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SIMPÓSIO DIABÉTICO Doença vascular e diabetes Vascular disease and diabetes Nelson De Luccia* * Professor Livre-Docente, Disciplina de Cirurgia Vascular, Departamento de Cirurgia, Universidade de São Paulo. J Vasc Br 2003;2(1):49-60. Copyright © 2003 by Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular. 49 O diabetes melito afeta de 2% a 5 % das populações ocidentais. Entretanto, 40% a 45 % de todos os ampu- tados de membro inferior são diabéticos. Amputações maiores são 10 vezes mais freqüentes em diabéticos com doença arterial periférica do que em não-diabéticos com o mesmo acometimento. A claudicação intermi- tente evolui para gangrena com maior freqüência nos diabéticos e esses, em geral, sofrem a amputação em idade mais precoce 1 . Todo este quadro é altamente correlacionado com a doença micro e macrovascular. A compreensão da fisiopatologia desses processos é fun- damental para o atendimento e a orientação desses pacientes. Fisiopatologia da doença vascular no diabetes melito Muitas das complicações clínicas do diabetes po- dem ser atribuídas a alterações na função e estrutura vascular, com conseqüente lesão ao órgão final irrigado e morte. Especificamente, dois tipos de doença vascular são vistas em pacientes com diabetes: a disfunção microcir- culatória não-oclusiva, envolvendo os capilares e arterí- olas dos rins, retina e nervos periféricos, e a macroangi- opatia, caracterizada por lesões arterioescleróticas das coronárias e circulação arterial periférica. A microangi- opatia é manifestação única do diabetes, enquanto as lesões arterioescleróticas são relativamente similares morfologicamente à arterioesclerose do não-diabéti- co 2 . Apesar dessa similaridade do processo arterioescle- rótico em diabéticos e não-diabéticos, vários aspectos diferenciam e caracterizam a doenças vascular das extre- midades inferiores dos diabéticos. Nos pacientes diabé- ticos, há uma predileção da doença macrovascular oclusiva envolver primariamente as artérias tibiais e a peroneira, entre o joelho e o pé, como evidenciado pelo fato de 40% dos pacientes diabéticos com gangrena terem pulso poplíteo palpável 3 . Artérias do pé, caracte- risticamente a dorsal, entre outras, entretanto, são usu- almente preservadas (Figura 1). Devido a esse aspecto de envolvimento de vasos distais e à ocorrência da microangioapatia não-oclusiva renal, retiniana e dos nervos periféricos, popularizou-se o conceito de rotular a arterioesclerose do diabético como sendo de natureza microangiopática. Esse aspec- to tem particular relevância, porque, devido ao conceito erroneamente disseminado de ser a arterioesclerose diabética microangiopática, esses pacientes foram con- siderados por muito tempo, e por muitos ainda o são, como não sendo passíveis de reconstruções arteriais, em caso de isquemia crítica, por não terem leito distal para vazão das revascularizações 4 . Comparados a outros tipos de arterioescleróticos, particularmente fumantes jovens, os diabéticos apre- sentam potencialmente muito mais condições para reconstruções arteriais pela preservação exatamente de artérias distais, que propiciam a tentativa de revascula- rizações e o salvamento de extremidades que, sem essa visão, seriam encaminhados para amputações maiores 5 . Esse conceito, atualmente bem estabelecido, faz parte, entretanto, de um contexto complexo, já que no pé do paciente diabético, a isquemia, causada pelas oclusões macrovasculares, é um dos componentes de

Doença vascular e diabetes - jvascbras.com.brjvascbras.com.br/pdf/03-02-01/03-02-01-49/03-02-01-49.pdf · J Vasc Br 2003, Vol. 2, Nº1 49 SIMPÓSIO PÉ DIABÉTICO Doença vascular

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J Vasc Br 2003, Vol. 2, Nº1 49

SIMPÓSIO PÉ DIABÉTICO

Doença vascular e diabetesVascular disease and diabetes

Nelson De Luccia*

* Professor Livre-Docente, Disciplina de Cirurgia Vascular, Departamentode Cirurgia, Universidade de São Paulo.

J Vasc Br 2003;2(1):49-60.Copyright © 2003 by Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular.

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O diabetes melito afeta de 2% a 5 % das populaçõesocidentais. Entretanto, 40% a 45 % de todos os ampu-tados de membro inferior são diabéticos. Amputaçõesmaiores são 10 vezes mais freqüentes em diabéticos comdoença arterial periférica do que em não-diabéticoscom o mesmo acometimento. A claudicação intermi-tente evolui para gangrena com maior freqüência nosdiabéticos e esses, em geral, sofrem a amputação emidade mais precoce1. Todo este quadro é altamentecorrelacionado com a doença micro e macrovascular. Acompreensão da fisiopatologia desses processos é fun-damental para o atendimento e a orientação dessespacientes.

Fisiopatologia da doença vascular no diabetes melito

Muitas das complicações clínicas do diabetes po-dem ser atribuídas a alterações na função e estruturavascular, com conseqüente lesão ao órgão final irrigadoe morte.

Especificamente, dois tipos de doença vascular sãovistas em pacientes com diabetes: a disfunção microcir-culatória não-oclusiva, envolvendo os capilares e arterí-olas dos rins, retina e nervos periféricos, e a macroangi-opatia, caracterizada por lesões arterioescleróticas dascoronárias e circulação arterial periférica. A microangi-opatia é manifestação única do diabetes, enquanto aslesões arterioescleróticas são relativamente similaresmorfologicamente à arterioesclerose do não-diabéti-co2.

Apesar dessa similaridade do processo arterioescle-rótico em diabéticos e não-diabéticos, vários aspectosdiferenciam e caracterizam a doenças vascular das extre-midades inferiores dos diabéticos. Nos pacientes diabé-ticos, há uma predileção da doença macrovascularoclusiva envolver primariamente as artérias tibiais e aperoneira, entre o joelho e o pé, como evidenciado pelofato de 40% dos pacientes diabéticos com gangrenaterem pulso poplíteo palpável3. Artérias do pé, caracte-risticamente a dorsal, entre outras, entretanto, são usu-almente preservadas (Figura 1).

Devido a esse aspecto de envolvimento de vasosdistais e à ocorrência da microangioapatia não-oclusivarenal, retiniana e dos nervos periféricos, popularizou-seo conceito de rotular a arterioesclerose do diabéticocomo sendo de natureza microangiopática. Esse aspec-to tem particular relevância, porque, devido ao conceitoerroneamente disseminado de ser a arterioesclerosediabética microangiopática, esses pacientes foram con-siderados por muito tempo, e por muitos ainda o são,como não sendo passíveis de reconstruções arteriais, emcaso de isquemia crítica, por não terem leito distal paravazão das revascularizações4.

Comparados a outros tipos de arterioescleróticos,particularmente fumantes jovens, os diabéticos apre-sentam potencialmente muito mais condições parareconstruções arteriais pela preservação exatamente deartérias distais, que propiciam a tentativa de revascula-rizações e o salvamento de extremidades que, sem essavisão, seriam encaminhados para amputações maiores5.

Esse conceito, atualmente bem estabelecido, fazparte, entretanto, de um contexto complexo, já que nopé do paciente diabético, a isquemia, causada pelasoclusões macrovasculares, é um dos componentes de

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quadro sindrômico mais amplo, no qual participamtambém a neuropatia e, freqüentemente, a infecção.

Microangiopatia diabética

A relação da microangiopatia com a neuropatiadiabética é múltipla. O primeiro reconhecimento dapossível interação da microcirculação com a neuropatiafoi a descrição das alterações triplas características dodiabetes de longa duração, manifestadas por lesão reti-niana, doença renal e neuropatia. O papel das alteraçõesmicroangiopáticas como fator etiológico na patogêneseda neuropatia diabética recentemente voltou à evidên-cia, com a descrição da localização de lesões microvas-culares endoneurais na neuropatia diabética humana6.Apesar de muitas outras teorias terem concentrado aetiologia da neuropatia em causas metabólicas, atual-mente é aceito que as alterações microvasculares sãofortemente implicadas na etiologia da neuropatia peri-férica.

A neuropatia é fator essencial na formação de úlcerano pé diabético não-isquêmico, incluindo outros com-

ponentes como alta pressão plantar, deformidades,mobilidade articular diminuída e pele seca. Com aalteração ou ausência da sensibilidade protetora, existea formação de calosidade sobre a área de alta pressão,que eventualmente se ulcera, se não houver intervençãopara removê-la. Proeminência dos metatarsianos e alte-rações nos coxins plantares de acolchoamento, relacio-nadas com a atrofia da musculatura intrínseca, sãocaracterísticas das ulcerações diabéticas (Figura 2).

Por outro lado, atribui-se também à neuropatiaoutras alterações fisiopatológicas da microcirculação.Não há ainda evidências firmes que demonstrem a claracontribuição da doença microvascular no desenvolvi-mento das lesões dos pés dos diabéticos. Entretanto,pesquisas nesta área têm produzido teorias prováveispara explicar aspectos mal compreendidos dessas mani-festações.

Nessa linha de pensamento, sabe-se que o sistemanervoso, periférico e autônomo, tem importante papelno controle da função microvascular. Os mecanismos

Figura 1 - Aspecto arteriográfico carac-terístico da arterioesclerosemacrovascular diabética.Oclusão das artérias troncu-lares da perna, com preser-vação da porção terminal daperoneira, e enchimento daartéria dorsal do pé (seta).

Figura 2 - Úlcera plantar típica do paci-ente diabético neuropático.Observa-se coloração do pédemonstrando boa perfusão eúlcera com fundo de granula-ção, indicando não se tratarde processo isquêmico.

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neurogênicos que regulam a microcirculação integramnecessidades homeostáticas genéricas relacionadas aaspectos funcionais e metabólicos. Existe uma sofistica-da variedade de mecanismos centrais e locais que regu-lam o fluxo da microcirculação em condições normaisde saúde. Em diabéticos, a função microvascular éalterada devido tanto à disfunção estrutural e funcionaldos vasos como devido a alterações dos mecanismosregulatórios.

Sob o ponto de vista nutricional, os vasos maisimportantes na microcirculação cutânea são os capila-res superficiais. A troca de fluidos e solutos ocorrepassivamente ao longo do comprimento do capilar. Afiltração da água depende primariamente do gradienteda pressão hidrostática através da parede do vaso. Atroca de macromoléculas ocorre predominantementepelo arrasto de solventes junto com a água filtrada.Pequenas trocas de soluto são altamente fluxo depen-dentes. Tanto a pressão como o fluxo são regulados poralterações do diâmetro dos vasos. As mudanças entrepressão e fluxo, localmente, nos capilares é obtida pelaregulação de mecanismos intrínsecos que ajustam aresistência pré e pós-capilar. A resistência pré-capilar éde controle neurogênico, e acredita-se que o principalmecanismo local envolva reflexos axônicos simpáticos.Esse é dependente do aumento da pressão venosa quedistende as veias e induz vasoconstricção pré-capilarreflexa. Isso pode ser demonstrado na pele e em tecidosubcutâneo e limita a exposição da microcirculação aoaumento da pressão hidrostática com o membro pen-dente7.

Uma alteração característica decorrente dessasmudanças funcionais e estruturais da rede capilar earteriolar é o espessamento da membrana basal, dascélulas musculares lisas e da função endotelial. Esseespessamento da membrana basal pode teoricamenteprejudicar a migração de leucócitos e a resposta dehiperemia pós-lesão, aumentando, desse modo, a susce-tibilidade à infecção.

O endotélio normal tem importante papel na fun-ção da parede do vaso e na homeostase, pela síntese eliberação de substâncias como a prostaciclina, endote-lina, prostaglandina e óxido nítrico, que modulam otônus vasomotor e previnem a trombose8. Existemevidências de que a função endotelial é anormal emdiabéticos, tanto insulino-dependentes, como não in-sulino-dependentes, implicando a hiperglicemia comopossível mediador das respostas anômalas dependentesdo endotélio9,10.

Mecanismos de controle neurológico extrínsecoatuam também na microcirculação e afetam mudançasmaiores na distribuição do fluxo no órgão, enquanto,ao mesmo tempo, mantêm a temperatura e pressãoarterial. Na periferia, a função mais importante emrelação à neuropatia é a regulação do fluxo da comuni-cação arteriovenosa. Comunicações arteriovenosas es-tão presentes na microcirculação das extremidades emgrande número e ficam proximalmente e em paraleloaos capilares. O sangue que passa pelas comunicaçõesarteriovenosas não participa da nutrição tecidual edomina qualquer medida de fluxo sangüíneo periférico.O relaxamento do tônus simpático em resposta aoaumento da temperatura central resulta em acentuadoaumento do fluxo através das comunicações arteriove-nosas11.

No diabetes inicial, as principais alterações hemo-dinâmicas são funcionais e incluem aumento do fluxosangüíneo periférico. Isso pode representar respostafisiológica normal, com aumento do fluxo através decomunicações arteriovenosas, para dissipar calor pro-duzido como resultado de aumento do metabolismo.No início, essas mudanças respondem a melhor contro-le glicêmico; entretanto, comunicações arteriovenosassão acentuadas na presença de neuropatia clínica. Esseaumento patológico no fluxo pelas comunicações arte-riovenosas é atribuído à auto-simpatectomia periférica.As conseqüências desse aumento de fluxo anastomóticosão o aumento da temperatura tecidual e o aumento dademanda metabólica, o que pode predispor à formaçãode edema com subseqüente aumento da pressão tissular,resultando em piora do fluxo capilar. O fluxo capilarpode ser baixo na pele com temperatura anormalmenteelevada, secundária ao fluxo aumentado das comunica-ções artério-venosas. No dorso do pé, onde as comuni-cações artério-venosas são raras, não há evidência decomprometimento do fluxo capilar.

Algumas destas considerações podem ser apenasteóricas, mas muitas situações clínicas exemplificamessas condições, como o que ocorre nos pés de pacientesdiabéticos com a manifestação da osteoartropatia deCharcot (Figura 3).

O paciente em geral apresenta-se, particularmentena fase aguda, com o pé acentuadamente edemaciado,que torna difícil o uso de sapatos comuns. O pé inteiroé freqüentemente todo eritematoso, quente ao tato edemonstra sinais de anidrose. Ao exame, o pé pode estargrosseiramente deformado, com o clássico formato em

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“mata-borrão”, devido à subluxação dos ossos medio-társicos. Gradiente de temperatura com aumento de2°C a 5°C em relação ao pé contra-lateral é consisten-temente demonstrado, e os pulsos são hiperpalpáveis.Talvez seja essa a demonstração mais dramática damanifestação da neuropatia e do estado hipercinéticoda circulação, que pode ser explicado pelas teorias dasalterações funcionais da microcirculação descritas.

O diagnóstico diferencial com processos infeccio-sos deve ser feito. Entretanto, a origem das alterações nopé descritas por Charcot, em 186812, é puramenteneurológica, já que, no trabalho original, referiam-se àscomplicações decorrentes das lesões medulares sifilíti-cas. Outras alterações neurológicas, como as causadaspor lesões medulares traumáticas, seqüelas da espinhabífida congênita, hanseníase e alcoolismo, produzemlesões semelhantes às causadas pela neuropatia diabéti-ca. Esta, epidemiologicamente, constitui-se na neuro-patia periférica mais freqüente atualmente. Trabalhoexperimental clássico, realizado em animais de experi-mentação nos quais praticava-se lesão medular, de-monstra a natureza neurológica existente por trás dasdeformações osteoarticulares graves de membros inferi-ores que ocorre nesta situação13. A perda total dasensibilidade, propriocepção e motricidade expõe os-sos, articulações, ligamentos e cápsula articular a condi-ções anômalas de micro ou macro traumas, sem aspossibilidades normais de compensação e equilíbrio,que podem explicar o quadro.

Casos de total destruição articular em ossos do pé dediabéticos, decorrentes da neuropatia, chegam a causarsurpresa pela gravidade e demonstram a dificuldade ecomplexidade em tratar esses pacientes (Figura 4).

Úlceras e lesões teciduais, particularmente em con-dições de perda da sensibilidade – situação na qual opaciente continua o traumatismo por caminhar e pisarsem perceber a gravidade do problema –, têm altaprobabilidade de tornarem-se infectadas. Muitos paci-entes chegam para o primeiro atendimento em serviçosde emergência com quadros de infecção grave, descom-pensação clínica, sem nem mesmo saberem ser diabéti-cos. Debridamentos amplos para a remoção de tecidosnecróticos, realizados em regime de urgência, antibio-ticoterapia e controle clínico são fundamentais. Algunsdesses pacientes têm que ser submetidos a amputaçõesmenores ou maiores, primariamente, às vezes comoúnica manobra de tratamento possível. Tais amputa-ções tornam-se necessárias seja pela extensão do danotecidual, seja para preservação da vida, dada a deterio-ração das condições clínicas, motivo pelo qual campa-nhas educacionais devem ser realizadas para evitar essetipo de acontecimento.

As teorias de espessamento da membrana basalcapilar e diminuição da capacidade de migração deleucócitos, que diminuem a resistência à infecção dodiabético, podem ter fundamento, mas é claro que umaferida aberta, sobre a qual o paciente de maneira desa-percebida continue apoiando o peso do corpo, é motivomais que suficiente para explicar o estabelecimento dainfecção (Figura 5).

Figura 3 - À esquerda, aspecto das deformações do pé deCharcot, edemaciado, com região plantar em“mata-borrão” e, ao exame, apresentando pul-sos hiperpalpáveis. À direita, aspecto radiográ-fico, demonstrando colapso dos ossos do mé-dio-tarso.

Figura 4 - Grave alteração da articulação tibiotársica empaciente diabético.

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Em contra-partida a esses quadros de lesões em pésneuropáticos, com perfusão normal ou até aumentada,existem os casos em que a manifestação principal é aisquemia tecidual, devido às conseqüências da obstru-ção arterial arterioesclerótica (Figura 6).

Esse panorama, caracterizado por sua complexida-de, já que sob o mesmo rótulo de “pé diabético”manifestam-se tanto síndromes com pulsos hiperpalpá-veis e aumento de perfusão quanto quadros de francaisquemia, com ausência dos pulsos periféricos e necrosetecidual por deficiência de perfusão e de afluxo desangue oxigenado. Há ainda outras sutilezas de inter-pretação, na medida em que pacientes com ausência depulsos distais e neuropatia podem estar em estadoabsolutamente equilibrado, sem sintomas, pela com-pensação provida pela circulação colateral.

Esses mesmos pacientes, ao apresentarem algumalesão, que pode ser desencadeada pela neuropatia, ouseja, pela diminuição ou ausência de sensibilidade,necessitam de avaliação criteriosa em relação à possibi-lidade de cicatrização das feridas, considerando a infec-ção e isquemia associadas.

Doença macrovascular

O diabetes é importante fator de risco para odesenvolvimento da arterioesclerose, que se manifestaclinicamente com freqüência de cinco a dez vezes maiorem diabéticos do que em não-diabéticos14.

Há um consenso de que a arterioesclerose do diabé-tico é mais difusa, mais grave e que se manifesta emidade mais precoce do que a arterioesclerose do pacientenão-diabético15,16. Pacientes com claudicação inter-mitente e diabetes têm 35% de risco de isquemia agudae 21% de risco de amputação maior, comparados comrisco de 19% e 3%, respectivamente, para pacientesnão-diabéticos17. Apesar do característico acometimentodos vasos infrapoplíteos, a ocorrência disseminada naárvore arterial é comum, envolvendo também freqüen-temente a aorta abdominal, ilíacas e femorais.

A calcificação da placa intimal e da camada média(esclerose de Mönckeberg) é também característica daarterioesclerose diabética. Esse aspecto é particular-mente observado em pacientes com insuficiência renaldialítica. A calcificação mural diabética torna errôneosos testes diagnósticos não-invasivos baseados na medi-da das pressões segmentares, por elevarem falsamente osíndices tornozelo/braço. Sob o ponto de vista cirúrgico,a calcificação dificulta as revascularizações e obrigamodificações das técnicas de sutura. Entretanto, oprocesso de calcificação não é necessariamente oclusi-vo, como demonstra o exemplo da Figura 7.

Esse aspecto, que dificulta a avaliação funcional daisquemia do diabético, deve ser considerado tambémdentro do conceito de isquemia relativa e absoluta.Pacientes com arterioesclerose disseminada dos mem-bros inferiores, como é comum em diabéticos, podemnão ter manifestações isquêmicas, já que para a deman-da habitual ocorre compensação pela circulação colate-ral. A isquemia pode ocorrer seja por agravamento dograu de oclusão arterial, seja por aumento da demanda,que pode ser desencadeado por ferimento traumáticodo qual participa como fator causal a neuropatia, ou porinfecção. Operações cirúrgicas, de âmbito ortopédico,que podem ser necessárias para corrigir deformações,

Figura 5 - Área plantar necrótica e ulcerada, complicadapor flegmão dorsal, demandando debridamen-to cirúrgico urgente.

Figura 6 - Lesão isquêmica em paciente diabético.

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devem levar esse fato rigorosamente em consideração, jáque a manipulação cirúrgica representa trauma quepode descompensar a isquemia. Da mesma forma, ocuidado de unhas e calosidades em pacientes neuropa-tas, com isquemia relativa compensada, se resultaremem traumatismo aos tecidos, especialmente quandorealizado por pessoas sem conhecimento e treinamentoadequado, podem acabar em acidentes desastrosos.

Testes para a estimativa do grau de isquemia daextremidade são muito pesquisados, tanto para prevero potencial de cicatrização dos tecidos na presença delesão ou infecção quanto para permitir a realização deoperações cirúrgicas em casos de deformidades, nosquais a incisão cirúrgica pode não cicatrizar, agravar ouprovocar lesão.

A infecção, outro fator relacionado à transformaçãoda isquemia relativa compensada em isquemia descom-pensada, pelo aumento da demanda em relação aoaporte, representa também uma das pedras angulares nacompreensão e tratamento do pé diabético. É claro queo tratamento de processo infeccioso demanda drena-gem, debridamento dos tecidos necrótico, e estabeleci-mento de antibioticoterapia adequada. Diabéticos, de-vido às alterações microangiopáticas descritas e aoespessamento da membrana basal, podem ter aumentoda suscetibilidade à infecção por alterações da respostainflamatória e migração de leucócitos. Porém, o pédiabético bem vascularizado, apesar desses problemas,consegue lidar com infecções e lesões surpreendente-

mente bem. Nos pacientes com risco de perda daextremidade, a possibilidade de melhorar o fluxo sangü-íneo é o primeiro fator para evitar amputação maior. Naausência de isquemia a maioria dos métodos de curati-vos é bem-sucedida; na presença de isquemia, a maioriafalha. Se a revascularização é bem-sucedida, o pé habi-tualmente é salvo; se a revascularização falha ou éimpossível, o pé é habitualmente perdido18.

Os testes não-invasivos para a estimativa da isque-mia tecidual realizados atualmente são os seguintes:medidas da pressão sistólica com Doppler, medidas dapressão no tornozelo e índice tornozelo/braço, análisedas formas de onda do Doppler, análise gráfica dovolume do pulso, medidas de pressão nos dedos do pée pressão transcutânea de oxigênio (Figura 8).

Todos esses métodos possuem ainda limitações, e aavaliação clínica, julgamento e experiência permane-cem como os meios mais importantes para estimar ainsuficiência vascular da extremidade dos diabéticos.

Pacientes com lesões consideradas isquêmicas, ris-co de perda da extremidade e ausência dos pulsosperiféricos, baseados em julgamento clínico, são enca-minhados para arteriografia para planejamento de re-vascularização. A importância do julgamento clínico,muito mais do que a avaliação da natureza isquêmica dalesão, procura estimar as condições gerais do paciente.A própria indicação do exame arteriográfico, em paci-entes com alteração da função renal, condição muitocomum nessa população, já representa processo decisó-rio que faz parte de contexto maior que procura estimaro risco/benefício da indicação da revascularização nessetipo de paciente.

A natureza da doença arterioesclerótica, que damesma forma atinge as artérias coronárias, implica, por

Figura 7 - Radiografia simples, à esquerda, demonstrandoa calcificação da artéria femoral superficial epoplítea, comparada à arteriografia, à direita, damesma área, que demonstra a artéria patente.

Figura 8 - Exemplo de medida direta da pressão transcutâ-nea de oxigênio. Eletrodos colocados no tórax,região média da perna e pé permitem leituradireta e comparativa da tensão de oxigênio.

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sua vez, risco cardíaco, que deve ser criteriosamenteobservado para qualquer planejamento cirúrgico e in-flui no julgamento global. Alterações eletrocardiográfi-cas, história significativa de doença coronária ou dis-função ventricular merecem avaliação. Ecocardiogra-ma e teste do tálio-dipiridamol são empregados demaneira auxiliar e podem indicar cateterismo cardíacoe necessidade de revascularização coronária antes decirurgia vascular eletiva. Em casos de pacientes nessascondições, mas com lesões teciduais e isquemia grave daextremidade, muitas vezes cria-se um paradoxo, já quea revascularização coronária, em geral, não é realizada,pela própria presença de áreas de gangrena e, às vezes,concomitância com infecção, que acabam sendo prio-rizadas. Protocolos medicamentosos, como o uso debeta-bloqueadores e estatinas, têm sido utilizados nes-ses pacientes, com diminuição de eventos peri-operató-rios19.

A função renal deve ser avaliada e, se alterada peloexame arteriográfico, é recomendado o aguardo aoretorno das condições basais, se possível, além de seevitar agentes nefrotóxicos. Pacientes renais crônicosdialíticos apresentam problemas especiais, tanto pelanatureza da doença arterial, em geral com calcificaçõesmais intensas, como pela disponibilidade de substitutosarteriais, já que as veias dos membros inferiores esuperiores, devido a condições locais ou aos acessos paradiálise, podem não ser disponíveis. Ainda assim, algu-mas séries recomendam a revascularização de membrosinferiores em pacientes nessas condições, da mesmaforma que para diabéticos não-dialíticos, com resulta-dos comparáveis20.

A anestesia deve ser considerada de forma individu-al. Anestesia geral com entubação endotraqueal, raqui-anestesia ou bloqueio epidural são igualmente segurose eficientes, sendo escolhidos dependendo da circuns-tância. A monitorização rotineira com cateter de Swan-Ganz é recomendada por alguns serviços para reduzir ascomplicações, mais freqüentemente cardíacas, que po-dem vir a ocorrer4. A deambulação pós-operatória,apesar de desejável, deve ser criteriosamente liberada deacordo com a evolução das áreas cruentas debridadas.

Em muitas situações, o que se coloca em relação àtentativa de revascularização para preservação da extre-midade é a opção de se praticar uma amputação maior,primariamente, para solucionar o problema da lesãoisquêmica e preservar a vida do paciente. É claro,entretanto, que a amputação maior também representaato cirúrgico que demanda anestesia, tem duração

algumas vezes comparável à revascularização e condi-ciona o paciente à limitação física de ordem permanen-te. Esta pode ser aliviada com as modernas técnicas dereabilitação, que são, no entanto, inferiores em termosde qualidade de vida, à preservação da extremidadenatural do paciente21.

Sob esse ponto de vista, a única condição que de fatopode ser indicativa de uma amputação primária é aextensão da necrose e a lesão tecidual. Ainda assim, aestimativa de em que medida a perda tecidual ocasiona-da pela isquemia representa lesão com repercussõesirreversíveis para a recuperação funcional da extremida-de demanda o conhecimento das possibilidades atuaisde reconstrução e dos aspectos funcionais pós-amputa-ções maiores ou menores.

Arteriografia

A arteriografia é ainda o método mais efetivo paraavaliar o padrão de oclusão da doença arterial dosmembros inferiores e planejar o tratamento. O ultra-som colorido e a ressonância magnética têm sido pro-postos para substituir a arteriografia, mas esta ainda é amais utilizada e a que proporciona maiores informaçõessobre a topografia das lesões arteriais.

O padrão arteriográfico da doença arterial dosdiabéticos é bastante previsível, a ponto de praticamen-te poder-se fazer o diagnóstico de diabetes apenas peloexame arteriográfico (Figura 9).

Algumas considerações são importantes em relaçãoà arteriografia. Inicialmente, trata-se de exame invasivo,tanto pela natureza da punção arterial, como pelainjeção de contraste, que é nefrotóxico, fator importan-te nessa população com alta incidência de insuficiênciarenal. Sua indicação só é justificável para planejamentopré-operatório, em casos de isquemia crítica. Alémdisso, apesar de permitir algum tipo de análise funcio-nal do fluxo, especialmente se o exame dinâmico éacompanhado por fluoroscopia e com avaliação davelocidade de escoamento do contraste, as imagens nãopermitem estimar o grau de isquemia funcional daextremidade. Ou seja, pacientes assintomáticos, comisquemia relativa compensada, podem ter padrão arte-riográfico que demonstre alterações importantes, emtudo semelhantes às dos pacientes sintomáticos. Aavaliação clínica feita por observador experiente, entre-tanto, permite correlacionar as oclusões com isquemiasintomática e o planejamento do tratamento.

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Modalidades de tratamento

A arterioesclerose do diabético, apesar de ser preva-lente no território infra-inguinal, tende a ser dissemina-da. Portanto, são comuns as necessidades de interven-ção, tanto no território aorto-ilíaco quanto no fêmoro-poplíteo ou poplíteo-distal.

Mesmo considerando algumas características rela-tivamente específicas da doença arterial macrovasculardo diabético, todas as técnicas de cirurgia vascularconvencional ou endovascular são também empregadasnesses pacientes.

A concomitância de doença em mais de um territó-rio é freqüente, e é claro que o fluxo proximal tem queser adequado para permitir o funcionamento de recons-

truções distais. Essas intervenções cirúrgicas podem serdivididas topograficamente como sendo do territórioaorto-ilíaco e fêmoro-poplíteo e, respectivamente, sobo aspecto funcional, como de aporte e vazão do fluxo desangue oxigenado.

Intervenções no território aorto-ilíaco

As técnicas cirúrgicas convencionais para lidar comobstruções arterioesclerótica do território aorto-ilíaco egarantir o aporte de sangue oxigenado aos membrosinferiores incluem operações feitas em derivação comuso de substitutos arteriais e desobstrução direta atravésda endarterectomia. A simpatectomia, que representaforma indireta de atuação sobre o aporte sangüíneo, éraramente utilizada, até pela própria natureza da neuro-patia autonômica do diabético. As operações em deriva-ção mais comuns são os enxertos aorto-ilíacos e aorto-femorais, sendo alternativas a esses procedimentos asderivações ílio-ilíaca, iliofemoral, fêmoro-femoral eaxilo-femoral ou axilo-bifemoral. Essas operações sãoindividualmente consideradas para a necessidade decada paciente, dependendo da localização e extensão dadoença e fatores de risco associados. Esses procedimen-tos, quando feitos com julgamento cuidadoso e acom-panhados por monitorização perioperatória adequada,são tão seguros quanto amputações maiores22.

As intervenções endovasculares, no caso represen-tadas pela angioplastia transluminal, feitas com balão eacompanhas ou não da colocação de stents metálicossimples ou revestidos (endopróteses), são também for-ma direta de desobstrução arterial. São em geral indica-das para doença mais focal, por exemplo, da aortaabdominal distal, ilíacas comuns e ilíacas externas. Paraa doença difusa, extensa, complexa em vários níveis emultifocal, ou para segmentos totalmente oclusos daaorta abdominal e ilíacas, a cirurgia convencional é oprocedimento de escolha.

Intervenções no território infra-inguinal

A descrição da primeira revascularização no territó-rio fêmoro-poplíteo, que demonstrou a possibilidadede utilização da veia safena magna como substitutoarterial para a criação de derivação em ponte, feita hámais de 50 anos, estabeleceu princípios que ainda hojesão totalmente aplicáveis para o tratamento da isquemiado pé diabético. Kunlin23, o autor do artigo, descreveo quadro isquêmico em paciente de 54 anos, com dor,palidez e lesões teciduais no pé, que teve o quadro

Figura 9 - Padrão arteriográfico característico do pacientediabético. Artérias ilíaca externa, femoral co-mum e femoral profunda relativamente preser-vadas, no alto à esquerda. Femoral superficialapresentando vários estreitamentos, assim comoa artéria poplítea acima e abaixo da linha articu-lar do joelho, na continuidade da foto à esquer-da. Oclusão das artérias tibial anterior e poste-rior na perna, com manutenção da peroneiraque, através de seus ramos perfurantes anteriore posterior, enche novamente as artérias podá-licas, à direita.

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totalmente revertido, com alívio dos sintomas, retornoda perfusão demonstrada por coloração rósea e cicatri-zação das lesões após o restauro dos pulsos distais pelarevascularização bem-sucedida.

Ainda hoje a veia safena é o principal substitutoempregado para as operações em derivação, que são asmais utilizadas nesse território, sendo a indicação maisaceita em situação de isquemia crítica, com lesõesteciduais, gangrena e risco de perda da extremidade.

Entretanto, a natureza disseminada da doença arte-rial diabética e o aumento da longevidade dessa popu-lação, pelo melhor controle clínico da doença, fez comque os quadros isquêmicos com os quais esses pacientesse apresentavam ao longo das décadas subseqüentesexigissem reconstruções mais complexas.

A descrição da possibilidade de revascularização deartérias infrapoplíteas que se seguiu24, a melhor visibi-lização de artérias distais pela melhora das técnicasangiográficas, a compreensão fisiopatológica da doençaarterial diabética (que apesar de topograficamente dis-tal, preserva artérias podálicas) e o treinamento sistemá-tico em cirurgia vascular mudaram o panorama detratamento dos diabéticos e aumentaram o índice desalvamento de membros.

Particularmente, as operações em derivação realiza-das para artérias do pé, atualmente, representam aassinatura da revascularização do diabético25 (Figura10).

Figura 10 - No alto, arteriografia de controle de revascula-rização fêmoro-pediosa. Abaixo, trajeto carac-terístico da veia, em foto de pós-operatóriotardio, que demonstra enxerto funcionante epreservação da extremidade.

As técnicas de revascularização do território infra-inguinal e infrapoplíteo representam, atualmente, sob oponto de vista de técnica operatória, um campo decrescimento e desafios.

A utilização da veia safena como substituto arterialcontinua sendo aspecto fundamental no sucesso dosprocedimentos nessa área. Modalidades de aproveita-mento e técnicas de utilização da veia continuam sendoobjeto de discussão na literatura médica: se invertida, astécnicas dirigem-se à adequação do fluxo arterial àposição fisiológica das válvulas; se não invertida, man-tida no seu leito (na modalidade técnica conhecidacomo in situ) ou removida do seu leito, ambas assituações demandam a lise cirúrgica das válvulas.

A técnica in situ, descrita com grande sucesso paraa revascularização de casos de isquemia crítica, seja dediabéticos ou de não-diabéticos, ganhou grande popu-laridade, e casuísticas expressivas se acumularam27.

O principal apelo dessa técnica, além de manter ocalibre proximal e distal da veia safena compatíveis como calibre proximal e distal das artérias doadora e recep-tora do enxerto, é a preservação do endotélio, pelo fatode a veia não ser removida de seu leito, o que proporci-onaria maior durabilidade a esses procedimentos.

A real importância da preservação da veia em seuleito e da proteção endotelial, entretanto, foi questiona-da por autores que continuavam a praticar as revascu-larizações com a veia na modalidade invertida, comresultados comparáveis aos da veia in situ28.

Para que a revascularização in situ seja possível, ascondições anatômicas precisam ser excelentes, a come-çar pela qualidade da veia safena que, de forma ideal,deve ser livre de doença e preservada em todo o compri-mento no seu leito. Essas condições privilegiadas talvezexpliquem os bons resultados com a técnica in situ.Cada vez menos, porém, essas condições estão presen-tes.

A utilização da veia não reversa com realização delise valvular, porém removida de seu leito, passou a seropção técnica, empregada rotineiramente5,29,30. Ascaracterísticas dessa técnica que se apresentam comovantajosas são as seguintes: (1) permite selecionar omelhor segmento de veia e torna mais flexível a escolhados trechos ideais da artéria doadora e receptora para arealização da derivação; (2) por não ser invertida, man-tém a relação de calibre com as artérias; (3) durante adevalvulação, a veia é inspecionada pelo valvulótomo ealgum trecho julgado não adequado pode ser removido;

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(4) as incisões na pele podem ser escalonadas. Quandoda utilização de veias do membro superior ou outrossegmentos de veias superficiais, a devalvulação tambémé empregada, pelos mesmos motivos31.

Pacientes com revascularizações prévias do própriomembro inferior ou de miocárdio ou pacientes comindisponibilidade da veia safena (por flebite ou algumaoutra condição, como doença venosa, ou remoção porinsuficiência venosa e varizes) freqüentemente se apre-sentam e, nesses casos, as possibilidades de revasculari-zação passam a ser mais restritas.

Devido ao funcionamento ainda não comparávelao da veia safena dos outros substitutos para área infra-poplítea, como o politetrafluoretileno expandido(PTFE), a veia de cordão umbilical ou veias homólogaspreservadas, a política totalmente autógena é preconi-zada por muitos cirurgiões. Desse modo, outras veiassuperficiais, como a safena externa, veias do membrosuperior e veias profundas, têm sido propostas para asrevascularizações31-33.

Como, entretanto, essas operações demandam maiortempo cirúrgico e múltiplas incisões, alguns preferem ouso de próteses. Ainda assim, essas são utilizadas com oadjunto de alguma manobra adicional, como a interpo-sição de segmento de veia na anastomose distal34.

A terapêutica endovascular, no território fêmoro-poplíteo e distal, tem menos indicação que no territórioaorto-ilíaco e ainda demanda maior observação, emlongo prazo, para avaliação da durabilidade dos proce-dimentos. Particularmente nas artérias distais da perna,tem indicações limitadas, devido à natureza comum daslesões diabéticas, que não tendem a ser focais. Aindaassim, como a variedade na apresentação das lesõesarterioescleróticas é a regra, cada vez mais casos têm sidotratados inicialmente com procedimentos de angio-plastia, que podem ser recursos válidos nas lesões deli-mitadas (Figura 11).

Além das revascularizações complexas descritas, apossibilidade de revestimento cutâneo e muscular, comtécnicas microcirúrgicas, representa outra opção detática e técnica cirúrgica.

O exemplo da Figura 12 ilustra paciente com lesãoextensa da região do calcâneo, em que foi planejadorevestimento com retalho microcirúrgico a partir doreto abdominal. O paciente teve o membro preservadoe recuperou a condição de deambulação com calçadoapropriado.

Figura 11 - Paciente com estenose da origem da artériatibial posterior (A). Em (B) passagem do fioguia e em (C) balão de dilatação insuflado. Em(D) injeção de controle do contraste, mostran-do resultado da dilatação, com fio guia ainda nolocal.

Conclusões e comentários

Serviços que sistematicamente têm praticado revas-cularizações distais, com os cuidados indicados, têmconseguido reduzir o número de amputações, comtaxas de perviedade dos enxertos próximas a 80% em até50 meses de seguimento e taxas de mortalidade periope-ratória em torno de 3%2.

Entretanto, esses resultados de excelência não sãosimples de alcançar. Pacientes que necessitam desse tipode atendimento, em nosso meio, nem sempre conse-guem internação a tempo de impedir a evolução paraamputação maior. Nos serviços de emergência, macasse acumulam com pacientes com pés diabéticos, neuro-páticos, infectados ou isquêmicos, demandando aten-dimento.

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Figura 12 - No alto, aspecto inicial pós-revascularização edebridamento inicial; à direita, cicatrizado comretalho microcirúrgico. Abaixo, arteriografia decontrole mostrando artéria epigástrica utilizadapara irrigação do retalho (seta).

Apesar de sob o ponto de vista da prática médicamuito ter sido alcançado, programas de educação eorientação devem ser realizados para ação profilática emrelação a este problema, que é mundial, mas entre nósatinge níveis alarmantes.

A cirurgia vascular como especialidade médica,tanto pelo cuidado de pacientes isquêmicos, como deoutras emergências cirúrgicas, como as representadaspela drenagem de abscessos, debridamentos, amputa-ções ou cirurgias profiláticas para correção de deforma-ções, tem muito a fazer neste campo. O envolvimentocom cuidados dos pés, sapatos e aparelhos profiláticose curativos deve ser encorajado para que a prevenção sejamelhor exercida.

No caso de amputações maiores, quando inevitá-veis, atitude reconstrutiva e conservadora em relação aonível da ablação e positiva no sentido do encaminha-mento para a reabilitação deve ser adotada. Dessemodo, com o conhecimento de todas as possibilidades,incluindo o potencial de reabilitação pós-amputações,pode-se atingir juízo crítico nas indicações das revascu-larizações, bem como na funcionalidade do salvamentode membros, particularmente em amputações parciaisdo pé, que ainda são feitas freqüentemente de maneirainsatisfatória.

Muitos desafios precisam ser enfrentados para queos pés, assim como seus primos considerados maisnobres, apesar de também atacados pelo diabetes, comoo coração, os rins e os olhos, mereçam a atenção devida,e este quadro sombrio possa ser revertido.

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Correspondência:Dr. Nelson De LucciaAv. Sã Gualter, 346CEP 05455-000 - São Paulo - SPE-mail: [email protected]

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