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Gabriel Leite de Freitas Junior DO BRASIL IMPÉRIO AO INÍCIO DO SÉCULO XX: UMA VISÃO LUSO- BRASILEIRA DO SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS LEIS LABORAIS Trabalho apresentado como requisito avaliativo à obtenção de nota à disciplina de História do Direito Português do curso de Mestrado Científico em Ciências Jurídico-Empresariais com Menção em Direito Laboral pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor Doutor Rui Manuel de Figueiredo Marcos Coimbra 2019

DO BRASIL IMPÉRIO AO INÍCIO DO SÉCULO XX: UMA VISÃO …

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Gabriel Leite de Freitas Junior

DO BRASIL IMPÉRIO AO INÍCIO DO SÉCULO XX: UMA VISÃO LUSO-

BRASILEIRA DO SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS LEIS LABORAIS

Trabalho apresentado como requisito avaliativo à

obtenção de nota à disciplina de História do

Direito Português do curso de Mestrado

Científico em Ciências Jurídico-Empresariais

com Menção em Direito Laboral pela Faculdade

de Direito da Universidade de Coimbra.

Professor Doutor Rui Manuel de Figueiredo Marcos

Coimbra – 2019

2

Gabriel Leite de Freitas Junior1

Sumário: Introdução; 1. Direito do Trabalho; 2. Contextualização Histórica; 3. A Questão

Social; 4. A Autonomização do Direito do Trabalho; 5. Corporativismo; 6. A Igreja e as

Condições Laborais; 7. O Plano Internacional; 8. A Legislação Trabalhista em Portugal; 8.1.

Das Ordenações à Primeira República; 8.2. Marnoco e Souza; 8.3. A Primeira República; 8.4.

O Estado Novo Corporativo; 9. A Legislação Trabalhista no Brasil; 9.1. De Colônia a Império;

9.2. A Regência e a Abolição da Escravatura; 9.3. Da República à Solução do Estado Novo;

Conclusão; Referências Bibliográficas.

Resumo: O presente trabalho procura delinear a evolução histórica da criação das

primeiras leis trabalhistas em Portugal e no Brasil, contextualizando estas no panorama

internacional da autonomização do Direito do Trabalho. Ramo recente no ordenamento jurídico

mundial, o Direito do Trabalho evolui interligado com os fenómenos sociais, políticos e

económicos surgidos com a Revolução Industrial, particularmente, com a denominada Questão

Social. A legislação trabalhista produzida por Portugal e Brasil, particularmente no início do

século XX, é reflexo dessa evolução, contribuindo simultaneamente para a sua consolidação.

Resposta à conjetura internacional e nacional do século XX, as primeiras Repúblicas e os

Estados Novos subsequentes, vão introduzir copiosa legislação trabalhista. Assim, a obtenção

de direitos laborais sofre, em Portugal e no Brasil, notável contributo dos regimes republicanos,

sob influência de diretrizes internacionais. Processo que prossegue com os regimes autoritários,

incorporados na solução corporativista protagonizada. A legislação produzida neste período fez

história e tornou-se um marco no desenvolvimento do Direito do Trabalho, cimentando uma

mudança conceitual das funções do Estado, a que correspondeu uma notória melhoria de

condições laborais e de proteção do trabalhador. O que nos permite considerar a importância

assumida pelo recente ramo do Direito do Trabalho.

Palavras-chave: Direito do Trabalho – Legislação Trabalhista – Questão Social – Portugal -

Brasil.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande-UFCG; pós-graduado em Direito do

Trabalho e Previdenciário pela Faculdade Católica do Rio Grande do Norte; atualmente pesquisador e mestrando

em Ciências Jurídico-Empresariais com Menção em Direito Laboral pela Faculdade de Direito da Universidade

de Coimbra, residente em Coimbra, Portugal. Endereço eletrônico: [email protected].

3

INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura desenhar a evolução histórica da criação das primeiras

leis trabalhistas em Portugal e no Brasil, contextualizando estas no panorama internacional de

emergência do Direito do Trabalho. Ramo recente no ordenamento jurídico mundial, o Direito

do Trabalho sofreu alterações desde a sua origem até à atualidade, acompanhando as dinâmicas

societais. Como nos diz Teubner: “A evolução sócio-jurídica é assim caracterizada pela

interacção entre aquela evolução “endógena” do sistema jurídico, por um lado e esta evolução

“exógena” da envolvente social, por outro”.2 Realizaremos então, para melhor compreensão

do tema, uma breve abordagem histórica da emergência do Direito do Trabalho e do seu reflexo

na legislação trabalhista internacional, atentando sempre à sua interligação com os fenómenos

sociais, políticos e económicos concomitantes. Em um segundo momento, iremos descrever a

evolução em Portugal e Brasil da legislação produzida, particularmente no início do século XX.

Período fértil para o estabelecimento e consolidação de direitos, fruto da conjetura internacional

e da emergência de novos regimes estatais. Quer as repúblicas de curta duração quer os regimes

autoritários sucedâneos, são responsáveis pela introdução de copiosa legislação trabalhista, que

reflete a autonomização do Direito do Trabalho, e cujo legado perdura até hoje.

1. DIREITO DO TRABALHO

O Direito do Trabalho “pode ser definido como a parte do ordenamento constituída

pelas normas e princípios jurídicos que disciplinam as relações de trabalho. (…) [Como ramo

do ordenamento jurídico] está em causa a ordenação de uma determinada zona da realidade

social a partir de certos valores basilares, entre os quais avulta a justiça (…) [traduzida] em

normas e princípios (relevados pelas fontes de Direito: a lei, as convenções colectivas, etc.),

destinados a resolver conflitos de interesses que se suscite, nessa zona da realidade social.”3

Particularmente, o Direito do Trabalho trata um fenómeno social, i.e., as relações de trabalho

humano, produtivo, livre, por conta alheia, subordinado e realizado em regime privado, que se

considerado com as características que atualmente lhe atribuímos, é recente. Como iremos ver,

apenas no final do século XVIII se inicia, com a Revolução Industrial, a sua generalização.4 E

2 TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.

110. 3 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 33. 4 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 39.

4

é após a Revolução Industrial que se realiza a significativa separação entre titularidade do

trabalho e dos meios de produção, forçando trabalhadores a, em troca de meios de subsistência,

ceder o seu labor aos poucos que detêm os meios de produção.

Deste processo resultam situações de injustiça no funcionamento das relações

contratuais, sujeitas a uma completa desigualdade na detenção do poder. O modelo de relações

contratuais foi-se agravando, exigindo, com cada vez maior premência, a intervenção de um

regulador, isto é, de um Direito do Trabalho. No final do século XIX a produção normativa

específica intensifica-se, permitindo o aparecimento de uma nova área jurídica, com autonomia

própria. Como tal, o Direito do Trabalho, ramo com pouco mais de um século de existência, “é

um Direito moderno, que surge com a Revolução Industrial, o operariado, as lutas entre o

capital e o trabalho e as reflexões provocadas por esses mesmos problemas, isto é, a questão

social”.5

2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Como afirmámos, embora a relação laboral exista desde os tempos mais remotos, o

Direito do Trabalho apenas surge com a Revolução Industrial e posterior necessidade de

produção normativa.6 Na Antiguidade não havia um corpo de normas sistemático que tivesse o

trabalho como objeto específico. Nessa época o trabalho é desvalorizado e encarado como

pouco dignificante para quem o realiza. A jurisdição relativa ao tema encontra-se dispersa, em

normas de âmbito mais geral, que regulam a propriedade (e.g., a escravidão) e a locação ou

arrendamento (e.g., regulação de relações de serviço). No Direito Romano o escravo era

considerado na sua condição de coisa (res).7 Por sua vez, o trabalho do homem livre era

regulado através da figura do locatio-conductio operarum, contrato celebrado entre homens

livres, de forma consensual, oneroso, de boa-fé, e do ius gentium, através do qual alguém

(locator) se obrigava a prestar a outrem (conductor) a sua atividade laboral (operae), mediante

uma remuneração (merces).8 De realçar que o objeto de locação era o trabalho, não o

trabalhador.9

5 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 40. 6 AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: noções básicas - 1ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 14. 7 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 273. 8 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 217. 9 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 274.

5

Na Idade Média o trabalho continua a ser desvalorizado e próprio de seres

inferiores. Vai assentar, essencialmente, sobre a figura do servo que, embora não seja escravo,

permanece num estado de sujeição, preso à terra e ao senhor feudal que serve. Nos núcleos

urbanos desenvolve-se a economia artesana, organização produtiva que cria bens em grande

quantidade. É nesta fase que surgem as corporações de artes e ofícios, agrupamentos de artesãos

de um mesmo trabalho, cada uma com seu regulamento próprio. Constituindo-se durante a

Idade Média e Moderna, as suas normas são influenciadas pelo caracter comunitário e

hierarquizado das relações entre Mestres e Companheiros/Aprendizes. Ou seja, desprovidas do

carácter de proteção que irá qualificar o Direito do Trabalho.10 Em França serão extintas em

1789, com a Revolução Francesa, consideradas incompatíveis com os ideais de liberdade

propagados, e o seu restabelecimento definitivamente proibido com a Lei de Chapelier, de

1791.11

O comércio desenvolve-se e crescem as zonas de trocas. Aumenta a demanda por

novos produtos e a pressão sobre os artesãos. Surge então o comerciante, intermediário entre o

artesão e o consumidor, que transforma o artesão em assalariado. Posteriormente, os artesãos

são reunidos em oficinas, as tarefas divididas e os tempos de produção controlados. Surge a

manufatura e criam-se novas indústrias. O Estado protege e incentiva a criação destas

manufaturas, tal como havia feito com as corporações. Continua a não haver um Direito do

Trabalho. Até à Revolução Industrial os trabalhadores e as suas questões pouca importância

assumem, quer no plano económico - cujo foco era o regime de trocas e não o da produção -

quer no plano político. 12

3. A QUESTÃO SOCIAL

A situação irá progressivamente alterar-se com a desintegração da economia

corporativa e o início da produção industrial. Surgem louvores do poder político ao trabalho,

particularmente ao empreendedorismo, e da preocupação com a produção surge a questão do

valor do trabalho. Ainda assim, para os trabalhadores, as condições de trabalho deterioram-se.

No final do século XVIII, com o advento da maquinofatura, o Capitalismo instala-se na

10 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 278. 11 SANTOS, Daniel Moita Zechliskni dos. Flexibilização da Norma Trabalhista no Brasil. Dissertação de Mestrado

apresentada à Pró-Reitoria de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul, 2006. Disponível em:

https://repositorio.ucs.br/handle/11338/267 12 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 279-281.

6

produção. Encara o trabalho humano como simples parte do processo de produção, sujeito à

lógica do mercado e à procura do menor custo de produção. O trabalho é repartido ao ponto de

ser executado por qualquer sujeito (e.g., crianças, mulheres) e realizado à velocidade imposta

pela maquinaria recentemente desenvolvida. Ao degradar das condições de trabalho associa-se

o crescente desemprego. Os Estados, sob o signo do Liberalismo, não intervêm e a classe

operária, sem qualquer proteção legal, vê a sua situação piorar. É neste contexto que surge a

referida Questão Social. Irá exprimir-se através das reações dos trabalhadores (e.g., greves,

protestos) e por um crescente apelo ao associativismo, originando um movimento operário de

luta e contestação. Os sindicatos, forma organizado do movimento operário, procuram a

melhoria das condições de vida e trabalho dos operários. Será este movimento que irá originar

um debate ideológico, direcionado para a valorização do ideal de trabalho e modificação das

condições em que se realiza. Postula ou o desaparecimento do sistema Capitalista e explorador

assente na propriedade dos meios de produção (e.g., Marxismo) ou a reforma e mudança do

mesmo (e.g., Corporativismo, Doutrina Social da Igreja).13

4. O SURGIMENTO DO DIREITO LABORAL

O Direito do Trabalho demora ainda a aparecer. Na Europa, que vive sob o signo

do Liberalismo e da não intervenção Estatal, o espaço jurídico vai ganhando espaço na esfera

pública, particularmente no plano constitucional, mas também na esfera das relações privadas.

O século XIX é marcado pelo surgimento de codificações civis.14 O primeiro Código Civil é o

francês (denominado Código Napoleão), em 1804, seguido pelo Código alemão, que entra em

vigor em 1900. Ambos ignoram a problemática juslaboral. Na base desta omissão está o facto

de que estes Códigos consistem numa reformulação das fontes românicas. Como não existia

qualquer tipo de consistência neste domínio, o direito laboral acaba ignorado.15 Em Portugal,

Marnoco e Souza avisa: “Os Códigos civis (…) abandonaram o trabalho inteiramente à

violência da concorrência e às alternativas da lei da oferta e da procura. O contracto de

13 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 281-284. 14 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 285. 15 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 285.

7

trabalho ocupa nesses Códigos um logar obscuro e secundário, quando todos os contactos que

se referem à propriedade mereceram a maior atenção e cuidado do legislador”.16

Só no final do século XIX é que se inicia o movimento que vai autonomizar o

Direito do Trabalho. A democratização, o sufrágio universal e o crescimento do poder político

dos sindicatos permitem aos trabalhadores adquirir um maior poder reivindicativo. As classes

dirigentes começam finalmente a mostrar-se sensibilizadas com a Questão Social. Impõe-se a

criação do novo conceito de justiça social. A Constituição republicana alemã de Weimar, de

1919, marca essa mudança. Elaborada como forma de responder aos problemas básicos da

sociedade (e.g., educação, trabalho, habitação, saúde) e às novas exigências dos é caracterizada

pelo intervencionismo do Estado com fins de solidariedade e justiça social.

As primeiras intervenções legislativas que pretendem responder à Questão Social

procuram eliminar os seus aspetos mais opressivos, proteger as categorias de trabalhadores mais

fragilizadas (e.g., menores e mulheres) e minimizar os efeitos adversos do trabalho (e.g.,

legislando sobre a higiene e segurança nos locais de trabalho e sobre a duração da jornada).

Contudo, será necessário alterar os princípios jurídicos básicos do sistema individualista e

liberal, como a proibição do associativismo profissional (para melhor funcionamento do

mercado), o primado do contrato e da autonomia da vontade (alicerçados numa suposta

igualdade de poder entre empregador e trabalhador) e na propriedade da empresa (que permitia

encarar o trabalho como simples fator de produção). O surgimento do Direito do Trabalho vai

assim simbolizar esta profunda mudança do ordenamento jurídico nesta temática, quando se

aceitam juridicamente as associações profissionais (sindicatos), o direito ao conflito (greves) e

à negociação (contratação coletiva), na procura do restabelecimento de um equilíbrio de poder

e se limitam os princípios da autonomia da vontade, submetendo o contrato a normas de ordem

pública que regulam a posição dos trabalhadores.17

Assim, a legislação relativa a esta temática aumenta internacionalmente e

nacionalmente. A sua aplicação, contudo, não é extensível a todos os trabalhadores. É aplicável

aos operários, aos que labutam nas fábricas. Em Portugal, Marnoco e Souza, mais uma vez,

alerta contra esta discriminação: “é mesmo perigosa, pois deixando sem protecção os operários

16 SOUZA, Marnoco e. Caracteres da legislação operária. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Universidade

de Coimbra, 1914, p. 96. Disponível em: https://www.fd.uc.pt/bfd/downloads/pdf/bfduc_1914.pdf Acesso em:

02/07/2018. 17 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 43.

8

agrícolas, estes emigrarão para as cidades, despovoando os campos e fazendo crescer a onda

dos operários urbanos, cuja vida se tornará cada vez mais difícil.”18

Na primeira década do século XX vão surgir as primeiras obras sistemáticas no

direito laboral. Versam sobre temas como a greve, acordos ou contratos coletivos, sindicatos, o

contrato de trabalho, e estabelecem as bases sobre as quais se irá erguer e autonomizar o Direito

do Trabalho. Este liberta-se então do Direito Civil e, perante a necessidade de novos princípios

e de novas normas, torna-se um ramo autónomo.19

5. O CORPORATIVISMO

Diferentes soluções e respostas são dadas à Questão Social. As que mais

destacaremos, pela sua influência na legislação trabalhista brasileira e portuguesa do século

XX, são o Corporativismo, a Doutrina Social da Igreja e as Convenções Internacionais.

Emergido no início do século XX, durante os anos da guerra, no seio da

instabilidade política, crises financeiras e conflitos laborais de grande dimensão, perante a

ameaça bolchevique, o Fascismo italiano vai conceber uma forma inovadora de regulamentar a

ligação entre o capital e o trabalho, o Corporativismo. Era a autoproclamada “terceira via”.20

Deve-se a Alfredo Rocco a idealização teórica do Estado Corporativo. O jurista italiano

desenvolve uma crítica ao Liberalismo, considerando que este esgotou o seu potencial e é

incapaz de resolver o conflito exposto na Questão Social. Considera que o limite do Liberalismo

é sua garantia dos direitos individuais, enquanto o Nacionalismo deve considerar como

princípio fundamental a ideia de que o individuo vive e se realiza em sua Nação, transcendente

dos elementos que a compõem, e que tem interesses superiores aos dos indivíduos. Em oposição

à tradição jurídica liberal, para quem a ideia de autolimitação do Estado é a base legal sobre a

qual assenta a liberdade do individuo, Rocco considera que os cidadãos devem sem integrados

dentro de organismos com fins superiores aos dos singulares componentes. Nega a tradição

Liberal e a solução do Socialismo, através da defesa do conceito de Nação, associado a uma

ideia de Estado autoritário. O Estado é absoluto. É uma unidade moral, política e econômica,

18 SOUZA, Marnoco e. Caracteres da legislação operária. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Universidade

de Coimbra, 1914, p. 100. Disponível em: https://www.fd.uc.pt/bfd/downloads/pdf/bfduc_1914.pdf Acesso em:

02/07/2018. 19 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 43. 20 GENTILE, Fabio. A “Carta del lavoro” fascista: um modelo para o Brasil nacional-desenvolvimentista de

Getúlio Vargas. Revista Urutágua - Revista Acadêmica Multidisciplinar. Universidade Estadual de Maringá

(UEM). N. 36, junho-novembro, 2017. Disponível em:

http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/view/39358/21568. Acesso em: 09/07/2018.

9

que se realiza integralmente no Estado fascista. Esta é a moldura filosófico-jurídica sobre a qual

se fundamenta o modelo consagrado pela Lei de 3 de abril de 1926 e pela Carta del Lavoro.21

Publicada em de 21 de abril de 1927, a Carta del Lavoro inclui já a definição de

Nação como uma unidade moral cujos fins são superiores aos dos indivíduos. Considera-a um

organismo, que tem fins, vida e meios de ação superiores em poder e duração aos dos indivíduos

divididos ou agrupados que o compõem. Expõe, em trinta declarações, os princípios

fundamentais sobre os quais foram baseadas as posteriores legislações. Tinha uma forte

componente social e proclama uma melhoria das condições do trabalho, considerado um “dever

social” e instituiu na Itália a Justiça do Trabalho, normas para trabalho noturno, descanso

semanal e férias anuais, entre outros.

Assim exposto, o estado corporativo, solução inovadora entre liberalismo e

socialismo, seria a essência do Estado Novo, 22 modelo seguido, com as devidas especificidades,

por Portugal e Brasil. Na prática, as profissões foram organizadas em corporações e para cada

profissão foi criado um único sindicato patronal e um único sindicato operário. Em lugar dos

tradicionais sindicatos, onde trabalhadores se organizam para realizarem as suas revindicações,

os sindicatos são supervisionados, sendo todos os conflitos laborais submetidos ao poder de

decisão Estatal. Aos patrões e trabalhadores são proibidas contestações (e.g., greve e lock-out).

Posteriormente os sindicatos serão convertidos em sindicatos unificados de patrões e

empregados, criando-se, em 1934, as corporações mistas. Posteriormente, a Câmara dos

Deputados foi substituída pela Câmara dos Fasci e das Corporações, composta pelos altos

representantes do partido e pelos representantes das corporações mistas, cujos membros eram

designados pelo Chefe de Estado. Na prática, tratava-se de um órgão onde grandes industriais

e proprietários rurais ocupavam lugar dominante em detrimento dos representantes dos

trabalhadores. Desta forma, o Estado fascista assumiu-se verdadeiramente como Estado

Corporativo. 23

O ideal do Corporativismo vai apelar a diferentes países, assustados com os

crescentes conflitos laborais, a emergência do comunismo e que a consideram uma solução à

21 GENTILE, Fabio. A “Carta del lavoro” fascista: um modelo para o Brasil nacional-desenvolvimentista de

Getúlio Vargas. Revista Urutágua - Revista Acadêmica Multidisciplinar. Universidade Estadual de Maringá

(UEM). N. 36, junho-novembro, 2017. Disponível em:

http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/Urutagua/article/view/39358/21568. Acesso em: 09/07/2018. 22 GENTILE, Fabio. O Fascismo Como Modelo: Incorporação da “Carta Del Lavoro” na Via Brasileira para o

Corporativismo Autoritário da Década de 1930. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 19,, 1, 2014

http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/19857/15091. Acesso em: 08/07/2018. 23 GENTILE, Fabio. O Fascismo Como Modelo: Incorporação da “Carta Del Lavoro” na Via Brasileira para o

Corporativismo Autoritário da Década de 1930. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 19,, 1, 2014

http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/19857/15091. Acesso em: 08/07/2018.

10

instabilidade e falência das recentes repúblicas. Estes vão utilizar os princípios da Carta del

Lavoro nas suas legislações trabalhistas.

6. A IGREJA E AS CONDIÇÕES LABORAIS

A Igreja Católica, através da sua doutrina social, também toma uma posição quanto

à Questão Social. Expõe e critica através de encíclicas a situação de pobreza e exploração em

que vivem os trabalhadores, vítimas do abandono dos valores por ela defendidos.24 Reafirma a

necessidade de dignificação do trabalho, o direito a um salário justo e a especial atenção que

deve ser prestada aos menores e mulheres. Particularmente influente foi a encíclica Rerum

Novarum, publicada a 15 de maio de 1891, da autoria do Papa Leão XIII. 25

Esta encíclica versa sobre as condições das classes trabalhadoras após a revolução

industrial, tornando-se um dos mais importantes documentos sobre este tema. Critica a falta de

princípios éticos e valores morais que considera uma das causas dos problemas sociais. A

emergência do comunismo merece igual opinião desaprovadora. Nela é louvado o trabalho,

afirmando-se que este não é fonte de vergonha, mas sim de honra. Faz a apologia da procura de

justiça na vida social, económica e industrial, através de uma melhor distribuição de riqueza,

da intervenção Estatal na economia em favor dos mais pobres e desprotegidos e da caridade do

patronato. Delineia inclusive as obrigações tanto de patrões como dos empregados.26 Com esta

encíclica o Papa Leão vai originar a sistematização do pensamento social católico, sendo a sua

influência notória na legislação laboral que se seguiu.27 A Igreja vai continuar a se preocupar

com a questão dos trabalhadores, publicando novas encíclicas de conteúdo laboral.

7. O PLANO INTERNACIONAL

A emergência das questões laborais, a instabilidade vivida e os conflitos resultantes

levaram à defesa de uma legislação operária internacional. A primeira tentativa é realizada por

Guilherme II, Imperador da Alemanha, ao convocar diferentes países a encetarem negociações,

de forma a produzir um acordo que possa satisfazer algumas das demandas trabalhistas.

24 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 42. 25 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 445 – 445. 26 Carta Del Lavoro. 1927. Disponível em: http://www.polyarchy.org/basta/documenti/carta.lavoro.1927.html.

Acesso em: 31/06/2018. 27 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 445 – 445.

11

Consequentemente, reúnem, em março de 1890, França, Bélgica, Suíça, Inglaterra, Áustria,

Itália, Dinamarca, Holanda, Suécia, Noruega, Espanha, Luxemburgo e Portugal, na cidade de

Berlim. Deste congresso não resultou qualquer acordo obrigatório. Ainda assim, foram

formuladas decisões, como a idade mínima de admissão à indústria (12 anos e 10 anos nos

países meridionais), a proibição de menores e as mulheres realizarem trabalho noturno e a

necessidade de as mulheres verem o seu trabalho suspenso nas quatro primeiras semanas, após

o parto. Em 1896, será da Suíça a iniciativa para uma Conferência Internacional, que falha. Em

seu lugar são realizadas duas reuniões internacionais, no ano seguinte: O Congresso

Internacional da Legislação do Trabalho, em Bruxelas, e o Congresso Internacional para a

Protecção Operária, em Zurique. A primeira destas reuniões conclui pela possibilidade de uma

legislação internacional, que a segunda reunião vai rejeitar. Em 1900 realiza-se, em Paris, O

Congresso Internacional para a Protecção dos Trabalhadores. Em 1901 começou a funcionar,

em Bâle, o Instituto Internacional de Legislação do Trabalho. Em 1903 e 1904 reúne-se,

também em Bâle, uma Comissão Internacional e em 1905, em Berna, uma Conferência

Internacional.28 Nestes encontros há resoluções adotadas influentes na legislação operária

posterior.29

O final da Primeira Guerra Mundial vai marcar um novo período para o Direito do

Trabalho. Perante a urgência de garantir a estabilidade internacional, organizações sindicais

europeias e americanas estão dispostas a participar num processo de criação de legislação

internacional do trabalho, em conjunto com governos e patrões. Dessa maneira, na senda do

Tratado de Versalhes (assinado em 1919), ocorre a criação da hoje nomeada Organização

Internacional do Trabalho (OIT)30 e consequente aprovação de várias convenções

internacionais de proteção ao trabalhador, consolidando-se como, talvez, a fonte externa mais

importante nesta temática.31 A OIT é organizada de forma tripartida, ou seja, representantes dos

governos, das associações sindicais e das associações patronais, participam em todos os órgãos

importantes. Significa incluir não só o Estado, mas também trabalhadores e patrões, na

elaboração das regras laborais internacionais. É uma inovação jurídica, que acarreta significado

político. A organização contribuirá para que em vários países, se promulgue regulamentação

28 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 282. 29 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.65. 30 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 445 – 446. 31 LEITE, Jorge. Direito do Trabalho – Vol. 1. Coimbra: Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra,

2004, p. 65 – 66.

12

protetora dos trabalhadores. Corresponde, igualmente, ao início do processo que permitirá ao

trabalhador adquirir um conjunto de direitos e regalias inalienáveis, consagrados em várias

Constituições e Declarações Internacionais, das quais ressaltamos a Declaração Universal dos

Direitos do Homem (DUDH)32, que estipula princípios inalienáveis inerentes ao indivíduo,

estabelecendo em primeiro plano o reconhecimento da Dignidade da Pessoa Humana,33 que é

hoje base do amparo normativo à parte mais frágil da relação laboral, qual seja, o trabalhador.

8. A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA EM PORTUGAL

8.1. Das ordenações à primeira república

A evolução da legislação trabalhista em Portugal acompanhou, com algumas

especificidades, a evolução internacional. Nas Ordenações Filipinas encontramos a figura da

locação-condução34 e, embora alvo de legislação, a figura mantem-se na doutrina oitocentista.35

Os aprendizes, por sua vez, encontravam-se ligados aos mestres de acordo com as normas das

corporações,36 que são extintas, em Portugal, com o Decreto de 7 de maio de 1834. O mesmo

decreto irá, de futuro, ser utilizado para proibir qualquer tipo de associação profissional,

fechando-se assim a possibilidade de existência aos sindicatos. A greve é proibida e punida

criminalmente pelo Código Penal de 10 de dezembro de 1852.37

Em 1867 surge a primeira codificação civil portuguesa, o denominado Código Civil

Seabra. Era um código de feições marcadamente individualistas, arquitetado em função de

32DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:

http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em: 02/07/2018. 33 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho – 16ª ed. São Paulo: LTr, 2017, p. 103-104. 34 “(…) as Ordenações Filipinas não hesitaram em enquadrar o serviço de criados e o contrato com oficiais e

jornaleiros na ancestral figura da locação-condução. Perante a timidez do panorama normativo, não custa

admitir que, à época, a contratualização do trabalho tivesse uma expressão social bastante reduzida.” MARCOS,

Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da Revista da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 218. 35 “A doutrina oitocentista portuguesa centrava-se no contrato entre amo e criado, considerado ainda uma espécie

de locação.” MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português.

Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 219. 36 “[os mestres] obrigavam-se a ensinar os discípulos durante um determinado período de tempo, recebendo uma

certa paga por parte dos mencionados aprendizes. Ou, em alternativa, os mestres faziam-se pagar através do

trabalho que esperavam que os aprendizes lhes prestassem conforme o ajuste contratual. Sobre o aprendiz recaía

o dever de obediência e de respeito em relação ao mestre, à imagem do que ocorria entre o criado e o amo.

Acresce salientar que, se o mestre se mostrasse negligente no ensino, o aprendiz podia rescindir o contrato,

demandando-o por perdas e interesses.” MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de

trabalho no direito português. Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011,

p. 219. 37 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 283.

13

pessoas e bens. Regulava o contrato de prestação de serviço doméstico (artigo 1370.º e

seguintes) e o contrato de serviço assalariado (artigo 1391.º), numa perspetiva civilista e sem

preocupação pela defesa do trabalhador.38 Nele não se encontram ainda reflexos da Questão

Social. Estes surgem apenas no final do século: “os códigos oitocentistas, repassados por um

individualismo absorvente, desfitaram os olhos das questões sociais (…) [mas] o século XIX

não terminaria sem que surgisse um conjunto de diplomas, com enorme relevância, no

específico campo laboral. Poderá mesmo dizer-se, sem ousadia, que o crepúsculo do século

XIX trouxe o alvorecer do direito do trabalho. Povoaram as leis temas tão importantes como

as condições do trabalho, a protecção do trabalho das crianças e das mulheres, o tempo de

trabalho e do descanso semanal, as associações de classe e a instituição dos tribunais árbitros-

avindores enquanto inédita jurisdição com competência especializada no âmbito laboral”.39

A industrialização, que chegou tarde a Portugal, começa a alastrar-se e a

necessidade de regulamentação impõe-se. São criados, através do Decreto de 14 de agosto de

1889, os Tribunais dos Árbitros Avindores e o final do séc. XIX vê surgir legislação de proteção

do trabalhador.40 A jornada aos trabalhadores do tabaco é limitada para 8 horas (Lei de 23 de

março de 1891). No mesmo ano é publicado aquele que é referido como o primeiro diploma

inspirado pelos princípios protetivos característicos do Direito do Trabalho, o Decreto de 14 de

abril de 1891. Ao regulamentar sobre a idade mínima para a admissão ao trabalho, a duração

da jornada e serviços perigosos ou insalubres, abre um ciclo de produção legislativa específica,

motivada por princípios protetivos ao trabalhador.41 Pouco depois é publicado o Decreto de 9

de maio de 1891, que contêm o estatuto das «associações de classe». A estes diplomas sucedeu-

se variada legislação até ao final do século, almejando, sobretudo, a segurança e salubridade

das condições de trabalho. É Criada a Caixa Geral de Aposentações para os trabalhadores

assalariados (13.05.1896). A obrigatoriedade de descanso semanal é estabelecida já no início

do século XX, com o diploma de 3 de agosto de 1907. Apesar de toda esta legislação, o

operariado vive precariamente. Embora as greves continuem proibidas pelo Código Penal de

1886, os operários manifestam-se.42

38 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 293-294. 39 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 220. 40 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 294-295. 41 FERNANDES, Monteiro António. Direito do Trabalho - 11ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 1999, p. 28 42 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 294-295.

14

O final do século do século XIX vê também crescer a preocupação dos juristas

portugueses pela Questão Social, expressa num número considerável de estudos cujo objeto é,

direta ou indiretamente, a “legislação operária”, “industrial” ou “social”. A principal referência

neste panorama é Marnoco e Souza.

8.2. Marnoco e Souza

Em Portugal, a defesa do Direito do Trabalho e do trabalhador teve como expoente

máximo a pessoa do Professor Doutor Marnoco e Souza. Figura incontornável do Direito em

Portugal e da Universidade de Coimbra, foi responsável, enquanto lente na Faculdade de Direito

de Coimbra pela renovação dos “estudos nas áreas pouco confinantes do direito político, direito

eclesiástico, economia política, finanças, estatística, economia social, administração colonial

e história do direito.”43 Partidário dos princípios da escola histórica, influenciada pelo

evolucionismo de Herbert Spencer, não concebe construções ou reformas politicas

independentes da realidade, teóricas, antes as prefere graduais e consistentes com o contexto a

que se aplicam. Critico do poder moderador, parte em defesa da separação de poderes. Nas

ciências económicas “inscrevia-se no terreno intervencionista dominado pelas Universidades

alemãs em que preponderava a escola realista. A actuação estatal não podia exibir uma

abafadora ingerência na vida económica de sociedade, mas também não devia, num gesto

abdicativo, largar todas as amarras às forças impiedosos e causticantes da libérrima

concorrência. O esmagamento dos fracos, dos pobres e dos operários às mãos de um majestoso

capitalismo não colhia os favores de Marnoco e Souza. Era precioso esculpir um justo

equilíbrio.”44 Vai prestar especial atenção à Questão Social. Deplora o emprego de menores nas

oficinas, o pauperismo da classe operária e advoga o banimento do «sweating-system»,

conquanto “se lastimava pelo facto de o Estado se mostrar incapaz de formular uma verdadeira

legislação social, em harmonia com os ditames da razão, da moral e do direito”.45 Marnoco e

Souza dedica-se então ao estudo da legislação operária. Dá à estampa, em 1911, aquele que é

considerado o primeiro texto universitário que autonomiza o Direito do Trabalho em Portugal.46

43 MARCOS, Rui de Figueiredo. A Figura Insigne do Doutor Marnoco e Souza. Lousada: Câmara Municipal de

Lousada, 2008, p.16. 44 MARCOS, Rui de Figueiredo. A Figura Insigne do Doutor Marnoco e Souza. Lousada: Câmara Municipal de

Lousada, 2008, p.18. 45 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 221. 46 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 296.

15

Admite o princípio da responsabilidade civil objetiva, baseada no risco profissional, em matéria

de legislação operária. Ou seja, o patrão responderia sempre pelos acidentes de trabalho

ocorridos na sua empresa. Denúncia a falsa defesa do princípio da liberdade de trabalho, que

impede os operários de obterem a melhoria da sua condição através do exercício do direito à

greve e do direito de associação. Chama a atenção para o fenómeno novo da contratação

coletiva de trabalho e para a jurisprudência que considera o contrato coletivo contrário à

liberdade individual. Considerava que, ocupando nos Códigos Civis um lugar secundário, o

contrato de trabalho proporcionava um mero ilusório direito de livre estipulação de condições,

desmentido pela realidade da evidente posição de superioridade dos patrões. Afasta assim a

hipótese de reduzir o Direito do Trabalho aos moldes do Código Civil e preconiza, em 1914, a

organização de um Código do Trabalho especial. Defende a emancipação do Direito do

Trabalho e, consciente do caminho a realizar, suporta que dever-se-ia criar o Código e,

posteriormente, colmatar as suas lacunas: “em todas as legislações há uma parte fixa, sólida e

uma parte variável (…) precisando acompanhar as realidades da vida”.47

Considera que, em Portugal, os “municípios é que tinham ensaiado suavizar os

traços abstencionistas e crispantes de uma concorrência implacável. Daí que Marnoco e Souza

sufragasse a doutrina do socialismo municipal”.48 E será enquanto presidente da Câmara

Municipal de Coimbra que Marnoco e Souza terá a oportunidade de servir-se do seu

conhecimento obtido na condição de lente e concretizar muitas das suas lições, nomeadamente

em matéria de direito de trabalho. “Sufragou, enquanto autarca, uma política que se inscrevia

naquilo que designava como socialismo municipal”.49 Resolveu, enquanto autarca, suprir a

falha nacional, adotando medidas protetoras do operariado. Após a municipalização dos

serviços de gás, reduziu a oito horas a duração do trabalho diário dos operários dos fornos da

fábrica de gás. O município que lidera oferece condições de habitação aos operários, constrói

um bairro operário e cria, em 1906, o Tribunal de árbitros-avindores cujo modelo jurídico

servirá de exemplo no país.

O papel de Marnoco e Souza não pode, assim, ser menosprezado, enquanto membro

da Universidade de Coimbra, autarca dessa mesma cidade e exemplo para todos os vindouros.

47 SOUZA, Marnoco e. Caracteres da legislação operária. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra:

Universidade de Coimbra, 1914, p. 96. 48 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 222. 49 MARCOS, Rui de Figueiredo. A Figura Insigne do Doutor Marnoco e Souza. Lousada: Câmara Municipal de

Lousada, 2008, p. 34.

16

8.3. A Primeira República

A 05 de outubro de 1910 a Monarquia cai. É proclamada a 1ª República Portuguesa,

e com ela, quase no imediato, a possibilidade da greve do lock-out. Podemos afirmar que a

implementação da república traz com ela uma “enorme vibração à questão social. Não admira,

pois, que o direito do trabalho entrasse numa fase de plena afirmação”.50

Proclamados no Decreto de 6 de dezembro de 1910, o direito à greve a ao lock-out

vai garantir aos operários e patrões o direito de se coligarem para cessar a atividade laboral

(artigo 1º) Através do mesmo Decreto são proibidas instigações às coligações operárias ou

patronais que diminuam a liberdade de operários ou de patrões, através da coação, sancionada

criminalmente (artigo 2º)51. Ficavam ainda os promotores das coligações obrigados ao

esclarecimento dos fundamentos e objetivos das mesmas (artigos 4º e 5º).52 Embora aos

funcionários públicos ou assalariados do Estado a greve continua interdita, sob pena de

despedimento, para o sector privado a greve não constituí mais causa de despedimento.53

Também logo em outubro de 1910 existe legislação sobre a idade mínima de

admissão ao trabalho (Decreto de 26 de outubro de 1910). Visava-se assim proteger os menores,

proibindo a sua labuta em certas indústrias, como a indústria do papel, onde eram utilizados na

execução de tarefas perigosas, com os consequentes acidentes laborais54. No ano seguinte, o

Decreto de 7 de janeiro de 1911 determina a dispensa, nos dois últimos meses de gravidez, das

professoras de instrução primária. No mesmo ano, de acordo com a Convenção Internacional

de Berna de 23 de setembro, é proibido o trabalho noturno a operárias fabris (Decreto de 24 de

junho de 1911).

A Primeira República é também responsável pela publicação de legislação relativa

a acidentes de trabalho inspirada na ideia de risco profissional, proveniente das legislações

especiais de país como a Inglaterra, França, Itália, Bélgica e Estados Unidos da América.

Consagra a responsabilidade objetiva das entidades patronais, tal como preconizada por

50 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 221. 51 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.64. 52 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.65. 53 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.65. 54 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.59.

17

Marnoco e Souza.55 A Lei nº 83, de 24.07.1913, regulamentada dois anos depois, começou por

outorgar aos trabalhadores o direito à assistência médica e indemnizações em caso de acidentes

de trabalho, a pagar pelas entidades patronais (artigo 1º).56 Aos familiares, em caso de morte,

era devida uma pensão (artigo 5º). Esta era atribuída, igualmente, em caso de incapacidade. A

proteção contra os desastres laborais será alargada, volvidos quatro anos, a toda a atividade

profissional, incluindo o trabalho intelectual (Decreto nº 5:637, de 10 de maio de 1919). Era

assim satisfeita uma das mais legítimas pretensões das associações profissionais operárias.57

Concomitantemente, é tornado obrigatória, pelo mesmo Decreto, a existência de um seguro

contra desastres no trabalho, a suportar pelo patrão. As garantias de funcionamento das

sociedades de seguro e mútuas são melhoradas e podemos afirmar que segurança social foi

moldada, na Primeira República, com a implantação de seguros obrigatórios.58

Legisla-se, ainda, sobre a duração do trabalho e o descanso semanal. É limitado a

dez horas de tempo de trabalho para os empregados do comércio (Lei n.º 295, de 22 de janeiro

de 1915) e imposto o mesmo limite de dez horas diárias e sessenta semanais nos

estabelecimentos e empresas industriais (Lei n.º 296, de 22 de janeiro de 1915). Após quatro

anos, o Decreto n.º 5.516, de 10 de maio de 1919, fixa o período máximo do trabalho diurno,

noturno ou misto, em oito horas diárias e quarenta e oito semanais.59 O descanso semanal foi

também legislado logo em 1910, através de dois diplomas. O Decreto de 17 de dezembro de

1910 atribui o descanso semanal de vinte e quatro horas a diferentes classes trabalhadoras. Por

sua vez, o Decreto de 30 de dezembro de 1910, afirma que os funcionários públicos desfrutarão

do feriado no dia seguinte, caso este recaísse a um domingo. O descanso semanal de vinte e

quatro horas consecutivas vai ser reconhecido a todos os assalariados com o Decreto de 9 de

janeiro de 1911, modificado pelo Decreto de 8 de março de 1911.

É criado, em 1916, o Ministério do Trabalho e da Previdência Social. Em 1919 é

criada a Confederação Geral do Trabalho. Nesse mesmo ano é publicado um importante

conjunto de diplomas de proteção do trabalhador, que irá obter pouca expressão prática, tal

55 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.65 e 66. 56 “As entidades patronais ficavam responsáveis pelas indemnizações, mas podiam transferir essa obrigação para

companhias de seguros ou sociedades mútuas.” COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A

Primeira República no Direito Português. Coimbra: Almedina, 2010, p.66. 57 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.68. 58 COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no Direito Português.

Coimbra: Almedina, 2010, p.69. 59 “Apenas escapavam a este regime os rurais e os domésticos, em que se incluíam os criados e os empregados de

hotéis e restaurantes.” COSTA, M. J. de Almeida/MARCOS, R. M. de Figueiredo. A Primeira República no

Direito Português. Coimbra: Almedina, 2010, p.63.

18

como, aliás, aconteceu com a legislação anteriormente referida. Esta falta de efetividade da

legislação produzida é o principal ponto negativo do período.60 Era notória a falta de uma lei

do contrato do trabalho, bem como de um regime jurídico estruturado para as relações coletivas

de trabalho. Estas são referidas pela primeira vez, ainda que parcamente, na legislação de 1924

(Decreto n.º 10 415, de 27 de dezembro).

8.4. O Estado-Novo Corporativo61

A Primeira República, instável política e administrativamente, cai com a Revolução

de 28 de maio de 1926. Segue-se um período de ditadura e de militarização do regime. No que

à legislação do trabalho diz respeito, o Estado Novo Corporativo, que se seguiu não se

notabilizou, inicialmente, por reformas. Ainda assim, há que referir a proibição da greve e do

lock-out (Decreto nº 13.138, de 15 de fevereiro de 1927).

O Estado Novo Corporativo demarcou os seus princípios, rejeitando, por um lado

o liberalismo individualista, considerado antinacionalista e, por outro, o parlamentarismo

democrático. Nos anos trinta do século XX, é desenvolvido um “um edifício doutrinal deveras

coerente e erguida a edificação jurídica do regime.62 As bases do direito laboral são definidas a

partir da Constituição de 1933, particularmente pelo Estatuto do Trabalho Nacional (Decreto-

Lei nº 23 048, de 23 de setembro de 1933) e complementadas por um conjunto de diplomas

dirigidos à temática (sindicatos, grémios patronais, administração do trabalho, etc.). Pouco

depois será implementado um sistema de Previdência Social. “As marcas do pensamento de

Oliveira Salazar tornaram-se nítidas”63 e o Direito do Trabalho passa a ser dominado pelo

princípio corporativo.64 Este encontra-se espelhado no artigo 1º do Estatuto do Trabalho

60 “Mau grado o florilégio de proclamas estridentes dirigidas ao operariado, a Primeira República mostrou-se

incapaz de concretizar as expectativas que gerou. As fraturas registadas no movimento operário português em

nada ajudaram. As revindicações exacerbadas em momentos difíceis para o País também não. O certo é que os

diplomas laborais republicanos conheceram uma assaz reduzida tradução prática. Além disso, notavam-se

omissões clamorosas. A falta de uma lei que regesse o contrato de trabalho era seguramente uma dela. Uma vez

mais, a emancipação do contrato de trabalho ficava adiada.” MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência

do contrato de trabalho no direito português. Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do

Porto, Ano 8, 2011, p. 221-222. 61 Sobre a designação ver, COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português – 5ª Edição. Coimbra:

Edições Almedina, 2014, p.558. 62 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 222. 63 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 222. 64 PINHEIRO, Paulo Sousa. O Direito do Trabalho Ao Longo da História. Separata de Ciências Empresariais e

Jurídicas, 8, 2006, p. 290.

19

Nacional, onde se afirma que a Nação constituí uma unidade moral, política e económica, cujos

fins e interesses se sobrepõem aos dos indivíduos e grupos que a compõem.

O sistema desenvolvido era caracterizado por uma forte intervenção estatal,

exercida por um ramo especial da Administração Pública (INTP). Implicava a subordinação de

todos (patrões e trabalhadores) ao interesse nacional e ao bem comum. Era no domínio da

economia que mais importava esta subordinação à unidade social. A ideologia de luta de classes

está ausente e, consequentemente, suprimidas as anteriores associações de classe e estabelecida

uma rede de organizações sindicais e patronais, que sob a influência do regime, mantinham o

monopólio legal da representação das respetivas categorias. Esta organização corporativa tinha

uma estrutura piramidal. Os sindicatos (compostos por operários e empregados de uma mesma

profissão) e grémios (entidades patronais) consistiam nos organismos primários, situados na

base da pirâmide corporativa. No plano intermédio, as federações e uniões regionais ou

nacionais, compostas por sindicatos ou grémios de uma mesma profissão. A um nível superior,

constituídas em 1956, encontravam-se as corporações, organizações unitárias das forças de

produção, que representavam os seus interesses. Estes organismos primários e intermédios

estabeleciam convenções coletivas de trabalho, que logo a partir de 1933, ao abrigo do Estatuto

do Trabalho Nacional, começam a ganhar importância no sistema corporativo, ainda que o

primeiro diploma na matéria tenha sido o Decreto-Lei nº 36 173, de 6 de março de 1947 e,

posteriormente, Decreto-Lei nº 49 212, de 28 de agosto de 1969 e Decreto-Lei nº 429/70,

22.10). Na prática estas organizações de trabalhadores, ainda que possuíssem o monopólio legal

da respetiva categoria e de quotização obrigatória (mesmo para os não inscritos), não eram

dotadas de liberdade sindical, uma vez que as eleições dos seus dirigentes eram homologadas

administrativamente e não possuíam qualquer força efetiva, proibidas de realizar qualquer

greve. A relativa liberalização do regime, em 1969, vai alterar significativamente a situação. O

controlo da administração sobre os sindicatos diminui e é-lhes conferida a possibilidade de

imporem a arbitragem para a resolução de conflitos, através do diploma sobre regulamentação

coletiva Decreto-Lei nº 49 212, de 28 de agosto de 1969. Assim, o campo das relações coletivas

de trabalho encontra-se, durante o Estado Novo, bloqueado. Também ao capitalismo foi

imposta uma conformação. Sob a influência da Constituição de Weimar, são estabelecidos, na

constituição de 1933, um conjunto de princípios orientadores da economia que impedem os

ímpetos mais vorazes do capitalismo. A crise de 1929 origina uma intervenção sistemática do

Estado e as corporações são chamadas a colaborar, dentro das limitações acima referidas.65

65 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português – 5ª Edição. Coimbra: Edições Almedina, 2014,

p.578.

20

Dentro deste quadro, a legislação referente à relação individual do trabalho conhece

um período de progresso. É aprovado o Regime Jurídico do Contrato Individual do Trabalho

(Lei nº 1952, de 10 de março de 1937). O regime corporativo é assim responsável pela

publicação da primeira lei do contrato de trabalho dotada do aspeto protecionista do trabalhador,

em que é estabelecida a obrigatoriedade de férias, bem como a obrigatoriedade de aviso prévio

em caso de despedimento. “A pioneira Lei de 1937 definiu o contrato de trabalho como toda a

convenção por forçada qual uma pessoa se obrigava, mediante retribuição, a prestar a outra

a sua actividade profissional, ficando, no exercício desta, sob as ordens, direcção ou

fiscalização da pessoa servida (artigo 1º)”.66 Esta noção vai, na fase final do regime, ser alvo

de melhoramentos com o “primoroso Código Civil português de 1966.”67

A Lei do Contrato de trabalho de 1966 foi apresentada à Assembleia Nacional em

1960 e, até à sua publicação, passaram cerca de seis anos. Posteriormente atravessou um

período experimental de dois anos e, como ela própria impunha no seu artigo 132º, foi alvo de

uma revisão que deu lugar à Lei do Contrato de Trabalho de 1969, aprovada pelo Decreto-Lei

n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969, que introduziu meritórias inovações.68

Assim, o regime é responsável por leis sobre o contrato de trabalho tecnicamente

bem construídas e altamente progressivas, mesmo em termos europeus (Decreto-Lei nº 47 032,

de 27 de maio de 1966, revisto pelo Decreto Lei nº 49 408, de 24 de novembro de 1969, que

vigorou até 2003). De ressalvar ainda a legislação cada vez mais aperfeiçoada sobre acidentes

de trabalho e doenças profissionais (Lei nº1942, de 27 de julho de 1936; lei nº 2127 de 03 de

agosto de 1965, e Decreto-lei n 360/71, de 21.08) duração do trabalho (Decreto-Lei nº 24 402,

de 24 de agosto de 1934, legislação igualmente em vigor até 2003) e um número considerável

de diplomas sobre higiene e segurança no trabalho.

A nível universitário, o Direito do Trabalho passa a fazer parte dos planos de

bacharelato e licenciatura, sob a designação de Direito Corporativo e do Trabalho (pela reforma

do Decreto-Lei nº 364/72 de 28.09). Podemos considerar que, enquanto disciplina científica, o

Direito do Trabalho foi, durante o Estado Novo, absorvido pelo estudo do Direito Corporativo,

particularmente até 1966, onde a investigação ressurgiu consideravelmente.69 Podemos afirmar

que foi durante este período que muitos dos direitos trabalhistas foram legislados e consagrados,

66 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 222. 67 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 222-223. 68 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A emergência do contrato de trabalho no direito português. Separata da

Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano 8, 2011, p. 223. 69 XAVIER, Bernardo da Gama Lobo. Manual de Direito do Trabalho. 2.ª edição. Lisboa: Verbo, 2014, p. 51.

21

particularmente com o pioneiro caracter protetor Regime Jurídico do Contrato Individual do

Trabalho. Este mérito encontra-se refletido na extensa vigência a ele consagrada.

.

9. A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO BRASIL

9.1. De Colônia a Império

O Direito no Brasil tem seus antecedentes no Direito Português. Quando se operou

a separação entre estados, no início do século XIX, as leis em vigor no Brasil eram as

portuguesas, nomeadamente as Ordenações Filipinas. Embora estas contivessem disposições

relacionadas com o Brasil (por norma incluídas em títulos que referiam, igualmente, a Africa e

a Índia), eram manifestamente insuficientes, o que havia causado uma abastança de legislação

extravagante dirigida para o Brasil. Durante todo o século XVII vai sendo criada uma massa

legislativa imensa, de modo a suprimir lacunas e dissipar dúvidas na interpretação das leis.70 E

embora esse fosse o seu propósito, o corpo legislativo criado irá demonstrar-se incapaz de

colmatar as imperfeições e omissões originais.

Tal como afirmámos, nas Ordenações Filipinas encontrava-se, ainda, a figura da

locação-condução. Conquanto, embora o trabalho no Brasil fosse exercido por escravos,

imigrantes, degredados e mestiços, o trabalho escravo era a base da economia e da sociedade

agrícola vigente. A economia era caracterizada pelo cultivo de grandes extensões de terra para

exportação e pela extração de pedras preciosas, ouro e especiarias, no de que dependia de

trabalho escravo, cujo tráfico havia iniciado no século XVI. Ao longo do tempo foram sendo

implantadas oficinas de produção de bens e prestação de serviços. Ainda assim, as manufaturas,

em comparação com os produtos agrícolas, conheciam poucos incentivos e estavam

subdesenvolvidas. Como tal, não houve no Brasil um florescimento da indústria. Naquela

época, quase nenhuma proteção do Estado tinha o trabalhador.

A chegada da família real vai originar uma nova situação política e económica para

o país. Após a independência, o primeiro reinado lança as bases para a produção de um direito

nacional. Outorgada por D. Pedro I, o Império recebeu a sua Carta Magna a 25 de março de

1824. O texto constitucional era um documento de emancipação jurídica, influenciado pelo

pelas revoluções Francesa e Americana e pelo Liberalismo europeu. Estas influências fundem-

se com princípios característicos do antigo regime, resultando no estabelecimento de uma

70 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.76-77.

22

Monarquia constitucional e representativa.71 O Império procurava consagrar os princípios do

Individualismo e Liberalismo nos seus textos de lei, transformando as suas leis. Daqui vão

resultam os Códigos, Criminal em 1830 e de Processo Criminal em 1832. Encontrava-se assim

revogado o Livro V das Ordenações Filipinas. O Código Comercial será publicado durante o

segundo reinado e o Código Civil apenas em 1916.

A primeira Constituição não fez qualquer menção em seus dispositivos quanto aos

direitos dos trabalhadores. Todavia, proclama a liberdade de exercício de qualquer ofício ou

profissão, desde que lícitos e não contrários aos costumes (artigo 179, XXIV)72 extingue as

corporações de ofício (artigo 179, XXV)73. O trabalho livre vai ser regulado pelo Código

Comercial de 1850. Ainda assim, com a Carta Magna de 1824, surgiram normas que embora

não diretamente protetoras do trabalhador, beneficiaram os que do trabalho subsistiam.

9.2.A regência e a abolição da escravatura

Após a abdicação do Imperador, o período regencial foi iniciado com um diploma

legislativo complexo que serviu como arma aos abolicionistas. Conhecida pelo nome do então

Ministro da Justiça, a Lei Feijó, publicada a 7 de novembro de 1831, visava extinguir o tráfico

de escravos africanos. Este diploma garantia ainda a liberdade para os escravos que entrassem

após a data da sua publicação e previa a punição dos traficantes. No ano seguinte assiste-se a

uma queda no negócio esclavagista. Internacionalmente, era sentida a pressão da Inglaterra, que

havia abolido a escravatura em 1833 e cujo parlamento aprovara uma lei que permitia a captura

de qualquer navio que transportasse escravos para o Brasil (Slave Trade Suppression Act).

Desta ação vai resultar a Lei que aboliu definitivamente a escravatura.74 Responsável pelo

projeto de que resultaria a Lei Feijó, o Marquês de Barbacena será também responsável pelo

projeto que vai extinguir o tráfico. Mais uma vez conhecida pelo nome do então Ministro da

Justiça, é publicada em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz. Previa a captura de navios que

transportassem escravos ou com sinais de ao ato se dedicarem. Define juridicamente traficantes,

71 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 261. 72 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. 1824. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 12/07/2018. In verbis Art. 179,

XXIV. “Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se

opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.” 73 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. 1824. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 12/07/2018. In verbis Art. 179,

XXV. “Ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juizes, Escrivães, e Mestres.” 74 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.364.

23

bem como as penas a aplicar, e encarrega o Estado da libertação e transporte dos escravos

libertos.

A 28 de setembro de 1871 é aprovada a Lei do Ventre Livre, que dispôs que a partir

dessa data os filhos de escravos nasceriam livres e que permite parar o aumento do número de

escravos. A lei dispunha igualmente, que os filhos das escravas ficariam ao encargo dos

senhores destas, obrigados a criá-los e tratá-los até aos oito anos de idade. Nessa altura, o senhor

poderia optar por uma indemnização do estado ou por utilizar os serviços do menor até aos 21

anos. Este podia libertar-se do serviço, pagando ao senhor o valor da indemnização. A lei previa

ainda a libertação anual, em cada província, dos escravos que a quota do fundo de emancipação

permitisse (artigo 3º). O artigo 4º permitia ao escravo a acumulação de um pecúlio, através de

doações ou herança, ou através de trabalho permitido pelo seu senhor. No artigo 6.º libertava

naquela data todos os escravos pertencentes à Nação. A Sociedade Brasileira Contra a

Escravidão, cujo propósito era lutar pela abolição da escravidão no Brasil, é formada a 7 de

setembro de 1880. No ano de 1885 foi aprovada a Lei Saraiva-Cotegipe, que ficou conhecida

como a Sexagenária (Lei n.º 3.270, de 28 de setembro de 1885). Nos seus cinco artigos trata

essencialmente de uma nova matrícula a que ficavam obrigados, no prazo de um ano, os

senhores de escravos e regulou os preços dos escravos por idade. Escravos não inscritos

considerar-se-iam libertos. Ponto importante, os escravos com mais de 60 anos não seriam

arrolados, ganhando desse fato a Lei o seu nome. Por outro lado, esta Lei proibia a libertação

de escravos considerados inválidos para qualquer serviço, ficando estes ao encargo do seu

senhor. Previa ainda a libertação de escravos, através do fundo de emancipação, se os seus

senhores se propuserem a substituir nos mesmos estabelecimentos o trabalho escravo pelo

trabalho livre (artigo 3º)75.

A Princesa Isabel vai, em 1888, assinar aquela que ficará conhecida como Lei Áurea

(Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1888). Em apenas dois artigos declara extinta a escravidão no

Brasil. De salientar a influência do catolicismo da Princesa Isabel, que havia já incentivado os

defensores da Lei do Ventre Livre, apoiado a lei Sexagenária e assina a Lei Áurea. Encontrava-

se agora, finalmente, abolido o regime esclavagista, constituindo-se a Lei como um marco

teórico para o estabelecimento da relação jurídica de trabalho.76

9.3.Da República à solução do Estado Novo

75 75 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro

– 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.379-380. 76 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho – 16ª ed. São Paulo: LTr, 2017, p.99.

24

A 15 de novembro de 1889 é proclamada, ainda que provisoriamente, a república.

A nova Constituição surgiria a 24 de fevereiro de 1891, contemporânea à Encíclica Rerum

Novarum. É aprovado o primeiro Código Civil, que entra em vigência em 1 de janeiro de 1917

e vai disciplinar o contrato de locação de serviços O Livro IV das Ordenações Filipinas só

perderia vigência então, vigorando de 1603 a 1916. A Constituição de 1891 vai reconhecer a

liberdade de associação (artigo n.º 72), determinando que a todos era lícita a associação e

reunião, livremente e sem armas, não podendo a polícia intervir, salvo para manter a ordem

pública. Em 1890, por meio do Decreto nº 439, de 31 de maio, estabeleceu-se as bases para a

organização da assistência à infância desvalida. O Decreto n.º 843, de 11 de outubro de 1890

estabeleceu vantagens ao Banco dos Operários. O Decreto n.º 1.162, de 12 de dezembro de

1890 revogou do Código Penal o delito de greve. Já o Decreto n.º 221, de 26 de fevereiro de

1890 estabeleceu o direito dos trabalhadores ferroviários da Estrada de Ferro Central do Brasil

a gozarem 15 dias de férias, direito aquele que ampliado aos restantes trabalhadores ferroviários

por meio do Decreto n.º 565, de 12 de setembro de 1890. No campo legislativo, o Decreto nº

1.313, de 17 de janeiro de 1891, disciplina o trabalho do menor. O Decreto Legislativo nº 1.150,

de 05 de janeiro de 1904 criou facilidades para o pagamento de dívidas dos trabalhadores rurais,

o que posteriormente foi ampliado para os trabalhadores urbanos, por meio do Decreto

Legislativo nº 1.607, de 29 de dezembro de 1906. O Decreto nº 1.637 possibilitou a criação de

sindicatos profissionais e sociedades cooperativas aos trabalhadores urbanos, estendendo uma

possibilidade já estabelecida para os profissionais da agricultura. Por meio da Lei nº 3.724 de

1919 criou-se legislação relativa a acidentes laborais. Em 1923, é publicada a Lei Elói Chaves,

que disciplinou a estabilidade de emprego ao trabalhador ferroviário que tivesse 10 ou mais

anos de serviço, garantia posteriormente estendida a outros trabalhadores. Ainda no ano de 1923

foi criado o Conselho Nacional do Trabalho através do Decreto nº 16.027. A Lei nº 4.982 vai,

em 1925, estabelecer o direito de os trabalhadores dos estabelecimentos comerciais, bancários

e indústria a gozarem 15 dias de férias.

A Constituição vai sofrer uma reforma em 1926, embora de pouca monta.77 No ano

de 1927 foi promulgado o Código de Menores que proibiu o trabalho do menor de 12 anos, bem

assim o trabalho noturno dos menores. Em 1930 criou-se o Ministério do Trabalho e Emprego.

A grave crise económica que o país sofria desde os anos 20 vai fomentar a revolução

de 1930, que elabora nova Constituição, que veio substituir a de 1891. A Constituição da

77 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.417.

25

República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, edificada no fim do governo provisório de

Getúlio Vargas (1930-34) visava acalmar as frustrações que culminaram na Revolução

Constitucionalista de 1932 e conferir legitimidade à sua presidência. Inspirada na Constituição

de Weimar e na Constituição do México, possuía um caracter democrático, denotando

preocupações sociais. Tinha, igualmente, um forte cunho nacionalista.

Em vigor menos tempo do que qualquer Constituição, deixou, ainda assim, marcas

no direito constitucional brasileiro, estabelecendo o sufrágio feminino e o voto secreto, maior

independência do poder judiciário e noções de liberdades básicas (como de livre expressão e

movimento). No que ao Direito do Trabalho diz respeito, é de ressalvar o artigo n.º 121. Nele

se afirma que a lei “promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho,

na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses

econômicos do País”. Em oito parágrafos vai estabelecer as diretrizes fundamentais, no que ao

trabalho diz respeito.78 Criou com o artigo n.º 122 a Justiça do Trabalho.79

A 10 de novembro de 1937, proclamando a ameaça comunista, sucede a

implantação do “consulado Vargas”, denominado Estado Novo. É decretada a Carta do Estado

Novo e, na prática, dissolvido o poder legislativo, legislando o chefe de governo através de

decretos-leis. A Constituição de 1937 ficou conhecida como a Polaca, devido à inspiração no

estado nacionalista polaco. Vai dar início ao Estado Novo (1937-45), e permitiu a concretização

do poder do presidente Getúlio Vargas. No campo social vai manter muitas das conquistas

expressas nas constituições anteriores e acrescenta outras, embora, na prática, estas fossem

frequentemente ignoradas pelo regime. Valoriza-se a capacidade produtiva da Nação e do

trabalho, considerado dever social (artigo n.º 136). Ao Estado cabe o dever de garantir o direito

de todos subsistirem mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do

indivíduo, constituiria um bem protegido pelo Estado, que deveria assegurar condições

favoráveis e meios de defesa (artigo n.º 126). O artigo 138, reconhecia a liberdade de associação

profissional e sindical, embora os sindicatos carecessem de reconhecimento formal pelo Estado.

À semelhança de outras Estados Corporativistas, a Carta de 1937 mantêm a preocupação com

as questões sociais do trabalho e estabelece os preceitos básicos da legislação trabalhista,

promovidos com um forte cunho corporativista: “A economia da população será organizada

em corporações, e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional,

78 BRASIL. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 02/07/2018. 79 BRASIL. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm. Acesso em: 02/07/2018.

26

colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, são órgãos destes e exercem funções

delegadas de Poder Público “(artigo n.º 140).

A legislação laboral encontrava-se dispersa, por esta altura, chegando a disciplinar

de forma diferente institutos idênticos. A primeira organização dessas leis ocorreu com a Lei

nº.62/1935, que regula a indemnização por tempo de trabalho, a responsabilidade de

indenização pelo Estado caso a cessação da atividade empresarial for por motivo estatal,

suspensão contratual, obrigatoriedade de aviso prévio, entre outros. A Lei n.º 185/1940 instituiu

também o salário mínimo. A sistematização de toda legislação laboral existente, vai originar a

Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Foi instituída através do Decreto-Lei n.º

5 452, de 1 de maio de 1943. A CLT foi fortemente inspirada na Carta del Lavoro,

particularmente no que se refere à organização sindical e na previsão de poder normativo para

a justiça laboral.80

A CLT entrará em vigor a 10 de novembro de 1943. Nos seus 922 artigos, as

matérias ficaram assim distribuídas: do 1º ao 12º (introdução), está a importante disposição

(artigo n.9º) de “considerar nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de

desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos”81 na Consolidação. As

normas gerais de tutela do trabalho foram expressas nos artigos n.º 13 ao n.º 223, enquanto as

normas especiais encontram-se do artigo n.º 224 ao n.º 441. O contrato individual do trabalho

está cuidado entre o artigo n.º 442 e o artigo n.º 510. Ressalvando que o artigo n.º. 468 afirma

que, sob pena de nulidade, só é lícita a alteração do contrato individual de trabalho, por mútuo

consentimento e desde que não traga direta ou indiretamente prejuízo ao empregado. A

organização sindical é legislada os artigos 511 a 610, enquanto as convenções coletivas do

trabalho estão disciplinadas entre os artigos 611 a 625. Nos artigos 626 a 642 tem-se a regulação

do processo de multas administrativas. Nos artigos de 643, 735 e 732 a 762 trata da justiça do

trabalho e do ministério. O direito instrumental é o objeto dos artigos 763 a 910. Finalmente,

têm-se, dos artigos 911 a 922, disposições finais e transitórias.

A comissão encarregada de elaborar a CLT adotou quatro procedimentos distintos.

O primeiro foi a sistematização, com pequenas modificações e adaptações das normas de

proteção individual do trabalhador, em geral, inspiradas nas convenções da OIT. O segundo foi

a compilação, sem alterações, da legislação mais recente. O terceiro foi a atualização de

80 MARCOS, Rui de Figueiredo/MATHIAS, Carlos Fernando/IBSEN, Noronha. História do Direito Brasileiro –

1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.446-447. 81 BRASIL. Decreto-Lei N.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm. Acesso em: 03/07/2018.

27

ordenações superadas ou incompletas constantes de decretos legislativos, decretos

regulamentares e portarias sobre segurança e higiene do trabalho, contrato coletivo de trabalho,

inspeção do trabalho e processo de multas administrativas. O quarto procedimento foi a

elaboração de normas consideradas imprescindíveis à configuração e aplicação do sistema, com

diferentes fontes materiais, tais como conclusões aprovadas no Primeiro Congresso Brasileiro

de Direito Social (realizado em maio de 1941) e pronunciamentos da recém-criada Justiça do

Trabalho.82

A CLT representa um inegável avanço em relação ao período republicano anterior.

Documento base do Corporativismo, vai, ao criar a Justiça do Trabalho, regulamentar o salário

mínimo, as férias anuais e o descanso semanal remunerado, entre outros benefícios à classe

trabalhadora, consolidar um rol de direitos trabalhistas, eliminando injustiças que estavam na

origem de conflitos sociais há longo tempo.

CONCLUSÃO

Exposta a evolução da legislação trabalhista, parece-nos comprovada a afirmação

inicial de esta esteve, de forma íntima, ligada ao contexto histórico em que ocorreu. A procura

de respostas aos novos fenómenos sociais, que no Direito promoveram a autonomização do

Direito do Trabalho, evidencia que esta ligação com a sociedade parece ser ainda mais próxima

e forte precisamente no caso do Direito do Trabalho. Se os fenómenos sociais obtiveram uma

influência direta no ordenamento jurídico-laboral, as mudanças jurídicas, por sua vez,

condicionaram e estruturam as relações laborais de modo imediato. A obtenção de direitos

laborais começa a ser legislada no Brasil e em Portugal no final do século XIX, com notável

contributo do período republicano, sob a influência das diretrizes internacionais. Apesar de por

vezes limitados, e sem valência prática, ao se constituírem como direitos na letra da lei foram

uma conquista laboral. Esse processo vai continuar com os regimes autoritários dos dois países,

desta vez incorporados na solução corporativista protagonizada pelos Estado(s) Novo(s).

Substituindo-se às instáveis repúblicas, recusando a solução Liberal ou Comunista

preconizaram uma resposta à Questão Social e ao movimento operário alargando e

consolidando a legislação trabalhista. Ao regulamentarem as relações entre capital e trabalho,

desenharam estratégia de sustentação do regime. Cessa a revindicação de classes, eliminada a

possibilidade da autodefesa dos interesses profissionais (e.g., proibição da greve), integra os

82 SUSSEKIND, Arnaldo; LACERDA, Dorval de; SEGADAS VIANNA, J. De. Direito Brasileiro do Trabalho,

2º volume. 1943. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto, p.285.

28

sindicatos nas corporações estatais e subordina a arbitrariedade dos conflitos coletivos de

trabalho ao poder decisivo do Estado. Reduzidas as fontes de conflito, numa moldura de

colaboração forçada entre trabalhadores, patrões e Estado, permitiu-se a consagração de

inúmeros direitos e regalias, como atrás expusemos. O processo iniciado com as Repúblicas

encontra, no Estado(s) Novo(s) a institucionalização. Em ambos os casos, a legislação fez

história e tornou-se um marco no desenvolvimento do Direito do Trabalho, cimentando uma

mudança conceptual das funções do Estado. Por último, afirmamos que ao aumento da

legislação, no caso do Direito do Trabalho, correspondeu uma mudança no fenómeno social

que o viu nascer, i.e., uma melhoria nas condições laborais e uma proteção do trabalhador antes

inexistente.

29

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