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DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

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O aZUL MAIS DISTANTE é um longo conjunto de poemaqs que constituem uma saga nordestina. Valendo-se de uma linguagem esperpêntica, suprarreal, de realismo mágico e até, em certo momento, escatológico, conta a trajetória de uma família do Piauí no período de entre-guerra, o êxodo para o Rio de Janeiro e as transformações cociais, culturais e morais susequentes. O autor ainda nos deve a seguna parte a história, mas esta primeira já foi traduzida e publicada na Espanha. "O coito do sátioro", um dos poemas do livro, é dos maisl lidos na internet no original em português e na versão espanhola .

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Antonio Miranda

com ilustrações de Zenilton Miranda

Brasília, 2008

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© by Antonio Miranda e Zeniltom Miranda 2008Todos os direitos reservados

Capa: Elmira Simeão, a partir da ilustração de Zenilton MirandaProjeto Gráfi co: Elmira SimeãoEditoração: Beto PaixãoIlustrações e arte: Zenilton MIrandaRevisão: Antonio Miranda

Publicação especial com tiragem limitada (200 exemplares) não comercializada e lançamento especial programado na I Bienal Internacional de Poesia - Brasília, 2008.

Do Azul Mais Distante / Antonio Miranda e Zenilton Miran-da. - Brasília :

Publicação especial em lançamento limitado por 000 p. ; . - (poemas)

ISBN 85-XXX-XXX-X

I. Miranda, Antonio. II. Miranda, Zeniltom.

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Sumário

Retrato Na Parede ......................................... 15As Origens ........................................................ 18Havia o Trem .................................................. 25Aves de Arribação ......................................... 27O Cabra Fornicador .................................... 29As Virtuosas ..................................................... 33Teias e Tramas Genealógicas .................... 35O Parto da Virgem Endiabrada .............. 39Os Albinos do Quilombo .......................... 45Poetas Malditos ............................................... 49O Circo Chegou ............................................ 51O Vaticínio ........................................................ 53Ventos Aziagos ................................................. 55O Casamento ................................................... 59A Língua dos Mortos .................................... 61Tanto Sol .......................................................... 63O Passamento .................................................. 67O Coito do Sátiro ........................................ 69A Penitente ........................................................ 76Ciclos .................................................................... 78

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A Decisão ......................................................... 80Tralhas e Trilhas ............................................ 82Lampejos .............................................................. 84Absorto ................................................................ 86Horror ................................................................... 87In Memoriam ....................................................... 89O Quarto de Nelson .................................. 92Monogramas ....................................................... 95Acasalamentos .................................................. 97A Gata Borralheira ....................................100Longa Jornada Noite Adentro .............103Do Outro Lado da Vida .........................111Visita à Casa Paterna ................................113Repasso .............................................................116Os Nervos da Memória ............................117Solistício de Inverno ......................................119Paisagem com Sombras ..............................121O Trem ..............................................................123Monólogo da Enjeitada ...............................127Ubiquidade .......................................................130

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Do Azul Mais Distante

Tive o privilégio de escutar estes poemas, ainda inéditos, recitados pelo próprio autor. A intensidade, a força, a ternura me conquistaram desde as primeiras linhas até envolver-me no enredo, urdido brilhantemente. A aspereza da história era mitigada pela calidez da voz e pela singularidade do lugar onde estávamos: a Biblioteca Nacional de Brasília, belíssima construção de Niemeyer de onde contemplávamos a Esplanada dos Ministérios. Espaço amplo e aberto criado pelo engenho que também favorece a liberação dos sentidos, o proceso criativo da palabra e o desdobramento da imaginação.

Este poemario que teme mão, leitor, não se parece a nenhum dos outros muitos escritos por Miranda, de fato não se parece com nenhum outro libro que tenha lido, é um libro-conto, um libro-origem, um libro-história, um libro-sonho, um enredo genealógico de enredos, de equipagem e percurso, de horror, em definitivo, um legado da memoria abandonada na lembrança de adolescente mas com a lucidez que propicia uma vida plena, uma vivida vivida, uma mirada serena.

Um livro-conto, que narra, nos conta a história das irmãs Teixeira, com seus anseios, ambições, suas paixões e misérias, enfeitadas com pó-de-arroz e folhetim, com amor, ódio, concubinato, violações e adoração até a morte: todo um conto.

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8Um livro-história, repleto de referências a uma etapa da história do Brasil, momento concreto em que se desenvolve a ação, momento difícil, na primoeira metade do século XXX, numa das mais pobres e abandonadas regiões do pais —o Piauí. Uma história que também faz referencia à riquíssima arqueología da região. História da terra, de su aterra.

Um livro-origem, que permite ao autor evocar lembranças de sua infancia e traê-las ao século 21, com a ternura de um menino e rudeza de um camponês nordestino. Com a memoria nos fala do principio e nos remete às origens. Uma introspecção que parte do vestigio e se enfeita com a caligrafia do escritor, do adulto-menino, do ser humano capaz de dar forma artística, beleza, a uma crónica trágica.

Um livro-sonho, cheio de elementos mágicos que convertem o sobrenatural em algo cotidiano. Maravilha do escritor, feitiço de poeta. O realismo mágico brilhou intensamente na literatura hispano-americana dos anos sesenta e setenta, movimento literque não se expressou principalmente através da poesía, mas da narrativa; no entanto, o poeta Antonio Miranda nos faz conviver com a língua dos mortos, paisagens com sombras, ubiqüidade e vaticínios tristemente cumpridos. É aquí onde o onírico permite ampliar-nos, comprometer-nos, reconoher-nos? Podia ter sido o destino de qualquer outro Édipo coetâneo que a contragosto não impusesse seu desejo.

Os poemas têm uma continuidade linear, entrelaçados por um discurso interno, calibrado, que modera a intensidade de alguns poemas, muito duros, próximos do primitivismo animista original, intercalando outros mais leves, mais líricos, envoltos no devir dos días, capaz de aligeirar o recorrido, protegendo contra o excesso de angustia.

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(...) As irmãs Teixeira andavam alvoroçadas

com a chegada do circo.

Um engolidor de facas, a mulher barbada,

os palhaços (farrapentos), leões (famintos),

e o trapezista bonito de olhos azuis

que fisgavam os corações das meninas!!! (...)

Continúa com alusões à tradição dos costumes nordestinos, com regionalismos plenos de sabor local, que constituem a crônica de uma época.

(...) As crianças correndo atrás de um cabrito assustado.

Sombra de ingazeira generosa

e um claror repentino

que apagava tudo no céu sem fundo. (...)

——

(...). Um sol sempre vermelho e reverberante,

gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde

nas terras novas de plantio

voltadas para o curso do rio Parnaíba.(...)

——

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(...) Havia homens recitando sonetos

e carcamanos

com seus fardos ambulantes.

Seriam judeus errantes cristianizados,

miscigenados com índias apresadas, (...)

Tensão-contradição, jogos de palabras que estremecem na mescla do terrestre com o divino, imagens que comovem enquanto espantam, como no imponente poema Ventos aziagos:

(...) Passava a procissão do Senhor Morto,

passava a procissão de São Pedro de Alcântara,

passava fome

e um bumba-meu-boi em farrapos.

Vivia-se de enfermidades

aviando medicamentos.

Morria-se na véspera,

antes mesmo de nascer:

corpos adubando o solo.

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Havia mais mortos enterrados

do que vivos, e do fundo

da terra, milhares de olhos

observando os mortos futuros.

Ventos aziagos que assinalam, a pesar do poder religioso que a procissão indica, a dor permanente, a fome indomável. A perpétua doença que os remédios não alcançam curar, a morte que se antecipa à própria vida, morte que se torna morte antes que a vida seja vida. O vazio, o buraco, a ausência. A morte.

Personagens que amam, sofrem, conquistam, temem, anseiam, ambicionam, morrem e voltam à vida com o imponente saber da morte. A estas outras passagens do poemario que não permitem desejar, como acontece com Nazinha, na lembrança compartilhada, como a vida que nos vai construindo-descontruindo

Nazinha, a mais velha, é a mais tímida.

Sonha com homens fardados,

varões engalanados em desfiles militares.

A virgem que acasalou com o trapezista:

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grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe.

Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários.

Tio Nelson era o único testemunho do Além.

Queria morrer. Via sargaços e aves

e revia o gado perdido no campo.

Chorava para si.

lava nem ouvia.

Nem via mais o mar,

olhava para dentro.

Devia contrapor as sensações

que estão em tempos diferentes

e em espaços sem contigüidade,

inteligindo

sem a razão do entendimento.

Do azul mais distante, um título lírico, um verso doce, que realça um poemário duro, penetrante e profundamente intenso, lembrando Antonio Machado em

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seu último verso: Estos días azules y este sol de la infancia, que com estas palavras o poeta espanhol concluía sua obra. Poeta, sim; filósofo também, certamente um pensador, como também Antonio Miranda nos conclama a pensar, sem deixar de imaginar. Do azul mais distante parece marcar também uma etapa, a da maturidade expressiva que proporciona o conhecimento, o saber da experiência vital acumulada nos estratos pouco erodidos pelo tempo, pela reflexão capaz de sobrepor-se ao passado, vertendo distantes días azuis em páginas comovedores, para o gozo dos leitores

Aurora CuevasMadri, julho de 2008

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Retrato Na Parede

(Floriano, 1935)

As irmãs Teixeira sentadas na poltrona acolchoada,

espaldares arredondados, fundo estampado:

uma foto ensaiada, retocada pelo fotógrafo

em seu estúdio. Moldura em relevo.

Os olhos das meninas saltam do espaço

recortado, antecipando migrações.

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16Estão vestidas assim tão arrumadinhas

com golas e franzidos nas mangas,os cabelos cacheados, enfeitadas.

Olhares de horizontes largos,sem precisão do que pretendem.

Nada da aparente placidez de ovelhasamestradas, de sujeição.

Os irmãos já se foram para o sul.Nascem e já saem na direção

do marcomo alimárias errantes.

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As Origens

Estas terras nunca foram benfazejas.Sem os metais preciosos,

o litoral piauiense nunca teve porto de atracação.

Um sol sempre vermelho e reverberante,gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde

nas terras novas de plantiovoltadas para o curso do rio Parnaíba.

Dunas e areias movendo-se em direçõesazarosas, sobre lençóis movediços,

sediços, luzidios, fulgurantes, fugidios.

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19Os navios passam ao largo, indiferentes.

Léguas de terra em quadro,fazendas criadas por Domingos Afonso Mafrense

em ciclos de crescimento e estagnaçãodesde a expulsão dos jesuítas.

(Havia ossos deles enterradospelos cemitérios abandonados,

adubando o chão cáustico.)

Trilhas mulares do sertãopela ausência de horizontes.

Veredas infindas, chapadas rasase baixios ribeirinhos,

passo dos viandantes.

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20Carnaubais, babaçuais.

Cemitério marinho fossilizadono leito de mares extintos:

um mar entranhadoque ainda ruge do fundo da terra.

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O Ressurrecto(Floriano, 1936)

Desenterrado vivo depois de anos de escuridão:intacto sob uma cobertura de pó

em camadas de fina tessitura.

A palidez ebúrnea, vinda das paragensdesconhecidas da morte, cheiro súbito

de coisa parada no tempo, sambaqui enterrado.

Inscrições rupestres na Serra da Capivara.No Piauí vagam animais da mais remotaantiguidade. Vestígios por toda parte.

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22Do chão arcaico emanam forças

capazes da ressurreição das espécies.

Havia relatos de outros casos em Oeiras e Picos.

Havia também pássaros descomunais com bicosde carcará e asas de morcegos vindos

das cavernas e peixes migrandodo delta do Parnaíba na direção das águas

enterradas da Gurguéia, para a derradeira morte.

Pedaço do fim do mundo antediluviano.Terras profanadas pelos colonizadores.

A maldição:os peixes serão impedidos de subir as águas

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23do rio com a construção de uma represa;

as águas cada vez mais poucas e barrentasimpedirão a navegação dos últimos vapores.

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Havia o trem para São Luis do Maranhãopassando pela ponte estrepitosa

em seus metais antigos.

Teresina com suas ruas retas, cruzando-se.Uma população invisível

convivendo com os falsos vivos.

Havia homens recitando sonetose carcamanos

com seus fardos ambulantes.Seriam judeus errantes cristianizados,

Havia o Trem4

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26miscigenados com índias apressadas,

pregadores da volta de Cristo nos cafundó do Judas,seriam desgraçados jurados de morte

e homens-bodes sobrevivendo às agrurasda seca e da fome. Gibões de couro

e um sebastianismo recalcitrante.

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Notícias da Guerra chegavam a intervalos.O gado morrendo de sede,

carnes humanas calcinadas, desidratadas,soldados federais caçando cangaceiros,

justiceiros a soldo saldando dívidas de honra,cobranças, desavenças.

Os arroubos versejantes da intelectualidade ludovicencenos sobrados assustados da Atenas brasileira;

bondes trôpegos e morosos,

chapéus da moda,

5Aves de Arribação

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28os ternos claros dos comerciantes cearenses.

Almanaques entretidos e folhetins romanescos

não eram muitos naquelas lonjuras.

Meninas sonhadoras, os olhos esbugalhados,

vôos contidos de aves de arribação.

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Tio Nelson colecionava palavras em cadernos volumosos

numa mala velha de couro ressecado.

Caligrafia de ourives,

pescava palavras na beira do rio,

nas rodas de pescadores,

nas prédicas do sacerdote,

e nas preleções do juiz de fora.

Palavras de redenção.

As palavras estão na origem do mundo

—garantia—, criadas por Deus

6O Cabra Fornicador

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30para facilitar o entendimento das coisas.

Os sábios gregos falavam diretamente com os deuses,recebiam deles os ensinamentose podiam dissentir e argumentar.

O povaréu de Floriano ouvia o discursoenviesado com fascínio e escárnio.

Ressurrecto, tio Nelson conhecia o outro lado da vida.Passava horas lendo em voz alta,seus olhos de cera ainda mortos,

a única intimidade era mesmocom as palavras de seu dicionário.

Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras,seria um sátiro, pênis espiralado,

no desespero de sua solidão.

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31Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras,

seria um sátiro, pênis espiralado,no desespero de sua solidão.

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Nazinha, a mais velha, é a mais tímida.Sonha com homens fardados,

varões engalanados em desfiles militares.Militar de verdade, não um capitão-do-mato como o avô.

Inês sonha com um homem de letras,um poeta, um advogado com a melhor oratória.

Culto, refinado, galante.Capaz de escrever belas cartas de amor

e recitar textos arrebatadores.

Neusa, a mais nova, é arredia e irritadiça,

7As Virtuosas

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34na contramão das vontades alheias.

Freqüenta as aulas de francêse as práticas de um piano desafinado.

Quer um príncipe de verdade.

Minhocas na cabeça! —vocifera o pai Florêncio.A cartomante, depois de comer do famoso

doce de limão da casa dos Teixeira,vislumbrou tragédias e desassossegos na famíliamas, agradecida, vaticinou um futuro retumbante.

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O patriarca costumava reunir a parentelapara contar a história dos antepassados.

As mulheres abanavam leques fingindo interesse.As crianças, impacientes, sonhando com o bolo

depois da litania genealógicae da liturgia dos defuntos.

Fotos ovaladas, ornadas com flores de papel crepom. Heráldica difusa, inventários imprecisos.

(Ocultava os crimes, os abusos, aberrações.)Cronologia desencontrada, discurso labiríntico.

8Teias e Tramas Genealógicas

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36Notícias de freguesias extintas,

referências a arquivos queimados,lápides de um cemitério afogadona última cheia do rio Parnaíba.

Não havia certificados de sesmarias e datas,nem herdades patrimoniais claras nos cartórios.

Não obstante o zelo da religião em suas vidas,uma miscigenação aleatória e até promíscua,

incertos acasalamentos com padres estrangeiros,e incestos, rizomas subterrâneos, tramas insondáveis.

A tia empertigada na foto como se usasse espartilho,saía do baú para as assombrações noturnas.

Morrera de peste seguida de febres e estertores,

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37recolhida ao monte de cadáveres a serem queimados

a céu aberto para excomungar as penas inculcadas em suas carnes ímpias

onde o fogo-fátuo acendia a libertação de suas almas de bodes e calangos

—derradeiras agonias.

A virgem que acasalou com o trapezista:grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe.

Histórias do destino humanovigiando fontes e riachos temporários

para garantir a sobrevivência da estirpe,pastando cabras como ovelhas bíblicas.

O Amor seria o resultado indesejávelde uma química perversa,

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38alheio ao controle humano, subjugante

—garantia o patriarca—,próprio dos seres fracos e incivilizados.

Neusa dedilhava, depois, valsas no piano fanhoe era então servido o patrimônio culinário

de bolos, biscoitos e doces de família.Dona Filomena palavreando receitas

com o eco de vozes defuntas.

Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários.Tio Nelson era o único testemunho do Além.

As crianças ficavam cativas de pesadelos:bois encantados, pavões delirantes, cabeças-de-cuia.

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A Enjeitada começou a dar sinais de transtornose convulsões, tonteiras e derramamentos de sangue.

Foi logo enclausurada no quartode onde nunca deveria ter saído

—na condenação verbal da mãe Filomena.

Sentia cólicas e erupções, queimando gases venenosos,suores peçonhentos, desmaios constantes.

Banhos-maria, rezas de benzedeira,chás e emplastros vegetais, pomadas

e ungüentos nas têmporase nas regiões úmidas e abrasantes

9O Parto da Virgem Endiabrada

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41de seu sexo de adolescente,

os lábios inchadose o ventre crescendo a olhos vistos.

Amarrada ao madeiro do catrecomo fera encurralada,

babava e grunhia.Padre Fernandes (que não era um exorcista)

acudiu com preces e ladainhasinúteis.

Gravidez estranha, de virgem enclausurada.Espírito maligno encostado, entendeu o pai-se-santo:

Exu e suas mulheres-hospedeiras,ovo de serpente do diabo em gestação interminável.

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42Estranhos desígnios!

Onde já havia um morto-vivoagora a possuída pelo Belzebu em carnatura.

Movimentos da besta nas cavidades profundasda menina inocente. Rezas, descarregos.

Na madrugada escura, finalmente, uma coisa pardacenta e gelatinosa,

movente e sem cabeça, sem cordão umbilical,na gosma visguenta e luminosa,é recolhida em urinol de ágata,

e logo enterrada no quintalcom várias camadas de terra.

Livre da abdução, a menina desfalece.Neves, a enjeitada, era uma brotação indesejada

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43que a própria mãe esconjurava.

Castigo do céu pelos pecados cometidos,estrupício, produto de estupro,uma cruz que levava ao calvário.

Havia que buscar um marido para a desgraçada.

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O bairro dos quilombolas era invisível,coberto por uma nuvem de pó e dissimulo.

Não pagava impostos aquela gente miserável,sem registro no cartório. Analfabetos.

Ruelas sem árvores, sem iluminação,desolação a céu aberto, deserdados da sorte,

condenados à morte, sem remissão.Casebre de pau-a-pique com folhas de palmeiras.

Sorte que viviam à jusante do rioe as sujeiras desciam na enxurrada.

10Os Albinos do Quilombo

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46Prófugos da escravidão, desmemoriados,

descendentes de escravos forros esquecidos.

Albinos escondidos, como leprososvivendo com os espíritos errantes,possuindo seus corpos em transe

em noites argênteas e premonitórias.

Conhecido como bairro dos albinospor causa de seus hábitos noturnos.

Extrema brancura da pele, não obstanteas feições negróides e cabelo enrolado.

Ostentavam olheiras escuras e usavamroupas folgadas até às extremidades.“São holandeses”, garantia uma velha

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47já centenária e cega de catarata.

Bastardos abandonados pelas nauscondenados à diáspora infinda dosnão-cristãos, primitivos, animistas.

Nas labaredas eternas do infernodas regiões equatoriais, a pele em chagas.

Havia também espécimes listradose malhados como vacas e zebras.

Expostos como atração bizarraou exterminados em partos clandestinos

para não se ter que alimentá-losna penumbra de choças, como inúteis.

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48Protegidos pela escuridão e o anonimato,

dialogando com as almas dos falecidos,comendo raízes sem sal, com papeirasdeformes como galinhas agourentas.

Um deles trajava vestes femininasquando deu à luz um monstro

que ostentava um rabo de réptile uma genitália de jumento.

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Sabia Rimbaud de memória,ruminava versos de poetas malditos.

Poetas de almas doentesvivendo em paraísos artificiais,

flores do mal.

Que paraíso haveriaalém daquele criado por Deus(que era um inferno, admitia).

Nelson havia ressurgido da tumba.

11Poetas Malditos

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50Havia precedentes na Bíblia,

ressurreições, mistérios insondáveis.

“Aprendeu francês com o demônio”—sentenciou o pároco Fernandes—,

no inferno,onde conversava com hereges e degenerados.

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As irmãs Teixeira andavam alvoroçadascom a chegada do circo.

Um engolidor de facas, a mulher barbada,os palhaços (farrapentos), leões (famintos),

e o trapezista bonito de olhos azuisque fisgavam os corações das meninas!!!

Artistas tocando tambor pelas ruas da cidade.Uma contorcionista, e sobre um elefante,o empresário com chapéu de lantejoulas.

A lona (remendada) no descampado

12O Circo Chegou

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52ás margens do rio Parnaíba.

Um galinheiro de gente apinhadomas era mesmo bonito o trapezista de olhos azuis.

Louro como nos contos de fada.

Só não estava láa desafortunada da Nevesporque estava prometida

a um fazendeiro rico.

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O espírito baixou no terreiro dos albinos.—”Vosmicê vai ser como uma cortesã,

coberta de jóias, vai ver o mar

e morrer pelas próprias mãos”.

Desconjuro!Neves estremeceu.

Quem seria o rico fazendeirocom quem esposaria?

Só podia ser um velho feio,

13O Vaticínio

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54um gordo sujo.

Mas havia o consolo do mar.

Pra que serviriam as jóiasa uma prisioneira?

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A miséria como maldição.Secas intermináveis

devastavam plantação e gado.

As vendas de muitas portasna rua de São Pedro

e poucos compradores.

Passava a procissão do Senhor Morto,passava a procissão de São Pedro de Alcântara,

passava fomee um bumba-meu-boi em farrapos.

14Ventos Aziagos

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56Passavam a febre amarela

e a cólera-morbocombatidas com suco de limão,infusões de pimenta malagueta,

enxofre em pó nas meiase a simpatia das moedas de cobre

penduradas no pescoço.

Apensados, obstrutos e ventruosidades—nó nas tripas e beriberi.

Passava sezão, gota, pleurismaligna e verminose.

Vivia-se de enfermidadesaviando medicamentos.

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57Morria-se na véspera,

antes mesmo de nascer:corpos adubando o solo.

Havia mais mortos enterradosdo que vivos, e do fundo

da terra, milhares de olhosobservando os mortos futuros.

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O noivo veio a cavalo.

Não tinha parentes nas redondezas.

Recebeu a menina depois dos ofícios

(do sacrifício no altar)

como quem recebe uma encomenda

e enganchou-a na garupa

para uma viagem de incômodos

e soluços.

Via-a como um fardo

que agora deveria alimentar

15O Casamento

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60e servir-se dela como esposa.

Ela sentiu a gravidade de seu desterro.

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Aprendeu a língua dos mortos.Em vez de roncar, recita textos em língua ininteligível.

Coisa de sonâmbulo, de morto-vivoque vive duas vidas:

uma regular, como todo mundo,e a outra habitada por divindades e demônios.

Deve ser o sânscrito, o aramaico,um dialeto da Ásia menor

ou o tal de papiamento que ninguém sabe de onde é.

16A Língua dos Mortos

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62Não pode ser o latim

—garante o pároco— que é língua de santose não de bruxos.

Tio Nelson escrevia versos na calada da noitenaquela caligrafia que nem ele entendia.

Palimpsestos sobre papel de padaria, matéria de paleógrafos.Escrevia-os para os espíritos.

“– Todo homem deve escrever os seus pensamentos, para a posteridade.

Mas só deve revelá-los depois de morto.”

– Mas ele já morreu...

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63

A bússola apontapara

o sul.

As galinhas uivame os gatos assoviam;

os patos solfejame as vacas sonham.

Nestas terras abandonadasnão se pronuncia

17Tanto Sol

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64o nome de Deus

sem o arrepio da dor—clamor e penitência.

Carcarás domesticadosos homens-jegues arrependidos

com seus fardos .

Os pássaros desencantadosos romeiros e as rameiras

e os retirantes, penitentesos esmoleres conformados

e os tropeirose os ciganos

—discursos ensarilhados.

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65Nestas terras de usura

não tem fartura,se tortura, não hásossego e perdão;

tem gibãoe fogo na carnatura— ave de arribação.

Nas agruras do sertãonas lonjuras insondáveis

vaga o homem, e cismaem seu confinamento— tanto sol e solidão.

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66

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67

Dona Filomena amanhecera mortaao lado do marido.

A mão na testa—sentiu a frieza da ausência de vida.

Florêncio não saberia mais viver sósem o amparo da mulher (ou mãe).

Não sabia onde estavamos chinelos e a ceroulaque ia usar naquele dia.

18O Passamento

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68Depois vieram as carpideiras

e um enterro com pompase luto fechado.

Mal não fariam à defuntaaquelas ladainhas e orações solenes.

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69

Na penumbra de uma lua minguante enxergouuma casa modesta, coberta de telhas arruinadas

e nenhuma cama decentepara descansar da fadiga caminheira.

Redes no meio de um quarto sem adorno e sem móveis.Um cenário de sombras.

O sátiro arrojou-a na rede sujae esforquilhou-se sobre seu corpo trêmulo,

despindo-a com rudeza,com os pés plantados no assoalho.

O Coito do Sátiro

19

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70

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71Desvestiu-se da camisa e,

uma pernadepois da outra,

desvencilhou-se da calça de brim escuro.Apareceram, então, entre as pernas,

dois pênis imensos excitados e vibrantescomo duas serpentes libertas.

Dois pênis sobrepostos, olhos de fera, faiscantes.

A lamparina extinguia-se lampejante,exalando um cheiro de queimado.

Carnes indefesas,busuntou-a com sucessivas demãos de saliva grossa

e começou a introduzir-se com fúria.Tamanha a dor e acabou desfalecendo.

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72Depois ele repetiu o assalto pelo ânus.

Começou a penetrar as cavernas até não mais poder.

Um estrebucho de frêmito até aos estertoresdo gozo, relinchando vitorioso.

Acordou as galinhas nos poleiros e os animais nas coxias.O sangue jorrava dela

enquanto o fauno saía correndopara o riacho próximo,

arrojando-se nas águaspara apagar as brasas de seu corpo enfermo.

IIO silêncio acometeu os corpos exauridos.

O homem estremecia no sonho saciado

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73e perturbava a noite com os roncos de bicho extenuado.

A jovem no torpor de um pesadelo e gemidos constantes.

Na tarde do dia seguinte abriu os olhos e viuas réstias de luz invadindo o quarto hediondo.

O companheiro dormia um sono ruminante.

Saiu engatinhando até a soleira da portapara ofuscar-se com as luzes invasoras

de uma tarde declinante.

Avistou uma ingazeira portentosa e um pasto ralono horizonte difuso.

Encontrou mais adiante um cocho com água da chuvae meteu a cara até sentir afogamento

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74quando percebeu que estava nua.

Viu um machado repousando junto à porteirae agarrou-se a ele com a força que não tinha.

Sentiu o ímpeto de salvar-sevalendo-se daquele instrumento de justiça.

Tentou arrancá-lo das entranhasda madeira de um tronco caído

mas não foi capaz.

Ainda intacto o saco em que trouxera seus minguados pertences.O vestido de noiva prostrado sobre o chão poeirento.

Saiu avexada até embrenhar-se na caatingaem direção desconhecida.

Errando pelos caminhos de tropeços e espinhos.Arfando e farejando “com sôfregas narinas”

como escreveu o poeta Humberto de Campos.

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75

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76

Minhas sandálias puídas,minhas ancas aviltadas,

minhas entradas sofridas.

Aves desterradas, potrancas.Andar fatigante. Feridas.

Sol luzidio, inclemente, assim arredio e abrasante,

— estradas, sustos, arrepio..

A Penitente

20

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77 A que pecados corresponde

semelhante castigo;a que infâmias e insânias

estarei sujeita— umbigo cortado, mal

das entranhas, encarnações.

Medos, tamanhas provações.Uma dor estranha e alheia— sem culpa, sem remissão,

de um perdão que nãose alcança: previsão insana.

Espinhos, cansaços, solidão.

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78

O rio é uma coisa viva como uma serpente,

uma nuvem em estado líquido.

Sem estribeiras,destruindo choças e roças

ao longo das ribeiras.Penitências.

O rio é vingativoe violento

quando se vê encurralado

Ciclos21

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79mas as cheias

depositam húmus sobre as terrasde plantio.

Depois, o estioe suas consequências.

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80

22A Decisão

O patriarca definhava: ácido, distraído, casmurro. Falando pelos corredores, imprecação aos muros,

mais acordado que dormido, dormido quando acordado.

Convivendo com a defunta, alma ausente. Mais morto que vivo.O irmão Nelson não dava sinais de envelhecimento

— meio-morto ou meio-vivo. Restavam as filhas, descartada a fugitiva.

Pior eram as secas, acentuadas pelo desmatamento. Seres predatórios, merecendo a fúria dos elementos

— castigo pela insânia e pela ignorância. Era hora de partir.

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81Que viesse a represa prometida, que os afogasse a todos

e extinguisse peixes e sonhos: pasmaceira e atraso. Política menor, sem voz própria.

De circunlóquios e ventríloquos.

Restava o caminho do sul.

Decidiu não mais recompor os estoques da farmácia.

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82

23Tralhas e Trilhas

Havia uns móveis antigos e arruinados que ainda lembravam a linhagem dos Teixeira.

Fotos de família em molduras ovaladase um piano decrépito, descascado

que guardava pompas antigas da estirpe.

Vendeu tudo ao preço que podiam pagar. Jogou o que sobrou num baú velho,

umas roupas em malas de couro e negociou um frete até Fortaleza,

de onde partia o Ita para o sul. ***

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83

O mar era verde, era azul, era vermelho, era branco, era cinza.Vastidões sem termo, espaço-tempo refletindo angústias.

Queria morrer. Via sargaços e aves e revia o gado perdido no campo.

Chorava para si.

Mermavam suas forças. Não falava nem ouvia. Nem via mais o mar, olhava para dentro.

Aguas revoltas apoucavam as criaturas.As filhas, mocinhas, em estado de graça, libertas

numa taça de champanha, borbulhantes, as espumas subiam das quilhas ao convés.

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84

Florêncio via a claridade brancada caatinga nos dias excessivos.

As crianças correndo atrás de um cabrito assustado.Sombra de ingazeira generosa

e um claror repentinoque apagava tudo no céu sem fundo.

Remoia e ruminava sempreos mesmos episódios de sua vida pequena.

Havia um sol branco que cegava,que vinha da infância.

24Lampejos

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85

Queria morrer,ultrapassar as fronteiras da vida,

reencontrar-se com Filomenaque partira desta para melhor.

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86

Nelson vivia absortodentro de um terno de defunto.

Não falava nem ouvia.

Devia contrapor as sensaçõesque estão em tempos diferentese em espaços sem contigüidade,

inteligindosem a razão do entendimento.

25Absorto

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87

Acometido por uma síncope fulminante,nem chegou a pedir socorro.

Em sua menteimagens

numa sucessãode fogos de artifício:

a casa em que nascera,o rio manso deslizando,

as cabras galgando as pedras insolentes,relíquias de família no oratório da sala,

e a cena do estupro

26Horror

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88da esposa

pelos bandidosna noitedo cerco

à fazenda.

O horror estampado na face do morto.

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89

Morto, irei por onde queira a força do vento

por não haver pensamento.

Como poeira ou nuvem passageira

sem destino algum.

Livre, finalmente sem constrangimento

e contente.

27In Memoriam

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90Contente, sem sentimento

do mundo, no silêncio profundo.

Contente, de contido redimido de culpa

e sofrimento.

Ido, simplesmente por não ir por conta

própria.

Desponta o quê na outra ponta ao não-crente?

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91Permaneço ente ou desapareço para sempre?

Vagarei com os mortos esperando a volta

como castigo?

Recolhido ao jazigo quer-se paz

ou tanto faz?

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92

Para quem nada tinha,nada lhe faltava.

Um guarda-roupa improvisado com tábuase uma velha poltronasuspensa no tempo.

Sem exigências de espaço.Celibatário.

Lia e reescrevia os mesmos livros,escrevia e reescrevia os mesmos textos.

28O Quarto de Nelson

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93

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94Mergulhado nas trevasvislumbrando paisagens

intermitentesde abandono

e extrema felicidade.

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95

As irmãs Teixeira foram morar no Rio de Janeiro.Fizeram curso de datilografia

e para auxiliar de escritório e secretária. Que mais havia?

Neusa trabalhava na agência dos correiose ganhava para comprar os tecidos

com que costurava as próprias roupas(e para o pó de arroz).

Bordavam monogramasincompletos

29Monogramas

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96em peças de enxovais adventícios.

Pontos de cruz e meandros de crochê.

Iam às matinês dos cinemase ao clube

ávidas de futuroe folhetim.

Tio Celino alertava para as licenciosidadese promiscuidades da cidade grande.

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97

Nazinha conheceu um militar no bonde—era bonito e altivo

e ostentava bigodes de bolero—e casou com véu e grinalda.

Ela falava umas coisas,ele ouvia outras.

Arrumava a sala todos os diase passava cera e escovão no assoalho.

Neusa nunca desceu da nuvemem que pairava sobre a terra.

A face redonda como lua prateada,

30Acasalamentos

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98falava direto às estrelas.

Adorava sonetos de Fagundes Varela e Olavo Bilac.Sempre arrumadinha, coque e coquete

esperando algum confete.Casou com um português

que se dizia fidalgoe lidava com secos e molhados.

Inês era tão recatadae foi às núpcias com um francês

que era professor da Universidade do Brasil—ela dedicou-se aos cuidados da casa,

ele às discussões sociológicas e ideológicas de diae às farras e fanfarras de noite

nos inferninhos da zona sul.

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99Neves, desaparecida

desde a fuga da lua de felde um casamento forçado.

Livre, e entregue à própria sorte.

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100

Mulher no mundo dos homens,Neves reunia forças

para vencer os preconceitos.

A versão sempre no lugar do fato,vivendo de aparências.

Vivia com um homem desquitadosujeita ao disse-me-disse,

a toda resistência.

Teúda e manteúda,evidência pública de concubinato.

31A Gata Borralheira

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101Neves só percebeu a dimensão da anomalia

de seu relacionamento privadoquando reencontrou a família.

As irmãs casadas de papel passadoe ela em amasiato escancarado.

O Piauí de sua infânciaera um subúrbio no Rio de Janeiro

nos tempos do pós-guerra.Descobriu que há várias cidades

numa sóe que há vários tempos

em um tempo só.

Só se tem uma vida para vivere deu a volta por cima.

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102

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103

I Andava amarrotado, mas limpo.

Ia à Lapa pela rua Mem de Sá,

um gentio despejado nas calçadas.Famílias congestionavam os sobrados decadentes.

Idosos na porta dos prédios,vendedores ambulantes, prostitutas

postadas nas esquinas e subindoescadas

de pensões soturnas

32Longa Jornada Noite Adentro

(Rio de Janeiro, 1955)

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104e bêbedos trôpegos pelo caminho.

Alamedas opacas do Passeio Público,(ainda havia) filas nos cinemas do calçadão da Mesbla.

Ia do Hotel Serrador ao bar Amarelinho.Casais saíam do Teatro Municipal,

pederastas em alvoroço próximos ao Palácio Monroe,e aquelas ruelas fedorentas atrás da Cinelândia.

Havia teatros de variedades, gafieirase uma concentração de bondes no Tabuleiro da Baiana,

bares e becos na solidão dos esquecidos.

IIMulheres fantasiadas para o prazer alheio,

lojas fechadas, portas com grades e ferrolhos—que a noite descia com seus disfarces.

Page 106: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

105Na Praça Tiradentes havia hotéis iluminados,

sons vinham de dancings,marinheiros abraçados com suas namoradas

e os desempregados na direçãoda estação D. Pedro II para os derradeiros trens.

No Campo de Santana, sem grades e portões,os notívagos buscavam aventuras,

os saídos de sinucas e bilhares vinham urinarno mictório ou nas árvores

entre gatos e preás, ratos e deserdados da sorte.

Fazia aquele percurso até muito tarde.A boca é que ouvia, os ouvidos enxergavam,

as mãos gesticulavam —grandiloqüentes—e sentia odores e pressentimentos.

Page 107: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

106III

Comia um pastel com caldo de cana.Já na Praça 11, depois do canal e das palmeiras,havia passagens obscenas na Zona do Mangue.

Nádegas gordas e a plumagem das vaginase a língua revolvendo com insinuações insidiosas.

Soldados das forças armadas e senhores bem vestidosentravam e saiam de casas mal iluminadas.

Nelson voltava, extenuado, os pés ardendoe a mente perturbada, para o quarto

vazio e tomava um banho precário,quando não faltava água, e logo dormia.

IVNa noite seguinte, e nas demais,

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107atravessava a Avenida Presidente Vargas

e voltava pela Marechal Florianona direção da Praça Mauá. Circunlóquios.

Na rua do Acre, os armazéns atacadistas,sisudos, fechados, imensas portas blindadas.

Detrás do Edifício A Noite havia filaspela madrugada —gente disputando

entrada para os programas de auditórioda Rádio Nacional. Passavam os últimos lotações.

Na porta do bar Flórida, mulheres de alugueldiante de navios insones do porto.

Podia depois seguir pela Avenida Rio Branco,passar pela igreja da Candelária e logo,

pelos becos empedrados, pelo Arco do Teles,

Page 109: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

108divisar a estação de barcas da Cantareiraonde havia barracas servindo angu quentee mate gelado e, mais adiante— e triste!—,

o desmantelamento do velho mercado central.

E por último, já cansado, fitavaas fachadas hieráticas dos edifícios públicos

do Castelo até retornar à pensãoem que vivia, detrás do morro de Santo Antonio,

já em fase de desmonte e desolação.

Tantas igrejas mudas, batentes friose alguma vela para os penitentes.

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109

33

Às vezes vagava pelas lembranças renitentes, como as do túmulo durante seus anos de ensimesmamento. Outras vezes revia episódios tristes como a partida de Neves depois do casamento forçado.

Inerte sobre o catre, olhando o teto indevassável, fluía e pervagava por espaços e tempos sem continuidade ou contigüidade, sem controle. Deambulava pelas ruas antigas do Rio de Janeiro em presença e em ausência, ruminando sensações e impressões na memória inconsútil em que os momentos e lugares fugiam da lógica das cronologias e das topografias.

Refazia percursos gravados e revividos numa sucessão aleatória. E até podia passar de um beco nas proximidades da Praça XV, no Rio de Janeiro, para as barrancas do rio Parnaíba, ou passar pela Igreja de Santa Luzia no bairro carioca do Castelo e entrar na de São Pedro

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110de Alcântara, em Floriano, sem nenhum sobressalto. Numa dessas relembranças estava na casa da fazenda dos Teixeira, já em estado de abandono, depois do cerco dos jagunços e do estupro — guardado em segredo por tanto tempo — de sua cunhada.

Talvez a casa nem existisse mais por lá, mas ele estava lá, chamado para um encontro com os antepassados, entre as penumbras da sala de visitas. Ali estavam os mortos da família, de diferentes épocas. Alguns ele nem sabia que viveram, todos reunidos silenciosamente, bastando-se com suas imanências, vagando pelos aposentos, ou postados à mesa para um diálogo sem palavras.

De repente, estava de volta às ruelas traseiras da Praça Tiradentes dos tempos em que freqüentava os teatros de variedades. As imagens da visita à fazenda dos antepassados vagando intermitentemente nas horas seguintes. Para livrar-se delas, escreveu um poema, prática que acreditava não mais fazer parte de sua rotina.

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111

os ponteiros dos relógios em qualquer direção, e as estações trocadas:

não há roce nem orgasmo nem suoresmas o corpo está ávido, aflito, lívido

haja espera e esperança (e desconsolo)no reverso incongruente da vida:

nesse viver em morte contíguae exígua, irredutível, solerte

34Do Outro Lado da Vida

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112sentado na poltrona, adernoe o tempo, lá fora, estanca:

eu aqui dentro, a vida forade mim, exangue e ausente

— buscando lugares inexistentesnuma inteléquia de despistamentos

ou numa estratégia de inconformidade.

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113

Os mortos da família— tataravós, avôs, mães, filhos, netas —

em conclave familiar— intactos e imputrescíveis

desde as suas mortes.

(Os mortos eternizamsuas idades de mortos:

não caberia dizerconvivendo entre mortos).

Mortos de diferentes idades,

35Visita à Casa Paterna

ttt

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114mas eternos

— imortais, se se quer.

Alguns jovens comfilhos mais velhos

— ironia da eternidade.

Reunidos à mesada casa paterna, fartos,

não demandam banquetes— inertes, impávidos, e graves.

Vêm de tempos alternose descompassados

ao colóquio,numa genealogia

Page 116: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

115de afirmações e recorrências.

Antepassados?À mesa, presentes, constantes,

vigiando suas passadas existências— nos parentes, pelo sangue extinto

e permanência.

Nas sombras,entre os mortos futuros

das gerações conseqüentes.

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116

Entra ano e sai anoe não saio do lugar.

36Repasso

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117

É quando a memória me impõe suas condições, me contradiz, refaz situações

que relegara ao esquecimento. Desencontros, desconsolos, descalabros.

Recupero detalhes que nem percebera antes! Aparta de mim estas evidências!

Revejo o que nem havia visto! Basta! Quero escapulir pela tangente,

pelas mãos do amor que já esqueci e que era único, definitivo, insubstituível.

Às calendas! Que não venham as amargas lembranças

37Os Nervos da Memória

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118que eu releguei ao esquecimento, mas que afloram como cogumelos.

Que ressuscitem as paixões que me incendiaram até se desvanecerem em situações tão adversas. Não agüento mais!

Quero recuperar o que mais queria e me vem o que mais desprezei.

A memória é infensa aos meus apelos (tem nervuras sensíveis:

contradizem minha vontade) e me devolve o que já ruminei

e vomitei tantas vezes.

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119

Em solstício me esqueço e permaneçoinerte, centrado, desabitado de “outremninguém”, no solilóquio desfreqüentado,

em precipício, insulado, no artifíciode manter-se uno, desobrigado, inteiro

e poder bastar-se, derradeiro, e asilar-se.

No meu solipsismo radical de celibatonem cultivo o recato, afinal presumido,

possuo sem ser possuído, se possuído nãocultivo sentimentos, assumido temporão.

38Solistício de Inverno

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120Não, não e não! Eu me afasto do mundo

no mais profundo desvão, nem por isso castopois a sina do recato me alucina

com sortilégios, impropérios e falsos remédios.sombras densas diluindo-se

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121

sombras cruzadas sombras

em direções opostas

justapondo-se

( sombrasombras )

sombras de sombras

39Paisagem com Sombras

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122

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123

A casa com muitas portas e nenhuma saída ou entrada.

O caminho de muitas voltas, sem retorno.

Havia muitos livros mas era o mesmo

livro que eu lia sem fim nem começo.

Depois o trem me trazia de onde eu não estivera

O Trem40

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124ou, estando, não sabia

se ia ou se voltava.

Mas eu ia e voltava, voltava e reconhecia sem ter visto antes —se é que eu via.

Não havia ir nem voltar, conhecer ou reconhecer

mas havia, sim, havia o trem que ia e vinha.

O caminho é que é (nem mais) era outro

— estoutro, se dizia —

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125e de trem é que se ia.

Não sei bem aonde, menino que eu era,

pois já devia ser memória do não ser.

Mas, se o trem era, eu haveria também de ser,

e a paisagem, se havia ah, se havia, já não era.

Os trilhos que iam e vinham, eram os mesmos

mas o trem que ia não era o mesmo que voltava.

Page 127: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

126E eu, se ia, não voltava

ou era outro, o trem em trilhos imóveis

de ir e vir.

Page 128: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

127

Hei de morrer pelas próprias mãos.

Não, eu não pedi para nascer,posso morrer a gosto e a destempo.

No mundo dos homens— ledo engano!!! ,

apenas uma mulher...

Meu imposto marido feneceu.Eu não sou viúva, sou livre!

Mas a família — crosta ósseae impermeável —me segrega.

Monólogo da Enjeitada41

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128

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129Quando estiver realmente só,

irremediavelmente só,meu companheiro ido, havido,

e não puder viver sozinha

hei de morrer pelas próprias mãos.Cumprindo meu desígnio,

meu arbítrio, minha maldição.

Page 131: DO AZUL MAIS DISTANTE, poesia, livro de ANTONIO MIRANDA

130

Nasci em 1888 (ou em 1899) no Piauí,na cidade antiga de Floriano.

(Não sou monarquista nem republicano.)Fui enterrado vivo em 1925durante uma peste sazonal.

Desenterrado dez anos depois,vivo em vários tempos

simultâneose em lugares

diferenciados.

42 Ubiquidade

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131Personagem de mim mesmo,

não durmoe troco as noites pelos dias

sem a certeza da morte.

(Não sou albinonem guarda-noturno:

sibilino,do azul

maisdistante.)

Vou sobreviverao meu criador.

Assino, Nelson Teixeira.

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132

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