Dois_Monologos_Nao_Fazem_um_Dialogo_jove.pdf

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  • Educao & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 175-192, jan./mar. 2016.http://dx.doi.org/10.1590/2175-623655947

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    Dois Monlogos No Fazem um Dilogo: jovens e ensino mdio

    Carmem Zeli Vargas GilI

    Fernando SeffnerI

    IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS Brasil

    RESUMO Dois Monlogos No Fazem um Dilogo: jovens e ensino m-dio. Pautado em alguns estudos de pesquisadores que tm produzido co-nhecimento sobre as conexes entre culturas juvenis e escola, o texto apon-ta diferentes contornos que ampliam a viso tradicional da juventude como tempo de problemas e dos jovens como indivduos na contramo do siste-ma escolar. Ao mesmo tempo, o texto prope questes que ampliam o deba-te em torno do ensino mdio para pensar temas relacionados s juventudes, compreendendo que os jovens possuem saberes gestados em diferentes es-paos educativos, sujeitos a mltiplas pedagogias culturais, o que implica ateno em pensar contedos e mtodos de ensino. As ideias aqui reunidas pretendem instigar discusses entre jovens e educadores, buscando ressig-nificar os sentidos atribudos ao Ensino Mdio. Palavras-chave: Jovens. Ensino Mdio. Participao. Desigualdades.

    ABSTRACT Two Monologues Do Not Make a Dialogue: youth and sec-ondary education. Based on some studies about the connections between youth culture and school, the text questions the traditional view of youth as troubled times and young people as individuals against the school system. At the same time, the text poses questions that broaden the debate concern-ing the secondary education to consider issues related to youth cultures. The young people possess knowledge generated in different educational scopes, subject to multiple cultural pedagogies, which demands attention to thinking about contents and teaching methods. The ideas here gathered are intended to instigate debates among young people and educators, seek-ing to reframe the meanings assigned to the Secondary Education.Keywords: Youth. Secondary Education. Participation. Inequalities.

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    Dois Monlogos No Fazem um Dilogo

    Juventude, Juventudes, Escola, Escolas

    Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar l fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Amrico, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gnero humano. Para cmulo de deses-pero, vi atravs das vidraas da escola, no claro azul do cu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramtica nos joelhos (Assis, 2007, p. 327).

    Contos de Escola nos inspira a refletir sobre os sentidos da escola para os jovens. Talvez diferente do imaginrio do autor, a escola hoje se constitua como um lugar mais aberto e menos disciplinador da di-versidade de sujeitos que passam a frequent-la. Mudaram os livros, os mestres, a disposio das mesas e cadeiras, os tempos, as tarefas e os sentidos se reconfiguraram. Impe-se a pergunta: possvel fazer da escola pblica destinada aos jovens dos setores populares, espao cul-tural e educativo de vivncia intergeracional? Pode a escola promover o dilogo entre jovens e educadores possibilitando ver o mundo no atra-vs das vidraas, mas compreender o mundo que est dentro da escola? Muito se debate hoje em dia sobre o ensino mdio. Mesmo com tantos debates, corremos o risco de ter monlogos, ao invs de dilogos. Nossa aposta neste texto propor algumas reflexes sobre as juventudes e o ensino mdio, tomando como referncia propostas de reestruturao do ensino mdio e o tema da participao juvenil, tramando ideias para transformar os monlogos em dilogos mais efetivos.

    Para construir ferramentas de anlise das propostas que circu-lam, elegemos, neste texto, dois critrios. O primeiro trata da conexo entre jovens e participao social. Em termos efetivos, podemos obser-var se as propostas para o ensino mdio privilegiam a formao de jo-vens com engajamento na vida social e poltica, aliado ao ensino dos contedos cientficos. Educar para a participao poltica no algo que apenas se ensina, mas algo que se pratica na escola. Isso envolve currculos e gesto escolar que valorizem as culturas juvenis, dialo-guem com elas e tenham abertura participao dos jovens na gesto do processo educativo. O segundo critrio diz respeito ao enfrentamen-to da desigualdade na sociedade brasileira.

    Os jovens, a cada dia, chegam s escolas e configuram novos de-safios aos educadores e gestores. Em 2013, 83,3% dos jovens de 15 a 17 anos estavam na escola (IBGE/Pnad. Todos Pela Educao). A Emenda Constitucional n 59/2009 definiu o Ensino Mdio como uma etapa obrigatria da Educao Bsica no Brasil. Com durao de trs anos para a faixa etria de 15 a 17 anos, em oferta de cursos mdio regular,

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    mdio regular integrado educao profissional, normal/magistrio, alm do ensino mdio na modalidade educao de jovens e adultos. Cabe destacar tambm que a meta 3 do Plano Nacional de Educao1, estabelece a universalizao do ensino mdio. Ora, a expanso do en-sino mdio ampliou a presena do contingente juvenil, historicamente fora da escola, embora ainda longe da universalizao. O resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (Pnad) 2013 aponta que apenas 54,3% dos jovens at 19 anos cursam o ensino mdio at o seu fi-nal. Houve uma melhoria nestes ndices: 46,6% em 2007, 51,6% em 2009 e 53,4% em 2011, embora persista a dificuldade dos jovens conclurem o ensino mdio na idade certa.

    A distoro idade-srie e a evaso escolar so dois grandes desa-fios do Ensino Mdio brasileiro que necessitam ser enfrentados para dar conta do que preconiza o PNE, que indica a universalizao da edu-cao at 2016 para jovens de 15 a 17 anos e do aumento de 30% das matrculas no ensino mdio at 2024.

    Figura 1 Porcentagem de jovens de 15 a 17 anos matriculados no Ensino Mdio Taxa lquida de matrcula

    Outro ponto deste debate diz respeito ao que entendemos por ju-ventude como uma categoria construda. Para o ocidente, a juventude caracteriza-se como grupo etrio distinto, com papel social definido, que comea a se colocar no perodo da sociedade industrial. Talvez se possa dizer que, se James Watt foi o inventor da mquina a vapor em 1765, Rousseau foi o inventor do jovem, com Emlio, ou, Da Educao, (2004), publicado originalmente em 1762. Emlio a obra que vai pro-duzir, em nvel terico, a concepo moderna de infncia e adolescn-cia matriz do que ser depois juventude. Rousseau quem vai falar da adolescncia como um segundo nascimento. Uma poca, segundo ele, especialmente turbulenta, que deve ser constantemente vigiada.

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    Esta concepo consolida-se no sculo XIX e, junto a ela, um interesse novo pela juventude, tempo tambm de turbulncia, caracterizada por um excesso de paixo irracional que deveria ser vigiado e enclausurado (Gil, 2011).

    Perceber a juventude como um momento da vida que marcaria a sada da infncia at o ingresso no mundo adulto, vivido de forma homognea, ignorar as condies histrico-culturais dos integrantes desta categoria. Como anuncia Levi e Schmitt (1996),

    Essa poca da vida no pode ser definida com clareza por quantificaes demogrficas, nem por definies de tipo jurdicas, e por isso que nos parece substancialmente intil tentar identificar e estabelecer, como fizeram ou-tros, limites muito ntidos (Levi; Schmitt, 1996, p. 19).

    Pais (1993) diz que a juventude uma categoria socialmente cons-truda. Portanto, sujeita a modificar-se ao longo do tempo. Assim, em uma mirada histrica podemos dizer que, nos diferentes contextos his-tricos e culturais, os jovens j foram a gerao ctica (Alemanha ps 1945); a gerao abatida (Espanha ps-guerra civil); a gerao sofrida (Itlia, na II Guerra) para referir-se a comportamentos decorrentes das sequelas das guerras que produziram desesperana. Porm, o cresci-mento econmico da Europa dos anos 1960, propagando valores de consumo, possibilitou o aparecimento de uma cultura juvenil como ca-tegoria autnoma, convertendo-se em idade da moda. Ao mesmo tem-po, emergiu a imagem do rebelde sem causa. Nos bairros de Londres, em 1976, aps a exploso dos Sex Pistols, afirmou-se um novo estilo com os punks.

    Em 1985, a UNESCO declara o Ano Internacional da Juventude2, sinalizando que as coisas no iam muito bem. A desocupao juvenil, a runa das ideologias, o questionamento sobre o sentido da escola pro-duziam uma atitude desencantada que Michel Maffesoli definiu como tempos das tribos (Maffesoli, 1998). Ou seja, tempos que congregavam formas de sociabilidade que se manifestavam no desejo de estar-junto toa, muito diferente das sociabilidades modernas. Para este autor as tribos seriam as agregaes s quais as pessoas se unem, por afinidade e voluntariamente, para compartilhar coisas em comum.

    No Brasil, acompanhando os movimentos mundiais, os jovens j foram, homogeneamente, definidos como rebeldes, gerao paz e amor, ousados e participativos, gerao perdida, gangues, cara-pintada e, neste momento, parece que a diversidade ganha mais visibilidade, dificul-tando que um grupo assuma a representao de todos. Hoje, para as fronteiras enfatizam as passagens, para as hierarquias firmam as hi-bridizaes, para as oposies ressaltam as conexes. Viver a juventu-de, como lembra Feixa (2004), j no como no complexo de Tarzan transitar da natureza cultura, nem tampouco como no complexo de Peter Pan3 resistir vida adulta, mas experimentar o destino incerto

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    como no complexo do Replicante, de Blade Runner, que se rebela por-que no tem memria do passado. Para Feixa, existe nesse fenmeno uma grande contradio, pois os jovens querem ser adultos enquanto os adultos querem ser jovens. Obviamente que os jovens alcanaro a vida adulta, mas os adultos no podero retornar juventude. Este paradoxo se aproxima da histria do filme Blade Runner4. Tal como os replicantes que so perseguidos pelos caadores, os jovens so protagonistas de to-dos os desejos e todos os males (Gil, 2012).

    Sero os jovens deste incio de sculo replicantes? Uma gerao @ que coloca o sentido da vida no presente; sem memria, no tem consci-ncia das possibilidades de projetar o futuro? Programados para utilizar as tecnologias, esto mais preparados para as mudanas e, talvez, para enfrentar o futuro sem preconceitos? Com o fim das grandes utopias, so agora protagonistas de revoltas episdicas; tm o mundo ao seu al-cance, mas no so senhores de seus destinos.

    Tal como em Blade Runner, os adultos vacilam entre o encanto pela juventude e a necessidade de exterminar tudo que ameaa a ordem e a norma. O resultado de tudo isto , como prope Feixa (2004), um modelo hbrido e ambivalente de juventude, marcado pela dependncia econmica, falta de espao de responsabilizao e um crescente ama-durecimento intelectual que se expressa no acesso s novas tecnologias.

    Feixa (2004) define juventude como um Jano de dois rostos: uma ameaa de presentes obscuros e uma promessa de futuros radiantes. So como anjos que nos deslumbram e monstros que nos assustam. O mito de Jano interpretado geralmente como smbolo do passado e do futuro. Entre o tempo que j no , e o tempo que ainda no foi, encon-tra-se um terceiro rosto de Jano, invisvel, que olha o presente.

    Assim, se a juventude foi vista como uma etapa de transio mar-cada por crises e mudanas ou, depois, nos anos 1980, como categoria cultural protagonista do mercado, hoje se torna uma etapa permanente, o perodo mais duradouro da vida. Como entrecruzar tais reflexes com os desafios do ensino mdio hoje no Brasil, pergunta que se impe para a continuidade do texto.

    Reformas no Ensino Mdio: cada cabea uma sentena

    O ensino brasileiro vive, desde a proclamao da Constituio de 1988, um processo crescente de preocupaes por parte de governan-tes, sociedade civil, movimentos populares, associaes religiosas, em-presariado, agncias internacionais, comunidades de pais e alunos e as-sociaes profissionais de docentes, e isto para ficar apenas nos atores sociais majoritrios. Vale lembrar que foi na Constituio de 1988 que se conseguiu escrever, pela primeira vez na histria ptria, que a educa-o fundamental obrigatria, ou seja, o comparecimento dos alunos escola obrigatrio, e a oferta de vagas por parte das mantenedoras (estado, unio, municpios) tambm obrigatria. Para grande nmero

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    de pases, essa obrigatoriedade veio junto com a proclamao da rep-blica, no sculo XIX. No caso brasileiro, ela demorou praticamente cem anos para se instalar entre ns. Assim que instalada, passou a produzir efeitos. Prximo do ano 2000, o Brasil j ostentava ndices de frequncia do alunado escola de ensino fundamental superiores a 95%, em qual-quer regio do Pas (Oliveira, 2007).

    Com o aumento de concluintes do ensino fundamental, passou a existir uma presso sobre o ensino mdio. O ensino mdio no foi definido na Constituio de 1988 como de matrcula obrigatria, mas a Emenda Constitucional n 59, de 11 de novembro de 2009, indica o ano de 2016 para a concluso deste processo de obrigatoriedade5. H um conjunto enorme de desafios para que tal processo se efetive. Para o dilogo com os valores e prticas das culturas juvenis, interessa de perto saber se a escola de ensino mdio atraente ao aluno, de modo que ele possa se vincular a ela completando a escolarizao no tempo adequado, com bom aproveitamento. Para tanto, existe um conjunto de programas de financiamento, mas estes apresentam problemas:

    A estagnao dos indicadores de fluxo escolar do ensino fundamental, acompanhada de ligeira tendncia de de-teriorao a partir da 5 srie (aumento das taxas de re-petncia e evaso), sugere, porm, que os efeitos iniciais positivos do FUNDEF vm perdendo flego, indicando claramente os limites de uma estrutura de incentivos ba-seada exclusivamente no quantitativo de matrculas. A garantia de repasse de recursos com base no nmero de alunos atendidos, independentemente do desempenho de indicadores de qualidade, parece ter gerado acomoda-o dos agentes responsveis pelas redes de ensino fun-damental pblico (Goulart; Sampaio; Nespoli, s/d, p. 4).

    A discusso feita pelos autores, bem como em Oliveira (2007), mostra os limites da simples incluso de alunos na escola pblica bra-sileira, sem garantia de mecanismos de efetiva aprendizagem e pro-gresso: progressivamente, os alunos perdem o interesse pela escola, se evadem, ou passam a reprovar constantemente, frequentando a escola talvez pela sociabilidade, mas sem aprendizagens significativas. Pode-mos considerar que o simples acesso no se traduz em efetiva democra-tizao do ensino mdio. Insistimos na aposta deste texto: a vinculao do aluno de ensino mdio escola acontece se as marcas de sua cultura juvenil so consideradas, e se h um estmulo a sua participao social na escola. Isso no significa transformar a escola de ensino mdio em uma sociedade recreativa para jovens, significa sim que a escola deve fazer um esforo para dialogar com as culturas juvenis, tratando o alu-no de ensino mdio como algum que portador de ideias, proposies acerca do mundo, vises polticas e gostos culturais prprios. Mas a tarefa no apenas da escola e do professor, ela tambm precisa estar presente no desenho das polticas pblicas em educao, o que, de certa forma, vem ocorrendo de forma tmida.

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    A sociedade em que vivemos dita frequentemente como sendo uma sociedade do conhecimento ou uma sociedade da informao ou uma sociedade da aprendizagem (Coutinho; Lisboa, 2011). Mesmo com o desgaste dessas categorias, pela banalizao de seu uso no senso co-mum, elas guardam evidente conexo com o acesso e permanncia na escolarizao formal. Por este e outros tantos motivos, todos os pases se movem no sentido de ofertar uma escolaridade de pelo menos doze anos aos jovens, em geral pensada como nove anos de escolaridade fun-damental, mais trs anos de ensino mdio, o que no Brasil se conhece com o nome de educao bsica, mas que ainda estamos longe de atin-gir em plenitude:

    O advento da Emenda Constitucional n 59/2009, que prescreveu a obrigatoriedade do ensino mdio a partir de 2016 a todos os indivduos (na idade prpria ou no), torna a questo ainda mais relevante, uma vez que os indicado-res oficiais recentes evidenciam um longo caminho a ser percorrido com vista efetivao de tal ditame constitu-cional. No caso, vale ressaltar, tomados os dados de 2008, que: Dos indivduos na faixa etria de 15 a 17 anos (10,28 milhes), apenas 5,18 milhes estavam matriculados no ensino mdio (TML de 50,4%); Tendo em vista que, no mesmo ano, 8,6 milhes dos indivduos de 15 a 17 anos eram estudantes, h um nmero significativo de jovens e adolescentes que deveriam estar cursando o ensino m-dio que ainda no conseguiram vencer as barreiras do ensino fundamental; Mais de 1,6 milho de pessoas em idade apropriada para o ensino mdio sequer esto ma-triculados na escola em qualquer nvel ou modalidade (Lima, 2011, p. 282).

    As estatsticas trazidas aqui, bem como algumas percepes que avanamos, no deixam margem para a dificuldade da tarefa de assegu-rar a todos os jovens oportunidades de acesso e permanncia no ensino mdio na escola pblica brasileira. Propostas demasiadamente ousadas terminam por ser aventureiras, e correm o risco de no se efetivar, com a possibilidade de que professores e escolas sejam acusados pelo no cumprimento das metas, como tem sido comum no Brasil, com eviden-te acentuao desse comportamento nos ltimos anos. Dessa forma, se por um lado devemos lutar para a democratizao do ensino mdio aos jovens, por outro temos que saber analisar as propostas existentes com elementos slidos.

    Temos tambm um conjunto de atores sociais nessa luta pela am-pliao do ensino mdio, que articula as polticas pblicas de educao com o discurso do desenvolvimento estratgico6. Ou seja, o crescimen-to do Pas, sua presena econmica cada vez mais notvel na arena in-ternacional, seu peso poltico perceptvel no cenrio global, trouxeram consigo outro conjunto de preocupaes para a educao nacional. Um forte componente produtivista se incorporou ao discurso educacional, tendo como objetivo produzir sujeitos para as necessidades especficas

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    do crescimento econmico, conforme discutido em Freitas (2013; 2012; 2011), com impactos visveis nas avaliaes nacionais de professores e de alunos.

    Neste contexto, surgem propostas em mbito estadual e nacional para ressignificar o ensino mdio. Para construir ferramentas de an-lise das propostas que circulam, elegemos neste texto dois critrios. O primeiro trata da conexo entre jovens e participao, que ser desen-volvida no prximo tpico. O segundo critrio diz respeito ao enfrenta-mento da desigualdade na sociedade brasileira. De modo claro, o en-sino mdio necessita ser a oportunidade para que os jovens estudem e compreendam a formao da sociedade brasileira, nos seus mais diver-sos aspectos, e enfrentem o tema da histrica desigualdade.

    Para discutir a questo da desigualdade brasileira e os modos de insero do tema na proposta do ensino mdio, partimos da de um r-pido olhar sobre a desigualdade econmica, para depois pensar outros modos de desigualdade presentes na sociedade:

    O Brasil um importante caso para se estudar a pobreza, no somente porque possui uma grande parte da popula-o pobre da Amrica Latina, mas tambm porque apre-senta um grande potencial para erradicar a pobreza. O re-lativamente alto PIB per capita brasileiro, combinado com o alto grau de desigualdade da renda, gera condies fa-vorveis para o desenho de polticas redistributivas. Esse potencial exemplificado pela alta sensibilidade dos ndi-ces de desigualdade e pobreza, e mudanas em certos ins-trumentos de poltica por exemplo, mudanas no salrio mnimo e nas taxas de inflao (Neri; Soares, 2002, p. 78).

    Os autores refletem sobre a srie histrica de dados que vai dos anos 1970 at o ano 2000, marcada pela persistente alta desigualdade econmica, fruto da elevada concentrao de renda, o que permite ex-plicar a pobreza de grande parte da populao brasileira no por ser o Brasil um pas pobre ou seja, pas sem recursos suficientes para er-radicar a pobreza, como o caso de muitos outros mas por ser um pas de riqueza concentrada pas rico, com populao pobre. A persis-tncia da desigualdade atravessa pelo menos dois momentos polticos bem diversos da histria brasileira, a saber, ditadura militar (1964-1985) e retomada democrtica (1985 em diante, para a srie histrica consi-derada pelos autores, finalizando no ano 2000, considerada a data do artigo citado). Para a srie histrica analisada podemos at afirmar que em praticamente metade do tempo (15 anos) vivemos em uma ditadura, com desigualdade, alta concentrao de renda e grande parte da popu-lao na pobreza, e praticamente a segunda metade do tempo (outros 15 anos) vivemos em um perodo de retomada democrtica, eleies li-vres, e com a mesma estrutura de desigualdade. Tal situao j permitiu afirmar que [...] na viso de Roberto Martins no final dos anos 1990, presidente do Ipea durante, a trajetria da desigualdade de renda brasi-leira de 1970 a 2000 lembrava o cardiograma de um morto (IPEA, 2012,

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    p. 3). Mas a consolidao do regime democrtico permitiu o paulatino enfrentamento da situao de desigualdade econmica:

    De acordo com a PNAD, a desigualdade de renda no Brasil vem caindo continuamente desde 2001. Entre 2001 e 2011, a renda per capita dos 10% mais ricos aumentou 16,6% em termos acumulados, enquanto a renda dos mais pobres cresceu notveis 91,2% no perodo. Ou seja, a do dcimo mais pobre cresceu 550% mais rpido que a dos 10% mais ricos. Os ganhos de renda obtidos aumentam paulatina-mente, na medida em que caminhamos do topo para a base da distribuio de renda (IPEA, 2012, p. 6).

    Associamos essa mudana positiva no cenrio da desigualdade econmica brasileira com a noo de densidade democrtica (Santos; Avritzer, 2002), que nos permite pensar a vida em uma democracia para alm das eleies, e permite pensar solues democrticas para outras desigualdades, para alm da desigualdade econmica. dentro deste quadro que se pode pensar a escola em conexo com as culturas juvenis. Avanamos aqui alguns marcadores econmicos do perodo 2001-2011 com impactos nos jovens que frequentam a escola de ensino mdio:

    No caso das pessoas que vivem em famlias chefiadas por analfabetos, a renda sobe 88,6%, vis--vis um decrscimo de 11,1% daquelas cujas pessoas de referncia possuem 12 ou mais anos de estudo completos. A renda do Nordes-te sobe 72,8%, contra 45,8% do Sudeste. Similarmente, a renda cresceu mais nas reas rurais pobres, 85,5%, contra 40,5% nas metrpoles e 57,5% nas demais cidades. [] A renda daqueles que se identificam como pretos e pardos sobe 66,3% e 85,5%, respectivamente, contra 47,6% dos brancos. A renda das crianas de 0 a 4 anos sobe 61%, con-tra 47,6% daqueles de 55 a 59 anos (IPEA, 2012, p. 7).

    Os alunos que frequentam o ensino mdio ou que esto habili-tados a frequentar o ensino mdio, mas por razes diversas ainda no o fazem trazem algumas das marcas percebidas nos indicadores econ-micos acima: podem ser filhos de famlias com pais analfabetos; podem ser pretos, pardos ou brancos; podem estar situados em famlias com ir-mos ainda crianas; podem residir em reas rurais, metrpoles ou pe-quenas cidades. Partimos da desigualdade econmica, considerada em geral a mais importante das desigualdades, mas alargamos nosso olhar para os jovens aptos ao ensino mdio. As culturas juvenis so marca-das por outras diferenas, que podem gerar desigualdades, relaciona-das ou no renda. Os jovens do ensino mdio tm diferenas de per-tencimento religioso, e o pertencimento religioso tem desempenhado notavelmente um papel importante na gerao de desigualdades. Isso se verifica, por exemplo, na hostilidade crescente entre os integrantes de algumas religies, gerando casos de intolerncia religiosa, como so aqueles que envolvem os evanglicos pentecostais em relao s religi-es afro-brasileiras, historicamente perseguidas.

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    Os jovens do ensino mdio tm diferenas de simpatia partid-ria, e isso pode gerar tambm situaes de desigualdade, em que alguns no se sintam em condies seguras de expressar suas opinies polti-cas, pois tambm nesse quesito temos uma distribuio de poder na im-prensa brasileira que compromete a densidade democrtica desejvel. Os alunos que frequentam o ensino mdio tm diferenas de gnero, a saber, so rapazes ou moas. Essa diferena pode facilmente se conver-ter em desigualdade, se no atentarmos para os nmeros da violncia contra a mulher, para os casos de estupro, se a escola ficar alheia aos movimentos sociais que hoje em dia reivindicam, de muitos modos di-ferentes, a equidade de gnero, e consideram os direitos das mulheres como parte dos direitos humanos. No quesito sexualidade h enormes diferenas a atravessar as juventudes, em particular pelo aumento ex-pressivo da visibilidade de gays, lsbicas, travestis e transexuais e pela sua incluso na escola pblica brasileira.

    O Brasil tem atualmente no apenas programas para lidar com o tema na escola, como o caso do Brasil sem Homofobia7, como tem legislao acerca do uso do nome social em muitos municpios, estados, bem como em rgos federais8. Os jovens brasileiros na idade de cur-sar o ensino mdio tm diferenas de cor da pele, marcador social que no caso brasileiro claramente produtor de desigualdade, por conta do racismo ainda presente entre ns. Em relao a esse tpico, tambm o Brasil tem produzido legislaes nos ltimos anos, como a Lei n 10.639, de 9 de janeiro de 2003; e a Lei n 11.645, de 10 de maro de 2008, que dispem sobre a obrigatoriedade de ensino da Histria e Cultura Afro--Brasileira e Indgena. Vale tambm lembrar que a adoo do regime de cotas para o ingresso no ensino superior trouxe enorme impacto na escola pblica brasileira, em particular no ensino mdio. H muitos outros marcadores da diferena presentes entre os jovens, que podem com facilidade se transformar em marcadores de desigualdade. De toda forma, conclumos esta seo com um dado otimista em relao ao pro-cesso histrico de luta contra a desigualdade:

    O Brasil atingiu em 2011, pela PNAD, seu menor nvel de desigualdade de renda desde os registros nacionais ini-ciados em 1960. Na verdade, a desigualdade no Brasil permanece entre as 15 maiores do mundo, e levaria pelo menos 20 anos no atual ritmo de crescimento para atin-gir nveis dos Estados Unidos, que no so uma sociedade igualitria. Porm, isso significa que existem consider-veis reservas de crescimento pr-pobre, que s comea-ram a ser exploradas na dcada passada (IPEA, 2012, p. 8).

    Na continuidade do texto, renem-se alguns estudos de pesqui-sadores que tm produzido conhecimento sobre o tema da participao juvenil e educao, apontando a necessidade de a escola reconhecer os diferentes contornos das juventudes e, a partir disso, reconhec-los como sujeitos atuantes no cenrio pblico.

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    Jovens e Participao9: um debate necessrio para o ensino mdio

    Por que o tema da participao necessrio no debate sobre o en-sino mdio e a escola? Reconhecer que os jovens esto reinventando o mundo da participao social com diferentes formas de ocupao do espao pblico, ajuda a construir novos entendimentos sobre os vere-dictos conclusivos impostos aos jovens deste tempo. Talvez o exerccio de outro olhar para as mobilizaes da juventude faa emergir a cria-tividade que reinventa o mundo do trabalho, as aes solidrias, a in-dignao tica presente em alguns grupos juvenis e a emergncia de temas ecolgicos nas aes e projetos de grupos juvenis. Tal perspectiva amplia a legitimidade dos jovens diante dos adultos, o que, talvez, apro-xime jovens e educadores. Se quisermos, como educadores, compreen-d-los, precisamos conhec-los indo alm das predefinies dos jovens como quem no sabe, no tem futuro, consumista, alienado ou rebelde. Ao contrrio, reconhecer que cada um traz para a escola suas experin-cias de vida com interesses diversos. Como, ento, acolher, compreen-der e potencializar suas experincias na construo de projetos de vida?

    Indicamos, nestes escritos, a necessidade da escola e seus atores reconhecerem que a mobilizao coletiva assume formas que escapam s modalidades tradicionais. Assim, necessrio romper com as com-paraes geracionais do tipo no meu tempo os jovens eram participativos. As pesquisas sobre as juventudes tm-se ampliado, nos ltimos anos, para diversas produes no campo das cincias sociais sobre os movi-mentos juvenis, as identidades dos jovens e as formas de participao social e poltica dos mesmos. Pais (1993); Feixa (2006); Margulis (1998); Levi e Schmitt (1996); Peralva (1997); Foracchi (1972); Novaes (2004; 2005); Sposito (2007), dentre outras. Observa-se que a participao ju-venil na contemporaneidade difere do envolvimento dos movimentos de dcadas anteriores e, via de regra, como sugere Serna (1997), aponta para: 1) a novidade das causas de mobilizao; 2) a priorizao da ao imediata; 3) a localizao do indivduo na organizao ou movimento; e 4) a nfase na horizontalidade dos processos de coordenao.

    Inegavelmente, as causas das lutas juvenis se multiplicaram e produziram distines dos conflitos de dcadas passadas, que tinham como protagonistas os movimentos estudantis, organizaes de bair-ro e sindicatos, entre outros. Hoje as lutas se pulverizam e os jovens se agregam em grupos que atuam em esferas diferenciadas. Alm dos mo-vimentos tradicionais, vinculados aos espaos escolares, ao escotismo, aos partidos polticos e s aes com motivao religiosa, entre outros, os jovens tm-se agregado na defesa das questes ambientais, dos di-reitos das minorias tnicas, dos direitos sexuais, dos direitos humanos, em diversos coletivos, vinculados ou no a espaos institucionais. Os jovens priorizam os pequenos espaos da vida cotidiana como trinchei-ras para impulsionar a transformao global (Reguillo, 2003).

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    Dois Monlogos No Fazem um Dilogo

    Em relao ao Brasil, que cenrio se apresenta aos atores juve-nis quando, a partir da dcada de 1990, novos atores entram em cena? No somente o estudante, o operrio, o sindicalista assumem lugar de destaque no espao pblico. Alguns atores desaparecem, outros se for-mam, consolidam-se processos de institucionalizao e de moderniza-o, mas nascem tambm novos problemas e se revelam novos espaos de conflitos (Melucci, 2001). As mudanas poltico-institucionais que se do a partir da dcada de 1980, com o fim do regime militar, muitas por presses da sociedade civil, resultam na criao de novos espaos p-blicos de interao e negociao, ampliando a representatividade dos setores organizados para atuarem junto aos rgos pblicos.

    Nessa dcada, a Constituio Brasileira de 1988 redefine o pa-pel do governo federal, que passa a assumir a coordenao das polti-cas pblicas sociais, enquanto aos municpios cabe a maior parte da responsabilidade de sua execuo. Esse formato federativo previu a transferncia de diversas atribuies, responsabilidades e recursos da instncia federal para os nveis estadual e municipal de governos, bem como a autonomia de estados e municpios para definirem a organiza-o e a gesto de suas aes.

    Constitui-se, a partir da, uma agenda de reformas tendo como meta a descentralizao, que se tornou pauta importante nos debates polticos do Pas, considerando a centralizao de poder na Unio que a Constituio de 1988 buscou romper. Os trabalhos de Dagnino (2002) e Souza (2001; 2005) revelam os limites e as possibilidades da chamada descentralizao no Brasil. O certo que esta ganhou ares de democra-tizao, tendo como meta a participao e o controle social das aes do governo. O debate girava tambm em torno dos direitos sociais e da ampliao da cidadania. Nesse cenrio, o poder local foi adquirindo vi-sibilidade para empreender formas inovadoras de gesto, oportunizan-do a participao de diversos atores sociais.

    A dcada de 1990 foi, ento, marcada pelo conflito entre a expec-tativa de implementao de polticas pblicas que concretizassem os direitos conquistados e assegurados em lei, a partir da luta dos setores progressistas da sociedade que pediam a regulamentao dos direitos sociais inscritos na Constituio de 1988. Foram regulamentadas as reas da criana e do adolescente, da seguridade social, da sade, da assistncia social, da educao e da previdncia social (Carvalho, 2004). Tambm as questes juvenis ganham espao na agenda pblica, repre-sentadas por polticas setoriais ou por categorias de populao. So as chamadas polticas focalizadas, uma vez que os destinatrios se defi-nem a partir da necessidade, pobreza ou risco.

    Tendo em vista a diversidade de formas de organizao e de pr-ticas polticas das juventudes, Melucci (2001) diz que, nas ltimas d-cadas, os jovens so atores centrais nas mobilizaes coletivas. Isso perceptvel tanto em aes empreendidas por jovens como na partici-pao de jovens em mobilizaes que envolvem outras categorias so-

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    ciais. O reconhecimento da juventude como grupo social estratgico para aes coletivas e dos jovens como sujeitos de direitos fez emergir o movimento juvenil na construo de uma nova relao entre Estado e sociedade.

    Para Pensar Conexes entre Jovens e Ensino Mdio

    O conceito que d suporte a pensar conexes entre culturas ju-venis e escola, entre jovens e ensino mdio, o de cultura escolar. Por cultura escolar estamos entendendo um conjunto de disposies e re-gistros simblicos, que constitui esse lugar chamado escola, e permite que ele seja de imediato reconhecido, mesmo quando se observam re-gies diferentes e at mesmo com certa variao de tempos histricos. A cultura escolar um artefato histrico, que se corporifica em rituais especficos da vida escolar, no mobilirio e na distribuio arquitet-nica das construes, no linguajar que tido como pedagogicamente adequado para este espao, no regime de horrios, no currculo explici-tamente praticado, no regimento disciplinar que delimita o que pode e o que no pode ser feito, nos modos de lazer adequados, na distribuio por gnero das expectativas (o que prprio de meninos, o que pr-prio de meninas), nos meios e modos de avaliao das condutas e das aprendizagens, includas a as eventuais punies e os reforos de com-portamentos positivos, e em um sem nmero de outras disposies, que do corpo a esta instituio que de imediato reconhecemos, a escola.

    Observar a cultura escolar examinar normas, finalidades da es-cola e da educao escolar em uma sociedade, pensar os meios e modos da profissionalizao docente, observar o que se ensina, como se en-sina, e de que modos se d a seleo dos contedos. A cultura escolar pode ser pensada como mais ou menos prxima da cultura familiar, e este um tema importante. Se pensada como continuao da cultura familiar, se perde a noo de escola como espao pblico e de negocia-o das diferenas, e se transforma a professora em uma continuao da figura materna. Se pensada de modo autnomo da cultura familiar, a escola ganha importncia como espao pblico, laboratrio do exer-ccio da vida pblica para as novas geraes, e marcada pelas liberda-des laicas. A cultura escolar pode ser pensada como em total sintonia com a cultura profissional, o que em geral oportuniza que as empresas e os mercados colonizem a instituio escolar, exagerando seu carter propedutico. Excessivo afastamento das preocupaes do mundo do trabalho provoca que a imagem da escola como instituio parea dis-tanciada do mundo [...] o fetiche da cultura escolar isolada de outras culturas (universitria, industrial, no escolar, tradies populares). A escola se v reduzida a uma ilha fora da Histria (Silva; Fonseca, 2010, p. 15).

    De toda forma, [...] esta cultura escolar no pode ser estudada sem a anlise precisa das relaes conflituosas ou pacficas que ela mantm,

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    a cada perodo de sua histria, com o conjunto das culturas que lhe so contemporneas: cultura religiosa, cultura poltica ou cultura popular (Julia, 2001, p. 10). Em sintonia com esses pressupostos, afirmamos que a cultura escolar tem que manter um importante dilogo com as cultu-ras juvenis, e isso deve ser feito articulado com o propsito de desen-volver o interesse pela participao dos jovens na vida poltica e social. Como j afirmamos acima, no algo que apenas se estude, algo que a escola pratica, no modo como se organiza. Isso se articula com o esfor-o de pensar o ensino mdio na perspectiva dos jovens que frequentam esta etapa escolar.

    Buscamos neste texto gerar pontes de dilogo entre jovens e edu-cadores, entre culturas juvenis e escola, tomando como referncia o tema da participao juvenil e a condio desigual que marca tanto a sociedade quanto a juventude brasileira. Neste sentido, trouxemos ele-mentos para propor uma mirada reflexiva para as propostas de refor-mulao do ensino mdio operando com estes dois critrios de anlise. possvel transformar os quesitos em questes, para dirigir aos docu-mentos das polticas pblicas e aos prprios gestores. Tais propostas instigam o reconhecimento do jovem como sujeito criativo e participa-tivo? Tais propostas reconhecem a tarefa de reduzir as desigualdades que atuam na sociedade brasileira? Tais propostas desenham no ape-nas projetos de estudo de temas, mas pensam tambm na organizao democrtica da escola? Tais propostas reconhecem que a democratiza-o do acesso e permanncia ao ensino mdio no apenas contedo de estudo, mas tambm conjunto de prticas de gesto escolar? Tais propostas levam em conta a necessidade da escola de turno integral, onde os jovens tero espaos e tempos institucionais para propor temas de estudo e vivncia, ao lado das disciplinas e projetos interdiscipli-nares propostos pelos professores? Tais propostas viabilizam recursos para a ampliao de vagas e acolhida dos jovens nas escolas de ensino mdio, com recursos tecnolgicos adequados?

    Armados com estas perguntas, e muitas outras que podem ser fei-tas seguindo a tica que aqui adotamos, respeitamos os jovens desta gerao, que vivem uma experincia cultural distinta de outras, socia-lizados com as tecnologias digitais, inventivos em suas formas de parti-cipao poltica, desafiando o Estado, a famlia e a escola, em especial, a de ensino mdio a reinventar formas de viver, minimamente, a condi-o juvenil. Consideramos que os docentes e os gestores que praticam o respeito pelas culturas juvenis tm grandes chances de serem tambm respeitados por elas, o que possibilita construir uma escola acolhedora aos jovens, e que cumpre com seus propsitos de educao cientfica e socializao para a participao poltica.

    Recebido em 27 de maio de 2015Aprovado em 25 de novembro 2015

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    Notas

    1 Meta 3: Universalizar, at 2016, o atendimento escolar para toda a populao de 15 a 17 anos (100% na escola) e elevar, at o final do perodo de vigncia deste PNE, a taxa lquida de matrculas no ensino mdio de 59,5% em 2013para 85%.

    2 Com a Resoluo n. 4.014/1985, a ONU declara o Ano Internacional da Juven-tude: Participao, desenvolvimento e paz.

    3 A expresso foi usada por Dan Kiley (psiclogo americano) em 1983, em seu livro The Peter Pan Syndrome: Men Who Have Never Grown Up.

    4 Filme lanado em 1982, com o ttulo em portugus Blade Runner - O Caador de Androides, dirigido por Ridley Scott. O filme explora a relao humanos e robs, especialmente em questes ticas e morais, e se detm tambm em apresentar situaes acerca da memria e da durao da vida, que para o caso dos replicantes (ou androides) curta e sempre com o vigor da juventude.

    5 A Emenda pode ser consultada na ntegra em: e a localizao dos par-grafos por ela modificados na Constituio Federal acerca deste tema podem ser vistos em: . Acesso em : 19 de maio de 2015.

    6 No caso brasileiro, so evidentes nos ltimos anos as conexes entre educao e desenvolvimento estratgico, e entre educao e reduo da desigualdade. O tema ultrapassa amplamente o universo acadmico, e tem forte incidn-cia em jornais, revistas e programas de televiso, bem como no discurso de anncio das polticas pblicas de educao. Para dar uma ideia da amplitude, recomendamos a leitura da Revista Exame, Edio 1052, ano 47, n. 20, de 30 de outubro de 2013, com matria de capa intitulada Hora da virada na educao?, e com grande nmero de dados estatsticos. Tambm a edio n. 428 da revista Amrica Economia Brasil, de outubro 2013, com matria de capa sobre o tema da desigualdade no Brasil, apontando os investimentos em educao como um das sadas para atingir patamares elevados de igualdade no Pas.

    7 O acesso ao documento oficial do programa pode ser feito em: . Acesso em: 19 de maio de 2015.

    8 So inmeras as decises recentes autorizando o uso do nome social em locais dos mais diversos. Como exemplo de deciso que traz impactos nos sistemas de ensino temos a Resoluo n 12, de 16 de janeiro de 2016, do CNCD/LGBT da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, disponvel em: . Acesso em: 19 de maio de 2015.

    9 Parte das reflexes deste tpico esto discutidos de modo mais denso em Gil (2012).

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    Fernando Seffner licenciado em Histria e doutor em Educao (UFRGS 2003). Docente e orientador junto ao PPGEDU/UFRGS e ao Mestrado Profis-sional em Ensino de Histria. Integrante do LISTHE Laboratrio de Ensino de Histria e Educao. Este artigo um dos produtos do perodo de ps--doutorado do autor, financiado pelo CNPq, processo 201042/2014-2.E-mail: [email protected]