe da responsabilidade fiscal. Por maioria dos votos a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao Habeas Corpus nos termos do voto da Ministra Relatora Rosa Weber, vencido o Ministro Marco Aurélio. Trecho do voto da Ministra Relatora Rosa Weber:

[…] A conduta delitiva seria tão diminuta que não afetaria materialmente o bem jurídico protegido pela norma penal, sendo atípica da

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perspectiva material. A hipótese dos autos envolve a prática de crime de descaminho, pelo não recolhimento de tributos devidos pela importação de mercadorias de procedência estrangeira, no montante de R$11.789,90 (onze mil, setecentos e oitenta e nove reais e noventa centavos). Para crimes de descaminho, a jurisprudência predominante da Suprema Corte, considerava, até pouco tempo, para avaliação da insignificância, o patamar de R$10.000,00 (dez mil reais), o mesmo previsto no art. 20 da Lei n.º 10.522/2002, que determina o arquivamento de execuções fiscais de valor igual ou inferior a este patamar. Recentemente, o patamar de R$10.000,00 (dez mil reais) para o arquivamento de execuções fiscais, estabelecido pela Lei 10.522/2002, foi majorado para R$20.000,00 (vinte mil reais) pelas Portarias 75 e 130/2012do Ministério da Fazenda. Desse modo, as execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado for igual ou inferior a R$20.000,00 (vinte mil reais), podem ser arquivadas, aplicando-se o princípio da insignificância. Oportuno destacar que este Supremo Tribunal Federal já tem considerado o patamar de R$20.000,00 (vinte mil reais), fixado pelas mencionadas Portarias do Ministério da Fazenda, como parâmetro de aplicação do princípio da insignificância nesses casos. Na espécie, a soma dos tributos não recolhidos perfaz a quantia de R$11.789,90 (onze mil setecentos e oitenta e nove reais e noventa centavos). […]

Contudo se resta comprovado que o Princípio da

Insignificância vem sendo aplicado, no âmbito das cortes superiores, ainda há controvérsia quanto ao valor considerado

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insignificante. Mesmo após o julgamento do HC 120.617/PR supra, no âmbito do STJ ainda tem sido variada a quantidade de decisões em sentido oposto.

Exemplificativamente, de um lado o acórdão exarado no REsp 1400392 / PR em que “A partir da Lei n. 10.522/2002, o Ministro da Fazenda não tem mais autorização para, por meio de portaria, alterar o valor para arquivamento sem baixa na distribuição. Tal alteração somente poderá ser realizada por meio de lei” (BRASIL, 2014 ), e de outro lado, o acórdão do AgRg no REsp 1438170 / PB em que se seguiu a decisão do STF “[…] considera-se, para a avaliação da insignificância, o patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), previsto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, atualizado pelas Portarias n. 75 e 130/2012 do Ministério da Fazenda.”

4 Requisitos para a aplicação do princípio da insignificância aos crimes tributários

Para que se determine como insignificante uma conduta, será necessário que essa seja tolerável para a sociedade, de modo que não cause uma lesão grave ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Nesse sentido, deve-se fazer uma análise minuciosa de cada caso concreto, verificando a sua repercussão social e levando em consideração os seus aspectos individuais.

Nesse sentido, o entendimento da Suprema Corte no Habeas Corpus número HC109.739/SP, tramitado perante a 1ª Turma, tendo como relatora a Ministra Carmen Lúcia, (BRASIL, 2014 i):

A tipicidade penal não pode ser percebida como o trivial exercício de adequação do fato concreto à norma abstrata. Além da correspondência formal, para a configuração da tipicidade, é necessária análise

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materialmente valorativa das circunstâncias do caso concreto, no sentido de se verificar a ocorrência de alguma lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico tutelado.

Diante desse apontamento, necessário se fez retornar

ao tradicional conceito de delito, aduz Zaffaronni (2007, p.341):

O conceito de delito como conduta típica, antijurídica e culpável – que desenvolvemos- elabora-se conforme um critério sistemático que corresponde a um critério analítico que primeiro observa a conduta e depois o seu autor: delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela a sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária à ordem jurídica (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que agisse de maneira diversa diante das circunstâncias, é reprovável (culpável). O injusto (conduta típica e antijurídica) revela o desvalor que o direito faz recair sobre a conduta em si, enquanto a culpabilidade é uma característica que a conduta adquire por uma especial condição do autor (pela reprovabilidade), que do injusto se faz ao autor.

Além disso, verifica-se uma tamanha importância em

estabelecer um conceito de tipo penal sob a ótica material, uma vez que a infração penal é considerada, no âmbito formal, como típica, todavia, sob o prisma material, é considerada como conduta atípica. De maneira clara e cuidadosa, Rocha (2007, p.151), trata de expor um conceito para o tipo penal,

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para determinar o que seria seu aspecto formal e material, pautado desta forma o devido conceito:

[…] tipo penal, de maneira formal, descreve o comportamento humano que se pretende evitar. Materialmente, o tipo representa uma valoração ético-social que se evidencia tanto na escolha dos bens a serem juridicamente tutelados como nas condutas a serem rotuladas de proibidas.

Desta forma e ao ter como base esses dois conceitos

supracitados, permite-se concluir que a real efetividade da tipicidade material, dependerá, necessariamente, da existência de uma conduta relevante que cause uma grave lesão ao bem jurídico tutelado, e, caso não ocorra esta lesão grave, torna-se indiscutível a aplicação do Princípio da Insignificância.

No que tange a sua aplicação, chama, em conjuntou, outros dois princípios: da fragmentariedade e da intervenção mínima. Ambos rezam que o direito penal deve tratar, como atípicas, as lesões mínimas praticadas com o bem jurídico tutelado; contudo, somente os ataques intoleráveis e que podem causar inquietações no convívio social. Uma vez aplicado o Princípio da Insignificância, esse tem o condão de tornar irrelevante a aplicação da pena, excluindo-se, portanto, a tipicidade material da conduta (RODRIGUES, 2011, p.17).

Sob o prisma conceitual de Neves (2009), o Princípio da Fragmentariedade significa:

O principio da fragmentariedade reza que o direito penal deve ter um caráter fragmentário, só podendo intervir se o fato for relevante. O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, uma vez que se ocupa somente de

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um fragmento dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica

Olivé (2011, p. 94) estabelece, como limitante do poder de punir do Estado, o Princípio da Intervenção Mínima:

Conforme a este critério, consagra-se o princípio da intervenção mínima, que nos indica que a atuação do direito penal deve ser a mais reduzida possível, a estritamente necessária para tutelar os ataques mais graves aos bens jurídicos mais relevantes. Desta forma, pretende-se limitar e racionalizar a pressão punitiva.

Não obstante essas considerações estabelecidas por

doutrinadores do direito, o Supremo Tribunal Federal também se posicionou quanto à aplicação do Princípio da Insignificância, proferindo recentes julgados com o intuito de estabelecer todos os requisitos necessários para uma possível aplicação desse princípio.

Entretanto, será efetiva a aplicação do Princípio da Insignificância se presentes alguns requisitos, quais sejam: (I) mínima ofensividade da conduta; (II) nenhuma periculosidade social da ação; (III) reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta do agente; (IV) inexpressividade da lesão jurídica provocada. Esse entendimento formado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – instância máxima do Poder Judiciário do Brasil – foi apresentado em um acórdão paradigma, no Processo n° HC 84412 SP, publicado ainda em 19-11-2004 (BRASIL, 2014 j).

No verbete da Suprema Corte, sob o número RHC 107264/DF (BRASIL, 2014 k), tramitado perante a 2ª Turma, em que atuou como relator o Ministro Celso de Mello e publicado no Dje-232, de 06/12/2011, aduz:

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O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

Portanto, somente com a presença cumulativa desses

requisitos acima citados e exemplificados no acórdão do STF, é que se permite o reconhecimento do Princípio da Insignificância nos crimes em geral.

Tal princípio é aplicável nos crimes comuns em geral e também para os crimes dos ramos especiais do direito, como por exemplo, os crimes tributários, ambientais, etc.

Este princípio tem sido adotado pela nossa jurisprudência nos casos de furto de objeto material insignificante, lesão insignificante ao Fisco, maus-tratos de importância mínima, descaminho e dano de pequena monta, lesão corporal de extrema singeleza, etc. (JESUS, 2010, p. 10 e 11).

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Para este estudo, importará especificar, além desses requisitos gerais a serem seguidos para a aplicação do Princípio da Insignificância, os requisitos específicos para a sua aplicação no direito penal tributário.

A aplicação deve ser cautelosa, pois existem dois parâmetros legais que versam sobre a aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários, quais sejam: a Lei 10.522 de 2002 que reza ser somente aplicado tal princípio nos crime cujo valor não exceda de R$10.000,00 (dez mil reais) e, de outra forma, as Portarias 75 e 130 de 2012 estabelecem que o valor a ser seguido, não deve extrapolar o limite máximo de R$20.000,00 (vinte mil reais).

Mediante tais requisitos, pode-se afirmar que, além de cumprir os requisitos gerais estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, devem também, serem obedecidos os critérios legais existentes quanto aos crimes tributários. Para que seja possível a aplicação do Princípio da Insignificância nos crimes tributários, pois é de extrema importância a análise de cada caso concreto, de forma detalhada, para uma melhor conclusão acerca deste fenômeno capaz de excluir a tipicidade material da ofensa tributária.

Conforme apresentado, ambos os Tribunais Superiores admitem a aplicação do princípio em estudo, desde que, cumpra com os requisitos necessários. No entanto, como foi demonstrado, existe a divergência de entendimentos quanto ao parâmetro legal a ser seguido, pois, temos duas legislações divergentes.

Tem-se, portanto, a pura e cristalina compreensão de que deve ser aplicado entendimento das Portarias do Ministério da Fazenda, as quais estipulam um valor de R$20.000,00 (vinte mil reais) para que a ofensa tributária seja insignificante. Isso porque, entende-se que ainda que haja certa hierarquia das normas, onde uma Lei prevalece sobre

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uma Portaria, tal posicionamento é o atualizado e deve ser também adotado em consonância com o Princípio do In Dúbio Pro Réu que reza: caso haja dois posicionamentos divergentes, aplicar-se-á aquele que for mais favorável ao réu.

5 Considerações finais

O presente artigo analisou a aplicação do Princípio da Insignificância aos crimes tributários, objetivando discutir a variação dos valores estabelecidos como parâmetros e ainda com o intuito de verificar quais seriam os requisitos para que seja possível tal aplicação.

Considerou-se que o tema tem sido alvo de frequentes discussões, tanto no âmbito dos Tribunais Superiores quanto no campo doutrinário. É de grande valia apresentar uma melhor adequação para a aplicação desse instituto, uma vez que é importante tanto para o contribuinte quanto para o Estado saber a partir de que ponto deve-se considerar determinada conduta como um ilícito tributário.

Diante da análise, durante a elaboração do presente estudo, percebeu-se, primeiramente, que o Direito Penal tem uma grande e valiosa importância para todos os ramos do Direito inclusive o Tributário. Isso porque é o ramo do Direito responsável por proteger os bens jurídicos de maior relevância social, por meio de um controle preventivo e repressivo.

Assim como alguns outros ramos do Direito, o Direito Tributário recebeu a proteção penal, visto que o tributo, mesmo não estando no rol dos direitos e garantias fundamentais, possui um caráter essencial para o Estado, pois são as receitas tributárias que se mantêm determinada entidade política.

No entanto, mesmo sendo o tributo um bem juridicamente tutelado pelo Direito Penal, a sua cobrança pode

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ser ignorada de forma a não levar à apreciação do Judiciário, crimes tributários com valores irrisórios. Significa dizer, que a aplicação do Princípio da Insignificância, nos crimes tributários, é pacífica e, o que ocorrer, exclui a tipicidade material do delito, deixando esse de existir.

O que se difere, nos Tribunais Pátrios, é qual posicionamento melhor a ser seguido quanto aos valores estabelecidos. Isso porque, existem dois posicionamentos divergentes acerca do valor a ser obedecido ao excluir a tipicidade de determinado ilícito tributário, quais sejam a Lei 10.522 de 2002 que fixa o valor de R$10.000,00 (dez mil reais), e as Portarias 75 e 130 de 2012 que fixam o patamar de R$20.000,00 (vinte mil reais).

Diante desta pontual divergência de entendimentos, torna-se fundamental a necessidade de se definir qual o melhor parâmetro legal a ser observado ao se aplicar o Princípio da Insignificância nos crimes tributários. Para que o caráter punitivo do Estado seja direcionado aos casos em que realmente resta demonstrada a lesão ao patrimônio público, bem como dar atenção ao Princípio da Celeridade que veicula o processo judicial como um todo.

Como demonstrado ao longo do texto, além dos requisitos gerais estipulados pelo Supremo Tribunal Federal para a aplicação do Princípio da Insignificância, devem ser observados mais alguns que limitam o valor do crime tributário. O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo, majoritariamente, aplicar a Lei 10.522 e 2002 como melhor a ser observada. Não obstante esse posicionamento, o Supremo Tribunal Federal entende que o melhor parâmetro a ser adotado é o estipulado pelas Portarias 75 e 130 de 2012.

Extrai-se, portanto, deste estudo que o melhor procedimento a ser adotado é o exposto pelas Portarias 75 e 130 de 2002, uma vez que existe certa obrigação abstrata dos

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órgãos Superiores e dos próprios doutrinadores em atualizar seus posicionamentos de acordo as frequentes mudanças do Direito. E esse entendimento, o mais atual, deve ser o observado, até mesmo porque, levando em consideração o que reza o Princípio do In Dúbio Pro Réu, deve ser aplicado a legislação mais favorável ao contribuinte, pois é considerada a parte mais fraca da relação processual.

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EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA: natureza jurídica

Pablo Isidoro Rodrigues*

Vinícius Rodrigues Pimenta**

Introdução

Corolário de uma conjuntura econômica marcada

pelo dinamismo da vida em sociedade, na qual as relações de consumo se tornam prática cada vez mais constante, o exercício da empresa1¨2 é uma realidade da qual não se pode olvidar.

Tangenciada nas mais distintas relações humanas, fomentando e aumentando, em volume e em complexidade, as próprias necessidades do ente natural, pode-se dizer que as atividades econômicas compreendem aquilo que se pode chamar de “sistema vital” da sociedade contemporânea.

* Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas (FUNORTE). Advogado. ** Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito da UFMG, Procurador do Estado de Minas Gerais, Advogado. Professor da Funorte. 1 Waldirio Burgarelli apud Ricardo Negrão define empresa como: “atividade econômica organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado, exercida pelo empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens”. (Manual de Direito Comercial e de Empresa, 6 ed. ver. e atual., São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 45) 2 Embora a acepção técnica do termo “empresa” esteja diretamente ligada ao exercício de uma determinada atividade (CC, art. 966), nas exposições tratadas neste trabalho, conforme se observará, referida expressão será empregada de forma ampla e genérica, podendo, inclusive, ser sinônimo de “sociedade”, “empresário”, “estabelecimento” e “atividade empresária”.

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Nesta perspectiva, o direito, entendido como um sistema3 dinâmico, percebendo que a figura individual do ser humano não era suficientemente capaz de gerir, com segurança, os anseios individuais e coletivos, seja por sua finitude, ou mesmo pelos riscos que o desenvolvimento empresarial envolve, criou as chamadas pessoas morais, pessoas místicas ou simplesmente pessoas jurídicas.

Segundo o magistério autorizado de Maria Helena Diniz (2006, p. 230) pessoa jurídica é definida como “a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”.

Ganhando asas, através do tempo, principalmente por afastar a responsabilidade das pessoas naturais que a integram, ou que a ela dedicam algum tipo de labor, a personificação dos entes morais, especialmente as sociedades, não era o único caminho para a persecução dos fins mercantis.

Paralelamente às pessoas coletivas constituídas sob a forma de sociedade empresária, existia e ainda existe, no ordenamento pátrio, a figura técnica do empresário individual, entendido como a pessoa natural que, individualmente, exerce a empresa.

Ocorre que essa última figura jurídica encontrava e encontra riscos decorrentes do princípio da responsabilidade patrimonial. Os bens do devedor ficavam adstritos às obrigações contraídas por ele, conforme a norma contida no art. 391 do Código Civil Brasileiro acompanhada pela disposição do art. 591 do Código de Processo Civil. Então o sujeito que exercia atividade econômica sob a roupagem de empresário individual, suportava a totalidade dos riscos próprios do empreendimento.

3 A “Teoria dos Sistemas” foi proposta pelo sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann em “Introducción a la Teoría de Sistemas”.

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Em artigo publicado, o Professor Thiago Ferreira Cardoso Neves assevera que:

Essa realidade sempre deu margem a fraudes, como a ocultação de patrimônio pelo empresário individual, por exemplo, com a aquisição de bens em nome de terceiros, ou a constituição de uma sociedade empresária fictícia com um sócio majoritário e os demais ostentando uma participação irrisória. (NEVES, 2011, p. 215)

Como consequência há um número expressivo das sociedades limitadas que não constituem sociedades no plano real, mas tão somente no hipotético, servindo apenas para garantir a pluralidade de sujeitos na constituição da pessoa jurídica4.

Salutar gizar, por oportuno, que a falta de limitação patrimonial corroborava não apenas em ludíbrio à lei, como, também, a um desinteresse, um esfriamento em muitos setores da economia. Andar por onde entrelaçam operações comerciais e industriais é por deveras delicado, tal como se é “pisar em ovos”.

Sylvio Marcondes Machado (1956, p. 11) já apontava na década de 50 que a responsabilidade patrimonial ilimitada não coadunava com as matizes da atividade econômica moderna.

Outrossim, o direito positivado, desde 1988, estatui, nas letras do artigo 5º, inciso XX da Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988), que

4 As sociedades que existem apenas no aspecto formal também são

designadas pelas expressões sociedades aparentes, de fachada, com interposta pessoal, com homens de palha, e, até, sociedades unipessoais em época menos recente.

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“ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.

Procurando dar resposta a esta necessidade econômico-social, senão dizer, jurídica, e via de consequência, amenizando a problemática referida alhures, o legislador ordinário, por intermédio da Lei n. 12.441, de 11 de julho de 2011 (BRASIL, 2011), instituiu uma nova espécie de pessoa jurídica de direito privado denominada como Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI).

Para estudiosos do tema, ao editar a norma supramencionada o Brasil deu “um passo rumo ao último degrau da limitação da responsabilidade” (BRUSCATO, 2011, p. 22).

Veja a lição da doutora Wilges Ariana Bruscato (2012, p. 3):

O reconhecimento da possibilidade de preservação do patrimônio pessoal do empresário individual não visa atender a uma causa egoísta de torná-lo intocável ou, meramente, aumentar-lhe os ganhos, limitando-lhe as perdas. Mas, sim, busca incrementar a economia, incentivando mais pessoas a empreenderem, visto que à empresa se agregam valores sociais que merecem a proteção e a atenção do direito. Em especial, às pequenas iniciativas, que participam expressivamente da abertura e manutenção de postos de trabalho.

Nesse diapasão, com o escopo de alargar conhecimentos, sobretudo ao que pese os fundamentos teóricos que norteiam o novel instituto, passamos então a análise da natureza jurídica da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI).

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1 A natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada

Desde que a Lei n. 12.441/2011 entrou em vigor, a

natureza jurídica da EIRELI é questão que não sai da ordem do dia, até porque não é tratada de forma expressa pelo texto normativo.

Esse problema advém da forma pela qual a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada veio à luz. Eis que formada a partir da tentativa de regulamentação sucinta de uma sociedade unipessoal, mas com aspiração a assumir a natureza jurídica de uma nova pessoa jurídica.

Logo, escandir sobre a natureza do instituto jurídico, que ora se propõe, é fundamental para a busca, e, por conseguinte, alcance de uma compreensão mais pura e fidedigna dos princípios que o norteiam e regem.

Determinar a natureza jurídica desta nova roupagem para o exercício da empresa consiste em determinar sua essência para classificá-la dentro do universo de figuras existentes no Direito. Funciona como forma de localizá-la topograficamente.

De chofre, cabe dizer que a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada é uma pessoa jurídica de direito privado. Quanto a isso, não há dúvidas, pois o artigo 44 da Legislação Civil (BRASIL, 2002), é expresso ao afirmar que as espécies designadas, nos incisos I ao VI, são pessoas jurídicas de direito privado, in verbis:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: […]

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VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada5.

O problema está em saber se a referida pessoa

jurídica é uma sociedade unipessoal ou uma criação sui generis, com características próprias.

Sobre essa questão, algumas ponderações têm ecoado na doutrina nacional, sem, contudo, representar posicionamentos unânimes e majoritários.

O prof. Gladston Mamede (2012, p. 22) ensina que as pessoas jurídicas de direito privado podem subdividir-se em três categorias essenciais, quais sejam: associações, sociedades e fundações.

Com fulcro nesta intelecção, esse doutrinador entende que a

[...] empresa individual de responsabilidade limitada é uma sociedade unipessoal (sociedade de um só sócio), particularidade que justificou seu tratamento em separado, por meio do inciso VI, deixado claro que a ele se submetem os princípios que são próprios das pessoas jurídicas: Personalidade jurídica distinta da pessoa de seu sócio (o empresário), patrimônio distinto da pessoa do empresário e existência distinta da pessoa do empresário. (MAMEDE, 2012, p. 23, grifo nosso)

Sua digressão ampara-se no mesmo raciocínio das

organizações religiosas e dos partidos políticos que, não obstante estarem especificados, em apartado, nos incisos IV e V do artigo 44 do Código Civil Brasileiro, possuem a natureza jurídica de associações, face à semelhança do espírito legiferante quando da sua criação.

5 Redação incluída pela Lei n. 12.441, de 2011.

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Nessa vertente, por buscar a apropriação de resultados positivos (superávit ou saldo positivo) por seus sócios, a EIRELI se assemelharia a uma sociedade, porém, unipessoal.

Coadunando com a valiosa lição do Professor Gladston Mamede, o insigne doutrinador Fábio Ulhoa Coelho enfrenta, com maestria, o tema:

A sociedade limitada unipessoal, no direito brasileiro, foi designada de “Empresa Individual de Responsabilidade Limita”, EIRELI (CC, art. 980-A). Ao examinar-se a classificação das sociedades segundo a quantidade de sócios, criticou-se a opção do legislador e demonstrou-se que a interpretação sistemática do direito positivo conduz à conclusão de que não trata de nova espécie de pessoa jurídica, mas de nomem juris dado à sociedade limitada unipessoal. (2012, p. 409)

Nesse tipo de análise deve-se manter a fidelidade aos

postulados da essência do direito de empresa, evitando confusões, que equivocadamente se extrai da interpretação literal e isolada do texto da lei.

O ilustre professor Sérgio Campinho (2011, p. 285) afirma, sem tosquenejar, que

[...] pela racionalidade que se pode extrair dos preceitos da Lei nº 12.441/2011, a EIRELI é, em verdade, uma sociedade, mas sociedade unipessoal. Essa unipessoalidade permanente que caracteriza a sua constituição é o seu marco distintivo. Assim é que o legislador preferiu grifá-la com um título próprio (Título I-A) e não incluí-la no Título II, que manteve reservado para as sociedades com pluralidade

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de sócios, as quais se formam, destarte, a partir de um contrato plurilateral.

Assim, no pensar do referidos estudiosos, essa figura

jurídica é uma modalidade de sociedade limitada com o traço característico, que lhe imprime a particularidade de ser formada por um único sócio, o que lhe reconhece o status de exceção à regra da pluralidade.

É que, se bem se atentar, a redação legal empregada no art. 980-A do Código Civil (BRASIL, 2002) não deixa dúvidas sobre qual é a essência da EIRELI. In verbis:

Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País. §1º. O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “EIRELI” após a firma ou denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada. §2º. A pessoal natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa desta modalidade. §3º. A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. §4º. Vetado. §5º. Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome,

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marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados á atividade profissional. §6º. Aplicam-se á empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas. (Grifo nosso)

Ora, o emprego de expressões como “capital social”,

“firma ou denominação social” reforça a natureza societária do novo instituto. Paulo Cezar Aragão e Gisela Sampaio da Cruz (2013) esclarecem que, ao se mencionar no §3º do dispositivo 980-A do Digesto Civil, que a Empresa Individual de Responsabilidade limitada poderia nascer da concentração de quotas de outra sociedade, a expressão “outra modalidade societária” estaria a ratificar essa natureza jurídica.

O §6º do artigo retrotranscrito, pela aplicação subsidiária das regras da sociedade limitada à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, faz crer, também, que essa é uma sociedade limitada unipessoal.

Na jurisprudência, mesmo que incidentalmente, são pouquíssimos os precedentes que, manifestando sobre a natureza jurídica deste novo ente personalizado, orientam-se favoráveis a essa tese.

Em decisão monocrática exarada nos autos do processo de número 870840-1 (PARANÁ, 2012), o Des. Renato Naves Barcellos, ao julgar o recurso de agravo de instrumento, pronunciou-se que,

[...] notadamente as declarações de imposto de renda pessoa física, entregues à Receita Federal, permitam a conclusão de que a Márcia de Souza (ME) não é uma sociedade, mas sim uma empresa individual, constituída antes do advento da Lei n° 12.441/2011 [referida lei criou nova modalidade de

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sociedade unipessoal no direito brasileiro, a denominada empresa individual de responsabilidade limitada - art. 980-A, do Código Civil] [..]. (TJ/PR, Processo nº. 870840-1, Decisão Monocrática em Agravo de Instrumento, 16ª Câmara Cível, Des. Renato Naves Barcellos, j. 31.05.2012, DJ-e 14.06.2012, grifo nosso)

Doutro turno, há quem entenda que o advento da

nova lei não criou um novo tipo de sociedade. Para os adeptos dessa linha de pensamento, sociedade reclama pluralidade de sócios, logo, inexistindo junção de esforços para a persecução do objeto social, ter-se-á outro instituto distinto daquele.

Frisa-se que, por muito tempo, a característica imperativa dos entes morais era o conjunto de pessoas ou bens afetos a um fim específico; porém a Lei n. 12.441/2011 desafiou as concepções já sedimentadas, instituindo uma pessoa jurídica peculiar.

No entender de Bruscato (2012, p. 10), a EIRELI é uma criação sui generis, isto é, única em seu gênero, não se enquadrando em qualquer outra espécie já existente.

As forças, para afastar a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada da natureza jurídica de sociedade, encontram amparo em duas razões, conforme admoesta NEVES (2011, p. 227),

[...] a primeira delas é que a Lei nº. 12.441/2011, como já exaustivamente mencionado, acresceu um novo inciso ao rol taxativo de pessoas jurídicas de direito privado previsto no art. 44 do Código Civil. A EIRELI está, prevista, isoladamente, no inciso VI do mencionado dispositivo. Já as sociedades estão previstas no inciso II do art. 44. Isso significa que o legislador não quis confundir essas duas

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figuras; a segunda razão para não considerarmos a empresa individual de responsabilidade limitada como uma sociedade é o fato de que ela foi disciplinada em um título próprio, o Título I-A do Livro II da Parte Especial do Código Civil, sob o nome iuris “Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”, enquanto que as sociedades estão disciplinadas no Título II do Livro II da Parte Especial do Código Civil, a partir do art. 981 do Digesto pátrio.

Para esta corrente, não bastasse os argumentos já

sobejados, na V Jornada de Direito Civil, após debates acerca da natureza jurídica do novo instituto, concluiu-se que ele está mais próximo do empresário individual do que das sociedades, tanto que, fora aprovado o Enunciado 469 (BRASIL, 2011), ipsis litteris, “a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado”.

A justificativa para a elaboração do enunciado em epígrafe, cuja redação atribui-se ao douto Prof. Maurício Andere Von Bruck Lacerda, a qual já se pede vênia para citar, colocaria para os defensores desta corrente uma pá de cal sobre o âmago da discussão, pois de forma percuciente estatui:

Seguindo uma tendência mundial, já verificada em outros ordenamentos jurídicos de tradição romano-germânica, como, por exemplo, nas leis portuguesas e alemã, o ordenamento jurídico brasileiro acaba por recepcionar – por meio do advento da lei 12.441, que altera dispositivos do Código Civil Brasileiro - com a criação de uma nova modalidade de pessoa jurídica, a possibilidade do exercício da empresa, de forma individual e com responsabilidade limitada. […] Não obstante

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as críticas que possam ser levantadas a respeito do tratamento sui generis conferido à referida figura, em especial se observadas as denominadas “sociedades unipessoais” em realidades jurídicas estrangeiras, o fato é que o formato jurídico atribuído à “EIRELI” não interfere no tratamento conferido à “sociedade” pela lei brasileira (art. 981 do CC), em especial no que se refere ao caráter transitório da “sociedade unipessoal”, salvo no caso das conhecidas “sociedades subsidiárias integrais”, previstas pelo artigo 251 da Lei 6.406/76. (BRUSCATO, 2012, p.11)

Nas entrelinhas, está a dizer quem apesar de ser uma

pessoa jurídica, a EIRELI não é uma sociedade, mas, sim, um novo ente moral sem gênero específico.

Rubens Edmundo Requião, com autoridade, vaticina que o novo ente personalizado seria um atributo do empresário individual. Isto é, seria o meio pelo qual este limitaria a sua responsabilidade, circunscrevendo-a ao capital ou patrimônio que especializar.

Não se trata, com o novo estatuto atribuído à pessoa natural que assume a condição acima referida, de um novo tipo societário, como foi o caso da criação das empresas públicas e da subsidiária integral, que romperam o requisito da multiplicidade de sócios para formar a entidade. Mas apenas se imputa à pessoa natural empresária um novo atributo, qualificado pela responsabilidade limitada ao capital que destacar para sua atividade […]. Nota-se a personalização da empresa, que até então era havida como objeto de direito, ou quando muito atributo profissional. Passa a ser agora titular de direitos e obrigações, atuando

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por via da pessoa do empresário que a incorpora […]. (Requião, 2013, p. 113-114)

Na estrutura normativa do Diploma n. 12.441/2011, o

legislador ousou na criação da EIRELI. Segundo o desembargador paulista Carlos Henrique Abrão (2012), de fato, na concepção do modelo que se projetava, pretendia-se criar uma sociedade singular, porém, não conseguindo alcançar tal objetivo, desaguou na Empresa Individual de Responsabilidade Limitada.

O se tem hoje, equivale ao que se pode chamar de “Empresário Individual Turbinado”, que se distingue daquele previsto no art. 966 do CC/02, por ter capital social mínimo, limitação de responsabilidade, concentração de quotas e aplicação subsidiária das normas da sociedade limitada.

Do mesmo modo que as expressões empregadas na lei apontam para a constituição de uma sociedade unipessoal, outros tantos argumentos levam a crer que a nova pessoa jurídica positivada é um ente sui generis.

Do estudo da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada não restam dúvidas de que a Lei n. 12.441/11 é muito confusa em seu conteúdo. Os argumentos expendidos podem ser torcidos em favor das duas teses, e isso poderia até engendrar uma natureza jurídica mista: ora sociedade unipessoal; ora criação única em seu gênero.

O douto professor Marlon Tomazette (2013, p. 60), em digressão sobre a opção brasileira para a limitação de responsabilidade, no exercício individual da empresa, com sapiência ensina que:

O sistema adotado no Brasil foi o sistema da personificação da empresa que, apesar das acertadas críticas, é um sistema legítimo de limitação da responsabilidade no exercício individual da empresa. A EIRELI no Brasil

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representa um instrumento legítimo de limitação dos riscos do exercício individual da empresa, por meio da criação de uma pessoa jurídica.

Noutras palavras, a Empresa Individual de

Responsabilidade Limitada, conforme ínsito pelo art. 44 do Digesto Civil, seria uma nova modalidade de pessoa jurídica de direito privado.

Registra-se que, não obstante seja um novo ente moral, a EIRELI é regulada, subsidiariamente, pelas normas previstas às sociedades limitadas. Isto se influi facilmente pela leitura do §6º do art. 980-A do Código Civil (BRASIL, 2002), in verbis:

§6º Aplicam-se á empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.

Segundo dispõe Carlos Henrique Abrão (2012), inexiste uma aplicação ampla ou genérica, mas um balizamento harmônico de subsidiária incidência, que deverá ser aplicado de forma analógica, quando não conflitar com a natureza ou com os interesses da EIRELI. Pode-se entender que há uma nova vestimenta para a exploração da empresa que utiliza os adereços da sociedade limitada.

Nesse aspecto, Requião (2013, p. 118-119) enumera uma lista destes penduricalhos que são aplicáveis à recém-criada pessoa jurídica:

[…] destacamos alguns itens previstos pelos arts. 1.052 e seguintes do Código Civil, aplicáveis àquele ente jurídico: a) designação de administrador, o próprio empresário individual (art. 1.060); b) nomeação de terceiro como administrador, se admitida no

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requerimento de inscrição (art. 1.061), destituível a qualquer tempo (art. 1.063) pelo empresário titular, com anotação no registro público de empresas mercantis da destituição ou renúncia do nomeado; c) uso no nome comercial será privativo do titular empresário ou do administrador nomeado (art. 1.064); d) levantamento de balanço patrimonial e de resultado econômico no final do exercício (art. 1.065), observadas as exceções quanto à contabilidade que favorecem o microempresário; e) constituição de conselho fiscal (art. 1.066), do qual não poderão participar o empresário titular (art. 1.066, §1º), seus administradores, seus empregados, o cônjuge ou parentes até o terceiro grau; f) aumentar ou reduzir capital (arts, 1.081 e 1.082), com alteração da declaração de empresário registrada; no caso de redução, o empresário titular será o receptor do valor liberado; g) os negócios sociais serão organizados e orientados pelo empresário, que deverá pautar sua ação pelo objeto que elegeu no requerimento de registro, sob pena de cometer abuso, com as consequências expostas; h) a empresa individual de responsabilidade limitada se extinguirá, liquidando os seus negócios, no caso de falecimento ou interdição do titular; vencimento do prazo de operação, se for pré-determinado; por deliberação do titular; extinção da autorização para funcionar, quando for o caso; exaustão ou inexequibilidade de sua finalidade.

Outros institutos do quadro societário não devem, porém, ser aplicados à nova figura positivada, haja vista sua incompatibilidade, quais sejam: obrigatoriedade da

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pluralidade dos sócios, regras inerentes à resolução de conflitos sociais, dissolução parcial da empresa, entre outros.

É inequívoco o entrechoque, nada palatável, que se pode causar, caso venha a ser aplicado à Empresa Individual de Responsabilidade Limitada as normas das sociedades, especificamente a limitada, que não coadunam com a natureza daquela.

Nesse viés, surge o questionamento se a recente criação do nosso ordenamento jurídico poderia ter sua titularidade alterada tal como ocorre com as sociedades limitadas pelo evento da cessão de quotas.

Tomazette (2013, p. 67-68), em abordagem deste instituto, manifesta-se sobre a ausência de restrições para a alteração da titularidade por ato entre vivos ou causa mortis:

Uma das funções das pessoas jurídicas é permitir o exercício de atividades por prazos superiores à efemeridade da vida humana. A EIRELI poderá também desempenhar esse papel como pessoa jurídica que é. Todavia, para tanto, é essencial que seja possível a transmissão da sua titularidade, permitindo que outra pessoa prossiga ainda que indiretamente com aquela atividade. Em outras palavras, a transferência da titularidade da EIRELI será como a transferência de quotas de uma sociedade limitada, sem, porém, a necessidade de concordância dos sócios, pois esses inexistem no caso. Assim, por sucessão ou por negócios entre vivos poderá haver a mudança do titular da EIRELI, preservando a empresa em funcionamento, mesmo que com outro titular. (grifo nosso)

Neste mesmo sentido, o subitem 3.2.8 da Instrução

Normativa n. 117/2011 do Departamento Nacional de

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Registro do Comércio – DNRC, também assevera que tal como ocorre com as ações ou quotas de uma sociedade, a titularidade de uma empresa singular poderá ser objeto de cessão a um terceiro. In verbis:

3.2.8 - ALTERAÇÃO DE TITULARIDADE A alteração de titularidade da EIRELI deve ser formalizada mediante alteração do ato constitutivo. Na hipótese, a alteração deverá conter cláusula com a declaração de que o novo titular não participa de nenhuma empresa dessa modalidade, assim como cláusula de desimpedimento para o exercício da administração, ou declaração em separado, se for o caso.

Não obstante o posicionamento acima, sobre a

ausência de regra que vede a alienação das quotas da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, destaca-se a expressão “no que couber” do §6º do art. 980-A do Código Civil Brasileiro.

O exame mais acurado da redação dada ao dispositivo em destaque permite concluir que somente serão aplicadas as regras da sociedade limitada que não conflitem com a natureza jurídica do instituto em voga. Cuida-se de uma vedação implícita.

Ora, o legislador ao criar a nova figura no nosso ordenamento jurídico, nada mencionou sobre esta possibilidade de cessão de quotas, de modo que, cabe à doutrina delimitar a questão.

Refletindo sobre este ponto, é possível trilhar dois caminhos, a depender de qual natureza jurídica que se adote. Partindo do pressuposto de que a EIRELI foi constituída com o intuito de limitar a responsabilidade do empreendedor singular, sendo, uma extensão deste, e, via de regra,

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estabelecendo-se um vínculo personalíssimo com o seu titular, a cessão de quotas estaria vedada.

Wilges Bruscato (2012, p. 35) com maestria versa que:

É preciso atentar para a ressalva legislativa contida no dispositivo em questão: no que couber. Assim, tudo que está previsto para a sociedade limitada que esteja ligado à sua essência social, não é de usado na EIRELI, posto que sua essência não é societária, mais se aproximando do empresário individual. Portanto, em caso de dúvida, é a teoria geral do empresário individual que deve recorrer o intérprete e, apenas supletivamente, às regras das sociedades limitadas.

Outrossim, possuindo a EIREILI afinidade, em

diversos pontos, com a categoria jurídica das sociedades, e sendo delas espécie, é totalmente pertinente aceitar a aplicação da referida regra societária. Não caberia aqui, falar que a Empresa Individual teria este elemento personalíssimo com o seu sócio, pois, mais que limitar a responsabilidade, as sociedades são um meio de se exercer empresa.

A cessão das quotas, nesse caso, desencadearia a responsabilidade solidária do titular cedente com o novo titular (cessionário), perante a pessoa jurídica e terceiros, pelas obrigações que tinha como titular, até dois anos depois de averbada a modificação do ato institucional, nos termos do artigo 1.003, parágrafo único, do Código Civil, in verbis:

Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.

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Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

Nessa lógica, é evidente que, dependendo da natureza

jurídica que se acredite possuir, o novel instituto terá características que não se comunicam, isto é, não estarão presentes em ambos os casos.

Assim, se a EIREILI possui natureza jurídica de sociedade, a sua titularidade pode ser livremente transferida, porém, caso seja uma nova criação sui generis, não.

2 Conclusão

É notório que a Lei n. 12.441/2011 instituiu, no nosso

ordenamento pátrio, uma nova entidade jurídica denominada como Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI). Referida criação, veio para satisfazer os anseios de toda uma coletividade que, desde muito, clamavam pela fusão da responsabilidade limitada com a possibilidade de se constituir um negócio empresarial singular.

Diz-se que a EIRELI representou e ainda representa uma grande conquista para os empreendedores individuais, pois criou uma roupagem própria, apta ao exercício da empresa de forma mais segura para o seu titular, sem que esse tenha que se valer da pluralidade e utilizar, muitas vezes, de alguns sortilégios.

Salutar dizer, que o novel diploma colocou, em relevo, aspectos provenientes do direito comparado, haja vista, que a limitação de responsabilidade do empreendedor singular remonta à Jessel, na Inglaterra (1877), ao ser discutida por nossos doutrinadores somente, em 1940, com Adolfo Theiler.

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A tendência mundial pela limitação de riscos, no exercício individual da atividade empresária, intercalava, com certa frequência, suas opiniões entre a criação de sociedades unipessoais, patrimônios de afetação e personificação de objetos de direito, como sendo o meio mais eficaz para se alcançar a proteção patrimonial do investidor único.

Resultando claramente da síntese de dois projetos de lei que concatenavam na mesma direção, porém percorrendo caminhos distintos, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada tem suscitado dúvidas quanto a sua natureza jurídica.

Isso ocorre por que o Projeto de Lei n. 4.605/09 almejava instituir uma tipologia societária individual, ao passo que o Projeto de Lei n. 4.953/09 clamava pela personificação de um objeto de direito.

Pela falta de sinergia do legislador em conseguir perfilhar os referidos projetos, foi positivado, pelo novo diploma, um tipo jurídico que mescla as características do empresário individual aos atributos das sociedades propriamente ditas.

Causa espanto que um dos maiores especialistas do país em matéria de sociedade unipessoal, o Prof. Calixto Salomão, não tenha sido consultado, em momento algum, da tramitação legislativa. Por isso a EIRELI se tornou o monstro que é; fica no meio do caminho a gerar inúmeras dúvidas.

A ausência de coerência entre o conceito adotado e a estrutura proposta resultou na pessoa jurídica de direito privado inserida no art. 44, inciso VI do Código Civil, com personalidade própria, ao lado as associações, fundações e sociedades.

Em linhas gerais, o debate acerca da natureza jurídica se sustenta, principalmente em duas correntes. A primeira, patrocinada por Fábio Ulhoa Coelho, Gladston Mamede, Sérgio Campinho, dentre outros que se ancora no

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entendimento de que a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada seria uma sociedade unipessoal.

Segundo esses doutrinadores, a utilização de expressões tipicamente societárias, tais como: “capital social”, “firma ou denominação social”, “outra modalidade societária” estariam a ratificar essa natureza jurídica.

Doutro lado, seguindo posicionamento contrário, estão autores como Rubens Requião, Wilges Bruscato, Marlon Tomazette, que afirmam ser, a EIRELI, uma criação sui generis.

Focam seus argumentos no sentido de que a personalização de um objeto de direito (empresa), com a sua respectiva inclusão no rol do dispositivo 44 do Código Civil, seria um dos fundamentos que elidem a essência societária do novel instituto.

Seria fulcral podermos cravar com convicção de que a EIRELI trata-se de uma sociedade unipessoal ou de um novo ente personalizado, todavia as brechas da lei nos fazem percorrer um terreno totalmente tenebroso.

É cediço que as pessoas jurídicas são constituídas, em regra, para exercerem suas funções por prazo indeterminado, não ficando adstritas ao limite temporal que incide sobre o seu instituidor.

Neste sentido, surge o questionamento, se a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada poderia ter sua titularidade alterada por ato inter vivos ou causa mortis.

Os dispositivos legais, que regem o instituto singular, são omissos quanto à (im)possibilidade de cessão das quotas da EIRELI. Outrossim, remetem no §6º do art. 980-A do Código Civil, a aplicação supletiva das normas da sociedade limitada, desde que, sejam compatíveis com o espírito do novo ente moral.

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Assim, argumentou-se no sentido de que, se a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada foi criada com o intuito de limitar a responsabilidade do empreendedor individual, por isso uma criação única em seu gênero, não seria aplicável aos dispositivos quer versam sobre a cessão de quotas.

Lado outro, sendo clara a hipótese de sociedade unipessoal limitada, não haveria nenhum óbice em se alienar as quotas do único titular da EIRELI, observado, é claro, as disposições sobre a responsabilidade solidária do cedente e a alteração do nome empresarial, quando necessário.

Empresa é objeto e não sujeito de direito. Limitar a responsabilidade de uma empresa e criar uma nova espécie de pessoa jurídica é algo copiado - e mal copiado - da América do Sul. Acreditem, a EIRELI é mais um exemplo de "sacolagem legislativa", porque foi copiada do Paraguai. Alguns doutrinadores dizem que a EIRELI veio do Chile, mas a lei do Paraguai a antecede em mais de uma década.

Nada obstante a atecnia do legislador, pode-se afirmar, pelos fundamentos sobejados, que ele criou um novo ente personalizado, com características próprias, porém que em muitos pontos se assemelha a uma sociedade.

Embora classificada em inciso apartado daquele em que é previsto o tipo societário, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada seria dessa espécie. O simples fato de vir, no art. 44 do Código Civil, apenas reforça sua característica de pessoa jurídica, sem, contudo, afastar sua condição de sociedade unipessoal.

Verdade é que se tem em nosso ordenamento pátrio um tipo de “ornitorrinco jurídico”, que mesmo possuindo feições sui generis é uma sociedade unipessoal, podendo, inclusive, ter sua titularidade alterada.

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EUTANÁSIA: DIREITO À VIDA X DIREITO À MORTE DIGNA

Tatiane Santos Neves*

Adriano De Abreu Silva** Introdução

A aceitação do direito de morrer é tema de intensa

controvérsia doutrinária, visto que valores como vida e liberdade de escolha devem ser ponderados a fim de se alcançar uma abordagem concreta da problemática, no tocante à permissão ou proibição da prática da eutanásia. Sob a ótica do Estado Democrático de Direito Brasileiro, que se fundamenta no princípio constitucional da dignidade humana, não se pode deixar perder de vista, ainda, o ideal da dignidade, inerente a todo humano.

Em geral, as discussões sobre o tema questionam, para fins da eutanásia, se o valor da vida deve-se sobrepor ao valor da liberdade de escolha, no caso da perda da dignidade em face do estado físico. Nesse passo, a pergunta que conduziu o presente trabalho foi se em situações de estado vegetativo ou doença irreversível, em um estado de plena dependência alheia, pode-se optar pela eutanásia?

* Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE. Advogada, Pós Graduanda em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM.

** Advogado, Mestrando em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes e Professor do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas – FUNORTE.

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O presente artigo tem por objetivo, então, esclarecer como essa delicada questão tem sido tratada pelo Direito Penal Brasileiro, uma vez que é um tema de grande relevância social por tratar do direito à vida, sobretudo para aqueles que defendem o ato da eutanásia.

Para tanto, inicialmente, realiza-se considerações pertinentes à vida, direitos, garantias e, em seguida, sobre a morte. Discorre-se a respeito da definição, histórico e aspectos da eutanásia, além de promover uma desmistificação dos conceitos assemelhados, eliminando a confusão terminológica acerca do tema. A seguir, procede-se à análise do tratamento da eutanásia no Direito Brasileiro e a relevância do consentimento do paciente a terceiro para que realize essa prática e, ainda, os cuidados paliativos como forma alternativa para reduzir o sofrimento. Ao final, sem a pretensão de esgotar o tema, dada sua abrangência e diversidade, é apresentado um entendimento acerca da eutanásia vigente, hoje, no âmbito penal, assim como as propostas de modificações desse, além das novas perspectivas, caso venha a ser aceito o novo Anteprojeto de Reforma do Código Penal de 2012.

1 Considerações acerca da vida e morte

Antes de se falar em morte, é preciso pensar em vida.

Partindo desse ponto de vista, todo homem tem direito à vida, isto é, direito de viver. E, não apenas isso, mas também o direito a uma vida plena, digna, com respeito aos seus valores e necessidades.

O direito à vida trata-se de garantia de 1° geração e vem elencado na Magna Carta em seu art. 5°, caput:

Art. 5º. Todos São iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à

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liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL. 1988.)

Os direitos de primeira geração foram reconhecidos durante a Revolução Francesa e a Americana, tendo assim surgido no final do século XVIII e tendo dominado todo o século XIX. Esses direitos se caracterizam pela imposição de defesa contra as possíveis ingerências e abusos do Estado. São exemplos de direitos fundamentais de primeira geração: o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e religiosa, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de reunião, entre outros.

Bonavides (2005, p. 563-564) caracteriza que: Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdades têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

Segado (1997, p. 210), por seu turno, discorre sobre a

existência humana como pressuposto fundamental para que se possa vir a falar da existência de demais direitos e liberdades inerentes, pertinentes à vida, que estão enumerados em nossa Constituição. É como se fosse um pré-requisito e, para usufruir desses direitos, necessita-se, anteriormente, de se ter assegurado o direito à vida.

Com isso, cria-se um núcleo envolvendo o direito à vida, que, para estar à sua volta, deve-se, necessariamente, enfatizar a importância do mesmo, o que gera ao Estado o dever de agir para resguardá-lo, como é o caso dos atentados dolosos contra a vida e a imposição de que o meio ambiente

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seja ecologicamente equilibrado, para não comportar o risco para a vida, entre outras formas de proteção.

Importante salientar sobre a diferenciação entre o direito à vida e a garantia à vida. Conforme estudos realizados por Rui Barbosa (1932), desde 1891, pode-se dizer que o direito configura-se em bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto que a garantia são instrumentos, por meio dos quais se assegura o pleno exercício dos aludidos direitos ou, de imediato, repara-os, no caso de serem violados.

Como acentua Moraes (2007, p.46-47), o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.

Nesse mesmo sentido, Diniz (2009, p. 32-34) dispõe que o direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade:

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, consequentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa.

O direito à vida é subjetivo de defesa, pois é indiscutível a afirmação do indivíduo de ter o direito de viver, com a garantia da “não agressão” a este, o que implica, também, o dever de proteção. Ou seja, o homem tem o direito perante o Estado a não ser morto por ele. O Estado tem, por isso, a obrigação de se abster de atentar contra a vida do indivíduo, que tem o direito à vida perante outros e esses devem abster-se de praticar atos que atentem contra a vida de alguém. (CANOTILHO, 2000, p.526/533/539). O próprio

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Canotilho (2000, p. 539) conclui: “o direito à vida é um direito, mas não é uma liberdade”.

A expressão “direito à vida” está particularmente ligada, hoje, à discussão sobre a legitimidade da interrupção do processo de gestação e ao debate sobre liceidade da interrupção voluntária da existência em certas circunstancias dramáticas e peculiares. O direito à vida, porém, não tem a sua abrangência restrita a essas questões. Estudos já o contemplavam desde tempos mais remotos, tanto em discursos seculares como em produções de cunho religioso (MENDES, 2013, p. 257).

Outro importante aspecto diz respeito à questão da relatividade do direito à vida. Embora a Constituição Federal tenha dispensado todo um tratamento sobre o referido direito, é certo que o mesmo, ainda assim, não tem caráter absoluto, a prevalecer, em quaisquer circunstâncias, sobre todos os demais direitos inseridos na Carta Cidadã.

Vários são os constitucionalistas que ressaltam indigitado aspecto do direito à vida, verbi gratia:

O direito à vida não é efetivamente absoluto, tanto que o próprio Código Penal Brasileiro não tipifica como ilícito penal a tentativa de suicídio. Ser detentor do direito absoluto à vida, a partir do princípio da liberdade e da dignidade da pessoa humana na aquisição da sua personalidade, não significa que o homem usufrui dessa liberdade e dignidade nas situações mais extremas de sofrimento, devido à ausência de saúde. Ter de renunciar o seu direito à vida, para que seja aplicada a eutanásia ativa, pode parecer garantir uma “morte digna”, mas há quem aceite a ideia de tornar a vida disponível por não conseguir mais garantir uma qualidade de vida digna, e

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daí justifica-se a necessidade de se aplicar a eutanásia: A conclusão que se segue é que vida é uma espécie de direito cuja tutela se faz pela propriedade e cujo titular é o ser humano capaz, competente, apto a se autodeterminar (...) (SZTAJN, 2009, p. 253-254).

Assim, o direito à vida possui uma íntima ligação

com a dignidade, ou poderia dizer, ainda, à plenitude da vida. Isso significa que o direito à vida não é apenas o direito de sobreviver, mas de viver dignamente.

Como assevera Pessini (2004, p.150), o termo qualidade de vida “pode se referir a várias realidades diferentes”, possuindo um caráter valorativo. Dessa maneira, não se pode definir objetivamente o que seja qualidade de vida, eis que esta não se trata de um fato da vida real, mas um valor, resultado de uma análise interpessoal:

(...) Uma coisa é perceber as cores, as formas etc., outra muito distinta é perceber o valor estético do quadro. Sobre o dado de percepção montamos outro, que normalmente chamamos de estimação, preferência ou valoração. A estimação é absolutamente necessária em nossa vida. Ninguém pode viver sem estimar (PESSINI, 2004, p. 150).

Ao abordar este assunto, Duarte (2012, p.01) expõe

que: A única certeza do ser humano é a morte. Não se sabe do nascimento, não se tem certeza sobre o curso da vida, os sucessos e insucessos, as conquistas, as derrotas, os prazeres ou dissabores, a vida familiar. Porém, desde o nascimento, sabe-se que, algum dia, distante ou próximo, haverá a morte. [...] O homem enfrenta a morte, sem o perceber, diariamente. Ao ser concebido, o embrião vence a morte, como triunfo sobre outros

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espermatozoides que não fecundaram o óvulo. Ao nascer com vida, o ser humano vence a morte da passagem da segurança do útero para o mundo exterior. Ao crescer, vence a morte a cada etapa do seu desenvolvimento, por não contrair doenças infecciosas, por não se acidentar, por ser alimentado adequadamente. Ao envelhecer, vence a morte, a cada dia, quando vai perdendo seu tônus vital.

Segundo Dworkin (2003, p. 251-268), “as pessoas devem decidir sobre sua própria morte, ou sobre a morte dos outros, em três tipos principais de situação”: “consciente e competente”; “inconsciente”; e “consciente, mas incompetente”.

A morte, segundo Heidegger (1993), citada por Duarte (2012, p. 01) “é a possibilidade mais autêntica da existência, da qual ninguém pode fugir. A morte representa a possibilidade da minha impossibilidade, e a impossibilidade das minhas possibilidades.” Completa Sá (2005, p. 80) ao dizer que “morrer é parte integral da vida, tão natural e previsível quanto nascer. É inevitável... O que é mais assustador é que ninguém sabe o que lhe espera depois da vida.”

Chauí (2010, p. 235), numa visão de liberdade de escolha, afirma que:

Vida e morte são acontecimentos simbólicos, são significações, possuem sentido e fazem sentido”. E continua: “Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa temporalidade e de nossa identidade: a vida é minha e minha, a morte. Esta, e somente ela, completa o que somos, dizendo o que fomos.

Sêneca (2007, p. 106), dentre outras lições, ao tratar

da atitude do sábio diante da morte em suas cartas afirma que

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não devemos consertar a vida a todo custo “pois o importante não é viver, mas viver bem”. Assim, “o sábio vive tanto quanto deve e não tanto quanto pode”, “sempre pensa na qualidade de sua existência e não na sua duração”.

Após o estudo de obras de grandes doutrinadores, percebe-se uma colisão frontal de grande importância entre princípios e até mesmo de direitos, como o caso em tela, já que verificamos o embate entre o direito à vida e o direito à dignidade humana, e dentro desta dignidade, qual estaria em patamar elevado: o direito a vida digna ou o direito de se ter uma morte digna?

Lenza (2012, p.973) aborda o tema aludido dizendo que:

A vida deve ser vivida com dignidade. Definido o seu início, não se pode deixar de considerar o sentimento de cada um. A decisão individual terá que ser respeitada. A fé e esperança não podem ser menosprezadas e, portanto, a frieza da definição não conseguirá explicar e convencer os milagres da vida. Há situações que não se explicam matematicamente e, dessa forma, a decisão pessoal (dentro da ideia de ponderação) deverá ser respeitada. O radicalismo não levará a lugar algum. A Constituição garante, ao menos, apesar de ser o Estado laico, o amparo ao sentimento de esperança e fé que, muitas vezes, dá sentido a algumas situações incompreensíveis da vida.

A maneira de se pensar na morte e como essa se

inseriu, na sociedade, é descrito por Taitson (2012, p. 03) que diz:

A forma de se pensar em morte fez um percurso histórico em algumas culturas, como na Grécia Antiga, onde os espartanos jogavam do alto de um monte os recém - nascidos

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defeituosos e os idosos. Em Atenas era o senado que tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação dos idosos e dos incuráveis. No Império Romano, o imperador César autorizava o término da agonia de gladiadores feridos, com um movimento dos dedos. Na Índia, as pessoas com doenças incuráveis eram jogadas no rio Ganges e sua boca e narinas eram vedadas com a lama sagrada. Na Idade Média, os guerreiros feridos mortalmente tinham direito ao punhal, reconhecendo-se seu uso como ato misericordioso, para evitar o sofrimento prolongado. Em cada período houve diferentes maneiras de se pensar a morte ou, em alguns casos, executá- la.

O princípio da autonomia é constantemente mencionado, quando se defende a possibilidade de se escolher como e quando morrer. Em caso de doença grave, as pessoas devem ter o direito de decidir sobre questões fundamentais de sua vida. A autonomia também pode ser utilizada como um argumento contrário à eutanásia, por se sentirem, de alguma forma, pressionadas para escolherem quando morrer. Um paciente, por exemplo, ao ver o doloroso desgaste de seus familiares e amigos com a angustiante situação em que se encontra, pode optar por colocar um fim em sua vida somente para deixar de ser um fardo. Na forma de se pensar em morte, deve haver a racionalidade necessária para a escolha e a reflexão exigida para se tome medida tão extremada (DWORKIN, 2003, 268-271).

Ainda, segundo Dworkin (2003, p. 266), quando se decide sobre a vida e a morte, existem "implicações para três questões morais e políticas específicas, quais sejam a autonomia, os interesses fundamentais do paciente e o que ele denominou de santidade da vida”.

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Contudo, Sarmento (2002) discorre que seria de suma importância que existisse essa “ponderação” entre os interesses envolvidos, aplicando para isso a razoabilidade, concordância prática ou ainda a harmonização.

2 A eutanásia

Eutanásia trata-se de uma palavra que provém do

grego, derivada dos radicais eu (bom), thanatos (morte) e consiste no ato de facultar a morte, sem sofrimento, a um indivíduo cujo estado de doença é crônico e, portanto, incurável, normalmente associado a um imenso sofrimento físico e psíquico, sendo considerada a “boa morte” ou “morte serena”.

A perspectiva histórica da prática da eutanásia identifica três momentos:

Num primeiro momento foi denominada como “eutanásia ritualizada”, que consistiu em uma ritualização da morte, como um grande acontecimento da existência humana, que vai além de seu significado meramente biológico. Num segundo momento, denominada como “eutanásia medicalizada”, que se deu com o surgimento da medicina na Grécia e se estendeu até a Segunda Grande Guerra, onde sua prática era justificada pela própria função médica que era tida não somente como aquela que tem por fim curar, mas também de por fim ao sofrimento do paciente, através da morte. E por fim, um terceiro momento, que é o da “eutanásia autônoma”, que coloca em evidência o protagonismo do enfermo hoje; essa é a posição vivenciada atualmente, embora esteja longe de ser pacífica (RODRIGUES, 2005, p. 229).

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Na atualidade, observa-se que não somente o sofrimento físico, mas também o psíquico ou moral serve para configurar a agonia incessante pela qual passe o enfermo durante essa situação penosa, como a dor moral do tetraplégico, a angústia por previsão do portador de Alzheimer e o sofrimento presumido do paciente, em estado vegetativo permanente, que declara antecipadamente sua preferência pela morte.

Segundo Serrão (2001, p. 83-90), existem três argumentos ou explicações para o pedido de eutanásia feito pelo paciente: a dor física e neurológica; o sofrimento, que impede o campo de consciência do doente enxergar algo positivo; o esgotamento do projeto de vida pessoal e quando o indivíduo está convencido da sua inutilidade como ser humano.

Em casos tais, geralmente o doente não deseja morrer, mas sim, deixar de sofrer. “… o desejo dos doentes em apressar a morte… um pedido de socorro por uma ajuda intensamente humano-afetiva, aliada a um combate eficaz à dor.” (BORGES, 1996, p. 363-368). Doente esse que, por vezes, procura ceifar sua vida de todas as formas, inclusive, se submetendo a um ato médico.

Pessini (2004, p. 205-206), por sua vez, traz importante consideração com relação à limitação da aplicação do termo eutanásia para o ato médico. Referido autor entende que, se o ato não for praticado por um médico, deveria ser caracterizado como homicídio por misericórdia ou, quando muito, suicídio assistido. A propósito, confira-se ipsis literis:

(...) sugerimos que o termo eutanásia seja reservado apenas para o ato médico que, por compaixão, abrevia diretamente a vida do paciente com a intenção de eliminar a dor e que outros procedimentos sejam identificados como expressões de assassinatos por misericórdia, mistanásia, distanásia ou

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ortotanásia conforme seus resultados, a intencionalidade, sua natureza e as suas circunstâncias (PESSINI, 2004, p. 205-206).

Contudo, mesmo que seja interessante que o ato seja

de exclusividade do médico, seria utilizada a eutanásia não somente como um ato médico, mas como uma ação tomada por qualquer pessoa com o intuito de cessar a vida de outrem para por um fim ao sofrimento físico e/ou psicológico pelo qual esteja passando, por pura compaixão.

A eutanásia, como forma de ceifar a vida, é atualmente um tema complexo e polêmico acerca de bioética e biodireito, já que, enquanto o Estado tem como princípio a proteção da vida de seus cidadãos, alguns desses, devido ao seu estado precário de saúde, desejam dar um fim ao próprio sofrimento, antecipando a morte; e ainda existem aqueles que concordam com isso, dando-lhe consentimento; e ainda os que realizam o procedimento final.

As diferentes opiniões residem nos meios utilizados para tal, visto que a confusão terminológica dificulta plenamente essa divergência. Em várias situações obscurece o que se condena e o que se aceita. Feitas essas considerações, temos as figuras afins à eutanásia, que seriam:

A Ortotanásia – morte a seu tempo, que seria o procedimento médico que, diante da morte inevitável e iminente do paciente, interrompe o tratamento inútil da doença, que somente prolongaria um sofrimento desnecessário, e conduz à realização de cuidados paliativos que visem conferir dignidade no morrer (SANTORO, 2011, p.133).

A ortotanásia retrata a noção de que a morte não deve

ser adiantada e nem prolongada. É a concepção que versa sobre a morte há seu tempo, sem a intervenção de fatores externos. Trata-se aqui, de cuidar do paciente. Nessa

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perspectiva, aqueles que defendem a ortotanásia afirmam que não são necessários nem a eutanásia e muito menos a distanásia, mas tão somente de envidar meios de melhorar o bem-estar daquele que se encontra em um estado de sofrimento. Esse argumento é particularmente forte, quando se abre a discussão sobre a eutanásia no caso de pacientes que não se encontram em estado terminal, como é o caso dos tetraplégicos.

Ao referir-se à ortotanásia, tem-se entendido que somente o médico pode provocá-la. Não se constituindo em abreviação da vida, mas, sim, no seu não prolongamento por meios artificiais, pois se aceita a ideia de que o paciente não é obrigado a suportar um tratamento contra a sua vontade, o que desoneraria o médico do dever de impor as medidas tratativas a qualquer custo. A hipótese de ortotanásia ainda é criminalizada no Brasil, nada obstante as controvérsias e os embates jurídicos que se têm suscitado.

A Distanásia – se caracteriza pela utilização de medidas terapêuticas excessivas que não cumprem com sua finalidade de melhorar ou curar o paciente da moléstia que o acomete, pelo contrário, ao adotar ações fúteis e exorbitantes estaria o médico dando razão a tratamento desumano e degradante, por prolongar a vida estritamente em termos quantitativos, em detrimento da qualidade (LOPES, 2011, p.63-64).

Distanásia, por sua vez, é a tentativa de postergar a

morte, por todos os meios médicos possíveis, ainda que isso signifique causar maior sofrimento ao paciente terminal. Há, na verdade, não um prolongamento da vida, mas do processo de morrer. Foi isso que o avanço médico mais conseguiu alcançar nos últimos anos. No conceito de distanásia, como espécies, se encontram a obstinação terapêutica e o tratamento

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fútil. A primeira se refere à tentativa de combater a morte de todas as maneiras possíveis, como se fosse possível a sua cura, enquanto o segundo se refere à aplicação de métodos que, apesar de não poderem ensejar a cura, prolongam a vida, ainda que aumentem o sofrimento do paciente.

A Mistanásia – ou eutanásia social é aquela que ocorre em relação a doentes e deficientes que não chegam a ser pacientes. Reveste-se de omissão de socorro estrutural que atinge doentes durante a vida, privados de atendimento digno, pronto e adequado (DUARTE, 2012, p. 06).

Nas palavras de Maria Helena Diniz, citada por

Santoro (2011, p. 218), a mistanásia é “a morte do miserável, fora e antes de seu tempo, que nada tem de boa ou indolor”.

O termo pode ter sido originado do grego mis, que significa “infeliz”, ou mys, radical utilizado para a palavra “rato”. Em ambos os casos, a expressão remete à morte pela situação precária de nutrição ou ausência de cuidados médicos e de higiene básicos. Transcende o âmbito puramente médico-hospitalar, incidindo sobre aqueles indivíduos que sequer têm acesso a esse atendimento por motivo de carência social, encontrando-se numa situação de ausência de possibilidades econômicas e políticas (VILLAS-BOAS, 2005, p.75).

As condições em que se dá a morte, nos casos a que se referem os termos mistanásia nada têm de bom, piedoso ou indolor (PESSINI, 2004, p. 210).

E o Suicídio Assistido – procedimento que permita ao terceiro informar e garantir ao paciente o acesso a algum tipo de substância que induza à morte, como fornecer um determinado remédio para que o próprio paciente ingira, ou prescrever medicamento cuja dose seja mortal ou mesmo instruir sobre o adequado procedimento a ser efetuado para

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o alcance do objetivo suicida (GUIMARÃES, 2011. P. 178).

No Código Penal Brasileiro (1940), a participação no

suicídio é tipificada quando o agente incide em um desses tipos penais: induzir, instigar ou prestar auxílio. Em se tratando de compatibilidade com a eutanásia, em que a morte e o auxílio para que ela ocorra são decorrentes da compaixão perante um sofrimento atroz, não cabe falar de indução ou instigação por parte do agente, somente o auxílio ao suicídio e, mesmo essa ajuda está relacionada a uma motivação sui generis, o sentimento de piedade perante a dor do próximo.

Ana Maria Marcos Del Cano, citada por Santoro (2011, p. 138) prefere a denominação “autoeutanásia” ou “suicídio eutanásico”, pois o terceiro não atua diretamente na eliminação da vida do paciente, mas sua participação, com assistência material ou moral, somente ocorre por razões humanitárias, o que difere esse comportamento do auxílio ao suicídio genérico.

Porém, as condutas não se confundem. Na eutanásia, quem dá causa à morte ao efetuar uma ação ou omissão é o terceiro, enquanto no suicídio assistido é o próprio paciente que age na concretização de seu intento fatal (LOPES, 2011, p. 176).

Contudo, as diferenças na intenção dos agentes ao participarem de algum dos tipos acima descritos, ao final acabam tendo o mesmo elemento motivador: buscar o respeito à dignidade da pessoa enferma.

É necessário que se amplie o respeito diante da autonomia da vontade, princípio esse completamente integrado ao da dignidade humana, para que se possa entender que o homem deve satisfazer a si mesmo, aos seus desejos e vontades e não à sociedade, que, em determinados momentos,

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se preocupa apenas com a falta que aquele indivíduo irá fazer para com os outros, sem se importar com o mesmo.

A solução mais adequada para se alcançar esse entendimento, no caso da eutanásia, seria abranger todas as formas de se ceifar a vida, pois, ao se deparar com a situação de uma pessoa que está prestes a morrer, ou solicita que a mate, poderia se avaliar qual a forma menos gravosa e mais adequada ao caso, mesmo que ainda sendo uma conduta ilícita, deve-se observar o caráter da dignidade da pessoa que está no fim de sua vida, princípio declarado como essencial na nossa Constituição Federal.

Desta forma, podemos enxergar a eutanásia, em sentido mais amplo, como sendo a maneira encontrada para se pôr fim à vida sofrida, à doença incurável, ou mesmo aos tratamentos que chegam a ser cruéis, já que se sabe que não levarão a nenhuma melhora, apenas delongando ainda mais o sofrimento e retardando o tão esperado fim pelo paciente.

3 Eutanásia no direito brasileiro

Atualmente, a eutanásia pode estar sendo praticada de

maneira comum no sistema de saúde brasileiro, mas de forma camuflada, devido ao receio que se tem de serem punidos na esfera criminal, por ser considerado tal ato como umas das formas de homicídio, já que ainda não se tem uma tipificação específica para a sua aplicação.

O que pode levar à decisão de por um fim à vida de uma pessoa são diversos fatores, tanto social, quanto econômico e até mesmo sentimental ou pessoal.

Sabe-se que muitos enfermos, ao verem o sofrimento e o desgaste de suas famílias, frente à luta diária de tê-los naquela situação, acabam por perder as esperanças, o que os levam a pedir que seja dado fim à sua vida.

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Do outro lado, também existem famílias que, ao se depararem com a situação crítica dos enfermos, que se encontra em estado vegetativo ou mesmo em coma profundo, solicitam o desligamento dos aparelhos que os mantêm vivos, seja pela dor, ou pelo definhamento a que se submetem os pacientes, ou mesmo pelo esgotamento de condições financeiras para continuar a mantê-lo naquela situação, pois não se consegue esses tipos de internações com tratamento de forma barata no Brasil, e é, ainda mais difícil conseguir, de forma gratuita, pelo Sistema Único de Saúde brasileiro.

Na precária situação em que se encontra o Sistema Único de Saúde, sabe- se que há falta de quartos, de remédios, de aparelhos específicos, de atendimento, dentre outras privações. Muitas vezes, o profissional da saúde se depara com uma situação complicada: manter um paciente vivo “artificialmente”, sem expectativa de melhora e dispensar novos enfermos que necessitam de uma vaga, ou pôr um fim ao sofrimento daquele enfermo sem expectativas, ao desligá-lo dos aparelhos e ceder uma vaga a outro enfermo que dela necessita e que tenha alguma esperança de restabelecimento da saúde.

Ao se discorrer sobre a prática da eutanásia, um fator muito importante deve ser levado em consideração: A conduta do terceiro que participa do processo de aplicação da eutanásia deve ser tipificada, a ele deve-se dispor algum tratamento penal?

A primeira teoria a ser discutida é a unitária, segundo a qual o consentimento do ofendido sempre afastaria a tipicidade da conduta, seja ou não com o consentimento, parte integrante do tipo penal. Assim, independentemente do bem jurídico lesionado, o consentimento seria capaz de afastar a tipicidade, não havendo que se falar em consentimento capaz de atingir a ilicitude, já que essa sequer seria cogitada.

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Claus Roxin (1997, p.517) defende o consentimento como causa de exclusão da tipicidade, dentre outros argumentos, na liberdade de ação de quem consente e no papel que o bem jurídico desempenha com relação ao seu titular. Entende-se que os bens jurídicos, servem para o livre desenvolvimento do indivíduo:

(...) não pode existir lesão alguma do bem jurídico quando uma ação se baseia em uma disposição do portador do bem jurídico que não menospreza seu desenvolvimento, mas que, pelo contrário, constitui sua expressão (ROXIN, 1997, p. 517).

Como consequência, seria possível que quem atua,

em conformidade com o consentimento do ofendido ou mesmo a seu pedido, não realiza o tipo penal, por faltar o desvalor do resultado e, com ele, o desvalor da ação. Como a vontade de quem atua não se dirige à produção de um resultado desvaloroso, falta-lhe o dolo e, assim, a vontade de realização do tipo.

Ao discutirem a relevância do consentimento da teoria do delito, para Hassemer; Larrauri (1997, p. 56):

Deslocada a primeira suposição para a tipicidade, no sentido de entender-se que, se há consentimento, já não se pode produzir uma ofensa penalmente relevante do bem jurídico (conduta típica), tornou-se comum afirmar que as causas de justificação são aquelas situações em que o legislador considera preferível permitir a lesão ao bem jurídico, isto é, autoriza a lesão de um bem jurídico para salvaguardar um interesse prevalente, de maior valor.

Vale ainda destacar o posicionamento de Cirino

(2002, p. 194), para quem:

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(...) do ponto de vista teórico, os argumentos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo parecem convincentes: o consentimento real exclui o desvalor da ação e o desvalor do resultado e, por consequência (sic), descaracteriza o próprio tipo de crime; o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e, portanto, indica situação de ausência de conflito do sistema de justificações.

Queiroz (2008, p. 280) segue no mesmo sentido,

sendo que para ele o consentimento sempre funcionará como causa de exclusão de tipicidade. Nessa esteira de raciocínio, fundamente que:

É que, se os bens jurídicos servem para o livre desenvolvimento do indivíduo, não pode existir lesão alguma a este quando uma ação se fundar em disposição válida do titular do bem jurídico, que assim não deprecia seu desenvolvimento, mas ao contrário constitui sua expressão.

Entretanto, a ideia de que o consentimento exerce

função dupla na Teoria do Delito, ainda que não se atribua a ele nome diferente, encontra adeptos em diversas doutrinas.

Assim, os defensores da Teoria Dualista do consentimento afirmam sua dupla função: excludente da tipicidade e da ilicitude da conduta. Cada uma das funções encontraria aplicação, conforme o dissenso da vítima integrasse ou não a definição típica do crime, desde que, em todo caso, o bem jurídico protegido pela norma penal, integrasse a esfera de disponibilidade da vítima.

Welzel (1956, p.98-99) sustenta, inclusive, a respeito do consentimento que “pode excluir o tipo, e isso ocorre em

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todos os casos em que atuar contra a vontade do afetado pertence ao tipo”.

Assim, há de se reconhecerem os tipos em que se materializa, por parte do agente, uma atuação contrária à vontade do titular do bem como àqueles em que, presente o consentimento, haverá afastamento da tipicidade.

Para Tavares (1984, p. 164), é importante salientar outros critérios como o valor social do resultado, a anterioridade do consentimento à ação lesiva, a não infringência dos bons costumes e a adequação da conduta à forma e ao modo de execução efetivamente consentidos. Tavares ressalta, ainda, que esses critérios devem ser apreciados, em conjunto, para se certificar até que ponto o consentimento pode excluir a antijuridicidade.

Compartilham ainda desse entendimento Mirabete e Fabrini (2007, p. 188-189), bem como Prado (2005, 414), observando que:

O consentimento do sujeito passivo pode excluir a tipicidade da ação ou da omissão, quando requisito intrínseco ao tipo legal, ou, eventualmente, quando externo a ele, elidir a ilicitude da conduta.

Entretanto, há de se falar de outras práticas realizadas

por terceiros, que não necessariamente praticam o ato de ceifar a vida de outrem, mas que levam a essa ação. Entre essas práticas, temos os cuidados paliativos, realizados pelos profissionais de saúde em enfermos que chegaram a uma situação em que não faz mais sentido continuar com tratamentos, mas que necessitam de cuidados específicos para que a dor, entre outras coisas, seja diminuída nesses últimos momentos.

O cuidado paliativo é definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como:

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(...) uma abordagem que melhora a qualidade de vida do paciente e seus familiares frente a problemas associados a doenças que ameacem a vida, através da prevenção e alívio do sofrimento por meio de uma identificação precoce e avaliação e tratamentos impecáveis da dor e outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais (SEPÚLVEDA, 2002, 91-96).

Seus princípios básicos, segundo Doyle (2003) e

Materstvedt e cols.(2003), citados por Almeida (2004, p. 207-215) são:

• PREVENIR OU ALIVIAR A DOR E OUTROS SINTOMAS, BEM COMO O DESAMPARO; • FORTALECER E RESTAURAR A AUTONOMIA; • VALORIZAR A VIDA E CONSIDERAR O MORRER COMO UM PROCESSO NORMAL, ENCARANDO O FIM DA VIDA COM DIGNIDADE E PAZ; • NÃO BUSCA APRESSAR A MORTE, TAMPOUCO ENCARÁ-LA COMO SINAL DE FRACASSO DA EQUIPE; • INTEGRAR OS ASPECTOS PSICOLÓGICOS E ESPIRITUAIS NOS CUIDADOS AO PACIENTE E FAMÍLIA; • APOIAR O PACIENTE A VIVER O MAIS ATIVAMENTE POSSÍVEL ATÉ A SUA MORTE; • OFERECER UM SISTEMA DE APOIO À FAMÍLIA PARA LIDAR COM A DOENÇA DO PACIENTE E LUTO; • ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR E ABRANGENTE PARA ATENDER ÀS NECESSIDADES DOS PACIENTES E FAMILIARES;

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• MELHORAR QUALIDADE DE VIDA E INFLUENCIAR POSITIVAMENTE O CURSO DA DOENÇA; • USAR DESDE O PRINCÍPIO DA DOENÇA, EM CONJUNTO COM TERAPIAS PARA PROLONGAR A VIDA.

Maloy, et al (1997), citados por Almeida (2004, p. 4)

em seu trabalho Suicídio Assistido, Eutanásia e Cuidados Paliativos relatam um exemplo prático dos cuidados paliativos:

Uma das mais bem sucedidas iniciativas de aplicação dos cuidados paliativos tem sido o programa Hospice. Nessa abordagem, uma equipe interdisciplinar provê cuidados paliativos para os pacientes, ajudando-os e a seus familiares nos aspectos emocionais e espirituais que fazem parte da experiência de morrer. Os pacientes continuam a ser tratado por seus próprios médicos, mas há uma ênfase no cuidado domiciliar dispensado por uma equipe treinada, composta por enfermeiros, assistentes sociais, religiosos e voluntários. Os sintomas físicos são tratados para que o paciente permaneça confortável e busca-se propiciar que o indivíduo e os familiares alcancem um crescimento pessoal com as vivências que o morrer oferece. Nesse ambiente, muitas questões familiares mal resolvidas podem ser solucionadas e reconciliações ocorrem.

De acordo Materstvedt et al (2003), citados por Almeida (2004, p. 4-5):

Segundo a definição do Comitê de Ética da Associação Europeia de Cuidados Paliativos, a eutanásia só pode ser voluntária e ativa. Afirma que a eutanásia é “matar a pedido”, sendo definida como: “um médico

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intencionalmente mata uma pessoa pela administração de drogas devido a um pedido voluntário e competente da mesma”. Suicídio assistido pelo médico seria: “um médico intencionalmente ajuda uma pessoa a cometer suicídio provendo drogas para auto-administração devido a um pedido voluntário e competente da mesma”.

Entende-se que a morte é apenas mais uma parte da vida, onde podemos ter várias experiências, não apenas com a pessoa que irá morrer, mas com todos que estão à sua volta. Além disso, é lhe dado oportunidades de resolver pendências como conflitos e incertezas e ainda, após dispensar todos os cuidados necessários, lhe proporciona o momento certo de dizer adeus (ALMEIDA, 2004).

4 Anteprojeto e novas perspectivas

O anteprojeto do Código Penal de 2012 trata das emergentes situações contidas no Código Penal de 1940 e que não mais se adaptam à atual realidade vivida pela sociedade.

O trabalho da Comissão de Juristas, prevista no Requerimento 756 de 2011, é atualizar o Código Penal, logo, é de grande relevância uma releitura do sistema penal, à luz da Constituição Federal, nas perspectivas das normativas inseridas após 1988. Da mesma forma, por ser o Código Penal tão antigo, portanto, em muitos aspectos desatualizado, fez com que inúmeras leis fossem criadas para conseguir atender às necessidades atuais. Como consequência, teve-se o prejuízo total da sistematização e organização dos tipos penais e da proporcionalidade das penas, o que gera grande insegurança jurídica, ocasionada por interpretações desencontradas, jurisprudências contraditórias e penas injustas, algumas vezes

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muito baixas para crimes graves e outras muito altas para delitos menores, um verdadeiro desequilíbrio jurídico.

Conforme descrito no Relatório e anteprojeto de lei da Reforma do Código Penal (BRASIL, 2015):

É preciso que se tenha um Código Penal que responda às exigências prementes. Mas é preciso que o anteprojeto faça valer de verdade e que a reforma seja realmente concluída, já que temos um histórico muito vasto de relatórios e anteprojetos para a modificação do mesmo que até hoje nada resultou na pratica. Foi o que aconteceu, em 1963, com o anteprojeto apresentando pelo Ministro Nelson Hungria, promulgado, em 1969, para vigorar a partir de 1970. Houve sucessivas prorrogações da vacatio legis, recebendo numerosas emendas. Revogado em 1978. Novamente em 1980, o Ministro Ibrahim Abi Ackel constituiu Comissão presidida pelo Professor Assis Toledo a fim de rever a Parte Geral. Acabou transformado na Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. O mesmo Ministro formou outra Comissão, dessa vez para rever a Parte Especial. Concluído o trabalho, publicado, recebeu numerosas contribuições da sociedade e, em seguida, foi republicado após ser revisto pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; por deliberação do Ministro Paulo Brossard, mais uma vez, não chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional. Mais tarde, em 1994, o Ministro Maurício Corrêa, tentou levar avante o projeto de atualização, mas a Comissão encerrou os trabalhos que recebeu o título – Esboço Ministro Evandro Lins – em homenagem ao Presidente da Comissão. Depois disso, com a sucessão presidencial, mudou o titular da Pasta da Justiça, vindo a serem interrompidos os trabalhos. O Ministro

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Alexandre Dupeyrat não ordenou a publicação para conhecimento da sociedade, seguido do Ministro Íris Rezende, que também acolheu a ideia e, no final de 1997, constituiu Comissão, com indicação de Consultores, e mais uma vez, nada foi feito.

Ademais, é preciso a atualização do Código Penal, para que se possam diminuir as vastas legislações que acabam por atrapalhar o entendimento. É o caso, por exemplo, da relativização do direito à vida. Alguns doutrinadores asseveram que, no atual Estado Democrático de Direito, os direitos e as garantias individuais não são absolutos, nem mesmo o direito à vida, como por exemplo, no aborto do feto anencéfalo ou da gravidez proveniente de estupro e ainda quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Essa abertura à disponibilidade da vida se deve, principalmente, à influência gerada na sociedade, visto o grande número de casos como os acima descritos.

Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que aborto de feto anencéfalo não é crime, por um placar de oito a dois votos. A ação foi proposta, em junho de 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O advogado Luís Roberto Barroso sustentou que o Estado não tem direito de fazer a escolha de abortar, ou não um feto anencéfalo em nome da mulher e que, em casos de anencefalia, a interrupção da gravidez não pode ser considerada aborto. Para a entidade, não se trata de aborto, mas da antecipação terapêutica do parto, já que a sobrevivência do feto fora do útero é completamente inviável.

Da mesma maneira, devemos nos abster de alguns entendimentos rígidos à cerca da aplicação e tipificação da eutanásia.

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O atual Código Penal se refere, de maneira camuflada, à eutanásia, ao indicar a redução de pena em um terço, para o homicídio praticado por relevante valor moral.

Homicídio culposo § 3º Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos. (BRASIL, 1940).

Sem menosprezar a ação relevante para que a eutanásia se conclua, ela consiste em uma das figuras mais lembradas quando se fala em privilégio. O foco principal da proposta formulada é exatamente este, chamar as coisas, tanto quanto possível, pelo nome efetivo. Daí a ideia de inserir a previsão do crime de eutanásia em artigo próprio, com pena de até quatro anos. Não se diferenciou das soluções encontradas na maior parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais, que seria reconhecer que é crime, mas, ainda assim, merecedor de sanção distinta e mais branda do que a reservada ao homicídio, mesmo que de forma privilegiada. Inovação ainda mais complexa é permitir o perdão judicial, diante do parentesco ou mesmo dos laços de afeição entre quem exerce a ação de aplicação da eutanásia e quem a recebe, nesse caso, o enfermo. Saberá a prudência e razoabilidade judicial apontar quando a pena, nestes casos, a exemplo do que pode ocorrer no homicídio culposo, é mesmo necessária.

Eutanásia Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos. § 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

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Válido mais uma vez ressaltar que ortotanásia não é

eutanásia, mas, sim, uma prática médica aceita pelo Conselho Federal de Medicina, que não implica na prática de atos executórios de matar alguém, mas no reconhecimento de que a morte, a velha senhora, já iniciou curso irrevogável.

Nesse contexto a Resolução 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina aduz que:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada à assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

Refrear, artificialmente, o falecimento nesses casos, é retirar da pessoa o direito de escolher o local e o modo como pretende se despedir da vida e dos seus entes. Não deve haver espaço para o Direito Penal nessa situação, pois impede a dignidade da pessoa humana, aqui num sentido despido da vulgarização, que se dá a esse essencial conceito. Morrer dignamente é uma escolha constitucionalmente válida. A proposta da Comissão é torná-la, também, legalmente válida.

Exclusão de ilicitude

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§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Ainda, como disposto no Relatório e anteprojeto de lei da Reforma do Código Penal (BRASIL, 2015):

A Comissão, atenta às circunstâncias como é recomendado pelos princípios do Direito Penal da Culpa, a fim de a individualização da pena considerar pormenores relevantes, sugere tipificar a eutanásia e torná-la causa de diminuição de pena, dado o agente agir, por compaixão, a pedido da vítima, imputável e maior, a fim de abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave ou irreversível. De outro lado, exclui a ilicitude da conduta de quem, em circunstâncias especificadas, deixa de manter a vida de alguém por meio artificial, quando a morte for iminente e inevitável, configurando aqui à ortotanásia.

Com isso, possibilita a ação de terceiro, mesmo sendo tipificado como crime, mas leva em consideração a relevância do ocorrido e ainda exclui a tipicidade dos atos daqueles que simplesmente encerram o processo artificial de mantença da vida.

5 Conclusão

Ao final deste artigo, constata-se a importância de que se definam, precisamente, diversos conceitos e estados, por se tratar do delicado tema da morte.

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A vida é sagrada e inviolável sob qualquer circunstância? O que é vida, ou melhor, como as pessoas podem compreender o que é uma vida boa?

O pré-conceito de indisponibilidade da vida vem sendo fragilizado e as pessoas estão voltando seus pensamentos para aquilo que elas consideram como parte de sua essência, ou seja, suas convicções, suas memórias, sua relação com o mundo.

Durante todo o texto, foram apresentados argumentos prós e contrários à eutanásia, principalmente no âmbito jurídico e bioético, bem como as reações sociais frente a sua prática.

Em relação à permissão da eutanásia, tem-se uma dimensão da justificação. O primeiro aspecto que deve ser abordado é a autonomia da vontade. Negar a prática da eutanásia culmina numa valoração estremada do bem vida em detrimento da dignidade, em alguns casos, o que fragiliza a conceituação dos valores igualdade e liberdade, e a igualdade principalmente no tocante aos casos em que o ordenamento jurídico brasileiro permite a violação do direito à vida, como é o caso do consentimento para o aborto do feto anencéfalo.

Deve-se entender que, na época em que o Código Penal Brasileiro foi elaborado, a realidade técnica-científica da medicina era completamente diferente dos dias atuais, o que gerava a eutanásia uma imagem diferente, por não se ter a possibilidade de estender a vida em prejuízo de sua qualidade.

Nesse sentido, o anteprojeto de reforma do Código Penal brasileiro representa um avanço nesse processo de maturação do pensamento social quanto à inviolabilidade a vida nos casos de eutanásia.

Contudo, não pode ser considerado razoável a tipificação como homicídio, ainda que privilegiado de uma conduta tão sui generis como a eutanásia, em que o ato é

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praticado com o consentimento do indivíduo ou mesmo de sua família, quando esse não detém mais de condições e ainda, por ser motivada por razões humanitárias. 6 Bibliografia

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POSSIBILIDADE DE REVISÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA FRENTE AO ABORTO: SAÚDE DA

MULHER E O DIREITO DE AUTONOMIA SOBRE O PRÓPRIO CORPO

Wanessa Diniz Veloso*

Gisele de Cássia Gusmão**

Introdução O aborto é conceituado como “a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto _ produto da concepção” (JESUS, 2001, p. 119). No Brasil, ocorre em cerca de 10% das gestações e resulta das necessidades não satisfeitas de planejamento reprodutivo, o que envolve a falta de informações sobre anticoncepções, dificuldades de acesso aos métodos, falhas no seu uso e/ou ausência de acompanhamento pelos serviços de saúde. Colocando, assim, o aborto como quinta causa de mortalidade no país (BRASIL, 2010). De acordo com a PNA, Pesquisa Nacional de Aborto, 15% das mulheres entre 18 e 39 anos, alguma vez na vida já realizaram um aborto e 48% delas o fizera utilizando medicação abortiva e, em consequência, 55% necessitaram de internação hospitalar por complicações (DINIZ; MADEIRO, 2011).

* Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Norte de Minas - FUNORTE ** Mestre em Economia pela Universidade Federal de Viçosa – UFV. Professora do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Norte de Minas - FUNORTE

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Os estudos mais remotos acerca da prática do aborto remetem, ao século XXIII a. C., na China. Além dos chineses, os israelitas (séc. XVI a.C.), os mesopotâmicos, os gregos e os romanos também deixaram registros sobre a prática. A maioria dessas sociedades combatia o aborto, independente de previsões legais sobre o assunto, e havia, também, os que aceitavam sua prática sob a justificativa de ter a natalidade e o crescimento populacional sob controle. Nesse sentido, podemos citar grandes pensadores e defensores da época como Aristóteles e Platão (NOLASCO, 2001). Em Roma, o poder do pater família - pai da família; o mais elevado estatuto familiar - tinha peso significativo no caráter punitivo de práticas abortivas. Nas situações em que a mulher abortasse, sem a autorização do marido, poderia ser punida até com a morte, se o cônjuge assim o desejasse (NOLASCO, 2001).

Com o surgimento do Cristianismo, o feto passou a ser entendido como sujeito de direito e alvo de proteção desde sua concepção, uma vez que, desde então, já possuiria alma (NOLASCO, 2001). Iniciaram-se, no séc. XX, os movimentos feministas principalmente na Inglaterra e na França, que defendiam a anticoncepção e o direito da mulher de abortar. Com a Revolução de 1917, na Rússia, o aborto deixou de ser considerado ato criminoso, seguida pela Suécia e Dinamarca com algumas restrições (NOLASCO, 2001). Na década de 60, em países do Ocidente, as mulheres tiveram uma participação maior no seio social e desempenharam lutas por direitos, dentre eles o controle sobre o próprio corpo e a realização do aborto (NOLASCO, 2001). Atualmente, poucos países proíbem totalmente as práticas abortivas. As legislações passaram a se adequar, cada

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vez mais, aos anseios sociais e às mudanças características das sociedades hodiernas. (NOLASCO, 2001). Ao se tratar do tema, percebe-se a falta de autonomia da mulher brasileira sobre o próprio corpo, já que, sendo uma conduta ilegal, na maioria dos casos, a solução é encontrada nas práticas clandestinas e inseguras62, colocando a vida em risco. Além de uma violação dos direitos humanos, é um grave problema de saúde pública tanto em magnitude, quanto por arremeter consequências sociais, psicológicas e biológicas às mulheres que recorrem à prática de abortamento (ANJOS et al., 2013). Apesar das punições previstas no Código Penal, a legislação em vigor jamais foi capaz de impedir a crescente elevação no número de vítimas advindas da prática de abortos clandestinos (BLAY, 1993). A saúde da mulher foi incluída, nas políticas nacionais do Brasil, na década de 1930, por meio de programas materno-infantis que expressavam limitações às mulheres, fundadas em sua especificidade biológica e no seu papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, educação, cuidado com a saúde dos filhos e demais membros da família (BRASIL, 2007 apud ANJOS et al., 2013). Os direitos das mulheres, dentre eles, o acesso à saúde de qualidade, ainda não são reservados de maneira permanente, mesmo com políticas públicas que tentam incorporar ações voltadas para a saúde sexual (ANJOS et al., 2013). O objetivo de um planejamento familiar, incluídos em estratégias de saúde da família deve abranger, de forma eficaz, questões ligadas à saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

6 Aborto inseguro: realizado por pessoas não qualificadas e fora do ambiente hospitalar.

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Entretanto, no Brasil, isso não é percebido pela forma fragmentada e inadequada em que ocorre, ferindo os direitos reprodutivos das mulheres (ANJOS et al., 2013). Há, de um lado, mulheres de classes sociais mais favoráveis, conseguindo interromper suas gestações com certa segurança, mas, do outro lado, há mulheres pobres sofrendo as consequências de abortos mal feitos (OLIVEIRA JUNIOR, 2014). De acordo com o Conselho Federal de Medicina, a autonomia da vontade da mulher deve prevalecer em razão do Princípio da Justiça73. Sobre o assunto, a legislação vigente reserva os artigos 124 a 128 do Código Penal Brasileiro, os quais consideram crime a prática do aborto em si mesma, ou o consenso para que outrem o provoque, ou quando um terceiro o provoca sem o consentimento da gestante. Prevê, também, formas qualificadas em caso de superveniência de lesões graves, ou morte da gestante. Por outro lado, há o rol de causas de exclusão da punibilidade, ou seja, não será punível o aborto, quando praticado por médico, se a gravidez resultar de estupro precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz de seu representante legal para a realização, além daquele autorizado para salvar a vida da gestante (MARCÃO, 2007), ou quando se tratar de feto anencefálico de acordo com a mais recente decisão proferida pela ADPF 54. Em divergência, tramita, nas casas legislativas, o anteprojeto do Código Penal _ Projeto de Lei do Senado, PLS 236/2012_ elaborado pela Comissão encarregada de estudar reformas, na Parte Especial do Código em vigor, que segue

7 Princípio da Justiça: a distribuição natural dos bens não é justa ou injusta; nem é injusto que os homens nasçam em algumas condições particulares dentro da sociedade. Estes são simplesmente fatos naturais. O que é justo ou injusto pé o modo como as instituições sociais tratam destes fatos.

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com a possibilidade de acréscimos de excludentes de punibilidade nos casos de violação da dignidade sexual, ou do emprego, não consentido, de técnica de reprodução assistida; quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente_ atestado por dois médicos e, ainda, por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade. A interrupção da gestação ainda é muito grave em nosso país, mesmo com a legislação atual. Para onde estas gestantes devem ser encaminhadas e quem deve atendê-las são questões que pendem sem respostas dia após dia, já que, desde 1940, os legisladores não se preocuparam em regulamentar os artigos presentes no Código Penal Brasileiro. Hospitais se negam a efetuar atendimentos e os próprios profissionais da área médica não se comprometem a executar a interrupção da gestação uma vez que o Código de Ética Médica lhes faculta o direito de não fazê-lo. Deste modo, aquela mulher que deveria receber um atendimento diferenciado, acaba procurando clínicas clandestinas, muitas vezes sem condições mínimas de higiene, ou até mesmo curiosas, com todas as consequências trágicas que estamos acostumados a presenciar (COLAS et al., 2009). Há posições a respeito do tema, consentindo que várias ideias sejam postas ao mesmo tempo, cada uma delas defendendo interesses relacionados à saúde, psicologia, sociologia, religião, ética, ao Direito, entre outros. O julgamento da ADPF, que solicitava uma definição judicial a respeito do abortamento de feto anencefálico _com má formação fetal, ausência de caixa craniana e hemisférios cerebrais, responsáveis pela sua morte antes ou em seguida ao parto)_ teve como decisão favorável do STF, por oito votos

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contra dois. Sendo, também, consenso favorável da população (OLIVEIRA JUNIOR, 2014). Há a necessidade de empenho em perceber a situação no âmbito da bioética, preservando a vida da mãe, pois será quem sofrerá todas as etapas e consequências do procedimento. Trata-se da busca do bem comum e dos direitos devidos a cada um. O aborto não é visto como problemática da saúde pública da mesma forma que países como Uruguai, Cuba e Porto Rico, que aprovaram da lei permissiva para a interrupção da gravidez em qualquer situação, desde que realizada até a 12ª semana de gestação. Ao contrário do Brasil, onde há o apego à tradição, à religião e aos bons costumes como amparo inquebrável. Constata-se tal fato, nas manifestações populares,quando há demonstrações de um respeitoso e intangível abrigo ao Princípio da Vida Humana, que cria obstáculos que impedem a autonomia da própria mãe, responsável pela tutela do feto e que pratica a primeira traição a um ser fisicamente ligado a ela e dela dependente, à lei que autoriza o ato e à medicina que tem, por obrigação, lutar pela vida (OLIVEIRA JUNIOR, 2014). Não se pretende fazer apologia alguma ao aborto, mas, sim, evitar que milhares de mulheres comprometam sua saúde ou percam suas vidas por terem tomado a decisão de não seguir adiante com uma gravidez indesejada. Nessa perspectiva, propõe-se analisar a possibilidade de revisão da legislação brasileira frente ao aborto, objetivando não resolver todos os problemas dele advindos, mas amenizá-los dentro da lei e, de forma secundária, por meio de políticas de planejamento familiar e educação reprodutiva que funcionem para todas as classes sociais brasileiras.

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1 A saúde da mulher e a responsabilidade do Estado O aborto pode ser espontâneo e se subdivide em acidental, natural, ou induzido_ este, por ser crime, é previstos penalidades de acordo com o atual Código Penal Brasileiro. No caso do aborto induzido, os procedimentos mais utilizados para sua concretização, em uma gestação de até nove meses, são os químicos, com uso de medicamentos como RU-486 e metotrexato. Nas hipóteses de gravidez com mais tempo, o mais comum é que as mulheres recorram a métodos como a aspiração-sucção, dilatação e curetagem, dilatação e evacuação, prostaglandina, envenenamento salino, injeção intracardíaca e dilatação ou extração. Pesquisa realizada pelo Globo em estudo realizado pelos professores Mário Giani Monteiro do Instituto de Medicina Social da Uerj e Leila Adesse da ONG Ações Afirmativas em Direitos e Saúde, apresenta uma estimativa de 205.855 internações ocorridas pelo aborto, nas quais 154.391 tratavam de interrupção induzida. Além de números exorbitantes, calcula-se, de acordo com dados do DataSus, que o Estado tem, em média, um gasto de R$ 142 milhões, por ano, com estas internações. O aborto inseguro_ aquele realizado fora de uma unidade médica credenciada_ tem provocado consequências graves à rede pública, já que os hospitais acabam fazendo inúmeros atendimentos oriundos de complicações no aborto. A técnica é dolorosa e traz complicações seriíssimas, pois pode ocorrer do útero não conseguir se livrar de todos os tecidos embrionários, o que se dá o nome de septicemia_ o maior causador da morte materna_ que é o resultado da presença de material infectado, na cavidade uterina.

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Segundo dados obtidos pela Revista Espírita Allan Kardec, o Brasil é o campeão mundial de aborto. A taxa de interrupção chega a superar a de nascimento. Cerca de 30% dos leitos hospitalares da área de Ginecologia e Obstetrícia são ocupados por pacientes que sofrem alguma consequência provocada por aborto. Em sua maioria, trata-se de mulheres negras, de baixa renda e adolescentes despreparadas para assumir a responsabilidade de uma gravidez. Há de se ter um debate que foque essas questões de saúde pública sem a intervenção de ideologias, quaisquer que sejam, pois, no que concerne à saúde da mulher, o Brasil, ainda se mostra extremamente atrasado jurídico e politicamente, apresentando acentuados problemas sociais, visto que há falta de assistência, defeituosas políticas de planejamento familiar e uma educação sexual vaga, etc. Há, no país, uma política genocida em que milhares de mulheres morrem todos os anos e o Estado nada faz a respeito. O aborto, hoje, é um sério problema de saúde pública que tem a obrigação de ser discutido pelos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Mas encontram-se, pelo caminho, obstáculos como dogmas religiosos e costumes absurdamente conservadores.

A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro não pode ser algo que aconteça de forma esporádica, tem de acontecer em quantidades que sirvam de alerta. E precisa causar impacto para saúde da população. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto no Brasil (DREZETT, 2014, p. 01).

Fato já reconhecido por todos é que os métodos anticoncepcionais não são absolutamente eficazes e uma

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gravidez pode ocorrer em qualquer circunstância e, na sua maioria, sem que seja desejada, logo é desumano culpar a mulher, muitas vezes até de maneira exclusiva, pela situação.

Os custos e as complicações dos abortos ilegais são enormes. Clinicamente as mulheres podem ter infecções, contrair doenças que incluem a Aids, ter hemorragias que podem levar à morte e ter perdas de órgãos internos. E isso vai parar nas mãos do Estado. As pessoas vão recorrer também ao SUS — explica Sidnei Ferreira, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (O GLOBO apud CREMERJ, 2014, p. 04).

Os obstáculos são tão grandes que, após lançamento de portaria que formalizava o aborto legal pelo SUS, nos casos que estavam previstos em lei, a bancada evangélica do Congresso tanto fez que convenceu o Ministério da Saúde a revogá-la, na semana seguinte, por entender que havia falhas em seu conteúdo fazendo com que fosse legalizado o aborto ilegal. Cabe ressaltar que a portaria publicada no Diário Oficial definia pontos como o valor de R$433,00 que o governo pagaria por cada cirurgia de interrupção gestacional ou antecipação de partos em hospitais públicos, não abrindo brechas para o aborto além dos casos previstos em lei, mas que, segundo o Ministério Público, houve falta de debate acerca do assunto com gestores que coordenavam esses gastos de tal forma, daí a explicação encontrada para que derrubassem a portaria. Se analisarmos a situação do aborto sob a ótica de valores dos cofres públicos, podemos chegar à conclusão de que o governo já tem um custo financeiro altíssimo com internações de mulheres que chegam aos hospitais públicos

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com complicações. Então não há se devem discutir gastos, se são bem distribuídos ou não, já que fazem parte do orçamento governamental de forma imperativa. O Ministério da Saúde se mostrou covarde, omisso e irresponsável ao ceder aos grupos fundamentalistas cristãos. O Estado acaba exigindo da mulher aquilo que ele não consegue sequer ter controle. Isso porque, se o atendimento a essas pacientes já é um problema, há ainda menos esforço para conscientizar a população a respeito do aborto. Uma problemática que começa pelas medidas contraceptivas. Não há campanhas suficientes que alertem sobre o uso correto de métodos anticoncepcionais. A saúde sexual e os direitos reprodutivos ainda são visto como um “tabu”. O Ministério da Saúde não está interessado em desmistificar o assunto, por força do controle religioso que há no governo. A grande maioria das mulheres não sabe sequer das hipóteses em que se permiti a realização do procedimento, como nos de estupro, por exemplo.

Sem acesso a informação ou atendimento médico de qualidade, muitas mulheres se sentem intimidadas e humilhadas, sentimentos ampliados ainda mais quando são constrangidas ao buscarem as instituições responsáveis. Frequentemente, elas acabam fazendo o aborto de forma clandestina, arriscando gravemente suas vidas. A realidade que rodeia o aborto colabora ainda mais para o estigma, causando um ciclo de desinformação que aterroriza cada vez mais as mulheres (ARRAES, 2014, p.02).

Se o Estado está ali para garantir a saúde dos seus cidadãos, incluindo mulheres brasileiras, deve-se exigir um

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acompanhamento da situação nacional antes de impor o que cada uma deve ou não fazer do seu próprio corpo.

As taxas abortivas em países onde o aborto é considerado crime, como nosso país, são consideravelmente grandes, enquanto que em países onde a prática é legal, há amplo acesso à educação sexual e aos métodos anticoncepcionais, as taxas de abortamento são reduzidas, pequenas se comparadas com as taxas brasileiras. Logo, conclui-se que se a legalização do aborto no Brasil não soluciona o problema, ao menos deixará de tratar como criminosas as mulheres que realizam abortos induzidos. Não somente se tratando do aborto, mas da gravidez indesejada, e até mesmo as doenças sexualmente transmissíveis, podem ser evitadas com programas mais efetivos sobre educação sexual, planejamento familiar e acesso aos métodos contraceptivos modernos. Para diminuir as taxas de aborto, é preciso trabalhar na base instrucional do Brasil, aumentando a qualidade de vida dos brasileiros e melhorando a educação (SOUZA; ABE, 2014, p. 01)

Condições socioeconômicas desfavoráveis, baixo nível de escolaridade, violência doméstica e dificuldade de acesso aos serviços de saúde de qualidade estão diretamente associados às elevadas taxas de morte materna. Conhecer essa situação de perto e considerar todos os dados e números faz-se necessário frente à elaboração e concretização de políticas que previnam essa mortalidade gerada pelos abortos inseguros.

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2 A reforma legislativa e o valor da vida Vivemos num governo que não se importa com os

Direitos Humanos. As mulheres do Brasil são rebaixadas à condição de objeto, sem direitos ao próprio corpo e sem o socorro daqueles que deveriam zelar por seus direitos.

O Direito Penal tem como missão a proteção dos bens jurídicos tidos como valiosos para a sociedade em uma dada época. É ele quem seleciona os comportamentos considerados graves ao corpo social, descrevendo tipos e cominando as respectivas sanções. Assim, quando surgem novos aspectos como a previsão de outras possibilidades de aborto, é porque a própria coletividade, em virtude das intensas mudanças sofridas em seu cotidiano, precisa de soluções diferentes das que atualmente estão dispostas (LEMOS, 2014, p. 01).

A criminalização do aborto é um tipo de política que já não faz o menor sentido para um país que tem mais de 200 mil mortes por ano decorrentes do procedimento. Discutir uma reforma legislativa e colocá-la em prática é garantir que a vida, direito garantido pela Constituição Federal, seja preservada. Como é possível valorizar a vida de um embrião sem formação eminentemente à vida da mulher que ali já está formada?

O embrião é sem dúvida uma vida humana. Mas não consigo me convencer de que seja uma pessoa. Pode alguém ser uma pessoa antes de nascer? Pode alguém ser “alguém” antes de nascer? Seus direitos nascem antes do nascimento? Como posso dizer que sejam “seus”? (COELHO, 2014, p. 01).

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Cabe discutir que uma das hipóteses legais do aborto é a de que seja realizado diante do risco de morte da mãe. Mas ninguém parou para pensar que, atualmente, milhares de mulheres correm esse risco e, na maioria das vezes, consequentemente perdem a vida. Prezar pelo direito à vida de uma mulher, em um aspecto e menosprezar em outro, é ferir, integralmente, ao Princípio da Igualdade presente no inciso I do artigo 5° da Constituição Federal e à dignidade da pessoa humana presente no inciso III do artigo 1° do mesmo. Interessante destacar que um ponto polêmico da reforma legislativa, é o fato de muitas pessoas acreditarem que, se legalizado, o aborto será banalizado. Independente do posicionamento pessoal de cada um deve-se ater ao foco da real situação da saúde pública e à integridade psicológica e física da mulher. Independente do pensamento de todos, quem vai decidir e quem deveria ter o direito de decidir é tão somente a mulher. É ela que sofrerá todos os riscos. Entretanto olhar o biológico para responder à polêmica, é importante saber que o útero é um órgão extremamente sensível e um aborto pode fazer com que o mesmo não suporte mais uma próxima gestação e deixe a mulher estéril como constatado em muitos casos. No útero há apenas protoplasma, uma substância indefinida contendo os processos vitais contidos no interior das células, ou seja, não pode haver homicídio se não há vida humana, figurando-se aí um crime impossível.

O aborto pode ocorrer em várias situações: a primeira é na situação de estupro, quando a gravidez provém de uma violação, as mulheres têm propensão para abortar, uma vez que o filho foi fruto de um ato cruel e totalmente

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isento de amor, causado na maioria das vezes pela própria família em que o pai, irmãos e até mesmo tios cometem tal ato, isso se deve a desestrutura familiar, que faz de seus filhos suas vítimas; a segunda situação é a má reação por parte da família, muitas vezes quando a gravidez se dá em adolescentes solteiras a família tem tendência para não aceitar a criança e, muitas vezes, a própria mãe, esta não tem coragem para revelar a sua situação, pois corre o risco de sofrer represálias por parte da família e, por isso, decide abortar; a terceira situação é o risco de vida, quando de uma gravidez de risco em que um ou ambos os intervenientes correm risco de vida, a mãe pode tomar a decisão de abortar, pois é preferível a ver o filho morrer à nascença ou a não poder acompanhar o seu crescimento; a quarta situação é no caso de doenças transmissíveis, quando uma grávida está infectada com doenças sem cura e o filho corre o risco de ser também infectado; a quinta situação é a incapacidade econômica, devido ao fato de as mães não terem capacidades financeiras para suportar o desenvolvimento do filho; a sexta situação é a malformação do feto, quando se dão problemas na gravidez e o feto tem malformações, as mães, para evitarem problemas futuros, decidem abortar; a sétima situação é a instabilidade emocional, em que as mulheres abortam pois não possuem condições, nem sanidade mental para acompanhar o desenvolvimento do filho; e a oitava situação é a gravidez na adolescência, em que adolescentes abortam não só por não estarem preparadas para criar um filho mas também porque os filhos de grávidas adolescentes têm elevadas probabilidades de nascerem prematuramente, o que conduz a

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problemas de saúde futuros (RIBEIRO, 2014, p. 01)

Nenhuma mulher faz o aborto porque quer. Ela se sente obrigada, em situação de desespero, por despreparo e falta de apoio. Se finalmente decidem por se submeter a um procedimento no qual há grandes chances de dar errado, em clínicas clandestinas_ muitas sem qualquer tipo de estrutura e higiene_ e sabem que são suas vidas que estão em risco, é porque o psicológico de cada uma delas está totalmente afetado e têm a certeza de que são suas vidas em risco também. O Estado, com sua soberania, acha que pode ter o controle do corpo de todas essas mulheres, mas não dão sequer qualquer tipo de assistência antes e/ou durante e/ou depois do fato em si. A educação sexual é banalizada. Não há políticas firmes de planejamento familiar. Métodos contraceptivos podem falhar. Não há assistência digna às mulheres que chegam com complicações a hospitais públicos oriundas do aborto. Profissionais da saúde não estão preparados para esse tipo de situação na maioria das vezes. Não há apoio psicológico a essas mulheres. Se decidirem levar a gravidez adiante, sem qualquer preparo, vão se tornar mais um índice de problema social como possível abandono da criança, desemprego, aumento no índice de desigualdade, carência na educação para os casos de mulheres que largam os estudos para se dedicarem aos filhos.

A prevenção ao aborto, como medida de educação em saúde, deve ser vista como um pilar, um caminho para a resolutividade desse problema, que vitima mulheres no anonimato, sem que saibamos os motivos e as consequências sofridas. A morte não pode ser

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uma “punição” por uma “má conduta”. O julgamento indevido é uma forma de tortura, por mais que não vejamos por esse ângulo. A morte por complicações não é uma opção de sentença (COSTA, 2014, p. 03).

Outro ponto polêmico é que a única responsabilizada, perante a configuração criminal do aborto, é a mulher que, muitas vezes age em razão da exigência do parceiro que a induz ao aborto; ele, contudo, nada sofre. As mulheres, quando chegam a procurar clínicas, acabam impunes por se envolver num grande comércio criminoso, com pessoas do alto escalão que usam da corrupção para saírem ilesos.

Em consequência, a Diretoria da SBB entende que a prisão de mulheres que realizam o aborto não é medida adequada para proteger o feto, pois, além de não inibir a sua ocorrência, estigmatiza e torna as mulheres de baixa renda mais vulneráveis. Isso porque essas mulheres são as únicas submetidas ao sistema repressivo penal, no caso do enquadramento do aborto como crime, o que acaba por impeli-las à prática do aborto inseguro, acarretando sérios agravos à saúde, inclusive a sua morte (LORENZO, 2013, P. 01).

A lei vigente não é satisfatória e independente da opinião de cada um, o aborto continuará acontecendo.

Não gosta da ideia do aborto? Pois bem, não faça um. A sua opinião não vai mudar o fato de que mulheres abortam. Mulheres abortam todos os dias de forma insegura. Mulheres que são mães abortam ilegalmente. Mulheres que não querem ter filhos abortam diariamente. Mulheres religiosas “contra” o aborto abortam diariamente. Mães de família abortam,

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adolescentes abortam, mulheres pobres abortam, mulheres ricas abortam, mulheres casadas, mulheres solteiras, mulheres empregadas, desempregadas. Mulheres de todos tipos abortam e não há opinião alheia que vá fazer isso mudar (AVERBUCK, 2014, P. 01).

A saúde deve ser garantida a todos e é dever do Estado sua concretização, com políticas sociais e econômicas que tenham como objetivo a redução do risco de doença e outros agravantes, sendo seu acesso universal e igualitário. Outro ponto polêmico é a diversidade de posições religiosas acerca do tema que faz com que a legalização seja cada vez mais esquecida. Para algumas igrejas, a mulher que aborta é considerada impura por sacrificar a vida de um ser. Cabe lembrar que a igreja também se mostra desfavorável ao uso de métodos contraceptivos, o que nos leva a uma ideia que diverge da outra, por obrigar a mulher a assumir todos os riscos de uma relação sexual e ter a consequente obrigação de zelar pelo seu resultado. O país, que ainda preserva uma cultura opressora e machista, onde pouco se discute sobre o tema, já é logo rechaçado. O mais curioso é ver religiosos políticos e, na sua maioria, homens, rebatendo o tema sem ao menos sentirem, na pele, o que é o desespero de descobrir uma gravidez sem o menor preparo ou o que é passar por todas as dificuldades de uma gestação sem qualquer apoio, sabendo que, futuramente, sua vida irá mudar totalmente e suas responsabilidades também. Ser mãe é o ato mais corajoso do ser humano, pois envolve a dedicação da sua vida em favor de outrem. Fazê-lo, sem o devido planejamento e preparo psicológico, é correr o risco de aumentar índices de desigualdade e problemas sociais

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por envolver o desamparo da mãe e do filho em muitos casos e fazer com que a expectativa de um futuro promissor desses indivíduos seja de difícil alcance.

Por ser fruto de um estupro, me sinto até mesmo no direito moral de ser a favor do aborto. Eu sei o quanto foi horrível e quantas vezes desejei não ter nascido, pois acredito que a vida da minha mãe teria sido muito melhor se isso não tivesse acontecido. Ela teria tido mais tempo para concluir os estudos, fazer coisas que uma jovem da idade dela faria se não tivesse um filho nos braços. Ela não teria passado pela dor da reprovação, pela humilhação que passou e teria muito mais chance de ter formado uma família e ter um lar ajustado. Demorou muitos anos até que ela conseguisse (eu já era adolescente quando ela conheceu uma pessoa, com qual ela já está há 12 anos e tem outra filha). Ela também acabou de se formar em Direito, aos 47 anos de idade. Acho muito mais digno interromper uma gravidez indesejada do que colocar uma criança no mundo para sofrer e passar necessidades (SALGADO, 2013, P. 01).

“Acho muito mais digno interromper uma gravidez indesejada do que colocar uma criança no mundo para sofrer e passar necessidades. Hoje não sinto a menor vontade de ser mãe. Não acredito que poderei ser boa o suficiente” (Cláudia Salgado – filha de uma vítima de estupro). Quem deve decidir o seu futuro é a própria mulher que é quem vai sofrer todas as consequências e não um Estado que oferece uma saúde desestruturada e uma educação totalmente falha. Para se impor deveres, antes de tudo, deve-se oferecer apoio para seu real cumprimento.

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Acho esse projeto de lei um grande equívoco. Acredito que as mulheres deveriam ter suporte financeiro e emocional do governo para tomarem a decisão que melhor fosse conveniente a elas, especialmente num caso de estupro, em que deveria ser totalmente amparada e ter o direito de escolha de continuar ou interromper a gravidez. Não se trata apenas de receber uma esmola do governo, vai muito além disso (SALGADO, 2013,p. 01)

Há, na Constituição Federal de 1988, a garantia do direito à intimidade de todas as pessoas disposto da seguinte forma: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Se é uma garantia constitucional, sua eficácia deve ser a mais ampla possível, o que nos leva à conclusão de que a proteção à intimidade da mulher é vasta o necessário para que ela seja livre para decidir sobre o seu planejamento familiar e optar por ter um filho ou não, sem que o Estado interfira arbitrariamente nesse direito. Claro fica que criminalizar o aborto viola, totalmente, preceitos defendidos pela Lei Maior, que é a Constituição e o legislador, ao determinar tais regras, apenas demonstra que não aprova a situação e quer se mostrar meramente punitivo. Tratar uma mulher como criminosa e fazê-la passar por um julgamento, perante o tribunal, por ter se sentido despreparada e desesperada diante de tantos problemas sociais, seria realmente justo?

3 Considerações finais

A complexidade de se inserir, de forma justa, a liberdade da mulher, nas leis brasileiras, é de grande

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magnitude. Milhares de mulheres continuam morrendo, em clínicas inseguras e clandestinas, pelo simples fato de não existir uma política pública e um maior apoio, tanto no âmbito da saúde quanto no âmbito legislativo. Essa situação não vai mudar, enquanto não se mudar a maneira de pensar e agir a respeito. A Constituição Brasileira tem, como princípios maiores, a proteção à vida e à igualdade, mas certo é que a vida da mulher é tratada com intensa desigualdade, quando deixam que ela morra em detrimento daquele embrião que ainda não adquiriu a vida completa. A ilegalidade nunca fez e nunca fará com que diminuam as mortes maternas. E é nesse aspecto que se deve pensar. Alcilene Cavalcante e Dulce Xavier discorrem no livro “Em defesa da vida: aborto e direitos humanos” (p. 216) que inexiste eficácia na penalização do aborto, pois essa não alcança uma redução do número de abortos. Essa realidade só se fará visível quando se enfrentar a omissão do Estado diante da maternidade, quando as mulheres tiverem acesso universal às políticas públicas de planejamento familiar. Quando não se pensar mais em opressão de classe e gênero que permitam a todas as mulheres a aquisição de condições socioeconômicas para terem quantos filhos quiserem e para que possam criá-los dignamente, quando não houver mais ameaças de não admissão ou demissão no ramo trabalhista, quando o abandono pelos seus parceiros diante da gestação de um filho não mais constituir-se numa prática comum.

É necessário, antes de tudo, que todos os responsáveis reconheçam suas responsabilidades_ o Estado, os homens e a sociedade_ diante da vida de cada mulher. A proibição moral e legal da vontade da mulher em interromper uma gravidez indesejada, não cabe mais motivos racionais que o justifiquem. Representa apenas uma espécie de tabu, pois

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não parece constitucional e digno valorizar mais a vida do feto, uma vida humana não formada, do que a vida da mulher que é um todo_ vida plena. Não há sentido na proibição, não há finalidade, não favorece a ninguém além de ideologias já ultrapassadas de realidade.

Conclui-se, nas palavras de Xavier Cavalcante (2006), que a legislação pelo Estado que objetiva diminuir os abortamentos, não deve ser punitiva e, sim, preventiva já que é de se admitir que o aborto não é um bem em si mesmo, de que há de se preservar os direitos fundamentais da mulher e que, em geral, a vida do feto também e, principalmente, é de se admitir que a educação e a prevenção, na área da sexualidade e da reprodução, é a única política pública que apresenta resultados satisfatórios na diminuição da incidência do aborto. Realizar um aborto é o último recurso que essas mulheres, em desespero, encontram. Ninguém engravida porque quer abortar em seguida. Ninguém é a favor de passar por essa situação, mas as circunstâncias acabam levando para o caminho da sua realização. Os direitos são das mulheres e apenas delas, porque são elas que vão passar por cada processo, vão ter suas vidas mudadas, seu corpo deformado ou sua vida em risco. Não cabe a mais ninguém interferir naquilo que somente elas têm condições de sentir. Decidir por não dar continuidade a uma gravidez também não é uma tarefa fácil, há de se ter um psicológico forte e apoio, seja de quem venha, porém não é isso que acontece na maioria dos casos em que mães jovens ou pobres se veem sozinhas tendo que correr todos os riscos e enfrentar todas as dificuldades. Criar um filho não é fácil e a maior responsável por isso é a mãe, a mulher. O mundo não vai parar para cada uma delas; então, devemos nos conscientizar de dar às mulheres o

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direito de autonomia para decidir o que fazer da própria vida e do próprio corpo. 4 Referências

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