186
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MARCOS PAULO DE MELO RAMOS “NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA” (Mt 10,34): REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E MANUTENÇÃO DA BATALHA ESPIRITUAL ENTRE OS EVANGÉLICO-PENTECOSTAIS (1911-1990) Goiânia 2011

DISSERTAÇÃO ACABADA (1)

Embed Size (px)

Citation preview

0

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MARCOS PAULO DE MELO RAMOS

“NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA” (Mt 10,34):

REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E MANUTENÇÃO DA BATALHA

ESPIRITUAL ENTRE OS EVANGÉLICO-PENTECOSTAIS (1911-1990)

Goiânia

2011

1

MARCOS PAULO DE MELO RAMOS

“NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA” (Mt 10,34):

REPRESENTAÇÕES COLETIVAS E MANUTENÇÃO DA BATALHA

ESPIRITUAL ENTRE OS EVANGÉLICO-PENTECOSTAIS (1911-1990)

Dissertação apresentada ao Programa de pós-

graduação em História da Universidade

Federal de Goiás como requisito parcial para

a obtenção do grau de mestre em História.

Área de Concentração: Culturas, Fronteiras

e Identidades.

Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e

Culturas de Migração.

Orientador: Prof. Dr. Leandro Mendes

Rocha

Goiânia

2011

2

R175n Ramos, Marcos Paulo de.

“Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34) - representações

coletivas e manutenção da batalha espiritual entre os evangélico-

pentecostais (1911-1990). / Marcos Paulo de Ramos – Goiânia, 2011.

186. f.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás,

Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de História, 2011.

“Orientador: Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha”

1. Igrejas pentecostais – história. 2. Igreja católica romana –

história. 3. Relações da cristandade – história. 4. Culto e rituais

cristãos – história. 5. Teologia – identidade social – história. I.

Universidade Federal de Goiás. II. Rocha, Leandro Mendes. III.

Título.

CDU: 2-9:272/279.15

27-67:272/279.15

3

RAMOS, Marcos Paulo de Melo. “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34):

representações coletivas e manutenção da batalha espiritual entre os evangélico-pentecostais

(1911-1990). Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História, da Universidade Federal

de Goiás. Goiânia, UFG, 2 sem. 2011, 185 folhas.

COMISSÃO EXAMINADORA:

__________________________________________

Prof. Dr. Leandro Mendes Rocha

__________________________________________

Profa. Dra. Eliesse dos Santos Teixeira Scaramal

___________________________________________

Prof. Dr. Itelvides José de Morais

____________________________________________

Profa. Dra. Maria Amélia Garcia de Alencar (Suplente)

Dissertação Examinada em ___/___/ 2011.

4

À Lorena, que me fez conhecer um

significado mais profundo para a palavra

amor.

5

AGRADECIMENTOS

Presto homenagens a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização

deste trabalho. Aos amigos que compreenderam minha ausência em vários momentos nos

quais deveríamos estar juntos e aos familiares cujos aniversários ou outras datas festivas não

pude comparecer.

Agradeço também ao meu caríssimo orientador Dr. Leandro Mendes Rocha. Suas

críticas e orientação paciente me permitiram adentrar à floresta teórico-metodológica dos

trabalhos científicos com a capacidade de discernir, como ele mesmo gosta de dizer, “entre

cobras e lagartos”.

Ao pessoal do Programa de Pós-Graduação em História pela solicitude com que

sempre nos receberam e pelo apoio nessa trajetória.

Não poderia deixar de mencionar meus pais, Tadeu Ramos de Paula e Sofia de Melo

Paula. Se há algo de virtuoso em minha pessoa, isso se deve ao apoio e amor despendidos por

eles.

6

RESUMO

Este estudo versa sobre os evangélico-pentecostais enquanto segmento religioso unificado

pelo compartilhamento de determinadas representações coletivas. Cunhamos tal termo de

análise ao perscrutamos as continuidades no imaginário social existentes em documentos da

Assembléia de Deus desde sua fundação em 1911 e documentos provenientes da Igreja

Universal do Reino de Deus de fins do século XX. O que nos interessou nesse trabalho, acima

de tudo, foi encontrar as características que possibilitam unidade entre essas duas

denominações. Pretendemos ter demonstrado que a Batalha Espiritual, entendida por vários

autores de peso na área dos estudos pentecostais como elemento característico apenas das

denominações surgidas após a década de 1970, de fato, sempre esteve presente de forma

determinante na constituição identitária dos evangélico-pentecostais. Assim, apresentamos

duas formas mínimas de matrizes interpretativas – “Santidade Próspera” e a “Prosperidade

Santa” – que diferenciariam os pentecostais do século XX utilizando outra base que não a

pretensa exacerbação da Batalha Espiritual. Sugerimos uma possível explicação para o fato de

a Batalha Espiritual ter sido interpretada por certos sociólogos e historiadores como elemento

característico dos neopentecostais somente. Para dar peso ao nosso argumento, realizamos,

também, um trabalho de comparação entre dois grupos de canções evangélico-pentecostais

produzidas em dois momentos distintos na história do movimento e pudemos, por meio da

análise das letras das canções, observar a reincidência das mesmas representações coletivas.

Além disso, realizamos uma análise do Episódio Vaca Brava, evento no qual todo o

arcabouço identitário discutido no decorrer da obra foi exercitado para fomentar um embate

contra o que os evangélico-pentecostais acreditavam ser uma demonstração do avanço do

poder das trevas sobre solo goianiense.

7

ABSTRACT

This study deals with the Evangelical-Pentecostal religious segment while unified by sharing

certain collective representations. We coined that term analysis to scrutinize the continuities

in the social imaginary in documents of the Assembléia de Deus since its founding, in 1911,

and documents from the Igreja Universal do Reino de Deus, in the late twentieth century.

What interested us in this work, above all, was to identify characteristics that enable unity

between these two denominations. We intend to have shown that the Spiritual Battle,

understood by many important authors in the field of Pentecostal studies as a distinctive

element of names only emerged after the 1970s, in fact, always have been presented in a

decisive way in the constitution of the Evangelical Pentecostal identity. Thus, we present two

minimal forms of interpretive matrices – "Prosperous Holiness" and "Holly Prosperity" – that

differentiated the Pentecostals of the twentieth century using other basis than the alleged

exacerbation of Spiritual Battle. We suggest a possible explanation for the fact that the

Spiritual Battle have been interpreted by some sociologists and historians as a distinctive

element of the neo-Pentecostal only. To increase the credibility of our argument, we

performed also a study comparing two groups of evangelical-Pentecostal songs produced in

two distinct moments in the history of the movement and could, by analyzing the lyrics of

songs, observe the recurrence of such representations collective. In addition, we conducted an

analysis of Vaca Brava Episode, in which event the entire framework of identity discussed in

the course of this work was exercised to promote a clash against what the Evangelical

Pentecostals believed to be a demonstration of the progress of the power of darkness on

goianiense soil.

8

SUMÁRIO

Introdução _______________________________________________________________ 10

1. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: as igrejas Assembléia de Deus e Universal do

Reino de Deus ____________________________________________________________ 27

1.1. Antecedentes históricos do Pentecostalismo ____________________________ 27

1.2. As tipologias do pentecostalismo brasileiro _____________________________ 35

1.3. Assembléia de Deus (AD) ___________________________________________ 42

1.4. Igreja Universal do Reino de Deus ____________________________________ 46

2. Uma questão de identidade: a Batalha Espiritual ___________________________ 54

2.1. Contextualizando: santidade próspera e/ou prosperidade santa ___________ 60

2.1.1. Santidade Próspera __________________________________________________________ 61

2.1.2. Prosperidade Santa __________________________________________________________ 72

2.1.3. Inovação teológica ou ênfase midiática sobre a Batalha Espiritual? _____________________ 77

2.2. Representações coletivas e continuidades históricas. _____________________ 79

2.2.1. Santa Ceia _________________________________________________________________ 80

2.2.2. Batismo (águas e Espírito) ____________________________________________________ 83

2.2.3. Biblicismo _________________________________________________________________ 87

2.2.4. Visão de mundo dualista ______________________________________________________ 93

2.2.5. Grande Comissão __________________________________________________________ 106

2.2.6. Parousia (Segunda Vinda de Cristo) ____________________________________________ 115

3. Cantos de Batalha: a manutenção das experiências de conflito por meio dos hinos de

louvor e adoração ________________________________________________________ 119

3.1. Santa Ceia _______________________________________________________ 121

3.2. Batismo (águas e Espírito) _________________________________________ 125

3.3. Biblicismo _______________________________________________________ 130

3.4. Visão de mundo dualista ___________________________________________ 134

3.5. Grande Comissão e parousia ________________________________________ 140

4. No front da Batalha Espiritual: considerações acerca do episódio Vaca Brava __ 153

Conclusão ______________________________________________________________ 175

9

Referencial Bibliográfico __________________________________________________ 178

10

Introdução

Neste trabalho realizaremos uma incursão ao imaginário social que imprime sentido às

vidas dos sujeitos integrantes do grupo religioso que convencionamos chamar “evangélico-

pentecostais”1. Não percorreremos, contudo, as complexas sendas do imaginário social –

território identitário extremamente fértil ao desenvolvimento dos mais distintos arranjos

representacionais – sem uma meta específica. Nosso objetivo é entender e demonstrar como, a

partir das relações estabelecidas entre certas representações compartilhadas coletivamente, os

evangélico-pentecostais produzem e mantêm sentido às experiências de conflito vivenciadas

em nome da fé: a Batalha Espiritual. Além disso, queremos demonstrar que essa mesma

Batalha Espiritual é um elemento determinante na formação identitária dos evangélico-

pentecostais desde o início dos primeiros trabalhos da Assembléia de Deus (1911), não sendo,

portanto, uma característica desenvolvida apenas na segunda metade do século XX pelas

chamadas denominações neopentecostais. Essas Batalhas Espirituais muitas vezes têm lugar

em espaços tradicionalmente entendidos como “profanos” – espaços públicos como praças,

terminais rodoviários, passeios públicos, escolas, etc. Discorreremos, nesse sentido, sobre em

que medida a Batalha Espiritual entranha-se na constitutividade da própria identidade

evangélico-pentecostal.

O termo evangélico faz menção direta aos quatro primeiros livros do Novo

Testamento bíblico. Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Com a Reforma

Protestante, no século XVI, dois elementos constituintes do novo cristianismo proposto, a

saber, a supremacia da interpretação pessoal das Escrituras – a leitura da Bíblia traduzida

numa língua vulgar – e o “relacionamento com Deus”, derivado dessa interpretação pessoal,

começaram a ser reconhecidos como autoridades no que tange à fundamentação das doutrinas

cristãs. Assim, a submissão à interpretação oficial do texto bíblico provinda de uma fonte

única – a igreja Católica Romana – foi radicalmente questionada. Tanto as denominações

1 Conceito por nós cunhado para fazer referência à comunidade pentecostal brasileira do século XX em função

dos elementos identitários que todas as denominações trazem em comum, apesar da defasagem temporal.

Como não é possível no escopo de um trabalho dissertativo abarcar tal riqueza de detalhes, visto o número

elevado de denominações, vamos focar nossa atenção e análise somente às denominações que contam com os

maiores renome e membresia do país: a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. Se as

conclusões que alcançamos nessa dissertação em termos de aplicabilidade do conceito de “evangélico-

pentecostais” se encaixam na análise de outras denominações pentecostais, esse é um trabalho que ainda

deverá ser realizado.

11

derivadas da Reforma Protestante, chamadas igrejas históricas (presbiterianos,

congregacionais, batistas, etc.), quanto as denominações surgidas em fins do século XX

(Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, etc.) poderiam ser

consideradas “evangélicas” na medida em que são movimentos religiosos fundados em

interpretações específicas (e particularizadas) dos textos bíblicos com respaldo à figura de

esus Cristo e que levam em consideração a “vida em Jesus” derivada destas mesmas

interpretações.

Tais interpretações, provenientes do meio evangélico, sustentam teologicamente os

desdobramentos doutrinários que regem os rituais públicos e as concepções de conduta e

santidade que marcam a vida privada de cada fiel. Com o fito de facilitar nossa análise, num

trabalho de recorte, manteremos sob a denominação de “protestantes” os fiéis ligados às

igrejas históricas. O faremos mediante as especificidades desse grupo: a manutenção de uma

postura mais “comedida”, menos aguerrida, por parte de seus integrantes no que tange a

Batalha Espiritual. Os protestantes problematizam de outra forma a relação com sua

alteridade, tornando a Batalha Espiritual, nosso objeto de estudo, menos evidente do que é

para os segmentos pentecostais (ALVES, 1982). Desse modo, este estudo não terá como foco

os chamados protestantes.

Pelo fato de ser utilizado para designar ora protestantes históricos ora pentecostais, ou

até mesmo englobando ambos os grupos, evitaremos utilizar somente o termo “evangélico”

para indicar o grupo ao qual analisaremos. Em acordo com as considerações de Prócoro

Velasques Filho e Antônio Gouvêa Mendonça (1990), consideraremos que o termo

evangélico faz referência a todas as igrejas ou denominações que descendem, direta ou

indiretamente, da Reforma Protestante do Século XVIII. Essas igrejas ou denominações,

ainda na esteira de Velasques e Mendonça (1990), têm em comum uma visão teológica que

prega a “volta”, ou seja, um retorno à Bíblia como única regra de fé e de conduta. Com o fito

de objetivar com mais clareza o grupo que analisaremos nesse trabalho, iremos acrescer ao

termo “evangélico” o conceito de “pentecostais”. Assim, recortamos com maior precisão o

grupo que nos interessa analisar: os “evangélico-pentecostais”.

Em linhas gerais, podemos observar dois processos de formação do segmento

pentecostal2 ao longo do século XX aos quais cremos ser coerente a aplicação do termo

“evangélico”. Um primeiro processo seria o de formação das denominações pentecostais de

fato, aquelas que realizam toda a identidade pentecostal em suas práticas (Assembléia de

2 Processo que será analisado em pormenores no primeiro capítulo.

12

Deus, Deus é Amor, IURD, etc.). Um segundo processo seria o de pentecostalização de

algumas igrejas históricas (Igreja Batista Renovada, Igreja Presbiteriana Renovada, etc.).

Estas últimas são as igrejas dissidentes de denominações protestantes que adotam aspectos da

teologia pentecostal, incluindo, conforme as idiossincrasias do pastor local, várias das

inovações teológicas identificadas com o neopentecostalismo (MARIANO, 1999). Não são,

todavia, extremamente diferentes, em questões teológicas, rituais ou de composição de sua

membresia, das igrejas pentecostais e encaram a Batalha Espiritual de forma análoga aos

pentecostais. Se operacionalizássemos “evangélico” como conceito de análise, estariam

subsumidas tanto igrejas de origem protestante renovada quanto igrejas nascidas sob a égide

do pentecostalismo. Tal indiferenciação não seria produtiva em nosso entender. Mesmo

porque a riqueza de detalhes que marcam as diferentes denominações não poderia ser

abarcada neste trabalho dissertativo. Precisamente por isso, restringimos ainda mais nosso

recorte. Dentre os evangélicos estudaremos as ramificações pentecostais. Segundo Roberto

Mariano,

Grosso modo, o pentecostalismo distingue-se do protestantismo histórico, do

qual é herdeiro, por pregar a crença na contemporaneidade dos dons do

Espírito Santo, entre os quais se destacam os dons de línguas (glossolalia),

cura e discernimento de espíritos, e por defender a retomada de crenças e

práticas do cristianismo primitivo, como a cura de enfermos, a expulsão de

demônios, a concessão divina de bênçãos e a realização de milagres

(MARIANO, 2004: 134).

Nosso esforço, ao propormos o termo evangélico-pentecostal, se dá em função de um

recorte metodológico que respeita e busca não ferir a complexidade do campo religioso ao

qual recorremos. Tentamos evitar incorrer no simplismo de crer que poderíamos abarcar todas

as distintas denominações por intermédio do rápido e uniformizador uso do termo

“evangélicos”. Tomado em sua acepção mínima, tal termo ainda é passível de fazer menção

às denominações sociologicamente nomeadas pentecostais e neopentecostais nos estudos

clássicos – frutos das três ondas século XX3 – como também às igrejas históricas

pentecostalizadas ou renovadas. Teologias, doutrinas e práticas muito diversas escondidas sob

um único conceito. Assim, objetivando um conceito que nos desse aceitável segurança teórica

e metodológica na feitura do trabalho, cunhamos o conceito “evangélico-pentecostais”. O uso

do termo “evangélico” acrescido da designação “pentecostal” serve ao propósito de enfatizar

o grupo religioso que será analisado, na medida em que “pentecostal” é um indicativo do que

3 As três ondas de avivamentos que marcam a formação das distintas denominações pentecostais serão discutidas

no primeiro capítulo.

13

muitas vezes é considerado, entre os próprios adeptos, o caráter “barulhento”, “carismático”,

“aguerrido” do “povo de Deus”.

Nosso objetivo primário com a proposta do termo evangélico-pentecostal – abarcando

uma igreja pentecostal (Assembléia de Deus, fundada em 1911) e uma neopentecostal (Igreja

Universal do Reino de Deus, fundada em 1977) – provém do esforço de apreender as

continuidades históricas nas práticas referentes à Batalha Espiritual entre estas distintas

denominações, que podem ser traduzidas em termos de representações coletivas comungadas

tanto por assembleianos quanto por iurdianos. Tais continuidades, cremos ter demonstrado

nos capítulos que se seguem, podem ser rastreadas em função da demonização de sua

alteridade e das decorrentes experiências de combate inerentes à sua constituição identitária.

O estudo que empreendemos nesta dissertação decorreu de uma problemática de

ordem prática: a aplicação da lei 10.639/2003 – modificada pela lei 11.645/2008 – que tornou

obrigatório o estudo de temas e histórias africanas e indígenas nas instituições de ensino

público no Brasil. Nossos esforços, dentro do contexto dos estudos empreendidos pelo

CieAA4, iniciados no ano de 2006, vão ao encontro do conhecimento dos processos históricos

de demonização (negação/subalternização) das práticas de outros segmentos religiosos, não

necessariamente cristãos, pela visão cristocêntrica dos evangélico-pentecostais. Chamou

nosso interesse as reações de repúdio por parte dos evangélico-pentecostais contra o estudo

das religiões de matriz africana e afro-brasileiras como suporte para a discussão da história da

África no Brasil5.

Duas razões embasam nossa escolha para nos aprofundarmos no tema. Primeiramente,

possuímos uma experiência como fiel dentro da visão de mundo evangélico-pentecostal6. Esta

identificação com as representações coletivas evangélico-pentecostais, inerentes ao

imaginário social e às representações coletivas que o povoam, fez-nos atentar para a

gravidade da questão que se colocava com o repúdio à lei 10.639/2003. O número de

4 O CieAA (Centro Interdisciplinar de Estudos África/Américas) visa congregar núcleos e grupos de pesquisa/

ensino/extensão cuja temática seja o conhecimento das humanidades sobre os continentes africano e

americano. Dessa forma, a diretriz central do CieAA é a de colaborar e incentivar estudos e pesquisas que

visam conhecer as diversas vivências humanas presentes em ambos continentes, reunindo para isso difusores,

pesquisadores e professores em um esforço interdisciplinar.[…] Linhas de Pesquisa: Educação para a

cidadania: as Áfricas entre a História, a Geografia e as artes; Espaços africanos e americanos: saberes locais,

religiosidades e dinâmicas sociais. (Profa. Dra. Eliesse Scaramal Coordenadora CieAA/UEG – 2006) 5 Acerca das experiências e dificuldades ligadas ao ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, foi

possível constatar […] resistência percebida entre os alunos quanto aos aspectos relacionados às religiões de

matriz africana e afro-brasileira. […] visto que muitos deles são adeptos de igrejas ou denominações

evangélicas (LOUZADA; ULHOA, 2008). 6 O autor, durante todo o período da juventude (segunda metade da década de 1990 até o ano de 2003),

congregou em igrejas evangélico-pentecostais: Assembléias de Deus, Igreja Quadrangular e, por um curto

período, Internacional da Graça de Deus.

14

evangélico-pentecostais no país cresce a cada ano7 e o esforço de impedir a implementação da

10.639/2003 não era apenas, como poderia parecer para olhos alheios à identidade, um

capricho supersticioso. São atitudes e posturas provenientes do mal estar nascido da

necessidade de aceitar uma lei que assalta o âmago do imaginário evangélico-pentecostal. A

aceitação passiva da lei, pretendemos ter demonstrado ao analisar a Batalha Espiritual,

configura-se como um desafio ao fundamento simbólico e representacional que sustenta a

produção de sentido para vida do evangélico-pentecostal. Ou seja, o fiel vivencia a

implementação da lei, ou qualquer outra apropriação do espaço público por parte de

integrantes de outras religiões8, como um avanço do Reino das Trevas em sua cotidianidade,

uma derrota na Batalha Espiritual contra Satanás e seus asseclas.

Os estudos aos quais tomamos parte dentro do Centro Interdisciplinar de Estudos

África-América (CieAA), sediado na Universidade Estadual de Goiás, configuram-se como a

segunda razão para a escolha do tema tratado aqui. Perscrutávamos as mediações do sagrado

na apropriação de espaços públicos por distintas religiões urbanas, em especial o Candomblé

e a Umbanda. Estas pesquisas desdobraram-se como um encontro com a alteridade do

evangélico-pentecostal que jamais conhecêramos antes de nossa filiação às igrejas

evangélico-pentecostais, mas odiávamos por ditame identitário.

Experiências de campo, etnografias e a leitura de algumas obras consideradas clássicas

na área dos estudos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras9 nos fizeram

compreender que a figura do “macumbeiro” estava mais para uma intrincada representação

coletiva que habita o imaginário social evangélico-pentecostal do que para realmente um

adepto de qualquer religião dita “demoníaca”. Começamos a ponderar o quanto a Batalha

Espiritual seria determinante nos processos de construção identitária do fiel evangélico-

pentecostal. Acompanhando as abordagens e recortes nas pesquisas de outros pesquisadores

do CieAA, que tomavam o Candomblé ou a Umbanda como objetos de estudo em sua

7 Conforme os Censos Demográficos do IBGE, os evangélicos perfaziam penas 2,6% da população brasileira na

década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e

15,4% em 2000, ano em que somava 26.184.941 de pessoas. O aumento de 6,4 pontos percentuais e a taxa de

crescimento médio anual de 7,9% do conjunto dos evangélicos entre 1991 e 2000 (taxa superior às obtidas nas

décadas anteriores) indicam que a expansão evangélica acelerou-se ainda mais no último decênio do século

XX. (MARIANO, 2004). 8 Analisaremos no capítulo quarto dessa dissertação um evento de enfrentamento ocorrido em Goiânia no ano de

2003 a propósito da exposição de estátuas de Orixás no parque lacustre Vaca Brava. 9 Durante os anos de 2007 e 2008 tomamos parte no mapeamento dos Ilê-axês sediados em Goiânia e em Águas

Lindas de Goiás, trabalho organizado e levado a cabo pela equipe de pesquisadores do CieAA. Alguns livros

considerados clássicos nos estudos sobre religiões de matriz africana e afro-brasileiras são “O Animismo

Fetichista dos Negros Bahianos”, Nina Rodrigues (1935); “O Negro Brasileiro”, Arthur Ramos (1940);

“Candomblés da Bahia”, Edson Carneiro (1ª ed. 1948); “Os Candomblés de São Paulo”, Reginaldo Prandi

(1991); “Orixás da Metrópole”, Vagner Gonçalves (1995).

15

invisibilidade social, em suas historicidades, em suas especificidades e riquezas simbólicas,

percebemos que se quiséssemos compreender melhor as relações conflituosas entre

evangélico-pentecostais e adeptos das religiões de matriz africana e afro-brasileiras

deveríamos fazer um caminho distinto: estudar os evangélico-pentecostais em função da

demonização quanto às religiões de matriz africana e afro-brasileiras10

. Nesse contexto surgiu

um novo problema que resolvemos encarar na feitura desta dissertação.

O trabalho de pesquisa à época nos deu a conhecer as tipologias desenvolvidas pelos

autores mais debatidos11

na área dos estudos tipológicos sobre o pentecostalismo brasileiro.

Estes autores dividiram, em função de suas variações teológicas e doutrinárias, os evangélico-

pentecostais em “ondas” nomeadas diferentemente por cada pesquisador: “pentecostalismo

clássico”, “deuteropentecostalismo”, “pequenas seitas”, “neopentecostalismo”, “igrejas de

cura divina”, “pós-pentecostalismo”. As tipologias, que serão apresentadas e discutidas no

primeiro capítulo deste trabalho, apesar de diversas, se mostraram histórica e

sociologicamente válidas. Contudo, um ponto assente entre os estudiosos que propuseram as

tipologias pentecostais nos pareceu extremamente problemático: a Batalha Espiritual teria

sofrido uma gradativa exacerbação doutrinária e teológica durante o século XX.

A partir de nossa experiência como fiel, participante da identidade assembleiana

tradicional arredia às “novidades” neopentecostais – é importante frisar aqui que congregamos

em uma igreja do interior, afastada dos grandes centros de difusão das práticas

neopentecostais –, pudemos perceber que a Batalha Espiritual já seria de essencial

importância na constituição da identidade do crente. A ideia de um processo de exacerbação

da importância em termos de práticas e representações da Batalha Espiritual entre as

denominações evangélico-pentecostais surgidas em fins do século XX nos pareceu uma

afirmativa no mínimo polêmica. A partir do conhecimento não sistemático que detínhamos de

material textual de cunho doutrinário proveniente dos primeiros anos do pentecostalismo no

Brasil, percebíamos que a Batalha Espiritual não era tratada como um tema secundário para a

constituição identitária dos fieis.

Assim, não são as distinções entre os segmentos pentecostais surgidos durante o correr

do século XX que de fato nos interessam quando o assunto é a perseguição empreendida pelos

evangélico-pentecostais às demais religiões cristãs e não cristãs. De fato, nos interessa é o

10

Estudo que resultou no trabalho monográfico de final de curso. RAMOS, Marcos Paulo de Melo. A negativação

semântica das religiões de matriz africana a partir do discurso evangélico. Trabalho de conclusão de curso

apresentado à Coordenação do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH – para

obtenção do grau de Licenciado em História. Anápolis, 2007. Orientadora: Profª. Drª. Eliesse dos S. Teixeira

Scaramal. 11

Carlos R. Brandão (1980), Paul Freston (1992), Ricardo Mariano (1999) e Paulo Siepierski (2008).

16

que, a nosso entender, os diferentes segmentos pentecostais detêm em comum: a manutenção

de variadas experiências de conflito contra sua alteridade que, apesar de encontrar sua

justificação num postulado mundo espiritual, são efetivamente realizadas no mundo físico das

relações interpessoais.

Na contramão dos estudos que propuseram tipologias que dividem os pentecostais

perscrutando as distinções em termos de práticas e representações desenvolvidas entre as

gerações de crentes no século XX, nos colocamos a questão sobre quais seriam os elementos

identitários historicamente compartilhados entre pentecostais. Enfim, se haveria algo que

ligasse e possibilitasse o diálogo entre assembleianos e iurdianos apesar do hiato temporal.

Acreditamos que a manutenção da experiência da Batalha Espiritual é o que possibilita tal

comunicação. E, a partir da análise do complexo de representações coletivas que suprem a

vivência da Batalha Espiritual de sentido, teríamos a chave para justificarmos o fato de não

podermos postular tipologias pentecostais pautadas em variações de exacerbação desta mesma

Batalha Espiritual. As tipologias desenvolvidas pelos vários autores que logo passaremos a

discutir ainda se mantêm úteis e viáveis, porém, embasadas em outros parâmetros que não a

exacerbação da combatividade evangélico-pentecostal através do tempo.

Assim, voltamos nossa atenção para a análise das continuidades históricas. Ainda na

época da feitura de nosso trabalho monográfico, percebemos que seria numa estrutura sutil –

que passamos a denominar de “arcabouço identitário” – o local no qual haveríamos de

encontrar respostas para o entendimento da demonização, e da decorrente Batalha Espiritual,

como partes integrantes da visão de mundo evangélico-pentecostal. A ideia de arcabouço nos

veio no bojo da percepção de que todas as tipologias desenvolvidas para o estudo dos

pentecostais apresentavam, mesmo que com pequenas variações interpretativas, a reincidência

de determinadas representações coletivas. Desse modo, surgiam, pouco a pouco, os

rudimentos daquilo que chamamos, nesse trabalho dissertativo, de arcabouço identitário. Daí

o fato do conceito de evangélico-pentecostais servir ao propósito de ressaltar as continuidades

históricas em termos de representações coletivas entre assembleianos e iurdianos. O trabalho

que desenvolvemos analisa a Batalha Espiritual empreendida pelos evangélico-pentecostais –

compartilhada tanto por assembleianos do início do século XX quanto por iurdianos dos anos

1990 – trazendo a lume a existência de um substrato representacional que se manteve durante

o século XX.

Apesar da inquietação que nos moveu no aprofundamento da questão sobre a não

validade da postulada exacerbação da Batalha Espiritual ter nascido de sutilezas perceptíveis

apenas no convívio social entre os próprios evangélico-pentecostais, precisávamos corroborar

17

nossa intuição a partir de material documental controlável no marco de uma rigorosa

metodologia. A intuição não é argumento suficiente no debate científico. Desse modo,

encontramos referências que corroboram nossa hipótese tanto em hinos e textos

assembleianos datados da primeira década do século passado quanto em canções de louvor e

livros doutrinários iurdianos provenientes de fins do século XX e início do século XXI.

Como veremos nos capítulos que se seguem, ocorreram certas variações no que tange

a interpretação dos complexos de representações coletivas que formam o arcabouço

identitário evangélico-pentecostal. Essas variações, porém, não foram suficientes para abalar a

continuidade temática e o potencial de produção de sentido à Batalha Espiritual engendrado

pelas mesmas representações coletivas compartilhadas entre assembleianos e iurdianos.

Propomos, desse modo, uma crítica aos autores que veem na exacerbação da Batalha

Espiritual um dos elementos basilares na divisão dos pentecostalismos em diferentes

tipologias no correr do século XX. A Batalha Espiritual enquanto demonização e perseguição

da alteridade, diferentemente do que propuseram tais pesquisadores, mostra-se como uma

experiência tão básica, necessária e inescapável – na efetivação das identificações com o

imaginário social evangélico-pentecostal – tanto aos pais fundadores das Assembléias (1911),

os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, quanto ao fundador e líder da IURD (1977), Edir

Macedo.

Exorcismos no meio pentecostal já fazem parte do próprio movimento. Nas

grandes concentrações, nas igrejas, nos lares, essa prática está ligada ao

pentecostalismo. Porém, com a terceira onda, ela é supervalorizada.

“Evangelho é poder, e poder tem de ser exercido, para a derrota de satanás e

a glória de Deus” (MACEDO, 1988, p. 138). O neopentecostalismo levanta

a bandeira da batalha espiritual como tema principal, indo ao encontro de

tudo aquilo que poderia assemelhar-se à “guerra santa”. Umbandistas são

atacados como aliados do inimigo. Algumas igrejas neopentecostais com o

apoio da mídia televisiva se levantam como brava guerreira, dando sinais de

que a luta apenas começa. Em uma entrevista ao Jornal do Brasil (5 de

fevereiro de 1988), um dos pastores dessas igrejas, ao ser questionado sobre

essa batalha, responde: “É verdade que os orixás são o Diabo e que as

pessoas que estão na macumba não prestam, mas nós não brigamos com

eles. Só queremos levar a palavra de Cristo até eles” (BITUN, 2008: 220).

Poucos autores, como Cecília Loreto Mariz (1997), viram na identificação automática

da Batalha Espiritual com os pentecostais da terceira onda (ou neopentecostais) um problema.

A teologia da guerra espiritual não é [...] específica do neopentecostalismo

nem do pentecostalismo apenas. Mas quase nenhum trabalho tematiza a

questão do demônio e da teologia da guerra espiritual em igrejas históricas e

no movimento carismático (MARIZ, 1997).

18

Para suprir esta falta de trabalhos sobre a continuidade histórica da Batalha Espiritual

– talvez a mais imperiosa continuidade no pentecostalismo – foi que propusemos nossa

análise.

O substrato representacional, ou arcabouço identitário, emergiu e foi corroborado a

partir do estudo de documentos teológicos e doutrinais provenientes de, como citado acima,

duas igrejas evangélico-pentecostais representativas no meio: Assembléia de Deus (AD) e

Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A eleição destas duas denominações se deu

basicamente pela complexidade decorrente de abarcar um número maior de igrejas. Ademais,

as duas igrejas escolhidas para instanciar a pesquisa são as que mais possuem membros dentre

os pentecostais clássicos (AD) e os neopentecostais (IURD)12

. Nosso esforço para

desenvolver o argumento e comprovar a importância da Batalha Espiritual como ponto em

comum entre as duas denominações nos levou a transitar pelo século XX, desde a fundação

das Assembléias de Deus, em 1911, até a ascensão da IURD na década de 1990.

Este estudo propõe uma nova interpretação das tipologias pentecostais se inserindo

nos esforços empreendidos por sociólogos e historiadores. O estudo acerca dos pentecostais é

relativamente recente, especialmente entre os historiadores. Prócoro Velasques Filho e

Antônio Gouvêa Mendonça (1990) explicitam-nos as origens do movimento pentecostal.

Segundo os autores as bases teológicas do pentecostalismo do século XX podem ser

rastreadas nos avivamentos dos séculos XVIII e XIX. Utilizamos seus escritos para

fundamentar nossa sumária genealogia do pentecostalismo. Os autores que trabalharam a

questão das tipologias e nos serviram como base para pensar as continuidades históricas no

pentecostalismo durante o século XX foram Carlos R. Brandão (1980), Paul Freston (1992),

Ricardo Mariano (1999) e Paulo Siepierski (2008). Como as análises de Brandão efetivamente

não centralizam a questão das tipologias, sendo um tema secundário em sua obra, valorizamos

a discussão com Freston, Mariano e Siepierski. Estes autores priorizaram análises que

visavam distinguir sócio-historicamente as denominações pentecostais.

A caracterização detalhada das práticas neopentecostais desenvolvida por Mariano

incidiu diretamente na problematização por nós proposta. Para Mariano, um dos autores mais

respeitados entre seus pares, a Batalha Espiritual é um elemento eminentemente pertencente

12

Outro aspecto a se ressaltar é que, apesar do elevado número de denominações pentecostais no país,

Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e Universal do Reino de Deus, juntas, concentram 74%

dos pentecostais, ou treze milhões. Tamanha concentração institucional do pentecostalismo brasileiro, além

de minimizar até certo ponto a importância da fragmentação denominacional ou do divisionismo

organizacional desse movimento religioso, permite compreender porque a Assembléia de Deus e a Universal

são as igrejas que logram, por exemplo, maior visibilidade pública e sucesso na política partidária

(MARIANO, 2004).

19

aos neopentecostais (IURD). Já os pentecostais clássicos (AD), segundo a tipologia do autor,

sustentariam uma postura polêmica, mas pacífica, pouco visível no que tange a Batalha

Espiritual e circunscrita ao campo do discurso. Além disso, para Mariano, os pentecostais

anteriores ao neopentecostalismo não disporiam do acervo teológico da guerra espiritual para

fundamentarem seus processos de identificação na Batalha Espiritual (MARIANO, 2004).

Demonstramos, pela análise documental, que as suposições de Ricardo Mariano estão

equivocadas. Também foi importante para o desenvolvimento de nosso argumento a temática

apresentada por Siepierski acerca da transformação sofrida no âmbito das crenças

escatológicas no seio das igrejas surgidas nas últimas décadas do século XX. A guinada do

pré-milenarismo (AD) para o pós-milenarismo (IURD)13

.

Acreditamos que conhecer os fundamentos imaginários da Batalha Espiritual,

considerada como o elemento fundante do pentecostalismo, será uma contribuição no sentido

de entender a existência, e mais, a necessidade da vivência do conflito – da guerra, da

demonização, e da desumanização do outro – como um dos ditames inescapáveis do processo

de identificação com a proposta evangélico-pentecostal de fé.

Podemos, assim, desdobrar os objetivos dessa pesquisa nas seguintes etapas:

corroborar a existência de continuidades históricas no que tange à Batalha Espiritual entre

pentecostalismo clássico (Assembléia de Deus) e neopentecostalismo (Universal do Reino de

Deus); sugerir uma explicação das razões históricas da tomada da Batalha Espiritual por parte

dos estudiosos no assunto (FRESTON, 1992; MARIANO, 1999; BITUN, 2008) como

elemento constituinte apenas – ou especialmente – das igrejas alinhadas com o

neopentecostalismo; propor um modelo representacional mínimo – arcabouço identitário –

que reúna pentecostais e neopentecostais em função da Batalha Espiritual empreendida contra

outros grupos religiosos. Por fim, verificarmos a existência de representações coletivas

comuns entre letras de hinos provenientes da Harpa Cristã (cancioneiro oficial da AD) e

canções de louvor datadas das duas últimas décadas do século XX (amplamente difundidas

13

Outros trabalhos que foram consultados (Biblioteca Central da UFG e da PUC-Goiás) e auxiliaram no

desenvolvimento da discussão acerca das continuidades e descontinuidades entre pentecostalismo e

neopentecostalismo, são: O Protestantismo em Goiânia, Itelvides José de Morais (2003); O mover do Espírito

Santo na virada do milênio – pentecostais e carismáticos em Goiânia, Neusa Tolentino Santana (2001); A

doutrina dos usos e costumes na Assembléia de Deus, Cláudio José da Silva (2003); As representações do

Diabo no imaginário dos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, Pedro Antonio Chagas Cáceres (2006);

Tecendo os fios da trama coletiva: possessão e exorcismo rituais na Igreja Universal, Maria Emília Carvalho

de Araújo (2001); Nem culpa, nem condenação; a saída pode ser Jesus – a atuação das igrejas pentecostais

na agência prisional de Goiânia, Flávia Valéria C. B. Melo (2005); O Espírito soprou entre os jovens...

estudo sobre a adesão de jovens ao neopentecostalismo, Ana Rita Marcelo de Castro (2002); A racionalidade

nas igrejas neopentecostais nascidas em Goiânia, Silas Rebouças Nobre (2003); Intenção do texto – o Diabo

e a Guerra Santa no imaginário dos Pentecostais: espiritismo em confronto, Jean Fabrício Dias Veríssimo

(2005).

20

entre a membresia iurdiana) e analisarmos um episódio de enfrentamento no qual a Batalha

Espiritual materializou-se no campo das práticas sociais: o Episódio Vaca Brava.

Como nos aproximar deste combate entre evangélico-pentecostais versus suas próprias

projeções sombrias de alteridade?

Para se compreender uma construção identitária, por mais fluída que esta seja, se faz

necessária a pergunta pelo(s) outro(s) da identidade em questão. Se concordarmos que o

espaço relacional no qual o sujeito processa suas identificações com dado grupo é palco de

embates e concordatas – negociações, enfim –, aceitaremos, também, que a pergunta pela

alteridade é crucial para conhecermos a identidade. Isto se dá tanto pelo desdobramento das

assimilações de práticas que testemunharão as fidelidades e lealdades perante o grupo ao qual

o sujeito se pretende identificar quanto pelo afastamento dos grupos que são anatemizados,

estigmatizados, e que fazem parte da alteridade deste mesmo grupo.

O conceito de identidade será trabalhado como “gerenciamento das situações

conflitivas (...), ou seja, como as pessoas se representam para si mesmas e como se

apresentam umas para as outras, criando redes de solidariedades e alteridades”

(GONÇALVES & ROCHA, 2006: 11). Em concordância com os mesmos autores,

entendemos que este “se representar” e “dar-se a conhecer” são construtos baseados nas

necessidades e interesses dos sujeitos e estão fundadas na fantasia, na projeção e na

idealização.

As identidades são antes de tudo relacionais. Parte-se da alteridade, do que

não se é, para se definir aquilo que se gostaria de ser. Traz tranqüilidade ao

ser humano acreditar que se é o que se pensa que é. […] Uma forma de se

vestir, de se comportar, uma linguagem específica, pode simbolizar a adesão

a um determinado processo de identificação, gerando fidelidades e lealdades

a um determinado grupo, mas também o afastamento de outros setores

sociais, com os quais o processo de identificação não se define

(GONÇAVELS & ROCHA, 2006: 12-13).

Identificação como a entendemos aqui é, assim, um caminho de adesão a determinado

grupo imaginário por parte dos sujeitos sociais que predica dois movimentos: 1) introjeção da

visão de mundo específica que redundará na 2) participação nos modelos de negação –

demonização – quanto ao(s) outro(s) deste mesmo grupo. Um movimento de positividade,

desdobrado na afirmação dos valores coletivos do grupo ao qual se pretende identificar, e um

movimento de negatividade, observado na negação dos vícios ou faltas reconhecidas como

detestáveis pelo mesmo grupo e remetidas ao proceder, às crenças, às expectativas e às

percepções de outros.

21

A identidade, então, seria tributária deste processo de identificação. De fato, o que é

atualizado pelo sujeito em sua prática cotidiana é o processo de identificação que dá coesão a

seu imaginário socialmente constituído, servindo-lhe como cadinho na produção de sentido. A

identidade está mais para aquilo que se gostaria de ser, como um modelo a ser efetivado, do

que aquilo que se é de fato. As representações coletivas, inerentes ao processo de

identificação, estão vinculadas às apreciações dicotômicas do “bom/mal”, “belo/feio”,

“correto/errado”. Estes binarismos, por sua vez, só se sustentam contextualizados se

significados no interior de um mesmo imaginário social. Assim, ao realizar um mapeamento

do imaginário social evangélico-pentecostal encontramos as chaves para entendermos a

Batalha Espiritual.

Um dos instrumentos mais efetivos para tornar inteligível a complexidade social é o

conceito de imaginário social. O imaginário social pode ser entendido como o organizador e

regulador de nossa vida cotidiana (PINTOS, 1995) tornando-se, também, o lugar e o objeto

por excelência dos conflitos sociais (BACZKO, 1985). Utilizaremos as conceituações feitas

por Bronislaw Baczko (1985) e Juan-Luis Pintos (1995) para pensar o imaginário social.

De acordo Bronislaw Baczko (1985), o termo “imaginação”, acompanhada pelos

adjetivos “social” ou “coletiva”, ganhou terreno em fins da década de 60 no bojo dos

movimentos de contestação cultural, tanto na memória dos que vivenciaram os

acontecimentos de então como para os acadêmicos das ciências humanas que procuraram

entender suas causas. O autor chama a atenção para o fato de o termo “imaginário” ter

sofrido, durante a segunda metade do século XX, uma dupla trajetória que o dissociou cada

vez mais dos significados de “ilusório” ou “quimérico”, ao mesmo tempo em que seu uso era

estendido a outras áreas que não apenas a das belas-artes.

A característica marcante, no entendimento de Baczko, acerca dos imaginários sociais

é sua fluidez no sentido de demarcação entre os domínios objetivos e subjetivos na prática dos

sujeitos.

Segundo o autor, tratar da experiência do cotidiano, naquilo que nela é tomado como

corriqueiro e usual, é vital no entendimento do imaginário social. Esta experiência é pensada

em termos das ações dos sujeitos – no nosso caso, os evangélico-pentecostais –, mediante

uma gnosiologia que abarca vivências outras que não apenas aquelas aquilatadas dentro dos

quadros explicativos de uma razão positiva. Entram aqui, como diz Baczko, os desejos, as

aspirações e as motivações que são, se não de todo inapreensíveis, ao menos extremamente

fugidias ao discurso do método nas ciências humanas (BACZKO, 1985). Tais constelações de

22

representações lastreiam e canalizam as manifestações emotivo-volitivas rumo à identificação

com determinado grupo social, como no caso dos evangélico-pentecostais.

A potencia unificadora dos imaginários sociais é assegurada pela fusão entre

verdade e normatividade, informações e valores, que se opera no e por meio

do simbolismo. Com efeito, o imaginário social informa acerca da realidade,

ao mesmo tempo que constitui um apelo a ação, um apelo a comportar-se de

determinada maneira. Esquema de interpretação, mas também de

valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de

valores e intervém eficazmente nos processos da sua interiorização pelos

indivíduos, modelando os comportamentos, capturando as energias e, em

caso de necessidade, arrastando os indivíduos para uma ação comum

(BACZKO, 1985: 311).

A experiência do que se acredita ser o real está inerentemente ligada ao filtro

interpretativo das vivências sociais. Os feixes de percepções que possibilitam ao sujeito “ir até

o real” e os conceitos com os quais tais percepções serão interpretadas encontram, segundo

Baczko, seu fundamento no imaginário social. Deste modo, um ato de “humanização” por

parte de algum sujeito alinhado com determinada identidade pode ser percebido como

verdadeira “desumanização” por parte de sujeitos sociais doutras identidades. O que o crente

entende ser uma atitude de sua parte que possibilita a “salvação” do umbandista, por exemplo,

pode ser lido, pelo próprio umbandista como uma total desumanização de suas crenças e

convicções.

Em qualquer caso os imaginários sociais têm uma função primária que se

poderia definir como a elaboração e distribuição generalizada de

instrumentos de percepção da realidade social construída como realmente

existente. […] Teríamos, portanto que a primeira função ou definição dos

imaginários sociais tem a ver com a instrumentação do acesso ao que se

considere realidade por meio de coordenadas espaços-temporais específicas.

[…] Assim [o imaginário social] não se constitui como campo específico de

conhecimento objetivo ou de projeções de desejos subjetivos, mas estabelece

uma matriz de conexões entre diferentes elementos da experiência dos

indivíduos e das redes de ideias, imagens, sentimentos, carências e projetos

que estão disponíveis em um âmbito cultural determinado (PINTOS, 1995:

s/p).

Desse modo, a tentativa de abordar o imaginário social pode ser comparada com o

enfrentamento entre Perseu e Medusa. Perseu seria transformado em pedra se olhasse nos

olhos de Medusa. Mas, Perseu precisava enfrentá-la. Como fazê-lo sem quedar transformado

em estátua sem vida? Como Perseu, precisamos buscar uma saída metodológica ao

abordarmos a desconcertante riqueza inerente ao imaginário social. Pois, se abordarmos

diretamente o imaginário social reificando-o, inescapavelmente receberemos os olhos opacos

da estátua que perdem toda complexidade e riqueza da vida. Corremos sério risco de ambos,

23

sujeito e objeto, produzirmos uma leitura empobrecida. Um método que pretendesse incidir

diretamente sobre o imaginário social poderia degringolar a pesquisa numa fixação estranha a

própria dinâmica e fluidez do real. O social desapareceria na objetivação de um quadro de

referências pretensamente inteligível.

Para evitar que isto aconteça colocaremos nossa atenção na análise de determinadas

representações coletivas e nas relações que são estabelecidas entre elas, mapeando

indiretamente o imaginário social evangélico-pentecostal em busca das continuidades

históricas no que tange à Batalha Espiritual. Utilizaremos as propostas de Roger Chartier

(2007) para trabalharmos com o conceito de representações coletivas.

En efecto, esa noción [representação] permite vincular estrechamente las

posiciones y las relaciones sociales con la manera en que los individuos y los

grupos se perciben y perciben a los demás. […] Las representaciones

colectivas […] incorporan en los individuos, bajo la forma de esquemas de

clasificación y juicio, las divisiones mismas del mundo social. Son ellas las

que transmiten las diferentes modalidades de exhibición de la identidad

social o de la potencia política tal como las hacen ver y creer los signos, las

conductas y los ritos (CHARTIER, 2007: 70).

Por intermédio das representações coletivas, podemos vincular posições e relações

sociais às percepções de juízo e de valor que os evangélico-pentecostais utilizam tanto para

demarcar seu espaço social quanto para inscrever o(s) outro(s) no espaço imaginário

designado para ele(s). Desse modo, podemos rastrear as representações coletivas não como

reflexos verdadeiros ou mentirosos da realidade, mas sim como entidades que vão construindo

as divisões mesmas do mundo social. Como escreve Chartier,

[…] esas representaciones colectivas y simbólicas hallan, en la existencia de

representantes, individuales o colectivos, concretos o abstractos, los garantes

de su estabilidad y su continuidad. […] Las representaciones no son simples

imágenes, verídicas o engañosas, de una realidad que les sería externa.

Poseen una energía propria que persuade de que el mundo o el pasado es, en

efecto, lo que dicen que es. En ese sentido, producen las brechas que

fracturan a las sociedades y las incorporan em los individuos (CHARTIER,

2007: 70-73).

Respondendo aos desafios epistêmicos colocados à história como disciplina nos anos

oitenta, Roger Chartier propôs uma saída conciliadora aos dois grandes paradigmas que

polarizaram as produções nas ciências humanas durante o século XX. Por um lado, uma

corrente em débito com a filosofia do sujeito que escamoteia os condicionamentos sociais

triunfalizando a ação individual; por outro lado, propostas eminentemente estruturalistas de

análise nas quais os sujeitos acabam aparecendo como meros “suportes” das estruturas sociais

(CARVALHO, 2005). A saída proposta por Chartier, que tomaremos de empréstimo para

24

realizar nossa análise, encontra sua possibilidade no tratamento que o autor faz das

representações coletivas.

Para fundamentar a pesquisa, em termos das fontes documentais, buscávamos acesso

aos escritos doutrinários da Assembléia de Deus que datassem das primeiras décadas do

século XX. Nos meses iniciais de trabalho acreditamos que só poderíamos realizar nossas

análises embasados nas letras das músicas do hinário “Harpa Cristã”, cancioneiro oficial das

Assembléias de Deus, haja vista não termos encontrado arquivos que mantivessem a

documentação necessária. Contudo, com o avanço das pesquisas, viemos a conhecer e

adquirir a coleção “Artigos Históricos - Mensageiro da Paz” (2004), publicada pela CPAD

(Casas Publicadoras das Assembléias de Deus). A coleção, composta por três volumes, traz

como subtítulo “Os artigos que marcaram a história e a teologia do Movimento Pentecostal no

Brasil”. Foi organizada por uma comissão editorial assembleiana que levou em consideração

as tradições e doutrinas ainda vigentes no seio das Assembléias de Deus.

O jornal “Mensageiro da Paz” foi fundado durante a Primeira Convenção Geral das

Assembléias de Deus em 1930 e ainda se encontra em circulação. A importância deste veículo

de comunicação pode ser reconhecida em sua função de propagador dos fundamentos

teológicos do pentecostalismo durante a primeira metade do século XX. Como ainda não

haviam escolas teológicas alinhadas ao pentecostalismo, o jornal assumia o papel de formação

inicial do corpo de membros e obreiros das Assembléias. O primeiro volume dos “Artigos

Históricos - Mensageiro da Paz” ainda reúne vinte artigos dos jornais percussores: “Boa

Semente” e “Som Alegre”. Estes dois periódicos assembleianos cobrem o período de 1911 a

1930. Ou seja, com a aquisição desta coleção, havia sido sanado o problema do acesso aos

documentos oficiais – no caso, os jornais – que nos dão acesso à suma teológica do

pentecostalismo clássico.

Para cumprir nossa proposta utilizamos documentação concernente, também, às ideias

neopentecostais de fé. O acesso aos conteúdos da teologia e dos dogmas referentes ao

neopentecostalismo, por sua relativa novidade, foi-nos menos problemática. Encontramos

nossa fonte na vasta produção literária do Bispo Edir Macedo, fundador da IURD. Realizamos

uma triagem do material, escolhendo para a análise os seguintes livros: “Nos Passos de Jesus”

(2001), “O Poder Sobrenatural da Fé” (2007) e “Orixás, Caboclos & Guias, deuses ou

demônios?” (2008). Os critérios para a escolha foram os seguintes: a natureza do tema

trabalhado – procuramos aquelas obras que explicitassem as características básicas das

crenças iurdianas – e o sucesso de vendagem (os três livros são considerados Best-sellers).

25

As letras das canções de louvor também se configuraram numa rica fonte documental

para o estudo das representações coletivas dos evangélico-pentecostais. Os cantos que foram

analisados nesta dissertação apresentam em seu conteúdo, em grande medida, metáforas de

combate e/ou reproduzem as representações coletivas que compõem o arcabouço identitário.

Nestes cantos, por nós denominados “cantos de batalha”, está presente um forte apelo à

vivência, à experiência da Batalha Espiritual, exatamente por serem explícitas as menções à

luta e ao enfrentamento com as forças espirituais malignas que, por sua vez, podem agir por

intermédio da vida, das escolhas, das aspirações e práticas dos que não são evangélico-

pentecostais (os “gentios”). Além disso, ao enfatizar o combate, tais construções discursivas

muitas vezes acabam por descrever também os métodos, campos de batalha e inimigos contra

os quais o crente precisa munir-se de “poder espiritual”.

Deste modo, a Harpa Cristã, citada a pouco, serviu-nos como fonte documental

primaz. A primeira edição da Harpa data de 1922 e foi desenvolvida para suprir as

necessidades da marcação de diferença entre os fiéis da primeira geração das Assembléias de

Deus e as igrejas protestantes históricas. Os “pais fundadores” das Assembléias sentiram que

a doutrina pentecostal não estava, de todo, sendo enfocada pela coleção de cânticos em uso.

Os fiéis de então utilizavam como hinário a coleção Salmos e Hinos. Esta coleção, por sua

vez, foi organizada (1861) por Dr. Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley e contava com,

aproximadamente, 50 cânticos. Os Salmos e Hinos não refletiam a nova realidade teológica,

doutrinária e de usos e costumes que surgiam com o movimento pentecostal nas primeiras

décadas do século XX. Escolhemos este cancioneiro como fonte para prospecção de material

documental de análise pelo fato de ainda serem muito utilizados seus hinos, não só nas

Assembléias de Deus como também noutras denominações evangélico-pentecostais. Outro

grupo de canções foi levantado mediante estudo do hinário oficial da IURD, “Louvores do

Reino”. Às canções provenientes deste hinário, acrescentamos as produções de três nomes

influentes em matéria de aceitação musical no meio evangélico-pentecostal (marcadamente

entre os iurdianos) nos últimos vinte anos: o grupo de louvor Diante do Trono, a pastora

cantora Ludimila Ferber e a cantora Cassiane.

Deste modo, a Batalha Espiritual se nos dará a partir do complexo de representações

coletivas que sustentam o binarismo primário “nós/outros” e que, em última instância,

concorre para a demonização do outro que os evangélico-pentecostais constroem para si. Essa

construção se dá mediante a atualização de seu imaginário social desdobrado nas

representações coletivas que sustentam sua identidade. Tais discursos cristalizam certas

26

posturas – “o guerreiro”, “o segador”, “o ungido de Deus”, “o vencedor” – que o crente

assume ao vivenciar a Batalha Espiritual como mais adiante veremos.

Esta dissertação foi organizada em quatro capítulos que, pretendemos, realizam os

objetivos propostos nesta introdução.

O primeiro capítulo apresenta um histórico das igrejas evangélico-pentecostais

escolhidas como representantes, respectivamente, do pentecostalismo e do

neopentecostalismo: a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus.

Discutiremos os antecedentes históricos do pentecostalismo para situarmos a origem e

formação das mencionadas denominações. Apresentaremos, também, uma discussão

bibliográfica sobre as tipologias do pentecostalismo brasileiro com a intenção de elucidar a

proposta e o uso que fazemos do conceito de “evangélico-pentecostais”.

O segundo capítulo trabalha a questão da constituição da identidade evangélico-

pentecostal. Buscamos apresentar e discutir como se organizam as representações coletivas

que imprimem sentido à Batalha Espiritual e a tornam parte constituinte do imaginário social

evangélico-pentecostal. Aprofundamos a discussão pontuando as representações coletivas

presentes nos documentos analisados para, desse modo, propor um arcabouço identitário –

composto por sete representações coletivas – comum aos fiéis pentecostais das Assembléias

de Deus e aos iurdianos.

No terceiro capítulo realizamos a análise dos “cantos de batalha”. Buscamos

corroborar a validade do arcabouço identitário evangélico-pentecostal ao expor a manutenção

das experiências de conflito por meio dos hinos de louvor e de adoração. E, por fim, no quarto

capítulo analisamos o Episódio Vaca Brava por intermédio das publicações do jornal

goianiense Diário da Manhã. Evento de embate que, apesar de não ter sido encabeçado por

assembleianos ou iurdianos, contou com sua aprovação e materializou todo o discurso de

demonização do outro característico da Batalha Espiritual.

27

1. Pentecostalismo e Neopentecostalismo: as igrejas Assembléia de Deus e

Universal do Reino de Deus

1.1. Antecedentes históricos do Pentecostalismo

Neste capítulo trataremos da história do pentecostalismo. Apresentaremos, também,

uma discussão acerca das tipologias mais utilizadas nos estudos sobre os pentecostais e

analisaremos, sucintamente, a trajetória em solo brasileiro de duas denominações

proeminentes no campo: a Assembléia de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus

(IURD). Antes de desenvolvermos a discussão sobre as tipologias que dividem os

pentecostais do século XX, cumpre, minimamente, conhecer a história do movimento

pentecostal.

O movimento pentecostal é historicamente tributário dos movimentos de

“avivamento” ou “reavivamento” ocorridos ainda no seio das igrejas protestantes históricas

inglesas e norte americanas nos séculos XVIII e XIX. Segundo E. Evans (s/d), um autor

evangélico escrevendo sobre o tema, podemos entender que a história dos avivamentos seria:

[…] a história dos tratamentos bondosos de Deus para com os homens. É

aquilo que Jonathan Edwards denominou de “a história da redenção,” e

como tal, é a única história verdadeira, isto é, é o único estudo do passado

que se acha adequadamente “em perspectiva,” pois alí (sic.) estão delineados

a revelação e o desenvolvimento do propósito soberano de Deus. Portanto,

encará-lo como mero exercício intelectual, manifesta uma baixa avaliação do

significado, implicações e consequências do reavivamento. O assunto está

cheio, não apenas de interesse, mas também de instrução; e aquele que leva a

sério o estudo dos reavivamentos, não irá muito longe sem envolver-se

intimamente e ocupar-se fervorosamente com as questões que surgem. Não

pode haver neutralidade ou passividade aqui, pois este estudo desafia a fé,

incentiva a oração e motiva o louvor (EVANS, s/d: 01).

O avivamento pode ser entendido como uma re-encenação do primeiro Pentecostes.

Segundo a Bíblia de Estudos Plenitude (2001), o Pentecostes era uma festividade judaica

ocorrida anualmente. Também chamada “Festa das Semanas” ou “Dia dos Primeiros Frutos”,

quando eram celebradas as primícias das colheitas israelitas. Em Deuteronômio 16:16 exige-

se, pela lei estabelecida conforme os mandamentos de Deus, que os judeus homens fossem à

Jerusalém três vezes ao ano para comemorar as principais festas: a Páscoa, na primavera;

Pentecostes (gr. Pentekostos, “cinqüenta”), sete semanas e um dia depois da Páscoa; e a Festa

dos Tabernáculos, ao final da colheita de outono.

28

Cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;

e, de repente, veio do céu um som, como de um vento veemente e

impetuoso, e encheu toda casa em que estavam assentados. E foram vistas

por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada

um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em

outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem (Atos

2:1–4) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1105-1106).

A tradição cristã acredita que foi na celebração de Pentecostes que, pouco depois da

crucificação de Jesus, ocorreu o que foi acima relatado. Pedro e os demais seguidores do

Cristo se reuniam em oração quando foram “batizados” pelo Espírito Santo e manifestaram

um dom espiritual, marca distintiva dos pentecostais, o qual seja: a capacidade de falar em

línguas estranhas (Glossolalia). Prosseguindo a leitura do texto vamos encontrar, a partir do

versículo 14 do mesmo capítulo, o discurso proferido por Pedro, o apóstolo que assumiu as

funções de líder da nova religião nascente. De acordo com sua interpretação do fenômeno, o

que se passava não era nada mais do que o cumprimento de uma profecia escrita no livro de

Joel, no Velho Testamento, a saber:

E há de ser que, depois, derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e

vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos terão sonhos, os

vossos jovens terão visões. E também sobre os servos e sobre as servas,

naqueles dias, derramarei o meu Espírito. E mostrarei prodígios no céu e na

terra, sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a

lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor. E há de

ser que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no

monte Sião e em Jerusalém haverá livramento, assim como o Senhor tem

dito, e nos restantes que o Senhor chamar (Joel 2:28–32) (BÍBLIA de

Estudos Plenitude, 2001: 867-868).

Os evangélico-pentecostais, enquanto herdeiros autonomeados do cristianismo

primitivo, acreditam que com a morte do Cristo realizou-se a promessa do envio do

Consolador, o Espírito Santo, que capacitaria os jovens cristãos a cumprir sua Grande

Comissão: a pregação da palavra de Deus e a conversão do maior número possível de pessoas

à fé no Cristo ressurreto. Deste modo, o Espírito Santo infundiria na comunidade dos irmãos

uma atmosfera de santidade permeada por muita oração acompanhada pela ocorrência de

eventos maravilhosos (EVANS, s/d). Este é o caso dos avivamentos. Nas conjunturas de

avivamento ocorre um recrudescimento das evangelizações missionárias nos bairros próximos

das igrejas avivadas. Logo a mensagem de visitação do Espírito se espalha por cidades

vizinhas podendo até mesmo ocorrer o envio de equipes missionárias a outros estados ou

países. Os avivamentos dos séculos XVIII e XIX seriam, segundo Mendonça e Velasques,

originariamente entendidos como instrumentos sociais e técnicas para levar pessoas a terem

um contato imediato com Deus (MENDONÇA & VELASQUES,1990).

29

Uma breve apresentação da história dos avivamentos nos séculos XVIII e XIX se faz

interessante na medida em que podemos reconhecer os rudimentos do entendimento e

vivências de fé pentecostais sendo gestados nalgumas práticas das igrejas protestantes

históricas inglesas e norte-americanas. Os avivamentos começaram nesses dois países quase

simultaneamente. Em 1734, na cidade de Northompton, nos Estados Unidos, começou o

primeiro avivamento de grandes proporções com as pregações sobre a justificação pela fé do

pastor congregacional Jonathan Edwards (1703-1758). Posteriormente, Edwards recebeu o

auxílio de George Whitefield (1714-1770), também pregador de multidões. Simultaneamente,

John Wesley (1703-1791), que conheceu Whitefield quando ambos estudavam em Oxford,

realizava inúmeras campanhas de pregações através da Inglaterra. Além disso, John Wesley

esteve em missão por dois anos, durante a juventude, na colônia norte-americana de Geórgia.

Foi John Wesley, influenciado pelo puritanismo e pelo pietismo, quem deu início à prática

metodista de fé, sendo assim chamada por aplicar métodos de controle de tempo às atividades

devocionais.

Enquanto estudava em Oxford, ajuntava-se ali um pequeno grupo dos

estudantes para orar, estudar as Escrituras juntos diariamente, jejuar as

quartas e sextas-feiras, visitar os doentes e encarcerados e confortar os

criminosos na hora da execução. Todas as manhãs e todas as noites cada um

passava uma hora orando sozinho em oculto. Nas orações paravam de vez

em quando para observarem se oravam com o devido fervor. Sempre oravam

ao entrar e ao sair dos cultos na igreja. Três dos membros desse grupo, mais

tarde tornaram-se famosos entre os crentes: 1) João Wesley, que talvez tenha

feito mais que qualquer outro para aprofundar a vida espiritual, não somente

de então, mas também de nosso tempo; 2) Carlos Wesley, que chegou a ser

um dos mais espirituais e famosos escritores de hinos evangélicos; e 3) Jorge

Whitefield, que se tornou o comovente pregador ao ar livre. (BOYER, 1985:

64).

As preleções e performances dos pastores dos avivamentos do século XVIII no púlpito

objetivavam evocar o máximo de emotividade de seus ouvintes. Colocar o foco das pregações

e das práticas de fé nos arroubos emocionais, fomentando-os nos fiéis, é, de fato, uma

característica marcante dos avivamentos. Conta-se que o famoso sermão de Jonathan

Edwards, Pecadores nas mãos de um Deus irado, fazia com que aqueles que estavam na

assistência se agarrassem aos bancos em desespero acreditando que estavam prestes a serem

tragados pelo inferno. Jonathan Edwards, a propósito, foi um dos primeiros a organizar o

30

pensamento teológico14

que sustentou os grandes avivamentos dos séculos XVIII e XIX.

Transcrevemos uma passagem da preleção de Edwards:

“Aí está o Inferno com a boca aberta. Não existe coisa alguma sobre a qual

vós vos possais firmar e segurar. Entre vós e o Inferno existe apenas a

atmosfera... Há, atualmente, nuvens negras da ira de Deus pairando sobre

vossas cabeças, predizendo tempestades espantosas, com grandes trovões. Se

não existisse a vontade soberana de Deus, que é a única coisa para evitar o

ímpeto do vento até agora, seríeis destruídos e vos tornaríeis como a palha

da eira... O Deus que vos segura na mão, sobre o abismo do Inferno, mais ou

menos como o homem segura uma aranha ou outro inseto nojento sobre o

fogo, durante um momento, para deixá-lo cair depois, está sendo provocado

ao extremo... Não há que admirar, se alguns de vós com saúde e calmamente

sentados aí nos bancos, passarem para lá antes de amanhã...” (BOYER,

1985: 56).

Até o final de 1734, o avivamento se espalharia por vários Estados da colônia norte-

americana. Os pregadores sempre centralizavam em suas mensagens a incapacidade do

homem de se autojustificar por meio de suas próprias obras. Os avivalistas organizavam

reuniões de oração e instavam na conversão de seus ouvintes. A conversão estava

visceralmente ligada à emoção e à percepção de si como totalmente à mercê de poderes

espirituais tremendamente assombrosos, tanto para o bem quanto para o mal. Tais poderes

espirituais estavam dissimulados nas rotinas pecaminosas da banalidade cotidiana e

moldavam a vida de perdição. Quem agia por meio do pecado estava a serviço da ação de

Satanás.

Quanto àqueles que buscavam a vida de santificação, por meio da cumplicidade na

morte de Cristo ao mortificarem-se no afastamento das práticas detestáveis deste mundo de

pecados, faziam-se agentes das forças espirituais celestiais. Assim, o ser humano era

maniqueisticamente entendido como um títere dos poderes espirituais. Dava-se enorme

importância ao destino último da alma humana: Céu ou Inferno.

O temor que tal temática impingia aos ouvintes aumentava exponencialmente as

inclinações à vivência da conversão. Orlando Boyer, em seu livro Heróis da fé (1985),

apresenta uma descrição feita por um contemporâneo dos cultos presididos pelo avivalista

Whitefield.

“Quase nunca pregava sem chorar e sei que as suas lágrimas eram sinceras.

Ouvi-o dizer: ‘Vós me censurais porque choro. Mas, como posso conter-me,

quando não chorais por vós mesmos, apesar das vossas almas mortais

14

A teologia por detrás dos avivamentos desse período ficou conhecida como teologia da Nova Inglaterra (New

England Theology). Foi uma escola teológica congregacional surgida na década de 1730 fundamentados nos

escritos de Edwards no Estado de Nova Inglaterra (EUA).

31

estarem à beira da destruição? Não sabeis se estais ouvindo o último sermão,

ou não, ou se jamais tereis outra oportunidade de chegar a Cristo!’. Chorava,

às vezes, até parecer que estava morto e custava a recuperar as forças”

(BOYER, 1985: 75-76).

Noutra passagem, Boyer apresenta trechos da autobiografia de Whitefield que servem

para entendermos melhor o andamento dos cultos de avivamento do século XVIII.

“Oh! Quantas lágrimas foram derramadas, com forte clamor, pelo amor do

querido Senhor Jesus! Alguns desmaiavam e quando recobravam as forças,

ouviam e desmaiavam de novo. Outros gritavam como quem sente a ânsia da

morte. E depois de eu findar o último discurso, eu mesmo senti-me tão

vencido pelo amor de Deus que quase fiquei sem vida. Contudo, por fim,

revivi e, depois de me alimentar um pouco, estava fortalecido bastante para

viajar cerca de trinta quilômetros, até Nottingham. No caminho, a alma

alegrou-se cantando hinos. Chegamos quase à meia-noite; depois de nos

entregarmos a Deus em oração, deitamo-nos e descansamos na proteção do

querido Senhor Jesus. Oh! Senhor, jamais existiu amor como o teu! (...) No

dia seguinte em Fog’s Manor, a concorrência aos cultos foi tão grande como

em Nottingham. O povo ficou tão quebrantado que, por todos os lados, vi

pessoas banhadas em lágrimas. A palavra era mais cortante que espada de

dois gumes e os gritos e gemidos alcançavam o coração mais endurecido.

Alguns tinham semblantes pálidos como a palidez de morte; outros torciam

as mãos, cheios de angústia; ainda outros foram prostrados ao chão, ao passo

que outros caíam e eram aparados nos braços de amigos. A maior parte do

povo levantava os olhos para os céus, clamando e pedindo misericórdia de

Deus. Eu, enquanto contemplava, só podia pensar em uma coisa: o grande

dia. Pareciam pessoas acordadas pela última trombeta, saindo dos seus

túmulos para o juízo” (BOYER, 1985: 79-80).

Nos anos que se seguiram de 1760 até 1800 os avivamentos sofreram certo declínio.

Segundo Mendonça & Velasques (1990), uma das principais razões para o declínio foram os

desentendimentos que acabavam ocorrendo entre os ministros avivados e os ministros

protestantes históricos que não aceitavam as manifestações de emoção extremada como

indícios da ação do Espírito Santo. Em alguns casos chegaram a ocorrer cismas dentro das

igrejas, o que redundava na formação de denominações isoladas. Entretanto, apesar de os

grandes ajuntamentos públicos para ouvir sobre o dia do juízo fossem menos constantes

durante a segunda metade do século XVIII, outras iniciativas estavam surgindo. Uma das

iniciativas que mais se difundiu foi a dos acampamentos realizados em áreas rurais.

Os acampamentos eram reuniões destinadas a pregações, cânticos e orações,

realizadas fora da cidade, e duravam diversos dias. Assemelhavam-se muito

aos atuais acampamentos ou retiros espirituais praticados pelas Igrejas e

movimentos paraeclesiásticos no Brasil. Inicialmente, os acampamentos

destinavam-se a reuniões de estudos bíblicos e participação nos sacramentos.

Com o passar do tempo, transformaram-se em reuniões de evangelização,

nas quais predominavam manifestações emocionais violentas, semelhantes

32

às que ocorrem hoje nos cultos e reuniões pentecostais (MENDONÇA &

VELASQUES, 1990: 84-85).

Estes acampamentos serviram para gestar os avivamentos do século XIX. Ademais, o

século XIX foi palco de expressivas mudanças políticas, econômicas e sociais nos Estados

Unidos que preparariam terreno para uma nova temporada de avivamentos. O alargamento

das fronteiras geográficas, mediante compra e guerra, fez com que o espaço físico do país

saltasse de 2.223.000 quilômetros quadrados em 1783 para 7.710.000 quilômetros quadrados

em 1853. A cultura do “Destino Manifesto”, desdobrada na conquista e cristianização dos

territórios que ligavam o Atlântico ao Pacífico, moveu muitos pregadores a acompanharem a

marcha para o Oeste. Entretanto, os avivalistas puritanos e arminianos, protagonistas dos

avivamentos do século XVIII, academicizados e elitistas em demasia, não eram os mais aptos

a enfrentar o novo estilo de vida rústico do Oeste. Eles deram lugar aos metodistas, um novo

grupo que começava seus trabalhos nos Estados Unidos no século XIX. As bases do

movimento metodista provinham do arminianismo, do puritanismo e do pietismo. O

arminianismo era uma concepção teológica que sustentava que Deus oferecia a salvação a

todos os que aceitassem Jesus Cristo como salvador. Ou seja, negava ferrenhamente as

doutrinas de predestinação de Calvino que mitigavam a liberdade de escolha do indivíduo.

Assim, o destino final do homem estava condicionado à experiência da fé e não a um

predeterminismo de Deus (MENDONÇA & VELASQUES, 1990).

Do puritanismo os metodistas aprenderam que, apesar de não haver uma predestinação

absoluta, um a priori quanto à salvação, Deus dá a conhecer aqueles que lhe estão a agradar a

vontade a partir dos sinais exteriores. Estes sinais exteriores eram lidos tanto no

comportamento dos fiéis como também em seus rendimentos. Entretanto, como os sinais

externos nunca são muito claros, o fiel vivia esforçando-se para criá-los artificialmente.

Quanto mais bens terrenos uma pessoa possuir, mais certeza ela terá de que Deus lhe destina a

salvação.

O pietismo, por sua vez, contribuiu em vários pontos doutrinais para o

desenvolvimento do metodismo. Ao pregar a perfeição cristã, os pietistas introduziram o

ideário do progresso à conduta do crente. Fazia-se necessário buscar o progresso pessoal na

vida espiritual. Espírito e mundo têm suas características de antípodas exacerbadas. Ser

mundanizado era sinônimo de estar em pecado e perdido nas garras de Satã. Além disso, a

pregação acerca da cura divina, ou seja, o alcance do livramento das doenças e fatigas

humanas por meio da ação de Deus, encontra no pietismo da primeira metade do século XIX

33

seu nicho de desenvolvimento (SIEPIERSKI, 2008). Mendonça & Velsques (1990) sintetizam

as características do pietismo.

A salvação não devia ser esperada para depois da morte, mas era realidade

presente, como realização subjetiva individual. As disputas teológicas eram

consideradas irrelevantes e até mesmo prejudiciais à fé individual. O que

importava era a presença de Cristo no coração. O pietismo era um

movimento eminentemente leigo. Partindo da doutrina luterana do

sacerdócio universal do cristão, afirmava que todo crente era ministro de

Deus e administrador de sua palavra (MENDONÇA E VELASQUES, 1990:

95).

A partir dessas bases teológicas e doutrinais, o metodismo definiu condutas e práticas

que davam espaço para a ação individual sem desconsiderar a comunhão entre os fiéis. O

afastamento da “mundanidade”, a busca da perfeição cristã e a responsabilidade evangelística

são características ainda presentes, mesmo que com certas variações interpretativas, em

denominações pentecostais atuais.

Os presbiterianos e congregacionais inicialmente realizaram esforços para acompanhar

a marcha para o oeste. Estes, porém, acabaram se mostrando insuficientes devido ao alto grau

de preparo que era cobrado de seus pastores, preparo que não podia ser alcançado muito longe

dos centros teológicos da costa leste dos Estados Unidos. Em contrapartida, os metodistas

eram, em sua quase totalidade, leigos semi-alfabetizados, “vocacionados” por meio dos

acampamentos de avivamento. Falavam a linguagem dos colonos e estavam dispostos a seguir

a marcha sem fixar-se numa determinada localidade. Os pregadores metodistas deste molde

eram muitos e espalharam-se com rapidez pelos novos territórios.

Em meados da segunda metade do século XIX, com a paulatina sedentarização e

formação de cidades até a costa oeste, a balança começou a pesar para as igrejas

presbiterianas e congregacionais. O despreparo e a falta de prestígio social dos metodistas

começaram a se fazer sentir quando da chegada de pastores melhor preparados de outras

denominações. Um processo de migração denominacional se estabeleceu, fazendo com que os

metodistas perdessem muitos de seus membros para os recém chegados. A solução para a

perda de seguidores foi encontrada pelos metodistas ao estabelecerem seminários e faculdades

de teologia por todo o novo território.

O acirramento das contradições sociais que acompanharam o movimento de

industrialização que avançou para o oeste na segunda metade do século XIX – com o

inescapável acirramento de lutas entre uma classe explorada e outra exploradora –,

proporcionou nova assistência aos movimentos de avivamento que ocorreram na virada do

34

século. Estes, todavia, já são considerados avivamentos pentecostais, os quais redundaram no

envio de missionários para várias partes do globo, inclusive para o Brasil.

A característica que marca a diferença entre os avivamentos do século XVIII e

primeira metade do século XIX dos avivamentos pentecostais de fins do século XIX e início

do XX é o falar em línguas estranhas, a glossolalia. O falar em línguas estranhas foi tomado,

em fins do século XIX, como o indício, por excelência, do batismo com o Espírito Santo. Os

dois pastores considerados os iniciadores do pentecostalismo, como movimento que aceita a

contemporaneidade dos dons do Espírito Santo, foram Charles Fox Parham e William Joseph

Seymour.

Charles Parham é considerado o pioneiro do pentecostalismo nos EUA.

Através de sua direção, estudantes da Escola Bíblica de Betel, em Topeka,

Kansas, foram ensinados a buscarem pela verdadeira evidência do

recebimento do Espírito Santo através do estudo do capítulo segundo do

livro de Atos dos Apóstolos. Uma das alunas, Agnes Ozman, em 01 de

janeiro de 1901, se tornou a primeira a falar em línguas estranhas,

experimentando, segundo ele, a evidência inicial do derramamento do

Espírito Santo da mesma forma que os apóstolos no dia de Pentecostes. Nos

dias posteriores a esse acontecimento, o próprio Parham e outros estudantes

passaram pela mesma experiência. Posteriormente, ele iniciou a publicação

de um periódico quinzenal, denominado Apostolic Faith, que se tornou o

principal veículo de difusão de seus ensinamentos. […] O afro-americano

William Seymour também é considerado um dos mais importantes líderes da

primeira geração pentecostal. Após ouvir Charles Parham em Houston,

Texas, ele recebeu um convite para pastorear uma pequena comunidade em

Los Angeles. Teve um papel destacado no movimento conhecido como

Azusa Street Mission. Ele e seus discípulos contribuiram para dar um caráter

mundial ao nascente pentecostalismo, visto que este movimento se tornou

um grande centro de difusão da mensagem pentecostal. (GUIMARÃES,

2005: 35)

Uma vez que abordamos o pentecostalismo em suas matrizes anglo-americanas,

cumpre-nos falar dos desdobramentos desse movimento no Brasil. Quando os primeiros

missionários pentecostais chegaram ao país, já existiam aqui alguns contingentes

significativos de protestantes desde meados do século XIX, apesar da dominância do

catolicismo como religião popular. Estes protestantes, todavia, dadas as características

doutrinárias e teológicas de suas práticas específicas – que não entram no escopo de nossa

discussão – não haviam empreendido campanhas proselitistas em larga escala. Foram os

pentecostais que desafiaram, durante o correr do século XX, a tradicional dominância católica

do imaginário popular. Acompanhando as trajetórias das igrejas evangélico-pentecostais de

maior expressividade – em termos de membresia –, AD e IURD, vislumbramos grande parte

do processo de constituição histórica dos pentecostalismos brasileiros.

35

[…] Reunidos pela crença e pelos conceitos teológicos de salvação pessoal,

de santidade, de cura divina, do batismo com o Espírito Santo como

autoridade para o ministério, e pela expectativa do iminente retorno de Jesus

Cristo, eram amplamente providos de uma grande motivação para dar ao

despertamento verificado entre eles um impacto de longo alcance (tradução

nossa). Estes movimentos relacionavam escatologia e pneumatologia. A

crença na atualidade da experiência do derramamento do Espírito Santo, à

semelhança dos tempos apostólicos, sinalizava que os últimos dias haviam

chegado. E esta dupla percepção contribuiu para que um sentido de urgência

se acercasse dos primeiros pentecostais, razão porque um intenso movimento

missionário se alastrou pelo próprio EUA e pelo mundo, nas duas primeiras

décadas do século XX. (GUIMARÃES, 2005: 36).

Contudo, antes de apresentarmos a discussão da formação das igrejas evangélico-

pentecostais que foram eleitas como eixo de nossa análise, faz-se necessário que munamo-nos

dos conceitos básicos que presidem os estudos sobre o pentecostalismo. Passamos, assim, a

apresentar as tipologias mais caras aos pesquisadores do movimento pentecostal brasileiro

para, logo após, prosseguirmos com a apresentação das trajetórias históricas da igreja

Assembléia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus.

1.2. As tipologias do pentecostalismo brasileiro

Os autores que desenvolveram estudos acerca do pentecostalismo concordam e

reconhecem esta religiosidade específica como um fenômeno pertencente ao século XX. Os

pontos de desacordo se encontram em como objetivar o pentecostalismo por meio dos recortes

tipológicos. De acordo com Freston (1992), a primeira onda de avivamento brasileira teria

durado de 1910 até 1950, fundamentada no movimento pietista de intensificação da fé que

ocorreu nos EUA no final do século XIX, especialmente dentro das igrejas metodistas que,

como vimos, valorizavam, acima de tudo, o batismo com o Espírito Santo, detectado pelo

falar em línguas estranhas, a glossolalia.

A segunda onda durou de 1950 até fins da década de 70. Teve a cidade de São Paulo

como seu centro de difusão, sendo que a tônica das pregações foi dada pela ênfase teológica

no dom de cura divina. Freston reconhece a segunda onda marcadamente como um momento

de pulverização com o surgimento de dezenas de pequenas denominações. Três grandes

grupos formaram-se neste período: A Igreja Quadrangular (antiga Cruzada), em 1951; a Brasil

Para Cristo, em 1955; e a Deus é Amor, em 1962.

A terceira onda começou no final dos anos 70 e ganhou força no decorrer dos anos 80.

Freston propõe que o palco desta onda foi o Rio de Janeiro. Caracterizou-se como um boom

de novas denominações evangélicas que incorporaram em seu discurso a Teologia da

36

Prosperidade proveniente dos púlpitos norte-americanos de meados dos anos 40 – firmada

como doutrina em meados da década de 70. A ênfase recai agora no poder que possui o fiel de

reivindicar das potestades espirituais – os poderes divinos – o direito de gozar do melhor

desta terra (MARIANO, 1999). Sua prosperidade será, assim, diretamente proporcional à sua

fidelidade para com os mandamentos do Senhor, sendo o mais citado e, tema das mais

piedosas preleções, o mandamento que dá conta do pagamento do dízimo dos rendimentos do

fiel para sustento da “obra”. A mais conhecida igreja que surge nesse período é a Igreja

Universal do Reino de Deus (IURD), fundada em 1977 pelo pastor Edir Macedo. Podemos

citar também a Igreja Internacional da Graça de Deus, sob a liderança de seu cunhado, o

missionário R. R. Soares, além da Sara Nossa Terra (fundada no Distrito Federal), Luz Para

os Povos e a igreja Videira, estas últimas duas surgidas em solo goianiense, em fins da década

de 80 e meados da década de 90.

Brandão (1986) classifica os movimentos que surgiram depois da década de 50 – com

a Igreja do Evangelho Quadrangular, da missionária Aimee Semple McPerson, como ponta de

lança – sob o rótulo de “movimentos de cura divina” enquanto sugere que aqueles

provenientes da década de 90 seriam bem entendidos como “pequenas seitas”. Em sua

dissertação de mestrado, defendida em 1995, posteriormente transformada no livro

Pentecostais (1999), Ricardo Mariano realizou uma sociologia do novo pentecostalismo

brasileiro. O autor prefere utilizar os termos “pentecostalismo clássico” para as igrejas

surgidas na primeira onda, “deuteropentecostais”, ou pentecostalismo neoclássico, para

classificar as de segunda onda de Freston e “neopentecostais” para as igrejas surgidas após a

década de 70.

O argumento primordial de Ricardo Mariano é de que as características do sectarismo

e do ascetismo contracultural, atribuídos aos pentecostais pelos trabalhos acadêmicos dos

anos 60 e 70, não são mais suficientes para caracterizar tais religiosos, dadas as

transformações ocorridas em suas práticas nas últimas décadas do século XX. De fato, o

objeto específico com o qual trabalha Mariano são as igrejas neopentecostais formadas a

partir da década de 70, sendo estas as responsáveis pela constituição de outras relações com a

sociedade que lhes abarca.

As igrejas neopentecostais teriam servido, também, como exemplo para a atualização

e modificação de ritos e crenças das denominações pentecostais formadas nos anos 1910, 50,

60 e início dos 70 (MARIANO, 1999). Os processos de “neopentecostalização” das

denominações anteriores não possuiriam, segundo o autor, um caráter de inversão de crenças

ou negação completa da tradição, apesar de haver acréscimo de elementos novos, como a

37

Teologia da Prosperidade. Estas transformações, antes, ocorrem como uma mudança de

ênfase teológica de alguns elementos já presentes em suas doutrinas, axiologia e liturgia.

Tornaram-se, com respaldo e estímulo religiosos, mais imediatistas e

pragmáticos. Isto é, antes de irem viver eternamente ao lado de Deus, futuro

para o qual se crêem destinados, eles querem gozar, ao máximo, com tudo a

que têm direito e sem a menor culpa moral, esta vida e o que julgam haver

de bom neste mundo. Almejam, em suma, a felicidade. Boa fortuna que, com

seus óculos religiosos, testemunham e retraduzem, apesar de sua terrível

condição social, em termos de bem-estar pessoal, progresso material e até

consumo de bens de alto valor monetário (MARIANO, 1999: 08-09).

Mariano esclarece que o termo evangélico, na América Latina, faz menção às

denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestante européia do século

XVI, designando, assim, tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana,

Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais (Congregação Cristã

no Brasil, Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor,

Casa da Benção, Universal do Reino de Deus etc.). Em linhas gerais, as características que

marcam as diferenças entre o pentecostalismo, nascido nos EUA no início do século XX, e o

protestantismo seriam, segundo Mariano,

[…] pregar, baseado em Atos 2, a contemporaneidade dos dons do Espírito

Santo, dos quais sobressaem os dons de línguas (glossolalia), cura e

discernimento de espíritos. Para simplificar, os pentecostais, diferentemente

dos protestantes históricos, acreditam que Deus, por intermédio do Espírito

Santo e em nome de Cristo, continua a agir hoje em dia da mesma forma que

no cristianismo primitivo, curando enfermos, expulsando demônios,

distribuindo bênçãos e dons espirituais, realizando milagres, dialogando com

seus servos, concedendo infinitas amostras concretas de Seu supremo poder

e inigualável bondade (MARIANO, 1999: 10).

Quanto às diferenças entre pentecostais clássicos e neopentecostais, Mariano

desenvolve as considerações tipológicas de Freston (1992), fazendo com que sua

argumentação explore especificamente esta questão. Os três grandes pontos de defasagem

entre pentecostais clássicos e neopentecostais podem ser evidenciados já na divisão dos

capítulos de sua obra: “a guerra contra o diabo”, “a teologia da prosperidade” e a

“liberalização dos tradicionais usos e costumes de santidade pentecostal”.

Elencando diversas pesquisas que registram a elevada taxa de crescimento apresentada

pelos pentecostais, o autor explica que tal crescimento se deu, em grande medida, nos estratos

mais pobres da população. Entretanto, Mariano nos alerta para o perigo de cairmos no

simplismo da interpretação que vê na correlação entre pobreza e pentecostalismo o único

motivo para tal expansão, pois, além de não explicar as razões do crescimento, a ligação

38

mecânica pobreza-pentecostalismo não lança luz sobre o problema da expansão desigual de

diferentes igrejas.

Paulo D. Siepierski, também pesquisador do segmento religioso pentecostal, em seu

artigo Contribuições Para Uma Tipologia do Pentecostalismo Brasileiro (2003), apresenta

suas conclusões acerca do estado da arte dos estudos concernentes à questão pentecostal. Para

ele, o pentecostalismo clássico, referente às duas primeiras ondas de Freston, possuía uma

uniformidade doutrinária que, a partir da década de 60, começou a ser adotada pelo

protestantismo histórico ao se pentecostalizar. Este protestantismo histórico, como já foi

mencionado, é representado pelas igrejas originadas com a Reforma. Ao se pentecostalizar,

tais igrejas, em sua maioria, acrescentavam o termo “Renovada” após sua designação

histórica.

Além destas metamorfoses sofridas pelas igrejas protestantes históricas, Siepierski

chama a atenção para o fato de que, a partir da década de 70, aquela unidade doutrinária que

marcava as igrejas provenientes das duas primeiras ondas foi rompida, sendo, portanto,

necessária a referência a esta religiosidade no plural. Segundo o autor seremos mais precisos

se falarmos em pentecostalismos.

Comentando uma das primeiras tipologias desenvolvidas para se estudar o

pentecostalismo na América Latina, a do teólogo e sociólogo suíço Lalive d'Epinay,

Siepierski alude aos três elementos básicos identificados por d'Epinay como características da

composição do imaginário do fiel: Cristocentrismo, Rigor Moral e Biblicismo. Sabendo que o

sociólogo suíço pesquisou e escreveu durante a década de 60, Paulo D. Siepierski aproxima-se

de sua tipologia de forma cautelosa. Sua atenção recai sobre o elemento do rigor moral

estudado por d'Epinay. Siepierski se pergunta sobre o quê se assentava este rigor moral. O

autor de Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo brasileiro faz com que seu

artigo gravite em torno da análise desta questão, haja vista que, em sua concepção, é

exatamente neste ponto, fundante da visão de mundo pentecostal, que iremos encontrar as

mais radicais mudanças doutrinais e, conseqüentemente, mudanças em suas práticas

identitárias.

Resumindo suas conclusões, Siepierski acredita ser completamente inadequada a

utilização do termo “neopentecostal” para entender as novas denominações surgidas a partir

de 70. Isto porque

A roda da história girou novamente, provocando um paulatino abandono do

pré-milenarismo e um lento, porém seguro, retorno ao pós-milenairismo.

[…] [Estas duas correntes de pensamento] têm se alterado na história do

39

cristianismo. Normalmente; o pré-milenarismo tem-se popularizado em

períodos de crise social e econômica. Já o pós-milenarismo é característica

de períodos de paz social e progresso econômico (SIEPIERSKI, 2008: 78-

80).

Tomando de empréstimo os conceitos temporais propostos por Koselleck (2006) para

sistematizar nossa análise, podemos dizer que a vida do cristão evangélico está em função de

um evento localizado em seu horizonte de expectativas: a volta de Cristo ou Parousia. Este

evento, uma das representações coletivas constituintes do arcabouço identitário que será

trabalhada em detalhes no capítulo segundo, é de suma importância para a manutenção da

Batalha Espiritual. Os fieis direcionam suas histórias pessoais para o cumprimento da

promessa messiânica e milenarista encontrada no livro de Apocalipse, capítulo 20.

E vi descer do céu um anjo que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia

em sua mão. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o diabo e

Satanás, e amarrou-o por mil anos. E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e

pôs selo sobre ele, para que não mais engane as nações, até que os mil anos

se acabem. E depois importa que seja solto por um pouco de tempo. E vi

tronos; e assentaram-se sobre eles aqueles a quem foi dado o poder de julgar.

E vi as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus e pela

palavra de Deus, e que não adoraram a besta nem a sua imagem, e não

receberam o sinal na testa nem na mão; e vieram e reinaram com cristo

durante mil anos (Ap 20:1–4) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1368).

Na Bíblia de Estudos Plenitude (2001), encontram-se alguns acréscimos, à guisa de

“respostas espirituais”, no final da edição. Transcrevemos abaixo, na íntegra, a resposta à

pergunta “O que é o milênio?”. O texto é de autoria de Pat Robertson e consta em seu livro

Respostas para as 200 perguntas mais cruciais da vida, direitos autorais de 1984.

Um milênio são mil anos. O milênio bíblico será um período de paz, amor e

irmandade, quando toda a natureza viverá na harmonia que era desejada no

jardim do Éden. O livro de Isaías (11.6-9) fala de um tempo, quando os

animais selvagens viverão em paz com os animais domésticos, quando as

serpentes não picarão mais. Uma criancinha poderá brincar em um ninho de

cobra ou guiar feras selvagens sem ser atacada. As escolas militares

fecharão, e os suprimentos de guerra não mais serão fabricados. O dinheiro e

recurso que agora vão para as guerras serão destinados aos fins pacíficos.

Quando esse dia vier, todas as pessoas terão seu próprio pedaço de terra, seu

próprio lar. Todos morarão em harmonia com seus vizinhos. Ninguém terá

medo de ter seus bens roubados. Haverá paz universal, pois o conhecimento

do Senhor encherá a terra como as águas cobrem o mar. Eu creio que o

milênio seja um período de transição, quando Jesus Cristo voltará a Terra

para mostrar à raça humana como teria sido se o pecado nunca tivesse

entrado no mundo. Será um tempo em que Jesus Cristo reinará como rei, e o

Reino de Deus será estabelecido na terra. Haverá um único governo mundial

sob a liderança de Jesus com estados-nações sujeitos a ele. A Bíblia diz que

representantes das nações da Terra virão a Jerusalém a cada ano (Is 2:2-4; Zc

14:16) (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1377).

40

Na Bíblia de Estudos das Profecias (2001), outra bíblia de estudos que também está

alinhada com as interpretações evangélico-pentecostais do texto histórico, podemos ler no

acréscimo “O milênio”:

O Milênio se refere ao reinado de mil anos de Cristo, encontrado em Ap. 20.

Muitas passagens do Antigo Testamento também apontam para uma época

durante a qual o rei davídico irá reinar sobre todas as nações do mundo. Há

trás visões principais a respeito do Milênio. O ponto de vista da presente

obra é pré-milenarista. De acordo com esse ponto de vista, Cristo retornará à

Terra (a Segunda Vinda) após a Tribulação. Ele reinará na Terra, em

Jerusalém, durante um período de mil anos, nos quais as promessas de Deus

feitas à nação de Israel serão cumpridas, incluindo a restauração de Israel à

Terra Prometida. Deus irá amarrar Satanás durante essa época e, depois, o

soltará durante um curto período. Satanás irá guerrear contra Cristo, somente

para ser derrotado e jogado no “lago de fogo” (Ap. 20:7,10). Então, Deus

destruirá tudo com fogo e estabelecerá um novo céu e uma nova Terra. Um

ponto de vista sobre o Milênio é o amilenista. Segundo esse ponto de vista,

não haverá um reinado de Cristo literalmente de mil anos na Terra. Após um

período não específico, Cristo voltará para a Terra (a Segunda Vinda), banirá

Satanás e estabelecerá um novo céu e uma nova Terra para a eternidade. O

principal problema dessa visão é que não há boas razões para interpretar os

“mil anos” como sendo outra coisa senão “mil anos”. Um terceiro ponto de

vista sobre o Milênio é o ponto de vista pós-milenarista. Nesse ponto de

vista, o período do Milênio é um período durante o qual o mundo é

“cristianizado” através da obra da igreja, cuja influência trará

progressivamente justiça e paz durante mil anos. Após esse breve tempo de

tribulação, Cristo irá retornar à Terra (a Segunda Vinda), banirá Satanás e

estabelecerá um novo céu e uma nova Terra para a eternidade. A principal

objeção a esse ponto de vista é que requer um milênio feito pelo ser humano

num mundo que está ficando cada vez melhor. Mas as Escrituras descrevem

um mundo numa decadência contínua – um modelo impedido não pela

Igreja, mas pelo próprio Cristo (Ap. 12:20) (BÍBLIA de Estudo das

Profecias, 2001: 1466).

Como podemos observar, o milênio e a Parousia são representações coletivas

fundantes dentro do imaginário social evangélico-pentecostal. Estas representações se

desdobram em duas contagens temporais distintas, uma milenarista e outra messiânica, que

coabitam num cenário escatológico. Os pentecostais interpretam as profecias bíblicas

referentes ao fim a partir de três concepções que Siepierski também discute. São as formas

interpretativas pré-milenarista, pós-milenarista ou amilenarista. Segundo o pré-milenarismo

a vinda de Cristo se dará antes do milênio e do período tribulacional – período de provações,

quando o auxílio do Espírito Santo será retirado do mundo – que introduzirá efetivamente o

milênio; o pós-milenarismo entende a Parousia como epítome do milênio, enquanto o

amilenarismo acredita que não haverá tal período.

De acordo com Siepierski, a grande mudança paradigmática ocorrida no imaginário

social pentecostal pode ser então compreendida, como já foi exposto acima, como uma

41

guinada do ‘pré’ ao ‘pós-milenarismo’. No âmbito das crenças que norteiam a visão pré-

milenarista, encontramos, como central, a iminência da volta do Cristo.

Percebemos, então, sob qual crença se fundava o rigor moral dos pentecostais

estudados por d'Epinay, a iminência da Parousia. No decorrer do século XX, como a

Parousia não se efetuava, os pentecostais “foram forçados a alargar seus horizontes. Para

isso, foi necessária a reestruturação de sua escatologia. A única forma de manter a

esperança em um milênio foi reverter para o pós-milenarismo” (SIEPIERSKI, 2008: 82). Se

Cristo não voltou antes do milênio, certamente após este período ele se manifestará. A ênfase

das preleções agora passa a recair sobre outros elementos estranhos à tipologia clássica de

d'Epinay. Siepierski concorda com Mariano (1999) no reconhecimento destes novos pontos

nodais: “Guerra Espiritual”, “Teologia da Prosperidade” e a “eliminação dos sinais exteriores

de santidade”. Siepierski, sustentando que o prefixo neo tem sido relacionado com

continuidade e não com ruptura, lança a questão: por que neopentecostalismo, se ele difere

sobremaneira do pentecostalismo que o precedeu?

É a partir destas conclusões que o autor propõe que as igrejas surgidas nas décadas de

70, 80 e 90 sejam denominadas pós-pentecostais e, não, “neopentecostais”, por estarem

fundamentadas no pós-milenarismo. Agora os fiéis são impulsionados a agir no mundo. Cristo

não está na iminência de seu retorno. O crente pode, e deve lutar para que a vontade de Deus

seja efetivada em sua realidade imediata.

Ora, para Siepierski, enquanto o cerne das pregações dos pré-milenaristas era a

Parousia, o foco e a instrução dos líderes pós-pentecostais, dentro de uma ótica pós-

milenarista, será a Batalha Espiritual. Nesse sentido, até mesmo os outros pontos que são

distintivos dos pós-pentecostais, a Teologia da prosperidade e a eliminação dos sinais

exteriores de santidade, irão ser articulados em função da Batalha Espiritual.

A ordem agora era atacar Satanás, que passou a ser visto primariamente

como usurpador, resgatando não apenas as pessoas, mas a cultura também.

Em outras palavras, o avanço do reino de Deus representava o recuo do reino

de Satanás e vice-versa (SIEPIERSKI, 2003: 83).

Apesar de concordarmos com Siepierski em vários pontos de sua argumentação,

demonstraremos nos capítulos que se seguem que a Batalha Espiritual sempre esteve presente

de forma determinante no imaginário evangélico-pentecostal. O que teria possibilitado as

mudanças nas práticas entre aqueles que Siepierski chama de pós-pentecostais, no que

concerne à Batalha Espiritual, talvez deva ser buscado noutro campo que não necessariamente

religioso. Sugerimos uma possível saída para esclarecer tais discrepâncias no segundo

42

capítulo deste trabalho. Como pudemos observar, Siepierski também utiliza o argumento da

exacerbação da Batalha Espiritual como um dos fundamentos para o recorte tipológico de sua

proposta de pós-pentecostalismo. Desse modo, ele alinha-se com Ricardo Mariano ao

sustentar que

O dualismo, a luta entre os reinos celestiais e das trevas, permeia todo o

cristianismo e o próprio pentecostalismo clássico. A diferença é que o

neopentecostalismo exacerbou essa guerra, sendo acompanhado de perto,

mas sem o mesmo impacto, por igrejas do deuteropentecostalismo, como

Deus é Amor e Casa da Benção (MARIANO, 1999: 13).

Veremos que as propostas de divisão tipológicas que buscam nessa pretensa

exacerbação da Batalha Espiritual um suporte estão, minimamente, equivocadas. O

pentecostalismo nasce sobre o signo do conflito. Provém da batalha como prática de vida

pautada na fé contra a apostasia de uma vida mundana. O pentecostalismo encontra seus

fundamentos teológicos na crença e vivência de um contato direto e pessoal com Deus. Ele se

fazendo inimigo das razões provenientes da teologia liberal, teologia esta incapaz de

harmonizar os objetivos terrenos e as inspirações celestiais dos fieis. Enfim, o

pentecostalismo, como desenvolveremos adiante, traz no âmago de sua mensagem cristã a

oposição da submissão à vontade divina contra a submissão à vontade de Satanás.

1.3. Assembléia de Deus (AD)

Os fundadores da Assembléia de Deus foram Gunnar Vingren e Daniel Berg. Apesar

da nacionalidade sueca, os dois missionários pentecostais não vieram diretamente de seu país

de origem para o Brasil.

Segundo César (2000), entre 1867 e 1886 quase 450 mil suecos deixaram o país por

causa da escassez de alimentos. O desemprego foi uma força centrífuga que dirigiu a atenção

da maioria dos imigrantes suecos para o meio-oeste dos Estados Unidos. Em fins do século

XIX, a cidade de Chicago, que em 1833 era apenas um vilarejo com dezessete casas, havia se

tornado uma das maiores cidades do mundo, abrigando grande contingente de mão-de-obra

imigrante (SIEPIERSKI, 2008). Daniel Berg chegou à cidade de Chicago em 1902, com a

idade de 18 anos, conseguindo emprego numa quitanda.

Vingren não foi diretamente para Chicago. Chegou aos Estados Unidos em 1903, com

24 anos, e realizou um curso de teologia em seminário batista, tornando-se pastor da igreja

batista em Menominee, no Michigan. Os dois se conheceram em 1909, na convenção das

43

igrejas Batistas reavivadas, em Chicago. O encontro propiciou que Vingren e Berg, a partir do

reconhecimento das afinidades em sua fé pentecostal, começassem a realizar reuniões de

oração, ou vigílias. Numa destas reuniões um irmão de fé chamado Adolf Ulldin entregou

uma “profecia” que ordenava aos dois suecos partirem numa missão de evangelização para

um lugar chamado “Pará” (CESAR, 2000).

Foerster (2010) contextualiza a “profecia” de Ulldin, desmitificando o caráter místico

em referência ao Estado brasileiro do Pará. O autor chama nossa atenção para o fato de já

haver no Brasil, à época das reuniões de oração de Vingren e Berg, um pastor batista, Erik

Nilsson, também sueco. Esse pastor havia saído dos EUA como missionário em 1897 e dirigia

uma igreja em Belém do Pará. Certamente o trabalho de evangelização de Nilsson era

conhecido pela comunidade batista sueca nos EUA. Ou seja, o nome “Pará”, local para onde

Daniel Berg e Gunnar Vingren deveriam se dirigir para “cumprir a vontade do Senhor”, não

era um nome totalmente estranho ao conhecimento da membresia batista à época e, tampouco,

à maioria dos trabalhadores nas indústrias de Chicago. De fato, como escreve Foerster (2010):

"Pará" era uma palavra muito conhecida na região de Chicago. Desde o

aperfeiçoamento do processo de vulcanização efetuado por Charles

Goodyear em 1839 a borracha havia se tornado um insumo industrial

essencial. Entre 1860 e 1910 a Amazônia reinou absoluta como fornecedora

de borracha para a indústria mundial--esse é também o período em que

Chicago se torna o centro industrial dos Estados Unidos--e o tipo "Pará" era

considerado o padrão mundial de qualidade dessa matéria-prima. No início

deste século, longe de ser um local desconhecido no canto do mundo, Pará,

como Belém (Santa Maria de Belém do Grão Pará) era conhecida naquela

época, abrigava centenas de casas de exportação, que estavam em contato

com o mundo todo. O nome "Pará" era uma constante nos centros

industriais, como Chicago, principalmente em 1910, quando o governo

brasileiro através da política conhecida como "valorização" forçou o preço

da borracha tipo "Pará" acima de seis dólares por quilo, triplicando o preço

em relação aos anos anteriores (FOERSTER, 2010: 107-108).

Após receberem a profecia, os dois embarcaram no navio Clement, que se encontrava

em Nova York e sairia em cinco de novembro de 1910. Assim vieram para o Brasil, com

noventa dólares no bolso, sem falar o português e sem ninguém para recebê-los no porto.

Segundo Mafra, em seu texto Casa dos homens, casa de Deus (2007), chegaram a Belém com

dinheiro suficiente apenas para uma refeição e uma noite em hotel de terceira. Nos meses que

se passaram, com os parcos recursos que contavam, Daniel Berg e Gunnar Vingren tiveram

muitas vezes que aplacar a fome com as mangas que cresciam em abundância nas ruas da

cidade.

44

Berg e Vingren congregaram por sete meses na igreja batista de Belém, sob a direção

do pastor Erik Nilsson que, os auxiliando em nome da profissão da mesma fé, acolheu os

missionários cedendo o porão da igreja para que pudessem morar. Daniel Berg trabalhou por

algum tempo como fundidor para auxiliar os dois em seu sustento financeiro. A igreja,

contudo, era de uma orientação tradicional não aberta às “inovações” pentecostais que

marcavam as preleções dos recém chegados, em específico, a doutrina do batismo do Espírito

Santo. Tais “inovações” desdobravam-se como uma nova ordem em matéria de experiência de

fé: imediata, transformadora e milagrosa (MAFRA, 2007). Os desentendimentos doutrinários

redundaram na expulsão dos dois suecos e mais dezenove fiéis que acordaram acompanhá-los

em sua proposta pentecostal. Assim, de um primeiro cisma nasceu a Missão da Fé Apostólica,

nome que logo seria substituído por Assembléia de Deus.

Efetivamente, a primeira igreja fundada no Brasil com o nome de Assembléia de Deus

foi inaugurada em Belém (PA), no dia 8 de novembro de 1914. Gunnar Vingren pastoreava a

igreja, pois contava com uma formação teológica um pouco mais fundamentada. Daniel Berg

evangelizava nas periferias de Belém e cidades circunvizinhas.

O crescimento da nova igreja em seus primeiros quinze ou vinte anos não foi

explosivo. Concentrou-se nos Estados brasileiros do Norte e Nordeste. Segundo Siepierski

(2008), a expansão geográfica da Assembléia de Deus seguiu, num primeiro momento, o

refluxo de migrantes nordestinos desiludidos com a crise do ciclo da borracha e, num segundo

momento, o fluxo de migrantes nortistas e nordestinos para o sudeste do país. De acordo com

Mafra (2007), o fim do monopólio da seringa trouxe a decadência à Belém. Desde 1877,

Belém e cidades do entorno receberam levas de migrantes nordestinos em busca de trabalho.

Uma época de modernização e pompa devida à comercialização do “ouro negro”, a pasta da

seringa. Tal opulência foi substituída por decadência, na qual as contradições sociais entre

elite e trabalhadores eram gritantes.

Desse modo, o fator que garantiu o avanço paulatino da Assembléia de Deus pelo

território brasileiro foi o estabelecimento das pequenas congregações mantidas por pessoas

que, apesar de professar uma modalidade de fé nova, falavam em pé de igualdade com o

grosso da população empobrecida. As congregações da AD se espalharam pelo interior dos

Estados do Norte e Nordeste. O foco da evangelização não se restringia aos grandes centros

urbanos; pelo contrário, buscavam prosélitos em meio à grande massa de trabalhadores rurais

empobrecidos. Como bem salienta Mina (2004)

[…] a pobreza sempre andou de mãos dadas com a inserção e sucesso do

pentecostalismo. Baseados em Rolim, observamos que a situação de penúria

45

econômica daquelas pessoas encontrou uma fonte de alívio nas prerrogativas

pentecostais. A carência de uma ação mais efetiva do poder público e igreja

católica na vida desses interioranos ofereceu caminho aberto para uma ação

bem sucedida dos pioneiros, que pregavam para uma população excluída. A

liberdade nos dias de culto que esses “novos convertidos” (principalmente

ex-católicos) experimentavam era diferente de tudo o que tinham vivenciado

no catolicismo. Todos os crentes, indistintamente, tinham a oportunidade de

subir no púlpito e “pregar a palavra” sem precisar exercer qualquer posto na

hierarquia da nova igreja de então. Além disso, ler a Bíblia, orar e cantar

coletivamente constituíam outra novidade que atraiu muitos adeptos das

comunidades carentes (MINA, 2004: 20).

O fato de a expansão inicial da Assembléia de Deus dar-se em Estados do Norte e

Nordeste, em meio a uma população marcadamente rural talhada pela anomia social

proveniente do choque entre campo e cidade, determinou a formação de uma rígida tradição

de usos e costumes que buscava garantir à comunidade dos “santos” um modelo de práticas

socialmente aceitáveis (MAFRA, 2007; MINA, 2004). Dentro dessa rígida tradição,

repassada pela oralidade, cada membro é um potencial agente de disciplinarização, tanto de

recém convertidos quanto de pastores já com décadas de fé. Discutiremos, no segundo

capítulo, como os usos e costumes mediaram a assimilação por parte dos evangélico-

pentecostais assembleianos de inovações tecnológicas midiáticas popularizadas no século XX

(rádio e TV).

Mina apresenta em seu trabalho uma cronologia da expansão da Assembléia de Deus:

Piauí (1914); Ceará (1915); Pernambuco, Amapá (1916); Amazonas (1917); Roraima,

Paraíba, Rio Grande do Norte e Maranhão (1918); Rondônia, Alagoas e Espírito Santo

(1922); Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso (1923); Rio Grande do Sul (1924);

Bahia (1926); Sergipe, Minas Gerais e São Paulo (1927); Paraná (1929); Goiás (1931); Acre

(1932); Brasília (1956).

Durante a Convenção Geral de 1930, a primeira de uma série de convenções ocorridas

durante o século XX, quando as lideranças assembleianas suecas se mostravam minoritárias,

ocorreu a passagem da direção do trabalho para os brasileiros. A sede da denominação foi

transferida de Natal para o Rio de Janeiro.

Essa nacionalização ocorreu quando a igreja ainda era muito

nortista/nordestina, o que contribuiu para sedimentar uma característica que

subsiste até hoje. […] A mentalidade da AD carrega as marcas dessa dupla

origem: da experiência sueca das primeiras décadas do século, de

marginalização cultural; e da sociedade patriarcal e pré-industrial do

Norte/Nordeste dos anos 30 a 60 (FRESTON, 1994: 117).

Apesar dos controles sociais em matéria de doutrinas e usos e costumes, ocorreram

cismas dentro das Assembléias. Em 1930 formou-se a denominação Assembléia de Deus de

46

Madureira, fundada por Paulo Leivas Macalão, que havia entrado em discordância com os

missionários suecos. A discussão surgiu em torno do purismo e do radicalismo da mensagem

proposta por Macalão, cuja severidade no trato com os usos e costumes era bem mais

explícita. Até a morte de Macalão, em 1982, o cisma não foi formal, não havia uma

Convenção independente. Entretanto, após a morte de Macalão as pressões sobre a AD de

Madureira, para que sua ação fosse mais fiel à prática tradicional das AD, resultaram na sua

exclusão da Convenção Geral, fato que acarretou a formação de outra Convenção, em 1989, a

Convenção Nacional das Assembléias de Deus de Madureira (Conamad).

De todo modo, não há grande discrepância doutrinária ou teológica entre ambas as

Convenções. Os cargos dentro da igreja são ocupados majoritariamente por homens e seguem

a seguinte escala: auxiliar do trabalho, diácono, presbítero, evangelista e, por fim, pastor.

Atualmente, as Assembléias de Deus são marcadas por uma forte pluralidade social e

teológica. Esta última tem suas raízes em querelas relacionadas à exegese bíblica. Quando os

embates tornam-se insustentáveis os membros insatisfeitos desligam-se da igreja e fundam

outro ministério, apesar de ainda continuarem ligados à CGADB (Convenção Geral das

Assembléias de Deus no Brasil). Já no quesito da pluralidade social, as identificações mais

tradicionais da AD, principalmente as externas, estão sendo postas em xeque por uma nova

classe de membros que experimentam um processo de ascensão social, causando certo mal-

estar entre as alas mais conservadoras da igreja (MINA, 2004).

1.4. Igreja Universal do Reino de Deus

A IURD é considerada a principal denominação surgida na terceira onda do

pentecostalismo brasileiro (FRESTON, 1994). Foi fundada em 1977, ou seja, sessenta e seis

anos separam-na da fundação da Assembléia de Deus. A IURD é uma das igrejas nascidas sob

inspiração da igreja Nova Vida15

. Como boa parte das igrejas denominadas neopentecostais, a

IURD também começou como um pequeno ponto de reuniões, fruto de uma dissidência.

De fato, os primeiros cultos se deram na sala de uma ex-funerária no bairro da

Abolição, subúrbio da zona norte do Rio de Janeiro. Boa parte da grande aceitação da IURD,

15

Dissidente da Assembléia de Deus e fundador da Nova Vida no Rio de Janeiro, o canadense Robert McAlister

foi um profícuo pregador e escritor evangélico que soube fazer uso dos meios de comunicação de massa.

Pioneiro em atrair a classe média para o meio pentecostal, McAlister proporcionou nos anos 60 um verdadeiro

“curso preparatório” sobre batalha espiritual e teologia da prosperidade àqueles que seriam os líderes durante

a nascente terceira onda do movimento pentecostal.

47

no Brasil e no exterior, se deu a partir das idiossincrasias em matéria de estratégias midiáticas

de seu líder máximo, Edir Bezerra Macedo.

Nascido em 1945, na cidade de Rio das Flores, Rio de Janeiro, Edir Macedo cresceu

numa família pobre de migrantes (MARIANO, 1999). O pai, Henrique Francisco Bezerra, era

um pequeno comerciante, a mãe, Eugênia Macedo Bezerra, era dona de casa e deu a luz trinta

e três filhos, dos quais apenas sete sobreviveram. Em 1962, quando contava 17 anos, começou

a trabalhar na Loteria do Rio, agência da qual se desligou em 1981. Um dos diferenciais de

Macedo, em comparação aos líderes das denominações pentecostais anteriores, foi sua

experiência universitária: matemática, na Universidade Federal Fluminense, e estatística, na

Escola Nacional de Ciências e Estatística. Entretanto, não concluiu nenhum dos cursos. Aos

18 anos, em 1963, converte-se ao pentecostalismo na Igreja de Nova Vida. Antes, porém,

havia frequentado os bancos da Igreja Católica e as tendas de Umbanda.

Depois de congregar durante doze anos na Nova Vida, em 1975 Macedo resolve

deixar a igreja. De acordo com Mina (2004), as razões para a saída de Macedo foram o

elitismo cultivado pela denominação, barrando a participação nos trabalhos às camadas mais

pobres, e a falta de apoio às suas atividades de evangelização, consideradas deveras

agressivas. Assim, acompanhado de Romildo Ribeiro Soares, Roberto Augusto Lopes e dos

irmãos Samuel e Fidélis Coutinho, criou a igreja Cruzada do Caminho Eterno. Para tanto, R.

R. Soares e Edir Macedo deviam, antes, ser consagrados pastores por alguma denominação

pentecostal.

A consagração veio por meio do missionário Cecílio Carvalho Fernandes, da Casa da

Benção. Pouco tempo depois da fundação da nova denominação, mais um cisma. Edir

Macedo, Romildo Soares e Roberto Lopes saíram da denominação Caminho Eterno e

fundaram, em 9 de julho de 1977, a Igreja Universal do Reino de Deus. Inicialmente, Romildo

Soares, cunhado de Macedo, assumiu o papel de liderança na nova denominação, mas teve

sua autoridade paulatinamente questionada pelas atitudes de Macedo, cujo discurso era bem

mais aguerrido. Para que se resolvesse a questão, Macedo propôs que uma votação fosse

realizada entre os pastores. Macedo saiu vencedor. Em 1980, R. R. Soares se desligou

oficialmente da IURD, fundando, com a compensação financeira conseguida, a Igreja

Internacional da Graça de Deus.

Andréia Mendes Mina (2004) argumenta que, diferentemente da AD, a IURD foi uma

denominação das grandes cidades desde o princípio da sua expansão. A primeira década da

igreja foi marcada pelo crescimento numérico dos templos, majoritariamente na região

sudeste. As primeiras igrejas foram fixadas no Rio e dois anos depois chegaram a São Paulo e

48

Minas Gerais. Em 1980 estavam na Bahia e no Paraná. Na região norte do país,

estabeleceram-se em 1988. Em 1985 a IURD já estava presente em quase todas as capitais

brasileiras.

Apesar de ter expandido suas fronteiras em território nacional, atualmente ainda há

uma concentração mais forte de templos e fiéis iurdianos no Rio de Janeiro, vindo logo em

seguida São Paulo e Bahia. A inauguração dos trabalhos da IURD pelos Estados deu-se

seguindo o seguinte itinerário: Rio de Janeiro, 1977; São Paulo e Minas Gerais, 1979; Paraná

e Bahia, 1980; Paraíba, 1981; Distrito Federal, Pernambuco e Rio Grande do Sul, 1982;

Sergipe, Pará e Ceará, 1983; Maranhão e Mato Grosso do Sul, 1985; Santa Catarina, 1986;

Alagoas, Rio Grande do Norte, Piauí e Espírito Santo, 1987; Mato Grosso e Rondônia, 1988;

Amazonas e Goiás, 1989; Amapá, 1991; Roraima e Tocantins, 1993.

Além do crescimento dentro do Brasil, a IURD investiu, desde os primórdios, em sua

expansão no exterior. Atualmente a igreja está presente em países dos cinco continentes.

Alguns exemplos de localidades onde a igreja possui templos entre os países americanos:

Canadá, Estados Unidos, México, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana

Inglesa, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela; entre os países europeus: Alemanha, Bélgica,

Espanha, França, Grécia, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Polônia, Portugal,

Romênia, Suécia, Suíça; entre os países africanos: África do Sul, Angola, Botsuana, Cabo

Verde, Camarões, Congo, Costa do Marfim, Etiópia, Gabão, Gana, Guiné Bissau, Lessoto,

Madagascar, Malawi, Moçambique, Namíbia, Nigéria, Quênia, São Tomé e Príncipe, Senegal,

Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbábue; entre os países asiáticos: China, Filipinas, Índia,

Israel, Japão, Rússia; entre os países da Oceania: Austrália e Nova Zelândia.

Há calorosos debates entre os estudiosos sobre quais foram os fatores determinantes na

expansão iurdiana (MARIANO, 1999; CAMPOS, 1999). Apresentaremos alguns pontos, os

quais parecem ser pontos assentes entre os pesquisadores. Para termos uma noção do caráter

meteórico da expansão iurdiana, no início da década de 1980 haviam apenas 21 templos em 5

Estados brasileiros; já em 1989 a IURD possuía mais de 571 templos espalhados pelo país.

Por volta do ano de 2004, o número de igrejas sob a autoridade de Edir Macedo ultrapassava

4000 templos, somente no Brasil. Quanto às explicações desta carreira bem sucedida entre os

pentecostais, elegemos duas teses entre as apresentadas até então. A primeira tese ressalta as

características específicas do uso dos meios de comunicação pela liderança iurdiana. A

segunda tese fala-nos sobre a formação, organização e hierarquia dos pastores.

Sem dúvida alguma uma das chaves do sucesso da IURD é exatamente o uso que esta

instituição faz dos meios de comunicação. Já desde os primeiros passos na carreira do

49

ministério, quando ainda não era o líder máximo na IURD, Edir Macedo não hesitou em

trabalhar no rádio para propagar sua mensagem, fazendo-se conhecer. Começou com um

programa de 15 minutos, alugados na Rádio Metropolitana do Rio de Janeiro.

As lideranças pentecostais, de acordo com Mariano (1999), em geral, preferem o rádio

à TV. São pelo menos três as razões dessa predileção: o menor preço de locação ou de compra

das emissoras, seu baixo custo de manutenção e sua elevada audiência entre os estratos mais

pobres da população. Sendo acentuadamente inferior ao custo do televangelismo, o

radioevangelismo resulta em benefício proselitista bem superior. Daí que são poucas as

igrejas que optaram por concentrar a maior parte de seus investimentos em propaganda

religiosa na TV. Embora seja a denominação brasileira que mais investiu na aquisição de

emissoras de televisão, a Universal prioriza a evangelização pelo rádio.

A razão pela qual investe tantos recursos na compra de emissoras de rádio é

óbvia: sua eficácia proselitista associada à grande audiência desse veículo de

comunicação nos lares dos estratos mais pobres da sociedade, justamente os

mais propensos ou suscetíveis à conversão pentecostal. As emissoras de

rádio AM e FM da Universal fazem proselitismo 24 horas por dia. [...] A

utilidade das rádios para a expansão da igreja é múltipla, crucial. Elas atraem

grande número de pessoas por meio de testemunhos e promessas de bênçãos,

possibilitam a implantação de novas congregações, divulgam a programação

e os eventos da igreja. Contribuem ainda para sua unidade ministerial, ao

transmitirem a “fórmula” (as correntes de oração e os temas de pregação)

semanal a ser adotada pelos pastores em todo o país (MARIANO, 1999: 68-

69).

Ricardo Mariano acrescenta à discussão um trecho de uma entrevista com Carlos

Magno, ex-líder da IURD no Nordeste, referindo-se à importância do rádio na expansão da

IURD.

“A implantação da igreja é praticamente igual em qualquer lugar. Em João

Pessoa, por exemplo, consegui um horário na rádio e comecei a pregar o

evangelho. Arranjei um clube e marquei para fazer reuniões aos domingos.

Muita gente ia porque ouvia o rádio. Começa assim: um núcleo a partir de

um programa de rádio ou televisão e dali nasce a igreja. Só então você aluga

um lugar para reunir as pessoas. Foi assim que começou a Universal no Rio,

com horário alugado na Rádio Metropolitana, na época um programa de 15

minutos. Em Natal, eu implantei a igreja e consegui um horário na televisão,

coloquei na TV Ponta Negra, do senador Carlos Alberto, e depois de 15 dias

fui lá fazer a reunião. E assim implantei a Universal em todos os Estados do

Nordeste, exceto no Ceará” (JORNAL DA TARDE, 2 abr. 1991 apud

MARIANO, 1999: 69).

Atualmente, a IURD é proprietária da TV Mulher, da Rede Record (com 63 emissoras,

sendo 21 delas próprias), 62 emissoras de rádio no Brasil, Gráfica Universal (que publica a

Folha Universal, cuja tiragem semanal supera a cifra de 1,5 milhões de exemplares), Editora

50

Universal Produções, Ediminas S/A (que edita o jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte). A

compra da Record, em fins de 1989, serviu para aumentar tanto sua possibilidade de acesso

aos fiéis quanto seus rendimentos.

A acomodação às necessidades de um público-alvo situado entre as novas demandas

apregoadas pela pós-modernidade nascida em meio à tradicional penúria e miséria terceiro-

mundista, fez com que a IURD desenvolvesse discursos e práticas que abarcam uma gama

muito maior da sociedade do que o pentecostalismo assembleiano, tipologicamente

caracterizado como “clássico” (FRESTON, 1994), era capaz de alcançar.

Do ponto de vista comportamental, é a mais liberal. Haja vista que suprimiu

características sectárias tradicionais do pentecostalismo e rompeu com boa

parte do ascetismo contracultural tipificado no estereótipo pelo qual os

crentes eram reconhecidos e, volta e meia, estigmatizados. De modo que

seus fiéis foram liberados para vestir roupas da moda, usar cosméticos e

demais produtos de embelezamento, freqüentar praias, piscinas, cinemas,

teatros, torcer para times de futebol, praticar esportes variados, assistir a

televisão e vídeos, tocar e ouvir diferentes ritmos musicais. Práticas que, nos

últimos anos, também foram sendo paulatinamente permitidas por igrejas

pentecostais das vertentes precedentes, com exceção da Deus é Amor, que

manteve incólume a velha rigidez ascética. Em todas as vertentes

permanece, porém, a interdição ao consumo de álcool, tabaco e drogas e ao

sexo extraconjugal e homossexual (MARIANO, 2004: 124).

A organização do maquinário humano do pastorado que a Universal arregimenta e

administra também é um dos elementos que influenciaram em seu crescimento. Em 1980,

Edir Macedo estabeleceu o governo eclesiástico episcopal. Assumiu o posto de bispo primaz e

o cargo vitalício de secretário-geral do presbitério. Renunciou, contudo, em 1990, para evitar

que eventuais sanções penais contra si atingissem a igreja.

Temendo que seu substituto na liderança da IURD no Brasil, Renato Suhett, agregasse

muito poder, Macedo, que estava vivendo nos EUA, consagrou dezenas de novos bispos para

que pudessem assumir funções diretivas em nível regional, estadual e nacional. Esta estratégia

também visava evitar cismas, pois, Macedo reestruturou o poder eclesiástico, criando três

instâncias hierárquicas: Conselho Mundial de Bispos, Conselho de Bispos do Brasil e

Conselho de Pastores. Com isso, a igreja manteve os princípios de verticalidade e

concentração de seu governo episcopal, que continuou encimado por Edir Macedo.

Mas a continuidade do trabalho só é possibilitada pelo enorme número de pastores e

obreiros do qual dispõe. O trabalho dos pastores é, minimamente, estafante. O pastor comanda

os cultos em todos os seus aspectos, ora, canta, prega e faz os pedidos de ofertas. São, em sua

maioria, jovens e incentivados a não terem filhos para poderem se dedicar ainda mais à obra

iurdiana. Estão sempre realizando três ou quatro cultos diários, além de aconselhamento e

51

trabalhos nas rádios. Não possuem autonomia alguma em matéria da arrecadação de dízimos e

ofertas e, tampouco, acerca dos grandes temas sobre os quais deverão pregar em cada uma das

campanhas. As decisões são tomadas pelos bispos que, para evitar que pastores e congregação

criem laços muito fortes – correndo o risco de cismas – fazem com que haja uma rotatividade

de pastores em cada igreja. Um pastor nunca permanece mais do que dois anos no mesmo

templo (MINA, 2007).

Como o reino dos céus está ao alcance de todos aqui na terra, não há mistérios ou

mensagens herméticas a desvendar. Basta instar para que se aceite a Cristo, declarar

verbalmente já ter recebido suas promessas bíblicas, ser fiel nos dízimos, generoso nas ofertas

e ter fé (MARIANO, 2004). Aliás, alinhados com a teologia da prosperidade, os pastores

iurdianos são extremamente insistentes no quesito dízimos e ofertas, mesmo porque será a

capacidade de arrecadação que determinará sua ascensão na hierarquia eclesiástica. Quanto

mais arrecadarem, mais abençoados pela ação do Espírito Santo será o ministério de

determinado pastor, ao menos assim entendem.

A eficiência arrecadadora da Universal se deve em grande parte à sua

agressividade, insistência e incomparável habilidade persuasiva nessa

matéria. Quem não paga o dízimo, advertem os pastores, rouba a Deus, que,

na condição de dono de todas as riquezas existentes, exige de volta 10% dos

recursos que concede aos seres humanos. Dinheiro que deve ser empregado

cabalmente na realização da obra de evangelização. Essa concepção se alia à

crença de que só alcança bênçãos quem tem fé. No caso, ter fé significa crer

piamente no que os pastores pregam e agir conforme os ditames dessa

pregação. Para provar a própria fé e granjear as recompensas decorrentes do

exercício dessa virtude teologal, os fiéis são induzidos a realizar sacrifícios

ou desafios financeiros. Como o tamanho da fé se mede pelo maior ou

menor risco que assume no ato de doação, quem deseja demonstrar elevada

fé precisa assumir grandes riscos financeiros ou realizar grandes desafios.

Até porque, promete-se, quanto maior o desafio, maior a retribuição divina

(MARIANO, 2004: 129).

Dentro desse quadro de simplificação e pragmatismo, a formação teológica do corpo

de pastores iurdianos é mínima. De fato, por muitos anos a IURD manteve no Rio de Janeiro

a Faculdade Teológica do Reino de Deus, porém, cerrou as portas da instituição ao perceber

que as minúcias dos debates teológicos só serviam ao propósito de afastar cada vez mais seus

pastores das demandas imediatas de seus membros. A manutenção de uma linguagem

coloquial por parte dos pastores, que não raras vezes apropriam-se de gírias e regionalismos

para ressignificá-los num contexto que sirva aos interesses proselitistas da IURD, auxilia na

constituição de um ambiente de familiaridade. Os pastores buscam “falar a língua do povo”.

52

Outra tendência marcante da IURD que, de certa forma auxiliou em sua ascensão e

abriu um precedente a ser seguido por outras denominações pentecostais e neopentecostais, é

seu investimento na obra política. Elencamos, brevemente, alguns candidatos eleitos com o

apoio político direto da IURD: um deputado federal em 1986, quatro deputados federais em

1990, seis em 1994, quatorze em 1998, vinte e dois em 2002. Também, no mesmo ano de

2002, a IURD conseguiu eleger o senador Marcelo Crivella (PL-RJ). Além disso, a igreja

conta com diversos vereadores e deputados estaduais espalhados pelo país (MARIANO,

2004).

Como vimos neste capítulo, as origens das igrejas pentecostais brasileiras remontam

aos movimentos de grandes avivamentos ingleses e estadunidenses de fins do século XVIII e

decorrer do século XIX. Foram no seio desses movimentos que ocorreram a valorização e a

sistematização teológico-doutrinária que fizeram dos arroubos emocionais indicadores de

experiências espirituais. A glossolalia, o falar em línguas estranhas, determinou o coroamento

deste processo formativo que, em fins do século XIX, marcaria o desenvolvimento do

pentecostalismo propriamente dito. Por sua vez, o pentecostalismo trouxe como principal

característica a crença na atualidade da ação do Espírito Santo por meio dos dons espirituais,

tal qual ocorria – segundo acreditam os mesmos pentecostais – nos tempos da Igreja

Primitiva, como é relatado no livro de Atos dos Apóstolos.

Analisamos, também, as principais tipologias utilizadas para nortear os estudos acerca

dos pentecostais. Tipologias estas que procuram marcar as diferenças entre as distintas formas

de expressões doutrinais, teológicas e de práticas que se desenvolveram entre os pentecostais

no decorrer do século XX. Discutimos brevemente sobre quais elementos – em termos de

práticas e doutrinas – incidem os recortes tipológicos desenvolvidos pelos autores clássicos na

área. Problematizamos, preliminarmente, que a Batalha Espiritual, enquanto prática

identitária, não deveria ser tomada como elemento fundante de qualquer tipologia que busque

marcar diferenças entre segmentos pentecostais, haja vista que ela configura-se como prática

necessária e inescapável na composição do processo de identificação com o imaginário

evangélico-pentecostal, seja para assembleianos de 1911, seja para iurdianos de 1990.

Aprofundaremos essa discussão específica no capítulo seguinte. Por fim, apresentamos um

sucinto histórico das denominações que nos serviram para desenvolver nossa proposta

conceitual de evangélico-pentecostais como recorte tipológico fundado no que Assembléia de

Deus e Igreja Universal do Reino de Deus têm em comum. Essa unidade está em função do

arcabouço identitário composto por sete representações coletivas que, constitutivas do

imaginário social evangélico-pentecostal, produzem e mantém sentido à Batalha Espiritual.

53

Quais são estas representações e como se desdobram em práticas são temas que

aprofundaremos nos capítulos que se seguem.

54

2. Uma questão de identidade: a Batalha Espiritual

Nas diferenças doutrinárias existentes entre evangélicos, os pentecostais

procuram funcionar cooperativamente, porque as Escrituras ensinam-nos a

manter a unidade do Espírito até que todos cheguemos à unidade da fé. Nós

afirmamos que as verdades que nos unem são muito maiores que as

diferenças que parecem nos separar. Num honesto esforço de exaltar Cristo,

e em reconhecimento da tarefa de alcançar o mundo perdido, os pentecostais

procuram cooperar com cada membro do corpo de Cristo, para glorificar a

Deus (ZIMMERMAN, T. F. in ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz,

2004: 31-32. Grifos nossos).

Com o objetivo de corroborar a constituição de sentido à Batalha Espiritual como

necessária e inescapável nas identificações com a mensagem evangélico-pentecostal de fé,

rastreamos e analisamos representações coletivas provenientes de diferentes fontes

documentais de natureza teológico-doutrinárias. Desse modo, pudemos questionar os autores

que consideravam a Batalha Espiritual um elemento marcadamente ligado às mais recentes

formas de fé pentecostal (neopentecostais ou pós-pentecostais). A Batalha Espiritual já

compunha a identidade evangélico-pentecostal, desde a formação da Assembléia de Deus no

início do século passado, como elemento constitutivo. Seguindo a sugestão do pastor

assembleiano T. F. Zimmerman, citado acima, propomos que determinadas representações

coletivas podem ser entendidas como “verdades” que unem os pentecostais. Apesar das

discrepâncias doutrinárias, em certos aspectos de seu proceder os crentes estão em maior

uniformidade do que nos dá a entender a enorme quantidade de subdivisões denominacionais.

Assembléia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus possuem, minimamente, uma

Batalha Espiritual em comum.

Para termos acesso a esta Batalha Espiritual, estudamos – e passamos a apresentar – os

elementos básicos que lhe fornecem sentido. Estes elementos básicos serão encarados em

termos de representações coletivas, haja vista sua capacidade de nortear as práticas e mediar

os julgamentos de valor daqueles que se identificam com o imaginário social evangélico-

pentecostal.

Nossa principal preocupação nesta pesquisa foi demonstrar que a Batalha Espiritual –

como experiência vivenciada, como vocabulário compartilhado, como meta a cumprir-se –,

diferentemente do que foi apregoado por alguns estudiosos de renome na área (FRESTON,

1992; MARIANO, 1999; BITUN, 2008), já integrava plenamente o imaginário social dos

55

primeiros evangélico-pentecostais (AD). Esta integração da Batalha Espiritual nos processos

de identificação não era parcial, atenuada ou incompleta, como sugeriram tais autores. Pelo

contrário, os elementos necessários para a manutenção do sentido à Batalha Espiritual – as

representações coletivas componentes – se fazem presentes, como cremos ter demonstrado,

desde os primórdios do movimento pentecostal no Brasil. Para objetivar nossa análise,

passamos à discussão acerca do arcabouço identitário evangélico-pentecostal.

Consideramos que a Batalha Espiritual configura-se, basicamente, como experiência

de conflito engendrada inescapavelmente na identificação com o imaginário social

evangélico-pentecostal. Este conflito de cunho identitário predica a demonização da alteridade

que se dá nos arranjos imaginários traduzidos em constelações de representações

historicamente compartilhadas pelas comunidades pentecostais. A experiência de conflito

vivenciada pelo sujeito, com vistas a manter-se prenhe de sentido, precisa efetivar-se na ação

prática, em sua cotidianidade. A crença e a efetiva participação na Batalha Espiritual é parte

indispensável na constituição do sentido de temporalidade (plano divino de Salvação) e

espacialidade (territórios sagrados e profanos) aos evangélico-pentecostais. O evangélico-

pentecostal entende o passado, o presente e o futuro como diferentes dimensões temporais que

cooperam no cumprimento do plano divino de Salvação da humanidade pecadora. A

efetivação deste plano divino está no futuro e pode ser entendida como uma representação

coletiva específica, a Parousia – o retorno de Cristo: Jesus prometeu voltar uma segunda vez

para arrebatar seus seguidores.

Para que tal retorno se realize, todo o mundo deve ser evangelizado. Nesta ordenança,

encontramos a origem de uma segunda representação coletiva, a Grande Comissão. As

representações coletivas Parousia e Grande Comissão configuram, basicamente, aplicando-se

as categorias de análise temporal desenvolvidas por Koselleck (2006), o horizonte de

expectativas dos crentes.

Com o objetivo de tornar-se parte integrante do “corpo de Cristo”, ou seja, a igreja, o

recém convertido evangélico-pentecostal precisa ser iniciado em, minimamente, duas

ritualísticas específicas: ser batizado por imersão nas águas e participar da Santa Ceia. Os

ritos do batismo nas águas e da Santa Ceia também podem ser tomados como poderosas

representações coletivas. A particularidade destas representações se assenta no fato de ambas

as ritualísticas apontarem para a dimensão passada. Batizar-se nas águas é repetir o ritual do

novo nascimento inaugurado por Jesus nos primórdios de seu trabalho evangelístico. A

participação na Santa Ceia impinge no crente o sentimento de fazer-se herdeiro da fé de

incontáveis gerações de cristãos que mantiveram intacta a bimilenar celebração instituída por

56

Jesus pouco antes de sua crucificação. O batismo nas águas e a celebração da Santa Ceia

configuram-se como representações coletivas que, na esteira de seu alto valor simbólico,

desdobram-se em experiências práticas que auxiliam na composição do espaço de

experiências compartilhadas pela comunidade evangélico-pentecostal.

Numa adaptação do quadro de referências de Kosellec (2006), introduziremos uma

dimensão presente articulando horizonte de expectativas e espaço de experiências. Sabemos

que o autor não criou os conceitos para serem entendidos como blocos sem comunicação.

Tanto o horizonte de expectativas quanto o espaço de experiências de determinada

comunidade social compõe e participa na constituição das vivências identitárias desta mesma

comunidade apontando tanto para a tradicionalidade de símbolos compartilhados quanto para

realizações desdobradas em práticas na dimensão presente, na agência do sujeito. Porém, para

objetivar com mais precisão o arcabouço identitário que propomos, inserimos a dimensão

presente aquém das duas outras dimensões temporais no afã de organizar estruturalmente a

análise do imaginário social evangélico-pentecostal.

Na dimensão temporal presente gravitam três representações coletivas que poderiam

facilmente ser apresentadas instanciando tanto as expectativas futuras quanto as experiências

passadas: o Biblicismo, o batismo com o Espírito Santo e o Dualismo. As duas primeiras

representações coletivas caracterizam-se como uma preparação constante, verdadeira

propiciação, que o crente deve cultivar para tornar-se e manter-se apto aos embates

espirituais. A última representação coletiva elencada na dimensão temporal presente, o

Dualismo, perpassa, em especial, toda a visão de mundo evangélico-pentecostal. Preferimos

elencá-la na categoria “presente” para marcar a diferença e abrangência de sua natureza

social, que será discutida quando, mais adiante, analisarmos uma a uma cada representação

coletiva.

Temos, assim, o arcabouço identitário mínimo com sete representações coletivas

específicas que unem assembleianos e iurdianos no cumprimento de sua missão cristã.

Espaço de experiências

- Passado

Presente

Horizonte de

expectativas –

Futuro

Representações

Coletivas

- Santa Ceia

- Batismo nas águas

- Biblicismo

- Batismo no Espírito

Santo

- Dualismo

- Grande Comissão

- Parousia

Quadro 1: Representações coletivas componentes do arcabouço identitário evangélico-pentecostal

57

A Batalha Espiritual encontra sustentação e sentido a partir dos arranjos ou

constelações dessas sete representações coletivas constitutivas do imaginário social comum

aos assembleianos e iurdianos.

A missão última dos crentes seria “alcançar o mundo perdido”. Concordamos com o

pastor Zimmerman, citado no início do capítulo, ao elencar os objetivos que fazem os

pentecostais cooperarem em unidade, a saber: o esforço de exaltar a Cristo e o

reconhecimento da tarefa de alcançar o mundo perdido. Os evangélico-pentecostais se

entendem inseridos num mundo marcadamente dualista. O dualismo, entendido neste trabalho

como uma representação coletiva, demarca os nítidos e pretensamente imutáveis contornos do

“mundo” no qual se inserem os crentes. Utilizaremos o termo mundo entre aspas sempre que

estivermos nos referindo ao mundo criado a imagem e semelhança da identidade evangélico-

pentecostal. Tal “mundo” é reflexo da realidade espiritual maior que o engloba e define. O

“mundo” dos evangélico-pentecostais é, em essência, um lugar onde o mal é a regra. A

exceção a essa regra é o poder de Jesus acionado por intermédio dos verdadeiros cristãos.

Nesse mundo dualista as forças cósmicas do bem e do mal (tais forças são boas ou más

em essência) combatem incansavelmente pela posse das almas humanas. O evangélico-

pentecostal toma socialmente consciência de si como um indivíduo esclarecido em meio a

uma sociedade de perdidos pecadores incapazes de perceberem verdades espirituais muito

sérias e “reais”16

. De fato, no entendimento do fiel, o Diabo está por trás do que ocorre neste

mundo.

Esta construção mesma, “por trás”. Trata-se de uma locução adverbial de lugar que,

quando enunciada, apesar de indicar o local no qual se esgueira a força maligna – por trás das

aparências mundanas, lugar essencialmente espiritual no além –, acaba por referendar no

crente um determinado poder. Este seria o poder de perceber, acessar, vislumbrar algo

indispensável para compreender o verdadeiro andamento do “mundo”. Os evangélico-

pentecostais tomam o mundo físico como um mero reflexo das batalhas que ocorrem

primordialmente no mundo espiritual. Os conflitos pela posse das almas humanas, na mesma

medida em que são travados no espiritual, refletem no “mundo” dos evangélico-pentecostais.

Decorre daí que unicamente aqueles que percebem o mundo espiritual podem entender, em

toda sua complexidade, o mundo físico. Da sobreposição do mundo espiritual e do mundo

físico surge o “mundo” no qual vive e interage o crente.

16

No capítulo quarto, ao apresentarmos o Episódio Vaca Brava, desenvolveremos melhor a ideia da

incapacidade de perceber a “verdade espiritual” que marca a vida dos não evangélicos.

58

Tomando a Bíblia como referência inquestionável e interpretando seu texto de forma

literal, os evangélico-pentecostais colocam-se em combate ombreados pelas hostes angelicais.

Tentam convencer o maior número possível de pessoas a se afastarem das forças do Mal. Para

convencê-las e salvá-las, os crentes precisam fazer com que seus interlocutores reconheçam-

se como “perdidos”. Os perdidos são os não crentes. Demonizam, assim, as práticas sociais –

religiosas ou não – anteriores à conversão do não crente, ou gentio. Todos os ambientes do

cotidiano do crente (escola, trabalho, lazer, etc.) são espaços nos quais, potencialmente, ele

poderá exercer seu papel de “guerreiro espiritual” esperando surgir apenas um momento

oportuno à pregação (alguns não esperam oportunidades, forçam-nas nos locais mais

inusitados).

Há, também, entre os evangélico-pentecostais, uma categorização que divide todo o

contingente populacional do “mundo” em três grupos: os gentios, aqueles também chamados

“do mundo”; os judeus, o “relógio de Deus”17

; e os chamados “salvos”, “crentes”, “santos”,

etc., aqueles a quem está destinado o paraíso eterno junto a Deus.

Desse modo e a partir destes recortes identitários (Eu – Outros), a identificação com o

imaginário social evangélico-pentecostal predica a violência no trato com a alteridade, pois,

na medida em que apregoa a mensagem da Salvação o crente é obrigado, ao preço de ver

colapsar sua identidade se não fazê-lo, a convencer seu interlocutor de sua perdição. A

mensagem da perdição antecede necessariamente a mensagem da salvação. No trabalho do

convencimento por meio do discurso, o evangélico-pentecostal realiza a demonização das

práticas religiosas que não coadunam com sua visão de mundo. Tal demonização ocorre

baseada na ressemantização das práticas e conteúdos religiosos disponíveis no multifacetado

quadro religioso brasileiro.

A manifestação de intolerância por parte dos evangélicos se configura como uma

manifestação de sua religiosidade própria, não sendo entendida pelo evangélico-pentecostal

como um ato execrável de desrespeito. Antes, o crente vê sua “pregação da verdade” como

um mandamento basilar que, segundo seu entendimento, quando efetivado, poderá ser a

última chance de salvação para o gentio “perdido pecador”. Crendo não estarem abertos às

influências de outras visões de mundo, os evangélico-pentecostais cultivam uma postura não

dialógica em relação à verdade espiritual. Postura essa que arrefece a convivência pautada no

respeito com outras religiões e formas de religiosidades.

17

Pois os eventos que marcam a história do povo judaico nutrem a escatologia evangélico-pentecostal e a

informa sobre o “fim dos tempos”.

59

Assim sendo, o modo como é entendida a Batalha Espiritual neste trabalho faz com

que a consideremos para além das lutas contra espíritos malignos encenadas nos cultos das

grandes catedrais iurdianas (OLIVEIRA, 2007). A Batalha Espiritual, como parte constitutiva

do imaginário social evangélico-pentecostal, desdobra-se como um modo específico de estar

no espaço (territorializando-o como “santo”) e no tempo (vivenciando-o como “Plano

Divino”). Estas apropriações são levadas a cabo por intermédio das sete representações

coletivas apresentadas anteriormente. Veremos que elas surgem primeiramente nos

documentos provenientes da AD e são reincidentes em textos da IURD. Constituem o que

chamamos arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Acreditamos que os autores que

estudam os neopentecostais, ao fazerem recair sua atenção aos embates performáticos de

exorcismos nos cultos de denominações neopentecostais como a IURD, exorcismos estes

exacerbadamente propagandeados por diferentes mídias, acabam por tomar a Batalha

Espiritual contra o mal como elemento que fundamenta – num grau de excepcionalidade – a

divisão tipológica neopentecostal ou de terceira onda. Tais estudos servem para reforçar a

ideia equivocada de que a Batalha Espiritual foi pouco desenvolvida no imaginário social da

AD do início do século XX.

Como o fizeram Ricardo Mariano (1999) e Freston (1992), considera-se que as

vertentes pentecostais precedentes ao neopentecostalismo – pentecostalismo clássico,

pentecostalismo histórico, deuteropentecostalismo, pentecostalismo neoclássico – não

dispunham do acervo teológico da Batalha Espiritual.

Por intermédio do estudo da permanência histórica do arcabouço identitário

compartilhado entre assembleianos e iurdianos, demonstramos que a Batalha Espiritual, em

termos de suas representações coletivas fundantes, já estava presente no imaginário

assembleiano desde as primeiras décadas do século XX.

Não queremos, contudo, negar a validade histórica do modelo tipológico proposto por

Mariano (1999) a partir de Freston (1992), a saber, a divisão dos pentecostalismos em três

ondas: pentecostalismo clássico, deuteropentecostalismo e neopentecostalismo. Acreditamos

que as distinções sociológicas – as descontinuidades históricas –, sobretudo as existentes entre

pentecostalismo clássico e neopentecostalismo, são possíveis e convenientes para

fundamentar uma abordagem científica. Devem, entretanto, se sustentar por meio da análise

de outros fatores sócio-históricos que influíram na descontinuidade interpretativa das sete

representações coletivas componentes do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. A

Batalha Espiritual como experiência – mais ou menos “intensa” – não é um elemento que

fundamente com razão as distinções tipológicas. No tópico que se segue sugerimos outra base

60

a partir da qual, acreditamos, podem ser pensadas as distinções e descontinuidades históricas

entre pentecostalismo clássico (AD) e neopentecostalismo (IURD).

2.1. Contextualizando: santidade próspera e/ou prosperidade santa

Freston (1992), Siepierski (2008) e Mariano (1999) concordam que três elementos

podem, basicamente, ser considerados centrais quando estudamos as transformações ocorridas

no pentecostalismo brasileiro do século XX. Seriam eles: a teologia da prosperidade, a

negação dos sinais exteriores de santidade e a exacerbação da Batalha Espiritual. Ou seja,

uma aquisição no nível teológico, uma negação na esfera da tradição e uma “mudança de

ênfase”.

A aquisição no nível teológico seria a teologia da prosperidade. Segundo os autores, a

análise dos desdobramentos da “chegada” desta teologia, proveniente dos púlpitos norte-

americanos da década de 1940, predica um olhar sobre a recepção e adaptação desta mesma

mensagem a partir da realidade sócio-histórica da membresia brasileira ocorrida quando da

sua apropriação pelo discurso pentecostal brasileiro. A negação na esfera da tradição se deu

quanto aos “usos e costumes” – rígido comportamento ascético e sectário da AD – que, por

sua vez, pode ser entendida por meio de estudos que incidam sobre as transformações nas

demandas sociais, hábitos de consumo e contextualização das transformações

culturais/contraculturais na segunda metade do século XX. Assim, pode ser rastreada a

paulatina negação dos sinais exteriores de santidade empreendida no avanço do

neopentecostalismo. Finalmente, a mudança de ênfase teria ocorrido no âmbito da Batalha

Espiritual.

Trataremos rapidamente dos dois primeiros pontos históricos de defasagem entre

pentecostalismo e neopentecostalismo: a aquisição da teologia da prosperidade e negação dos

sinais exteriores de santidade. Nosso propósito nesta seção se assenta na análise e crítica

daquilo que foi trabalhado por Mariano (1999) como a suposta exacerbação da Batalha

Espiritual, daí realizarmos uma apresentação sucinta dos dois pontos iniciais de defasagem

entre pentecostais, não nos aprofundando demasiadamente nessas temáticas.

O papel da Batalha Espiritual nas identificações evangélico-pentecostais não foi

“exacerbado” entre os anos 1960 e 1970, com o advento do neopentecostalismo. Ocorreram,

antes, variações no que tange à prescrição dos modos como o fiel deveria manter-se ativo

dentro da Batalha Espiritual. Estas variações passam mais pelas reinterpretações e usos que

fazem os neopentecostais dos meios de comunicação de massa do que pela implementação de

61

novas coordenadas sociais – desenvolvimento de novas representações coletivas – que sustém

as percepções dos crentes no vivenciar da Batalha Espiritual. No lugar de se tornar mais

intensa, a Batalha Espiritual tornou-se socialmente mais visível por meio de outra abordagem

desenvolvida pelos neopentecostais diante das novas possibilidades midiáticas surgidas nas

últimas décadas do século XX. Então, se não se trata de uma exacerbação da Batalha

Espiritual – fazendo com que tal prática se tornasse característica específica do

neopentecostalismo –, poderíamos perguntar: sob quais aspectos podemos falar em

transformações dentro do quadro de representações coletivas dos evangélico-pentecostais?

Propomos pensar as transformações ocorridas durante o século XX no meio evangélico-

pentecostal brasileiro nos termos de uma gradativa variação interpretativa das representações

coletivas, que deslocou as prescrições que regem a cotidianidade do crente fazendo com que

ele deixasse o cultivo de uma “Santidade Próspera” em busca da “Prosperidade Santa”.

Santidade Próspera e Prosperidade Santa seriam duas matrizes interpretativas aplicadas ao

mesmo imaginário social. Esta variação ou defasagem teológica teria ocorrido, acreditamos,

no bojo das transformações estudadas, respectivamente, por Siepierski e Mariano: a guinada

do pré ao pós-milenarismo, o uso comercial em larga escala dos meios de comunicação com

fins evangelísticos, a introdução da teologia da prosperidade a partir da década de 1970 e as

consequentes novas propostas comportamentais de participação no “mundo” – negação dos

sinais exteriores de santidade – registradas entre os neopentecostais.

2.1.1. Santidade Próspera

Se o leitmotiv da IURD é o conhecido “pare de sofrer!”, o da Assembléia de Deus da

primeira metade do século XX poderia muito bem ser: “mesmo sofrendo, não pare!”. A

santidade Próspera pode ser entendida como um modo característico do pentecostalismo

clássico interpretar as representações coletivas constituintes do imaginário social evangélico-

pentecostal, dando especial valor àquilo que tange à conduta ascética e sectária do crente. O

foco recai sobre o policiamento que o evangélico-pentecostal realiza sobre seu linguajar, seu

trajar, suas relações pessoais e até sobre seus pensamentos. Sempre instanciado numa divisão

binária entre bem e mal que engloba toda e qualquer área de agência humana (cultural,

política, econômica, social), o crente busca alinhar-se às práticas identitariamente

reconhecidas como “santas”.

Da santificação como ditame identitário decorre o policiamento das práticas. Assim,

cada crente é impelido a buscar uma conduta moral irrepreensível – desdobrada nos “usos e

62

costumes” assembleianos –, pautada numa abordagem específica do sofrimento como

positividade. Os sofrimentos de todas as espécies – financeiro, físico, nas relações pessoais,

etc. – seriam circunstâncias especiais permitidas por Deus, que não deveriam ser

questionadas. Isto se dá, pois, segundo o pastor Nils Kastberg, escrevendo para o jornal

assembleiano Som Alegre, em janeiro de 1930, o “caminho para o céu é pelas muitas

tribulações”. O pastor acrescenta:

Talvez não compreendes por que tens que sofrer assim, mas ouve o que

Paulo diz: “A tribulação produz a paciência”, Rm 5.3. O sofrimento,

portanto, produz fruto bom em tua vida. Se porventura agora não

compreendes, esteja certo de que quando o brilho do dia eterno reluzir sobre

a tua vida, tudo se esclarecerá na luz verdadeira, na luz do Senhor, e ali

todos os “porquês” terão as suas respostas. Todos os enigmas se

esclarecerão, e tudo que foi em parte, eternamente passou, 2Co 13.9,13.

Enquanto esperas, sofre quieto com santo silêncio! Dá graças a Deus pelas

rosas além do caminho, e também pelos espinhos no meio delas, até que a

manhã sem nuvens raie (2Sm 23.4). Pode ser que estás sofrendo para

poderes compreender, ajudar e consolar os que padecem. (...) É necessário

possuíres um espírito quebrantado para poderes quebrantar outros

(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 46. 1 v).

Não compete ao crente alinhado com a Santidade Próspera indagar sobre as razões de

seu sofrimento. A mente de Deus é insondável, ninguém pode imaginar quais desígnios

determinou para seu povo. Deste modo devem os verdadeiros cristãos resistir de qualquer

forma, sempre permanecendo sem blasfemar. As contradições sociais e as mazelas

decorrentes de uma organização social excludente não devem ser questionadas, simplesmente

enfrentadas com a resignação que marca tal entendimento de santidade. É a vontade de Deus

que se manifesta com um propósito misterioso. O prêmio ou galardão do crente não está nesta

terra, está no porvir, como escreve Frida Vingren para o jornal Mensageiro da Paz, em

setembro de 1931:

As coisas desta vida, dinheiro, bens, seja o que for, não servem de alimento

para a alma, que saiu de Deus. Considera o que estás fazendo, e não arrisca a

tua salvação, a tua vida, pelos tesouros terrestres, pois além destes não

poderem satisfazer a alma, tornam-se em laços e armadilhas no teu caminho

(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 109. 1 v).

E, segundo as palavras do pastor Aldo Petterson escrevendo ao mesmo jornal, em

março de 1935:

Irmão, você é um membro ativo do corpo de Cristo? Está trabalhando para

ganhar almas para Cristo? Então receberás o galardão quando o Mestre vier.

(...) O galardão estará com Ele quando vier para buscar a sua eleita [a igreja],

63

a sua noiva para levá-la para a glória (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da

Paz, 2004: 143. 1 v).

Além dos textos citados, provenientes do jornal Mensageiro da Paz, podemos

encontrar a mesma mensagem – concernente ao pagamento ou retribuição no céu àqueles que

suportarem em Jesus uma vida pautada nos sofrimentos – sendo reafirmada por meio de

diversas canções na edição de 1923 da Harpa Cristã. Como exemplo, analisemos as duas

últimas estrofes do hino 26 da Harpa Cristã A Formosa Jerusalém, de autoria de Emílio

Conde.

A Formosa Jerusalém – 26 (trecho)

Pensa na celestial melodia / Que a terra encherá de Beulá; / E das harpas a

doce harmonia / Ao passar o Jordão se ouvirá. / Mesmo em dores que levam

à morte, / Sê constante, não voltes atrás, / Tua herança, tua eterna sorte, / É

Jesus, o Fiel, o Veraz.

Se é glorioso pensar nas grandezas, / Nos prazeres que acodem aqui. / Qual

será desfrutar as riquezas / Que esperam os salvos, ali? / Os encantos do

mundo não podem / Ofuscar essa glória dalém; / Não almejas viver, ó amigo,

/ Nessa formosa Jerusalém? (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Com efeito, os distintos entendimentos que os crentes fazem do que seja o sofrimento

– e quais propósitos os mesmos cumprem neste “mundo” – encerram, a nosso ver, as

principais defasagens entre as visões de mundo pentecostais (clássica e neopentecostal). Para

um assembleiano, resistir resignadamente a um sofrimento neste mundo, ao viver em Jesus, é

um motivo de orgulho e lastro para fortalecer seu testemunho cristão. Para os neopentecostais,

o sofrimento será encarado de maneira totalmente diversa, como veremos adiante.

Padecer por Cristo é uma honra para os pentecostais alinhados com a Santidade

Próspera. A Harpa Cristã, hinário oficial das Assembléias de Deus, apresenta no hino 28,

intitulado Deus vai te guiar – de autoria de Frida Vingren, edição de 1923 –, a seguinte

mensagem:

Andas carregado de tristeza e dor, / Sem nenhum auxílio, nem um Salvador?

/ Ouve a mensagem de teu bom Jesus, / E tem mais coragem, leva a tua cruz.

(coro)

Deus vai te guiar com Sua forte mão; / Podes descansar na tribulação; / Seja

tua vida livre de pesar; / Em tristeza e lida Deus vai te guiar.

Toda carga por ti, Ele quer levar; / Alma dolorida, ouve o Seu falar; / Senda

espinhosa Ele já andou, / Morte afrontosa por ti suportou.

Se estás tentado, Deus te ajudará, / Sempre confiando, te libertará; / As

pisadas segue do teu Salvador, / Crendo em Deus, prossegue, seja como for

(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

“Seja como for”, o crente deve resistir e seguir seu Salvador para obter a desejada

salvação. Mesmo porque, o efetivar do retorno de Jesus está muito próximo na visão dos pré-

milenaristas assembleianos. Não há tempo para “alegrias mundanas”, meras imagens

64

distorcidas do que será a bem aventurança junto a Deus no céu. O descrédito e desvalorização

de fruir o gozo que o “mundo” oferece são facilmente percebidos na letra do hino 36 da Harpa

Cristã, O Exilado. Transcrevemos a primeira estrofe:

Da linda pátria estou bem longe; / Cansado estou; / Eu tenho de Jesus

saudade, / Oh, quando é que eu vou? / Passarinhos, belas flores, / Querem

me encantar; / São vãos terrestres esplendores, / Mas contemplo o meu lar

(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Nem a natureza e suas belezas simples e cotidianas estão fora do quadro de

julgamentos que norteiam as interpretações da Santidade Próspera. Se há beleza neste

“mundo”, mesmo a considerada moralmente neutra beleza natural, ela passa pelo crivo do

discurso dualista evangélico-pentecostal. No início de todas as coisas, segundo o

entendimento cristão, o homem maculou o mundo natural ao cometer o pecado original. Até

mesmo os vegetais, animais e minerais sofreram o peso do pecado e foram, assim,

desvirtuados. Um belo pôr de sol, a plumagem ou o canto de determinado pássaro, os

delicados perfumes e cores das flores neste “mundo” são apenas, no entendimento do

evangélico-pentecostal que cultiva uma Santidade Próspera, indícios das verdadeiras belezas

que Jesus foi preparar para os seus seguidores no céu. Assim sendo, apesar dos vislumbres de

beleza neste “mundo” de pecados, esta mesma beleza não deixa de ser uma pálida promessa

do que há por vir. Este “mundo” é majoritariamente um lugar de sofrimentos segundo a

interpretação da Santidade Próspera.

As afrontas e dificuldades de toda sorte servem para, além de fortalecer o caráter do

“verdadeiro cristão”, indicar que estamos temporalmente na iminência da Parousia. Assim, a

concepção da Santidade Próspera contextualiza-se num quadro pré-milenarista. Tal concepção

escatológica prediz que os trabalhos e sofrimentos que recairão sobre os crentes nos

momentos imediatamente anteriores ao Arrebatamento (segunda vinda de Cristo) serão

acentuados. Ou seja, sofrer e resistir em Jesus são também formas de anunciar a sua volta. Por

tais motivos, a santidade que o fiel cultiva por meio da resignação e resistência é “próspera”.

Próspera no sentido de que, confirmando as convicções dogmáticas sobre a Segunda Vinda de

Cristo ao resistir aos sofrimentos, o crente exercita suas virtudes santas. O pentecostal clássico

da AD, mediante a resistência aos trabalhos e sofrimentos deste “mundo”, faz com que

prospere sua própria santidade, diferentemente dos neopentecostais iurdianos que santificam

sua prosperidade. As virtudes santas – paciência, fé, esperança, humildade, resignação – estão

diretamente ligadas à ideia da aquisição de uma fundamentação espiritual, um revestimento de

poder espiritual que concederia ao crente capacidade para perceber e resistir às forças das

65

trevas, tendo acesso ao que está “por trás” do mundo material. Nesse sentido, Bruno

Skolimowisk, escrevendo para o Mensageiro da Paz, em 1931, procede a uma escoima social

em seu artigo Quem são meus irmãos?

Quem é meu irmão? É aquele que ama o fumo, a cerveja e o vinho? – Não!

É aquele que conversa muito e diz muitas palavras inúteis? – Não! Nossos

irmãos são os que andam nos caminhos do Senhor, com toda a verdade e

sinceridade. (...) Quais são meus irmãos? Repito: – são aqueles que andam

com Jesus e confiam somente Nele. Amigo, que não és crente, vê bem: se

Jesus estivesse ao teu lado, chamar-te-ia irmão? Ele não te reconheceria

como tal. E o apóstolo Paulo – ele certamente reprovaria a tua vida

pecaminosa no mundo. Para ti, que desprezas a igreja de Deus, ele não teria

nenhuma palavra de consolação, podes ficar certo disso. (...) Agora, quero

contar-vos onde estão os meus irmãos e minhas irmãs. Vem uma pobre

lavadeira, com as mãos calosas e espinha encurvada. Ela vive para o Senhor

e fala também línguas estranhas, é cheia do Espírito Santo. Digo-vos, com

alegria, essa é minha irmã. Para mim, ela é uma rainha (ARTIGOS

Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 113-115. 1 v).

Na perspectiva da Santidade Próspera, as marcas no corpo que a vida rude e os

sofrimentos advindos da pobreza acarretam não são tomadas como sinais de opróbrio. Pelo

contrário, são lidos como similares aos sinais que o apóstolo Paulo diz trazer em seu corpo –

marcas e cicatrizes de ferimentos causadas por perseguidores e pelas muitas viagens a serviço

da expansão do cristianismo –: “Desde agora ninguém me inquiete; porque trago no meu

corpo as marcas do Senhor Jesus” (Gálatas 6:17). Veremos logo adiante que esta valorização

feita pelo discurso do pentecostalismo clássico do corpo maltratado – “as mãos calosas e a

espinha encurvada” – sofreu significativas mudanças com a inserção da teologia da

prosperidade, a negação dos sinais exteriores de santidade e a guinada pós-milenarista que

marcam o discurso das igrejas neopentecostais, acentuadamente o discurso iurdiano.

A prosperidade e a abundância na vida do crente no pentecostalismo clássico têm

outros sentidos daqueles atribuídos pelos teólogos e doutrinadores neopentecostais alinhados

com a teologia da prosperidade. A vida próspera é a vida de santificação. Mais uma vez, uma

Santidade Próspera. Podemos observar o uso deste sentido para os termos “abundância” e

“prosperidade” na edição de 1923 da Harpa Cristã. O hino 374, Vida Abundante, de autoria de

Paulo Leivas Macalão traz a seguinte mensagem:

Nós queremos ter vida abundante, / De pureza e de santidade, / Para

amarmos a Deus em verdade, / Pela graça que Ele nos deu

(coro)

Vem nos dar Tua vida abundante, / Nosso amado e divino Senhor; / Tua vida

de gozo exultante, / Abundante no Consolador.

Nós queremos ter vida abundante / De amor, que o Pai nos tem dado / Em

Jesus, o Seu Filho amado, / Cuja vida por nós derramou.

66

Nós queremos ter vida abundante / De Jesus, a veraz fortaleza, / Que nos dá

do perdão a certeza, / E nos enche de consolação (HARPA CRISTÃ, 1998:

s/p).

A letra do hino deixa claro o desejo do crente: querem ter suas vidas abundantes sim,

mas uma abundancia de pureza, santidade, amor e Jesus. A Santidade Próspera, entendemos,

se fundamenta na interpretação literal, numa base pré-milenarista, do texto de Mateus 6:31-

33:

Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou

com que nos vestiremos? (Porque todas essas coisas os gentios procuram).

Decerto, vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas essas coisas;

Mas buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas essas coisas

vos serão acrescentadas (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 957).

Não há necessidade de um cuidado excessivo por parte do crente para conseguir o

necessário à manutenção da vida. Deus o garantirá. Consequentemente, a maioria daqueles

alinhados com a Santidade Próspera consegue, por meio de seu esforço diário, apenas o

suficiente para a reprodução da força de trabalho. Que o crente trate primeiramente de

santificar-se, mantendo o testemunho cristão ao resistir docemente no amor de Jesus em suas

dificuldades e sofrimentos. Para facilitar a compreensão dessa mensagem, a esposa de um dos

fundadores da Assembléia de Deus, Frida Vingren, publicou no jornal Som Alegre –

precursor do Mensageiro da Paz –, de fevereiro de 1930, um perfil do “salvo”, que explicita

as características básicas da “fé dos santos”.

“A fé dos santos”, são as doutrinas fundamentais, que o apóstolo [Paulo] nos

recomenda a guardar. Sim, ele diz: “pelejai por ela” – a fé.

Isto inclui tanto (a fé), o uso prático dela em nossa vida particular, como um

trabalho defensivo. Proclamemos, portanto, em primeiro lugar, salvação

completa de todos os vícios e pecados. Uma salvação que comece no

coração pelo novo nascimento, e depois penetre em todo o ser – corpo,

espírito e alma. Um salvo não tem vício, mas está liberto pelo precioso

sangue de Cristo. Um salvo não é mundano – nos seus modos de viver, no

falar – no vestir – e no seu procedimento em geral. Mas ele vive para Cristo

– uma vida reta e pura no meio de uma geração corrupta. É necessário

proclamar esta salvação, para que o Espírito Santo possa fazer a sua obra

libertadora nos corações dos pecadores que ouvem a Palavra do Senhor. A

Igreja de Deus consiste de “salvos” e não de viciados. Se alguém aceita a

Palavra do Senhor por um mero interesse, ou por uma certa influência, sem

ser convertido pelo poder de Deus, não permanecerá na igreja dos salvos.

Mas depois de algum tempo durante o qual causou escândalos e

perturbações, volta para o mundo – pois o mundo estava no seu coração. (...)

Também faz parte desta fé a santificação. Há crentes que ainda não entraram

neste caminho. Estão apenas confiando na sua própria fé, ou em bênçãos

recebidas há muito tempo, esquecendo-se do que está escrito: “sem

santificação ninguém verá o Senhor”. Na Igreja do Senhor não há lugar para

murmuradores, críticos e maliciosos. (...) O pastor é criticado, a direção do

67

trabalho, as pregações, os testemunhos, enfim tudo. Atitude esta que mostra

uma grande lacuna na santificação, e falta de verdadeiro temor de Deus. (...)

O Batismo do Espírito Santo faz parte da fé dos santos. Não baixemos a

bandeira – deixando de anunciar todo o “conselho de Deus” (At 20.27). (...)

Deixando de anunciar o batismo do Espírito Santo é fácil introduzirem-se na

igreja pessoas que não crêem verdadeiramente, e não suportam

manifestações do poder de Deus. E isto não tem boa influência sobre a vida

espiritual da igreja. (...) Enfim – a Vinda do Senhor é uma parte da mesma

fé. Isto tem sido o assunto querido dos santos em todos os tempos; daqueles

que amam o Senhor Jesus de todo o seu coração. Anunciar a Vinda do

Senhor é um meio de despertamento que cada vez mais se torna importante,

pois estamos perto da “meia-noite”, e o sono quer se apoderar das virgens

que estão esperando a vinda do noivo. Pelejai pela fé, uma vez entregue aos

santos (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 32-34. 1 v).

Podemos depreender da exposição feita por Frida Vingren certas características que

não poderiam faltar aos “santos” assembleianos durante a primeira metade do século XX: a

libertação dos vícios e pecados, o afastar-se do mundanismo, o cultivo de uma vida em

santificação, o anúncio e a vivência do Batismo no Espírito Santo e a crença na volta de

Cristo.

Acreditamos não incorrer em erro ao agruparmos as três primeiras características

(libertação dos vícios e pecados, afastar-se do mundanismo e o cultivo de uma vida de

santificação) numa mesma característica desdobrada em várias práticas ao percebermos que

elas estão voltadas ao exercício de uma santificação baseada no ascetismo. Podemos

considerar que as palavras-chave destas ordenanças, desdobradas em identificações com as

representações coletivas evangélico-pentecostais, são: “separação” – do mundo de pecado –,

“libertação” – das práticas demonizadas pelos fieis – e “santificação” – para receber o

verdadeiro temor de Deus. Práticas estas que só farão sentido se lidas dentro de seu

imaginário social particular. A vivência e anúncio do Batismo no Espírito Santo e a volta de

Cristo são características que, apesar de terem sofrido algumas mudanças interpretativas

durante o tempo que separa os pentecostais clássicos dos neopentecostais, mesmo assim, são

reproduzidos por esses últimos de forma similar às práticas dos primeiros. Ou seja, estão

resguardadas no imaginário social as mesmas bases representacionais do início do século XX.

Analisaremos com maior detalhamento tais continuidades mais adiante.

Para podermos vislumbrar com mais precisão como a Santidade Próspera era

entendida e vivenciada – e ainda o é em alguns meios evangélico-pentecostais menos visíveis

socialmente –, vamos analisar como se deu a recepção por parte dos assembleianos de

inovações tecnológicas no âmbito das comunicações que transformaram o século XX. O

modo pelo qual acolheram a TV e o rádio diz-nos muito acerca da modalidade interpretativa

68

da Santidade Próspera ao refletir posturas ascéticas derivadas da compreensão do que era

inerentemente bom ou mau nos avanços tecnológicos “mundanos”.

Vimos que a afirmação da “santa pobreza”, entre os assembleianos, como uma

positividade serviu para fazer frente a uma sociedade marcada por gritantes desigualdades

sociais – sua pobreza, contudo, seria posteriormente recompensada no céu com riquezas

indizíveis. Além disso, os evangélico-pentecostais da AD desenvolveram uma rígida prática

sectária e ascética baseando-se num dualismo obsedante. Vida e morte do crente estavam

prescritas na observância dos “usos e costumes”. Assim, as novidades tecnológicas como o

rádio18

e a TV19

foram recebidas com maus olhos, pois sua utilização, por mais que pudesse

servir aos intentos evangelísticos de disseminação da mensagem pentecostal, colocava numa

situação paradoxal a identidade assembleiana fundada na separação das “coisas mundanas”.

Em 1975 foi publicada a primeira resolução da igreja Assembléia de Deus sobre as normas de

“usos e costumes”. Redigida durante a convenção geral de 1975, foi um marco no sentido de

verter para um documento escrito as observâncias e restrições sociais que foram sendo

18

“Edgard Roquete Pinto, antropólogo, foi um dos grandes incentivadores do rádio no Brasil. Cronologicamente,

há registros que comprovam que a primeira emissora de rádio brasileira surgiu com a fundação da Rádio Clube

de Pernambuco, em Recife, no dia 6 de abril de 1919. Em 1922, é tida como a primeira irradiação oficial a

transmissão feita a partir do alto do corcovado, no Rio de Janeiro, nas comemorações do Centenário

da independência do Brasil. ”O rádio é o divertimento do pobre(..), e a informação dos que não sabem ler”,sob

estas palavras Roquete Pinto enxergou no rádio um veículo que pudesse difundir a cultura e história brasileira.

Em 1923, são instalados aparelhos receptores na cidade do Rio de Janeiro, idealizada por roquete Pinto. Outras

emissoras começaram a surgir não somente com uma programação informativa, mas planejada em primeiros

passos para transmitir a nossa música e arte. Com a evolução tecnológica, nos anos 30, as rádios criaram

programas de auditório, o que fez do rádio um veículo popular. Em 1934, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro

foi transformada em Rádio Municipal do Rio de Janeiro, popularmente conhecida como rádio Roquete Pinto. As

rádio nesta fase se fortaleceram como lançadoras de grandes talentos musicais como Francisco Alves, Vicente

Celestino, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, entre outros. Na década de 50, o rádio difundiu as transmissões

esportivas, como a Copa de 58, todos torceram pelo Brasil através do rádio. Em 1953, haviam números que

identificaram a existência de cerca de 500 emissoras de rádio no país e quase meio milhão de aparelhos

receptores.” (texto de Fernando Rebouças, publicado em 2 jun 2008, disponível em: <http://migre.me/5bFaa>.

Acessado em 21 jul 2010). 19

A televisão no Brasil foi inaugurada oficialmente no dia 18 de setembro de 1950, por iniciativa do jornalista

Assis Chateaubriand, que fundou o primeiro canal de televisão no país – a TV Tupi – importando toda a

aparelhagem dos Estados Unidos. No dia 18 de setembro de 1950, oficialmente a TV Tupi canal 03 de São

Paulo, PRF-3 TV, transmitiu suas primeiras imagens. Nascia aí a televisão no Brasil. A televisão se

desenvolveu rapidamente no Brasil, tanto tecnologicamente, com um rápido aperfeiçoamento técnico, quanto

em número de TVs nos domicílios brasileiros, que em pouco mais de uma década saltou da casa das centenas

para a casa dos milhões. Sérgio Mattos (2002) em estudo que buscou historiar a televisão brasileira dividiu o

desenvolvimento da TV no Brasil em seis fases, a saber: 1) fase elitista (1950- 1964), os televisores, ainda

muito caros, eram considerados artigos de luxo aos quais somente a elite econômica tinha acesso; 2) fase

populista (1964-1975), quando a televisão era considerada um exemplo de modernidade e programas de

auditório de baixo nível tomavam grande parte da programação; 3) fase de desenvolvimento tecnológico

(1975- 1985) quando as redes de televisão se aperfeiçoaram e começaram a produzir com maior

profissionalismo os seus próprios programas com estímulo de órgãos oficiais visando, até mesmo, a

exportação; 4) fase da transição e da expansão internacional (1985- 1990); momento de abertura democrática

e de intensificação das exportações de programas; 5) fase da globalização e da TV paga (1995-2000), quando

o país buscou modernizar-se e a televisão se adaptou aos novos rumos da redemocratização; 6) fase da

convergência e da qualidade digital (2000 -), quando do desenvolvimento da tecnologia, apontando para uma

maior interatividade na televisão. (Roiz & Fonseca; 2009).

69

construídas e repassadas por meio da oralidade durante mais de sessenta anos. No documento

de 1975, não se discutiu diretamente o uso do rádio. Este, como logo se verá, já havia sido

integrado ao universo assembleiano, apesar de, vez por outra, virulentos ataques ao seu “mau

uso” ainda surgirem nos púlpitos e em publicações da igreja.

Diferente era a carreira da TV entre os assembleianos. Sua utilização ainda estava em

pauta na Convenção de 1975 – dada a popularização dos aparelhos e organização de

programas à época – e apareceria no texto da resolução sobre os “usos e costumes”.

A proposta da resolução de 1975 foi apresentada por Geziel Nunes Gomes a pedido do

pastor presidente da CGADB, Túlio de Barros Almeida, no encontro realizado na cidade de

Santo André, entre os dias 20 e 24 de janeiro. O conteúdo da “Resolução de Santo André” –

como ficou conhecida – reunia muito dos debates de quarenta e cinco anos de encontros da

liderança assembleiana e várias regras que já vinham sendo praticadas pelos membros da

igreja desde os primórdios da Assembléia de Deus no Brasil (ROIZ & FONSECA, 2009). A

resolução que foi apresentada e aprovada no dia 22 de janeiro dizia:

E ser-me-eis santos, porque eu, o Senhor, sou santo, e separai-vos dos povos,

para serdes meus (Lv 20.26). A Convenção Geral das Assembléias de Deus

no Brasil, reunida na cidade de Santo André, Estado de São Paulo, reafirma

o seu ponto de vista no tocante aos sadios princípios estabelecidos como

doutrinas na Palavra de Deus - a Bíblia Sagrada - e conservados como

costumes desde o início desta obra no Brasil. Imbuída sempre dos mais altos

propósitos, ela, a Convenção Geral, deliberou pela votação unânime dos

delegados das igrejas da mesma fé e ordem em nosso país, que as mesmas

igrejas se abstenham do seguinte:

1. Uso de cabelos crescidos, pelos membros do sexo masculino;

2. Uso de traje masculino, por parte dos membros ou congregados,

do sexo feminino;

3. Uso de pinturas nos olhos, unhas e outros órgãos da face;

4. Corte de cabelos, por parte das irmãs (membros ou congregados);

5. Sobrancelhas alteradas;

6. Uso de mini-saias e outras roupas contrárias ao bom testemunho

da vida cristã;

7. Uso de aparelho de televisão – convindo abster-se, tendo em vista a má

qualidade da maioria dos seus programas; abstenção essa que justifica,

inclusive, por conduzir a eventuais problemas de saúde;

8. Uso de bebidas alcoólicas (Convenção Geral de 1975. Resolução de Santo

Andre. In: ROIZ & FONSECA, 2009: 195-196).

O uso do rádio e da TV – que a IURD não hesitou fazer em seu processo de expansão

– foi longamente debatido e cerceado pelas rígidas convenções da AD. A maior antiguidade e

acessibilidade do rádio fizeram com que seu uso fosse ponderado desde as primeiras

Convenções Gerais. Já em 1937, em São Paulo, era aventada a questão: “é lícito pregarmos o

Evangelho pelo rádio?”.

70

Aberto que foi o assunto, vários irmãos falaram, mostrando como o rádio

tem servido, já em diversas partes como benção para transmitir as verdades

de Deus, não obstante vermos também os perigos que o mesmo pode trazer

no caso de os crentes se apegarem ao rádio, não querendo mais ir às igrejas

e, mesmo que apenas adquirindo rádios, contaminando-se com as músicas

mundanas e outras palestras prejudiciais que o mesmo pode trazer. O senhor

nos ajudou nesse ponto, pois no finalizar, todos estavam de comum acordo

de que evemos sempre aceitar os convites para cantar, tocar e pregar pelo

rádio e aproveitar tais oportunidades quando trazidas por Deus. Mas quanto

à questão de ter rádio, no momento atual, a Convenção achou que não

devemos ter (Convenção Geral de 1937. In: ROIZ & FONSECA, 2009:

2743).

Mesmo com aval para fazer uso do rádio, os fiéis deveriam evitar adquirir aparelhos

para não facilitar a disseminação de ideias não cristãs nos lares assembleianos. Durante as

décadas de 1940 e 1950, ocorreu um rápido crescimento do radioevangelismo assembleiano.

Apesar de a doutrina aconselhar a não assistência aos programas, estes se multiplicaram20

.

Este crescimento se deu acompanhando o aumento da radiofonia no Brasil. O uso do rádio

entrou abertamente em discussão na Convenção Geral de 1962, no Recife. Não foi discutida,

contudo, a utilização ou não por parte dos membros, pois os que encabeçaram as discussões, à

época, foram os pastores que já trabalhavam com o radioevangelismo. Estes, não querendo

exaltar os ânimos ao levantar questão tão delicada, posto que desafiasse de certa forma a

doutrina dos usos e costumes, abordaram indiretamente o tema ao proporem a questão “como

fazer para as Assembléias de Deus no Brasil manterem um programa oficial radiofônico

diário em uma potente emissora?”. Assim, o uso do rádio, tanto para a evangelização quanto

por parte da membresia que possuísse o aparelho, foi sendo lentamente aceito, mesmo que

ocorressem rompantes de preciosismo em nome da “sã doutrina” por parte de alguns pastores

menos inclinados a aceitar a radiofonia. André Dioney Fonseca, em seu trabalho “É lícito

pregarmos o evangelho pelo rádio?”:os debates sobre o radioevangelismo nas Convenções

Gerais das Assembléias de Deus no Brasil (2009), cita um exemplo de ataque à utilização do

rádio publicado em 1969, na revista A Seara.

20

“O programa do pioneiro do radioevangelismo na igreja Assembléia de Deus Lawrence Oslon, ainda que sob

forte oposição, foi ao ar em 1947, na Rádio Cultura de Lavras em Minas Gerais. Em 1950, o pastor José

Gomes Moreno da cidade de Curitiba deu início ao programa “Voz Evangélica das Assembléias de Deus”

pela Rádio Guairacá. Em janeiro de 1955, Lawrence Oslon lançou pela Rádio Tamoio o histórico programa

“Voz das Assembléia de Deus”. Ainda no ano de 1955, o pastor Alcebíades Pereira de Vasconcelos propôs à

igreja de São Luís no Maranhão a criação de um serviço de evangelização pelo rádio. Sendo aprovada a

proposta, o programa utilizou, num primeiro momento, os estúdios da Rádio Ribamar, transferindo-se no ano

de 1956, para a Rádio Timbira do Maranhão. Também do ano de 1955, foi ao ar o programa “O Som do

Evangelho” na igreja de Belém do Pará. Com a transferência de Alcebíades Pereira de Vasconcelos em 1960

da capital do Maranhão para a capital do estado do Pará, a igreja Assembléia de Deus da cidade Belém

entraria numa nova fase do radioevangelismo, posto que toda a experiência de Vasconcelos nas rádios de São

Luís serviu para reestruturação da radiofonia evangélica na capital paraense” (ROIZ & FONSECA, 2009:

2744).

71

Habituados às pregações programadas, desprezam as mensagens simples dos

irmãos que não tiveram estudo. Ora a pregação do rádio tem que ser

antecipadamente preparada com as boas regras da homilética e da gramática,

com muito cuidado para não conter erro teológico nem de linguagem, é

diferente da feita improvisadamente [sic] no púlpito pelo “pregador da roça”.

Uma coisa porém é certa: o radiólatra é árvore sem fruto na igreja. Não

coopera nas despesas feitas para a extensão da obra evangélica; nem mesmo

para os programas de rádio. Torna-se improdutivo! Fica em casa ouvindo o

rádio sim, mas sem receber as indispensáveis instruções doutrinárias. O

rádio prega, mas nem sempre doutrina. Em muitos casos a família se

corrompe com a imundície que o rádio lhe transmite. Já presenciei em casa

de crente, criancinhas fazendo voltas no corpo quando ouviam, pelo rádio, as

músicassambalísticas (FONSECA, 2009: 2746).

A partir desta sucinta apresentação de como se deu o processo de introdução do Rádio

e da TV no meio assembleiano, podemos vislumbrar a ação das concepções de mundo guiadas

pela visão da Santidade Próspera. A lenta introdução das tecnologias midiáticas desenvolvidas

e popularizadas no século XX fala-nos da tensa aceitação e tímido uso que delas fizeram os

assembleianos. Certamente menos da TV que do Rádio. As restrições atingiam tanto a massa

dos membros quanto boa parte das lideranças que só precariamente puderam desenvolver

atividades evangelísticas nestes meios, diferentemente do uso em larga escala empreendida

pelos iurdianos, tanto do Rádio quanto da TV

Pudemos perceber que os ditames dos “usos e costumes” estavam intimamente ligados

à manutenção da vivência da Santidade Próspera. Um cerceamento do indivíduo com objetivo

de aquilatá-lo no grande rebanho de Jesus, desdobrado num feérico controle dos gostos.

Discutiremos em pormenores no próximo tópico que tal controle mostrar-se-ia incompatível

com as tendências de uma sociedade de consumo em expansão. Outro ponto discrepante entre

assembleianos e iurdianos será o desenvolvimento de uma postura, entre os últimos, de

aceitação das novidades “mundanas” como potenciais práticas aceitáveis entre seus fiéis.

Claro, as novidades só são assimiladas mediante um complexo processo de ressignificação

dentro dos quadros imaginários evangélico-pentecostais (ver nota 35, no capítulo 3). Esta

inclinação a receber e interagir com as novidades “mundanas” só foi possível mediante uma

desvalorização da tradição dos “usos e costumes” empreendida pelos neopentecostais. Tal

tradição configurava-se (e ainda se configura) como um dos maiores obstáculos ao tornar

apetecível a fé evangélico-pentecostal às novas classes consumidoras brasileiras surgidas na

segunda metade do século XX. Tanto é assim que Edir Macedo, líder da IURD, enriqueceu o

panteão infernal ao propor a existência de um novo demônio, o “Exu Tradição”. Para Macedo,

o preciosismo no que tange ao cumprimento das práticas dos “usos e costumes” pode ser

entendido como um obstáculo ao recebimento do poder espiritual.

72

Enquanto você, amigo leitor, estiver satisfeito com a tradição histórica de

sua Igreja, com seus rituais e cerimônias, com sua liturgia e com a sua

aceitação das coisas como estão, não será ungido pelo Espírito Santo […] há

um demônio chamado Exu tradição (sic I) que penetra sorrateiramente,

obrigando os membros da Igreja a atentar-se tão somente para usos,

costumes e normas eclesiásticas (MACEDO, 1993: 133).

2.1.2. Prosperidade Santa

A Prosperidade Santa pode ser entendida como um modo característico de

interpretação que o neopentecostalismo realiza das representações coletivas compartilhadas

pelo imaginário social evangélico-pentecostal calcado na teologia da prosperidade e numa

relativa abertura às novidades em matéria de tecnologias sociais. As características dessa

matriz interpretativa redundam nas práticas sociais que sustentaram o novo “perfil de

santidade” dos chamados neopentecostais. Apesar da defasagem em relação àqueles que se

guiam pela Santidade Próspera, os evangélico-pentecostais alinhados com a Prosperidade

Santa – tomamos os fiéis da IURD como representantes deste segmento – compartilham

grande parte da bagagem representacional que o pentecostalismo clássico da AD usa para

pensar o “mundo”. Desse modo, o hiato entre Santidade Próspera e Prosperidade Santa está,

basicamente, em nuances interpretativas e acréscimos doutrinários, não no surgimento de

novas representações coletivas.

Para o neopentecostal, a conduta “santa” será aquela que prima pelo sucesso

econômico e social pautados no discurso da teologia da prosperidade, fazendo agir o “santo”

no sentido de cooperar com Deus na implantação de seu Reino aqui na terra. Assim, a

Prosperidade Santa está intimamente relacionada à visão escatológica pós-milenarista, como

apresentada por Siepierski (2008). Ao fundamentar esta nova experiência de “santidade”, Edir

Macedo, líder máximo da IURD, propõe outra explicação para a origem dos sofrimentos,

diferente daquela desenvolvida na primeira metade do século XX pelos doutrinadores

assembleianos.

Essa é a razão fundamental pela qual o Senhor permite que tenhamos

problemas e passemos por tribulações: para que tenhamos a nossa fé sempre

em exercício constante, pois é através das dificuldades que obtemos

perseverança e, consequentemente, experiência. A fé precisa ser exercitada

constantemente, até que se torne sólida, para então subirmos outros degraus

de maiores realizações, para agradar a Deus... (MACEDO, 2007: 162).

O sofrimento, do mesmo modo como na AD, é visto como uma espécie de purificador

do caráter cristão. Porém, diferentemente da AD, que entende serem insondáveis as razões

73

destes sofrimentos e alimenta a ideia de haver retribuição pelo esforço da resistência

resignada a estes mesmos sofrimentos no céu, os crentes da IURD julgam compreender o

porquê de suas tribulações e esperam vivenciar o bônus de seu esforço em vida. Como

escreve Edir Macedo, o sofrimento faz a fé tornar-se sólida para propiciar ao fiel a capacidade

de “maiores realizações”. Estas “realizações” não são excepcionalmente espirituais como o

eram para a AD. A transformação histórica que levou o discurso evangélico-pentecostal

oscilar de um modelo que visava cultivar a Santidade Próspera como regra de vida –

marcadamente pré-milenarista – rumo ao novo modelo, por nós denominado Prosperidade

Santa, foi gradual e realizou-se acompanhando, basicamente, as transformações

socioeconômicas brasileiras. Num processo de concomitância, acomodando-se às novas

demandas sociais dos anos 60 e 70 do século passado, a identidade evangélico-pentecostal

flexibilizou seus discursos e ampliou seu leque de condutas moralmente aceitáveis ou

“santas”. Novas estratégias evangelísticas para ampliar o Reino de Deus na terra.

Surgiu uma nova concepção acerca do uso dos meios de comunicação de massa,

pautados na teologia da prosperidade e na nova relação de aparente positividade do crente

com o “mundo”. O rádio, a TV, os jornais, começaram a ser sistematicamente utilizados com

fins de “evangelizar” os perdidos e formar os conversos, fazendo com que os discursos

identitários dos crentes ganhassem cada vez mais visibilidade social: canções, livros,

preleções gravadas, folhetos. Enquanto a Assembléia de Deus, em seu ideário de Santidade

Próspera, dilatou o seu período de quarentena aos usos dos meios de comunicação ao pregar

um afastamento “saudável” das coisas do “mundo”; a Prosperidade Santa, característica dos

neopentecostais, inverte o discurso.

A suprema tarefa dos cristãos é por o Evangelho onde ele deve estar: na rua

principal, nas grandes avenidas e bulevares da humanidade; fora, em lugares

públicos, nos centros de informação e ação, nos transportes, montado em

carros e botes, imprimindo-lhe velocidade nas rodas da tecnologia moderna,

nas impressoras digitais multicores, nas bobinas de fitas de áudio, vídeo e de

filmes de ação (FRANCEN, s/d: 05).

Desse modo, as possibilidades de emergência das reinterpretações dentro do

imaginário evangélico-pentecostal encontram seu fundamento no repensar do pentecostalismo

em função da Prosperidade Santa como nova regra de vida contraposta aos “usos e costumes”.

Uma nova concepção do que seja o sofrimento e outro entendimento da santidade vieram no

bojo da negação dos sinais exteriores de santidade. Este repensar pode ser rastreado, segundo

Prandi (2008), nas três últimas décadas do século XX.

74

No período que vai de 1950 a 1970, o modelo ideal do religioso pentecostal

era o crente trabalhador (homem ou mulher) comedido nos hábitos, submisso

à autoridade, modesto no vestir, avesso ao consumismo. Dinheiro era coisa

do diabo, era perdição. Muito adequado a uma sociedade cuja economia

remunerava mal o trabalhador. Em meados dos anos 1970 a economia

começou a mudar, e o setor produtivo industrial, que era o carro chefe do

desenvolvimento econômico da América Latina, se viu ultrapassado pelo

setor terciário do comércio e serviços. O ideal do operário que produzia e se

contentava com um salário baixo foi substituído, de modo crescente, pelo

modelo do consumidor inserido num mercado cada vez mais globalizado, em

que todos podem comprar muito, mesmo que seja as quinquilharias asiáticas

vendidas a preços irrisórios e artigos falsificados mais baratos. O consumo

generalizou-se apoiado num sistema de crédito ao consumidor acessível a

todos. Nessa nova cultura consumista, o velho pentecostalismo passou a

dizer pouco para muitos. Já no final da década de 1970, temos novidades

marcantes: a chegada da teologia da prosperidade e o surgimento das igrejas

do neopentecostalismo. E a nova religião desdemonizou o dinheiro e o

consumo: a Deus apraz que seus filhos gozem de conforto e do acesso aos

bens de que dispõe a humanidade […] (PRANDI, 2008: 15).

Segundo L. S. Campos (1999), foi no bojo da grande depressão dos anos 1930 que, a

partir das crenças das camadas médias da população norte-americana, desenvolveu-se o

embrião da “teologia da prosperidade”. Contudo, mesmo que tal coleção de doutrinas já

fizesse sucesso nos púlpitos norte-americanos em fins da década de 1940, foi apenas na

década de 1970 que a teologia da prosperidade seria reconhecida como uma doutrina

sistematizada. A mensagem central de tal teologia é a de que a pobreza é obra da ação

demoníaca e que Deus, sendo um pai amoroso e rico, não quer que seus filhos vivam em

miséria, mas sim, prósperos, saudáveis e ricos21

(CAMPOS, 1999). É uma mensagem que

vem ao encontro das necessidades de uma grande parcela da população brasileira como um

bálsamo às exasperações daqueles que, economicamente excluídos, buscam de toda forma se

manter dentro de uma sociedade de consumo cada vez mais rica em opções.

Ora, Deus quer nos dar vida abundante e nós queremos ter. Somente o Diabo

e aqueles que lhe pertencem não querem que nós sejamos abençoados. A

pessoa oprimida pela situação financeira tem de iniciar uma verdadeira

batalha espiritual contra os que se opõem ao seu sucesso material. Isso só

acontece através da fé nas promessas de Deus, o único caminho pelo qual ela

conseguirá alcançar a sua vitória. […] Se a pessoa não der os dízimos que

pertencem ao Senhor, é problema dela com Deus. Quanto à nós, pastores,

21

“Com promessas de que o mundo seria locus de felicidade, prosperidade e abundância de vida para os cristãos,

herdeiros das promessas divinas, a Teologia da Prosperidade veio coroar e impulsionar a incipiente tendência

de acomodação ao mundo de várias igrejas pentecostais aos valores e interesses do “mundo”, isto é, à

sociedade de consumo. […] Para os defensores da Teologia da Prosperidade, a expiação do Cordeiro libertou

os homens da escravidão ao Diabo e das maldições da miséria, da enfermidade, nesta vida, e da segunda

morte, no além. Os homens, desde então, estão destinados à prosperidade, à saúde, à vitória, à felicidade. Para

alcançar tais bênçãos, garantir a salvação e afastar os demônios de sua vida, basta o cristão ter fé incondicional

e inabalável em Deus, exigir seus direitos em alta voz e em nome de Jesus e ser obediente e fiel a Ele no

pagamento dos dízimos” (Mariano, 1999).

75

temos apenas que alertar e ensinar o povo a verdade. É claro também que os

que são fiéis nos dízimos têm o privilégio de exigir de Deus o cumprimento

da promessa em suas vidas e, obrigatoriamente, o Senhor tem que cumpri-la

(MACEDO, 2007: 115-117).

Uma característica marcante do discurso na Prosperidade Santa, embasada na teologia

da prosperidade em sua orientação escatológica pós-milenarista, é a abertura que esta dá à

possibilidade do crente cobrar de Deus as bênçãos. No pentecostalismo clássico, e em menor

medida no deuteropentecostalismo – ou pentecostalismo neoclássico –, o crente devia se

submeter à vontade divina, humilhando-se e orando incessantemente para alcançar alguma

bênção almejada. Em contrapartida, segundo a concepção da teologia da prosperidade, ao

morrer na cruz para salvar a humanidade, Jesus Cristo quitou todas as dívidas da raça humana

provindas do pecado. Ou seja, o crente detém o direito legal de ser abençoado agora, neste

“mundo”. Não só pode como deve cobrar de Deus a prosperidade para que esta lhe sirva como

testemunho da superioridade de Jesus sobre os outros “deuses”. Segundo a compreensão dos

neopentecostais, a prosperidade serve majoritariamente a propósitos evangelísticos. Ser

próspero e ser santo não são, assim, condições excludentes. Pelo contrário, a posse de bens

neste “mundo” é sinal de aprovação por parte de Deus da conduta daqueles que o servem.

A ligação entre santidade e prosperidade é tão patente que uma circunstância, segundo

a teologia da prosperidade, pode fazer com que as promessas divinas possam ser

interrompidas em seu cumprimento na vida do fiel: a dúvida. Se uma benção material não é

alcançada na vida de um fiel neopentecostal, logo os líderes religiosos sustentam que a fé,

desdobrada nas intenções daquele que busca, ou os sacrifícios (muitas vezes em formas de

doações em dinheiro para a igreja) não foram suficientemente “santos”. Assim, é esperado do

crente que não duvide minimamente do recebimento da bênção para que o Diabo não o

subjugue anulando o direito sagrado (SOUZA & MAGALHÃES, 2002).

Se a prosperidade é dom de Deus, então, busque-a. Toda vez que você orar

persevere, mantenha-se firme, mesmo que uma voz infernal lhe diga: “Os

prósperos não agradam a Deus; você nunca prosperará”. Nesse caso, diga:

“Não, Satanás! Você está amarrado em Nome de Jesus! Esse dom é meu por

direito” (SOARES, 2003: 12).

Leonildo da Silveira Campos (1997), estudando sobre os neopentecostais e o discurso

da teologia da prosperidade, considera que os crentes que “cobram” de Deus suas bênçãos,

tendo os iurdianos como exemplo máximo, seriam menos “espirituais” do que outros que não

professam a mesma crença na prosperidade terrena, como os assembleianos não

neopentecostalizados. Não apenas Campos, como também outros autores sustentam que,

76

desse modo, os fieis da teologia da prosperidade vão às igrejas e realizam quase que uma

transação comercial com Deus, tendo o templo como um mercado da fé. Os crentes alinhados

com o neopentecostalismo seriam, assim, menos uma membresia e mais uma clientela. Esses

estudiosos reforçam seu argumento a partir das tendências neopentecostais de afastarem-se

dos estereótipos e condutas ascéticas – os sinais exteriores de santidade – que marcavam (e

ainda marcam) o pentecostalismo clássico. Porém, apesar do discurso neopentecostal da

teologia da prosperidade oferecer abertura para tal interpretação sociológica, acompanhemos

as palavras escritas por Edir Macedo logo após discorrer sobre a teologia da prosperidade:

A […] atitude que a pessoa deve tomar para ser abençoada financeiramente é

não colocar o coração em qualquer coisa deste mundo; mesmo as bênçãos de

Deus jamais devem ser objetos de adoração. O que acontece com muita

frequência é que a pessoa começa a prosperar financeiramente e,

automaticamente, quase sem perceber, começa a valorizar o que os seus

olhos estão vendo, em detrimento dos valores espirituais. É comum não ter

muito tempo para ir à igreja buscar a presença de Deus, porque as suas

atividades precisam de mais atenção. (MACEDO, 2007: 118).

Ou seja, apesar de realmente a teologia da prosperidade ter contribuído para uma

ressignificação da riqueza entre os neopentecostais, estes ainda precisam permanecer com

suas mentes, esforços e atenção voltados ao mundo espiritual. E o mundo espiritual só existe

para o evangélico-pentecostal em função do conflito do qual é palco. O mundo espiritual só

existe em função da Batalha Espiritual. Assim, os neopentecostais também precisam se

santificar, mesmo que não nos termos da Santidade Próspera assembleiana. Do contrário,

poderão ser facilmente enganados pelo Diabo. A santificação ainda guarda os termos de um

revestimento de poder espiritual.

Estamos rodeados de testemunhas, fatos e realizações que comprovam a

veracidade da Palavra de Deus, a honra que Ele tem por Sua Palavra.

Devemos, então, tirar todo embaraço: o pensamento maligno de desistir e a

incredulidade. Se a Bíblia diz que a prosperidade é dom de Deus, então,

devemos crer. Temos também de deixar o pecado. Quem é adúltero, ladrão,

desonesto, falso, mentiroso, cheio de vícios etc. não pode esperar receber de

Deus a prosperidade. É preciso tomar uma decisão por seguir realmente a

Palavra de Deus (SOARES, 2007).

Encarar os neopentecostais apenas como “clientes” de suas denominações não é

suficiente para compreender as redes de solidariedades e alteridades que se estabelecem nos

processos de identificação do converso. A descoberta das verdades veladas que julgam

possuir (aquelas que estão “por trás” do mundo físico) e o compactuar do imaginário social

evangélico-pentecostal faz com que o paradigma que os entende como uma empreitada

meramente comercial não seja suficiente para explicar as razões que os levam a tomar parte

77

na Batalha Espiritual. E como partícipes na Batalha, os fieis alinhados com a Prosperidade

Santa compartilham, necessariamente, o arcabouço identitário – desdobrado nas práticas

engendradas no marco das representações coletivas constituintes do imaginário social

evangélico-pentecostal.

2.1.3. Inovação teológica ou ênfase midiática sobre a Batalha Espiritual?

Este trabalho não pretende, de modo algum, esgotar a discussão acerca da revisão dos

fundamentos que sustentam as divisões tipológicas entre os pentecostais. Contudo, esperamos

que nossas sugestões sejam minimamente suficientes para que relativizemos a clássica e

equivocada interpretação da Batalha Espiritual entendida como elemento característico e

fundamental somente do neopentecostalismo. Não contamos com espaço suficiente para

aprofundarmos as possíveis razões que fizeram com que os estudiosos tomassem a Batalha

Espiritual como experiência de identificação marcadamente neopentecostal. Entretanto,

baseados na discussão acima exposta, não agiríamos de forma temerária ao sugerir que a

Batalha Espiritual, como experiência de conflito e demonização da alteridade, conheceu uma

maior visibilidade social a partir da década de 1970 devido aos novos usos e abordagens que

os neopentecostais fizeram das tecnologias midiáticas. Estes usos e abordagens encontram,

cremos, fundamentação nos quadros interpretativos da Prosperidade Santa que, por sua vez,

não demonizam a priori os avanços tecnológicos. Antes, tentam absorvê-los por meio de

apropriações e ressignificações.

Utilizando-se dos meios de comunicação de massa, os neopentecostais garantiram a

difusão massificada de seus ideais evangelísticos – demonizadores da alteridade – no espaço

público e, desse modo, tornaram a Batalha Espiritual mais visível. O conceito de espaço

público – basicamente o espaço midiático de trocas entre os sujeitos sociais – proposto por

Habermas (1984) prevê que as trocas informacionais que caracterizam seu funcionamento são

eminentemente harmoniosas. Habermas entende esse espaço como um lugar onde a expressão

e a ação comunicativa podem favorecer uma consciência coletiva capaz de possibilitar uma

existência solidária, não coercitiva, libertadora e igualitária entre os homens. A história dos

usos midiáticos na segunda metade do século XX foi suficiente para fissurar em vários pontos

a visão deveras otimista que Habermas propõe ao conceituar espaço público.

Segundo Avritzer e Costa, críticos de Habermas e revisionistas do conceito de espaço

público, a ideia de Habermas desconsidera as relações assimétricas de poder, a esfera pública

(ou espaço público) apresenta mecanismos de seleção que definem previamente quem serão

78

os atores que efetivamente terão voz pública e quais serão os temas tratados como públicos

(AVRITZER & COSTA, 2006).

Estes mecanismos são majoritariamente de natureza econômica. O poder monetário

pode comprar a voz nos meios massificados de comunicação. Os neopentecostais, que

multiplicaram exponencialmente o seu poder de arrecadação ao introduzir a teologia da

prosperidade como novo elemento norteador de sua conduta cristã, puderam fazer-se ouvir

através da TV, do Rádio, da Internet.

Assim, o uso racional e estratégico dos meios de comunicação auxiliou enquanto

estopim e mantenedor do acentuado crescimento das igrejas neopentecostais. Contudo, ao

mesmo tempo em que as igrejas neopentecostais – especificamente a IURD –, ao buscar

prosélitos e força política, tornaram seu discurso religioso visível no espaço público

constituído pelas mídias do século XX (radio, jornal, TV, internet), também explicitaram o

caráter fundamentalista da constituição de sua identidade social.

Com sua pedagogia guerreira, a Universal procura manter e acentuar a

dependência de soluções sacrais dos fiéis e, ao mesmo tempo, engajá-los,

cada vez em maior número e com mais ímpeto, numa luta incessante contra

os espíritos das trevas. Para Macedo, os cristãos não devem ficar na

defensiva, mas sim na ofensiva contra o Diabo, revertendo as conseqüências

de seus atos, conquistando território e pessoas para Jesus. Movidos pelo

ressentimento do povo eleito perseguido pelo Diabo, encorajados pela

liderança e embalados pela ira santa, pastores e fiéis ultrapassam o espaço

interno dos templos, provocam conflitos e agridem adeptos das religiões

adversárias, desencadeando a malfadada “guerra santa”. Convictos de que

contribuem para a vitória progressiva do bem sobre o mal, passaram a

combater as fortalezas do inimigo para fortalecer o exército divino e gozar

das bênçãos decorrentes desse posicionamento. […] O resultado de tamanha

disposição e motivação bélicas foi parar na imprensa, em delegacias de

polícia e na Justiça. Constam relatos de agressão física a adeptos dos cultos

afro, tentativas de invasão de centros e terreiros, vilipêndio por meio de

programas de rádio e TV (nos quais acusam umbanda e candomblé de

matarem crianças em rituais satânicos; queimam e destroem objetos,

imagens e assentamentos afros), publicações que os acusam de ligação com

o Diabo, passeatas e concentrações públicas de repúdio e protesto,

imposições forçadas da Bíblia, prática de cárcere privado e ruidosa ocupação

de espaços tradicionalmente utilizados pelos adversários durante suas festas

(MARIANO, 1999: 121-122).

As igrejas arroladas sob o termo neopentecostais são as que historicamente iniciaram

e, por constituição doutrinária na experiência prática de veiculação de comunicação de massa,

souberam melhor fazer uso dos meios eletrônicos de difusão de informações. Sugerimos,

então, que o uso racional e estratégico das mídias garantiu maior visibilidade tanto das

mensagens consideradas positivas pelas denominações evangélico-pentecostais – que

79

redundaram num acréscimo na taxa de conversos – quanto das mensagens calcadas no ódio

identitário às outras formas de manifestações religiosas, entendidas como diabólicas.

2.2. Representações coletivas e continuidades históricas.

Passemos, enfim, ao escrutínio das continuidades históricas das representações

coletivas que imprimem sentido à Batalha Espiritual, corroborando, assim, que esta já vem

fundamentando o imaginário social dos evangélico-pentecostais desde que estes

estabeleceram e expandiram a Assembléia de Deus no Brasil, durante os primeiros anos do

século XX. A Batalha Espiritual pode se rastreada por intermédio da continuidade histórica

das representações coletivas que lhe imprimem sentido. AD e IURD são passiveis de serem

tomadas como comunidade unificada se levarmos em consideração o compartilhamento do

arcabouço identitário evangélico-pentecostal.

Realizando o trabalho de análise do imaginário social compartilhado entre pentecostais

e neopentecostais, percebemos que o nível da compreensão das representações coletivas

compartilhadas entre os evangélico-pentecostais é um local privilegiado para entendermos a

demonização de sua alteridade. Alternando análises de citações de cunho teológico-

doutrinário, provenientes de escritos de pastores assembleianos datados das primeiras décadas

do século XX, e citações de escritos do líder da IURD, Edir Macedo, datadas, por sua vez, de

fins do século XX, demonstramos e corroboramos a existência do arcabouço identitário que

imprime sentido à Batalha Espiritual comum aos evangélico-pentecostais.

A teologia da prosperidade e a negação dos sinais exteriores de santidade, como

vimos, serviram para criar uma defasagem entre as percepções de algumas representações

coletivas presentes no imaginário evangélico-pentecostal. As distintas interpretações que

resultaram daí redundaram nas práticas e doutrinas neopentecostais que, apesar de

compartilharem o mesmo imaginário social dos pentecostais, encaram a participação neste

“mundo” doutra forma.

Na análise que se segue iremos respeitar a ordenação exposta no início deste capítulo,

a saber, uma ordenação de cunho temporal. Se tomarmos um sujeito participante quer da AD,

quer da IURD, este terá sua identidade invariavelmente configurada, minimamente, a partir da

constelação das sete representações coletivas aqui trabalhadas. Como já apresentamos

anteriormente, utilizamos os conceitos temporais de Koselleck (2006), a saber, espaço de

experiência (passado) e horizonte de expectativas (futuro), acrescidos de uma dimensão

presente para organizarmos a análise do leque de representações coletivas fundantes da

80

Batalha Espiritual. A cada uma destas dimensões (passada, presente e futura), designamos

determinadas representações coletivas componentes do imaginário social evangélico-

pentecostal.

Duas representações coletivas que auxiliam na constituição identitária do espaço de

experiências – Santa Ceia e Batismo nas águas22

–; três representações coletivas que

compreendem a vivência presente da Batalha Espiritual como um desdobramento do plano de

Salvação da humanidade que fomenta a linearidade da seta temporal passado, presente e

futuro – Batismo no Espírito Santo, biblicismo e o dualismo –; e, provendo de sentido o

horizonte de expectativas dos crentes, duas representações coletivas compartilhadas pelos

evangélico-pentecostais – Grande Comissão e Parousia. Estas representações coletivas não

foram aleatoriamente escolhidas entre as várias que constituem o imaginário social estudado.

Elas foram se mostrando reincidentes na extensão das análises que realizamos ao nos

debruçarmos sobre o material documental de ambas as igrejas, AD e IURD. Além disso, são

as que mais frequentemente eram mencionadas, direta ou indiretamente, quando realizamos o

escrutínio do material documental derivado dos hinários e discografias estudadas para

composição do capítulo terceiro.

2.2.1. Santa Ceia

A primeira representação coletiva que elegemos para compor o arcabouço identitário é

o rito da Santa Ceia. Os evangélicos, desde os protestantes históricos até os neopentecostais,

mantiveram apenas dois dos sete sacramentos católicos23

: o Batismo e a Santa Ceia (ou

eucaristia). Os Sacramentos são sinais externos e visíveis, ordenados por Cristo, que

estabelecem e prometem bênçãos espirituais. Mesmo que o termo sacramento não apareça na

Bíblia, pode ser intuído em várias passagens (LOPES & FERNANDES, 2008). A participação

no rito da Santa Ceia é amparado na literalidade da passagem da primeira epístola aos

Coríntios, versículos vinte três até trinta e quatro24

.

22

Discutiremos as doutrinas dos Batismos conjuntamente, num único tópico. 23

Os sete sacramentos católicos são: batismo, confirmação do batismo (crisma), confissão (ou penitência),

eucaristia, ordem (sacerdotal), matrimônio e unção dos enfermos. 24

“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou

o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto

em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear; tomou o cálice, dizendo: Este é o Novo

Testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque, todas as

vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha. Portanto,

qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será culpado do corpo e do sangue

do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão, e beba deste cálice. Porque o que

come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por

81

Mas, para além do rito socialmente visível, a Santa Ceia é experimentada como um

momento de ligação emocional muito intensa com o passado da fé. Os cristãos martirizados e

os períodos de apostasia25

se fazem presentes no rito da Santa Ceia por meio da convicção,

embasada na fé, de que o Espírito Santo não permitiu que a celebração máxima à memória do

Cristo fosse anulada durante os quase dois mil anos que separam a atual geração de fiéis

daqueles apóstolos que inicialmente comeram da carne e beberam do sangue de Jesus.

Na coletânea de artigos históricos do Mensageiro da Paz podemos encontrar algumas

referências a celebração da Ceia. Analisemos a seguinte referência escrita pelo pastor João de

Oliveira em junho de 1962:

A ceia do Senhor é outra ordem sagrada. Devem os crentes se reunir nesse

dia em sua congregação para, pela obediência da fé, com um coração aberto,

obedecer a esse mandamento (Lc 22.19-20 e 1Co 11.23,31). Todos os

crentes, no dia da Ceia, isto é, no partir do pão, deveriam estar unidos e

presentes no ato. Havendo embaraços, devem ser consertados em tempo, e

caso esteja doente, deve pedir ao pastor que lhe administre no leito esse

divino ato da Santa Ceia do Senhor. (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da

Paz, 2004: 84. 2 v).

A importância da participação no rito da Ceia, para o evangélico-pentecostal, se

assenta na continuidade de um mandamento estabelecido pelo próprio Cristo. É uma das

formas primárias de se afirmar a identidade ao fortalecer as ligações com a comunidade dos

“santos”. Apenas os membros batizados nas águas podem participar do “corpo e sangue” de

Jesus, ou seja, comer o pão e beber o suco de uva. Dentre os irmãos, a participação é vetada

àqueles que estiverem em pecado, ou seja, tiverem realizado algo detestável ou não aceitável

aos olhos da comunidade da qual faz parte. O restabelecimento da participação se dá depois

de um período de provação estipulado pelo pastor. Esta prática é mais comum entre os

assembleianos zelosos pelos “usos e costumes”. Os iurdianos raramente afastam seus

membros da participação na Santa Ceia. Estes últimos entendem que a participação na

celebração do corpo e sangue de Cristo serve como um forte argumento para propiciar o

arrependimento e o “conserto” daquele que pecou. Se seguirmos na leitura do texto do pastor

Oliveira, o encontramos repreendendo aqueles que não realizam a Ceia do Senhor com o

devido respeito.

causa disso, há entre vós muitos fracos e doentes e muitos que dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós

mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não

sermos condenados com o mundo. Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos

outros. Mas, se algum tiver fome, coma em casa, para que vos não ajunteis para condenação. Quanto às

demais coisas, ordená-las-ei quando for ter convosco.” (Bíblia de Estudos Plenitude, 2001) 25

Na visão dos evangélico-pentecostais, a apostasia da fé e a trajetória de constituição e hegemonia da igreja

Católica Romana – até a Reforma – são períodos equivalentes, pois a fé Católica seria, no seu entender,

apostata.

82

Infelizmente, quantos crentes desejam estar de coração na Ceia do Senhor?

Até muitos se excluem a si mesmos desse ato importante, “inventando

viagens”, ou mesmo ocupando-se em serviços caseiros no dia da celebração

da Ceia do Senhor. Que poderá suceder a tais criaturas no Dia de Cristo?

(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 84. 2 v).

Participar da Santa Ceia é, basicamente, confirmar o testemunho da ancestralidade

cristã, afirmar a união com a comunidade viva dos fieis e anunciar a espera da Segunda Vinda

de Cristo. Os evangélico-pentecostais buscam espelhar a prática de comunhão dos cristãos

primitivos. Desse modo, este é um ritual que, majoritariamente, aponta para uma dimensão

passada, apesar de fazer menção ao futuro regresso de Jesus. Dá à constituição identitária um

sentimento de pertença ao plano de salvação, à “História” escrita por Deus. Nesse sentido, a

“História”, como a entende os evangélico-pentecostais, está amparada num espaço de

experiências que trabalha ressemantizando o corpus historiográfico ocidental de forma que

este esteja consonante com o cumprimento da vontade divina.

Edir Macedo não abriu mão da prática da Santa Ceia para formar sua igreja. De fato,

nem poderia. O rito está fortemente incrustado na prática cristã. Além disso, a ordenança dos

termos do ritual está explícita no texto bíblico. Edir Macedo, em suas elucubrações

doutrinárias, explica as razões de Cristo ter estabelecido tal ordenança:

Muito embora o Senhor Jesus não tenha feito nenhum paralelo da Páscoa

com a Santa Ceia, até porque Ele participou primeiramente da Páscoa e

depois da Ceia, podemos compreender perfeitamente que Ele quis instituir, à

sombra da Páscoa, uma nova liturgia, que tivesse o mesmo calor espiritual

da Páscoa, para todos os que O aceitam como Salvador. Para exemplificar,

tomemos o povo judeu, que teve na Páscoa a marca de sua libertação. Para

os povos não-judeus, os quais viriam a aceitar o Senhor Jesus como

Salvador, qual seria a marca ou a festa litúrgica para expressar a sua

libertação do pecado e do inferno? Com esse propósito, o Senhor Jesus

instituiu a Santa Ceia (MACEDO, 2001: 70).

Entretanto, Edir Macedo vai além, utilizando o ritual de confirmação da espera de

Cristo como metáfora para sustentar o pensamento da Prosperidade Santa.

[…] Quando o Senhor Jesus determinou que o pão abençoado e partido para

os Seus discípulos era o Seu corpo, estava mostrando o real sentido da Sua

vida física, isto é, Seu vigor e Sua saúde, partidos em favor de todos que O

aceitam como Salvador, a fim de que venham a ser participantes da Sua

própria natureza, gozando de Sua saúde física.

[…] Essa nova e última aliança coloca definitivamente o cristão diante de

Deus-Pai, na posição de um real e verdadeiro filho, com obrigações, mas

com todas as regalias e privilégios, inclusive poder se dirigir a Deus tal qual

o Senhor Jesus fez e, ainda por cima, o direito de receber a infusão do

Espírito Santo. […] A Santa Ceia anuncia todo o ministério glorioso do

nosso Senhor: Suas curas; Seus milagres extraordinários; Sua compaixão e

interesse pelos pobres e oprimidos, além de apontar Sua grande e magnífica

83

vitória sobre o diabo e todos os seus demônios, na Sua morte e ressurreição

ao terceiro dia. Em resumo, podemos considerar que, da mesma forma pela

qual o corpo do Senhor Jesus, simbolizado pelo pão, nos dá a total saúde

física, também o Seu sangue, simbolizado pelo vinho, nos dá a saúde

espiritual (MACEDO, 2001: 72-73).

A Santa Ceia, enquanto rito compartilhado entre assembleianos e iurdianos, desdobra-

se numa das representações coletivas que menos sofreu ressignificações com a mudança da

matriz interpretativa da Santidade Próspera para a da Prosperidade Santa. A acessibilidade

literal do ritual no texto bíblico, amparada numa tradição que ecoa em todas as denominações

evangélico-pentecostais do século XX, não deixa muitas brechas para qualquer tipo de

polêmica quanto à necessidade de sua perpetuação no imaginário social.

2.2.2. Batismo (águas e Espírito)

A “doutrina dos batismos” é um dos fundamentos da visão de mundo evangélico-

pentecostal. Desdobra-se em duas representações coletivas compartilhadas pelos fiéis: o

batismo nas águas e o batismo no Espírito Santo (ou batismo com fogo). O batismo nas águas

remete o fiel à perpetuação do rito do “novo nascimento”. Assim, o converso é inserido numa

comunidade imaginada milenar, daí a arrolarmos ao espaço de experiência evangélico-

pentecostal. Já o batismo com o Espírito Santo prepara o fiel para enfrentar, no presente, as

ameaças demoníacas ao engajar-se na Batalha Espiritual (todas as tais ameaças espirituais se

desdobram no mundo físico).

Visando a participação efetiva na identidade religiosa, o crente precisa passar pelo rito

do batismo nas águas. Fundamentados nas passagens bíblicas que relatam os feitos de João

Batista pouco antes de Jesus iniciar seu ministério terreno, os crentes, em seu projeto

imaginário de promover a imitação da vida de Jesus, sustentam que o cristão precisa,

inescapavelmente, realizar o batismo nas águas: o batismo do arrependimento. Este é um dos

temas polêmicos causador de discussões entre a visão cristã pentecostal e a Católica

Apostólica Romana.

Para os evangélico-pentecostais, o batismo por aspersão praticado pelos católicos não

é o verdadeiro batismo. Só o batismo por imersão nas águas, praticado por suas igrejas desde

os primórdios do movimento pentecostal, pode ser considerado como autêntico rito de

separação entre o “velho homem” – o homem mundano e pecaminoso – e a “nova criatura” –

cuja vida pretensamente estará em função dos ensinamentos de Jesus. O batismo nas águas,

assim como a Santa Ceia, é um elo entre o converso e as pretéritas gerações de crentes.

84

Identificar-se com esta representação coletiva em especial é ter acesso a um espaço de

experiências – o testemunho dos mártires e missionários – rico em exemplos de resignação,

resistência e virtude aos olhos dos fieis.

O “Velho homem” é um termo retirado do texto bíblico que designa a vida viciosa,

detestável e pecaminosa que o recém convertido sinaliza estar abrindo mão ao ser batizado

nas águas. As águas “sepultam o velho homem” que se arrepende de seu pecado. Quando é

levantado de dentro do lago, rio ou piscina em que foi mergulhado pelo pastor, o velho

homem dá lugar à nova criatura em Jesus. Desta forma, de acordo com a visão evangélico-

pentecostal, o batismo por aspersão praticado pelos católicos é duplamente condenável, pois,

além de não “sepultar” simbolicamente o corpo do velho homem nas águas, tal como fazia o

próprio João Batista aos que lhe procuravam, os católicos batizam recém-nascidos e crianças

que, no entender dos crentes, não estão aptas a tomar uma decisão consciente por Jesus. Só

quando há consciência, convicção de pecado e arrependimento é que são realizados os

batismos nas águas entre os evangélico-pentecostais (mesmo que esta convicção

supostamente se dê aos dez ou doze anos de idade).

Já o batismo no Espírito Santo seria uma segunda etapa de participação na identidade

evangélico-pentecostal a ser conquistada pelo crente. O Batismo com fogo, como as outras

representações coletivas trabalhadas neste arcabouço identitário, possui determinado apelo à

participação na tradição apostólica, ou seja, sinaliza a manutenção da herança cristã.

Entretanto, será na contingência do presente que sua realização encontra meios de sustentar o

imaginário da Batalha Espiritual. Enquanto o batismo nas águas é um ritual material – o meio

é a água física – que sinaliza ao mundo espiritual, o batismo no Espírito Santo será um

fenômeno espiritual que, segundo assembleianos e iurdianos, redunda em sinais físicos –

glossolalia. Sobre as distinções entre batismos e suas funções na vida do crente,

acompanhemos um trecho do artigo O batismo no Espírito Santo e com fogo de autoria de

Elienai Cabral, publicado no jornal Mensageiro da Paz, em janeiro de 1986.

Precisamos perceber as distinções existentes em ambos os batismos. O

batismo em águas é a administração figurada do arrependimento e da obra

regeneradora. A Água é a figura da purificação, da lavagem, da limpeza. Por

isso, o batismo em águas, sob um prisma negativo, é a figura da dor, da

tristeza para com o pecado, da humilhação do “eu carnal” e o aborrecimento

do pecado. Porém, o batismo no Espírito Santo em fogo tem um sentido

positivo na nova vida em Cristo Jesus (ARTIGOS Históricos – Mensageiro

da Paz, 2004: 46. 3 v).

O mesmo Elienai Cabral, no artigo A atividade do Espírito Santo na nova vida,

publicado, também, no jornal Mensageiro da Paz, de agosto de 1983, explica sobre o tempo

85

que pode transcorrer entre batismo nas águas e batismo no Espírito Santo. Por vezes o crente,

mesmo após o batismo nas águas, pode levar anos para conseguir o batismo com o Espírito.

Um crente pode ser “cheio do Espírito” sem “ser batizado no Espírito

Santo”. Estar cheio do Espírito significa estar pleno da nova vida em Cristo.

Toda pessoa quando aceita a Cristo recebe a imediata habitação do Espírito

Santo no seu interior. Todas as bênçãos da salvação, como convicção dos

pecados; a cura das doenças; o desejo de servir a Deus; a paz interior são

produzidas pelo Espírito no interior do crente. A disposição para servir e

louvar a Deus; o ímpeto para evangelizar resultam de uma vida “cheia do

Espírito”. Ser batizado no Espírito é uma experiência distinta que equivale a

ser mergulhado na fonte do Espírito. Ser cheio do Espírito equivale a receber

um derramamento por cima e para dentro. É como tomar água da fonte e

derramar dentro de uma vasilha té (sic.) enchê-la, sem imergi-la na dita

fonte. Entretanto “ser batizado” significa ser mergulhado dentro da fonte. É

imergir a vasilha na fonte (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004:

36. 3 v).

Hulda Stadtler (2002), psicóloga que estudou a conversão ao pentecostalismo e as

alterações cognitivas que esta acarreta ao converso, legou-nos um testemunho minimamente

interessante de sua passagem como pesquisadora participante não sistemática dentro da

religião. De fato, a autora relata haver vivenciado uma verdadeira experiência pentecostal

descrevendo-a nos termos que seguem:

Eu estava em um culto pentecostal como "uma boa observadora participante"

e assim dirigi-me para a frente do grupo junto com outros e solicitei que os

pastores impusessem suas mãos sobre minha cabeça para que recebesse o

batismo do Espírito Santo, tal qual estava sendo pregado. Eu pensava, se sou

de qualquer modo uma crente, e se é verdadeira a experiência do que os

crentes chamam "batismo de fogo" eu quero comprová-lo. Mas nada ocorreu

durante aquele momento. Fui então para casa pensando sobre o que dizer

quando escrevesse em meu trabalho. Para completar minhas dúvidas, 90%

dos casos de glossolalia que já havia analisado poderiam ser considerados

casos de aprendizagem por instrução. Porém, por outro lado, 10% dos casos

vistos, não poderia incluir sob a mesma análise qualitativa, porque eu não

encontrava qualquer dissonância entre o discurso dos falantes sobre suas

experiências espirituais e o comportamento diretamente observado. Após

três ou quatro horas de volta a minha casa, esquecida do que havia ocorrido

durante o culto, eu combinava, no telefone, com outros crentes para ir

participar de um novo culto. Subitamente, após desligar o telefone, meu

corpo começou a tremer e eu passei a sentir uma espécie de dor psicológica

profunda como se buscasse em vão perdão por uma culpa desconhecida. Daí

comecei a chorar e chorar sem que pudesse controlar o choro. Penso que

gastei uma boa meia hora desse modo, e o choro não parecia com nada que

eu houvesse experienciado antes. A única coisa que me veio a cabeça foi

perguntar: o que é isto meu Deus? A palavra Deus, provavelmente dita de

modo automatizado, expandiu-se de modo impressionante em minha mente e

ecoava sem parar. Eu repetia, Deus, Deus, Deus, sem poder conter a

extensão pulsante desta idéia. Então, uma alegria profunda tomou conta de

meu corpo como ondas de energia e eu sentia calor e frio alternadamente.

Mas o sentimento era bom, muito bom como se houvesse um mar de alegria

86

e ondas dentro de mim. Após algum tempo dirigi-me ao banheiro para olhar

meu rosto no espelho, muito embora ainda estivesse chorando. A visão

chocou-me, meus olhos eram duas pedras de sangue embora eu conseguisse

ver perfeitamente. Decidi telefonar para uma médica amiga. Ela apareceu

pouco tempo depois e não conseguia entender porque meu quadro clínico

pareceu-lhe perfeitamente normal. Fui a um hospital de olhos pois não era a

especialidade de minha amiga. O médico examinou-me clinicamente, em

seguida observou cuidadosamente meus olhos e a pressão, mas não

encontrou qualquer razão fisiológica para aquilo. A pressão era mais que

normal. Voltei para casa com um tampão em um dos olhos e com a

recomendação de que nada fizesse que envolvesse esforço visual durante

uma semana. Tudo desapareceu tão rápido quanto surgiu, menos um

pequeno derrame que marcou a experiência por uns dois anos (STADTLER,

2002: 120).

A autora argumenta que o estopim para ativar as alterações cognitivas sofridas quando

da conversão ao pentecostalismo, pode ser rastreado na co-participação no sentimento

coletivo de convencimento de culpa e subsequente necessidade de perdão. Ainda segundo

Stadtler, o novo sistema cognitivo ao qual o sujeito passa a comungar quando de sua

conversão – encarado neste trabalho como a constelação mínima das sete representações

coletivas elencadas –, além de promover um forte sentimento de pertença à comunidade

(identidade), é capaz de ressignificar e explicar as adversidades da vida cotidiana em função

de elementos inerentes ao imaginário pentecostal. Para a autora, as alterações na visão de

mundo do sujeito que se reconhece como deixando uma vida pecaminosa e mundana (a vida

de um gentio) ao identificar-se às comunidades pentecostais têm origem nas alterações da

concepção de pessoa – o modo como o indivíduo pensa a si mesmo – geradas por mensagens

religiosas poderosas. Isto fica demonstrado, segundo Stadtler, quando os crentes recorrem

sistematicamente às doutrinas para raciocinar tanto sobre problemas formais, quanto aos

problemas do dia-a-dia. Assim, o pentecostalismo trabalha no sentido da transformação das

estruturas cognitivas de percepção e interação do sujeito com seu meio e consigo mesmo

através da reconstrução de sua visão pessoal de realidade (STADTLER, 2002).

Toda esta refinada e sutil transformação imaginária dá-se no cadinho das

representações coletivas compartilhadas pelos evangélico-pentecostais. Os batismos, nas

águas e no Espírito Santo, são, aos pentecostais, invariantes identitárias fundacionais. Daí

podermos encontrar as mesmas representações acerca das doutrinas dos batismos nos textos

de Edir Macedo datados de fins do século XX.

De fato, o batismo nas águas é mais que um testemunho público da

conversão de uma pessoa ao Senhor Jesus. Através dele somos sepultados da

mesma maneira que o Senhor o foi, significando que a nossa vida, para nós e

para o mundo, está definitivamente morta. Pelo sepultamento, através do

batismo, deixa de existir o nosso eu para o pecado, o qual já não terá mais

87

domínio sobre nós, porque através do batismo já estamos mortos para ele.

[…] O arrependimento, portanto, é a condição básica para o candidato ser

batizado [nas águas]. Muitas pessoas se batizam sem se arrependerem. O

resultado é a existência em nosso meio de pessoas “convencidas”, e não

“convertidas” ao Senhor Jesus Cristo. Elas estão sempre criando problemas

para a Igreja em geral: ora discutem com um, ora brigam com outro, falam

do pastor, das obreiras; enfim, nunca estão contentes com nada, pois o

ambiente no qual estão não lhes pertence. Tais pessoas continuam vivendo

sob o domínio do pecado, uma vez que não têm sua carne sepultada com

Cristo (MACEDO, 2001: 76-78).

Edir Macedo, mais ousado do que os articulistas do Mensageiro da Paz, chega a

oferecer aos fieis ávidos pelo revestimento de poder espiritual um “passo-a-passo” para que o

crente consiga ser batizado com o Espírito Santo.

De repente você sentirá uma alegria, e esta vai aumentando gradativamente

até haver um gozo inexplicável sentido no corpo; daí seu linguajar passará a

ser bem diferente. Você não entenderá nada; mesmo assim, continuará a

falar estranhamente e não sentirá vontade de parar mais. Você estará selado e

batizado com o Espírito Santo! Quando alguém é batizado com o Espírito de

Deus, recebe logo, imediatamente, o fôlego de Deus em sua vida, para lutar e

vencer qualquer tipo de batalha. O Espírito Santo passa a coordenar nossas

ações de tal modo que jamais deixamos brechas para sermos atingidos pelo

diabo. Tornamo-nos ilimitados nas realizações da vontade de Deus

(MACEDO, 2001: 87-88).

2.2.3. Biblicismo

Por biblicismo entendemos uma coletânea de doutrinas que configuram certa postura

que rege o uso da Bíblia. Essas doutrinas são tributárias, em sua forma pentecostal, às

teologias fundamentalistas desenvolvidas nos EUA por igrejas protestantes históricas durante

o século XIX. Possuem em seu cerne, de acordo com Azevedo (1999), as seguintes

características: afirmação do livre-exame da Bíblia, subordinação da experiência espiritual à

Bíblia, leitura atomizada e seletiva, interpretação literal e devocional, eventual uso da Bíblia

como amuleto. Azevedo, que realizou uma análise sobre a influência dos livros protestantes

no Brasil durante o século XX, considera, em sua pesquisa, os pentecostais como protestantes,

sem maiores distinções tipológicas. O pesquisador demonstra que apesar de serem poucos os

livros voltados ao tema, há uma teologia orgânica não-sistematizada entre os protestantes. A

razão para a escassez de tratados teológicos entre o segmento religioso, ainda segundo

Azevedo, se dá pelo caráter de insignificante necessidade de trabalhos de tal monta. A

teologia pentecostal estaria difusa nos textos devocionais, nos estudos para educação

religiosa, nos artigos para os jornais e, sobretudo, nos hinos cantados pelas congregações. Se

88

se quiser estudar a teologia protestante brasileira, é nessas fontes que se deve beber

(AZEVEDO, 1999). Concordamos com Azevedo no que tange a natureza das fontes

teológicas, apesar de fazer uma ressalva ao modo como o autor unifica indistintamente igrejas

pentecostais e protestantes.

Retomando as colocações de Azevedo acerca do biblicismo, que julgamos serem

passíveis de aplicação aos evangélico-pentecostais, podemos afirmar que o livre-exame da

Bíblia acompanha o cristianismo protestante desde a Reforma. A liberdade interpretativa, que

quase sempre é literal e devocional, deu origem à formação de práticas as mais variadas

dentro do pentecostalismo. As “oportunidades” que se desenvolveram dentro da Assembléia

de Deus – momentos oferecidos para que os membros possam dar seus testemunhos ou

realizar a leitura e comentário de determinado texto bíblico – auxiliaram na manutenção de

uma forma de leitura atomizada e seletiva do texto bíblico. A maior parte da membresia que

iniciou o processo de cristalização de uma mensagem pentecostal estava aquém dos

nuançados debates acadêmicos. Os princípios básicos de contextualização para uma leitura,

no mínimo coerente, por parte dos fieis, redundando numa compreensão detida e ponderada,

dificilmente eram respeitados nos momentos de preleção. Já o uso da Bíblia como amuleto é

uma característica herdada do catolicismo popular. A abertura e leitura de um texto à revelia,

escolhido como que por sorteio após folhear a Bíblia com determinada questão em mente,

também é prática comum realizada pelos evangélico-pentecostais; ou seja, a Bíblia é tomada

por alguns como um oráculo de sortes.

No artigo de Alcebíades P. Vasconcelos, A Palavra do Senhor permanece

eternamente, publicado em setembro de 1953 no Mensageiro da Paz, podemos ler a seguinte

passagem sobre a Bíblia e seu uso pelo crente:

Qual é o motivo de essas duas entidades [a Palavra de Deus e o crente em

Jesus] não sofrerem deterioração com o passar dos tempos? Respondemos:

Há entre elas uma afinidade perfeita que as torna participantes da

imortalidade gloriosa, é a natureza divina! Pois a Palavra é a Palavra de

Deus, e como Deus ela é eterna, Jesus disse: “Os céus e a terra passarão, mas

a minha Palavra não passará” desta compreensão estavam possuídos os

profetas da antiga dispensação, havendo um deles escrito: “Senhor, a tua

Palavra para sempre permanece no céu”. Aleluia! E, o crente, sendo filho de

Deus, tem Dele a promessa de com Ele habitar em seu Reino eterno, por

aqui na terra executar a sua vontade, conforme está escrito: “...aquele que faz

a vontade de Deus, permanece eternamente”. Graças a Deus. Meus amigos,

esta vitória do crente, é também vitória da Palavra de Deus, a Bíblia

Sagrada, pois sem o seu conhecimento ninguém chegará a servir a Deus

convenientemente! […] Esta Palavra permanece inalterável, da mesma

forma como saiu daqueles corações inflamados pelo Espírito Santo que

como crateras do Céu, sob mais sublime aspiração, exortaram quanto ao

89

presente e vaticinaram quanto ao futuro do homem, dando-lhe o

conhecimento Daquele que habita eternamente na luz inacessível. Sobre ela

os séculos não têm influído e jamais influirão. Ela permanecerá para quando

tudo que é aparente desaparecer. Ela existirá nos “novos céus e nova terra”

onde habitará a justiça! (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004:

59. 2 v).

Segundo Mendonça & Velasques (1990), o fundamentalismo é uma das características

presentes nos movimentos pentecostais. Uma das bases do fundamentalismo como doutrina

apropriada por AD e IURD pode ser identificada como o biblicismo que beira uma verdadeira

biblolatria. O biblicismo desenvolvido pelas igrejas evangélico-pentecostais brasileiras pode

ser considerado como um derivado da tese da inerrância bíblica, defendida pelos teólogos de

Princeton no século XIX. Os defensores da inerrância bíblica sustentam que o texto bíblico é

infalível e inspirado pelo Espírito Santo. Porém, não a Bíblia em suas traduções, mas somente

os textos manuscritos originais que de fato seriam dignos de receberem essa atribuição. Este

aspecto foi atenuado pelos evangélico-pentecostais que, instando em fundamentar sua visão

dogmática de mundo e raramente tendo acesso aos textos escritos nas línguas originais (grego

e hebraico), foram forçados a considerar os diversos homens que trabalharam nas traduções

da Bíblia como participantes num tipo de inspiração pelo Espírito Santo, um revestimento de

poder espiritual místico que os teria guiado enquanto trabalhavam na tradução do texto

sagrado. Desse modo, os defensores da inerrância garantiram um vigoroso argumento em

favor de suas concepções biblicistas. A pureza do texto original foi mantida quando o Espírito

Santo capacitou misticamente os tradutores.

Podemos citar duas outras características da tese da inerrância bíblica que, no cerne

das ideias biblicistas, foram apropriadas e/ou modificadas pelos evangélico-pentecostais.

Seriam as seguintes: a inerrância bíblica não diz respeito à exatidão de informações científicas

ou geográficas e a historicidade dos fatos bíblicos é tomada como descrição fiel do passado.

Deste modo, há aqueles que sustentam que a Bíblia contém instruções sobre a realidade

espiritual somente, considerando a ciência como linguagem menos valiosa.

O homem natural não pôde ainda compreender a razão da fé; não conseguiu,

ainda, captar os seus recursos ilimitados, nem a sua origem. Isso porque o

seu campo de estudo e pesquisa se restringe apenas ao mundo físico, muito

embora nesse mesmo campo da Ciência seja necessário usar de recursos

abstratos para apoiar suas teorias, as quais se tornam ultrapassadas com o

decorrer dos séculos, ignorando a força maior da certeza absoluta

(MACEDO, 2007: 160).

Entretanto, há aqueles que não dão crédito algum ao discurso científico. Nesse sentido,

alguns evangélico-pentecostais, entre eles os que possuem menos instrução, consideram que

90

os fatos científicos são, em verdade, mentiras armadas por Satanás para enganar o homem.

Um exemplo são as opiniões acerca da descoberta de fósseis de dinossauros. Como o mundo,

segundo a literalidade bíblica obsedante, não teria mais do que sete mil anos, a existência de

repteis gigantes vivendo há 65 milhões de anos só pode ser, aos olhos dos biblicistas mais

aguerridos, um engodo maligno para contribuir com a descrença de nossa geração corrupta.

Zwinglio M. Dias, em seu texto Fundamentalismo: o delírio dos amedrontados

(2008), ao comentar o trabalho de Heinrich Shäfer sobre o fundamentalismo, escreve que por

meio do biblicismo o evangélico-pentecostal rompe a diferença categorial entre o divino e o

humano, entre a fé e a visão, entre a confiança e o conhecimento. Por meio da literalidade de

sua prática de exegese ele transforma aquilo que é próprio dos atores (suas necessidades e

seus interesses) em algo que se torna absoluto e passa a ter validez universal. Isto se dá por

dois motivos. Primeiramente, por aproximar-se do texto, ou da experiência com o Sagrado, a

partir de preconceitos determinados por suas situações particulares (pessoais, sociais,

políticas, etc.), o texto, ou a experiência, é transformado pelo evangélico-pentecostal num

espelho – ainda que turvo – dos seus próprios interesses. Há aqui um processo ativo de

projeção da subjetividade do leitor aproveitando-se, inconscientemente, das ambiguidades

inerentes ao texto sagrado. Em segundo lugar, por considerar esta experiência, cognitiva ou

emocional, que é necessariamente uma experiência particular, portadora de validez absoluta e

universal.

Através desta operação conceitual o fundamentalismo religioso utiliza o elemento

transcendente do sagrado como meio para que o sujeito, norteado pelo imaginário social

evangélico-pentecostal, retome aquilo que lhe é cotidianamente próprio de um modo novo:

como algo sacro. Zwinglio conclui que a vivência sob a égide da hermenêutica

fundamentalista será, desse modo, sempre auto-centrada (ZWINGLIO, 2008).

A crença na ação do Espírito Santo como mantenedor da inerrância do texto bíblico

está patente na passagem que citamos abaixo. “De Deus não se escarnece”, diriam os fieis

evangélico-pentecostais. O texto foi retirado do artigo do pastor Alcebíades P. Vasconcelos,

datado de 1953.

Voltaire, depois de declarar ser a Bíblia “A maravilha de todos os escritos

orientais e de uma beleza admirável e conclusões tais de arrancar lágrimas

de enternecimento”, loucamente, em sua incredulidade, profetizou a seu jeito

cético, que ao fim da alguns anos, seria a Bíblia como qualquer outro livro

dos filósofos, entregue ao esquecimento! Deus, no entanto, respondeu a essa

louca profecia dum modo especial: A Sociedade Bíblica adquiriu a casa onde

a mesma fora anunciada, e dali, a Bíblia clama e exorta a nobre nação

francesa a se preparar para Deus. Isto ainda em nossos dias, quando a

91

memória do falso profeta está desaparecendo juntamente com a sua filosofia

negativa (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 62. 2 v).

As colocações sobre a inerrância e as práticas de literalidade na interpretação do texto

bíblico, as fundamentações do biblicismo, prosseguem vigorosas nas produções doutrinárias

de autoria do Bispo Edir Macedo, da IURD. Nos textos analisados encontramos diversas

passagens referentes ao biblicismo, indicando, assim, uma efetiva continuidade desta

representação coletiva. Vejamos alguns exemplos:

A Bíblia é uma coleção de 66 livros que contêm a revelação de Deus para os

homens. Eles foram escritos por, pelo menos, 36 homens, durante um

período de 1500 anos. Esses homens, ao escreverem os seus livros, foram

poderosamente inspirados pelo Espírito Santo, a ponto de todas as palavras

ficarem perfeitamente colocadas dentro da exata expressão da mente de

Deus. Tanto que o próprio Senhor Jesus a utilizou nos mínimos detalhes

dentro do Seu ministério terreno. Dentre aqueles homens que foram dirigidos

pelo Espírito de Deus para escrever a Bíblia, havia reis, agricultores,

pastores, advogados, pescadores, um médico e um cobrador de impostos.

Embora esses homens tenham sido simples, em sua maioria, ainda assim, a

Palavra que Deus lhes inspirou a escrever é incontestável: não houve, não

há, e jamais haverá alguém que possa provar o contrário do que ela afirma. É

como o próprio Senhor Jesus disse: “Passará o céu e a terra, porém as

minhas palavras não passarão.” (Mateus 24.35). […] A sua palavra prova

por si mesma que é a única verdade capaz de levar o ser humano à liberdade

que lhe tem sido negada por causa da falta de conhecimento do Deus Vivo.

As pessoas que têm negado a veracidade da Palavra de Deus, ou que lhe têm

omitido a perfeição, procedem desta forma pelo fato de que os espíritos em

que elas têm confiado com fé são justamente os que lhes cegam o

entendimento, a ponto de não conseguirem ver que as suas próprias vidas são

a maior evidência do grande engodo da mente que dá crédito ao ocultismo

(MACEDO, 2001: 69-70).

Dificilmente o fiel alinhado com a identidade evangélico-pentecostal poderá achar

uma saída dessa aporia metalinguística: o texto bíblico é sagrado, pois há passagens nele que

assim o afirmam. Se se toma a Bíblia como afirmação da vontade divina, as passagens que no

texto bíblico ponderam sobre sua inerrância saltam aos olhos do leitor fiel como indícios

óbvios e, por isso, indiscutíveis da própria sacralidade. Não perceber isso e não compactuar

das visões biblicistas é uma característica que deriva da ação de um ressumado ímpio aos

olhos da comunidade evangélico-pentecostal.

A Bíblia convence o homem de sua situação errada quanto a Deus e à vida.

Pela ação do Espírito, ela o leva à conversão. Guia o homem a Cristo e ao

encontro da vida plena e abundante n’Ele. […] Não existe outro livro capaz

de transformar bêbados, prostitutas, pervertidos, ladrões, assassinos, viciados

ou maníacos em criaturas piedosas, tementes a Deus e úteis à sociedade!

(MACEDO, 2001: 31).

92

Edir Macedo nos explica como funciona o mecanismo divino de unção dos intérpretes

e tradutores da Bíblia: o fato de serem guiados na leitura pela ação do Espírito Santo. Ou seja,

percebemos que, para que a mensagem pentecostal não ficasse à deriva nos modismos ou nas

interpretações deveras particularizadas do texto bíblico – cada crente com seu próprio

Evangelho –, fez-se necessário o desenvolvimento de uma determinada tradição interpretativa

repassada de púlpito a púlpito através dos decênios, durante o século XX. As características

mínimas dessa tradição interpretativa compartilhada por assembleianos e iurdianos podem ser

apreendidas na própria manifestação da representação coletiva do biblicismo.

É importante frisar que a Bíblia, sem a unção do Espírito Santo, é um

simples livro de História. Para poder servir aos propósitos de Deus, precisa

ser lida sob a orientação do Espírito de Deus; de outra forma, tornar-se-á

apenas letra, “... porque a letra mata, mas o espírito vivifica.” (2 Coríntios

3.6) De fato, a sua interpretação não poderia ser de outra fonte, porque era e

é necessário que seu próprio Autor explique exatamente o que quer dizer,

pois se cada um a interpretar à sua maneira, como se poderia realmente

conhecê-la? É por essa razão que existem muitos falsos profetas, falsos

pastores, falsas igrejas e inúmeras religiões que, inspiradas por espíritos

enganadores e mentirosos, têm interpretado a Bíblia à sua maneira, no

sentido de tirar proveito para si mesmos, e levando, literalmente, bilhões de

almas para o inferno. Como podemos saber a interpretação correta? É

justamente por isso que o Espírito Santo nos foi enviado, para guiar-nos a

toda verdade, conforme o Senhor Jesus prometeu: “Tenho ainda muito que

vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora; quando vier, porém, o

Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade...” (João 16.12,13)

(BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001).

Uma última característica que vale a pena frisar: só por intermédio do conhecimento

prático – como manusear as interpretações biblicistas no marco do arcabouço identitário

evangélico-pentecostal – é que o fiel torna-se capaz de conduzir com êxito a Batalha

Espiritual. Conhecer a Palavra de Deus é deter técnicas de esgrima. A Bíblia é uma espada

nas mãos dos crentes.

“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos.”

(Salmos 119.105). Não pode haver perfeita comunhão com Deus sem o

conhecimento da Sua santa vontade. Quando Jesus venceu o diabo, Ele o fez

usando a Palavra de Deus [Bíblia]. Ela é a espada do Espírito Santo. Quando

a usamos com fé, nada há neste mundo capaz de nos derrotar, pois ela

penetra no mais íntimo de nosso ser, ao ponto de dividir a alma e o espírito,

juntas e medulas. Quando pronunciada por um servo de Deus, em nome do

Senhor Jesus, produz efeitos extraordinários. Todo aquele que deseja vencer

satanás deve conhecer bem a Palavra de Deus, a Bíblia Sagrada. O centurião

disse para o Senhor Jesus que enviasse apenas uma palavra e o seu servo

seria curado. Dito e feito! A palavra chegou até o servo do centurião e

realizou o milagre. É através dessa maravilhosa Palavra que os maiores

milagres têm acontecido. Ela produz fé em nossos corações para resistirmos

93

ao diabo; logo, a necessidade de conhecê-la se faz obrigatória (MACEDO,

2001: 21-22).

2.2.4. Visão de mundo dualista

Entendemos o dualismo como uma forma de representar o mundo que divide a

totalidade do universo em duas esferas antagônicas: bem supremo/sagrado e mal

absoluto/profano. O dualismo cristão vem ao encontro da necessidade de conciliar a

existência de um Deus supremamente bom, que quer salvar seus filhos, e a existência do mal

e do sofrimento sobre a terra. Fazendo com que o Adversário resista, por meio dos pecados

dos homens, à vontade de Deus, os cristãos vêm construindo em seus dois mil anos de história

uma resposta à contradição entre um suposto amor divino onipotente direcionado aos homens

que, ainda assim, vivem em sofrimento na terra. Ou seja, julgamos que o dualismo seja, além

de uma poderosa representação coletiva, o cimento que dá coesão ao edifício imaginário

evangélico-pentecostal, uma espécie de contexto.

A trajetória de constituição histórica do repertório de discursos que fundamentam o

dualismo nos movimentos pentecostais do século XX é vasta e intrincada. Não nos compete

desenvolvê-la neste trabalho, porém, uma apresentação introdutória do tema nos será de

grande valia para compreendermos melhor o suporte que o dualismo provê à Batalha

Espiritual. Podemos dizer que o cristianismo apropriou-se da imagem do Diabo (adversário)

hebreu, expandido-a. Pôde, desse modo, dar aos seus seguidores uma justificação plausível

acerca das razões de tantos tormentos neste mundo: tudo faz parte do grande plano salvífico

de Deus.

O cristianismo primitivo foi herdeiro das idéias referentes ao mal desenvolvidas no

Oriente Próximo desde a formação tribal de Israel (aproximadamente 2000 a.C.). Durante o

cativeiro da Babilônia (século VI a.C.), os judeus entraram em contato com uma miríade de

divindades estrangeiras, rapidamente identificadas como demônios. O mal no pensamento

hebraico configurar-se-ia universal no período helenístico (séculos IV – I a.C.). No período

formativo da religião cristã, nos primeiros séculos de nossa era, o mal foi intensamente

vivenciado no cotidiano do fiel, desdobrado em sangrentas perseguições empreendidas pelos

romanos.

Segundo Carlos Roberto F. Nogueira (1986) em sua obra “O Diabo no Imaginário

Cristão”,

[…] a religião tribal dos hebreus (Jahveh) evoluirá em direção a um

monoteísmo de caráter absoluto, que sublinhará a onipotência e a

94

onipresença de Deus, como o supremo poder do universo e criador de todas

as coisas, situação que conferirá às forças do Mal um poder insignificante

(NOGUEIRA, 1986: 06).

O Judaísmo – religião matriz da qual se desenvolveu o cristianismo –, relegava em

seus primórdios um papel secundário aos poderes malignos. Tanto é assim que observamos

serem raras as referências ao Mal no Velho Testamento. A carreira beligerante dos povos

hebraicos, entretanto, cumpriu a função de expô-los a constantes – e turbulentos – contatos

culturais.

Como vitoriosos ou vencidos, os israelitas sempre desenvolveram interpretações dos

fatos que remetiam os resultados de suas ações diretamente à esfera espiritual. Na posição de

vitoriosos numa determinada guerra, era Jahvéh, o Senhor dos Exércitos, quem na verdade

havia triunfado sobre os deuses dos outros povos. Como derrotados, pagavam o preço por

terem cometido, enquanto nação, algum pecado contra o Altíssimo. Eram punidos por seu

deus tribal sofrendo dominações por parte de povos vizinhos. Assombrava-os a ideia de

reconhecer algum tipo de supremacia aos “demônios” que eram adorados pelos estrangeiros.

Deste modo, a trajetória de insultos e dominações sofridas pelos hebreus será também

a história da formação do panteão de demônios que acabaram por povoar o imaginário cristão.

A figura de Satan (hostilizar, acusar, caluniar) pode ser encontrada no livro de Jó. Porém,

Satan, como um dos “filhos de Deus”, ainda é representado no livro de Jó como um

cumpridor de ordens do Divino, não possuindo a autonomia necessária para dirigir um

exército maligno contra o Criador e, o que ainda é mais importante, contra o homem. De

acordo com Nogueira, o momento decisivo para a formação de uma hierarquia demoníaca foi

o cativeiro da Babilônia, no século VI a.C. Durante este período, encontraremos a formação

da idéia de Lúcifer, “o filho da aurora”, título divino atribuído ao rei da caldéia que foi

ressignificado pelos hebreus para identificar o líder das hostes demoníacas. O cativeiro trouxe

também o contato com o Masdeísmo persa que, através de sua compreensão dualista do

universo dividido entre o Bem (Ahura Mazda) e o Mal (Angra Mainyu), seria fundamental

para o desenvolvimento do cânone maligno judaico, pois:

Fornecerá o pano de fundo […] que libertará o Demônio no pensamento

judaico e possibilitará, através da assimilação da crença em espíritos

benéficos e maléficos, a composição de uma hierarquia angélica,

transformando os anjos, anteriormente símbolos da manifestação divina, em

entidades autônomas (NOGUEIRA, 1986: 11).

95

Enquanto organizavam os demônios sob a autoridade do Diabo numa hierarquia

paralela à dos anjos, os judeus personificavam as forças do Mal e sistematizavam ideias antes

apenas dispersas em sua tradição oral acerca do Inimigo.

No período helenístico, marcado pelo encontro extremamente produtivo entre as

tradições Ocidentais e Orientais, fluíram livremente processos de criação e trocas simbólicas

sumamente importantes para a afirmação da doutrina demonológica hebraica.

Quando, no século II a.C., foram traduzidos para o grego os livros sagrados

(das diversas religiões existentes), denominaram-se demoníacos (daimonia)

os ídolos e divindades pagãs e alguns dos animais fantásticos que povoaram

as crenças do antigo Oriente. Estabelecida uma mesma denominação

comum, uma parte das doutrinas demonológicas, incorporadas à tradição

helênica, penetrou entre os hebreus, associando-se aí às tradições orais,

inundando as crenças judias de espíritos malfazejos (NOGUEIRA, 1986:

14).

Temos, assim, o fornecimento de um substrato riquíssimo de arquétipos divinos e

semi-divinos provenientes dos “quatro cantos do mundo”. Estes serviram de base para a

criação, através de apropriações e ressignificações – verdadeiras demonizações –, de

infindáveis tipos e espécies de demônios. Tanto é que, se antes do período helenístico pouco

se fez necessária a cristalização da ideia de um lugar específico para conter os demônios (eles

habitavam o espaço entre o céu e a terra), agora teremos o desenvolvimento da idéia da

“Morada do Mal” como limite simbólico do ponto espiritual extremo. Se os atos e escolhas

durante o período de vida de um determinado homem fossem considerados pecaminosos, este

seria enviado a habitar, com o término de sua vida, nas profundezas da terra – a depositária da

podridão da morte –, local perfeito para conter o insaciável Inferno. Além disso, a riqueza

imagética do período helenístico, contando com representações de deuses e de criaturas

fantásticas de outras nações como sátiros, centauros, gigantes e harpias, foram utilizados para

compor as imagens do Diabo e seus asseclas. Deste modo, o dualismo foi paulatinamente se

constituindo.

Desenvolve-se uma distinção mais nítida entre anjos e demônios,

incorporada no contato com os povos vizinhos, e constitui-se uma doutrina

escatológica, até então ausente entre os hebreus, uma vez que a preocupação

de sobrevivência da nação suplanta a preocupação individualista de salvação

da alma no além, impedindo uma verdadeira figuração do outro mundo,

presente nos sistemas religiosos vizinhos, notadamente o caldeu e o persa

(onde a doutrina dualista acentua o prestígio do além), que prevêm destinos

diferentes para os pecadores e os puros, a noção de Inferno assume um alto

grau de elaboração na literatura apócrifa (NOGUEIRA, 1986: 14).

96

O advento do cristianismo se dará em solo simbólico deveras fértil ao

desenvolvimento da trama cósmica na qual os homens se viram enredados dentro do discurso

de Cristo e seus seguidores. A ressurreição do Cristo, defendida pelos seguidores mais

íntimos, foi o estopim para deflagrar, no mundo físico, um novo capítulo da colossal Batalha

Espiritual entre Deus e o Diabo, duas potências completamente antagônicas e excludentes.

Dentro da visão dualista cristã não há meio termo nem posição de neutralidade. Ou está-se do

lado de Deus, ou trabalha-se para o Diabo.

Os primeiros cristãos, chamados “primitivos” – denominação usada para se referir aos

cristãos dos primeiros quatro séculos de nossa era (GAARDER, 2005) –, alimentavam um

otimismo exacerbado quanto à vitória de Cristo sobre as forças do Mal. Aos cristãos havia

sido dado um novo poder, com o envio do Espírito Santo, que os capacitava subjugar o Diabo

e seus anjos na medida em que estes já teriam sido derrotados através do sacrifício redentor

do Cristo. Satã, com o cristianismo, já não era apenas um agente local, preso à cosmovisão

judaica e agindo somente contra os descendentes carnais de Abraão; ele se tornou a

representação máxima de todo o Mal. Seus ataques eram dirigidos contra os homens como

espécie. Seu objetivo primário é perverter a obra de Deus fazendo com que a criação mais

amada, o homem, se rebele contra a vontade de seu Pai espiritual e seja condenado à perdição

eterna no lago de fogo do inferno. Mesmo sendo o Diabo portador de um poder terrível, nada

desprezível, os cristãos primitivos poderiam, através de sua fé, abortar os planos do maligno,

exorcizando-o dos corpos, mentes e práticas dos gentios. Esse poder era garantido pela

presença do Espírito Santo – o Consolador –, a terceira pessoa da Trindade. Dessa forma, toda

e qualquer coisa que afastasse o homem, em seus esforços de manter a prática cristã, era

rotulada como diabólica: um pecado.

Em momento historicamente mais recente, durante a Baixa Idade Média, detectou-se

um retrocesso do otimismo que caracterizava o imaginário social do cristianismo primitivo

em função de suas expectativas acerca do triunfo de Cristo e o estabelecimento iminente do

Reino de Deus na terra. Durante este período o Diabo foi paulatinamente investido de maior

autoridade espiritual. As sociedades européias do medievo imputaram ao Diabo um papel de

predomínio no mundo, ele passa a ser uma constante não apenas na vida de gentios, como

também de cristãos por meio das infinitas tentações arquitetadas. Os estudos sobre

demonologia se multiplicaram em número.

Na Baixa Idade Média, os teólogos discutem com afinco os meios e os objetivos do

mal. Não se tratava mais de uma desorganizada massa de espíritos lutando para abocanhar a

alma humana. Os teólogos de outrora escrevem que o Inferno era tão organizado, ou ainda

97

mesmo, mais organizado, do que qualquer reino humano. Havia uma fortíssima hierarquia

entre os demônios, o que os possibilitava levar adiante seu projeto maligno de modo

impecável. As diversas situações limites vivenciadas pelos europeus durante os séculos XIII e

XIV – as quais são relembradas por meio da famosa tríade “fome, peste e guerra” – foram

utilizadas para fundamentar a ação do Diabo na terra e, ao mesmo tempo, corroborar as

especulações dos demonólogos. Nogueira nos dá um exemplo bem empírico da transformação

ocorrida no imaginário social cristão durante o período, angústia e medo substituíram o

otimismo triunfalista cristão.

Em Salamanca, a velha catedral possuía um “juízo Final”, do século XII,

pintada sobre uma parede lateral, onde não era vista por todos. Composição

pouco dramática, apresentava um Cristo majestoso e sereno, à sua direita e à

sua esquerda, os escolhidos e os condenados. Nos séculos XV e XVI, a

catedral é reformada e a cena é deslocada para a abside, ficando em frente ao

público. Dessa forma, as cenas se agigantavam e se tornavam mais vigorosas

e, por fim, o Cristo está voltado para os condenados e esboça um gesto de

rejeição (NOGUEIRA, 1986).

As ideias concernentes à Batalha Espiritual chegam à época dos governos absolutistas,

na Europa, tendo como principal temática não mais o Senhor, distante dos homens e refugiado

nas grandes e sombrias catedrais medievais. A Modernidade verá a figura do Diabo ser

agigantada no imaginário social cristão. Ele está presente no cotidiano, em cada falha

humana, nos deslizes de caráter, nas promessas não cumpridas, nos desejos e pensamentos

tidos como pecaminosos. Não há mais limites para a ação do Inimigo, ele começa a ser visto

em todos os lugares, em todos os momentos. O homem não poderia permanecer impassível

ante o triunfo de Satã. Inicia-se a caça às bruxas. No período de 1486 até 1669, o Malaus

Maleficarum foi reeditado 34 vezes (NOGUEIRA, 1986).

A Reforma Protestante e a Contra-Reforma configuraram-se, também, como

momentos profícuos para prosperar a carreira de Satanás no Ocidente. A alcunha “Besta do

Apocalipse” era batida e rebatida entre os representantes dos dois movimentos. Ora era um

Papa católico que estava a serviço de Satã ora um dos Reformadores que trabalhava para

cumprir a vontade de seu senhor, o Diabo. Quanto aos fiéis, católicos ou protestantes,

acompanhavam em pânico o crescimento da importância do Demônio. Tal pode ser

vislumbrado através das palavras de Lutero.

Nós somos corpos submetidos ao Diabo, em um mundo onde o Diabo é o

príncipe e deus. O pão que comemos, a bebida que bebemos, as vestimentas

que usamos, até o ar que respiramos e todos os pertences de nossa vida

corporal, fazem parte de seu império (NOGUEIRA, 1986).

98

Nos séculos XVIII e XIX, que testemunharam os grandes avivamentos preparatórios

para o movimento pentecostal, o Diabo tudo permeia, vê através de cada fresta, se insinua em

sonhos à noite e em visões durante a vigília. As palavras do apóstolo Pedro em sua primeira

epístola fazem-se sentir em todo seu peso: “Sede sóbrios, vigiai, porque o diabo, vosso

adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa tragar;” (I Pe. 5:

8). Não é de se espantar que o movimento contestatório do Romantismo tenha proposto uma

inversão de papéis no mínimo radical.

O romantismo transformará Satã no símbolo do espírito livre, da vida alegre,

não contra uma lei moral, mas segundo uma lei natural, contrária à aversão

por este mundo pregada pela igreja. Satanás significa liberdade, progresso,

ciência e vida. […] O Diabo passa a representar a rebelião contra a fé e a

moral tradicional, representando a revolta do homem, mas com a aceitação

do sofrimento porque este é uma fonte purificadora do espírito, uma nobreza

moral, da qual só pode surgir o bem da humanidade (NOGUEIRA, 1986).

O movimento pentecostal reelaborou uma teologia, fortemente marcada pelo

dualismo, como resposta a esta tendência de valorização das forças do Mal por alguns

segmentos culturais e um concomitante “esfriamento” no fervor cristão. Os evangélico-

pentecostais reativaram e renovaram os antigos termos, por algum tempo atenuados, que

definiram durante séculos a Batalha Espiritual. Deste modo, podemos contextualizar as

passagens escritas pelo missionário assembleiano Nils Kastberg, em fevereiro de 1930, no

jornal Som Alegre.

Tu crês na salvação pelo sangue do Cordeiro? Então serás odiado, de igual

modo como Abel. Entrarás em aperto, e sofrerás perseguições até dos teus

parentes e amigos. […] Tu crês na libertação pelo sangue do Cordeiro? Tens

experimentado o poder deste sangue na tua vida? Fostes liberto dos teus

vícios e pecados? Ele [Jesus] salvará o seu povo dos seus pecados. Fostes

salvo do mundo com as suas concupiscências? O teu “eu” está crucificado

em Cristo? Não vives mais para ti, nem para o mundo, mas Aquele que te

amou e deu a sua vida em sacrifício da tua alma? Se foi assim, então estás

verdadeiramente livre. […] Quando Jesus vier, levará para si mesmo os que

têm andado com Ele para que onde estiver, eles estejam também. Sim, um

dia – e este dia não tarda –, o mundo ficará livre daqueles que dele não são

dignos. […] Tu crês que Deus tem preparado uma glória para os que o

amam? Para os que sofrem aqui por amor a Jesus? Glória a Deus! O nosso

lar não é aqui neste mundo de sofrimento; somos peregrinos e estrangeiros.

[…] Irmãos, o mundo ficará mais e mais apertado para nós. O inimigo das

nossas almas, Satanás, tem grande fúria, pois sabe que resta pouco tempo. O

sol da graça está se declinando para os gentios e a vinda do Senhor se

aproxima. Vamos nos aproximar de Jesus, viver em comunhão com Ele e

uns com os outros, para assim sermos indignos deste mundo, mas dignos de

sermos arrebatados para a Glória (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da

Paz, 2004: 30-31. 1 v).

99

A concepção de dualismo nas Assembléias de Deus é bem retratada nas passagens

citadas acima. Segundo Kastberg, as esferas de atuação nesta vida são estipuladas através das

fórmulas: “no mundo” ou “em Jesus”. Não há terceira via. Está-se no mundo ou em Jesus.

Estar em Jesus, obviamente, não muda a inserção física do crente no “mundo”. Aqui nasce

uma tensão identitária importantíssima na manutenção de sentido à Batalha Espiritual entre os

evangélico-pentecostais: a conversão e a vida em Jesus, por mais santas e íntegras que possam

ser, ainda assim transcorrem no “mundo”. Para ser medianamente resolvido, o problema é

remetido à outra base: pode-se permanecer no “mundo”, contudo, o “eu” do crente não deverá

mais ser para si. Viver só fará sentido se for para Cristo. Uma defasagem entre

pentecostalismos (pré-milenarista, AD, e pós-milenarista, IURD) pode ser observada, assim,

nas distintas concepções do que vem a ser a vida “em Jesus”.

Como já vimos, as distinções podem ser rastreadas por meio da diferenciação entre as

matrizes interpretativas que regem a leitura do arcabouço identitário evangélico-pentecostal: a

Santidade Próspera dos assembleianos ou a Prosperidade Santa dos iurdianos. Em ambas as

propostas de vida em Jesus, e este é um ponto em comum entre as duas matrizes

interpretativas, a imersão do convertido à fé pentecostal precisa ser total. A identidade cristã

canibaliza outras expressões identitárias do sujeito que se converte, como em suas relações no

trabalho, na comunidade enquanto vizinho e/ou cidadão, na escola, etc. Todas as entradas e

saídas no que tange às sociabilidades do convertido serão reestruturadas de modo a assegurar

seu testemunho cristão pessoal.

Outro texto retirado da coleção de artigos históricos do Mensageiro da Paz, datando

de dezembro de 1930, de autoria de Lewi Pethrus, comenta uma das passagens mais

emblemáticas da hermenêutica bíblica pentecostal acerca do dualismo universal.

Lemos em Efésios 6.12: “Porque não temos que lutar contra carne e sangue,

mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das

trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares

celestiais”. Acontece que às vezes atacamos a carne e o sangue procurando

convencer os homens dos seus erros, sem nos lembrar de que a nossa luta

não é contra carne e sangue, pois atrás das heresias está o poder das trevas

que não se deixa vencer. De acordo com 1 João 2.19, o espírito do anticristo

já vem reinando neste mundo, e os homens estão sendo movidos e dirigidos

por este espírito e poderes estranhos. Não podemos de forma alguma

convencê-los através de batalhas carnais. Mas, devemos ter compaixão de

tais pessoas e concentrar a nossa luta contra o poder das trevas que está atrás

dos seus erros. E nesse combate não vale nada o emprego de armas carnais.

Se por acaso vencermos as batalhas com as armas carnais a nossa vitória é

humana, mas se a luta for espiritual a vitória será divina. (ARTIGOS

Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 75. 1 v).

100

O dualismo inerente ao universo simbólico evangélico-pentecostal lastreia a Batalha

Espiritual. Sua dinâmica, marcadamente teleológica, está amparada no irresistível avanço das

forças do bem contra as forças do mal com o cumprimento do plano divino da salvação. Os

comentários do pastor Pethrus, acima apresentados, versam sobre a epístola de Paulo aos

Efésios, amplamente citada para fundamentar a Batalha Espiritual. O “mundo”, espaço da

“carne e sangue”, pode ser entendido como um desdobramento do mundo espiritual. É

interessante notar que, de acordo com tal ponto de vista, o mundo espiritual será “mais real”

que a realidade mesma, afinal, são as relações de poder no interior do mundo espiritual que

determinam o desenrolar dos eventos no mundo da “carne e sangue”. O crente é o único

espiritualmente capacitado para enxergar “por trás” da carne e sangue.

O Inimigo, Satanás, e seu séquito de anjos caídos, realizam sua natureza de maldade

pura através de suas ações emblemáticas: “matar, roubar e destruir”. Seu único objetivo ao

efetivar seu plano maligno é carregar consigo o maior número de pessoas para o Lago de

Fogo, última morada dos pecadores quando chegar o fim dos tempos.

Satanás, segundo o pensamento evangélico-pentecostal, sabe que não possui chances

de triunfar contra o Senhor numa guerra aberta. Ele está consciente que sua condenação é

iminente, e mais, já foi derrotado quando Jesus morreu na cruz para salvar a humanidade. Só

lhe resta conspurcar a criação mais amada de Deus, o homem, fazendo-o se desviar da

presença do Altíssimo por meio do pecado.

Como o diabo realiza seus intentos? Segundo Pethrus ele age “por trás” das ações

erradas dos homens. Nesta passagem, escrita em 1930, vemos, mais uma vez, a afirmação da

capacidade possuída pelo crente de discernir os reais (espirituais) intentos satânicos por detrás

das mais banais ações cotidianas – veremos a reincidência desta capacidade mais adiante ao

analisar alguns trechos escritos por Edir Macedo. Poderíamos nos referir a esta concepção

como uma “teologia do desvelamento”, haja vista ser sua mensagem principal o conhecimento

de que ao crente, aquele que vive “em Jesus”, foi confiado uma capacidade não compartilhada

pelos habitantes do mundo da “carne e sangue”. Tal capacidade dá aos crentes poder para ver

por detrás do véu do mundo material. Eles podem identificar a agência das forças malignas

em qualquer instância de nosso mundo físico. Do mesmo modo, julgam poder identificar a

ação das forças benéficas. O dualismo só pode ser conhecido e controlado por aqueles

espiritualmente preparados para tal. Os crentes podem retirar o véu da carne, do sangue e ler

as “astutas ciladas de Satanás”, enxergando a absoluta verdade que dirige a ação dos homens.

Como escreveu Nils Kastberg, em fevereiro de 1930:

101

Os homens deste mundo crêem, com facilidade em toda loucura que

pertence (ao mundo), mas não podem perceber as coisas espirituais. As

coisas sobrenaturais são para eles loucura. (ARTIGOS Históricos –

Mensageiro da Paz, 2004: 29. 1 v).

Essa capacidade do crente é importantíssima para a sustentação de seu imaginário

dualista na medida em que é por meio dela que o crente regerá seu cotidiano, vigiando e

avançando, lutando para evitar ceder território ao Inimigo.

O texto de Lewi Pethrus fala, ainda, das “armas carnais” e das “armas espirituais”. As

armas carnais são entendidas pelo evangélico-pentecostal como sendo a teologia liberal,

baseada em erudição e profunda capacidade de oratória do pregador alcançada mediante

estudo. Aqueles que usam a “lógica” e intrincados argumentos para levar seus ouvintes a

reconhecerem seus pecados são os que fazem uso de armas carnais. Como vimos, é uma

característica pentecostal o repúdio à formação acadêmica de seus pastores – característica

essa que será encontrada ainda hoje na constituição do presbitério iurdiano. A posse das armas

espirituais, por sua vez, só pode ser garantida na vida “em Jesus”. Ou seja, para poderem

combater o “bom combate” contra as forças das trevas, os crentes precisam fazer com que os

elementos de sua identidade evangélico-pentecostal sejam reconhecidos pela comunidade de

sua rotina, ele precisa de reconhecimento público. Assim, atenua-se a dúvida que sempre

permeia suas relações sociais ambíguas, derivadas das imposições de sua identidade: estar no

mundo sem nele viver.

Enquanto o Diabo e seus asseclas trabalham para carregarem consigo o maior número

de pessoas ao Lago de Fogo, a missão dos crentes é espalhar a Palavra de Deus de modo a

conscientizar os gentios de sua perdição. O trabalho de evangelização é entendido nos termos

de uma batalha para arrancar as almas das pessoas das garras do inferno. Consideramos esta

necessidade de evangelização – o “Ide e pregai” – como uma das representações componentes

do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Iremos nos deter em suas especificidades

mais adiante. Por ora, basta-nos entender que a necessidade premente de se fazerem prosélitos

por meio da conversão reforça a compreensão da dualidade do mundo – ou você está em Jesus

ou no mundo – e confirma, dentro do quadro de referências simbólicas do evangélico-

pentecostal, a milenar Batalha Espiritual. A Batalha Espiritual, por sua vez, precisa desdobrar-

se em sinais exteriores, em práticas. Apesar de ter sua origem no campo simbólico, não pode

ficar contida apenas em pulsões subjetivas, ou a identidade social do fiel – sua participação na

comunidade dos salvos – ficará ameaçada.

A Assembléia de Deus criou todo um discurso de santificação pautado na separação

do mundo instanciada na possibilidade de se reconhecer a linha divisória entre o fiel e o infiel

102

a partir dos sinais exteriores de santidade. Podemos observar o discurso da separação do

mundo no texto que se segue, publicado no Mensageiro da Paz de julho de 1931, de autoria

do pastor João Trigueiro.

Ora, hoje, para se perceber que deve haver, indispensavelmente, uma linha

divisória entre o fiel e o infiel, como de fato o há, basta atentar na parábola

do rico e de Lázaro – entre ambos existia uma separação. Ainda que Lázaro

ou o rico quisessem não poderiam beber, juntos, do mesmo copo; nem

mesmo inclinando o corpo e estirando o braço poderia Lázaro, com o dedo,

alcançar a língua do rico atormentado. Ainda hoje perdura,

incontestavelmente, como já dissemos, essa linha de divisão, posta a separar

o pervertido e infiel, do cristão fiel, cuja linha é a Bíblia, que, numa

linguagem altissonante, adverte e obriga o crente a separar-se das trevas

deste mundo. Essa Bíblia, que universalmente deve ser lida e obedecida,

ordena, evidentemente, a completa isenção de qualquer terreno pecaminoso

– saí dela, povo meu, para que não sejais participantes dos seus pecados e

para que não recebas das suas pragas; eis o que foi revelado ao desterrado da

Ilha de Patmos, a propósito da Babilônia decaída (Ap. 18.4), e cujos dizeres

referem-se tanto à corrupção de um povo, como à de um indivíduo. Pelo que,

saí do meio deles, e apartai-vos, é a regra, perfeita, exposta na Palavra de

Deus, para o bem-estar de seus filhos (ARTIGOS Históricos – Mensageiro

da Paz, 2004: 99. 1 v.).

Como consequência dessa divisão, surge um discurso nos moldes sanitaristas de

quarentena ao mundo: “para que não sejais participantes dos seus pecados e para que não

recebas das suas pragas”. O crente deve se afastar deste mundo habitado e controlado pelos

demônios ou será inescapavelmente “contaminado” por seu pecado, tendo, deste modo, sua

salvação em Jesus ameaçada. No dualismo evangélico-pentecostal há uma absoluta negação

do mal, não há espaço para diálogos ou negociações: simplesmente “saí do meio deles”. No

trecho apresentado acima, podemos acompanhar o escritor da AD instando na manutenção

dos sinais exteriores de santidade. Seus conselhos, em forma de mandamentos, se

fundamentam na literalidade bíblica, ou seja, no biblicismo.

Percebemos a continuidade da representação coletiva do dualismo dos assembleianos

da primeira metade do século XX em escritos iurdianos do início do século XXI. O dualismo

do universo é para Edir Macedo uma verdade inquestionável. O líder da IURD, mesmo

contrário ao ascetismo assembleiano, escreve sobre a postura do crente que vive em Jesus.

Aceitar Jesus como Senhor e Salvador inclui mais que uma simples

resolução mental. “Aceitar”, no sentido bíblico, significa crer, confiar e

seguir. Muitos dizem que aceitam Jesus, mas trocam Seu nome por outros e

não depositam sua fé totalmente n’Ele. Dizem que aceitam Jesus, entretanto

afirmam que “todos os caminhos levam a Deus”. Submetem-se às entidades

e aos “santos” e neles depositam sua confiança. Dizem até que “Deus é bom,

mas o diabo não é mau”, fazendo assim a vontade de satanás. Tais pessoas

não podem ser libertas se procedem dessa maneira, pois Deus não é de

103

confusão. O verdadeiro seguidor de Jesus não pode ficar entre o sim e o não;

não pode coxear entre dois pensamentos. Isso aos olhos de Deus é absurdo.

Ninguém pode estar na luz e nas trevas ao mesmo tempo, porque ou a luz

dissipará as trevas, ou as trevas abafarão a luz (MACEDO, 2001: 19-20).

Mais uma vez, ou se está “em Jesus” ou “no mundo”. Não há possibilidade de fugir da

dualidade, não há meio termo. O pensamento de Macedo não abre espaço para dúvidas ou

questionamentos sobre qual seria a natureza espiritual que dirige as ações neste mundo, qual

poder está “por trás” dele.

Nós, cristãos, vivemos em uma sociedade que tem sido aliada de Satanás.

Significa ser este mundo contrário a Deus e a tudo quanto d’Ele provém.

Jamais poderemos esperar compreensão com a nossa fé; muito pelo

contrário, este mundo estará constantemente procurando destruir aquilo que

Deus nos concedeu. Portanto, o seguidor do Senhor Jesus Cristo precisa estar

sempre preparado para enfrentar todo tipo de luta, com o objetivo exclusivo

de manter sua fé e, consequentemente, sua salvação (MACEDO, 2007: 09-

10).

O dualismo marca fortemente o discurso de Macedo, líder da IURD. Nos parece

interessante como as palavras de Macedo ecoam os pensamentos de Lutero, expostos

anteriormente, sobre o dualismo entre bem e mal, mundo físico e espiritual, sagrado e

profano. A sociedade é encarada como aliada de Satanás.

O diabo continua exercendo sobre os incrédulos o mesmo domínio ao qual

Adão se entregou quando pecou. O pecado do homem e o domínio satânico

sobre ele estão dessa forma unidos, estreitamente relacionados entre si

(MACEDO, 2001: 15).

A sociedade, entretanto, não seria uma aliada consciente do maligno, como podemos

observar ao acompanhar a apresentação que Edir Macedo faz da criação do universo. O texto

que segue configura-se numa explicação totalizante da história do cosmos. A raça humana, de

acordo com Macedo, é ontologicamente determinada para submeter-se a apenas uma das

forças que estão em combate, não há possibilidade de não servir a um dos lados, não há

neutralidade. Aquele que se crê neutro, já está a serviço do mal. As pessoas são

necessariamente peças, brancas ou negras, no jogo de xadrez cósmico entre Deus e Satanás.

Deste modo, o líder da IURD considera que a raça humana ficou subordinada à Satanás logo

após sua criação, com Adão e Eva. Assim, todos aqueles que não compartilham do

cristianismo evangélico-pentecostal seriam usados pelo poder do mal, pois ao desobedecer ao

Senhor, trocam voluntariamente a submissão divina pela satânica.

Ele [Adão] foi criado à imagem e semelhança do Altíssimo e perfeito era em

todos os sentidos. Assim como satanás (a palavra significa em hebraico

104

“inimigo”) penetrou na Terra e a tornou sem forma e vazia, também

penetrou na vida de Adão e Eva. Sutilmente os envolveu de tal forma, que

eles deixaram de dar ouvidos à Palavra de Deus para ouvirem satanás.

Começou, então, a grande tragédia da humanidade, o seu caos e vazio,

porque, deixando o homem de se submeter a Deus, ficou subordinado a

satanás. Ora, Deus é luz, ordem e disciplina, e com Ele não podem habitar o

erro, o pecado e as trevas. Por isso mesmo, Ele foi obrigado a fazer com o

homem o que fizera com lúcifer: expulsou-o da Sua presença (MACEDO,

2001: 12).

As categorizações se sucedem no texto de Macedo. Deus e seu Reino são designados

como sendo a luz, ordem e disciplina. Satanás, por sua vez, é o agente do erro, do pecado e

das trevas. Esta categorização não é fortuita; está amparada por uma tão complexa quanto

antiga categorização simbólica e estética fundamentada numa ética cristã ocidental. Como

indício dessa estética podemos citar uma passagem do manual de Montabert para os artistas,

redigido na primeira metade do século XVIII.

O branco é o símbolo da divindade ou de Deus. O negro é o símbolo do

espírito do mal e do demônio. O branco é o símbolo da luz. O negro é o

símbolo das trevas, e as trevas exprimem simbolicamente o mal. O branco é

o emblema da harmonia. O negro, o emblema do caos. O branco significa

beleza suprema. O negro, a feiúra. O branco significa a perfeição. O negro

significa o vício. O branco é o símbolo da inocência. O negro, da

culpabilidade, do pecado ou da degradação moral. O branco, cor sublime,

indica a felicidade. O negro, cor nefasta, indica a tristeza. O combate do bem

contra o mal é indicado simbolicamente pela oposição do negro colocado

perto do branco (SANTOS, 2005: 58).

Macedo não está fundando nada novo no que concerne à apreciação estética a partir do

senso comum ao pensar a divindade cristã. Aproveita-se dos símbolos que estão inculcados na

sociedade para fundamentar seu argumento. Querendo definir com ainda mais precisão “o

mundo” no qual vivemos, Edir Macedo continua seu texto revelando características

detalhadas do reino das trevas.

Impotente, exteriormente religioso, científico, culto, elegante, o mundo está

dominado pelos príncipes satânicos. Sob sua enganosa aparência exterior é

uma caldeira fervente de ambições nacionais e internacionais, rivalidades

comerciais, lágrimas escondidas atrás de um sorriso. Satanás e sua hierarquia

de seres espirituais da maldade (Daniel 10.13; Efésios 6.12) são os agentes

invisíveis e a causa real da sede de poder e inteligência maléfica dos

ditadores e de todos aqueles que buscam e usam seu poder terreno para o

mal. Estes tais são os dirigentes visíveis. As guerras e os conflitos

periódicos, produzindo morte, derramamento de sangue inocente e extrema

violência, são os acompanhantes indispensáveis (MACEDO, 2001: 13).

Desentendimentos políticos e agruras econômicas em nível planetário são computados

como obras do maligno. O Diabo tem o poder tanto de agir no micro cosmos da vida privada

105

do sujeito quanto de dirigir as ambições destruidoras dos líderes mundiais. Toda a

historicidade desaparece. Os processos que compõem a formação das nações, os diversos

processos de colonização e descolonização, os interesses que configuram o campo econômico,

etc; os esforços para interpretá-los são negados, ou melhor, desmerecidos. O noticiário que

anuncia novo conflito, algum levante social ou até mesmo um terremoto que tenha destruído

determinada cidade é imediatamente interpretado pelo crente sem maiores problemas ou

dúvidas. O mundo não é complexo, ao contrário, ele é deveras simples: o Diabo sempre age

para destruir. Ele faz as nações entrarem em guerra, os subalternos se rebelarem contra seus

dirigentes e move a natureza para fazer dano ao homem. Para que tamanha malignidade possa

ser impetrada sem problemas, Satanás conta com um apoio logístico invejável.

Na categoria da organização satânica, satanás exerce domínio absoluto sobre

os espíritos caídos que o seguiram em sua rebelião original. Sua autoridade

é, sem dúvida, um atributo a ele delegado pelos seus servos. Esses espíritos,

havendo decidido seguir satanás, em vez de permanecerem leais ao seu

Criador, foram confirmados irremediavelmente na maldade e abandonados

no erro. Assim sendo, estão em completo acordo com seu príncipe e lhe

rendem voluntário serviço em seus diferentes encargos e posições, num reino

altamente organizado (Mateus 12.25). Sua decisão inicial os ligou para

sempre ao seu programa de engano e à sua inevitável condenação

(MACEDO, 2001: 13).

Satanás não possui os atributos de onisciência, onipresença e onipotência como Deus.

Ele compensa suas limitações divinas por meio de um contingente gigantesco de auxiliares, os

demônios26

. Macedo, no afã de doutrinar seus seguidores que, em sua maioria contam com

formação teológica elementar, detalha as características dos demônios:

Ao lado de sua inteligência sobre-humana e de sua moral viciosa, os

demônios possuem uma força assombrosa. Têm poder sobre o corpo humano

para causar: Mudez (Mateus 9.32,33) Cegueira (Mateus 12.22) Demência

(Lucas 8.26-36) Manias suicidas (Marcos 9.22) Males físicos (Marcos 9.18)

E as mais variadas deformidades físicas (Lucas 13.11-17). Não há razão para

supormos que o diabo e seus anjos tenham deixado de agir na atualidade, tal

qual nos dias dos apóstolos (MACEDO, 2001: 14).

A contemporaneidade dos demônios é inquestionável. Um dos maiores golpes de

Satanás para manter tanto sua soberania no mundo quanto os homens afastados de Deus é

fazer com que as pessoas acreditem que ele não existe. A não crença no Diabo é já, para

Macedo, uma das características dos que vivem sob o domínio dele.

26

Segundo o relato do Velho Testamento, um terço dos anjos do céu seguiram Lúcifer em sua rebelião e foram

expulsos juntamente com ele.

106

A incredulidade, com seu terrível castigo da condenação eterna (Marcos

16.16), é o resultado da obra perniciosa de satanás no homem (Efésios 2.1,2;

2 Coríntios 4.4; Mateus 13.25). Todos quanto recusarem crer no Evangelho

agem por instigação satânica, que os retém em seu poder (Atos 26.18;

Colossenses 1.13). A própria negação da existência pessoal de um demônio é

consequência da operação do diabo no coração do homem (2 Coríntios

11.14). […] Uma vez longe de Deus, mais perto de satanás e, por isso

mesmo, a humanidade vem passando por tudo o que lemos e ouvimos nos

noticiários. Ninguém se entende; pais contra filhos e vice-versa; luta de

classes; revoluções e guerras. A luta da humanidade foi, é e será, até a

segunda vinda do Senhor Jesus Cristo, tal qual uma disputa entre todos os

urubus por uma única carniça no deserto. A fome, a doença, a guerra e todo

o mal tomaram o lugar de destaque neste velho mundo, tornando-o sem

forma e novamente vazio... O amigo leitor pode notar que todas as agruras

vindas à existência humana são decorrentes de uma única faísca de

destruição, constituída pela rebelião do homem contra Deus, seu Criador.

Por causa da sua estupidez espiritual, ele deixou de dar ouvidos à Palavra de

Deus para ouvir o diabo e, por isso, continua no sofrimento e na dor. O

homem colhe hoje o que plantou ontem, e colherá amanhã o que plantar

hoje. Tudo depende dele, o homem, este ser rebelde e estúpido. Enquanto se

mantiver aliado ao diabo, continuará sofrendo por sua rebeldia diante de

Deus (MACEDO, 2001: 15-18).

Como pudemos observar, o dualismo está presente como fundamento do imaginário

social tanto em escritos assembleianos da primeira metade do século XX quanto nos textos

redigidos em fins do mesmo século para formação da fé dos seguidores de bispo Macedo. O

dualismo, agindo como pano de fundo na Batalha Espiritual, alimenta as experiências de

combate e o ódio identitário a alteridade do evangélico-pentecostal. Assim, é a partir do

pensamento dualista que encontram meios simbólicos, tanto pentecostais clássicos, quanto

neopentecostais, para manter as suas posturas de batalha, ora vigiando, ora avançando sobre o

reino das trevas neste “mundo”. A luta é perene.

2.2.5. Grande Comissão

A Grande Comissão é um dos mandamentos bíblicos basilares na constituição da

identidade evangélico-pentecostal. De fato, a rápida expansão do pentecostalismo durante o

século XX se deve, em grande medida, ao esforço no cumprimento desse mandamento. Os

quatro Evangelhos narram em seus capítulos finais o comissionamento que Jesus delegou aos

seus seguidores. Segundo o evangelho de Marcos, poderíamos resumir a Grande Comissão na

fórmula “Ide e Pregai”. Em nossa leitura dos autores que trabalharam com os

pentecostalismos, percebemos como este elemento identitário foi pouco trabalhado, se não

omitido de todo. Para podermos entender melhor algumas características básicas relacionadas

107

à Grande Comissão, vamos lançar mão da análise dos textos auxiliares da Bíblia de Estudos

Plenitude.

A Bíblia de Estudo Plenitude (2001) é uma das Bíblias evangélicas (não contém os

livros apócrifos27

) editada com o acréscimo de comentários nos bordos das páginas, além de

diversos boxes explicativos inseridos no corpo dos capítulos que unem a literalidade do texto

bíblico à doutrina pentecostal. Estas Bíblias comentadas são uma empreitada editorial norte-

americana dos anos oitenta que visava aumentar a vendagem e contemplar um público cada

vez mais ávido em fundamentar seus argumentos dogmáticos. As Bíblias de estudo

evangélicas foram popularizadas no Brasil durante a década de noventa do século passado. A

já mencionada Bíblia de Estudo Plenitude traz como subtítulo: “a Bíblia de Estudo que revela

toda a plenitude de Deus em toda a Palavra de Deus”. A citação de alguns de seus

comentários nos auxiliará no entendimento do que seja a “Grande Comissão”.

Apresentaremos o texto bíblico ao qual faz menção (em itálico) e, logo em seguida, o

comentário acrescentado.

Mateus 28: 19,20:

Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do

Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu

vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até à

consumação dos séculos. Amém!

Comissionados sob o chamado do Rei. Como o tema de Mateus é Cristo

como Rei, não é de surpreender que a incumbência final de Jesus nos aos

seus discípulos reflita sua perspectiva global. Ao ensinar a vida e princípios

do Reino (“Reino” aparece mais de 50 vezes em Mateus), Jesus guia seus

seguidores a pensar, viver e orar para que seu Reino alcance todo o planeta

(6.10). No cap. 13, suas parábolas ilustraram a expansão global do Reino (v.

33). Quando seus discípulos começaram a ministrar, ele lhes disse para

pregar em todos os lugares: “O Reino de Deus está chegando”. Depois, antes

de sua ascensão, o Rei deu a Grande Comissão. Essa incumbência máxima

de ir a todas as nações ordenava que o ensinamento e a pregação

procurassem trazer todas as nações ao seu Reino (28. 18-20).

Profeticamente, ele prevê que o fim somente chegaria quando “este

evangelho do Reino” fosse pregado “em todo o mundo” (24.14). “Nações”

(gr. ethne) significa “grupos de pessoas” – hoje em dia há cerca de 22.000 no

mundo (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 992. Grifos do autor).

A Grande Comissão é um mandamento basilar que está intimamente ligado a

efetivação da segunda vinda de Cristo. Os evangélico-pentecostais precisam espalhar a “boa

nova” da volta de Jesus. O salvador dos crentes só poderá se manifestar pela segunda vez

27

Primeiro Livro de Macabeus ou I Macabeus; Segundo Livro de Macabeus ou II Macabeus; Judite; Baruc;

Eclesiástico; Livro de Tobias; Livro da Sabedoria; adições em Ester; adições em Daniel (ou nomeadamente os

episódios da História de Susana e de Bel e o dragão).

108

depois que as “boas novas” da salvação forem pregadas em todas as nações, depois que cada

ser humano tiver tido a possibilidade de escolher entre Deus ou o Diabo.

Marcos 16. 15-18:

E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura.

Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E

estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome, expulsarão demônios;

falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa

mortífera, não lhes fará dano algum; e imporão as mãos sobre os enfermos

e os curarão.

Comissionados no espírito servil de Cristo. Para compreender a Grande

Comissão em Marcos, devemos apreender o espírito de enfoque de Marcos

sobre Jesus como Servo. As profecias messiânicas, como Is 42.1-21; 49.1-7;

50.4-11; 53.12 prevêem que o caráter servil de Jesus faria uma obra

específica e agiria com obediência incondicional e imaculada.

Marcos mostra o caráter servil de Jesus omitindo sua genealogia (mediante a

qual os outros evangelhos estabelecem sua identidade), mostrando que,

como servos de Cristo, nós também podemos aprender o essencial para

cumprir a Grande Comissão. Cristo procura aqueles que servirão sem buscar

reconhecimento, procurando exaltar Cristo generosa e obedientemente e

torná-lo conhecido. Tais servos estabelecem sua personalidade e ministérios

através de sua própria devoção e obediência a Jesus, sua disposição de servir

sem interesses – sendo seu único exercício de poder propagar o amor de

Deus – ministrando sua vida aos perdidos, aos doentes e àqueles em

cativeiro. Eles o fazem sempre e onde Deus soberanamente ordena, seja

mediante ofertas, idas ou orações intercessórias. O amor e obediência servis

de Jesus compele seus servos a um serviço leal e franco (BÍBLIA de Estudos

Plenitude, 2001: 1020).

Outra característica da Grande Comissão é a de poder ser realizada de diversas formas

pelo fiel. Pode-se realizá-la ao auxiliar na arrecadação de recursos financeiros para enviar e

manter missionários nas mais diversas partes do mundo. Também há a possibilidade tornar-se

um dos que vão para a “linha de frente” ao oferecer-se ao trabalho missionário. Este trabalho,

todavia, não precisa ser necessariamente realizado noutros países. As visitas aos hospitais,

presídios, asilos e as pregações feitas em locais públicos e/ou a panfletagem realizada aos fins

de semana, anunciando e convidando os gentios para participarem dos cultos podem ser

consideradas formas de cumprimento da Grande Comissão. O crescimento da Assembléia de

Deus até as transformações ocorridas nas décadas de oitenta e noventa com a

neopentecostalização – a AD passa a assimilar os métodos de evangelização eletrônica –, se

deve, em grande medida, ao cumprimento da Grande Comissão nos termos de pregação

pessoal.

Outra forma através da qual o crente pode realizar sua obrigação religiosa identitária

para com a Grande Comissão é a oração intercessória. É importante sublinhar que as maneiras

mencionadas de cumprimento do mandamento do “Ide e Pregai” não são excludentes. Pode-se

109

orar para que as almas perdidas encontrem Jesus, realizar doações para as missões e ainda

realizar um paciente – mas não por isso pouco vigoroso – trabalho de aproximação dos

gentios que compõem a cotidianidade de vivências na qual o crente está inserido. Eles

precisam ser convencidos de que estão em pecado, vivendo de forma errada e, sem sombra de

dúvida, irão para o inferno se não negarem toda e qualquer prática que não seja arrolada como

santa. É a Boa Nova da Salvação.

Lucas 24. 45-48:

Então, abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras. E

disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o cristo padecesse e, ao

terceiro dia, ressuscitasse dos mortos; e, em seu nome, se pregasse o

arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando

por Jerusalém. E dessas coisas sois vós testemunhas.

Comissionados para ir com a compaixão de Cristo. A ênfase de Lucas na

Grande Comissão é consoante com seu tema: Cristo, o Filho do Homem –

mostrando a humanidade e divindade de Jesus em harmonia. A beleza e

singularidade de seu caráter – tanto divino quanto humano – são reveladas

quando esse Ser Divino leva o ser humano pecador a um Deus Santo. Em

perfeita santidade de vida, Jesus reflete compaixão pela humanidade

maculada pelo pecado e sofrimento – pessoas com o coração partido,

doentes, maltratadas e consternadas. Nosso cumprimento da Grande

Comissão exige um alcance muito universal ao ministrar compaixão e

preocupação humana. O estilo de Jesus – sensível e tangível – é um apelo a

seus seguidores para responderem rapidamente a sua ordem e para

responderem com a compaixão dele. Nenhuma fronteira geográfica,

nenhuma barreira de pecado, nenhum interesse partidário étnico, político ou

econômico nunca deve restringir nosso alcance ou penetração com

evangelho (BÍBLIA de Estudos Plenitude, 2001: 1066).

A partir de sua visão de mundo dualista que concebe apenas dois destinos para as

almas humanas após a morte – ou a bem-aventurança do Paraíso junto a Deus ou a agonia

eterna do Lago de Fogo em companhia do Diabo –, o evangélico-pentecostal, constituindo-se

identitariamente por meio deste discurso pungente que modela seu imaginário social, não

raras vezes, se desespera com a possibilidade real de perder seus familiares e amigos mais

chegados para Satanás. É um sentimento de compaixão pelo “perdido pecador” que, mais do

que fixar sua comiseração nas práticas entendidas pelo evangélico-pentecostal como viciosas

e detestáveis ao Senhor – inscritas no corpo daquele que recebe a mensagem de salvação –,

volta-se para uma potente atitude imaginativa que prevê o destino de dor insuportável que

aguarda a alma imortal e imaterial que habita o corpo daquele mesmo para quem o crente

dirige sua pregação. Esse sentimento proveniente dos quadros representacionais do imaginário

social evangélico-pentecostal revela-se como um verdadeiro combustível ao ímpeto

evangelístico de ganhar almas para o Reino de Deus. Assim, os evangélico-pentecostais em

110

sua grande maioria não levam adiante sua Batalha Espiritual por astúcia ou interesses escusos,

mas, antes, por uma verdadeira compaixão pelas almas depreendida de seu arcabouço

identitário.

João 20. 21-23:

Disse-lhe, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me

enviou, também eu vos envio a vós. E, havendo dito isso, assoprou sobre eles

e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoares os

pecados, lhes são perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são

retidos.

Comissionados com um mandamento e uma mensagem. O Evangelho de

João apresenta a divindade de Jesus – o Filho de Deus. Como Deus, ele criou

todas as coisas (1.1-3) e, como Deus, ele veio para redimir a todos – trazer a

totalidade do perdão. Esse aspecto de sua missão é transmitido a seus

discípulos, bem como seu comissionamento: Ir com o perdão. Começou aqui

tanto um mandamento como uma missão: 1) “Eu vos envio a vós”.

Precisamente tanto como o Pai enviou o Filho para trazer a salvação como

uma disponibilidade para todos os seres humanos (3.16), nós também somos

enviados para garantir que a disponibilidade seja compreendida por todos. 2)

“A quem perdoardes” indica a natureza condicional de sua provisão. Não se

pode respondê-la a menos que seja salvo. Não há escapatória da natureza

impressionante da terminologia usada aqui por ele. Nós não somos apenas

enviados com a substância da mensagem – a salvação; somos também

enviados para trazer o espírito de sua verdade – o perdão. Apenas o alento do

Espírito dele, que ele assoprou sobre aqueles que escutaram primeiro essas

palavras, pode nos capacitar a ir obedientemente e a alcançar afetuosamente.

É nosso dever disseminar a mensagem (salvação) e seu significado (perdão),

e precisamos receber o Espírito Santo para realizarmos ambos (BÍBLIA de

Estudos Plenitude, 2001: 1099).

O “ganhador de almas” é uma alcunha muito conhecida entre os evangélico-

pentecostais e está embasada no cumprimento da Grande Comissão. É um título que designa

aquele que de fato sofre para levar adiante a “palavra de salvação”. Sobre este sentimento de

empatia espiritual, acompanhemos o que escreve Mark Francen, um reconhecido pregador

para as multidões na África e Ásia, em seu livro Busca pelas almas (s/d).

Quando um indivíduo chama minha atenção meus pensamentos subitamente

entram em seu mundo e me encontro contemplando seu destino eterno.

Alguns destes rostos nunca me abandonam. Eu posso fechar os meus olhos e

vê-los claramente... como se estivessem parados na minha frente. Vez por

outra, eu me pergunto: “Quem os alcançará, senão eu?” Meu querido amigo

em Cristo, a maioria das pessoas do mundo nada sabem do plano redentor de

Cristo. “QUEM OS ALCANÇARÁ SENÃO VOCÊ?” […] Cerca de um

milhão de pessoas no mundo morrem cada semana sem Cristo. Isto não

significa nada para você? Sentimos dor em nosso coração pelos homens e

mulheres que perecem? Não lhe persegue dia e noite o pensamento de que

milhões de pessoas estão perecendo, que multidões estão caindo em

desespero sem um raio de esperança? Quando um homem está revestido com

o poder do alto, ele tem amor pelas almas. Pare de se vangloriar de sua

111

unção se você não tem amor pelas almas. […] A Palavra de Deus é muito

explícita com relação a este dom singular do batismo do Espírito S

anto. Não é uma opção que pode ser ignorada. Não foi dado com o único

propósito de falar em línguas. A maioria tem feito das “línguas” o único

objetivo desta experiência. Uma vez que recebem, eles passam a viver uma

vida cristã sem frutos. O evangelismo mundial é um ministério para todos os

crentes. O propósito de ser cheio com o Espírito Santo não é “falar em outras

línguas”, mas dar prova da ressurreição e testificar de Cristo com confiança,

no poder do Espírito (FRANCEN, s/d: 07-41).

Levar adiante a mensagem da salvação é abrir caminho para a realização do futuro. A

linha de tempo que liga o momento presente ao futuro absoluto (a Parousia) é comprimida ou

encurtada pelo cumprimento do “Ide e Pregai”. Como sua realização é um imperativo na

constituição da identidade do crente, este não pode dar as costas à sua responsabilidade sobre

as almas dos pecadores sem correr o risco de fazer colapsar todo o arcabouço identitário

evangélico-pentecostal. Exatamente por isso consideramos que a manifestação de intolerância

e a prática fundamentalista por parte dos fieis se configuram como manifestações de sua

religiosidade própria, não sendo entendidas pelo evangélico-pentecostal como um ato

execrável de desrespeito, antes, sim, como um mandamento basilar que, de acordo com seu

modo de ver, quando efetivado poderá ser a última chance de salvação para o “perdido

pecador”.

Entre os artigos históricos do jornal Mensageiro da Paz, pudemos identificar diversas

referências ao cumprimento da Grande Comissão. Apresentaremos aqui trechos de dois

artigos de autoria do pastor Alcebíades Pereira Vasconcelos. O primeiro trecho foi retirado do

artigo Um mandamento, uma promessa e um privilégio, publicado em agosto de 1942; o

segundo trecho pertence ao texto Dever e responsabilidade, datado de outubro de 1947.

O senhor Jesus, depois de sua ressurreição, procurou os seus discípulos, a

quem declarou: “É me dado todo poder no céu e na terra. Portanto ide, fazei

discípulos...”, Mt 28.18-19). Eis a nossa responsabilidade pessoal! Fomos

libertos do pecado para servirmos à justiça, cuja servidão nos impõem um

“jugo maneiro e um fardo leve ou suave”, Mt 11.30. O senhor precisa dos

nossos serviços de servos obedientes, a fim de por nosso intermédio levar a

luz da verdade, o Evangelho da salvação, a todo o mundo, em testemunho a

toda criatura; e nós que temos aceitado a Cristo, arcamos com a

responsabilidade de fazer discípulos do Senhor entre todas as nações. […]

Eu percebo que cumprindo o “ide” teremos infalivelmente o Senhor

conosco, ao passo que negligenciando o “ide”, estamos rejeitando sua

presença e nos distanciando de seu plano em relação ao mundo, e ao mesmo

tempo nos tornando passíveis de repreensões e penas por parte de sua justiça

inflexível (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 193-194. 1 v).

112

Notamos que bem antes da difusão entre os evangélico-pentecostais brasileiros da

temática concernente ao pagamento de dízimos e ofertas de modo maquínico (Teologia da

Prosperidade), relacionando a ação humana e reação divina num modelo de estímulo-resposta

que redundaria nas propostas neopentecostais de interpretação da Prosperidade Santa,

podemos observar que o germe do modelo estímulo-resposta na esfera do sagrado já norteava

o pensamento evangélico-pentecostal no que concerne ao cumprimento da Grande Comissão.

Se o crente cumprisse o “ide” em seu dia-a-dia, poderia ter a certeza de que Jesus se faria

presente para abençoá-lo. Se não se prestasse a evangelizar aqueles que estivessem ao seu

alcance, instando com veemente fervor para que o gentio aceitasse Jesus como seu Senhor, o

crente se tornava repreensível, pois estaria em desacordo com o plano de Deus e em falta com

sua identificação.

Jesus disse: “Na verdade, na verdade vos digo: O que ouve a minha

Palavra...”, Jo 5.24. Transportemos para aqui a oportuníssima pergunta

paulina: “Como ouvirão se não haver quem pregue?”, Rm 10.14. Eis aqui o

grande dever, pelo qual está responsável a igreja enquanto viver na Terra –

pregar o Evangelho! Jesus ordenou: “Ide, pregai o Evangelho a toda criatura,

quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”, Mc

16.15-16. Este dever e responsabilidade do povo de Deus são tremendos,

pois deles dependem a felicidade ou infelicidade do mundo, conforme este

proceder em relação a eles, aceitando-os ou rejeitando-os, bem como de

povo de Deus cumpri-los ou negligenciá-los. Não é difícil ouvir-se crentes e

até membros do ministério buscando portas abertas para entrar por elas, isto

é, esperando o tempo oportuno para pregar o Evangelho a alguma pessoa ou

lugar! Nada mais contrário ao plano de Deus: “Se alguém ouvir a minha

Palavra...” e “Ide, pois, pelas ruas e bairros da cidade, pelos caminhos e

valados e forçai-os a entrar”, Jo 5.24; Mc 16.15 e Lc 14.15-24.

Consequentemente, é nosso dever forçar a porta até que esta se abra. Não diz

o Senhor: “Eis que estou à porta e bato”? Ap 3.20. O príncipe das trevas

deve alegrar-se com o adiamento do tempo para evangelização de “alguém”,

pois não quer que esse “alguém” ouça a Palavra de Deus! […] Portanto, a

nós cumpre pregar, pois é nosso dever e está sob nossa responsabilidade este

serviço “para o qual os anjos desejam atentar”, 1Pd 1.12; devemos fazer com

que a Palavra seja ouvida: “O que ouve a minha Palavra e crer...”. Estamos

encarando como devemos nosso dever e responsabilidade? Alguém no juízo

nos acusará por termos perdido o tempo presente, por esperarmos melhor

oportunidade para lhe pregarmos o Evangelho? “Quem olha o vento nunca

semeará...”, Ec 11.4. Mas, “recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito

Santo, e ser-me-eis testemunhas... até os confins da terra”, At 1.8

(ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 215-216. 1 v).

Verdadeira imersão por parte do sujeito que se converte nos cultos pentecostais e

prática de pregação pessoal objetivando a conversão alheia, aí está a fórmula do avanço no

número de adeptos ao evangelho pentecostal. Pode parecer jocosa a afirmativa, mas

percebemos que aos próprios olhos dos evangélico-pentecostais a felicidade do mundo é

113

garantida pelos esforços que empreendem ao fazer avançar a Palavra de Deus, por mais que o

mundo insista que certamente o silêncio do evangélico-pentecostal seja mais agradável à

manutenção da paz. De fato, o crente está preparado identitariamente para receber as

negativas e os escárnios dos gentios. O crente “sabe” que Satanás enche o coração do infiel

para que ele se afaste do Senhor e dos servos do Senhor. Assim, sempre que alguém recalcitra

em receber a Palavra de Deus por meio de seus seguidores mais completos – os evangélico-

pentecostais –, esta mesma pessoa não está fazendo nada que já não seja esperado pelos que

levam a mensagem.

Como o crente deve reagir numa situação em que seu interlocutor simplesmente não se

submete ao seu imaginário social reconhecendo-se como perdido? As práticas doutrinárias

determinam que, antes de qualquer coisa, o crente deve orar por muito tempo para garantir a

agência das forças celestiais na conversão de alguém. Usam o versículo de Zacarias capítulo

4, versículo 628

para fundamentar que a obra de evangelização de uma pessoa, ou mesmo de

um grupo de pessoas, não depende exclusivamente do esforço retórico ou do acentuado

volume de argumentos que objetivem convencer o outro do pecado. Quem move a obra da

salvação por trás das aparências físicas é o Espírito Santo. Este, porém, necessita de um

“vaso”, um meio pelo qual realizará a vontade de Deus Pai: o crente fiel.

Saber encontrar brechas ou oportunidades para a pregação configura-se num segundo

passo a se tomar quando o interlocutor simplesmente não aceita receber a Palavra de Deus. Se

não for um tempo oportuno para a pregação – se “a porta não estiver aberta” – o crente deve

saber forçá-la para realizar a Grande Comissão. Os pós-milenaristas alinhados com a

Prosperidade Santa trabalham, também, com a conversão da cultura. Por mais que a

proporção de conversões que alcançam ao lançar mão das novas mídias seja bem maior do

que a empreitada “boca-a-boca” pré-milenarista, eles baseiam-se nos mesmos versículos

bíblicos e representações coletivas.

Existem situações em que os evangélico-pentecostais “lavam as mãos” e deixam de

pregar e exortar seu interlocutor à conversão. Acontece com mais frequência quando a pessoa

para quem se está pregando não participa do círculo de amizades do fiel, quando o gentio é

um relativo desconhecido. Nesses casos, logo após cumprir o mandamento do “ide”

anunciando-lhe a perdição (apesar de falar da Salvação o crente precisa, antes de qualquer

coisa, convencer seu interlocutor da perdição; podemos dizer então que a mensagem e a

Palavra que levam não é de fato a de Salvação, mas sim a de Perdição), o evangélico-

28

“Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos”. (Bíblia de Estudos

Plenitude, 2001)

114

pentecostal aquieta sua consciência acreditando ter realizado sua obrigação identitária. Um

sentimento de dever cumprido, pois, a semente da Palavra foi plantada. Após seu trabalho de

semeadura, caberá ao Espírito Santo fazer a semente brotar no coração do gentio.

Encontramos o mesmo cuidado em cumprir a Grande Comissão entre os escritos de

Edir Macedo.

Não resta a menor dúvida de que a maior característica do batizado no

Espírito Santo é o amor pelas demais pessoas. Esse amor é o grande

princípio cristão de toda a ação, ultrapassando todos os nossos interesses

próprios. É muito mais que um simples sentimento de amizade ou

cordialidade entre as pessoas; é uma paixão forte e desenfreada no sentido de

levar as pessoas à salvação eterna, através do Senhor Jesus Cristo; um

profundo desejo de tirar as pessoas do tremendal de lama em que se

encontram neste mundo, levando-as a uma vida nova de pureza e santidade

eterna, em comunhão constante com Deus. Se o candidato ao batismo no

Espírito Santo apresenta uma sede de ganhar almas para o Reino de Deus,

então seu batismo acontecerá mais cedo do que possa imaginar (MACEDO,

2001: 106-107).

Um elemento facilitador para o recebimento do batismo com o Espírito Santo é o

desejo sincero de ganhar mais almas para o Reino de Deus. O sucesso do crescimento da

IURD está intimamente ligado à manutenção da representação coletiva da Grande Comissão.

Edir Macedo não abriu mão, em seus escritos, de salientar a importância do exercício

evangelístico por parte do verdadeiro crente.

Tudo o que Deus espera daqueles que crêem n’Ele de todo o coração é

simplesmente uma atitude de fidelidade à Sua chamada, ou seja, não acredito

que o Espírito Santo tenha-nos feito filhos de Deus para que fiquemos

somente desfrutando dessa riqueza neste mundo e no mundo vindouro. Não!

Se Deus, pelo Seu Espírito, me revelou o plano da salvação e do Salvador

Jesus Cristo, foi para que eu tomasse essa revelação e a espalhasse, o mais

rápido possível, pelos quatro cantos da Terra, a fim de que aqueles que estão

nas trevas possam ver a Luz, da mesma forma como aconteceu conosco

(MACEDO, 2007: 103).

Trabalhar na seara do Senhor colhendo as almas perdidas no mundo de pecado é uma

forma de compartilhar das riquezas que Deus destinou a seu povo. O evangélico-pentecostal

alinhado com a matriz interpretativa da Prosperidade Santa leva a mensagem de Cristo tanto

para cumprir sua identificação quanto para garantir seu galardão, pois, ao realizar a vontade

de Deus, os crentes também garantem o direito de receber suas próprias bênçãos almejadas. O

número de almas alcançadas para o Reino pode ser diretamente proporcional à riqueza

material destinada àquele que cumpre a Grande Comissão.

115

O diabo sabe que “quem fala planta; quem ouve colhe”. O ser humano está

entre as duas palavras: a de Deus e a do diabo. A palavra à qual ele der

crédito o fará servo de quem a proferiu. Se ele ouve a Palavra de Deus, será

Seu servo, mas se ouve a palavra do diabo... De tal constatação podemos

tirar as conclusões do porquê de este planeta se encontrar na miséria e na

dor. A filosofia diabólica tem feito o homem andar inseguro, temeroso e

absolutamente perdido dentro de si mesmo e no mundo. A Palavra de Deus,

ao contrário da do diabo, tem levado o ser humano a uma liberdade

espiritual, dando-lhe consciência para determinar o que é melhor para si

mesmo. Torna-o seguro nas suas atitudes, corajoso e absolutamente

poderoso para a realização da vontade de Deus aqui na Terra, servindo como

seu embaixador e cooperador no desenvolvimento da Criação de Deus. Isso,

entretanto, não acontecerá enquanto não houver a fé absoluta (MACEDO,

2007: 138).

2.2.6. Parousia (Segunda Vinda de Cristo)

A última representação coletiva compartilhada entre assembleianos e iurdianos

elencada neste trabalho e que, julgamos, auxilia a imprimir sentido à Batalha Espiritual é a da

Parousia ou “Segunda Vinda de Cristo”. O messianismo entre os evangélico-pentecostais é

um dos elementos centrais que constituem seu imaginário social e perpassa todos os

segmentos pentecostais surgidos no século XX. Já discutimos brevemente os modelos pré-

milenarista, pós-milenarista e amilenarista estruturados pelos crentes para conceber sua

escatologia. Apesar de haverem discussões e dissensões no que tange ao período de

estabelecimento do Milênio, todos os evangélico-pentecostais concordam que Jesus voltará.

Deste modo, os evangélico-pentecostais, com vistas a abreviarem o tempo de espera (entre os

pré-milenaristas) ou cooperar na instauração do Reino de Deus na terra (entre os pós-

milenaristas), são guiados a voltarem seus esforços para a evangelização dos gentios.

A Parousia, assim, configura-se como o horizonte de expectativas por excelência dos

evangélico-pentecostais. Para atestar a importância de tal representação coletiva,

acompanhemos, logo abaixo, a leitura de um texto escrito por um dos fundadores da AD,

Gunnar Vingren, publicado no Mensageiro da Paz, em abril de 1931.

A realidade é que Jesus vem. As Escrituras assim o dizem. Ele mesmo,

quando esteve neste mundo, falou dos sinais que haviam de preceder à sua

vinda. Por isso, nós, que hoje estamos vendo o cumprimento desses sinais,

não podemos deixar de afirmar que Jesus vem! O Espírito Santo no crente

diz que Ele vem, e a alegria deste é a esperança da vinda de Jesus. Para o

crente, que tem amor a Jesus, é natural esperar a sua vinda. Pois Nele está a

sua vida, gozo, paz e alegria. É seu prazer andar na companhia de Jesus e, se

aqui na terra é tão glorioso andar com Ele, quanto mais não o será encontrá-

lo na sua vinda! Tudo que for de Jesus é puro, santo, e justo; sim, tudo que

Dele procede é glorioso, por isso os santos o amam. […] Este tempo [dos

116

gentios] está para se findar, um dos últimos sinais de que falou Jesus, a

respeito da sua vinda, está se cumprindo hoje – o Evangelho está sendo

pregado a todos, “depois virá o fim” (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da

Paz, 2004: 84-85. 1 v).

A Parousia e a Grande Comissão são representações coletivas muito próximas na

medida em que fundamentam e imprimem sentido ao horizonte de expectativas do crente.

Elas se complementam de tal maneira que dificilmente pode-se fazer referência à volta de

Cristo sem mencionar o mandamento do “Ide e Pregai”. Esta relação de concomitância fica

patente no texto de Gunnar Vingren. Outro elemento que chama a atenção no texto de Gunnar

Vingren e é também tributário da Parousia enquanto representação coletiva é o caráter pré-

milenarista dos escritos de Vingren. Nos tempos iniciais de formação da AD, a expectativa

para com o retorno do Cristo alimentava o zelo cristão, como já discutimos. O pré-

milenarismo, vivenciado por intermédio da matriz interpretativa da Santidade Próspera,

acentua a tendência à ressignificação dos acontecimentos tidos como traumáticos ou

catastróficos, em nível regional ou planetário. Os evangélico-pentecostais seguem enxergando

nas desgraças sociais e naturais os sinais dos tempos profetizados por Jesus como marcas

indicativas da iminência de seu retorno. Esta característica é marcante no texto de Emílio

Conde, publicado no jornal Som Alegre, em junho de 1930.

Que presenciamos hoje? Perversão moral, iniqüidade, desumanidade,

voluptuosidade, intemperança, concupiscência, e impiedade. Tudo isso é a

abominação e o assolamento predito no Sermão da Montanha. O cálice da ira

transborda, e o mundo caminha para um epílogo cruel e inevitável. Estamos

às portas do fim dos tempos. Todo o cataclismo se pronuncia pela desordem

moral e social, tal como aconteceu a Sodoma e Gomora. Os nossos dias são

os dias trabalhosos de que fala a Bíblia. Os homens, mesmo os de ciência,

vivem apreensivos diante dos sintomas prenunciadores da decadência da

civilização. Que significa tudo isso? Jesus previu esse tempo. Ele predisse

que a sua volta seria precedida de um período de grande perplexidade, e

“angústia das nações”. Que vemos? Homens desmaiando de terror, na

expectativa das cousas que sobrevirão ao mundo”, Lc 21.26. Como são

verdadeiras as suas palavras! A angústia chegou. A perplexidade domina. O

desespero apodera-se dos homens. Que esperamos? Não vemos como o fim

dos tempos se aproxima? Não se cumprem, de modo tão maravilhoso, tantos

sinais escritos, simultaneamente? Coincidência? Não! Tudo isso são sinais

evidentes da que estamos nos últimos dias e perto da segunda vinda de

Cristo (ARTIGOS Históricos – Mensageiro da Paz, 2004: 61-62. 1 v).

O pastor Emílio Conde, explicitamente pré-milenarista, coloca em evidência a

intensidade dos sofrimentos que sobrevém aos verdadeiros cristãos durante os dias

imediatamente anteriores ao arrebatamento. Dias trabalhosos aos que professam a fé dos

santos. O sofrimento e as perseguições aumentam sobremaneira, mas, se os crentes quiserem

117

subir aos céus com seu salvador, devem permanecer firmes. Num mundo dominado pela

angústia e pela perplexidade, o crente pode sorrir confiante, apesar dos sofrimentos, pois

conhece a verdade por trás das aparências. Os evangélico-pentecostais, diferentemente dos

apreensivos homens de ciência, sabem ler os sinais dos tempos na decadência da civilização.

Edir Macedo, como líder pós-pentecostal, amenizará em seus escritos a expectativa no

que tange ao retorno de Cristo. A mensagem pós-milenarista de Macedo, como já discutimos,

prega o paulatino estabelecimento do Reino de Deus no “mundo”.

Fomos criados com o sentido do dever; para auxiliares ou cooperadores de

Deus, conforme o Espírito Santo afirma através de Paulo: “Porque de Deus

somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Deus sóis vós.” (1

Coríntios 3.9) Ora, se estamos na condição de colaboradores de Deus na

construção de um mundo melhor aqui na Terra, é porque o Senhor nos deu e

nos dá todas as condições necessárias ao desenvolvimento do nosso trabalho.

[…] O triângulo Deus, homem e natureza passa a funcionar de maneira

perfeita, cada qual dentro da sua área de ação. A natureza colabora com o

homem, o homem colabora com Deus e toda a Criação manifesta e exalta o

Seu poder (MACEDO, 2007: 160-161).

A atenção de Macedo recai no fato de serem os cristãos colaboradores de Deus na

construção do Reino na terra. Apesar disso, a representação coletiva da Parousia não pode ser

eliminada do discurso iurdiano, na medida em que compõe, juntamente com a Grande

Comissão, o horizonte de expectativas dos evangélico-pentecostais.

Há uma grande confusão entre esperança e fé. Ora, a esperança que nós,

cristãos, devemos nutrir em nossos corações, e sem a qual não podemos

viver, é a de que um dia herdaremos o Reino Celestial e viveremos

eternamente com o nosso Senhor Jesus Cristo. Esta esperança se baseia no

futuro, ou seja, o cristão deve andar e viver pela fé, com a esperança de um

dia ver com seus olhos o cumprimento de todas as promessas feitas pelo

Salvador (MACEDO, 2007: 141-142).

Como vimos, se faz necessário relativizar as tipologias pentecostais desenvolvidas por

pesquisadores que se propuseram analisar as variações teológico-doutrinárias desenvolvidas

durante o século XX. Quando o foco de nossa atenção está nas continuidades históricas em

matéria de representações coletivas compartilhadas por assembleianos e iurdianos,

percebemos que os elementos que os tornam uma comunidade, mesmo que dispersa no tempo

e no espaço, são mais relevantes para a formação da identidade social dos fieis do que os

elementos que os caracterizam como denominações distintas. Assim, dos três elementos

considerados básicos para a fundamentação dos recortes tipológicos entre pentecostalismos, a

saber, a negação dos sinais exteriores de santidade, a teologia da prosperidade e a exacerbação

da Batalha Espiritual, vimos que só os dois primeiros – pensados como elementos que

118

ressemantizaram a matriz interpretativa da Santidade Próspera revertendo-a numa

Prosperidade Santa – se mostram historicamente coerentes. A Batalha Espiritual, pensada em

função das representações coletivas que lhe imprimem sentido, é fundacional na constituição

da identidade evangélico-pentecostal e já se mostrava inescapável enquanto processo

identitário desde a fundação da Assembléia de Deus.

Vimos que as representações coletivas que sustentam a Batalha Espiritual estão

imbricadas e perpetuam-se no decorrer do século fomentando experiências de combate ainda

em fins da década de 1990. Sugerimos, também, que a tomada da pretensa exacerbação da

Batalha Espiritual como um elemento que determinaria a proposta neopentecostal de fé

somente pode advir dos novos modos de relação com as mídias que os segmentos evangélico-

pentecostais começaram a desenvolver em fins da década de 1960. Acreditamos que

exposição midiática massiva de sua mensagem evangelizadora no espaço público (mensagem

da Perdição) poderia ser considerada como fator importante nos desdobramentos do processo

histórico que levou os pesquisadores a tomarem as denominações surgidas na primeira metade

do século XX como menos aguerridas ou engajadas na Batalha Espiritual. Esta questão,

porém deverá ser mais bem analisada noutra ocasião.

119

3. Cantos de Batalha: a manutenção das experiências de conflito por meio

dos hinos de louvor e adoração

No capítulo segundo procuramos demonstrar a existência de um substrato

representacional comum às igrejas evangélico-pentecostais Assembléia de Deus e Universal

do Reino de Deus. Verificaremos neste terceiro capítulo como as mencionadas representações

coletivas – mantenedoras do imaginário social evangélico-pentecostal da Batalha Espiritual –

estão presentes em dois grupos de canções de louvor temporalmente separados por, no

mínimo, 70 anos. Ao analisar esses dois grupos de canções, julgamos dar mais um passo no

sentido de corroborar a existência do substrato representacional comum entre AD e IURD.

Lançar luz sobre a perpetuação das representações coletivas que imprimem sentido à Batalha

Espiritual é, em nosso entender, uma contribuição para o entendimento da existência e da

necessidade da vivência do conflito – da guerra, da demonização, e da desumanização do

outro – como um dos ditames inescapáveis do processo de identificação com a proposta

evangélico-pentecostal de fé.

O primeiro grupo de canções que será analisado foi retirado da Harpa Cristã,

cancioneiro oficial das Assembléias de Deus. A primeira edição da Harpa, impressa no

Recife, data de 1922, foi desenvolvida para suprir as necessidades da marcação de diferença

entre os fiéis da primeira geração das Assembléias de Deus e as igrejas protestantes históricas.

A segunda edição da Harpa – que nos servirá para análise – foi impressa no Rio de Janeiro,

em 1923, e contava com 300 hinos.

Os “pais fundadores” das Assembléias sentiram que a doutrina pentecostal não estava,

de todo, sendo enfocada pela coleção de cânticos em uso. Os fiéis de então utilizavam como

hinário a coleção Salmos e Hinos. Este, por sua vez, foi organizado em 1861 pelos

missionários Dr. Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley e contava com,

aproximadamente, 50 cânticos. Os Salmos e Hinos não refletiam a nova realidade teológico-

doutrinária e de usos e costumes que surgiam com o movimento pentecostal nas primeiras

décadas do século XX. Daí o ímpeto de produzir e traduzir novos cânticos de louvor para

melhor expressar a perspectiva pentecostal. Escolhemos o cancioneiro Harpa Cristã como

fonte para prospecção de material documental de análise pelo fato de ainda serem muito

utilizados seus hinos, não só nas Assembléias de Deus, como também noutras denominações

120

evangélico-pentecostais. Eles são representantes, como já discutimos no primeiro capítulo, do

que Siepierski (2008) entende ser uma matriz pré-milenarista de concepção pentecostal.

O segundo grupo de canções foi levantado mediante estudo do hinário oficial da Igreja

Universal do Reino de Deus, “Louvores do Reino”, e do acréscimo das produções musicais de

três nomes influentes em matéria de vendagem de discos no meio evangélico-pentecostal nos

últimos dez anos: o grupo de louvor Diante do Trono, a pastora cantora Ludimila Ferber e a

cantora Cassiane. Nos cultos dos quais tomamos parte como pesquisador participante não

diretivo para a produção desta dissertação, em igrejas da Assembléia de Deus e em reuniões

da Universal do Reino de Deus, pudemos perceber, tanto por parte dos grupos de louvor

locais quanto por parte de membros que recebem a “oportunidade” para cantar utilizando o

play back, o uso litúrgio destes novos cânticos. Eles são usados também para a fruição da fé

em momentos de meditação, oração ou apenas entreterimento dos fiéis em sua vida privada.

Representam – este novo repertório de cânticos – o que Siepierski (2008) entende ser os

discursos do novo pós-pentecostalismo. Procuramos entre esses dois grupos de canções de

louvor as continuidades no que tange às representações coletivas que sustentam o imaginário

da Batalha Espiritual.

Como explicitado no capítulo segundo, a Batalha Espiritual pode ser rastreada através

das relações estabelecidas entre sete representações coletivas fundantes do imaginário social

evangélico-pentecostal: a Santa Ceia, os batismos nas águas e com o Espírito Santo, o

biblicismo, o dualismo, a Parousia e a Grande Comissão. As duas últimas representações –

parousia e a Grande Comissão – nos remetem à vivência temporal experienciada em função

de um objetivo determinado: a volta de Jesus para arrebatar os escolhidos.

As representações coletivas da parousia e da Grande Comissão possuem a

característica de agirem diretamente na constituição das concepções temporais do horizonte

de expectativas, dilatando-as. A parousia organiza a vivência do sujeito com vistas à vida

futura, à presença corporal deste mesmo sujeito na “Jerusalém Celestial”. A Grande Comissão

– o mandamento “ide e pregai” – marca o passo da sua efetivação objetiva, as “condições

materiais” para a chegada do Reino de Deus. Mais do que um esperar, a Grande Comissão

evoca o crente a realizar a possibilidade da parousia mediante sua ação direta ao “pregar a

Palavra”, ou seja, fazer prosélitos. É corrente entre as comunidades evangélico-pentecostais

estudadas a crença de que a Segunda Vinda de Cristo se dará somente quando todos os seres

humanos forem “alcançados” pela Palavra e tiverem a oportunidade de se fazerem servos de

Jesus. Daí a ênfase dada ao trabalho coletivo e/ou individual de missões e de evangelização.

121

A comparação entre os dois grupos de canções que se seguem é mais um esforço no

sentido de corroborar a validade de nossa proposta do arcabouço identitário evangélico-

pentecostal ao registrar a recorrência de representações coletivas tanto em canções

eminentemente pré-milenaristas – as do primeiro grupo – e em canções de caráter pós-

milenaristas – as do segundo grupo.

Como apresentado no capítulo primeiro, concordamos com a pertinência das

conclusões de Siepierski (2008), que versam sobre as defasagens teológicas, doutrinárias e em

termos de práticas sociais entre pré e pós-milenaristas. Entretanto, a partir da análise

documental guarnecida de assídua presença no meio dos fiéis, acreditamos serem passíveis de

certa relativização as rupturas que o autor insta em ver entre as denominações pentecostais e

pós-pentecostais. As imagens e conteúdos recorrentes que percebemos nas letras das canções

– primeiramente nos hinos retirados da Harpa Cristã, editada em 1923, posteriormente nas

canções escritas nas últimas duas décadas do século XX – nos remetem às mesmas

representações coletivas, importantes continuidades históricas na constituição da identidade.

Como veremos, as canções analisadas são odes que, direta ou indiretamente, valorizam o

engajamento na Batalha Espiritual.

Reconhecemos, todavia, que as interpretações tenham sofrido variações. Acreditamos

que tais variações se deram a partir da permuta da matriz interpretativa da Santidade Próspera,

para a Prosperidade Santa, como discutido no capítulo segundo. Mesmo assim, tal mudança

de ênfase não teria sido suficiente para anular os arranjos representacionais característicos que

propiciam sentido à Batalha Espiritual.

Utilizaremos a mesma ordem de apresentação das representações coletivas utilizada no

capítulo segundo. Assim, iniciamos nossa análise com o rastreamento das continuidades

históricas no que tange à representação coletiva da Santa Ceia.

3.1. Santa Ceia

Acerca da celebração da Santa Ceia como temática, ou seja, a participação no ritual

que rememora o sacrifício de Jesus ao morrer na cruz com o “corpo e o sangue de Cristo” –

comer um pedacinho de pão e beber um dedal de suco de uva, distribuídos em cultos

específicos para tal comemoração –, podemos encontrar quatro hinos na Harpa Cristã de

1923. Escolhemos para análise aquele que nos pareceu mais significativo pelo fato de

desenvolver o significado terreno e celestial do ritual. Analisaremos o hino 53, A Esperança

da Igreja, sob as iniciais de H. Maxwell Wrigth (1849-1931).

122

A Esperança da Igreja – 53 [íntegra]

Até que volte o Salvador,/ Cercando a mesa do Senhor,/ A Ceia vimos

celebrar,/ De Cristo, a morte anunciar,/ E com humilde devoção,/ Render a

Deus adoração.

Até que volte o Salvador,/ Aqui mostremos Seu amor;/ Com viva fé e

gratidão,/ Participemos deste pão,/ Obedientes a Jesus,/ Lembrando assim a

Sua cruz!

Até que volte o Salvador,/ Bebendo o cálice do Senhor,/ Seu nome queremos

bendizer,/ E mais e mais engrandecer,/ O sangue que Ele derramou,/ O

sangue que nos resgatou!

Se duras são as provações,/ Se fortes as perseguições,/ Se as lutas fazem-se

sentir,/ E custa-nos as resistir,/ Não nos deixemos perturbar:/ São só até

Jesus voltar!

Bem prontos para O receber,/ Devemos sempre aqui viver;/ O tempo foge, o

dia vem,/ A glória esperamos além,/ Pois trabalhemos, com fervor,/ Até que

volte o Salvador (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Na primeira estrofe, a Santa Ceia como celebração é relacionada ao seu sentido terreno

– a anunciação da morte de Cristo – e à sua realização espiritual – a volta de Cristo, Parousia.

A “comemoração”, que se dá mensalmente nas igrejas AD e IURD, normalmente no último

domingo do mês, desdobra-se num culto cuja mensagem evoca uma reflexão sobre a prática

de vida dos fiéis. Os irmãos presentes na congregação são convidados a relembrar

acontecimentos que, durante o transcurso dos dias desde a última Santa Ceia, podem ser

caracterizados como realizações pecaminosas. O fiel deve passar em revista sua trajetória

cristã em busca de reconhecer as falhas ou pecados cometidos durante o período. A Santa

Ceia ou a ingestão do pão e do suco de uva marca o momento de “conserto” com Jesus. Pedir

pelo perdão dos pecados cometidos e concordar consigo mesmo alguns pontos de revisão ou

policiamento. Os irmãos que tenham incorrido nalguma prática social tomada como

abominável pelo grupo de fiéis (adultério, roubos, insubmissão à autoridade espiritual de

algum pastor, etc.) são, muitas vezes, instruídos a não participarem da celebração. Precisam

vencer um período de “provas” no qual estará sendo testada sua postura social. Pelo fato de

serem menos rígidos no que tange aos “usos e costumes”, os períodos de provas são menos

constantes entre os iurdianos.

A participação no corpo e sangue de Cristo sempre se dá após a leitura do versículo 23

ao versículo 29 do livro de I Coríntios capítulo 1129

. Os evangélico-pentecostais usam tal

29

“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou

o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei

isso em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o

Novo Testamento no meu sangue; fazei isso, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque, todas

as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha.

Portanto, qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será culpado do corpo e do

sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão, e beba deste cálice.

123

passagem para, além de fundamentar seu ritual, desmerecer a celebração da Ceia entre outros

segmentos cristãos, marcadamente a celebração entre os católicos, conhecida como eucaristia.

Para os crentes, a ingestão apenas da hóstia, simbolizando o corpo de Cristo, não é suficiente

para realizar a ordenança de Jesus. É necessário beber do suco de uva também. No caso dos

católicos, apenas os representantes do clero cumpririam totalmente a Ceia do Senhor,

“roubando” de seus seguidores católicos a chance de “consertarem-se” de forma apropriada

com o Salvador. Esta é uma das discrepâncias doutrinárias derivadas das distintas liturgias

que auxiliam aos crentes marcarem suas diferenças identitárias – afirmarem sua superioridade

teológica e ritualística – em relação ao segmento cristão católico.

Como dizíamos, o sentido da participação na Santa Ceia não se realiza pontualmente

apenas no ato de comer o pão e beber do suco de uvas. Antes, ela marca o compasso da espera

pelo retorno do salvador, dilata o tempo futuro propiciando um horizonte de expectativas.

Além disso, a Ceia é realizada nas Assembléias e na IURD para fazer coabitar a identidade

evangélico-pentecostal nas dimensões temporais passadas e presentes, trazendo toda uma

pretensa memória coletiva da cristandade perseguida e morta em cumprimento das ordens de

Jesus que remontaria à igreja primitiva. Assim, o crente se entende investido da

responsabilidade de manter viva a tradição bimilenar da Santa Ceia, participando, deste modo,

de uma comunidade de “santos” que unem vivos e mortos, todos esperando a segunda

manifestação de Jesus. Esta pátina de tradição catalisa a construção da ideia de uma

identidade essencial e imóvel do que seja “ser verdadeiro cristão”. Tal identidade é repassada

entre as distintas gerações de crentes surgidas durante o século XX, alimentando a ideia de

que são depositários diretos do cristianismo primitivo.

O peso da responsabilidade de conceber-se como um herdeiro torna ainda mais solene

para o crente a manutenção da identidade evangélico-pentecostal. Ainda porque, e agora nos

voltamos para a dimensão futura evocada na celebração da Santa Ceia, participar do corpo e

sangue de Cristo é sinônimo de anunciar a Volta do salvador. As três primeiras estrofes do

hino 53 enfatizam esse ponto; “Até que volte o Salvador...”.

As estrofes finais do hino (4 e 5), mesmo sem abrir mão do tema da Santa Ceia,

voltam-se para os desdobramentos em termos de práticas que a crença na parousia acarretam

na vivência do verdadeiro fiel. A quarta estrofe está centrada na ideia da resistência paciente

que o crente deve cultivar frente às intempéries do dia-a-dia. Vimos que a postura da

resistência é uma característica decorrente da ênfase na “santidade próspera” rastreáveis nas

Porque o que come e bebe indignamente come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo

do Senhor.” (I Co 11:23-29, Bíblia de Estudos Plenitude, 2001)

124

mensagens assembleianas, como propusemos no segundo capítulo. Há bênçãos prometidas e

maravilhas a serem cumpridas na vida do fiel. Estas, contudo, só estarão ao alcance pleno do

crente quando Jesus cumprir sua promessa e retornar.

Além da resistência, o hino ecoa em sua última estrofe os versículos de Marcos 16:15,

o “ide e pregai”, mensagem que inescapavelmente aponta para a Grande Comissão: “Pois

trabalhemos, com fervor, / Até que volte o Salvador”. Realizar o trabalho demanda tornar-se

instrumento do deus cristão em sua obra salvífica: levar a mensagem de salvação adiante em

busca de converter o maior número de adeptos ao cristianismo evangélico-pentecostal. Fazê-

lo é contribuir para a parousia ao mesmo tempo em que se realiza o processo de identificação

com o imaginário social.

Analisemos mais uma canção composta por Sergio Lopes (músico ligado à IURD).

Esta canção, em específico, foi escrita para celebração da Santa Ceia. O título repete o nome

do ritual.

A Santa Ceia Este é o Meu corpo que por vós é dado/ Comei em memória de Mim/ Novo

Testamento foi firmado por vós/ Comei dele todos que Me amam/ Antes que

padeça as dores/ Que por vós na cruz Me entregue/ Desejei convosco

repartir/ Secreta comunhão/ Até que se cumpra o Reino de Deus/ Deste pão

não comeremos juntos outra vez/ Este é Meu sangue por vós é derramado/

Bebei em memória de Mim/ Novo Testamento foi firmado por vós/ Bebei

dele todos que Me amam/ Antes que padeça as dores/ Que por vós na cruz

Me entregue/ Desejei convosco repartir/ Secreta comunhão/ Até que se

cumpra no Reino de Deus/ Este sangue não teremos juntos outra vez

(LOPES, Sérgio. A Santa Ceia. Intérprete: Sérgio Lopes. In: LOPES, Sérgio.

A Fé. Rio de Janeiro: Line Records, 1999. CD).

Nessa canção, Sergio Lopes utiliza-se da passagem bíblica de Coríntios, na qual a

ordenança da Ceia foi estabelecida, para apresentar o ritual. A canção é, assim, uma repetição

poetizada do ritual. Podemos entendê-la como ode à realização do mesmo. Como a celebração

da Ceia faz parte de uma ritualística presente em todas as denominações evangélico-

pentecostais (não apenas as estudadas nesta dissertação), esta não se configura como uma

temática, digamos, polêmica. A Santa Ceia não é uma prática que necessite de reforços em

termos de afirmação de sua vivência. O ritual é necessariamente realizado na congregação e

presidido por pastores capacitados para tanto. Não há espaços para querelas ou

questionamentos no cumprimento da Santa Ceia como parte inescapável no processo de

interiorização das demais representações coletivas do arcabouço identitário evangélico-

pentecostal. Julgamos ser esta a razão para o número relativamente pequeno de hinos e

canções que tratam sobre tal temática entre as canções produzidas nos últimos anos. A

125

continuidade da celebração da Santa Ceia não entrou em questão em nenhum momento

durante as transformações sofridas no pentecostalismo no século XX.

Passemos a análise das representações coletivas dos Batismos.

3.2. Batismo (águas e Espírito)

A questão dos batismos é outra fonte de polêmicas teológico-doutrinárias entre os

distintos segmentos cristãos. Como vimos no capítulo segundo, os evangélico-pentecostais

acusam os católicos de não efetivarem, assim como no caso da Santa Ceia, a ordenança do

batismo para a plenitude da vida cristã. A incompletude se daria pelo fato de os católicos

realizarem o ritual de batismo mediante aspersão em lugar de imersão. Como vimos, também,

os batismos, no caso dos evangélico-pentecostais, são dois: aquele efetivado nas águas, que

marca a conversão pública do novo crente, e o batismo pelo Espírito Santo, que indica o

revestimento de poder pentecostal para batalhar pelo Reino de Deus – seja aguardando-o

pacientemente, seja afirmando-o em detrimento do “mundo”.

O hino 389 da Harpa Cristã, Lava-me ó Deus, sob a sigla de Paulo Leivas Macalão

(com autoria atribuída a M. D’Angelo), discorre sobre a doutrina do Batismo pelas águas.

Lava-me ó Deus – 389 [íntegra]

Tua justiça eu quero cumprir,/ Alegremente me vou batizar/ Por imersão,

para Cristo seguir/ E meus pecados, assim sepultar.

(coro)

Lava-me, lava-me, ó Deus de amor,/ No sangue puro de Cristo Jesus;/ Torna

minh’alma mais alva que a luz,/ No sangue puro de Cristo Jesus.

Quando das águas eu ressuscitar,/ Já criação nova sou em Jesus;/ Posso e Ele

servir e honrar,/ Por crer na obra sublime da cruz.

Com toda força, meu bom Salvador,/ Teu santo nome eu invocarei,/ Para que

eu vá de valor em valor,/ Ao céu de luz, onde descansarei (HARPA

CRISTÃ, 1998: s/p).

Paulo Leivas Macalão fez questão de apresentar a informação “por imersão” no hino.

Como aos olhos dos evangélico-pentecostais o batismo por aspersão é insuficiente e anti-

bíblico, cultivaram o costume de batizar novamente os conversos provenientes do

cristianismo católico. O momento da imersão presta-se como símbolo da participação na

morte de Cristo. Pretendendo simular a morte de Cristo, a imersão nas águas representa o

período em que Jesus esteve entre os mortos. Ao ser emerso, o fiel “ressuscita” de sua vida

pregressa, entendida como um período de “morte no pecado”.

Como apresentado na segunda estrofe, os evangélico-pentecostais julgam passar por

um processo de nova criação durante a celebração do batismo nas águas. Creem estar aptos

126

para “servir e honrar” após a realização do ritual, apesar de ainda estarem vulneráveis a

incorrerem em pecados. Isto se dá pelo fato de que as mesmas águas que durante o banho

envolvem o corpo, lavando-o, também representarem algo mais. Representam o sangue de

Cristo derramado durante sua crucificação. Ao sangue de Jesus é atribuído o poder de “lavar”

o homem de seus pecados. A lavagem dos pecados é pontual, única na trajetória do converso.

Não há necessidade de batismos seguidos para afastar as nódoas dos pecados cometidos após

o batismo nas águas. Para isso, há concertos e confissões de pecados cometidos. Estes

concertos têm lugar, primordialmente, junto ao ritual de celebração da Santa Ceia.

A última menção que a letra do hino faz é ao destino futuro do crente, no céu. Desta

forma afirma, assim como fizeram os outros hinos estudados por seus elementos constituintes

da identidade evangélico pentecostal – em especial os hinos provenientes do primeiro grupo

de canções (Harpa Cristã da AD) –, a realização última de todos os esforços do crente neste

mundo, a qual seja: subir aos céus com o cumprimento da Parousia.

Um segundo hino, pertencente ao primeiro grupo de canções e que trabalha a questão

dos Batismos, é o de número 87 da Harpa Cristã, Meu Testemunho, sob a sigla de Samuel

Nyström. O batismo mencionado no hino em questão é o Batismo pelo Espírito Santo,

confirmado pelo falar em línguas estranhas (glossolalia).

Meu Testemunho – 87 [íntegra]

Justificado estou;/ Cristo Jesus me livrou;/ Ele é meu Mediador,/ Também,

meu bom Salvador.

(coro)

Jesus, sou Teu, e Tu és meu;/ Me guiarás para o céu;/ Com graça e paz me

satisfaz/ Cristo, meu Mestre veraz.

Santificado fiquei,/ Quando a Ele roguei;/ Ele me disse: tomai;/ De minha

graça usai.

Fui redimido, também,/ Obra do meu Sumo Bem;/ Tudo de graça ganhei;/

Nada por obras da lei.

Ele a promessa me deu,/ Do Guia santo do céu;/ Também me disse: ficai,/ E

o batismo esperai.

Quando a Ele busquei,/ E batizado fiquei,/ Línguas estranhas falei,/ E meu

Senhor exaltei.

Agora, vou trabalhar,/ E muitas almas ganhar;/ Essas que Ele salvou/

Quando na cruz expirou (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A última estrofe é o corolário de todo o processo de conversão e busca pelo batismo

pelo Espírito Santo. Nela está expressa a ação decorrente do processo de identificação no

arcabouço representacional evangélico-pentecostal, o qual efetivamente é o ir “(...) trabalhar,

e muitas almas ganhar”. Para cumprirem o trabalho de converter os gentios, os crentes

precisam de preparo e compreensão espiritual, como indicam as primeiras cinco estrofes.

127

O coro, todavia, repetido ao fim de cada estrofe explicita a mensagem: “Jesus, sou Teu

e Tu és meu”. Tal mensagem salienta que, ainda antes de receberem o Batismo com o Espírito

– capacitando-os como verdadeiros discípulos aos olhos dos evangélico-pentecostais –, os

fieis precisam cumprir a Grande Comissão por meio de seu exemplo de vida. A execução de

cada etapa de santificação e preparação, por nós entendidas como momentos inescapáveis da

identificação, expressas na segunda, terceira, quarta e quinta estrofes – ser liberto, rogar,

esperar e receber a graça – são também formas de apregoar a palavra de Deus. Não se prega

apenas por palavras diretas, mas também pelo testemunho, ou seja, a irrepreensível luta por

fazer equalizar práticas cotidianas “mundanas” com as práticas moralmente consideradas

santas.

Os batismos, como mencionamos acima, desdobram-se em duas temáticas quase que

distintas. Na Harpa Cristã, editada em 1923, percebemos que os dois batismos são

tematizados por diferentes canções com o fito de sedimentar nos fieis a importância teológica

e doutrinal de ambos. Havia, no contexto histórico de formação e difusão inicial do

pentecostalismo da AD, durante a primeira metade do século XX, a necessidade de fazer

frente ao batismo como ritual na ótica do cristianismo dominante, a aspersão católica. Daí a

presença de canções, mesmo num número reduzido, trabalhando tal temática. Já o

pentecostalismo redimensionado em função da “prosperidade santa”, iniciado por volta de

fins da década de 1970, não precisou engajar-se nesta batalha doutrinária.

Como a tradição dos batismos por imersão já estava resguardada pela prática de mais

de meio século, tornou-se uma prática que, semelhantemente à Santa Ceia, não demandou

nenhuma intrincada argumentação para sustentar-se nos desdobramentos e releituras dentro da

matriz interpretativa da “Prosperidade Santa”.

Entretanto, pelo fato de o batismo com o Espírito Santo ainda ser considerado uma

característica polêmica dentro das próprias igrejas evangélico-pentecostais, ele ainda é

largamente tematizado pelos cantores e grupos de louvor, ao menos os que foram analisados

para a composição do segundo grupo de canções, as mais recentes. Creditamos este esforço de

afirmação identitária ao contexto “mundano” no qual entendem estar inseridos os fieis de

então. A “mundanidade”, além de marcada pelo que entendem ser práticas sociais malignas e

pervertidas, pode ser lida também na proeminência que o discurso científico conquistou em

nossa sociedade.

A objetividade científica foi tomada, desde a origem do pentecostalismo, como

inimiga da vivência cristã genuína. A intimidade com Deus, segundo aquele que a

experimenta, não pode ser prevista, controlada, postulada, explicada. As fortes cargas

128

emotivas que acompanham as manifestações do falar em línguas estranhas desafiam, no

entender dos fieis, a opacidade da vida pautada na lógica argumentativa científica. Esta,

contudo, permeia a constituição burocrática de nossa sociedade e medeia boa parte das

conversações necessárias ao funcionamento mínimo da rotina cotidiana.

Ou seja, mesmo uma tradição secular fundada na experimentação identitária da

manifestação da glossolalia não é suficiente para firmar, de um só golpe, a certeza da validade

desta experiência espiritual. O falar em línguas estranhas será sempre uma questão em aberto

na medida em que se encontra como experiência de caráter pessoal na fronteira entre vida

“mundana” e vida “em Jesus”. Aquela, regida pela objetividade científica desdobrada numa

hipertrofia burocrática, está marcada pela intimidade sobrenatural com Deus.

A glossolalia é, assim, uma questão polêmica e demanda constante esforço para a

afirmação de sua validade como indício contemporâneo da ação do Espírito Santo por parte

dos crentes. Decorre daí a grande quantidade de canções de louvor que tematizam o batismo

com o Espírito Santo entre aquelas analisadas no segundo grupo. Além do que, o falar em

línguas – indício do batismo com o Espírito Santo – é, entre as experiências distintivas que

marcam o segmento pentecostal, a mais buscada. Citamos, na íntegra, algumas letras

significativas produzidas nos últimos anos do século XX (segundo grupo de canções), cuja

temática central é o batismo com o Espírito Santo e a decorrente experiência de contato

íntimo com o deus cristão.

Fogueira Santa

Sempre quando eu estou cantando/ Eu sinto alguém me acompanhando/ São

os anjos de Cristo que junto comigo/ Entoam louvores e a igreja se alegra/ E

fala em mistério Santo com Deus/ E o poder é derramado/ E Deus

glorificado/ Pelo povo seu/ É o poder divino/ Deus está mandando/ E com

fogo Santo está batizando/ Eu contemplo agora/ Como sobe e desce/ Anjos

lá do céu/ A fogueira santa/ Já está formada/ E toda doença/ Aqui será

queimada/ A igreja se alegra/ Vibra chora e canta/ Com o poder de Deus/ Eu

estou sentindo/ Que Deus esta presente/ Em nosso meio/ Ele esta ao seu

lado/ E quer te encher de poder e fervor/ Abra o seu coração/ Porque Deus

quer colocar/ Uma brasa viva e o poder vai cair/ E o louvor vai subir/ E as

bênçãos vão descer (CASSIANE. Fogueira Santa. Intérprete: Cassiane. In:

CASSIANE. Atualidades. São Cristovão: MK Music, 1992. CD).

Fogo Santo

(coro)

Fogo santo, santo fogo/ Fogo consolador/ é o que está descendo agora/ Fogo

santo do Senhor.

Este fogo é poderoso, é fogo pentecostal/ Vai queimando o pecado,/

desfazendo todo o mal/ Igreja fique ligada, muito fogo vai descer/ Até o

crente gelado vai ser cheio de poder.

Este fogo purifica, santifica e faz o bem/ Quem esta sentindo agora,/ levante

as maos e diga amém/ Quando o povo de Deus ora, põe diabo pra correr/

129

Abre a boca, então dê glória, Deus tem vitória pra você (AFONSO, Flávia.

Fogo Santo. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Com Muito Louvor. São

Cristovão: MK Music, 1999. CD).

500 Graus

Uma chuva diferente agora está se formando no céu/ Temporal de benção e

poder/ Um calor tão glorioso invade toda igreja/ 500 de puro fogo santo e

poder./ Pra fazer enfermidade desaparecer/ Pra fazer o inimigo fugir de você/

Uma nuvem de vitória está sobre a igreja/ A previsão de Deus diz que vai

chover/ Vai chover línguas estranhas por todos os lados/ E desse temporal

quero sair molhado/ Molhado e revestido por esse poder/ Agora o impossível

vai acontecer/ É a promessa de Deus, o fogo vai descer, por esse poder!/ Já

começa acontecer, debaixo dessa chuva posso contemplar/ Aleluia daqui,

Gloria e aleluia de lá/ Inundando os irmãos com a benção nas mãos/ Vejo

milhares de anjos vindo num imenso trovão/ Desse lado tem poder, desse

lado tem vitória/ Aqui na frente tem irmãos/ Sendo batizados, dando glória/

Ali no meio o fogo cai, toda enfermidade não resiste e sai/ Pelo Santo nome

de Jesus/ Uma chuva diferente agora está inundando esta igreja/ Temporal de

benção e poder/ Um calor tão glorioso está queimando o pecado destruindo/

Tudo que aflige você/ 500 de puro fogo santo e poder/ E já fez enfermidade

desaparecer/ E já fez o inimigo fugir de você/ Uma nuvem de vitória

continua na igreja/ A previsão nos diz que ainda vai chover (CASSIANE.

500 Graus. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Recompensa. São

Cristovão: MK Music, 2001. CD).

Vento Impetuoso

Como Vento Impetuoso, vem Espírito!/ Como Vento Impetuoso, vem

Espírito de Deus/ Sopra sobre o fogo, fogo do Espírito/ Incendeia, espalha

sobre tudo e sobre todos/ O fogo do Espírito, fôlego de Deus/ Sopro do

Espírito, Sopra... Aviva... Aviva/ Avivamento, avivamento, avivamento/ Às

portas esta o avivamento/ Aviva, aviva... Avivamento/ Sobre o que esta

morto/ Sobre o que esta frio/ Sobre o que esta morno/ Sobre tudo, Sobre

todos/ Sobre morros, Sobre os vales/ Sobre os desertos, Sobre os montes/

Sobre os lares, sobre as multidões, sobre as cidades/ Sobre as nações, sopra,/

Sopra sobre nós/ Sobre os nossos corações/ Sopra sem limites, ressuscita

sonhos, ressuscita ministérios/ Ressuscita vidas, Ressuscita vidas,

Ressuscita.../ Converte o coração dos pais aos filhos/ Converte o coração dos

filhos aos pais/ Para Tua honra, Tua glória/ Como vento Impetuoso, vem

(FERBER, Ludmila. Vento Impetuoso. Intérprete: Ludmila Ferber. In:

FERBER, Ludmila. Orar e Adorar 3 – Ouço Deus me Chamar. Osasco:

Kairós Music, 2003. CD).

Meu Amigo, Espírito Santo

Meu amigo, Espírito Santo/ Meu amigo, Espírito Santo/ Meu amigo... Meu

Amigo/ Eu te amo, Espírito Santo/ Eu te amo, Espírito Santo/ Meu amigo...

Meu amigo/ Tua Presença me completa tanto/ Tua Presença é o meu

descanso/ Tua Presença me dá asas pra ser livre/ Não há palavras que eu

tenha pra falar/ Tua Unção é o meu maior tesouro/ Tua Unção é o meu

cobertor, meu manto/ Tua Unção engrandece o meu chamado/ Me faz

indesistível, nobre, incansável/ Eu chamo por Você/ E permaneço adorando/

Atento para ouvir Você chegar/ O ar que eu respiro se transforma Fica

denso/ Sou todo ouvidos para Te ouvir/ Por dentro e por fora me envolvo em

Tua glória/ Parece que tudo ao redor parou para Você/ Prossigo adorando e

ouvindo Tua voz/ É onde eu me curo pra valer (FERBER, Ludmila. Meu

130

Amigo, Espírito Santo. Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila.

Orar e Adorar 5 – Ainda é Tempo. Osasco: Kairós Music, 2006. CD).

Como podemos acompanhar na leitura das canções do segundo grupo, alinhadas em

grande medida com matrizes interpretativas de “prosperidade santa”, o batismo com o

Espírito Santo ainda é um tema recorrente. No bojo desta representação coletiva, encontram

realização e sentido vivências como a glossolalia e o cultivo de uma vida de intimidade com

Deus. Orações, súplicas e jejuns ajudam a completar o quadro de total entrega por parte do

fiel à sobrenatural presença do Espírito Santo. Por fim, tanto batismo nas águas quanto o

batismo no Espírito Santo são etapas necessárias para a capacitação do evangélico na Batalha

Espiritual.

3.3. Biblicismo

O biblicismo é outro dos elementos inescapáveis para a identificação com o

imaginário estudado neste trabalho. De fato, o indivíduo começa sua vida para Cristo, mesmo

antes da conversão e batismo nas águas, ao abrir-se às interpretações específicas do texto

bíblico desenvolvidas nas práticas evangélico-pentecostais. Elegemos dois hinos pertencentes

à Harpa Cristã de 1923 para analisarmos. São eles, Creio eu na Bíblia, hino 259, e A Palavra

de Deus é um Tesouro, hino 306. Os hinos estão, respectivamente, sob as iniciais de Paulo

Leivas Macalão e Emílio Conde.

Creio eu na Bíblia – 259 [íntegra]

Creio eu na Bíblia, o Livro do Senhor,/ Pois de Jesus Cristo mostra o doce

amor;/ todos meus pecados apagados estão,/ Paz e gozo tenho em meu

coração./

(coro)

Creio eu na Bíblia, livro de meu Deus;/ Para mim a Bíblia é o maná dos

céus!/ Mostra-me o caminho para o lar celestial;/ Acho eu na bíblia, graça

divinal!/

Creio eu na Bíblia, ensina-me a cantar/ Cantos de vitória, e de amor sem

par;/ Lindas melodias, eu cantando vou,/ Porque redimido pelo Sangue

estou!/

Só a santa Bíblia a santidade dá,/ Este dom de Cristo, prometido já;/ Todos

os que buscam plena salvação,/ Estas bênçãos, só em Cristo, acharão./

Lemos hoje a bíblia p’ra todo pecador,/ Para que encontre Cristo, o

Salvador;/ Sendo sua vida, livre de pecar,/ O divino Livro, ele vai honrar!

(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

O Livro do Senhor, a Bíblia, é comparado ao maná dos céus no coro do hino 259. O

maná foi o alimento que, segundo o Velho Testamento, Deus enviava diariamente aos

131

israelitas durante sua marcha de quarenta anos pelo deserto, guiados por Moisés30

. O hino

constrói uma equivalência entre o período de vida do crente no mundo e o período de

peregrinação dos israelitas no deserto. O “mundo” é o deserto. E o maná, o alimento garantido

por Deus para sustentar seu povo durante a marcha, seria correspondente a Bíblia, a Palavra

de Deus.

Assim, entende-se que a única fonte de sustento espiritual que o crente encontra neste

mundo é a leitura da Bíblia. Ela garante coesão à comunidade dos salvos e reafirma as

mesmas representações coletivas efetivando a identidade evangélico-pentecostal em cada

leitura que o fiel realiza. A leitura da Bíblia se configura como um espelho no qual o crente vê

a si mesmo como imagem construída socialmente. A chave de interpretação, contudo, está nas

mãos dos líderes espirituais. O fiel tem certa liberdade de interpretação do texto na medida em

que busca conexões entre a mensagem de determinadas passagens e suas próprias

experiências de vida. Contudo, não pode ultrapassar alguns limites interpretativos

estabelecidos tradicionalmente dentro da prática evangélico-pentecostal e mantidas

majoritariamente por meio da tradição oral.

A última estrofe explicita uma das facetas da pregação para cumprimento da Grande

Comissão: ler a Bíblia para o pecador para que ele encontre a salvação. “Ler”: o crente deve

ler para o pecador, não deve admoestar ao pecador ler somente, em sua individualidade. É

necessária a mediação durante a leitura por parte de um evangélico-pentecostal para que as

interpretações cristalizadas que compõem o discurso identitário sejam internalizadas por

aquele que ouve. Daí a necessidade do acompanhamento de um leitor que narra ao ouvinte

gentio. O conteúdo do texto não é suficiente. A ele os crentes acrescem sua interpretação

particular. Esta interpretação se encontra difundida entre os mesmos de maneira

primordialmente oral entre os assembleianos e, no que tange as variações teológico-

doutrinárias que regem a “prosperidade santa”, registradas em escrito na vasta produção

literária de Edir Macedo e asseclas. Só por meio da mediação interpretativa, os crentes podem

garantir o que entendem ser a real libertação do pecado por parte de seu interlocutor/ouvinte.

Não basta a mensagem cristã contida no texto sagrado, apenas a mensagem cristã polarizada

pela interpretação evangélico-pentecostal pode cumprir a salvação de fato.

A Palavra de Deus é um Tesouro – 306 [íntegra]

A Palavra de Deus é para mim/ Um tesouro sem igual em valor!/ Fala do

amor de Deus, do amor que não tem fim;/ Mais precioso do que ouro é este

amor!

30

Cf. livro de Êxodo no Velho Testamento bíblico, capítulo 16.

132

(coro)

A Palavra de Deus é doce, mais que o mel,/ O que a toma pela fé há de ser

fiel,/ Porque Deus nos concedeu o Emanuel,/ Rocha viva donde mana leite e

mel.

Luz que guia pela senda da paz,/ E alumia os que em trevas estão;/ Lâmpada

que nos faz ver os ardis de Satanás,/ E que brilha mesmo na escuridão.

É um farol que sempre resplandeceu./ E que mostra o porto da salvação;/

Quem na arca já entrou e do mundo se esqueceu,/ Chegará por certo à eternal

mansão (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A admoestação à realização de uma mediação interpretativa presente na segunda

estrofe do hino 259, também pode ser rastreada no coro do hino 306, A Palavra de Deus é um

Tesouro. Ao descrever a Bíblia como sendo mais doce que o mel, fazendo menção ao agrado

que a leitura do texto sagrado proporciona ao crente, o autor acrescenta, no segundo verso, “o

que a toma pela fé há de ser fiel”. A condição para tornar-se um fiel e gozar das bem

aventuranças provenientes da leitura do Livro Sagrado é tomá-la “pela fé”. Já vimos no

segundo capítulo que o termo “pela fé” nomeia o modo de santificação que passa pela

identificação com a comunidade evangélico-pentecostal. Tomar “pela fé”, nesse sentido, seria

menos uma leitura original e fervorosa, ainda que tais circunstâncias estejam bem presentes

na vida cotidiana do fiel, e mais uma leitura que respeite os discursos sustentados na

manutenção da comunidade identitária. Daí a questão da fidelidade ser premente: um crente

só é fiel a Cristo se se mantém fiel ao seu Corpo, à igreja. O biblicismo resiste como temática

para a produção de canções ainda em fins do século XX.

Passemos à análise de uma canção do segundo grupo de músicas de louvor e adoração.

Lançada em 1999, no álbum Com Muito Louvor, de Cassiane, a letra da canção que se segue

nos apresenta como temática o biblicismo. Chamada Oferta Agradável a Ti, a letra foi

musicada e gravada por Cassiane, é, porém, de autoria dos pastores Ana e Edson Feitosa.

Oferta Agradável [íntegra]

(coro)

A tua palavra escondi,/ Guardada no meu coração,/ Pra eu não pecar contra

ti, Senhor,/ A tua palavra escondi;

Minhas vestes no sangue lavei/ E das tuas águas bebi,/ Pra ser uma oferta

agradável a ti,/ Minha vida a ti consagrei.

Meus dons e talentos são pra te servir,/ Meus dons preciosos são seus,/ Não

vejo razão na minha vida sem Ti,/ Tu és meu Senhor e meu Deus;

Assim como o fogo refina o ouro,/ Vem tua obra em mim completar,/ Até

que o mundo possa ver/ Tua glória em meu rosto, brilhar (FEITOSA, Ana;

FEITOSA, Edson. Oferta Agradável. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE.

Com Muito Louvor. São Cristovão: MK Music, 1999. CD).

A Palavra de Deus, a Bíblia, foi “escondida” no coração pelo cantor. Ou seja, o sujeito

que entoa a canção – um fiel qualquer que, ao realizar o processo de identificação

133

internalizando as representações coletivas do imaginário em questão, coloca-se,

necessariamente, no lugar de protagonista que realiza as ações previstas na letra da música –

buscou realizar uma leitura que gravasse as ordenanças de Deus na memória. O método é

simples. Leitura repetitiva de uma mesma passagem redundando num conhecimento

decorado. Tal leitura é enlevada de emotividade, pois se tem o contato com mensagens cuja

origem é creditada à mente do próprio Deus.

As duas primeiras estrofes versam sobre os momentos iniciais da identificação com a

vida cristã segundo a concepção evangélico-pentecostal. Na primeira estrofe, desenvolve-se

diretamente a temática da leitura e estudo bíblico que comumentemente acompanham o

processo de conversão dos novos fiéis: guardar a Palavra para não pecar contra o Senhor,

conhecer minimamente a Bíblia. Certo é que, apesar dos métodos simplistas de leitura, o

conhecimento que se depreende do estudo bíblico não é um conhecimento puramente baseado

na memorização fotográfica do texto, ele também é marcado pela memorização de um modo

específico de interpretação.

Este modo específico de interpretação é o que marca a enorme diferença entre a leitura

de uma mesma passagem do livro sagrado, ora por um evangélico-pentecostal ora por um

católico, ou mesmo por um kardecista. Ato contínuo, das particularidades ou características

identitárias do segmento cristão estudado nesta dissertação (traduzidas em suas representações

coletivas) derivam os modos específicos de consagração da vida ao deus cristão. Consagração

esta que passa pela senda da Batalha Espiritual. Daí todos os “preciosos dons e talentos”

daqueles que se identificam com tal imaginário social serem devotados ao cumprimento da

obra de Deus.

Outra canção do segundo grupo de amostragem que analisamos foi composta e

musicada pela pastora Ludmila Ferber, Ouça e Tome Posse. A canção data de 2001 e foi

lançada no álbum Adoração Profética 1 – Os Sonhos de Deus. Apresentamos a letra:

Ouça e Tome Posse [íntegra]

Ouça e tome posse/ Da Palavra do Deus Vivo/ Ele está aqui/ Assim diz o

senhor: (x2)/ “Abrirei rios no deserto/ Romperei fontes no meio dos vales/ E

a terra seca se transformará/Em mananciais de águas vivas.../ Passarás firme

pelas águas,/ Passarás firme no meio do fogo/ Nem as águas poderão te

destruir,/ Nem mesmo o fogo te afligir...”/ Deus fará tudo por você!/ Moverá

céus e Terra com Seu poder/ E o impossível vai acontecer/ Vitória e honra

Ele trará sobre você. (FERBER, Ludmila. Ouça e Tome Posse. Intérprete:

Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Adoração Profética 1 – Os Sonhos

de Deus. Osasco: Kairós Music, 2001. CD).

134

A pastora Ludmila Ferber escreveu uma canção historicamente contextualizada com o

movimento evangélico-pentecostal de ênfase na “prosperidade santa”. Ouça e Tome Posse

reflete anseios considerados pós-milenaristas (SIEPIERSKI, 2008). A pastora lista diversas

promessas de bem aventurança àquele que crê. Essas promessas não possuiriam seu

cumprimento necessariamente no céu. O primeiro verso da canção é claro nesse ponto: “ouça

e tome posse”.

Ouvir a Palavra de Deus, internalizá-la juntamente com as cristalizações

interpretativas características do segmento em estudo, nos são itinerários naturalmente

depreendidos no processo de identificação evangélico-pentecostal. “Tomar posse”, contudo, é

um novo impulso em matéria de formatação interpretativa constituinte do imaginário social

dos fiéis. Decorre, como já discutimos, da sutil mudança de ênfase que aponta para o cultivo

da “Prosperidade Santa” como matriz interpretativa desdobrada em posturas práticas

esperadas de um fiel coerente, inserido em concepções teológicas pós-milenaristas.

Sem prejudicar o sentido, a mensagem poderia ser assim traduzida: escute quais

são as promessas de Deus para sua vida neste mundo – agora –, e se aposse delas. A tomada

de posse das bênçãos elencadas se dá no viver “em Jesus”, na identificação com a

comunidade dos “santos” na manutenção da Batalha Espiritual, forçando a realização da

vontade divina na cotidianidade. É interessante notar que entre as promessas de bênçãos

elencadas não encontramos menção à salvação e a vida após o arrebatamento (parousia), na

Jerusalém Celestial. As garantias apresentadas na letra da canção de Ludmila Ferber são todas

efetiváveis em vida, no “mundo”. Ao crente não está colocado o propósito de “esperar” pelo

Reino de Deus vindouro no céu; antes, sim, efetivá-lo por meio de uma ação direta – tomada

de “posse” – que sobreponha o Reino de Deus ao “mundo”. Aquele obliterando este. As

relações humanas existentes no “mundo” deverão dar lugar às práticas preconcebidas como

“santas” à medida que o Reino de Deus assume cada vez mais realidade por meio da ação

conjunta dos fiéis. Passa-se, assim, um rolo-compressor sobre a diversidade das práticas

sociais que não coadunam com a visão evangélico-pentecostal.

3.4. Visão de mundo dualista

O dualismo é, minimamente, um elemento fundante de qualquer identidade (“nós” em

relação a um “eles”) e pode ser facilmente percebido permeando grande parte do material

pesquisado. Por meio do dualismo, os evangélico-pentecostais leem os eventos que compõem

sua cotidianidade como uma concatenação de circunstâncias para o cumprimento do Plano

135

divino de salvação, o Bem versus o Mal. No hino de número 162 da Harpa Cristã de 1923, O

Estandarte da Verdade, temos acesso explícito a alguns versos nos quais fica claro o tema do

dualismo.

O Estandarte da Verdade” – 162 [íntegra]

Da verdade, levantemos o estandarte,/ Arvoremos o estandarte de Jesus./

Proclamemos, com valor, por toda parte,/ A mensagem soleníssima da cruz.

(coro)

O mundo está sem luz, sem paz;/ Levemos paz, consolação,/ A quem, na

dor, no luto jaz,/ Sem luz, sem paz, sem salvação.

Da verdade, levantemos o estandarte;/ Proclamaremos o Senhor, que é luz e

paz;/ Pecador, ouve! Jesus tem para dar-te/ Salvação que nEle só,

encontrarás.

Do Evangelho, levantemos o estandarte,/ Vem, desperta do teu sono,

pecador;/ Que o teu Deus, que o teu Senhor tem para dar-te/ Copiosas

bênçãos do Seu grande amor (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A letra da canção admoesta o crente a levantar a bandeira, ou seja, tornar explícita e

sem rodeios sua postura religiosa. A postura religiosa evangélico-pentecostal, como

discutimos no segundo capítulo, canibaliza todos as outras identificações do indivíduo. Os

que na cotidianidade ou esporadicamente tiverem contato com o “crente” precisam perceber,

na vivência com o fiel, que a “verdade” da mensagem da cruz é proclamada por meio de suas

ações. Nos versos que compõem o coro, percebemos a enunciação do dualismo. O “mundo” é

caracterizado como “sem luz”, “sem paz”, “na dor”, “no luto jaz”, “sem salvação”. Quanto

aos evangélico-pentecostais, cabe a eles o papel de portadores da mensagem de salvação,

pacificação e iluminação. Também são descritos, os “crentes”, como despertos em contraste

com os pecadores que são chamados a “despertar do sono”.

A IURD, assim como a AD, também organizou um cancioneiro oficial para dinamizar

seus cultos, o hinário Louvores do Reino. Publicado pela primeira vez em 2004, o hinário traz

em suas páginas 274 canções. Estas são uma mescla de antigos e novos cânticos de louvor ao

deus cristão, sendo que alguns deles foram retirados da Harpa Cristã da AD. Os cânticos mais

recentes são, em sua maioria, da autoria dos cantores procedentes da gravadora de

propriedade da IURD, Line Records. Alguns hinos retirados do Louvores do Reino – os que

datam de não mais que 20 anos – nos serviram, também, como componentes de nosso

segundo grupo de canções analisadas. Reforçamos: escolhemos as canções de autoria de

artistas contemporâneos para demonstrar a continuidade das representações coletivas

analisadas no capítulo segundo.

136

No hino Libertação, número 113 dos Louvores do Reino – de autoria do músico

Sergio Lopes31

–, percebemos o recurso à representação do dualismo como temática central.

Libertação – 113 [íntegra]

Quando tudo parecia ter chegado ao fim/ E eu não tinha a maior esperança

de ser feliz/ Tempestades de dor e tristeza que eu enfrentei/ Destruíram os

sonhos e planos que eu construí/ Quantas noites me ajoelhava sem poder

falar/ Eu não tinha coragem, nem forças pra falar com Deus/ Mas um dia

ouvi Sua voz me falando: “Não temas,/ Não há dor que na cruz Eu não tenha

vencido por ti!”/ O sangue de Cristo liberta de todo pecado/ A cruz do

Calvário é o começo da nossa vitória/ A Palavra de Deus é a nossa arma de

guerra/ E o poder de Deus me garante a vitória final (LOUVORES DO

REINO, 2004: s/p).

A letra da canção, tomada em seu conteúdo, pode ser dividida em duas partes,

tendo como ponto de inflexão os versos sétimo e oitavo. Na primeira parte, que vai dos versos

primeiro ao sétimo, Sergio Lopes caracteriza a vida anterior ao conhecimento do sacrifício

redentor de Jesus ao morrer na cruz. Os elementos que aparecem aí são totalmente negativos e

vinculam-se à existência “mundana” sem Cristo. A falta de expectativas para com o futuro, a

total perda de esperanças, as dores e tristezas fazem o cantor rememorar as representações

depreciativas das práticas de vida não alinhadas com a participação nas comunidades cristãs

evangélico-pentecostais. Nos versos sétimo e oitavo há uma variação no conteúdo da

mensagem que condiciona a inversão de toda a negatividade: a voz de Cristo fala ao cantor. E,

ao fazer Cristo falar, Sergio Lopes introduz a ideia da vida “em Jesus”.

Os versos nono ao décimo segundo pautam-se no processo de identificação com a

identidade evangélico-pentecostal. A dualidade realiza-se na quádrupla afirmativa da

passagem, fundada na positividade total: libertação do pecado, vitória em vida (espiritual e

física), preparo para enfrentar a Batalha Espiritual, vitória final (salvação – arrebatamento).

Como ponto assente na constituição do imaginário social evangélico-pentecostais, a dualidade

do mundo refletir-se-á permeando, ora explicitamente ora implicitamente, o discurso de todos

os cânticos de louvor, novos ou antigos.

Um segundo hino retirado da Harpa Cristã da AD de 1923, Pelejar por Jesus

(número 108), pauta-se explicitamente em elementos característicos da visão de mundo

dualista.

Pelejar por Jesus – 108 [íntegra]

Por Jesus vamos pelejar,/ Prosseguindo o nosso andar;/ E com Ele, então, no

céu,/ Nós iremos a paz gozar.

31

Cantor e escritor, Sergio Lopes produz pela Line Records, gravadora de propriedade da IURD.

137

Coro

Lutemos todos contra o mal,/ E vamos a Jesus seguir;/ Ele é o nosso

General/ E a glória do porvir!

Em Jesus temos nós poder;/Avancemos, já sem temer;/ Confiando no Seu

amor./ Vamos lutar, até vencer.

Crentes, para Jesus olhai,/ Pela fé, sempre, sim, lutai;/ Ao inimigo, ó

combatei;/ O Evangelho anunciai.

A Escritura nos diz assim:/ Que Jesus é p’ra ti e mim,/ O caminho, a luz

veraz,/ Que nos leva ao céu, enfim (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Na primeira estrofe, está lançada a mensagem central da canção: prosseguir o “andar”

aqui nesta terra – ou seja, viver – é sinônimo de “pelejar”; àquele que assim mantiver-se em

vida, garantida terá a estadia no céu onde gozará a “paz”. O mundo, e as relações que se

estabelecem aqui, realizam-se todas sobre a égide do conflito, da peleja. Tranquilidade,

harmonia, serenidade, enfim, todas as circunstâncias necessárias para o gozo da paz, só serão

possíveis, de fato, no céu. O mundo não é um lugar de descanso para o cristão pentecostal

pré-milenarista. Veremos, mais adiante, que nas letras de músicas produzidas em contextos

pós-pentecostais o mundo adquire uma conotação de lugar de luta, porém, esta luta não

inviabiliza a fruição e gozo da graça de deus desdobrada em bênçãos materiais. Esta fruição e

gozo, contudo, só é garantida ao fiel que se mantiver firme na Batalha Espiritual.

As construções dicotômicas seguem dando a tônica do hino 108 da Harpa Cristã. O

primeiro verso do coro, “lutemos todos contra o mal”, só reforça o cenário construído na

primeira estrofe. Por mais que não esteja explicitado qual seja a matéria do “mal”, não seja

nomeado algum inimigo em específico, é a evocação da luta, da participação de “todos” nesta

mesma luta, que nos garante a impossibilidade de evadir-se do conflito se se quiser

efetivamente participar da identidade evangélico-pentecostal.

Como a vida do crente dentro mundo está relacionada à batalha, não é estranho

encontramos termos militares impregnando seu discurso identitário. “O Senhor dos

Exércitos”, um dos títulos de Jeová no Antigo Testamento, se manifesta ainda como o

“General” Jesus que guia suas tropas de santos à guerra. Encontraremos mais termos

provenientes dos vocabulários milicianos nas próximas canções analisadas.

Os dois últimos versos da terceira estrofe são reveladores: “Ao inimigo, ó combatei; o

Evangelho anunciai”. Nestes dois versos percebemos o estabelecimento de uma relação de

equivalência entre os respectivos conteúdos. Combater o inimigo e anunciar o Evangelho não

138

podem ser entendidos como duas práticas distintas. Anunciar a Palavra de Deus – as “boas

novas” da salvação – é, de fato, a efetivação do combate ao inimigo32

.

O repertório de canções provenientes do trabalho da pastora Cassiane, ligada à

gravadora MK e com mais de quinze álbuns já lançados, serviu-nos, também, como base de

análise. Exposta à identidade evangélico-pentecostal (AD) desde o berço – nascida em lar

cristão evangélico-pentecostal –, Cassiane começou sua carreira como cantora em idade tenra.

Aos três anos de idade, com o apoio da família, já cantava nos cultos. Gravou seu primeiro

disco aos oito anos de idade.

A escolha do repertório da pastora Cassiane para a análise, assim como da pastora

Ludmila Ferber e do grupo Diante do Trono, deve-se à sua representatividade no meio

evangélico-pentecostal. Tal representatividade desdobra-se nos altos índices de vendagem dos

álbuns, além da utilização das músicas dos respectivos repertórios para mais do que apenas

um uso “profano” – a realização profana seria a fruição das músicas no espaço doméstico,

esfera do privado, como um bem cultural adquirido comercialmente. Muitas das músicas

produzidas por Cassiane, Ludmila Ferber e pelo grupo Diante do Trono são utilizadas como

músicas sacras – cumprindo, assim, um uso público –, na medida em que são adotadas nos

momentos de louvor, pelos grupos musicais oficiais das igrejas ou pelos irmãos que recebem

a “oportunidade” nos cultos da AD e IURD. Como pudemos presenciar nos cultos nos quais

tomamos parte, os momentos que precedem a ministração da palavra pelo pastor são os mais

propícios à utilização do repertório de canções evangélico-pentecostais.

Assim, da pastora Cassiane, analisamos com vistas ao dualismo a canção Vencedores

do álbum Puro Amor (1994).

Vencedores [íntegra]

Sempre quando lutas/ Querem me assolar/ Querendo com furor/ Me fazer

tropeçar/ Sinto quando/ A mão do Senhor/ Vem prá me livrar

Se o mesmo acontece/ Com você meu irmão/ Te digo com certeza Cristo/ É

a solução/ Nos livra sempre do perigo/ Com sua forte mão

Lutaremos.../ juntos contra o mal/ Venceremos.../ Com nosso general/

Unidos somos/ Mais que vencedores/ Unidos pois agora/ Sim vamos cantar/

Seguindo sempre/ Em frente prontos a lutar/ Nenhum inimigo/ Vai nos

derrotar

Mostrando para o mundo/ Quem é o salvador/ Que salva e liberta/ Todo

pecador/ Amigo te convido/ Agora pra ser vencedor (CASSIANE;

JAIRINHO. Vencedores. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Puro Amor.

São Cristovão: MK Music, 1994. CD).

32

Discutiremos mais detidamente sobre esta equivalência, quando tratarmos da representação coletiva da Grande

Comissão.

139

A terceira estrofe da canção não poderia ser mais literal, “lutaremos juntos contra o

mal”. Nas estrofes anteriores, o mal é relacionado às “lutas”, “assolações”, “tropeços” aos

quais está submetido aquele que está “no mundo” sem Jesus. De fato, a primeira estrofe nos

dá a entender que os evangélico-pentecostais, como pessoas inseridas no “mundo”, são

também suscetíveis de sofrerem os ataques do Inimigo. Porém, como contam estar vivendo

“em Jesus”, eles são livrados do mal pela ação divina. Tal livramento não é automático e

garantido aos “mundanos”, como percebemos na leitura da segunda estrofe. Estes só poderão

receber o livramento se reconhecerem a Jesus como Salvador, como está exposto no quarto

verso da segunda estrofe (“É a solução”).

Retornando à terceira estrofe, entendemos, assim, qual grupo de pessoas está

subsumido no uso que a cantora faz ao conjugar o verbo “lutar” na primeira pessoa do plural.

“Lutaremos”, os crentes – de longa data – e os recém convertidos. Aqui não há uma distinção

pautada na “senioridade”, na antiguidade na fé. Tanto pastores quanto recém convertidos

precisam assumir a postura de guerreiros lutando contra o mal. Não contam com a derrota

frente às hostes do maligno, em qualquer âmbito da vida em que estas possam se manifestar,

pois engrossam as fileiras dos exércitos celestiais. Bem e Mal, Céu e Inferno, estar “em Jesus”

e estar “no mundo”, são dualidades presentes na canção Vencedores, de Cassiane, que

reafirmam as bases imaginárias da identidade evangélico-pentecostal.

Outra canção que nos fala do dualismo é o hino 422 da Harpa Cristã de 1923, No Céu

não Entra Pecado. Este hino nos traz uma mensagem extremamente sugestiva.

No Céu Não Entra Pecado – 422 [íntegra]

No céu não entra pecado/ Fadiga, tristeza, nem dor;/ Não há coração

quebrantado,/ Pois todos são cheios de amor,/ As nuvens da vida terrestre/

Não podem a glória ofuscar/ Do reino de gozo celeste,/ Que Deus quis pra

mim preparar!

(coro)

Irei eu p’ra linda cidade,/ Jesus me dará um lugar,/ Co’os crentes de todas

Idades,/ A Deus hei de sempre louvar./ Do céu tenho muitas saudades,/ Das

glórias que lá hei de ver;/ Oh! Que gozo vou ter,/ Quando eu vir meu

Senhor,/ Rodeado de grande esplendor!

Pagar não é necessário/ A casa, que lá hei de ter;/ E meu eternal vestuário,/

No céu, nunca vai se romper./ Jamais viverei em pobreza,/ Aflito no meu

santo lar,/Ali há bastante riqueza,/ Da qual podarei desfrutar.

No céu o luto é banido,/ Enterros não hão de passar;/ Sepulcros jamais são

erguidos,/ Lá mortos não vou encontrar./ Os velhos serão transformados;/

Mudados nós vamos ficar./ Quais astros por Deus espalhados/ No céu, para

sempre brilhar (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Podemos elencar claramente os elementos que no imaginário social evangélico-

pentecostal não compõem o céu: pecado, fadiga, tristeza, dor, coração quebrantado, pobreza,

140

aflição, luto, velhice, morte. Todas estas vivências, entendidas como reveses diabólicos, são

inerentes à vida no mundo entendida como campo de combate por excelência. A realização da

plenitude na identidade evangélico-pentecostal só poderá efetivar-se no céu, lugar da

inexistência de pecado. Enquanto permanecem no mundo, os crentes precisam lutar contra o

pecado, elemento a um só tempo desestabilizador e afirmador de sua identidade.

3.5. Grande Comissão e parousia

Trataremos as duas últimas representações coletivas de nosso arcabouço identitário

conjuntamente. O faremos pelas razões discutidas logo no início deste terceiro capítulo, a

saber, o fato de ambas as representações coletivas in-formarem, especialmente, a concepção

de tempo futuro do proposto arcabouço identitário evangélico-pentecostal.

Exemplificando a noção da necessidade do cumprimento da grande comissão para a

efetivação da parousia, observemos os hinos abaixo, ambos retirados da Harpa Cristã editada

em 1923.

Quem irá? – 65 [íntegra]

Eis os milhões, que em trevas tão medonhas/ Jazem perdidos, sem o

Salvador!/ Quem, quem irá as novas proclamando,/ Que Deus, em Cristo,

salva o pecador?

(coro)

“Todo o poder o Pai me deu,/ Na terra, como lá no céu!/ Ide, pois, anunciar o

Evangelho,/ E eis-me convosco Sempre!”

Portas abertas, eis por todo o mundo!/ Cristãos, erguei-vos! Já avante andai!/

Crentes em Cristo! Uni as vossas forças./ Da escravidão os povos libertai!

“Ó vinde a mim! A voz divina clama,/ “Vinde!” Clamai em nome de Jesus:/

P’ra nos salvar da maldição eterna,/ Seu sangue derramou por nós na cruz.

Ó Deus apressa o dia glorioso,/ Em que os remidos todos se unirão,/ E, em

coro excelso, santo, jubiloso,/ P’ra todo o sempre, glória a Ti darão (HARPA

CRISTÃ, 1998: s/p).

E ainda:

Avante, Ó Crentes – 253 [íntegra]

Avante, ó crentes, o mal desfazendo,/ O inimigo com a luz combateremos;/

A peleja, pois, todos, não temendo,/ A vitória por Jesus receberemos.

(Coro)

Com a graça de Jesus nos firmaremos,/ Com a graça de Jesus,

combateremos,/ Com a graça de Jesus nos venceremos,/ Com a graça de

Jesus vitória temos.

Avante, ó crentes, marchai sem tardança,/ Jamais do bom Jesus nós nos

afastaremos,/ Porque nEle nós temos esperança/ E vitória nós assim

alcançaremos.

Avante, ó crentes, fiéis corajosos,/ Vitória por Jesus, a nós é concedida;/ No

combate, ó sede valorosos,/ Para alcançar o galardão da vida.

141

Avante, ó crentes, dum só pensamento;/ “O vil pecado sempre nós

combateremos”./ Pois Jesus vem, não tarda um momento,/ Crendo em Jesus,

vitória nós já temos (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A ideia de que Jesus só se manifestará uma segunda vez depois do trabalho intensivo

de pregação de sua mensagem está presente nas duas canções, numa estrutura homóloga de

construção das estrofes. Os dois hinos são uma evocação à ação do crente como guerreiro

espiritual fundado no poder concedido por Jesus. As duas últimas estrofes de ambos os hinos

podem ser entendidas como o coroamento, a recompensa concedida àquele que de bom grado

cumpre a ordenança.

Na última estrofe da segunda canção, podemos ler: “a vitória nós já temos”. Esta

“vitória” a que o hino faz menção é a salvação da alma que só foi possibilitada por meio do

sacrifício de Jesus ao morrer na cruz pelos pecados da humanidade. Aqui se explicita o

entendimento que os evangélico-pentecostais fazem da salvação, ela não depende de esforço

pessoal por meio de obras. A salvação já foi garantida pelo sacrifício do Cristo no passado.

Mas há certo espaço para a realização das “boas obras” que não são de forma alguma tomadas

como desprezíveis; ao contrário, é aprazível e esperado do crente que, por amor ao seu

testemunho, as cumpra de bom grado. O que está em jogo nesta questão varia segundo a

ênfase teológico-doutrinária a qual o crente se insere: “Santidade Próspera” ou “Prosperidade

Santa”.

Se considerarmos os fiéis provenientes das matrizes interpretativas da “Santidade

Próspera” – marcadamente assembleianos –, será o galardão, a recompensa concedida no céu

quando ocorrer o encontro com Deus nas mansões celestiais, o fator que evocará no crente o

desejo de trabalhar exaustivamente na Obra de Deus. Esta recompensa, por sua vez, é

diretamente proporcional, dentro dos quadros representacionais depreendidos da leitura da

Harpa Cristã, do esforço pessoal. No que concerne à salvação da alma, esta já está garantida

pelo sacrifício de Jesus. O crente está salvo ao aceitar Cristo. Só perderá a certeza de sua

salvação se se afastar da igreja, do convívio com os irmãos.

Agora, quanto à retribuição pessoal – certo plus individual em matéria de recompensa

por ter sido um crente fiel durante sua estada no “mundo”33

–, o sujeito possui alguma

liberdade para resolver consigo mesmo, a partir de seus interesses quanto ao reconhecimento

que visa ter para com Deus no dia do Juízo. Quanto maior o esforço de sua parte, quanto mais

almas forem alcançadas para Cristo – desdobradas nas conversões que ele, o evangélico-

33

Quanto mais almas um crente alinhado com as matrizes interpretativas da “santidade próspera” alcançar,

conseguindo converter, mais pedras preciosas ele possuirá incrustadas na coroa que receberá das mãos do

próprio Cristo no céu.

142

pentecostal, conseguiu realizar através de sua agência missionária em obediência ao

cumprimento da Grande Comissão –, maior será seu galardão no céu. Podemos observar essa

concepção nos trechos dos seguintes hinos retirados da Harpa Cristã:

Despertar Para o Trabalho – 16 [íntegra]

Posso tendo as mãos vazias,/ Com Jesus eu me encontrar?/ Nada fiz, e vão-

se os dias,/ Que Lhe posso apresentar?

(coro)

Posso tendo as mãos vazias,/ Com Jesus, eu me encontrar?/ Quantas almas

poderia/ Ao Senhor apresentar?

Não mais temerei a morte;/ Vencerei por salvo estar;/ Qual será a minha

sorte,/ Se no céu vazio entrar?

No celeste lar entrando,/ Como irei ao Salvador?/ Quantas almas irei

levando,/ Para meu fiel Senhor?

Do pecado, preso em elos,/ Passei anos em vão labor;/ Quem me dera reavê-

los,/ P’ra servir ao meu Senhor.

Despertemos, Já é dia;/ Trabalhemos, com fervor;/ E levemos, com alegria,/

Muitas almas ao Senhor (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Soldados de Cristo – 153 [íntegra]

Soldados de Cristo que entrastes na lida./ Lutai sem desmaio, lutai com

valor;/ E o inimigo levai de vencida,/ Dizendo que Cristo é nosso Senhor.

(coro)

Soldados de Cristo, marchai sempre avante,/ Levando à destra as armas da

luz;/ As almas perdidas buscai triunfantes/ E prestes, levai-as a Cristo Jesus.

Peleja, ó crente, a santa peleja,/ Prossegue avante por Cristo Jesus;/ E sê mui

valente; na frente estejas,/ Dizendo que Cristo morreu numa cruz.

A aurora se acerca do dia faustoso,/ Em que prêmio terão a fé e o valor;/ E

nele, Jesus, galardão grandioso,/ Dará a qualquer que sair vencedor (HARPA

CRISTÃ, 1998: s/p).

Ide Segar – 220 [íntegra]

Para os campos a segar,/ Eis o trigo a lourejar,/ Ide ceifar, ide segar;/ Todo

dia trabalhai/ E só de Jesus falai;/ Ide ceifar, ide pregar!

(coro)

Ide segar, ide ceifar!/ Sim, trabalhai, e proclamai!/ Eis que o amor do

Salvador/ Vos impele ao Seu labor/ Sem demorar, ide segar.

Para o vale, monte ou mar,/ O Senhor vos quer mandar/ A proclamar,

anunciar;/ Os perdidos procurar,/ Pois Jesus os quer salvar;/ Ide falar, e

proclamar!

Falaremos com fervor,/ Do poder do Salvador,/ Ao pecador, ao sofredor;/

Pronto chegará o fim,/ Soará do céu o clarim,/ Tereis, então, o galardão

(HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Campeões da Luz – 305 [trecho]

[…] Breve vamos terminar a batalha aqui,/ E p ‘ra sempre descansar com

Jesus ali;/ Todos os que são fiéis ao bom Capitão,/ Hão de receber lauréis

como galardão […] (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Esta recompensa pessoal, concedida por Jesus pelo número de almas alcançadas nos

trabalhos de evangelização, parece não ter ecoado na produção dos cantos estudados no

segundo grupo. Cremos que o discurso da “Prosperidade Santa” das igrejas de terceira onda

143

(FRESTON, 1992) redimensionou a interpretação da representação coletiva da Grande

Comissão no que tange ao galardão celestial.

A recompensa celestial (galardão) reservada aos sujeitos em seus processos de

identificação34

foi repensada em função da substituição da expectativa obsedante do retorno

iminente de Cristo pela perspectiva de fazer avançar o Reino de Deus, contemporaneamente,

aqui na terra. Os frutos do trabalho do sujeito no cumprimento da identidade evangélico-

pentecostal, em seu esforço de pregação, oração ou doações em dinheiro para ajudar no

trabalho missionário-evangelístico, são entendidos, segundo a interpretação que fizemos do

segundo grupo de cantos, como gozados imediatamente em vida. O galardão, aos olhos dos

crentes alinhados com a “Prosperidade Santa”, é recebido, também, em vida.

As letras das canções trabalhadas neste estudo dividem mais do que apenas

representações coletivas constitutivas da identidade evangélico-pentecostal; dividem também

um vocabulário específico. Tomemos uma palavra, em específico, presente nos trechos dos

hinos da Harpa Cristã transcritos acima: “avante!”. Tal palavra se configura como uma ordem,

uma conclamação para que o crente assuma sua postura como guerreiro que pode libertar os

povos da “escravidão”. A escravidão a que se refere o hino 65, em específico (no quarto verso

da segunda estrofe), é aquela sob a qual estão submetidos todos os que não conhecem ou

rejeitaram a Palavra de Deus, os chamados gentios. Claramente, o conhecimento, ou aceitação

de tal Palavra, redunda num novo seguidor da fé por meio da conversão, um novo membro da

igreja.

As constelações de representações coletivas contidas no imaginário social evangélico-

pentecostal fazem produzir sentido à vida daquele que busca identificar-se com tal grupo. Ao

tomar parte nesse sentido constituído e mantido socialmente, o sujeito faz com que a

efetivação de sua identificação passe, necessariamente, por alguma forma de cumprimento do

“levar a Palavra” ao realizar em si mesmo a Grande Comissão.

Soma-se, assim, o desejo de “testemunhar” aos pecadores do poder concedido por

Jesus àqueles que o seguem – e das “maravilhas” que decorrem deste mesmo poder como

curas, realizações no campo financeiro ou mesmo “reabilitações de caráter” mediante a

formatação dos hábitos tidos como “pregressos” ao gosto da comunidade de fiéis – à

necessidade de evangelização derivada da introjeção da representação coletiva da Grande

Comissão. Juntos, testemunho pessoal e ímpeto evangelístico direcionam o fiel a engrossar os

batalhões de santos comprometidos com a Batalha Espiritual. A identificação com as

34

Identificação, neste caso, se dá por meio das vivências cotidianas pautadas na expectativa da parousia e da

atitude evangelística – provenientes do esforço pessoal em converter o maior número de gentios possível.

144

representações coletivas dá-se por meio da inserção do sujeito no “mundo”, entendido como

campo de combate. A experiência de combate deriva dos novos comprometimentos

assumidos pelo recém convertido. As letras dos hinos acima apresentados indicam isso, tanto

do segundo quanto do primeiro grupo. Vários termos e passagens nesses hinos coadunam com

discursos militaristas, como, por exemplo: “marchai”, “erguei-vos”, “uni as vossas forças!”,

“os povos libertai!”, “o inimigo com a luz combateremos”, “peleja”, “Capitão”, etc.

O mandamento “ide e pregai”, como pudemos observar no primeiro capítulo, ao

apresentar as conclusões de Siepierski (2008) e Mariano (1999), sofreu algumas mudanças em

sua prática desde a escrita dos hinos da Harpa Cristã editada em 1923. Como afirmou

Siepierski, a ordem hoje em dia é converter não só indivíduos, mas a cultura também. Daí a

apropriação e ressignificação de práticas culturais antes tomadas como ímpias ou

anatemizadas pela rígida tradição de usos e costumes provenientes do contexto da “Santidade

Próspera”. Citemos como exemplo as festas de São João realizadas no mês de junho, de

matriz religiosa tradicionalmente católica35

.

Apesar da relativização no que concerne ao advento da parousia, realizada pelos

crentes alinhados com a “Prosperidade Santa” – ela certamente terá seu cumprimento, este,

porém, não é tomado como iminente –, ainda assim os termos do cumprimento da Grande

Comissão são pensados como um avanço das “tropas de Jesus”, agora, talvez, para fazerem

estabelecer, se possível, o Reino de Deus neste “mundo”. Acompanhemos alguns trechos das

canções do segundo grupo que testemunham a continuidade tanto do vocabulário bélico

quanto da expectativa de experienciar cotidianamente o combate contra o mal.

Senhor dos Exércitos, Rei [trecho]

[…] Guerreia por mim, glorioso Senhor/ Poderoso nas batalhas/ Tu és o meu

escudo e arma de guerra/ Envia teus anjos pra pelejar/ Em meu favor nesta

batalha/ Tu és o Senhor dos exércitos, Rei […] (VALADÃO, Ana Paula.

Senhor dos Exércitos, Rei. Intérprete: Diante do Trono. In: DIANTE DO

TRONO. Ainda Existe uma Cruz. Brasil: Diante do Trono, 2005).

Por amor de ti, Oh Brasil! [trecho]

Por amor de ti, oh Brasil/ Não me calarei nem me aquietarei/ Sobre os teus

muros, oh Brasil, pus guardas/ Que todo dia e toda noite/ Jamais se calarão

[…] (VALADÃO, Ana Paula. Por amor de ti, Oh Brasil! Intérprete: Diante

do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Por amor de ti, Oh Brasil! Brasil:

Diante do Trono, 2006).

Mais que vencedor [trecho]

35

Um exemplo foi o “Xote Santo” realizado em fins de julho de 2009 pela igreja Luz Para os Povos localizada

na Av. Planície, setor Itatiaia, Goiânia. Esta festividade imitou em sua decoração, estilo musical e quitutes a

festa de São João católica. Entretanto, foi “santa”, pois se afastava do embasamento teológico “claramente

herético” que lhe dá a igreja Católica.

145

[…] Você pensa que vai me fazer parar?/ Você pensa que vai me fazer

desistir?/ Você não se cansa de me afrontar/ Mas eu não me canso de te

resistir/ Quem vai retroceder, é você/ Mas eu vou avançar e chegar ao fim/

Coroa de vitória é o que vou receber/ E no lago de fogo você vai arder

(VALADÃO, Ana Paula. Mais que vencedor. Intérprete: Diante do Trono.

In: DIANTE DO TRONO. Príncipe da Paz. Brasil: Diante do Trono, 2007).

O Exército de Deus [íntegra]

Deus está liberando os seus anjos para guerrear/ Liberando uma palavra para

avançar/ E debaixo dessa ordem vamos avançar/ E vencer/ Nossa luta não é

contra carne ou sangue/ Nossa luta não é contra todos os homens/ Nossa luta

é contra principados, potestades/ Nas regiões celestes/ Somos o exército de

deus/ Igreja viva do senhor (FERBER, Ludmila. O Exército de Deus.

Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Adoração Profética 1 –

Os Sonhos de Deus. Osasco: Kairós Music, 2001. CD).

Coragem [íntegra]

Prepare-se que o cerco está se fechando/ A coisa ta ficando feia para o mal/

Por mais que se levantem contra nós/ Nunca esqueça tua identidade em

Deus/ Pois o poder da Cruz está em ti/ Teu nome é coragem/ Valente de

Deus/ Teu nome é coragem/ Não pare de crer/ Teu nome é coragem/

Guerreiro da fé/ Prepare-se para vencer (FERBER, Ludmila. Coragem.

Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER, Ludmila. Coragem. Osasco:

Kairós Music, 2007. CD).

Sobrenatural [íntegra]

Somos o exército de Deus,/ Chamados pra vencer e conquistar/ Somos

valentes! Somos guerreiros!/ Somos da fé, e não vamos recuar/ O chamado é

radical, é divino, é tremendo/ O respaldo vem de Deus,/ Ele mesmo está

movendo/ Sua unção é poderosa,/ Sem limites, sem fronteiras/ Debaixo dela,

romperemos as barreiras/ Buscando sem parar no sobrenatural/ sonhando

sem parar no sobrenatural/ Adentrando a dimensão do sobrenatural/

Adestrando o coração no sobrenatural/ Ampliando a visão no sobrenatural/

Aguçando a audição no sobrenatural/ Mergulhando na unção do

sobrenatural/ Conquistando e consolidando/ Aqui, no sobrenatural!

(FERBER, Ludmila. Sobrenatural. Intérprete: Ludmila Ferber. In: FERBER,

Ludmila. Adoração Profética 3 – Tempo de Cura. Osasco: Kairós Music,

2003. CD).

Força Imensa [trecho]

[…] O inimigo não gosta do crente/ E nem pode gostar/ Arma astutas ciladas

pra nos derrubar/ Neste momento a luz vem trazendo o bem/ Cortando o

laço/ E quebrando a lança também/ Para obtermos poder temos que clamar/

Pelo Senhor da terra, da água e do ar/ E o Seu nome é Maravilhoso,

Conselheiro/ Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz/ Ele é... Varão

de Guerra/ Ele é... Leão de Judá/ Ele é... Pai Amoroso/ E em nosso meio está

(CASSIANE. Força Imensa. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Força

Imensa. São Cristovão: KM Music, 1993. CD).

O problema que decorre da manutenção do patrimônio vocabular de caráter

beligerante entre os evangélico-pentecostais pode ser rastreado nas interpretações relativas à

representação coletiva da Grande Comissão. Mesmo que estas interpretações se baseiem –

como o fez Ludmila Ferber em sua canção “Exército de Deus” – na passagem bíblica de

146

Efésios 6:1236

, a experiência de conflito carregará consigo os termos que gravitam, por

afinidade semântica, juntamente a outros termos referentes às batalhas terrenas, mesmo que

não nomeados nas canções. Termos como: “violência”, “destruição”, “aniquilamento”,

“oponente”, etc. E, por mais que os fiéis se esforcem em remeter seus discursos (e práticas de

potencial violência por parte do sujeito que o sustém) à esfera espiritual, isto não ameniza a

situação.

O mundo da vida em que se insere a comunidade e/ou o indivíduo que sustenta o

discurso da Batalha Espiritual será, necessariamente, o local de efetivação das práticas de

combate traduzidas na negação do outro, demonização, perseguição. Por mais que creiam

num mundo espiritual independente que perpassa e determina este material, o fiel deverá

saber enxergar no mundo de suas experiências cotidianas os sinais que marcam a presença do

espiritual. De fato, o mundo espiritual se insinua no material.

O mundo físico, para o evangélico-pentecostal, existe como palco da Batalha

Espiritual milenar entre as forças do bem e do mal. O processo de identificação que marca

uma conversão é uma necessária inserção do sujeito, com todos os seus demais processos

identitários inconclusos, no imaginário social que sustenta a Grande Comissão e a parousia.

As experiências cotidianas no trabalho, na escola, na família e noutras instituições e espaços

sociais que predicam certo processo identitário são canibalizados pelo imaginário evangélico-

pentecostal e transformam-se, paulatinamente, em possíveis palcos para a vivência da/na

Batalha Espiritual. O sujeito não pode ficar impassível a esta realidade, sob pena de ver

colapsar todo arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Reforçamos, este arcabouço é

totalizante no sentido em que impõem, como qualquer visão dogmática e/ou doutrinária,

pontos não passíveis de serem dialogados.

Existem muitos hinos na Harpa Cristã editada em 1923 que tematizam diretamente a

parousia. De fato, a maioria das músicas do cancioneiro oficial da AD é concernente à vida

futura nas “Mansões Celestiais” – uma das representações coletivas do imaginário evangélico-

pentecostal pertencentes mais aos modos interpretativos da “Santidade Próspera”. Analisamos

alguns hinos e passagens com foco explícito na representação coletiva da segunda vinda de

Cristo. Pudemos rastrear as reincidências do tema nas canções de Batalha no segundo grupo

de canções analisadas. Mesmo essas sendo provenientes de uma concepção mais próxima ao

pós-milenarismo (SIEPIERSKI, 2008), elas não se mostraram menos preocupadas com a

36

“Porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades,

contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.”

(Bíblia de Estudos Plenitude, 2001)

147

parousia. Vejamos alguns cantos de Batalha fundados na parousia e provenientes da Harpa

Cristã de 1923.

Saudosa Lembrança – 2 [íntegra]

Oh! que saudosa lembrança/ Tenho de ti, ó Sião,/ Terra que eu tanto amo,/

Pois és do meu coração./ Eu para ti voarei,/ Quando o Senhor meu voltar;/

Pois Ele foi para o céu,/ E breve vem me buscar.

(Coro)

Sim, eu porfiarei por essa terra de além;/ E lá terminarei as muitas lutas de

aquém;/ Lá está meu bom Senhor, ao qual eu desejo ver;/ Ele é tudo p’ra

mim, e sem Ele não posso viver.

Bela, mui bela, é a esperança,/ Dos que vigiam por ti,/ Pois eles recebem

força,/ Que só se encontra ali;/ Os que procuram chegar/ Ao teu regaço, ó

Sião,/ Livres serão de pecar/ E de toda a tentação.

Diz a Sagrada Escritura,/ Que são formosos os pés/ Daqueles que boas

novas/ Levam para os infiéis;/ E, se tão belo é talar/ Dessas grandezas, aqui,/

Que não será o gozar/ A graça que existe ali! (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A Esperança da Igreja – 53 [trecho]

[…] Bem prontos para O receber,/ Devemos sempre aqui viver;/ O tempo

foge, o dia vem,/ A glória esperamos além,/ Pois trabalhemos, com fervor,/

Até que volte o Salvador (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

Não Tarda Vir Jesus! – 286 [íntegra]

Ó Jesus, nesta terra,/ Há só tristeza e dor;/ Os Ímpios fazem guerra/ Aos

santos do Senhor.

(Coro)

Cristo volta/ Em fulgurante luz;/ O mar já se revolta,/ Não tarda vir Jesus!

Do mundo nós não somos,/ Mas do Senhor Jesus;/ Remidos todos fomos/

Com sangue, lá na cruz!

No mundo tenebroso/ Não vamos descansar,/ Mas para o céu, de gozo,/

Queremos já voar!

Olhamos para cima/ Donde virá Jesus;/ Pois isto nos anima/ Para viver na

luz (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

O Clarim nos Alerta – 206 [íntegra]

O clarim já nos alerta,/ Nosso coração desperta,/ Pois a vinda é bem certa de

Jesus;/ De mil anjos rodeado,/ Para o crente preparado,/ Cristo volta

coroado. Aleluia!

(Coro)

Ó irmão por Deus liberto,/ Pelo sangue estás coberto;/ Tens o teu perdão

bem certo, salvo estás;/ Voz de júbilo ouviremos/ E no céu nós cantaremos,/

Cristo breve nós veremos. Aleluia!

Lá nas bodas do Cordeiro,/ Sentaremos prazenteiros;/ Oh! Que gozo

verdadeiro com Jesus!/ Pois no céu não há mais pranto,/ Eis que tudo será

canto;/ Cristo vem buscar os santos. Aleluia!

Sim à mesa sentaremos,/ E com Cristo cearemos;/ Quão felizes nós seremos

com Jesus!/ Para sempre gozaremos,/ E com Cristo reinaremos,/ Sua glória

fruiremos. Aleluia! (HARPA CRISTÃ, 1998: s/p).

A problemática da Batalha Espiritual, apesar de presente, fica velada quando o tema

central é a volta de Cristo. Como pudemos observar, outras representações coletivas, como a

148

“mansão celestial”, “Sião”, “o Livro da Vida”37

, e, mais uma vez, o “galardão”, são evocadas.

Mas elas o são mais como um reforço na fruição-contemplação do processo de identificação

do que como complexos estruturantes da prática de vida. Estas representações coletivas,

menos “pesadas” dentro do imaginário social, são tributárias da parousia. Dizemos menos

“pesadas” porque elas configuram-se como representações coletivas que se perpetuaram

fracamente no imaginário dentro dos quadros interpretativos da “Prosperidade Santa”. Assim,

perderam muito de seu apelo na constituição identitária. Elas entram numa categoria de

aspirações complementares ao arrebatamento e às características de como poderá ser a “vida”

no céu. No primeiro hino apresentado, Saudosa lembrança, a mensagem é uma ode a Sião,

referência à Jerusalém – não a Jerusalém terrestre; antes a cidade divina que Jesus foi preparar

no Céu38

.

Após a morte de qualquer ser humano e o posterior juízo de Deus, só há dois destinos

possíveis para a alma humana segundo a visão dos evangélico-pentecostais: ou ir morar nas

mansões celestiais ou, então, ir sofrer dor intensa no lago de fogo eterno. Aos gentios, a

segunda localidade está indiscutivelmente reservada. Aos evangélico-pentecostais a primeira.

Isto é, se forem fiéis aos processos de identificação com as representações coletivas,

realizando a internalização do imaginário social, processos que tomados em sua globalidade

são denominados viver “em Jesus”. Se viverem “em Jesus”, seus nomes estarão escritos no

Livro da Vida. Se se esforçarem para cumprir a vontade de seu deus aqui na terra – seja

resistindo resignadamente enquanto levam a Palavra (“Santidade Próspera”), seja criando as

condições para a realização do Reino de Deus neste “mundo” (“Prosperidade Santa”) –,

garantirão um bom galardão para ser usufruído nesta vida ou na próxima. Daí podermos

perceber, mais uma vez, a menção ao galardão – recompensa – que é recebido agora, na

medida em que se realiza a vontade do deus cristão, ou será dado segundo os esforços de cada

um quando da vinda do Salvador.

37

Sobre as Mansões Celestiais: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa

de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar. E, se eu

for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que, onde eu estiver, estejais vós

também.” (João capítulo 14, versículos 1 a 3; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001); sobre o Livro da Vida: “E

peço-te também a ti, meu verdadeiro companheiro, que ajudes essas mulheres que trabalharam comigo no

evangelho, e com Clemente, e com os outros cooperadores, cujos nomes estão escritos no livro da vida.”

(Filipenses capítulo 4, versículo 3; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001), também, “E veio um dos sete anjos que

tinham as sete taças cheias das últimas sete pragas e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a esposa, a

mulher do Cordeiro. E levou-me em espírito a um grande e alto monte e mostrou-me a grande cidade, a santa

Jerusalém, que de Deus descia do céu. (...) E não entrará nela coisa alguma que contamine e cometa

abominação e mentira, mas só os que estão inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Apocalipse capítulo 21,

versículos 9-10 e 27; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001). 38

“Mas a Jerusalém que é de cima é livre, a qual é mãe de todos nós;” (Gálatas capítulo 4, versículo 26; Bíblia

de Estudos Plenitude, 2001); “Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e

aos muitos milhares de anjos” (Hebreus capítulo 12, versículo 22; Bíblia de Estudos Plenitude, 2001).

149

A projeção de outra vida ao lado de Deus, muito mais excelente do que esta, servia,

aos pré-milenaristas, como um forte argumento para fechar os olhos ao “mundo” e às

demandas atuais, como a discussão concernente à preservação ambiental. Durante as

pesquisas de campo, entramos em contato com fiéis que, compartilhando uma visão derivada

dos quadros interpretativos da “Santidade Próspera” (pré-milenarista), não se afligiam em

dilapidar a natureza em seu ambiente de vida. Seus argumentos eram de que “este não era seu

país”. Aos olhos dos pós-milenaristas alinhados com a “Prosperidade Santa” as questões

ecológicas são muito mais preocupantes. Mesmo porque Jesus pode levar um milênio para

efetivar a Parousia. Ou seja, este mundo, ainda um “mundo” de horror tomado de decadência,

se tornou mais um desafio a ser encarado e transformado, isto é, na ótica dos evangélico-

pentecostais que se guiam por matrizes interpretativas de “Prosperidade Santa”. Aos olhos

daqueles que estão esperando a volta iminente do Cristo, o “mundo” configura-se como um

insulto à “Santidade Próspera” da comunidade dos “salvos”. Entendem eles que este deveria

ser deixado à sua própria sorte. Mas, como vimos, até os pré-milenaristas alinhados com a

“Santidade Próspera” têm, no cumprimento da Grande Comissão, uma representação coletiva

que provê ao fiel um leque de práticas sociais que o inserem no “mundo” com vistas a salvar

os pecadores por meio da pregação da “Palavra de Deus” – mesmo que tudo se arruíne no

final. Essa inserção no “mundo” realizada pelos pré-milenaristas, diferentemente dos pós-

milenaristas, é basicamente dirigido a negá-lo por meio da mensagem de perdição, face oculta

das mensagens de salvação.

Passemos aos exemplos de cantos de Batalha provenientes do segundo grupo de

canções e que tematizam a parousia como mensagem principal.

Por amor de ti, Oh Brasil! [trecho]

[…] Por amor de ti, oh Brasil/ Não me calarei nem me aquietarei/ Vós que

fareis lembrado o Senhor/ Não descanseis/ Nem deis a Ele descanso até que

nos ponha/ Por objeto de louvor na Terra/ Chamados por um novo nome/

Que a boca do Senhor dirá/ E a nossa justiça brilhará/ Até que nos faça ser/

Coroa de glória/ Nas mãos do nosso Deus/ Por amor de ti, oh Brasil/ Não me

calarei (VALADÃO, Ana Paula. Por amor de ti, Oh Brasil! Intérprete:

Diante do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Por amor de ti, Oh Brasil!

Brasil: Diante do Trono, 2006. CD).

A vitória da cruz [trecho]

Como um leão que ruge o diabo quer nos devorar/ Está buscando brechas

para destruir, roubar e matar/ Não é na nossa força que podemos vencer/

Maior é Jesus em nós. Vem nos defender!/ O sangue derramado lá na cruz

foi para me salvar/ O meu pecado e dor Jesus levou. Sofreu em meu lugar/ A

minha dívida pagou para eu livre ser/ Cristo morreu por mim. Posso viver!/

Hoje eu sou livre para amar a Deus/ Viver vitorioso como um filho Seu/

Hoje eu sou livre para celebrar/ O pecado não pode mais me dominar/ […]

150

No terceiro dia a pedra do sepulcro rolou/ Lá chegou Maria mas o corpo não

encontrou/ O anjo lhe falou que ele não estava lá/ Entre os mortos não devia

procurar/ Viu o jardineiro e perguntou: ‘Onde está o meu Senhor?/ Olhou

nos seus olhos, pelo nome ele a chamou/ Ela reconheceu a voz do Mestre/

Raboni! Meu Jesus ressuscitou! […](VALADÃO, Ana Paula. A vitória da

cruz. Intérprete: Diante do Trono. In: DIANTE DO TRONO. Diante do

Trono 3 – Águas Purificadoras. Brasil: Diante do Trono, 2001. CD).

Os meus olhos verão o Rei [íntegra]

Os meus olhos verão o Rei Jesus,/ o Leão da Tribo de Judá,/ verão o Rei

Jesus/ Pois sou do meu Amado,/ a Fonte dos Jardins,/ Poço das Águas

Vivas,/ sou do meu Amado/ fonte selada/ Sou do meu Amado,/ a Fonte dos

Jardins,/ Poço das Águas Vivas/ Eu sou do meu Amado, fonte selada

(FERBER, Ludmila. Os meus olhos verão o Rei. Intérprete: Ludmila Ferber.

In: FERBER, Ludmila. Cantarei Para Sempre. Osasco: Kairós Music,

2008. CD).

Glória Pra Sempre [íntegra]

Cumpre à promessa – Jesus já vem!/ Vem pra julgar as nações/ Triunfo fiel,

de um povo no céu/ Valeu à pena esperar/ Vem colorindo a imensidão/ Traz

à justiça nas mãos/ Leva os seus, para junto de Deus/ Todos felizes nos céus/

Glória pra sempre/ Vem O Juiz, para fazer o seu povo feliz/ Vem colorindo o

espaço sideral/ É a vitória do bem sobre o mal (CASSIANE. Glória Pra

Sempre. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Força Imensa. São

Cristovão: KM Music, 1993. CD).

Festa no Céu [íntegra]

Vai haver festa no céu e vai ter anjos voando/ E a igreja de Jesus vai entrar

glorificando/ Naquele grande banquete, o Noivo vou abraçar/ Se prepare

meu irmão pra com Jesus se encontrar/ Muitos crentes vão sumir, sem deixar

explicação/ Carros vão desgovernar e perder a direção/ A igreja de Jesus

ninguém mais vai encontrar/ Foi arrancada daqui já está com Jeová/ Igreja

fique ligada Jesus Cristo vem aí/ Fique como as prudentes, preparadas pra

subir/ As provações deste mundo não se dá pra comparar/ Com aquelas

maravilhas e a glória que tem lá/ Fogo Santo/ Fogo santo, santo fogo, fogo

consolador/ É o que está descendo agora, fogo santo do Senhor/ Este fogo é

poderoso, é fogo pentecostal/ Vai queimando o pecado, desfazendo todo

mal/ Igreja fique ligada, muito fogo vai descer/ Até o crente gelado vai ser

cheio de poder/ Este fogo purifica, santifica e faz o bem/ Quem está sentindo

agora levante as mãos e diga amém/ Quando o povo de Deus ora põe o diabo

pra correr/ Abre a boca então dê glória, Deus tem vitória pra você

(CASSIANE. Festa no Céu. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Com

Muito Louvor. São Cristovão: KM Music, 1999. CD).

No Céu [íntegra]

Quando chegar lá no céu/ Vou ver os apóstolos/ Pedro, Tiago e João/ Vou

ver os profetas/ Que um dia partiram/ Pra celeste mansão/ Verei lá Elias,/

também Isaías,/ Verei Daniel/ Vou ver meu Jesus.../ Quando chegar lá no

céu/ No céu...lá tem ruas de ouro/ No céu...está o meu tesouro/ No céu...não

haverá mais choro/ Lá é meu lugar/ No céu...grande coral de santos/ No

céu...não há mais desencantos/ O meu lindo lar...Jesus foi preparar.../ É prá

lá que eu vou/ Quando chegar lá no céu/ Verei meu Jesus como Ele é/ Verei

o Seu rosto/ E as marcas dos cravos em Suas mãos/ Vou ver os Arcanjos,/

Voar como os anjos verei Salomão/ Verei os irmãos.../ Quando chegar lá no

151

céu (CASSIANE. No Céu. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Puro

Amor. São Cristovão: KM Music, 1994. CD).

Alerta [íntegra]

O céu vai se abrir/ Vai, vai, vai, vai/ Os anjos vão tocar/ Anunciando a

chegada/ Do Senhor Jeová/ Você amigo que está fora disso/ Está correndo

perigo/ Se a Jesus não aceitar/ Porque ele deixou uma promessa/ Vou subir

para o meu Pai/ Mas em breve vou voltar/ Os anjos lá no céu estão em fila/

Esperando a partida/ Pra com Jesus vim buscar/ E arrebatar a sua noiva

amada/ Que pra derrota do inimigo lá no céu irá morar/ Alerta porque pode

ser agora/ Ninguém sabe qual a hora/ Que Jesus irá voltar/ Por isso meu

amigo vem agora/ Vem correndo não demora/ Pra com ele ir morar

(CASSIANE. Alerta. Intérprete: Cassiane. In: CASSIANE. Para Sempre.

São Cristovão: KM Music, 1998. CD).

As músicas da banda Diante do Trono só indiretamente fazem menção à Parousia. O

formato e proposta da banda foram pensados para manutenção de longas execuções melódicas

– durando em média dez minutos ou mais – que possibilitem momentos de adoração no ofício

do culto. São letras voltadas para as experiências e expectativas que podem ser, em maior

medida, satisfeitas mediante a integração eminentemente emocional do sujeito em sua

comunidade de fé ao compartilhar dos surtos carismáticos que acompanham os momentos de

adoração. Chorar, bater palmas, abraçar uns aos outros, pular, dançar, orar em voz alta, falar

em línguas estranhas, todas são manifestações muito frequentes de comoção nas comunidades

evangélico-pentecostais que cultivam estas práticas. As letras produzidas pela banda Diante

do Trono remetem-nos, se não à expectativa obsedante da volta do Cristo, ao menos à

iminência do “derramamento” de seu poder para satisfação, não menos obsedante, da igreja.

Esta expectativa se constrói semelhantemente aos modos de fruição da possibilidade

da Parousia. Obedece, porém, em termos de respostas práticas, vetores de experiências

sociais totalmente diversos. O “poder” que as experiências de comoção emocional coletivas

na comunidade oferecem, redunda no reforço positivo da vivência “em Jesus” e na decorrente

agência dos sujeitos sobre seu meio, tanto nos espaços sagrados quanto nos espaços profanos.

Diferentemente dos pré-milenaristas que tanto menos gostariam de tomar parte neste “mundo”

iníquo, o pós-milenarista – tributário da “Prosperidade Santa” enquanto matriz interpretativa

das representações coletivas comuns ao imaginário social evangélico-pentecostal – se sentirá

“vitorioso e livre para celebrar” enquanto empreende as mudanças necessárias para apressar a

vinda do Reino de Deus, quiçá efetivando-o na contemporaneidade deste “mundo”.

O quadro apresenta-se totalmente diferente no que concerne às letras dos cantos

produzidas ou musicadas pela pastora Ludmila Ferber e, em maior medida, os gravados pela

pastora Cassiane. Ludmila Ferber, em carreira solo, utiliza-se da enorme aceitação que os

cantos recebem atualmente nas igrejas evangélico-pentecostais – dado o espaço e a

152

importância que estes assumiram nos cultos em detrimento da Palavra – para tratar de

diversos temas recorrentes à vida cristã. A Parousia aparece com mais ênfase em seus

trabalhos do que nos trabalhos da banda Diante do Trono. Mesmo assim, seja, talvez, por suas

filiações denominacionais e formação cristã mais tributária da “Prosperidade Santa”, a pastora

Ferber ainda não tematiza a Parousia tanto quanto o faz a cantora Cassiane, cuja formação na

fé se deu em contextos polarizados pela “Santidade Próspera”.

Nas canções musicadas pela pastora Cassiane, encontramos menções diretas ao

“arrebatamento”, a Parousia. Num abrir e fechar de olhos, os salvos serão simplesmente

transladados, ou seja, levados corporalmente ao céu. Os pré-milenaristas nutrem a certeza de

que tal evento produzirá um assombro sem medida aos que permanecerem no “mundo”.

Também podemos perceber a perpetuação de outras representações coletivas nos cantos da

pastora Cassiane. Além da referência à mansão celestial discutida acima, outra representação

coletiva tributária da Parousia é mencionada: as “Bodas do Cordeiro”. Os pré-milenaristas

entendem que, durante os sete anos de tribulação pelo qual passará a terra logo após a

efetivação da parousia e imediatamente antes do milênio, eles estarão junto a Jesus, numa

celebração que durará os sete anos de tribulação e que marcará o encontro da “Noiva” – a

igreja cristã verdadeira – com seu “Noivo” – o Cordeiro de Deus. Estas são as “Bodas do

Cordeiro”.

Como pudemos observar existem inquestionáveis permanências entre os dois grupos de

canções no que diz respeito às representações coletivas elencadas no arcabouço identitário

evangélico-pentecostal. Estas permanências nos discursos fomentam a perpetuação do

imaginário social em questão. A partir de suas características altamente aguerridas e voltadas a

aquisições de recompensas – em caráter futuro (no céu) para os pré-milenaristas ou, de forma

mais imediata para os pós-milenaristas (ainda no “mundo”) –, esses cantos de batalha

alimentam as continuidades das práticas da Batalha Espiritual. Certamente que ocorreram

mudanças nas interpretações e experiências que tais representações ensejam, como vimos no

decorrer do capítulo segundo, além de ainda podermos perceber essas mesmas transformações

na leitura e comparação realizada dos dois grupos de cantos de batalha. Porém, estas variações,

na medida em que afirmam a agência do crente em seu esforço de converter indivíduos e

culturas, só serviram para atualizar a necessidade de combatividade no cumprimento das

expectativas do horizonte futuro evangélico-pentecostal. Assim, a reafirmação das múltiplas

constelações representacionais possíveis dentro do arcabouço identitário evangélico-pentecostal

é, ao mesmo tempo, a reafirmação da própria Batalha Espiritual.

153

4. No front da Batalha Espiritual: considerações acerca do episódio Vaca

Brava

A partir do que foi discutido nos capítulos primeiro e segundo, e seguindo ainda no

esforço demonstrativo do terceiro capítulo, apresentaremos e teceremos alguns comentários

neste quarto capítulo sobre um determinado evento histórico de enfrentamento no qual esteve

ativo o imaginário da Batalha Espiritual: o episódio Vaca Brava. A igreja que encabeçou o

episódio Vaca Brava não foi nem a Assembléia de Deus (AD), nem a Universal do Reino de

Deus (IURD), apesar de contar com seu irrestrito apoio. A igreja goianiense Ministério

Comunidade Cristã, por intermédio de seus líderes, foi a protagonista nas ações que

passaremos a apresentar. Entendemos que este quarto capítulo é válido para nossa análise da

Batalha Espiritual na medida em que abre espaço para vislumbrar a possibilidade da presença

do arcabouço identitário evangélico-pentecostal noutras denominações que não apenas a AD e

IURD. Queremos deixar claro, antes de qualquer coisa, que as análises que se seguem partem

mais de um esforço de construção de hipóteses do que de corroboração de uma ideia. Cremos

que o arcabouço identitário pode ser rastreado em outras denominações pentecostais, contudo,

foge ao escopo deste trabalho dissertativo a proposta e a possibilidade de verificar com

detalhamento se assim o é. Mais uma vez, este quarto capítulo se configura como um

exercício de curiosidade – trazendo à baila uma discussão sobre um célebre momento de

Batalha Espiritual transcorrido em solo goianiense –, não pretendendo ser conclusivo na

validação da aplicabilidade do arcabouço identitário ao Ministério Comunidade Cristã.

O dia dezenove de novembro de 2003 começava a declinar na cidade de Goiânia,

capital do Estado de Goiás. Enquanto a cidade recebia a noite, no parque lacustre Vaca Brava,

localizado em área nobre da cidade, os ânimos estavam alterados. Pessoas ali se reuniam sob a

égide da intolerância.

Segundo o jornal Diário da Manhã do dia 20 de novembro,

O Parque Vaca Brava foi palco de manifestações e brigas entre evangélicos,

católicos e representantes da cultura negra ontem à tarde. As discussões

tiveram início com religiosos de várias igrejas que se reuniram no local para

manifestar contra as estátuas de orixás colocadas no lago do parque. As

manifestações dos cristãos contaram com o apoio de carro de som e estavam

previstas para durar uma hora e meia, mas foram interrompidas meia hora

depois, por volta das 18h30, devido aos protestos dos representantes da

cultura negra (cerca de 30 pessoas), insatisfeitas com o ato. Ao todo, 500

154

pessoas estiveram no local (BARROS, Renata. Religiosos à beira de

confronto. Jornal Diário da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).

Era véspera do dia da “Consciência Negra” e as escuras águas do lago recebiam

hóspedes estranhos ao imaginário social goiano dominante. Oito estátuas de sete metros de

altura que representavam Iansã, Oxalá, Iemanjá, Ogum, Oxum, Nanã, Xangô e Logum Edé.

Orixás que compõem o panteão Nagô.

As estátuas pertenciam à exposição Orixás da Bahia, que seria oficialmente

inaugurada no dia 20 (Dia da Consciência Negra), às 20 horas. A exposição itinerante já havia

percorrido São Paulo (Lago do Ibirapuera), Rio de Janeiro (Lagoa Rodrigo de Freitas) e

Brasília (Parque da Cidade). De autoria do escultor baiano Tatti Moreno, as tais estátuas

vieram acompanhadas não com algum poder mágico, antes sim, possuíam o poder sócio-

histórico de evocar forças fundamentais na composição da identidade evangélico-pentecostal.

Forças que permanecem veladas, dissimuladas em palavras e ações cotidianas. Forças que,

vez por outra, quando questionadas e postas à prova, revolvem o “lodo” dos preconceitos

identitários fazendo vir à superfície das ações sociais virulentas práticas norteadas pelo

imaginário da Batalha Espiritual.

A movimentação no lago Vaca Brava era intensa durante a semana que antecedeu o

dia 19 de novembro de 2003. Os homens e máquinas que trabalhavam na montagem das

estátuas trouxeram o lodo à superfície. Além de turvar a superfície do já escuro lago, o lodo

também agiu nas superfícies das práticas sociais daqueles que resistiam à montagem das

estátuas, tentando negar, desumanizar, demonizar a matriz africana que compõe – juntamente

com o cristianismo – a riqueza religiosa goianiense.

As estátuas já haviam suscitado muita polêmica antes mesmo de sua inauguração. Em

artigos publicados no jornal Diário da Manhã (DM) podemos acompanhar o embate ocorrido

desde meados do mês de novembro de 2003 até o dia oito de janeiro de 2004, quando as

mesmas foram retiradas. Como veremos no decorrer deste capítulo, as conseqüências do não

cancelamento da exposição por parte do prefeito Pedro Wilson (PT) ainda iriam reverberar,

muito tempo depois, no resultado das eleições para prefeito no fim de 2004. Referimo-nos,

assim, a todo o processo de enfrentamento e contestação calcada na Batalha Espiritual como

“Episódio Vaca Brava”.

Voltemos às margens do lago no dia dezenove. Segundo o DM, em artigo de Ludmila

Viana, publicado pela manhã,

Cresce a polêmica em torno dos orixás expostos no Parque Vaca Brava. O

pastor Fábio Sousa, líder dos jovens do Ministério Comunidade Cristã,

155

organizou para hoje, às 18 horas, uma passeata no local, segundo ele, contra

suposta discriminação em relação às demais religiões. “A convocação é para

todos que estão sendo discriminados, independente da religião”, observa. O

pastor disse que os evangélicos estão insatisfeitos com as esculturas por elas

representarem deuses do candomblé. “Foi algo imposto. É uma idéia absurda

fazer esta exposição perto do Natal”. Por ser o Natal uma festa cristã, Fábio

Sousa acredita que deveriam ser expostos presépios e enfeites natalinos

(VIANA, Ludmila. Evangélicos não querem orixás. Diário da Manhã,

Goiânia, 19 nov. 2003. Cidades, p. 01).

Enquanto isso, no mesmo jornal, em outra seção:

O secretário municipal de Cultura, Sandro di Lima, disse que a exposição

dos orixás – do escultor baiano Tatti Moreno – é recebida com orgulho pela

Prefeitura de Goiânia pela qualidade das obras e para mostrar que a cidade é

multicultural. “Estamos mostrando a cultura e a história brasileira ao povo

goianiense. Esta exposição tem caráter artístico-cultural, e não religioso”,

ressalta. Segundo ele, em momento algum a prefeitura teve intenção de criar

polêmica entre as religiões. “O que queremos é receber com respeito uma

exposição de cunho internacional. Não temos de polemizar” (VIANA,

Ludmila. Secretário pede tolerância religiosa. Diário da Manhã, Goiânia,

19 nov. 2003. Cidades, p. 01).

Duas vozes se opõem. Duas identidades que, apesar de ligadas intersubjetivamente por

meio dos símbolos culturalmente compartilhados, se chocam em sua argumentação –

contrária ou a favor à exposição. O pastor e o secretário são ambos representantes de maneiras

distintas e não excludentes de ver o mundo. Não excludentes na medida em que percebemos

que suas concepções da “Verdade”, religiosa ou política, sagrada ou profana, pertencentes ao

evangélico ou ao cidadão, respectivamente, não podem subsistir independentes uma da outra.

Neste caso seus distintos universos lingüísticos interagem numa relação antitética – onde um

termo é tomado como oposição de contrariedade de outro –, ou seja, se realizam como

estruturalmente acoplados. Como uma sizígia re-conhecida num mesmo lance de olhos sobre

a realidade. Poderíamos vislumbrar os pontos onde um discurso predica o outro ao focalizar

nossa atenção em seus interstícios.

Pastor e secretário pronunciam-se, realizam-se ao se distanciarem, mas as idéias

expostas nos textos acima apresentados não pertencem necessariamente a eles somente. Eles

são membros das distintas comunidades que compõem o caleidoscópio identitário goiano, que

se re-encontram e se re-afirmam nas posições opostas: no “Sim” cidadão à exposição como

evento cultural ou no “Não” religioso que a entende como um acontecimento sagrado (ou

profano). “Pastor” e “Secretário”, assim, mais que indivíduos falando a partir de sua

consciência pessoal, se configuram como dois loci específicos de enunciação.

156

Estas duas posturas polarizaram o Episódio Vaca Brava. Elas seriam, entretanto,

nuançadas pela metamorfose que sofreria o discurso do “Não” religioso à exposição, derivado

do locus enunciativo do Pastor. Voltaremos mais adiante a ele.

Poderíamos nos referir, ainda, a outro posicionamento quanto às estátuas que melhor

seria definido como um “desposicionamento”. Boa parte da população que, não entendendo

muito bem o significado das reivindicações de “Pastores” e “Secretários”, ficaram à deriva ao

experimentar uma perplexidade ante a visão dos Orixás. Exemplificamos este

desposicionamento com a passagem que se segue, uma reportagem no DM do dia 18 de

novembro de 2003, também de Ludmila Viana.

O fato é que muitos freqüentadores do Vaca Brava desconhecem o

significado das imagens dos orixás expostos. Evaldo Simão, 23, autônomo,

pensou que seria algo relacionado a Roma, devido às lanças que as

esculturas carregam nas mãos. “Nunca vi nada parecido em toda minha

vida”, revela (VIANA, Ludmila. Orixás polêmicos no Vaca Brava. Diário

da Manhã, Goiânia, 18 nov. 2003. Cidades, p. 01).

O desposicionamento alimentado pela desinformação historicamente tributária do

descaso com a matriz cultural africana de nosso país, concorreu para que houvesse uma

grande parcela da população goianiense que, ou ignorava completamente o que se passava, ou

não detinha elementos suficientes para efetuar uma análise crítica da situação.

Organizados cronologicamente, passamos a apresentação e análise de alguns excertos

dos artigos que constam no DM do dia 18 ao dia 21 de novembro do ano de 2003.

Acompanharemos, em específico, a argumentação do “Não” religioso – que acreditamos

poder derivar do arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Acompanharemos os esforços

das lideranças do Ministério Comunidade Cristã que objetivavam o fim da exposição dos

Orixás. Nos primeiros textos, ficam claros os esforços de forjar um pretenso espírito de

unidade entre os segmentos cristãos, em específico com a igreja Católica, dada sua histórica

relação política e seu decorrente prestígio social. Através deste artifício, desviavam a atenção

de seus detratores de suas reais motivações de evitar, a todo custo, a exposição. Estas

motivações, decorrentes diretamente do imaginário da Batalha Espiritual, ficariam explícitas

no artigo publicado pela pastora Sandra Cardoso, que pode ser entendido como um desabafo à

comunidade goianiense. Apresentaremos e teceremos alguns comentários sobre o artigo da

pastora no final deste capítulo.

Antes da inauguração da exposição, mediante a simples observação da montagem das

estátuas e ao ouvirem os boatos que começavam a fervilhar nos púlpitos das igrejas, os

goianienses, que praticavam Cooper ou footing no calçadão que rodeia o parque Vaca Brava,

157

já iniciavam uma resistência diluída nos murmúrios dos transeuntes. Conforme publicado no

DM do dia 18 de novembro de 2003,

O bancário Gilmar César, 45, não gostou do que viu ao fazer sua corrida

ontem à tarde. Ele disse que a exposição o incomoda muito, pois confronta

com sua religião (ele é evangélico). “A data não é apropriada para este tipo

de crendice; estamos perto do Natal”, justifica. Helyenai de Castro, 18,

atendente, disse que a exposição seria um tipo de imposição da cultura

negra, e que isso aumenta mais ainda a diferença entre raças. “Isso é

assustador. É nítido que estas imagens representam a religião do candomblé,

e não a cultura africana”, acredita ela, que também é evangélica (VIANA,

Ludmila. Orixás polêmicos no Vaca Brava. Diário da Manhã, Goiânia, 18

nov. 2003. Cidades, p. 01).

Temos aqui as primeiras manifestações contrárias à exposição, defendidas por

evangélico-pentecostais. Nelas já estão contidos os protótipos dos dois argumentos que iriam

encobrir as suas motivações identitárias (Batalha Espiritual) para oporem-se às representações

dos Orixás: a proximidade do Natal – festa de cunho cristão, o que delimitaria qualquer

manifestação festiva aos símbolos cristãos somente – e a confusão conceitual – decorrente das

lentes identitárias – que dotaram os evangélico-pentecostais de uma visão que igualava

completamente manifestações culturais e manifestações religiosas.

Se esses evangélicos postaram-se contrários à exposição por iniciativa própria ou

foram instruídos por seus líderes acerca do perigo espiritual que se escondia naquelas

imagens, não saberíamos precisar. Entretanto, cremos ser importante reconhecer nesta postura

de unanimidade ao combater a exposição os indícios da ação dos mecanismos simbólicos do

arcabouço identitário evangélico-pentecostal. Não podemos precisar quais seriam as

denominações as quais pertenciam o senhor Gilmar César ou a senhorita Helyenai de Castro,

mas, sua prontidão em oporem-se à exposição coaduna com a rapidez com a qual foram

levadas a cabo todas as providências midiáticas e políticas da comunidade evangélico-

pentecostal goianiense para suspender o “absurdo” da exposição.

Na mesma publicação do DM, em uma página seguinte, tem-se a postura da igreja

católica revelada no argumento do monge beneditino Marcelo Barros, o artigo é de Nilo

Bueno.

“No mundo de hoje, repleto de violências, é fundamental que as religiões

respeitem umas às outras e permitam que cada uma tenha o direito de existir

e ser diferente”, com essa declaração, o monge beneditino Marcelo Barros

defendeu, como forma de expressão religiosa e cultural, a exposição Orixás

da Bahia, do artista plástico Tatti Moreno, e que será inaugurada quinta-

feira, no Parque Vaca Brava. Desde domingo, quem passa pelo parque já

pode ver algumas das esculturas, que já estão sendo montadas (VIANA,

158

Ludmila. “Crenças têm que ser respeitadas”. Diário da Manhã, Goiânia, 18

nov. 2003. Cidades, p. 01).

Ao menos publicamente, a igreja Católica não tomou parte nas ações de contestação à

exposição. No Episódio Vaca Brava, sua voz seria ouvida apenas a certa distância segura,

num tom de gravidade respeitosa às religiões de matriz africana. Salvaguardava assim seus

interesses ao mesmo tempo em que desaprovava os evangélicos indiretamente através de seu

exemplo e sua postura ‘ecumênica’.

Transcrevemos adiante uma passagem da pesquisa de Carneiro (2004), na qual

resume, em alguns pontos, a posição católica perante as doutrinas “afro-brasileiras”

encontradas no livro do Frei Kloppenburg (1981). Nosso objetivo é colocar em perspectiva a

argumentação do monge.

1. “Não fomentar relações de amizade e de freqüente contato com adeptos de

seitas espiritualistas. O proselitismo que os anima é perigoso de contágio”.

2. “Não ajudar Centros ou Terreiros na manutenção material, financeira ou

moral de suas obras: Seria pecado de aprovação e cooperação com o mal”.

3. “Jamais e sob pretexto algum, mesmo em caso de doença, praticar magia,

evocação de espíritos ou consultar curandeiros, cartomantes ou pessoas

semelhantes: Seria sempre pecado grave de desobediência e revolta contra

Deus”.

4. “Rejeitar sempre a tentação de recorrer a despachos, passes, defumações ou

outros exóticos ‘remédios’: Seria pecado de Demonolatria”.

5. “Não pactuar, sob pretexto nenhum, nem para ‘fazer a caridade’, com o

demônio ou qualquer outro exu: Seria sempre grave pecado de

demonolatria”.

6. “Não fazer uso de meios supersticiosos, como figas, ferraduras, amuletos e

etc: Seria também dissimulado culto a Satanás” (KLOPPENBURG Apud

CARNEIRO, 2004).

Diante desses argumentos e sabendo que o livro de Kloppenburg recebeu o aval da

igreja Católica para ser publicado, perguntamo-nos sobre quais seriam as inclinações veladas

da igreja católica para não se opor à exposição. Como o presente estudo, todavia, não visa

perscrutar o íntimo das ações de católicos pautadas em sua identidade, deixamos os pontos

acima apresentados para que não se incorra no equívoco de se supor uma igreja que detivesse

uma visão mais “civilizada” em relação às evangélico-pentecostais, “bárbaras” em suas ações.

No caso, se ficarmos apenas com as palavras do monge Marcelo Barros, poderíamos pensar

daquela forma, acreditando que a igreja Católica seja essencialmente “melhor” do que as

evangélicas. O fato é que, no Episódio Vaca Brava, a igreja Católica desempenhou um papel

de espectadora, vez por outra se manifestando contra os evangélicos.

Em 19 de novembro foi publicado o artigo que se segue, de autoria de Ludmila Viana:

159

Cresce a polêmica em torno dos orixás expostos no Parque Vaca Brava. O

pastor Fábio Sousa, líder dos jovens do Ministério Comunidade Cristã,

organizou para hoje, às 18 horas, uma passeata no local, segundo ele, contra

suposta discriminação em relação às demais religiões. “A convocação é para

todos que estão sendo discriminados, independente da religião”, observa. O

pastor disse que os evangélicos estão insatisfeitos com as esculturas por elas

representarem deuses do candomblé. “Foi algo imposto. É uma idéia absurda

fazer esta exposição perto do Natal”. Por ser o Natal uma festa cristã, Fábio

Sousa acredita que deveriam ser expostos presépios e enfeites natalinos. Os

católicos já não assumem posição tão radical. De acordo com o padre Luiz

Lobo, da Catedral Metropolitana de Goiânia, o cristão tem de saber conviver

com outras realidades religiosas. “Não podemos condenar que outras

religiões ou expressões culturais tenham espaço. A cultura africana tem de

ser respeitada”, afirma (VIANA, Ludmila. Evangélicos não querem orixás.

Diário da Manhã, Goiânia, 19 nov. 2003. Cidades, p. 01).

Aqui, pode-se observar os dois argumentos chave utilizados na contestação da

exposição aparecendo simultaneamente. Esses simulam uma postura cidadã, posto que lançam

mão de um discurso pretensamente fundado em direitos, se não constitucionais, ao menos

consuetudinários, ou seja, fundados no consenso da tradição. É interessante notar que o pastor

Fábio Souza chega a defender a idéia de serem expostos presépios como enfeites. Uma das

características dos evangélico-pentecostais é sua aversão às imagens, sua teologia iconoclasta.

Sustentam tal postura baseados em várias passagens bíblicas e em sua tradição protestante

pentecostal. Citamos uma passagem bíblica para facilitar a compreensão sobre a literalidade

com a qual os evangélico-pentecostais interpretam o texto sagrado, versículo um do capítulo

vinte e seis do livro de Levítico, no Velho Testamento: “Não fareis para vós outros ídolos,

nem vos levantareis imagem de escultura, nem coluna, nem poreis pedras com figuras na

vossa terra, para vos inclinardes à ela; porque eu sou o Senhor, vosso Deus” (BÍBLIA de

Estudos Plenitude, 2001: 137). É muito revelador o desejo do pastor Fábio Souza de se

instalar presépios no lugar de estátuas de Orixás, pois vai de encontro a sua crença basilar de

repúdio às imagens.

Por que, então, trocar imagens de Orixá por imagens católicas? Porque os evangélicos

definem certo tipo de gradação de periculosidade espiritual a ser aplicada àqueles que não

compartilham com sua visão de mundo. Deste modo, um católico seria menos herético que

um espírita kardecista o qual, por sua vez, representa menor perigo ante a presença de um

reconhecido “macumbeiro”, seja umbandista ou candomblecista. Os símbolos litúrgicos do

catolicismo, por seu parentesco simbólico com os dos cultos evangélicos, são tidos como

menos malignos dentro de seu imaginário social. Podemos dizer que o pastor Fábio Souza

seguia a lógica do adágio popular “dos males, o menor”.

160

Para exemplificar esta gradação de periculosidade espiritual, analisemos rapidamente

o sentimento de familiaridade em relação ao catolicismo em escritos produzidos por

evangélicos. Segundo Elben M. Lenz César, em sua obra História da Evangelização do Brasil

(2000),

Grosso modo, é possível dividir a história da evangelização do Brasil em três

períodos distintos e naturais: nos séculos XVI, XVII e XVIII, os

missionários católicos cristianizaram o país; no século XIX, os missionários

protestantes evangelizaram o país; e, no século XX, os missionários

pentecostais pentecostalizaram o país (com o auxílio dos carismáticos

católicos). No início ocorreu a pré-evangelização, no século seguinte, a

evangelização propriamente dita e no último século, a pós-evangelização.

Em todo o mundo, o século XVI foi o grande século missionário católico, o

século XIX, o grande século missionário protestante e o século XX, o grande

século pentecostal (CÉSAR, 2000: 14-15. Grifos do autor).

O livro de César não possui caráter acadêmico, como o próprio autor nos faz saber no

início da obra. Deste modo, realizemos a leitura do trecho apresentado mediante o

conhecimento que se trata de um livro escrito por um evangélico, para evangélicos. Sua

mensagem é clara: os católicos tiveram um papel importante na cristianização do Brasil,

foram eles que prepararam o terreno para a chegada da “verdadeira” mensagem da salvação, a

mensagem evangélico-pentecostal. A primeira mensagem católica seria insuficiente para

formar um verdadeiro cristão, pois, como nos relata César (2000), entre os católicos,

Não havia vocação, não havia preparo e não havia moral. O clérigo era um

funcionário eclesiástico, sem preocupação com a evangelização, catequese e

conversão do povo. O sacerdócio era um meio de vida. Não podendo se

casar por causa da lei do celibato obrigatório, o sacerdote simplesmente se

juntava com uma escrava. Às vezes não havia falta de padres – o que faltava

era a santidade do ministro (CÉSAR, 2000: 56).

Na ótica de César, esse quadro iria mudar com a chegada de missionários protestantes

no século XIX: cristãos genuínos. O Brasil só poderia chegar à maturidade da fé com a

chegada dos primeiros pentecostais no início do século XX, estes sim cristãos completos.

Novamente, voltando nossa atenção ao artigo do DM, o discurso católico aparece

como apaziguador na figura do padre Luiz Lobo, da Catedral Metropolitana de Goiânia.

Reconhecendo o caráter cultural das manifestações artísticas inspiradas nos Orixás, o padre

não vê impedimento legal ou religioso à exposição. Cientes da fragilidade de sua

argumentação anterior e do comprometimento político que agora se instaurava – com uma

manifestação pública de repúdio convocada pelo pastor Fábio Souza –, a chamada “bancada

evangélica” se manifestou abertamente contrária aos Orixás, porém, usando de outros

161

argumentos, como foi publicado no DM do dia 20 de novembro, com artigo de autoria de

Fernanda Pulcineli.

[…] Também evangélicos, Bispo Walter Inácio (PL) e Lívio Luciano (PTN)

criticam a exposição, mas têm outro argumento: de que houve impedimentos

da Prefeitura de Goiânia a atos de suas igrejas no parque. “A liberdade de

culto deve ser garantida, mas nos sentimos discriminados porque não nos

deram o mesmo espaço”, diz o bispo. Membro da Igreja Universal do Reino

de Deus, ele conta que a Videira tentou realizar o “Batismo dos 3 mil” no

local e foi proibida pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma)

(PULCINELI, Fabiana. Polêmica na Assembléia: evangélicos protestam

contra exposição no Parque Vaca Brava. Diário da Manhã, Goiânia, 20

nov. 2003. Política, p. 05).

A tese defendida pelos políticos evangélicos era a manutenção equitativa da liberdade

de culto, liberdade esta que não havia sido respeitada na medida em que se liberava o espaço

público do parque para uma religião e não para outra. Este argumento é um desdobramento

daquele anterior, que via nas estátuas, não um artefato artístico, mas, antes, uma manifestação

religiosa. É pertinente, neste momento, apresentar um breve histórico destas estátuas.

Partindo da dissertação de Bruno M. N. Reinhardt, Espelho Ante Espelho: A Troca e a

Guerra Entre o Neopentecostalismo e os Cultos Afro-Brasileiros em Salvador (2006), que

trabalha o embate da IURD contra o Candomblé em Salvador, encontramos uma primorosa

análise da questão do Tororó, um parque lacustre análogo ao Vaca Brava goianiense, primeira

morada das estátuas.

Relatando a história do Dique do Tororó, Reinhardt conclui que, em 1998, além de ser

recuperado pela prefeitura da cidade, nele foram instaladas as estátuas de doze Orixás,

No entanto, junto com os Orixás, também se instala uma polêmica, que se vê

ampliada com a organização, por parte de setores do segmento evangélico,

de uma série de manifestações contrárias à sua permanência naquele lugar.

Esse debate, rapidamente disseminado pela opinião pública, realizou-se

através de dois argumentos centrais. Por um lado, ocorre uma série de

passeatas, críticas publicadas em jornais e medidas políticas, como a

mobilização de vereadores evangélicos, que se colocam contra as imagens

por verem nelas um acinte à “liberdade de crença”. Por outro lado, e dando

um tom mais mágico e jurídico ao debate, começam uma série de rumores

referentes aos poderes diabólicos daquelas representações, cuja presença

teria transformado o dique em um lugar dominado pelo mal (REINHARDT,

2006).

As imagens dos Orixás já traziam consigo toda uma vivência de perseguição desde seu

berço, em Salvador. A postura dos políticos goianienses foi análoga àquela assumida pelos

políticos soteropolitanos. Um posicionamento que parte de uma cabal confusão entre cultura e

religião. Segundo Scaramal (2007), no panteão nagô não se adoram imagens, posto que os

162

Orixás sejam forças da natureza. Tais forças estão materializadas em elementos que

representam cada Orixá e são recolhidas em um recipiente denominado igbá. Assim, se o

orixá a ser “assentado” é, por exemplo, Iemanjá, os elementos que comporão o igbá serão

conchas marinhas, pedras transparentes, seixos e sangue dos animais oferendados ao Orixá.

Este igbá não é uma representação, é uma materialização de Iemanjá. É a ele que o adepto do

candomblé prestará homenagens, reverências, preces e obrigações, e não à imagem em

quadros ou estátuas.

Para Scaramal (2007), a imagem popularizada de Iemanjá como mulher alta, magra,

branca, pairando sobre as águas do mar, não corresponde absolutamente à Iemanjá do

Candomblé. A referida imagem pode até ser encontrada para adoração em altares da

Umbanda, mas nunca no Candomblé, posto que, conforme afirmado anteriormente, no

candomblé não há o culto de adoração a imagens. Portanto, as estátuas dos orixás eram

compreendidas pelos candomblecistas e umbandistas como nada mais do que representações

artísticas, despossuídas de axé – a força primordial que move o mundo mágico dos nagôs.

Ou seja, se fossem realmente conhecidos os fundamentos das religiões de matriz

africana e os fundamentos das religiões afro-brasileiras, não teriam, os evangélico-

pentecostais, confundido estátuas de puro valor artístico, inspiradas no panteão nagô, com

objetos de culto do Candomblé. Cremos que este tipo de confusão tenderá a deixar de existir à

medida que a disciplina história da África avance nas escolas brasileiras com a

implementação da lei 10.639/2003 modificada pela lei 11.645/2008.

O equívoco conceitual que reduziu o conceito de cultura ao de religião, equívoco este

incorrido pelos fieis seguidores do crucificado, decorre do fato de julgarem a remanescente

cultura imaterial africana filtrada por meio de suas representações coletivas. Tal filtro faz com

que a cataloguem dentro de seu imaginário próprio como efetivamente diabólicas. Temos,

ainda no DM do dia 20, a publicação das seguintes palavras do pastor Fábio Sousa que ainda

ecoam o equívoco conceitual, por Renata Barros.

Segundo o representante do movimento, pastor Fábio Sousa, do Ministério

Comunidade Cristã, os orixás estão ofendendo e discriminando os cristãos.

“Essas peças incitam à violência. O espaço aqui nunca foi liberado para

nós”, reclamou. Com o fim do manifesto, o pastor César Augusto, também

do Ministério Comunidade Cristã, disse que as igrejas voltarão a se

manifestar na segunda-feira. “Acho que cada religião deveria poder

manifestar sua liberdade já que estamos em um País democrático”

(BARROS, Renata. Religiosos à beira de confronto. Diário da Manhã,

Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).

163

Exemplificando o profundo desconhecimento da cosmogonia das religiões de matriz

africana e os fundamentos das religiões afro-brasileiras, o pastor César Augusto, como

articulista do DM às quintas-feiras, teve espaço para fazer publicar suas seguintes palavras:

Estamos vivendo em um País livre. Alcançamos um nível satisfatório de

liberdade de opinião e de expressão. Mas vale lembrar o alto preço que foi

pago para que pudéssemos desfrutar disso hoje. Expressamos livremente

nosso pensamento e nossos valores pessoais por causa das lágrimas

derramadas por nossos pais e pela luta que as gerações passadas tiveram que

travar para alcançar tal posição de liberdade. A luta contra a ditadura não se

deu só no âmbito político. Nossos valentes irmãos brasileiros lutaram

também para que seus filhos pudessem ser livres para professarem sua fé

religiosa e para poderem livremente emitir suas opiniões. Mas o preço pago

teve suas conquistas. A democracia foi consolidada e o Brasil, com isso,

alcançou a legitimação de sua multidiversidade cultural e religiosa. O Brasil

é o país dos católicos, dos evangélicos, dos afro-religiosos, dos espíritas, dos

esotéricos. Acredito não existir um país com tanta diversidade cultural

religiosa. Vejo também que não existe outra nação onde a população conviva

tão harmoniosamente com as diferenças. O brasileiro convive bem com seus

irmãos de qualquer religião. Podem haver algumas críticas de um sistema

religioso contra o outro, mas o cidadão brasileiro coloca essas diferenças

sempre em segundo plano. Basta ser brasileiro. Por causa desse sentimento

de igualdade democrática que sabemos existir no Brasil, em Goiás e em

Goiânia, é que ficamos indignados com a exposição dos monumentos aos

orixás no Parque Vaca Brava. Não criticamos de forma alguma as religiões

afro-brasileiras que professam culto a estas entidades. O nosso repúdio é

contra a discriminação que os católicos, espíritas kardecistas, evangélicos,

budistas e islâmicos estão sofrendo de forma indireta com a colocação das

estátuas no parque. Um local público não deve ser palco de uma

representação cultural que expresse a identidade religiosa de apenas uma

parcela de nossa sociedade. Até porque a época é de comemoração da festa

mais importante do mundo cristão: o Natal. Não estamos aqui para

polemizar a questão, mas para aproveitar o momento para discutir nossos

conceitos culturais. A cultura afro-religiosa sempre foi bem vista pelos

intelectuais como uma das maiores representantes da cultura brasileira. Mas

o que os intelectuais esquecem de considerar é que a cultura é feita, em

primeiro lugar, de manifestações que nascem na alma popular. Ora, a cultura

nasce no coração do povo; o que será que nossa cidade queria ver exposto no

Parque Vaca Brava neste fim de ano? O que está no coração dos

goianienses? Culturalmente, os orixás não são manifestações genuinamente

goianas. Nossa goianidade está nas cavalgadas, nas folias de reis, na festa

do divino pai eterno, na procissão do fogaréu, nas catiras. Nossa história

cultural não recebeu grande influência da cultura afro-religiosa, como, de

forma clara e evidente, podemos notar em outros Estados como a Bahia, por

exemplo. Também é preciso lembrar aos intelectuais da cultura que do ponto

de vista religioso, Goiânia é uma cidade radicalmente cristã. A maioria é

católica e expressivos 30% da população, segundo o último censo do IBGE,

professam religiões evangélicas. Nosso povo não foi consultado se queria ou

não receber a exposição a que estamos nos referindo. Que atitudes como esta

não venham a manchar nossos padrões de liberdade de expressão e opinião,

que, como já citamos, foi conquistado com lágrimas e muita luta. Fica aqui a

pergunta: o que será que o coração do povo goiano gostaria que estivesse no

lugar daqueles orixás? (MACHADO, César Augusto. Diga não à

164

discriminação cultural. Diário da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política,

p. 05).

O conteúdo desta carta é rico em elementos interessantes para análise, ainda mais por

se tratar de uma comunicação redigida pelo líder máximo do Ministério Fonte da Vida,

segmento evangélico que conta com uma das maiores membresias de Goiânia.

Acompanhando as passagens por nós marcadas em itálico, podemos depreender do texto

elementos que demonstram que o pastor se inscreve nos efetivos da Batalha Espiritual.

O pastor César Augusto, eufemisticamente, designa a Batalha Espiritual empreendida

contra as religiões de matriz africana como sendo, de fato, algumas críticas de um sistema

religioso contra o outro. Estas “críticas”, no entanto, possibilitaram a reunião, no dia 19, de

cerca de quinhentas pessoas, segundo o DM, que não davam mostras de vivenciarem o tal

“sentimento de igualdade democrática”, tão caro ao pastor. Em segundo lugar, o pastor julga

amenizar a situação produzida pela perseguição ao fazer menção a uma suposta “brasilidade”,

evocada na referência à designação “cidadão brasileiro” como um ponto chave por meio do

qual as tensões produzidas pela perseguição àqueles que não são evangélicos seriam reduzidas

a pequenas querelas entre irmãos que dividem o mesmo teto. A linha argumentativa do pastor

pretende urdir as motivações espirituais para resistir à exposição dos Orixás.

Adiante em seu texto, César Augusto continua por sustentar uma postura conceitual-

teológica que mescla cultura e religião ao defender que “um local público não deve ser palco

de uma representação cultural que expresse a identidade religiosa de apenas uma parcela de

nossa sociedade”. Uma coisa é o sistema teológico das religiões de matriz africana, outra

completamente diversa é a metafísica desenvolvida pelas sociedades africanas que levavam

em consideração elementos valorativos que se fundavam, em muitos casos, em características

e virtudes vinculadas a imagem conceitual de um Orixá, Vodum ou Inquice: deuses e

divindades arquetípicas presentes no dia-a-dia dos indivíduos.

Como estudar a antiga política dos gregos clássicos sem entender quais eram as leis e

relações que fundamentavam o trato entre Zeus e os outros deuses do panteão grego? Não

eram estas relações, pois, metáforas possíveis, pontes e chaves para compreensão do mundo

dos próprios homens gregos de outrora? Da mesma forma, o conhecimento dos Orixás não se

reduz a um estudo fracionado dos homens africanos. Pelo contrário, o Orixá configura-se num

canal discursivo que dá acesso a distintas dimensionalidades da vida antes da diáspora negra.

Como compreendiam as relações com seu meio ambiente e com os outros homens nos níveis

econômico, territorial, religioso, são apenas alguns exemplos da versatilidade do Orixá como

chave de compreensão do mundo africano (iorubá) anterior e posterior a diáspora. Ou seja,

165

reduzir a idéia de um Orixá a uma realização apenas religiosa é cometer um erro crasso, fruto

da incompreensão histórica que sofreram as populações africanas e afro-descendentes no

Brasil.

As estátuas dos Orixás expostas em Goiânia, assim, indicavam uma realidade muito

superior à apenas uma dimensão religiosa. Elas assinalavam o mais alto grau de abstração

lógica, como, também, mito-poética, alcançada por impérios e reinos africanos pré-diáspora.

César Augusto aparentemente não compreendia isso, pois, seu julgamento, limitado e guiado

pelas arestas do arcabouço identitário evangélico-pentecostal, não poderia aceitar

passivamente o avanço do “Reino das Trevas” em território público. A Batalha Espiritual,

mesmo que dissimulada em argumentos terrenos, não deixa de prover sentido à vida do

verdadeiro cristão.

Um último ponto no texto de César Augusto,

Culturalmente, os orixás não são manifestações genuinamente goianas.

Nossa goianidade está nas cavalgadas, nas folias de reis, na festa do divino

pai eterno, na procissão do fogaréu, nas catiras. Nossa história cultural não

recebeu grande influência da cultura afro-religiosa, como, de forma clara e

evidente, podemos notar em outros Estados como a Bahia, por exemplo

(MACHADO, César Augusto. Diga não à discriminação cultural. Diário

da Manhã, Goiânia, 20 nov. 2003. Política, p. 05).

O que podemos então dizer do fato de, historicamente, só existirem apenas três

irmandades de negros no Brasil, uma em Salvador, outra em Paracatu e outra em Goiás: a

irmandade de Nossa Senhora dos Pretos? Ou então, o que dizer da ancestralidade de nossa

Congada? E quanto às comunidades quilombolas goianas, remanescentes do tempo dos

grilhões e da chibata? Podemos fazer menção, ainda, à Cidade de Goiás, erigida por músculos

e inventividade negra. O que dizer ante tais elementos elencados? Nossa “goianidade” não

possui elementos derivados da “cultura afro-religiosa”? Definitivamente a resposta será

negativa se escolhermos quais elementos culturais iremos utilizar para defender uma idéia

preconceituosa. Não, se realizarmos uma “eugenia histórica” com o intuito de menosprezar a

presença dos segmentos negros. Mas se com probidade e respeito nos voltamos para a história

do Estado de Goiás, vemos claramente quão presentes estiveram e estão os homens e

mulheres negros na constituição do modo de ser, rezar, comer e falar do povo goiano.

Em continuidade, apresentamos e discutimos dois textos publicados no dia vinte e um

de novembro de 2003.

Pastores vão ao prefeito, de autoria de Ludmila Viana.

166

A exposição Orixás da Bahia, do escultor baiano Tatti Moreno, que foi

inaugurada ontem, dia da Consciência Negra, no Parque Vaca Brava,

continua a gerar polêmica. Vinte pastores evangélicos marcaram para

segunda-feira, às 17 horas, uma reunião com o prefeito Pedro Wilson. O

objetivo, segundo o pastor Fábio Sousa, do Ministério Comunidade Cristã, é

que as obras de arte sejam retiradas do local: “Queremos que as retirem de

lá, ou que haja representação de todas as religiões.” Fábio foi o organizador

da manifestação contra as esculturas, ocorrida anteontem, e que levou cerca

de 500 pessoas ao parque. Para ele, as esculturas representam o candomblé e

afirma que nem todos os negros são desta religião, pois há pastores negros

também. “Estão querendo impor uma religião aos afro-brasileiros e a todos

os goianienses, e isto não pode existir.” O pastor Jocíder Corrêa Batista, da

Igreja Presbiteriana da Vila Nova, não acredita que os evangélicos estejam

sendo racistas, por se tratar de uma discussão claramente religiosa. “Sou

contra a utilização de terreno público para privilegiar o candomblé”, afirma.

(...) Jocíder pensa que a cultura afro poderia ser divulgada de outra forma,

como por meio de museus. Ele reforça que está havendo propaganda da

religião, o que abre precedente para as demais se manifestarem. “Não

rejeitamos a cultura negra, mas a proposta religiosa do culto afro.” Exagero

– O monsenhor João Daiber, vigário-geral da Arquidiocese de Goiânia, diz

que é preciso viver o respeito entre as religiões. Ele não vê necessidade de as

esculturas serem retiradas do Vaca Brava. “Há exagero, pois os orixás

representam uma cultura.” Daiber questiona o motivo dos evangélicos

estarem tão incomodados com as esculturas: “E os presépios? Todo Natal há

esse tipo de imagem no parque e eles nunca se manifestaram contra.” O

presidente da Federação Espírita do Estado de Goiás, Weimar Muniz,

também não acha que os orixás devam ser retirados do local. “Temos que

respeitar nossos semelhantes, sobretudo no campo religioso, embora

pensemos de formas diferentes”, afirma. E acrescenta: “Não se pode

esquecer que a liberdade religiosa é garantida pela Constituição federal.

Cada um deverá responder pelos atos ilícitos que praticar.” O sacerdote da

Casa Alan Buru (do candomblé), Elmo Rocha, se diz assustado com o

retrocesso histórico em questão. “É alienação racista, com elementos

preconceituosos. É uma forma de instigar uma guerra santa.” Ele ressalta o

caráter cultural da exposição e a importância de se valorizar a etnia negra. “É

muita falta de informação e de cultura por parte dos evangélicos que querem

a retirada dos orixás”, revolta-se (VIANA, Ludmila. Pastores vão ao

prefeito. Diário da Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Cidades, p. 06).

Inauguração de orixás sem a presença de Pedro Wilson, de autoria de Ivair Lima.

O prefeito Pedro Wilson não compareceu ao Parque Vaca Brava na noite de

ontem para a esperada inauguração formal da exposição das estátuas de oito

orixás criadas pelo artista plástico baiano Tatti Moreno. O autor das

esculturas, assessores de Pedro Wilson, artistas e representantes de entidades

que integram o movimento negro em Goiás lotaram o mirante do Parque

Vaca Brava. As luzes que iluminam os orixás foram acesas, sob aplausos, às

20h30. A colocação das estátuas dos deuses africanos no lago do Parque

Vaca Brava continua gerando discussões. O casal de comerciantes João

Pedro, 49, e Luzia de Fátima, 44, criticaram duramente a exposição. “Para

mim, isso não significa nada. Ouvi no rádio que custou 60 mil reais. Seria

muito melhor comprar comida para as crianças”, afirmou João Pedro. Luzia,

que é católica, disse que a exposição “não combina com a decoracão de

Natal e não tem nada a ver.” A artista plástica Luciane Ucella, 29, achou as

167

estátuas “lindas demais” e foi de máquina fotográfica em punho registrar as

imagens iluminadas. “Vi durante o dia e gostei demais”, disse. Para Luciane

Ucella, “quem critica a exposição não entende que, mais do que representar

uma religião, elas são símbolos da cultura de um povo” (LIMA, Ivair.

Inauguração de Orixás sem a presença de Pedro Wilson. Diário da

Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02).

O primeiro texto nos informa uma reordenação do “campo de batalha”. Percebe-se que

os evangélicos instavam com os mesmos argumentos pretensamente cidadãos já apresentados

anteriormente, argumentos cuja força retórica não se mostrou muito convincente, dada a não

suspensão da exposição. Os católicos continuavam em sua posição de afastamento respeitoso.

Nota-se que monsenhor João Daiber, vigário-geral da Arquidiocese de Goiânia, levanta a

razão da não contestação, por parte dos evangélicos, contra os presépios que todos os anos

eram expostos no parque. Sua tendência iconoclasta foi posta à prova por um dos mais

clássicos instrumentos do Inimigo Espiritual, os católicos, que, não sem certa ironia, jogava

com as contradições do discurso evangélico-pentecostal.

O presidente da Federação Espírita do Estado de Goiás, Weimar Muniz, também

sustentava uma postura contrária à dos evangélicos, enquanto o sacerdote da Casa Alan Buru

(de Candomblé), Elmo Rocha, estava pasmo diante de tamanha incompreensão e perseguição.

O segundo texto é especialmente significativo. Nele estão contidos os

posicionamentos de duas pessoas que partilhavam da postura de boa parte da membresia

católica. Apresento novamente seus depoimentos:

O casal de comerciantes João Pedro, 49, e Luzia de Fátima, 44, criticaram

duramente a exposição. “Para mim, isso não significa nada. Ouvi no rádio

que custou 60 mil reais. Seria muito melhor comprar comida para as

crianças”, afirmou João Pedro. Luzia, que é católica, disse que a exposição

“não combina com a decoração de Natal e não tem nada a ver” (LIMA, Ivair.

Inauguração de Orixás sem a presença de Pedro Wilson. Diário da

Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02).

Destoando de seus líderes, boa parte dos católicos, ou não se interessava pelos

assuntos entre “crentes” e “macumbeiros”, ou não levava em consideração os valores artístico

e humano embutidos nas estátuas. Não compreendiam que tal exposição objetivava a

valorização de um segmento historicamente subalternizado na sociedade brasileira. Seus

comentários são indicativos deste descaso. Conforme escreveu Renato Russo, “é o descaso

que condena”. O poeta entendeu que uma das características do “homem cordial brasileiro”,

nos termos como o concebe Sérgio Buarque de Holanda (1995), é sê-lo – atuar cordialmente –

apenas na aparência, tratando com leviandade seu outro.

168

Agora, quanto à questão política que esteve fortemente presente durante todo o

decurso do Episódio Vaca Brava, não teremos meios para empreender um aprofundamento

mais comprometido. Deixaremos este trabalho para uma obra posterior. Aqui, nos

contentaremos em apresentar as conseqüências políticas para Pedro Wilson (PT).

“O prefeito Pedro Wilson não compareceu ao Parque Vaca Brava na noite de ontem

para a esperada inauguração formal da exposição das estátuas de oito orixás criadas pelo

artista plástico baiano Tatti Moreno” (LIMA, Ivair. Inauguração de Orixás sem a presença

de Pedro Wilson. Diário da Manhã, Goiânia, 21 nov. 2003. Última Hora, p. 02). Pressionado

pela postura marcial dos evangélicos, o então prefeito de Goiânia, Pedro Wilson, preferiu não

comparecer à inauguração da exposição. No DM do dia seis de janeiro de 2004 foi publicado

um artigo de Neilton Gomes Carneiro contendo as seguintes palavras:

Veja só o leitor como a política nos surpreende. O prefeito Pedro Wilson

continua candidato forte à reeleição, mas perdeu pontos com a cúpula dos

partidos porque algumas pesquisas apontam rejeição alta, aprovação baixa e

conceito ruim. Deixou, por enquanto, de ser a noiva da vez. Os caciques

ficaram de orelha em pé com os últimos levantamentos e querem sondar

melhor o inconsciente popular para saber a extensão dos estragos

provocados na imagem do prefeito pela crise no transporte, pela lentidão do

governo e pela exposição dos orixás no Parque Vaca Brava. Pesquisa

encomendada por petistas revela que Pedro perde intenção de votos desde

que resolveu peitar os evangélicos e manter a exposição, sob o argumento de

que os orixás eram uma manifestação cultural, não religiosa (CARNEIRO,

Neilton Gomes. Veja só como é a política. Diário da Manhã, Goiânia, 06

jan. 2003. Política, p. 04).

Tempos mais tarde, lutando para elevar sua imagem durante a campanha à reeleição,

Pedro Wilson tentou uma aproximação estratégica dos evangélicos. É importante ressaltar que

seu concorrente para o segundo turno foi o evangélico Íris Rezende (PMDB). Como nos relata

o DM do dia dezenove de outubro de 2004, não pudemos precisar o autor do artigo:

O diálogo a que Pedro se propõe envolve até mesmo o segmento evangélico,

que deve receber pedido de desculpas no próximo sábado, em um showmício

a ser realizado em local ainda não definido. O comando da campanha do

petista traz a Goiânia o grupo musical Diante do Trono, cujo talento é

reconhecido nacionalmente. No palanque, o prefeito pretende se desculpar

por ter permitido a exposição de esculturas de orixás – símbolos do

candomblé – no Parque Vaca Brava em novembro do ano passado. O fato

gerou polêmica e no seu discurso, Pedro deve dizer que em sua próxima

gestão, caso eleito, episódios semelhantes não irão ocorrer, visto que haverá

consulta prévias à diversas entidades. A estratégia também visa buscar votos

dos fiéis, que simpatizam com Iris Rezende, também evangélico

(MARQUES, Thiago. Diálogo aberto. Diário da Manhã, Goiânia, 19 out.

2004. Política, p. 05).

169

Não podemos afirmar com exatidão a extensão dos “estragos” causados pelo Episódio

Vaca Brava sobre a imagem do prefeito, porém, é fato que ele não saiu vitorioso no embate

eleitoral. O evangélico Íris Rezende venceu nas urnas. No dia 26 de outubro, dias antes da

eleição, quando o segundo turno seria decidido, o pastor César Augusto teve, como articulista

do DM, espaço para publicar um artigo intitulado: “Deus não vota, mas...”. Como podemos

perceber apenas pelo título, o texto é bem significativo. O pastor interpretava a ascensão de

Íris Rezende em detrimento de Pedro Wilson como diretamente ligada à sua postura

permissiva acerca da exposição.

Voltemos nossa atenção para o texto da pastora Sandra Cardoso Miranda, publicado

no jornal Diário da Manhã no dia 22 de novembro de 2003, cujo título é O Sentido da Cultura

e o Fundamento Espiritual. A pastora da Igreja da Paz da Serrinha, em seu artigo, realizou

plenamente a identidade evangélico-pentecostal ao expor as motivações espirituais para barrar

a exposição dos Orixás: a Batalha Espiritual. Acompanhando sua argumentação podemos

pontuar os momentos onde o imaginário social evangélico-pentecostal irrompe, obliterando o

discurso da cidadã Sandra Cardoso. O texto que se segue foi produzido como uma resposta à

comunidade goianiense que não aprovava a ação de perseguição empreendida pelos

evangélicos à exposição dos Orixás no lago Vaca Brava.

A oposição dos evangélicos quanto à exposição dos “Orixás da Bahia”, do

escultor baiano Tatti Moreno, no Parque Vaca Brava, tem um fundamento

espiritual que merece ser explicado à população e principalmente ao

secretário Municipal de Cultura e Turismo, Sandro di Lima. Segundo o

secretário, “a amostra dos mitos da cultura africana tem caráter puramente

artístico e cultural e a tolerância é uma virtude de paz que deve ser

cultivada”. Pois bem, como cidadãos, compreendemos perfeitamente o

direito à liberdade de culto, mas como evangélicos, entendemos que esta

exposição, além do seu significado natural (artístico e cultural), tem também

uma influência espiritual por trás. A palavra cultura tem como significado

básico a formação do homem: práticas, teorias, valores espirituais e

materiais. O produto dessa formação constitui o conjunto dos modos de

viver e de pensar cultivados. Podemos dizer então que toda cultura tem como

pano de fundo a religião e os costumes espirituais cultivados pelos diferentes

povos. O candomblé significa um culto africano pagão trazido para a Bahia.

Cerimônias em que se homenageiam os orixás que, para a cultura africana,

são deuses, seres espirituais que interferem na vida dos homens aqui na

Terra. No Salmo 96:5 há uma declaração definida a respeito dos deuses

pagãos: “Porque todos os deuses dos povos não passam de ídolos”, ou seja,

demônios na roupagem de um deus. Então, os espíritos vivem na “esfera

espiritual”, através da qual tentam influenciar o mundo visível. Nesta esfera

espiritual está o trono de Deus e os seus anjos no mais alto nível e as forças

hostis ocupando o baixo nível. Todo candomblista ou umbandista sabe que

os orixás são seres espirituais que possuem personalidade e inteligência; em

seus cultos, objetos são consagrados a eles em rituais especiais como, por

exemplo, as roupas e as ferramentas (coroa, cajado, espelho, machadinha,

170

punhal...) usadas pelos filhos-de-santo nos cultos, bem como as comidas

oferecidas a eles nos assentamentos. Então, os espíritos passam a tomar

posse desses objetos, fazendo deles sua propriedade ou, dependendo do

objeto, como amuletos e talismãs, estes são transformados em habitações de

espíritos “protetores”. Esses tipos de crenças vêm cooperar para dar abertura

a influências demoníacas nas vidas das pessoas. Os devotos geralmente

desenvolvem um relacionamento orgânico (corporal) com os espíritos que

tomam posse desses objetos. E as pessoas que nada têm a ver com esses

objetos, que os demônios tomaram posse por direito, também podem ser

atingidas pela presença maligna deles. As esculturas expostas no Parque

Vaca Brava estão em oposição à vontade de Deus claramente descrita nas

Sagradas Escrituras: “Não fareis para vós outros ídolos, nem vos levantareis

imagem de escultura, nem coluna, nem poreis pedras com figuras na vossa

terra, para vos inclinardes à ela; porque eu sou o Senhor, vosso Deus.”

(Levítico 26:1). E “voltarão para ali (para a cidade) e tirarão dela todos os

seus ídolos detestáveis e todas as suas abominações” (Ezequiel11: 18). Ao

contrário do que afirmam alguns intelectuais, não é por sermos medíocres,

preconceituosos ou ignorantes que nos opomos à exposição e culto dessas

estátuas. Assim procedemos por termos conhecimento espiritual com bases

bíblicas. Protestamos porque temos a responsabilidade de defender nossa

cidade das forças do mal. Como está escrito em Mateus 22:29: “Errais, não

conhecendo as escrituras, nem o poder de Deus”. Nossa Capital é formada

por uma população com várias crenças religiosas, cada qual com a sua

liberdade de culto e vivemos em harmonia. Porém, uma exposição como esta

é agressiva. É como se o candomblé estivesse sendo imposto sobre a cidade

na figura de gigantescos ídolos. A questão para nós não é meramente cultural

ou artística, mas espiritual, pela influência que essas imagens exercem

negativamente sobre Goiânia, um espaço que lutamos, sempre, para ser

expressão da morada da paz, do amor, da vida e da santa presença de Deus

(MIRANDA, Sandra Cardoso. O sentido da cultura e o fundamento

espiritual. Diário da Manhã, Goiânia, 22 nov. 2003. Cidades, p. 03. Grifos

nossos).

Logo no início do artigo, Sandra escreve que a exposição tem um fundamento

espiritual que merece ser explicado à população. Observa-se que no discurso da pastora, a

identidade evangélico-pentecostal se sobrepõe à identidade da cidadã. Vimos como o

evangélico-pentecostal se refere a esta realidade física – o “mundo” – que, em verdade, não

passa de uma projeção do mundo espiritual: o mundo físico está inserido em seu contraponto

espiritual que o contém e que se insinua sutilmente em objetos – estátuas, por exemplo –,

eventos ou seres. Os fieis têm por certo que o mundo físico possui valor secundário em

relação ao espiritual por ser aquele definidor deste. Uma das passagens bíblicas preferidas

para sustentar esta concepção está na epístola de Paulo aos Efésios, capítulo 6, versículo 12:

“porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as

potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da

maldade, nos lugares celestiais”.

Deste modo, a pastora compreende possuir um conhecimento necessário à vida que vai

além do repertório de saberes utilizados no dia-a-dia pelos cidadãos comuns. Exatamente por

171

ter acesso a um pretenso “conhecimento espiritual com bases bíblicas” estariam os

evangélico-pentecostais munidos com o aval, senão legal, ao menos espiritual, que lhes

confere autoridade, ou, antes, a obrigação de explicar à população o que realmente se passava.

Já demonstramos que uma das bases nas quais se assenta a identidade evangélico-

pentecostal é o cumprimento da “Grande Comissão”, ou seja, a pregação do evangelho.

Disseminar este conhecimento espiritual revelado é uma forma de levar a “boa-nova”, pois, se

o Mundo está repleto de forças malignas preparadas para liquidar a alma humana, há, em

contrapartida, a força dos evangélicos, única capaz de fazer frente ao Mal.

Prosseguindo em sua argumentação, a pastora, preparando o terreno para apresentar-se

espiritualmente, sustenta: “Pois bem, como cidadãos, compreendemos perfeitamente o direito

à liberdade de culto, mas como evangélicos, entendemos que esta exposição além do seu

significado natural (artístico e cultural), tem também uma influência espiritual por trás”.

A pastora deixa claro que existe a distinção identitária, e mais, está ciente dela ao

optar por deixar de lado a opinião da cidadã. Na economia das identidades, pesando os

interesses que movimentam sua vontade e dirigem sua ação, vemos o papel de evangélica

subsumir o de cidadã. A identidade evangélico-pentecostal canibaliza as demais. Sandra

Cardoso enfatiza a questão espiritual que gira em torno do está “por trás” da exposição.

Percebe-se que ela incorre de forma clara na errônea equiparação conceitual-teológica entre

cultura e religião no trecho no qual sustenta que “podemos dizer então que toda cultura tem

como pano de fundo a religião e os costumes espirituais cultivados pelos diferentes povos”.

Sobre tal imprecisão epistemológica, tomamos por base a análise do “Dicionário Básico de

Filosofia” de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes (1996).

[…] a cultura praticamente se identifica com o modo de vida de uma

população determinada, vale dizer, com todo o conjunto de regras e

comportamentos pelos quais as instituições adquirem um significado para os

agentes sociais e através dos quais se encarnam em condutas mais ou menos

codificadas. Num sentido mais filosófico, a cultura pode ser considerada

como um feixe de representações, de símbolos, de imaginário, de atitudes e

referências suscetível de irrigar, de modo bastante desigual, mas

globalmente, o corpo social (JAPIASSÚ & MARCONDES, 1996: 61).

Para o termo religião, o mesmo dicionário nos dá a definição abaixo:

Em seu sentido geral e sociocultural, a religião é um conjunto cultural

suscetível de articular todo um sistema de crenças em Deus ou num

sobrenatural e um código de gestos, de práticas e de celebrações rituais;

admite uma dissociação entre a “ordem natural” e a “ordem sacral” ou

sobrenatural. Toda a religião acredita possuir a verdade sobre as questões

172

fundamentais do homem, mas apoiando-se sempre numa fé ou crença

(JAPIASSÚ & MARCONDES, 1996: 234).

Ou seja, nos termos de Japiassú e Marcondes (1996), o que a pastora realizou,

acompanhada de seus “irmãos” de fé, foi uma inversão funcional dos conceitos. Enquanto os

autores do dicionário nos mostram que a religião está contida na cultura, a pastora concebe a

cultura como reduzida à religião. Cremos que a discussão acerca da natureza dos Orixás feita

acima seja suficiente, ao que se propõe este capítulo, para desconstruir este falso argumento.

Continuando na análise do texto da pastora, observamos uma tentativa de conceituação

do que viria a ser o Candomblé. Ao utilizar a construção “culto africano pagão trazido para a

Bahia”, a pastora acredita ter sanado seus problemas primários com seu interlocutor.

Porém, é explícita a imprecisão e a falta de profundidade com as quais aborda esta

religião de matriz africana. O uso do termo “pagão” em seu texto decorre mais do valor

pejorativo que este assumiu, com o passar dos séculos, entre os fiéis cristãos, do que pelo seu

designativo “não cristão”. Pagão vem do latim paganus que significa camponês, ou seja, faz

menção a religiosidade, extremamente ligada à natureza, que era praticada pelos cidadãos das

zonas rurais do império romano quando da imposição do cristianismo como religião oficial.

Na tentativa de conceituar o que viria a ser este “culto pagão”, o Candomblé, a pastora acaba

lançando mão de um artifício que, como apresentamos no capítulo segundo, consta entre os

elementos constitutivos do arcabouço identitário evangélico-pentecostal: o Biblicismo. Ela

nos remete ao texto bíblico para fundamentar sua visão. Este movimento de busca de apoio

nos textos do Velho ou do Novo Testamento deriva de sua crença – ponto comum entre todos

os evangélico-pentecostais – de que a Bíblia é um livro infalível na explicação de tudo

concernente aos humanos.

Baseando-se no texto bíblico e ecoando a tradição de perseguição à cultura de matriz

africana, a autora do artigo comete outra inversão preconceituosa, enxerga nos Orixás

“demônios na roupagem de um deus”. Em suas elucubrações fantasiosas, lemos que “então,

os espíritos vivem na 'esfera espiritual' [nada mais justo!], através da qual tentam influenciar o

mundo visível”. Novamente, encontramos a dicotomia mundo físico/mundo espiritual.

Contudo, agora ela aparece guarnecida de uma explicação que a justifica plenamente dentro

da lógica evangélica: o mundo físico é influenciado pelos demônios do mundo espiritual que

tentam levar os homens a incorrer no pecado. Nesse sentido, julgamos que se este trabalho

dissertativo cair nas mãos de um evangélico-pentecostal que se dê ao trabalho de lê-lo, nosso

texto será sumariamente interpretado como mais um dos artifícios do Inimigo para arrebatar

as almas de Deus.

173

A pastora prossegue numa descrição cosmogônica que, na verdade, não tem relação

nenhuma com as concepções do Candomblé. Ela finda sua descrição com uma observação

acerca dos objetos de culto. Realmente um atabaque só poderá ser utilizado numa cerimônia,

após ser “consagrado”. Agora, quanto a ele ser tomado por espíritos “protetores” que “vêm

cooperar para dar abertura a influências demoníacas nas vidas das pessoas”, fica por conta das

interpretações derivadas dos quadros de representações evangélico-pentecostais.

Finalizando seu texto, a pastora acrescenta a seguinte afirmação “protestamos porque

temos a responsabilidade de defender nossa cidade das forças do mal”. Cremos que, com tudo

o que já foi exposto, não seria estranho perceber que diante deste “mundo maravilhoso” no

qual se insere o crente – povoado de criaturas espirituais malignas –, o evangélico-

pentecostal, como o último detentor da verdade espiritual, se vê imbuído da nobre missão de

salvar seus semelhantes dos enganos do Inimigo. A estatura de sua missão, o valor contido no

enredo da narrativa que constroem para si mesmos, é suficientemente forte para fazê-los

acreditar piamente que aos “salvos” cumpre “salvar”. Assim, os evangélico-pentecostais se

atribuem a responsabilidade de “defender” qualquer localidade – sagrada ou profana – “das

forças do mal”.

Como pudemos observar neste quarto capítulo, os diversos sujeitos envolvidos no

Episódio Vaca Brava que se identificavam com a mensagem evangélico-pentecostal de fé

apresentaram posturas e ações marcadamente beligerantes. Os fieis, zelosos por manter

afastada a ameaça do avanço do reino do mal – ameaça essa traduzida em específico nas

estátuas inspiradas no panteão nagô –, não pouparam esforços ao lançar mão de várias

argumentações de cunho secular. Tentavam mascarar suas motivações espirituais sob a égide

de discursos pautados em funções legais. Além disso, buscavam apoio até no segmento

católico do cristianismo. Isso nos mostra que também estava em ação, dentro da lógica da

Batalha Espiritual, a gradação de periculosidade espiritual. Fundamentados nessa gradação, os

evangélico-pentecostais apresentaram temer sobremaneira os participantes e seguidores de

religiões de matriz africana. Esse medo surge de uma tão vasta quanto complexa gama de

razões que não podemos abarcar no escopo dessa dissertação. Podemos, entretanto, esboçar

que pelo fato de não haver necessariamente uma fundamentação cristã nas religiões de matriz

africana e por fatores culturais que determinam preconceitos de longa duração internalizados

na sociedade brasileira voltados às práticas, filosofias, modos de vida e rituais desenvolvidos

em África, essas são religiões tomadas como absolutamente diabólicas. A análise sumária que

realizamos do texto da pastora Sandra Cardoso nos demonstra que o ódio ao outro identitário

do evangélico-pentecostal nasce dos próprios arranjos representacionais que estes perpetuam

174

em seu imaginário social. O desconhecimento para com os fundamentos básicos do

candomblé – e a aparente não inclinação em buscar conhecê-los – não serviu à pastora, tanto

quanto aos demais fieis comprometidos com a Batalha Espiritual, como um momento

oportuno para o crescimento fundado no diálogo e na aceitação da alteridade. Serviu, antes,

como uma infeliz demonstração de como a ideia da Batalha Espiritual é uma temática

importantíssima nos processos de identificação dos fieis. De fato, como pudemos perceber, a

participação na Batalha Espiritual é indispensável para a coesão da identidade do fiel. Ainda

que este sutilmente tente esconder as suas motivações espirituais fundamentais daqueles que o

cercam. Somente os que participam do mesmo imaginário social, compartilhando o arcabouço

identitário evangélico-pentecostal, podem entender o perigo que se oculta por trás das

aparências desse “mundo”. Somente aos verdadeiros seguidores de cristo compete o poder de

discernir entre o verdadeiro e o falso. Assim, enquanto a parousia não se efetivar ou o “Reino

de Deus” não se materializar neste “mundo”, a Batalha Espiritual será zelosamente mantida

pelos fieis evangélico-pentecostais.

175

Conclusão

No decorrer desse trabalho pudemos entender e demonstrar como, a partir das

relações estabelecidas entre certas representações coletivas, os evangélico-pentecostais

produzem e mantêm sentido às experiências de conflito vivenciadas em nome da fé.

Percebemos em que medida a Batalha Espiritual entranha-se na constitutividade da própria

identidade do fiel. Para tanto, analisamos as origens do pentecostalismo. Passamos em revista

as principais tipologias desenvolvidas por estudiosos brasileiros para objetivar o estudo dos

segmentos pentecostais que surgiram no correr do século XX. E, ao realizar nossa análise das

tipologias, observamos que uma das bases para sustentação das diferenciações entre

pentecostais do início do século XX e fins do mesmo século seria uma pretensa exacerbação

da Batalha Espiritual levada a cabo pelas denominações surgidas a partir da terceira onda

pentecostal (FRESTON, 1992), denominações conhecidas como neopentecostais

(MARIANO, 1999) ou pós-pentecostais (SIEPIERSKI, 2008). Pelo estudo de continuidades

históricas de cunho teológico-doutrinário, pudemos demonstrar que há um arcabouço

identitário composto por sete representações coletivas – Santa Ceia, Batismo nas Águas,

Batismo no Espírito Santo, Biblicismo, Dualismo, Grande Comissão e Parousia –

compartilhadas tanto por fieis assembleianos de 1911 quanto por iurdianos de fins do século

XX. Vimos como essas mesmas representações coletivas, ao trançar múltiplas relações entre

si, fomentam sentido à Batalha Espiritual. Percebemos, assim, que a Batalha Espiritual não

poderia ser tomada como um elemento fundamental apenas dos neopentecostais ou pós-

pentecostais, pois sua fundamentação imaginária já estava em ação desde os primórdios do

pentecostalismo no Brasil. Fundamentar as distinções tipológicas entre pentecostais sobre

uma pretensa exacerbação da Batalha Espiritual se mostrou uma imprecisão histórica, um

equívoco.

Propusemos que, se tomados em função do que têm em comum em matéria de

imaginário social, assembleianos e iurdianos podem ser unificados sob o conceito tipológico

de evangélico-pentecostais. As distinções teológicas e doutrinárias entre as duas

denominações, constatamos, podem ser pensadas a partir da variação da matriz interpretativa

da Santidade Próspera (pré-milenarista) para a matriz interpretativa da Prosperidade Santa

(pós-milenarista). Apesar de necessitarmos restringir nossas análises aos assembleianos e aos

176

iurdianos, cremos não ser de todo temerário estender a aplicabilidade do recorte tipológico

evangélico-pentecostal às demais denominações pentecostais. Seria necessário, contudo, um

estudo mais abrangente para determinar as limitações à aplicabilidade do conceito aqui

proposto em termos de práticas e discursos.

Desse modo, falar numa exacerbação da Batalha Espiritual como elemento

fundante do neopentecostalismo (ou pós-pentecostalismo) é incorrer em uma imprecisão

histórica. A Batalha Espiritual, evocada, mantida e esperada como projeto futuro a partir da

constelação específica das representações coletivas que compõem o arcabouço identitário

evangélico-pentecostal, foi, desde antes da formação da Assembléia de Deus, um dos

elementos fundantes no imaginário social do pentecostalismo clássico. Não negamos que o

discurso da Batalha Espiritual tenha sofrido variações durante o correr do século XX – tanto

quanto as interpretações de uma ou outra das representações coletivas que compõem o

arcabouço identitário. Propusemos que estas variações podem ser entendidas se

contextualizadas no bojo das transformações predicadas pelas matrizes interpretativas da

Santidade Próspera e da Prosperidade Santa. Sugerimos, também, que a Batalha Espiritual se

tornou socialmente mais visível a partir das novas políticas e abordagens que os

neopentecostais ou pós-pentecostais cultivaram quanto à mídia, decorrendo daí a equivocada

conexão entre terceira onda do pentecostalismo e exacerbação da Batalha Espiritual.

A partir da incursão que realizamos ao imaginário social evangélico-pentecostal,

lançamos luz sobre a constitutividade da Batalha Espiritual na efetivação da identidade

evangélico-pentecostal. Do fato de ser necessário vivenciar a Batalha Espiritual – diríamos

mesmo do caráter visceral desta experiência na identificação do sujeito com a mensagem

evangélico-pentecostal –, advém a problemática da relação com o outro.

O outro que, somente percebido a posteriori – após passar pelo filtro de

percepções sociais tributárias dos arranjos representacionais que conformam a identidade

evangélico-pentecostal –, acaba sendo enquadrado num dos diferentes graus de periculosidade

espiritual. Quadro este que varia desde os menos ameaçadores, os católicos devotos

considerados cristãos incompletos iludidos pelo inimigo, até os detestáveis seguidores das

religiões de matriz africana, consumadamente diabólicas.

Assim, mesmo que seja forçado falar de uma impossibilidade no que tange à

tentativa da construção do diálogo e da convivência entre evangélico-pentecostais e gentios

(qualquer um que não compartilhe do mesmo imaginário social), ao menos sentimo-nos

seguros ao afirmar que existe, a partir de dentro da própria identidade, uma profunda

dificuldade na aceitação duma postura dialógica. Os crentes possuem todo um cabedal de pré-

177

conceitos derivados de sua identificação com a mensagem da Batalha Espiritual. Esses pré-

conceitos tornam o trabalho da aceitação do outro junto de si – como prática unificadora entre

religiões ou como meio de solucionar conflitos – uma tarefa infelizmente irrealizável para

eles, se pensada somente nos termos de seu próprio imaginário social.

178

Referencial Bibliográfico

ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo – SP: Ática, 1982.

ANACLETO, Waldecir. A Grande Batalha. São Paulo – SP: Imprensa da Fé, 1996.

ANDRADE, Enio de Viveiros. O neopentecostalismo em Goiânia: proposta e expansão

nos anos 90. Monografia apresentada ao departamento de História da Universidade Estadual

de Goiás como exigência da nota final na disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa

Histórica, 2002.

AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública –

concepções e usos na América Latina in. MAIA, Rousiley; et al. Mídia, Esfera Pública e

Identidades Coletivas. Belo Horizonte – MG: Editora UFMG, 2006.

AZEVEDO, Israel Belo. O Livro Evangélico no Brasil. Revista Impulso, 10(22/23),

Piracicaba – SP, 1999. Disponível em: <http://migre.me/5cd8h>. Acessado em 2 mar 2009.

BACZKO, Bronislaw. A imaginação social, in: LEACH, Edmund et Alii. Antropos-Homem.

Lisboa: Imprensa Nacional, 1985.

BÍBLIA de Estudo das Profecias. Belo Horizonte – MG: Editora Atos, 2001.

BÍBLIA de Estudos Plenitude. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2001.

BITTENCOURT FILHO, José. Matriz Religiosa Brasileira. Petrópolis – RJ: Vozes, 2003.

BOYER, Orlando. Heróis da Fé. Rio de Janeiro – RJ: CPAD, 1985.

BRANDÃO, Carlos R. Os deuses do povo. São Paulo – SP: Brasiliense, 1980.

CÁCERES, Pedro Antônio C. As Representações do Diabo no Imaginário dos Fiéis da

Igreja Universal do Reino de Deus. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em

Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás – Departamento de Filosofia e

Teologia, 2006.

179

CAMPOS, Leonildo S. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um

empreendimento neopentecostal. Petrópolis – RJ: Vozes, 1997.

____________. A Igreja universal do reino de Deus, um empreendimento religioso atual

e seus modos de expansão (Brasil, África e Europa). Lusotopie, 1999. Disponível em:

<http://migre.me/5bDk2>. Acessado em 16 out 2008.

CAMPOS, Vera. Mãe Stella de Oxossi. Perfil de uma liderança religiosa. Rio de Janeiro –

RJ: Jorge Zahar Editores, 2003.

CARNEIRO, Denise Borges. A Representação do Mal no Imaginário Cristão. Anápolis:

Monografia apresentada ao Departamento de História da UEG/Unidade Universitária de

Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, 2004.

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo

Roger Chartier. Revista Eletrônica Diálogos, 9(1), 2005. Disponível em:

<http://migre.me/5aXxO>. Acessado em: 10 nov 2009.

CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil. Viçosa – MG: Ultimato,

2000.

CHARTIER, Roger. La Historia o la lactura del tiempo. Barcelona: Gedisa, 2007.

____________. La vérité entre fiction et histoire in. BAECQUE, Antoine; DELAGE,

Christian. De L’histoire ou cinema. Bruxelas: Editions Complexe, 1998.

COSTA, Jefferson Magno. Porque Deus Condena o Espiritismo. Rio de Janeiro – RJ:

CPAD, 1987.

COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo – o Diabo como a sombra de Deus na história. Rio

de Janeiro – RJ: Record, 1996.

DIAS, Zwinglio M. Fundamentalismo: O delírio dos amedrontados (Anotações socio-

teológicas sobre uma atitude religiosa). Revista Eletrônica Tempo e Presença Digital, 3(13),

2008. Disponível em: <http://migre.me/5cdkU>. Acessado em: 4 mai 2009.

ESPÍN, Orlando O. A fé do povo. São Paulo – SP: Paulinas, 2000.

180

EVANS, E. Reavivamentos – sua origem, progresso e realizações. São Paulo – SP: FES,

S/D.

FIGUEIREDO, Ana Elisa Bastos. Religiões Pentecostais e Saúde Mental no Brasil. Rio de

Janeiro – RJ: UFRJ, 2006.

FOERSTER, Norbert H. C. Migração e Religião: padrões de migração no pentecostalismo

mais antigo brasileiro. Estudos de Religião, 24(38), 2010. Disponível em:

<http://migre.me/5aYGQ>. Acessado em 20 ago 2010.

FONSECA, André Dioney. “É Lícito Pregarmos o Evangelho Pelo Rádio?”: Os Debates

Sobre o Radioevangelismo nas Convenções Gerais das Assembléias de Deus no Brasil.

Anais do IV Congresso Internacional de História – Maringá, PR, 2009. Disponível em:

<http://migre.me/5bHTF>. Acessado em 20 fev 2010.

FRANCEN, Mike. Busca pelas almas. Produção independente, S/D.

FRESTON, Paul. Fé bíblica e crise brasileira. São Paulo – SP: ABU, 1992.

____________. Uma breve História do Pentecostalismo brasileiro: a Assembléia de Deus.

Religião e Sociedade, 16(3), 1994.

GAARDER, Jostein et al. O livro das Religiões. São Paulo – SP: Companhia das Letras,

2005.

GIUMBELLI, Emerson. O “baixo espiritismo” e a história dos cultos mediúnicos. In:

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, 2003.

GONÇALVES, Ana Teresa Marques; ROCHA, Leandro Mendes. Identidades e

Etnicidades: conceitos e preceitos. In: SILVA, Gilvan Ventura da Silva et al. As identidades

no tempo: ensaios de gênero, etnia e religião. Vitória – ES: EDUFES, 2006.

GUIMARÃES, Cláudia. Bruxinha boa? Bruxinha má? Rio de Janeiro – RJ: Danprewan,

2007.

GUIMARÃES, Robson Franco. Os últimos dias: os pentecostais e o imaginário do fim dos

tempos. Revista de Estudos da Religião, n. 1, 2005. Disponível em:

<http://migre.me/5aY39>. Acessado em 13 de dez 2008.

181

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro – RJ: Tempo

Brasileiro, 1984.

HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro – RJ: DP&A,

2006.

HARPA CRISTÃ. Rio de Janeiro – RJ: CPAD, 1998.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence [org.]. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro –

RJ: Paz e Terra, 1984.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo – SP: Cia das Letras,

1995.

HUNT, Dave. A sedução do cristianismo – discernimento espiritual nos últimos dias.

Porto Alegre – RS: Chamada da Meia-Noite , 1995.

JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro

– RJ: Jorge Zahar Ed., 1996.

KLOPPENBURG, Boaventura. A umbanda no Brasil: uma orientação para católicos.

Petrópolis – RJ: Vozes, 1981.

KOSELLECK. R. Futuro Passado. Rio de Janeiro – RJ: Puc Editora, 2006.

LOPES, Edson Pereira; FERNANDES, Janniere Villaça da Cunha. Santa Ceia: uma das

mais significativas controvérsias entre os reformadores Lutero, Zwinglio, Calvino.

Ciências da Religião – História e Sociedade, 6(2), 2008. Disponível em:

<http://migre.me/5ccdT>. Acessado em 17 mai 2009.

LOUVORES DO REINO. Rio do Janeiro – RJ: Gráfica Universal, 2004.

LOUZADA, Natália do Carmo; ULHOA, Clarice Adjuto. Apontamentos preliminares

sobre a implementação da lei 10.639/2003 em escolas públicas da cidade de Goiânia.

Revista Plurais. Anápolis, v. 01, n. 05, 2007. Disponível em: <http://migre.me/5m27s>.

Acessado em 26 out. 2009.

MACEDO, Edir. Nos Passos de Jesus. Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 2001.

182

____________. O Poder Sobrenatural da Fé. Rio de Janeiro – RJ: Unipro, 2007.

____________. Orixás, Caboclos & Guias – deuses ou demônios? Rio de Janeiro – RJ:

Unipro, 2008.

____________. A libertação da Teologia. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Universal, 1993.

MADDEN, Peter J. O segredo do poder de Wigglesworth. Rio de Janeiro – RJ: Danprewan,

2001.

MAFRA, Clara. Casa dos homens, casa de Deus. Análise Social, 2007. Disponível em:

<http://migre.me/5aYNB>. Acessado em 17 jan 2009.

MARIANO, Ricardo. Expansão Pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. Estudos

Avançados 18 (52), 2004. Disponível em: <http://migre.me/5bDCD>. Acessado em 6 jan

2009.

____________. Pentecostais – sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo –

SP: Edições Loyola, 1999.

____________. Neopentecostalismo; os pentecostais estão mudando. São Paulo – SP:

USP, 1995.

MELO, Flávia Valéria C. B. Nem culpa, nem condenação: a saída pode ser Jesus. A

atuação das igrejas pentecostais na agência prisional de Goiânia. Dissertação apresentada

ao Curso de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás –

Departamento de Filosofia e Teologia, 2005.

MENDONÇA, Antônio Gouvêa; VELASQUES, Prócoro Filho. Introdução ao

protestantismo no Brasil. São Paulo – SP: Edições Loyola, 1990.

MESQUITA, Antônio Pereira de [editor]. Artigos Históricos – Mensageiro da Paz: os

artigos que marcaram a história e a teologia do Movimento Pentecostal no Brasil. 3 Vol.

Rio de Janeiro – RJ: CPAD, 2004.

MINA, Andréia Mendes de Souza. Nós e o mundo. A construção do “outro”: Alteridade e

pertencimento no material de divulgação brasileiro da Igreja Assembléia de Deus (AD) e

Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) na década de 1990. Dissertação apresentada à

183

Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para obtenção do grau de

Mestre em História Cultural. Florianópolis, 2004.

MORAIS, Itevildes José de. O protestantismo pentecostal em Goiânia: de 1970 a 2000.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em História como requisito parcial para a

obtenção do Grau de Mestre, 2003.

NOBRE, Silas Rebouças. A Racionalidade nas igrejas neopentecostais nascidas em

Goiânia. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Religião da

Universidade Católica de Goiás – Departamento de Filosofia e Teologia, 2003.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no Imaginário Cristão. São Paulo – SP: Ática,

1986.

____________. Demonismo, malícia e malefício. In: Revista de História – USP. n. 117,

1984.

OLIVEIRA, Anderson. As faces de Exu: representações européias acerca da cosmologia

dos orixás na África Ocidental (Séculos XIX e XX). In: Revista Múltipla, Brasília: n. 10,

junho 2005.

OLIVEIRA, Moacir Carvalho. Pentecostais e práticas de consumo: experiência religiosa,

cotidiano e suas fronteiras na Universal do Reino de Deus. Dissertação apresentada ao

departamento de Sociologia da Universidade de Brasília/UnB, como parte dos requisitos para

a obtenção do título de mestre, 2007.

OSBORN, T. L. A origem das doenças. Rio de Janeiro – RJ: Graça Editorial, 2004.

PINTOS, Juan-Luis. Los imaginarios sociales – la nueva construcción de la realidad

social. Maliaño: Editorial Sal Terrae/Madrid: Fe y Secularidad, 1995.

PRANDI, Reginaldo. Converter indivíduos, mudar culturas. Tempo Social, 20(2), 2008.

Disponível em: <http://migre.me/5bIb9>. Acessado em 15 mar 2009.

REINHARDT, Bruno M. N. Espelho Ante Espelho: A Troca e a Guerra Entre o

Neopentecostalismo e os Cultos Afro-Brasileiros em Salvador. Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília para

obtenção do título de mestre, 2006.

184

RICARDO, Bitun. Transformações do campo religiosos pentecostal brasileiro –

antecipação da parousia cristã e a transformação da Ética do trabalho para a Ética do

consumo. Anais do Congresso de Ética e Cidadania, 2008. Disponível em:

<http://migre.me/5aWwy>. Acessado em: 16 ago 2009.

RODOVALHO, Robson. Por Trás das Bênçãos e Maldições – os benefícios da cruz

equipando-nos para a batalha espiritual. Brasília – DF: Koinonia, 1995.

ROIZ, Diogo da Silva; FONSECA, André Dioney. As representações da Igreja Assembléia

de Deus sobre a televisão entre 1960 e 2000. Revista Brasileira de História das Religiões,

2(4), 2009. Disponível em: <http://migre.me/5bHBF>. Acessado em 26 fev 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos.

In: FELDMAN-BIANCO, Bela. CAPINHA, Graça (org.). Identidades – Estudos de cultura e

poder. São Paulo – SP: Hucitec, 2000.

SANTOS, Gislene Aparecida dos. A Invenção do Ser Negro: um discurso das idéias que

naturalizaram a inferioridade dos negros. Rio de Janeiro – RJ: Pallas, 2005.

SCARAMAL, Eliesse. Aberem: África no Brasil – estudos de comunidades,

religiosidades e territórios. CNPq. In. Anais do I Seminário de Pesquisa de Professores

UnUCSEH, Anápolis, 01 a 02 de março de 2007.

SIEPIERSKI, Paulo. Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo brasileiro. In:

GUERRIERO. Silas (Org). O estudo das religiões: desafios contemporâneos. São Paulo – SP:

editoras paulinas, 2008. Coleção ABHR.

SILVA, Cláudio José da. A doutrina dos usos e costumes na Assembléia de Deus.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade

Católica de Goiás – Departamento de Filosofia e Teologia, 2003.

SOARES, R. R. Mensagens Clássicas. Rio de Janeiro – RJ: Graça Editorial, 2003.

SOUZA, Etiane Caloy B; MAGALHÃES, Marionilde Dias B. Os pentecostais: entre a fé e

a política. Revista Brasileira de História, 22(43), 2002. Disponível em:

<http://migre.me/5bIn0>. Acessado em 14 jun 2008.

STADTLER, Hulda. Conversão ao pentecostalismo e alterações cognitivas e de

identidade. Revista de Estudos da Religião – REVER, 2(2), 2002. Disponível em:

<http://migre.me/5ccWa>. Acessado em 5 fev 2009.

185

VERÍSSIMO, Jean Fabrício Dias. Intenção do Texto – o Diabo e a Guerra Santa no

Imaginário dos Pentecostais: Espiritismo em Confronto. Dissertação apresentada ao Curso

de Mestrado em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás – Departamento de

Filosofia e Teologia, 2005.