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Esporte e Ciência ISSN 1806-9711 9 771806 971009 00001 ESPECIAL ESPECIAL Agosto 2004 R$ 6,90

Edição Especial - Agosto 2004

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Especial esporte e ciência

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Esporte e

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E S P E C I A LE S P E C I A L

Pesquisa FAPESP de agosto mostra como explorar a mata sem destruir suas espécies. Conheça a pesquisa que indica que o setor de serviços cresce sim, mas graças à indústria.E saiba como solos estáveis como os do Brasil central sofrem terremotos, que, em teoria, não deveriam ocorrer.

Nas bancas de todo o país

Um tesouro escondido na floresta

www.revistapesquisa.fapesp.br

pesquisa o Brasil

Nas bancasAgosto 2004 � R$ 6,90

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46 RADIOGRAFIA

Atlas do esporte no Brasilmostra a importânciaeconômica e social dasatividades físicas no país

50 ATLETAS

Imagens de 7 dos 245esportistas brasileiros que representam o Brasilna Olimpíada de Atenas

42 PERFORMANCE

Desenvolvida no Brasil, aestratégia Z é uma fórmulaque auxilia a encontrartalentos das pistas e quadras

24 CORPO

Para vencer, os esportistasde elite fazem um pactocom a dor e seguem em frente apesar do sofrimento

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30 MENTE

Moldar o cérebro,com exercícios psicológicos,faz parte da rotinados treinamentos

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14 LIMITES DO HOMEM

O fim da era dos recordesainda está longe, mas muitasmarcas do atletismo resistemhá mais de uma década

34 DOPING

Drogas desenhadas emlaboratório e a engenhariagenética reforçam aquímica ilegal no esporte

18 TECNOLOGIA

Artefatos e roupas especiais,como a pele de tubarão,impulsionam os atletas e o comércio esportivo

6 HISTÓRIA

Nas antigas Olimpíadas, osgregos não competiam apenaspor uma coroa de oliveira,havia muito mais em jogo

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FAPESPCARLOS VOGT

PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIORADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO

CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER,HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR,JOSÉ ARANA VARELA, RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN

AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANOCONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO)

JOSÉ FERNANDO PEREZDIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESPCONSELHO EDITORIAL

LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO),EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA

COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER,JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES

MELLO, PAULA MONTERO, WALTER COLLIEDITOR EXECUTIVO DA EDIÇÃO ESPECIAL ESPORTE E CIÊNCIA

MARCOS PIVETTADIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTEHÉLIO DE ALMEIDA

EDITORESCARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE),MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITORES ESPECIAISFABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTESDINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTETÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃOJOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORESANDRÉ SERRADAS, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE),

MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, RENÉE CASTELO BRANCO

E ROGERIO SCHLEGEL, THIAGO ROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS

TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

ESPECIAL ESPORTE E CIÊNCIA � PESQUISA FAPESP � AGOSTO / SETEMBRO DE 2004 � 3

esporte vive mais uma vez seuzênite nestas Olimpíadas de2004. Superação, recordes, ale-

grias e tristezas imensas misturadas adores quase insuportáveis estarão pre-sentes em Atenas, Grécia, em um espe-táculo visto com especial carinho pelosadoradores do esporte e apaixonadospela história. O fato de os gregos teremcriado os jogos na Antiguidade e lá terocorrido a primeira edição da compe-tição da era moderna, em 1896, evocatempos em que os homens pareciammais saudáveis e em constante harmo-nia entre si. Isso, claro, está longe de serverdade. Para os jogos ocorrerem erapreciso decretar uma trégua nas cons-tantes guerras entre as cidades-estado,mulheres não podiam competir ou as-sistir às provas na maioria das vezes e ostrapaceiros (sim, também naquela épocahavia quem tentasse ganhar roubando)eram humilhados publicamente e obri-gados a pagar multas. Pensando bem,o espírito olímpico nunca foi tão nobreou puro como se pensava. Mas atravésdos séculos permanece o desejo e o fas-cínio de ser o mais rápido, o mais alto,o mais forte (citius, altius, fortius, no ori-ginal em latim) e empurrar para maislonge o limite humano no esporte – nostempos de hoje algo que não se faz semciência e tecnologia.

A presente edição tem por objetivoexplicar como a ciência ajuda homens emulheres a turbinar seu desempenhopara alcançar marcas inéditas. Esta re-vista é um fruto de Pesquisa FAPESP,publicação mensal de divulgação cientí-fica da Fundação de Amparo à Pesquisado Estado de São Paulo (FAPESP), quetraz reportagens sobre projetos brasi-leiros de pesquisas científicas e tecno-lógicas e, claro, seus resultados. Publi-cada desde 1999 até fevereiro de 2002sua circulação estava restrita à comuni-dade científica, especialmente de SãoPaulo. Em março daquele ano PesquisaFAPESP passou a ser distribuída nasbancas das principais cidades brasileiras

Bastidores de um espetáculo

Ojustamente para que qualquer leitor in-teressado pudesse conhecer os avançosda produção da ciência no Brasil. Espor-te e Ciência foi criada, escrita (em parte)e editada pelo editor especial MarcosPivetta, que viu no projeto uma forma defalar de Olimpíadas, de ciência e de di-zer aos leitores de fora da comunidadede pesquisadores e professores que exis-te uma revista capaz de noticiar e expli-car os projetos científicos realizados noBrasil com rigor e clareza jornalística.

Acreditamos que Esporte e Ciênciacumpriu bem a missão proposta – e rea-lizada – por Pivetta. Dos tempos em queos jogos foram criados, em 776 a.C.,como parte de um ritual religioso, até omomento atual, em que mostramos opeso econômico e social das atividadesfísicas no Brasil, esta edição especial dáuma visão panorâmica sobre as Olim-píadas e, em especial, sobre até onde épossível avançar com o auxílio científi-co. Tecidos inteligentes, sapatilhas dese-nhadas sob medida no computador, va-ras de fibra de carbono permitem aoatleta um ganho excepcional no desem-penho individual. Em alguns casos atecnologia avançou tanto que foi bani-da, como a raquete de tênis criada em1977, que usava duplas de cordas cober-tas com um plástico. A novidade fun-cionou tão bem que tenistas medíocrescomeçaram a ter resultados excepcionaiscontra os mais talentosos jogadores daépoca, que usavam equipamento nor-mal. A Federação Internacional de Tênisproibiu a super-raquete.

Esses e outros exemplos igualmen-te saborosos acompanham os textos deMarcos Pivetta, Rogério Schlegel e Re-née Castelo Branco, junto com o ex-traordinário trabalho gráfico do dire-tor de arte Hélio de Almeida. Vale apena atravessar estas páginas. Às vezes,é mais divertido acompanhar o espetá-culo quando se sabe o que se passa nosbastidores do palco.

CARTA DO EDITOR

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA,DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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NELDSON MARCOLIN - EDITOR CHEFE

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Divinas e imperfeitasPrêmios em dinheiro, trapaças e mulheres faziam parte docenário das antigas Olimpíadas

HISTÓRIA

o dia 13 de agosto as Olimpíadas se-rão encenadas pela segunda vez naera moderna em seu palco original, aGrécia. Como em 1896, quando ser-viu de sede para a primeira reedição

contemporânea de uma das maiores manifestaçõesculturais de seus antepassados, a cidade-monumentode Atenas se converterá de novo em morada – tem-porária, é verdade – dos maiores esportistas conheci-dos. Gente de todos os continentes afluirá à capitalgrega para ver in loco as disputas (e milhões, talvez bi-lhões, acompanharão as contendas pela televisão).Por 17 dias, período em que durarem as competi-ções, Atenas será o centro do mundo. Como nos velhostempos. Ou melhor, como um dia o fora o sagradosolo de Olímpia, distante cerca de 320 quilômetros deAtenas e berço primordial das célebres disputas.

Ali, em plena península do Peloponeso, na verde-jante confluência dos rios Alfeu e Cládeos, ao pé domonte Cronos, os jogos nasceram como um festivalem honra a Zeus, o pai de todos os deuses, em 776a.C, talvez até antes. E de quatro em quatro anos, noverão do hemisfério Norte, eles se repetiam – nãosem antes promover uma trégua entre as cidades-es-tado da Grécia, dadas a um belicismo crônico, a fimde que espectadores e participantes das competições,vindos de todo o mundo helênico, pudessem chegarsãos e salvos ao santuário do deus supremo em Olím-pia. Foi assim, durante quase 12 séculos, até 393 d.C.,quando o imperador romano Teodósio I, um cristão,aboliu por decreto os festivais religiosos.

MARCOS PIVETTA

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Competidores de prova de longa

distância: até a 17ªedição dos jogos, os

eventos esportivos seresumiam às corridas

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A cada edição das redivivas Olimpíadas, as com-parações são inevitáveis: até que ponto os jogos mo-dernos se assemelham às milenares competições quelhes serviram de inspiração? O exame sem fim de an-tigos textos gregos, os trabalhos de escavação em sítiosarqueológicos do mundo helênico e o engenho analí-tico de pesquisadores de múltiplas áreas trazem à luznovos aspectos e artefatos ligados às míticas compe-tições patrocinadas pela civilização normalmente ro-tulada como o berço do Ocidente. Seria ingenuidadeesperar que os jogos do passado e os do presente, se-parados por pelo menos 1.500 anos de história – asúltimas Olimpíadas antigas foram no final do século4 d.C. e as primeiras modernas em 1896 –, fossemcomo pai e filho. Um a cara do outro. Os tempos sãoliteralmente outros.

as, mesmo dando esse descontocronológico, mitos e incompreen-sões ainda povoam o imagináriopopular a respeito dos antigos gre-gos e seus confrontos atléticos.

“Muitas pessoas não entendem que os antigos jogoseram parte de um festival religioso, ao passo que osnossos são um evento secular (laico)”, afirma o norte-americano David Gilman Romano, da Universidadeda Pensilvânia, especialista em arqueologia clássica.Em outras palavras, enquanto os jogos atuais são umacriação do homem para o homem de cunho exclusi-vamente atlético (e comercial, diriam seus críticos), ascompetições originais eram feitas pelo homem paraos deuses do Olimpo e incluíam, além das provas es-portivas, uma série de concursos artísticos, nas áreasde teatro, música, poesia e escultura. Sacrifícios de ani-mais, orações e oferendas de bebidas aos deuses, cân-ticos, melodias de flauta, nada disso era estranho ao con-texto em que ocorriam as primeiras Olimpíadas.

Apesar de o caráter sagrado das antigas Olimpía-das ter se diluído na mente de boa parte das pessoasdo século 21, um traço dos deuses costuma ser er-roneamente associado aos velhos jogos: a perfeição.“Para muita gente, as Olimpíadas modernas estãocheias de problemas e os antigos jogos eram ideais emtodos os sentidos dessa palavra. Não havia corrupção,trapaças, nacionalismo, comercialismo nem envolvi-mento político ou militar nas disputas”, comenta Ro-mano. É lógico que essa visão de Poliana sobre os an-tigos jogos nem sempre encontra amparo em escritosdeixados pelos próprios gregos a respeito de seus fes-tivais. Zelosos de que suas competições fossem levadasa cabo da forma mais justa possível, dentro de precei-tos éticos e em pé de igualdade, os gregos não hesita-vam em punir os espertinhos de então. Atletas queeram pegos trapaceando nas competições recebiamuma multa e eram humilhados em público. Com odinheiro da punição, uma estátua de bronze em hon-ra a Zeus era erigida num ponto estratégico, à vista de

todos: o caminho que dava para o stádion, o local on-de aconteciam as provas de atletismo, em cujas arqui-bancadas cabiam mais de 40 mil pessoas (as lutaseram na palestra, as provas eqüestres no hipódromoe os treinamentos no ginásio).

O termo stádion também designava uma corridade velocidade com quase 200 metros de extensão,mais precisamente 192,27 metros – ou um stádion(ou estádio). Nas 13 primeiras edições das antigasOlimpíadas, entre 776 a.C. e 728 a.C., a única provaesportiva disputada foi o stádion. Seu primeiro vence-dor foi Corebo, de Élis, cidade-estado vizinha a Olím-pia. Foi um êxito caseiro. Do território de Élis faziaparte o santuário de Olímpia. Corebo estava pratica-mente em casa. Inventivos, os promotores dos jogosintroduziram um segundo desafio a partir de sua 14ªedição, em 724 a.C.: o díaulos, uma corrida equiva-lente a dois estádios. A partir da 18ª Olimpíada, for-mas de disputa que não fossem as corridas foram sen-do introduzidas aos jogos, como a luta, o pentatlo e ascorridas de carro puxado por cavalos (veja texto sobreas provas das antigas Olimpíadas na página 12).“Com

Arremesso de disco: uma das provas do pentatlo antigo

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HISTÓRIA

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o aumento do número de modalida-des esportivas – no período clássicohaviam atingido o total de 18 –, aduração da Olimpíada foi crescen-do gradativamente de um para cin-co dias de competições”, escreve Ni-colaos Yalouris, ex-inspetor- geral deAntiguidades da Grécia e organiza-dor do livro Os Jogos Olímpicos na Gré-cia Antiga, recém-lançado no Brasil pelaeditora Odysseus.

ara espanto de alguns fãs do atletismo, amaratona, prova de aproximadamente 42quilômetros que funciona como um fechoapoteótico das disputas esportivas nasmodernas Olimpíadas, nunca fez parte do

calendário de eventos dos antigos jogos. É uma inven-ção dos tempos de Coubertin, dos primeiros jogos daera moderna, em 1896. Seus idealizadores sempre dis-seram que a longa corrida se inspira num evento daAntiguidade: em 490 a.C., os gregos bateram os persasna Batalha de Maratona e o soldado Fidípides correucerca de 40 quilômetros para levar a notícia da vitó-ria até Atenas e, exausto, morreu assim que cumpriua sua missão. Por essa versão, de longe a mais difun-dida, a maratona moderna é uma homenagem ao he-róico mensageiro. Mas, de acordo com o grande his-toriador Heródoto (484 a 425 a.C), a fonte escritacronologicamente mais próxima dos eventos em ques-tão, o arauto nunca realizou tal percurso para levara boa nova do triunfo ateniense. Em 490 a.C., assimque os persas invadiram a Grécia, antes, portanto, daBatalha de Maratona, Fidípides foi, em vão, de Atenasa Esparta pedir a ajuda dos rivais para combater onovo invasor. Corredor “profissional”, o mensageiropercorreu duas vezes os 230 quilômetros que separa-vam as duas mais poderosas cidades-estado da GréciaAntiga. “E ele não morreu em razão de sua corrida”,diz Romano.

Como a democracia ateniense, que só concediadireitos de cidadão aos homens adultos e livres domundo helênico (estrangeiros e escravos não tinhamvoz política), os participantes das antigas disputasem Olímpia tinham de ser do sexo masculino. Só quenem todos precisavam ser adultos. Com o tempo,algumas provas para garotos, com idades entre 12 e17 anos, foram criadas. Em 632 a.C., durante a 37ªOlimpíada, o menino Polinice, de Élis, tornou-se oprimeiro campeão infantil da corrida do stádion. In-dependentemente da idade, os participantes dos jo-gos competiam sem roupa, com o corpo besuntadoem óleo. “Ainda hoje não sabemos por que eles com-petiam nus e qual era a finalidade do óleo espalhadopelo corpo”, afirma Stephen G. Miller, da Universida-de da Califórnia, em Berkeley, que há 30 anos realizaescavações nos sítios arqueológicos de Neméia, onde

também havia uma versão local de fes-tival religioso, com provas atléticas eartísticas.

Miller, aliás, tem uma teoria, con-troversa, de que a famosa democraciagrega é derivada de noções de igual-dade presentes nas competições espor-

tivas do mundo helênico.“Encontramosem Neméia as bases de um mecanismo

de partida para as provas de corrida quereforça a eqüidade objetiva da disputa”, diz o

arqueólogo. “Isso me fez propor que a ascensão dademocracia é um filhote dos esportes. Mas nem todosos meus colegas concordam com isso.”

Alguns especialistas tendem a descrever as provasatléticas das Olimpíadas como um simples treinamen-to para as competições que realmente importavam: asguerras entre as cidades-estado. Mas outros estudiososcontestam essa visão apenas utilitarista e militaristados jogos. “Os esportistas eram uma parte especiali-zada da sociedade que pertencia ao campo do entre-tenimento como os atuais atletas de elite”, ponderaMiller, que lançou em abril nos Estados Unidos o li-vro Ancient Greek Athletics.

E as mulheres? Costuma-se dizer, categoricamen-te, que sua presença nas antigas Olimpíadas era proi-

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Efígie de Zeus e estátua depugilista: disputasem Olímpia eramparte de festivalreligioso

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bida. Não podiam partici-par das provas, nem mes-mo vê-las. Como respostarápida e simplista, a afirma-ção é correta. Quem trans-gredisse essa regra pagava aousadia com a vida: eralançada monte Tipéon abai-xo pelos organizadores dosjogos. Mas havia exceções ebrechas que permitiam avisão de rostos femininosnos jogos. Mulheres casa-das realmente não podiamassistir às competições, masas solteiras, provavelmentevirgens, podiam – a despei-to da visão dos corpos nusdos atletas, ou talvez porcausa disso. Ninguém sabeao certo. Se rica e proprie-tária de um carro de corri-da e cavalos, uma grega deboa estirpe podia até mes-mo se tornar uma campeãolímpica. Nas corridas decarro, a coroa de oliveira eas glórias ficavam para odono do veículo – e nãopara seu condutor. Graças em grande medida aos es-critos do viajante grego Pausânias (século 2 d.C.), osestudiosos sabem que, além das Olimpíadas, haviatambém um festival religioso em honra de Hera, a mu-lher de Zeus, em Olímpia. Nos jogos de Hera, meninassolteiras disputavam corridas, só que vestidas com suastúnicas, com no máximo um seio à mostra.

estivais religiosos, marcados por disputasesportivas e artísticas, eram relativamentecomuns em várias cidades-estado, as pó-leis, da Grécia Antiga. Havia importanteseventos com essas características em Del-

fos (Jogos Píticos), no Istmo (Jogos Ístmicos), pertodo importante centro comercial de Corinto, e em Ne-méia (Jogos Nemeanos) – todos iniciados no século 6a.C., cerca de 200 anos após o estabelecimento dascompetições em Olímpia. Em Delfos, as provas acon-teciam a intervalos de quatro anos e eram uma hon-raria a Apolo, deus das artes e da harmonia. Nas ou-tras duas póleis as disputas ocorriam a cada dois anos[no Istmo homenageavam Posídon (Netuno), o deusdos mares, e em Neméia, Zeus]. A partir de 565/6 a.C.,Atenas também passou a promover a sua versão dosjogos, as Panatenéias, organizadas a cada quatro anoscomo um tributo a Atena, filha de Zeus, protetora dacidade e deusa da sabedoria. Enfim, não faltavam fes-tivais para enlevar os gregos.

Mas os de Olímpia eram os mais antigos, os maio-res e os mais populares. Entre a horda de gregos quese dirigiam a essa cidade do Peloponeso para assistir(ou participar) às provas olímpicas havia espectado-res de todo o mundo helênico – um vasto pedaço deterra que bordejava o Mediterrâneo e se iniciava emáreas hoje ocupadas pela Turquia, passava pelo norteda África, pela Sicília, pelo sul da França e se estendiaaté a Espanha. “No período clássico (entre os sécu-los 6 e 4 a.C.), a Grécia era muito fragmentada, com-posta por aproximadamente 1.500 cidades-estado”,diz Maria Beatriz Borba Florenzano, do Museu de Ar-queologia e Etnologia da Universidade de São Paulo(MAE-USP). “As Olimpíadas eram um momento deencontro dos gregos, de formação de seu caráter.Competir fazia parte da educação de seus jovens.” Se,na mitologia, não faltam alusões a combates entre di-vindades, heróis, os gregos de carne e osso tambémdeveriam pelejar entre si. “De acordo com a tradiçãoantiga, os deuses e os heróis foram os primeiros a com-petir em Olímpia e, desde então, permaneceram co-mo modelo para os mortais”, escreve Nicolaos Ya-louris. “Foi em Olímpia que Zeus venceu Cronos naluta (pále), e que Apolo derrotou Hermes na corridae Ares no pugilismo.”

Ser sempre o melhor e sobrepujar os outros. Ditapor Peleu a seu filho Aquiles no momento em queeste partia para a Guerra de Tróia (séculos 12 ou 13

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Treino de atletas ao som de flauta: concursos artísticostambém ocorriam durante os jogos de Olímpia

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a.C.), onde morreria jovem e glorificado,a frase sintetiza o espírito que embalavaos mais variados tipos de concurso quecompunham os festivais religiosos nomundo helênico. Os vencedores de dis-putas olímpicas eram vistos como heróis,semideuses, aumentando o prestígio desuas cidades. Afinal haviam ganho umpassaporte para o mundo divino em ra-zão de seu feito. “Morre agora, Diágoras.Nada mais te resta a não ser ascenderes aoOlimpo”, grita em 448 a.C., durante a 83ªOlimpíada, um espartano para o nobre de Rodes.Ex-boxeador e antigo campeão olímpico, Diágoras éovacionado pela platéia, em meio a uma chuva de pé-talas de flores, e carregado pelos dois filhos em seusombros. Motivo do júbilo: o atleta aposentado acabade ver seus Damageto e Acusilaos receberem a coroade oliveira por vitórias em provas de luta nos jogos.Duas gerações de campeões olímpicos numa mesmafamília. Alegria maior, impossível. E Diágoras se esvainos braços filiais, com sua fronte adornada pelas gri-naldas de Damageto e Acusilaos.

Quer dizer que, como o nobre de Rodes, os atletassó competiam na antiga Olímpia, e em jogos promo-vidos por outras cidades, pelo privilégio de se tornarum deus em vida (e também na morte, a exemplo deDiágoras) e por uma coroa de folhas de oliveira? Eles

eram totalmente amadorese seus prêmios absoluta-mente simbólicos? Sim enão. Dos organizadores dasOlimpíadas, os esportistasvitoriosos recebiam basica-mente a grinalda, símbolode sua conquista, honrariacobiçada por todos, inclu-sive nobres e governantes.É curioso notar que a coroado vencedor era feita comfolhas de diferentes plantasem cada um dos grandesfestivais religiosos do mun-do helênico: oliveira emOlímpia, louro em Delfos,pinheiro no Istmo e salsaem Neméia. Se, do ponto devista material, os campeõesolímpicos deixavam o san-tuário de Zeus com fama,mas ainda sem fortuna al-guma decorrente de seus fei-tos atléticos, uma série deprêmios, alguns de alto va-lor pecuniário, remediariamem breve essa situação as-sim que os atletas vitorio-

sos retornassem a sua pólis natal: meda-lhas e estátuas com sua efígie podiam ser

cunhadas, poetas podiam compor odesem sua homenagem, até mesmo gratifi-cações em dinheiro não eram raras.

Segundo o biógrafo grego Plutarco(46 a 125 d.C.), um ateniense dos anos550-600 a.C. que se sagrasse campeãonos esportes receberia um punhado

moedas de prata, as dracmas, assim quepusesse os pés de volta em sua terra natal.

“O vencedor nos jogos do Istmo devia ter comorecompensa 100 dracmas: o vitorioso nas Olimpía-

das, 500”, escreveu Plutarco, em sua obra sobre Sólon,estadista e reformador de Atenas. Para a época, 500dracmas era uma fortuna. Assim como hoje é umafortuna oferecer um prêmio de US$ 1 milhão paraum atleta igualar o recorde de medalhas de ouro con-quistadas numa única edição das Olimpíadas, feitohoje em poder do ex-nadador norte-americano MarkSpitz, que nos jogos de Munique, em 1972, terminousete provas em primeiro lugar. Um patrocinador pro-mete depositar essa quantia na conta bancária do na-dador norte-americano Michael Phelps, de 19 anos,caso ele suba pelo menos sete vezes no lugar mais altodo pódio em Atenas 2004. Como se vê, apesar de to-das as diferenças, os antigos e os modernos jogos ain-da têm muito em comum. •

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Corrida feminina em Olímpia: mulheres disputavam outros jogos, em homenagem a Hera

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HISTÓRIA

Stádion

A primeira e única prova nas trezeedições iniciais das Olimpíadas, en-tre 776 a.C, e 728 a.C. É uma corri-da de velocidade na qual seus com-petidores têm de percorrer 192,27metros, 1 stádion (estádio).

DíaulosCorrida equivalente a dois está-dios, quase 400 metros. É a segun-da modalidade introduzida nos jo-gos de Olímpia, a partir de 724 a.C.,na 14ª Olimpíada.

Dólikhos

Evento para fundistas do atletis-mo. A corrida do dólikhos varia de7 a 24 estádios, entre 1.345 e 4.614metros. Passa a ser disputada a par-tir da 15ª Olimpíada (720 a.C).

Luta

Combate físico travado entre doisoponentes dentro de uma área de-limitada por uma cova de areia emque ambos não podem trocar so-cos, aplicar golpes nos órgãos geni-tais ou dar mordidas. Quase tudo

o mais vale: safanões, chaves de pes-coço e até quebrar os dedos dooponente. Modalidade da pesadaadotada a partir da 18ª Olimpíada,em 708 a.C.

Pentatlo

Inclui cinco modalidades: salto emdistância, prova do stádion, lança-mento de dardo, arremesso de dis-co e luta. Como a luta, vira espor-te olímpico em 708 a.C.

Pugilismo

Forma de combate mais próximado boxe atual. Os participantes têmas mãos revestidas de faixas de cou-ro em torno do punho e desferemsocos. Adotado a partir de 688 a.C.nos jogos de número 23.

Téthrippon

Na 25ª Olimpíada, em 680 a.C., ho-mens e animais formam um timenum hipódromo. De inspiraçãomilitar, o téthrippon é uma corridade carros puxados por quatro ca-valos. Nas guerras, dois homensocupam o veículo de madeira, oauriga e o guerreiro. Mas, quando

usado para fins esportivos, o carroabriga apenas o seu condutor. Aprova goza de grande prestígio. De-talhe: a glória e a coroa de vence-dor ficam com o (rico) proprietá-rio do carro, que pode até ser umamulher ou criança.

Kéles

Cavaleiros montando cavalos adul-tos disputam a honraria de ser osprimeiros a dar seis voltas na pistado hipódromo. Cada volta equiva-le a pouco mais de 1.500 metros. Amodalidade surge em 648 a.C., no23º jogo.

Pancrácio

Uma versão helênica das lutas mo-dernas do vale-tudo. Ou, na defini-ção de um dos antigos exegetas dePlatão,“uma competição que com-binava a luta imperfeita com o pu-gilismo imperfeito”. Com as mãosnuas, sem as faixas de couro que re-vestem o punho dos pugilistas, seusatletas podem aplicar qualquer gol-pe nos adversários, desde que nãousem os dentes ou as unhas. Comoa modalidade anterior, torna-se es-porte olímpico em 648 a.C.

Os desafiosde Olímpia

Durante o período em que foram disputados,de 776 a.C.a 393 d.C.,os jogos originaischegaram a durar cincodias e a incluir duasdezenas de modalidades

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Stádion e luta infantil

Essas duas modalidades, que en-traram na 37ª edição das Olimpía-das, em 632 a.C., foram as primei-ras a ser disputadas por meninos,em geral de 12 a 17 anos.

Pentatlo infantil

Adotado apenas durante os jogos de628 a.C., durante a 38ª Olimpíada.A prova, em sua versão para garo-tos, nunca mais é disputada.

Pugilismo infantil

Novidade para garotos surgida no41º jogo, em 616 a.C.

Drómos hoplítes

Corrida curta, de no máximo 4estádios, introduzida em 520 a.C.(65ª Olimpíada), na qual seus com-petidores têm de vencer a distânciada prova carregando armas. Inicial-mente, seus participantes têm devestir uma armadura e segurar umescudo de madeira revestido debronze. Com o tempo, sobra só oescudo e os competidores passama correr nus.

Apéne

Mais uma prova eqüestre: umacorrida de carros puxados porduas mulas. Adotada em 500 a.C.,no 70º jogo, e abandonada na 84ªOlimpíada, em 444 a.C.

Kálpe

Disputada pela primeira vez em496 a.C., na 71ª Olimpíada, a pro-va é uma corrida na qual o cavalei-ro montava uma égua. Não se sabede quantas voltas pelo hipódromoconsistia o concurso, descontinua-do, como a apéne, em 444 a.C.

Synorís

Corrida em que dois cavalos pu-xam um carro guiado por um con-dutor. Outra novidade eqüestreincorporada aos jogos em 408 a.C.na 93ª Olimpíada.

Concursos de trompetistase arautosUma prova bastante diferente dasdemais, em que, como os atletas,músicos e mensageiros têm a suachance de ascender ao Olimpo.

Competição introduzida em 396a.C., no 96º jogo.

Téthrippon de potros

Versão dessa modalidade que en-tra para o programa em 384 a.C.,no 99º jogo.

Synorís de potros

Semelhante à synorís, só que, nes-se caso, o carro é puxado por doisjovens. O concurso começa a serdisputado na 128ª Olimpíada, em268 a.C.

Pólou kéletos

A corrida de potros. Prova de hi-pismo em que a montaria são ca-valos jovens. Novidade adotada apartir do 131º jogo, em 256 a.C.

Pancrácio infantil

Combate vale-tudo para garotosintroduzido em 200 a.C., na 145ªOlimpíada. É a última modalidadea entrar para o rol de provas olím-picas na Antiguidade. Como se vê,a maratona nunca fez parte dosjogos originais.

Corrida, disputas eqüestres e pancrácio: as antigas Olimpíadas eram compostas por competições de atletismo, provas com animais e lutas

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itius, altius, fortius. Há exatos 110 anos, omote olímpico se resume a essas três pa-lavras latinas, que significam mais rápido,mais alto, mais forte. Originalmente, olema deveria ser entendido como um es-

tímulo para que cada atleta desse o melhor de si em suaprova, sem se preocupar com a colocação final e o de-sempenho dos oponentes. Lutar para superar os pró-prios limites já era uma vitória. Afinal, o importante eracompetir, não vencer. Mas os campeões parecem fazeruma leitura diferente do velho slogan: querem ser maisrápidos, mais altos e mais fortes do que todos – e se pos-sível escrever seu nome na história com um recordemundial ou olímpico, que lhes trará fama e, às vezes,fortuna. Até que ponto o ser humano conseguirá esten-der as fronteiras de seu desempenho atlético? Ninguémsabe responder com certeza.

As provas de atletismo são a principal estrela dasOlimpíadas e costumam ser usadas como um termô-metro dos limites do ser humano. Uma olhada na listade recordes mundiais indica que não está fácil superaralgumas marcas relativamente antigas. Entre os ho-mens, 9 dos 24 recordes referentes a provas olímpicas,quase 38% do total, têm mais de dez anos. O mais anti-go é o do arremesso de disco, estabelecido em 6 de ju-nho de 1986 pelo alemão oriental Jürgen Schult, que, naocasião, lançou o objeto a uma distância de 74,08 me-tros. Como a história ensina, a Alemanha Oriental era

LIMITES DO HOMEM

A era da superaçãoVinte e duas marcas do atletismo têmmais de dez anos,mas o fim da época dos recordes não está próximo

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itius, altius, fortius. Há exatos 110 anos, omote olímpico se resume a essas três pa-lavras latinas, que significam mais rápido,mais alto, mais forte. Originalmente, olema deveria ser entendido como um es-

tímulo para que cada atleta desse o melhor de si em suaprova, sem se preocupar com a colocação final e o de-sempenho dos oponentes. Lutar para superar os pró-prios limites já era uma vitória. Afinal, o importante eracompetir, não vencer. Mas os campeões parecem fazeruma leitura diferente do velho slogan: querem ser maisrápidos, mais altos e mais fortes do que todos – e se pos-sível escrever seu nome na história com um recordemundial ou olímpico, que lhes trará fama e, às vezes,fortuna. Até que ponto o ser humano conseguirá esten-der as fronteiras de seu desempenho atlético? Ninguémsabe responder com certeza.

As provas de atletismo são a principal estrela dasOlimpíadas e costumam ser usadas como um termô-metro dos limites do ser humano. Uma olhada na listade recordes mundiais indica que não está fácil superaralgumas marcas relativamente antigas. Entre os ho-mens, 9 dos 24 recordes referentes a provas olímpicas,quase 38% do total, têm mais de dez anos. O mais anti-go é o do arremesso de disco, estabelecido em 6 de ju-nho de 1986 pelo alemão oriental Jürgen Schult, que, naocasião, lançou o objeto a uma distância de 74,08 me-tros. Como a história ensina, a Alemanha Oriental era

LIMITES DO HOMEM

A era da superaçãoVinte e duas marcas do atletismo têmmais de dez anos,mas o fim da época dos recordes não está próximo

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uma potência esportiva – e do doping estatal. Mas, ao quese sabe, nenhuma substância ilegal foi detectada emSchult em exames de controle. Embora haja um bomnúmero de marcas longevas, as duas provas mais no-bres do atletismo ostentam recordes recentes. O dos 100metros rasos, com o tempo de 9s78, é de setembro de2002 e pertence ao norte-americano Tim Montgomery(veja quadro com a evolução dos tempos nessa prova naspáginas 16 e 17). O da maratona é de setembro de 2003e está em poder do queniano Paul Tergat, que percorreuos cerca de 42 quilômetros da prova em 2h04min55s.

Entre as mulheres, parece haver uma dificuldade ain-da de quebrar uma marca. Treze dos 22 recordes mun-diais em modalidades olímpicas, quase 60% das mar-cas, foram estabelecidos há mais de dez anos, sendo que11 remontam aos anos 1980. O mais longevo recorde éo da tcheca Jarmila Kratochvílová, que ganhou a provados 800 metros rasos em 26 de julho de 1983 com o tem-po de 1min53s28. Cravadas há 16 anos, as melhores mar-cas nos 100 e 200 metros – 10s49 e 21s34, respectiva-mente – ainda são da norte-americana Florence GriffithJoyner. A mulher mais veloz da história, a musculosaFlo-Jo, foi um prodígio e um mistério das pistas: morreuprematuramente aos 38 anos, em 1998. Há quem espe-cule que seus (por ora) inigualáveis resultados e seu óbi-to tenham ligação com o uso de esteróides anabólicos,uma forma de doping, embora essa suspeita nunca te-nha sido comprovada.

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Daiane dos Santos na provasolo: a única a executardois tipos de movimento

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O que concluir diante desses números? O ser hu-mano já atingiu seu limite atlético em algumas moda-lidades? Para Victor Matsudo, do Centro de Estudosdo Laboratório de Aptidão Física de São Caetano doSul (Celafiscs), isso nunca vai acontecer – e a razão ésimples. “Mudam-se as regras do esporte ou a formade medir os recordes”, afirma Matsudo, especialistaem medicina esportiva. “Assim novas marcas vão sur-gir.” Na verdade, isso já é feito há muito tempo. Talvezo objetivo central de algumas alterações do passado,em geral de ordem tecnológica, não tenha sido o defacilitar a quebra de recordes, mas, de qualquer forma,esse também foi um dos efeitos dessas mudanças.

A partir da Olimpíada na Cidade do México, em1968, por exemplo, o tempo oficial das provas de atle-tismo, ciclismo, canoagem, remo, natação e esporteseqüestres deixou de ser medido de forma manual epassou a ser registrado de maneira eletrônica. Para osrecordes, a medida foi salutar. Antes de 1968, um atle-ta tinha de ser pelo menos um décimo de segundo(0,1) mais rápido do que o detentor do melhor tem-po para quebrar um recorde (o registro manual sómedia uma casa depois da vírgula). Desde então, coma cronometragem eletrônica, basta ser um centésimode segundo (0,01) mais veloz para lograr tal feito.Nada impede que no futuro, diante da escassez de no-

vos recordes, as autoridades do atletismo ou da nata-ção passem a medir o tempo em milésimos de segun-do (0,001), como fazem na Fórmula 1.

a natação, no entanto, a hipotética erados tempos marcados em milésimo desegundo parece estar mais distante doque no atletismo. Nas provas femininasdisputadas em Olimpíadas, apenas cinco

dos atuais 17 recordes mundiais – menos de 30% dosmelhores tempos – foram registrados há mais de umadécada. O recorde mais longevo é o do revezamento 4por 200 metros nado livre, em posse da equipe da Ale-manha Oriental (um país que não existe mais) desde18 agosto de 1987. As alemães cravaram 7min55s47.No caso dos homens, a maioria absoluta dos melhorestempos já registrados foi estabelecida do ano 2000para cá. De 16 provas individuais ou coletivas, apenasum recorde é da década passada: o dos 100 metrosnado costas, que pertence desde 24 de agosto de 1999ao norte–americano Lenny Krayzelburg, com o tem-po de 53s60. Quer dizer, no meio líquido, fora de seuhábitat, o homem ainda está distante de ter atingido oseu ápice em termos de desempenho.

Em certos esportes, com provas coletivas ou indi-viduais em que não há recordes numéricos a serem

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LIMITES DO HOMEM

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Menos dois segundos em cem anosEm 1896, quando ocorreram

as primeiras Olimpíadas da era moderna, o então homem mais velozdo mundo, o norte-americano TomBurke, venceu a corrida dos 100 metros rasos com o tempo de 11s8.Em 14 de setembro de 2002,no exato instante em que o tambémnorte-americano Tim Montgomerycravou o atual recorde de 9s78 para a prova, um velocista que repetisse a antiga marca de Burke estaria cercade 17 metros atrás do vencedor da disputa. Em pouco mais de um século, o homem aprendeu a correr os 100 metros em dois segundos a menos. Entre Burke e Montgomery houve outros recordistas memoráveis. Quase todosvieram dos Estados Unidos, comoJesse Owens, cuja marca de 1936 demorou vinte anos para ser batida, e Jim Hines, o primeiro homem a correr os 100 metros em menos de 10s.

Jesse Owens10s2

1936

Com a marca estabelecidaem Chicago, o atleta se tornou o homem a permanecer por mais tempo como recordista da prova. Foram mais de 20 anos.Seu tempo foi batido apenas em agosto de 1956,por Willie Williams.

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batidos, fica mais difícil traçar uma linha e estabelecerlimites a serem superados. Ainda assim, volta e meiaaparecem atletas com um caráter revolucionário quelevam uma modalidade para um novo patamar. Esseé o caso da gaúcha Daiane dos Santos, 21 anos, o nomehoje a ser derrotado na ginástica de solo. “Competicontra a Daiane algumas vezes e fiquei bastante im-pressionada. Ela é muito, muito forte. Impressionan-te... Todas aqui estão trabalhando forte com uma sómeta: batê-la em Atenas”, disse Courtney Kupets, 17,a principal ginasta americana da atualidade, ao jornalFolha de S.Paulo em junho. Força nas pernas é o maioratributo da brasileira, rainha de ébano numa modali-dade mais acostumada a princesinhas de marfim. Gra-ças à potência de seus membros inferiores, Daiane, empouco mais de um segundo, consegue projetar seu cor-po a cerca de 2,70 metros do solo. Como mede 1,45metro, salta, portanto, 1,25 metro – quase a sua altu-ra. “Se não saltasse tanto, Daiane não teria tempo derealizar os saltos que a diferenciam das demais atle-tas”, afirma Marcos Duarte, especialista em análise domovimento da Escola de Educação Física e Esportesda Universidade de São Paulo (EEFE-USP), que fil-mou e analisou a performance da atleta.

Daiane é a única mulher no mundo capaz de exe-cutar dois movimentos inteiramente novos, bolados

pelo seu técnico, o ucraniano Oleg Ostapenko: o du-plo twist carpado e o duplo twist estendido. Em am-bos, suas pernas não ficam encolhidas, nem grudadasem seu corpo, durante os dois saltos mortais (outrasatletas fazem movimentos semelhantes, só que comas pernas encolhidas, coladas ao corpo). Por voarsemi-esticada (duplo twist carpado) ou esticada (du-plo twist estendido), aumentando sua área de atritocom o ar, Daiane perde velocidade no meio de seusmovimentos alados. Não fossem suas pernas um dí-namo, que a levam a se projetar verticalmente tantoquanto um jogador de vôlei, a gaúcha não consegui-ria compensar sua calculada redução de velocidadeem pleno ar, realizar seus movimentos e cair em pé.Ginastas sem a força de perna da brasileira saltammenos e não têm tempo de fazer o duplo twist car-pado ou estendido. Se a artroscopia que fez recente-mente no joelho direito não prejudicar seu desem-penho, Daiane será o limite humano na ginástica desolo em Atenas. •

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Jim Hines9s95

1968

Foi o primeiro homem a correr a prova em menos de 10s. Em junho de 1968 cravou 9s9 numa competição nos Estados Unidos. Em outubro desse mesmo ano,durante a Olimpíada na Cidade do México,reduziu o tempo para 9s95.

Tim Montgomery9s78

2002

Estabeleceu o atual recorde em 14 de setembro de 2002, em Paris. Apesar de o feito ser recente, Montgomery não conseguiu se qualificar como membro da equipe norte-americana que vai a Atenas. E ainda é suspeito de usar doping.

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Nadador australiano Ian Thorpe:teste em túnel de vento paraa roupa de competiçãoque reduz atrito na água

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Jogo delaboratórioNovos materiais alteram roupase artefatos dos atletas e, às vezes,até melhoram seu desempenho

TECNOLOGIA

lhando de longe, pouca coisa aproxi-ma o antigo atleta grego do atual com-petidor dos Jogos Olímpicos. Os gregosdisputavam nus; os esportistas contem-porâneos, com uniformes feitos de te-

cido inteligente, que compensa a temperatura do cor-po. No lugar dos pés descalços, hoje estão sapatilhasdesenhadas com auxílio do computador. Equipamen-tos toscos como o velho dardo de madeira deram lu-gar a materiais como a fibra de carbono, muito maisleve e resistente. Mas, olhando de perto, bem de perto,o atleta grego e o esportista do século 21 têm um pon-to fundamental em comum: ambos querem vencer. Éjustamente essa vontade tão humana de bater o rivalque explica o uso intensivo de tecnologia no esporte.

Além disso, há pouca coisa que possa ser conside-rada mais humana do que a tecnologia, prova defini-tiva da acumulação cultural característica da huma-nidade. Na tentativa de ampliar cada vez mais seuslimites, o homem lançou mão dos recursos técnicosde que dispunha para melhorar sua performance. “Odesenvolvimento tecnológico sempre foi um aliadoimportante na quebra de recordes”, afirma TuríbioLeite de Barros Neto, especialista em fisiologia do

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ROGERIO SCHLEGEL

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exercício da Universidade Federal de São Paulo (Uni-fesp). “Não se pode separar a inovação tecnológicadas conquistas dos esportes de elite”, acredita o espe-cialista em bioética Andy Miah, da Universidade dePaisley, Escócia. Na verdade, os resultados da tecnolo-gia foram tão bons que o mundo esportivo se viuobrigado a limitar seuuso, temendo desu-manizar as competi-ções. Vira e mexe asautoridades esporti-vas alteram regras pa-ra manter o equilíbrioda disputa.

No hemisférioNorte, é bem conheci-do o exemplo do clapskate (algo como pa-tins-palmas, numa tra-dução livre), um clás-sico na discussão darelação entre tecno-logia e esporte. A pa-tinação de velocidadeno gelo praticamentenão sofreu alteraçõesdurante séculos. Hábons indícios de queLeonardo da Vinci,no século 16, chegoua se debruçar sobreo assunto, mas nadaconseguiu imaginarde muito diferentedos patins feitos comuma lâmina fixa, his-toricamente usados no dia-a-dia e nas competições.No início da década de 1980, entretanto, pesquisadoresholandeses da Universidade Vrije de Amsterdã tive-rem a idéia de liberar a parte da lâmina que se ligavaao calcanhar, colocando uma dobradiça na partefrontal dos patins. Assim, a lâmina ficaria mais tempoem contato com o gelo, aumentando o impulso que ocorredor poderia dar em cada passada. A revoluçãofoi tamanha que os competidores de ponta se recusa-ram a experimentar a novidade holandesa por quaseuma década. A desconfiança também se devia à pou-ca confiabilidade dos novos patins, que costumavamse partir com facilidade. Só na temporada 1994/1995uma dezena de atletas juniores holandeses concorreucom o clap skate. Sucesso: seu desempenho melhorouem média 6,2% em comparação com a temporadaanterior e três usuários da novidade passaram ao pri-meiro posto do ranking de sua faixa etária, vindos da8ª, 11ª e 36ª colocações. A consagração da invençãoentre os patinadores de elite veio na Olimpíada deInverno de Nagano (1998). Nos 500 metros, houve

quatro quebras sucessivas de recordes. Nos 5.000 me-tros, o recorde caiu três vezes em menos de meia hora.Astros da época, como o alemão Gunda Neiman, pe-diram que o clap skate fosse declarado ilegal, mas aFederação Internacional de Patinação o liberou paratodas as categorias, aplaudindo a inovação. O nome clap

skate, por sinal, vemdo barulho semelhan-te a uma palma que alâmina faz quandovolta à posição emque se aproxima docalcanhar. A invençãomudou a técnica e osom do esporte.

No tênis, polêmi-ca semelhante, mascom final diverso, en-volveu uma inovaçãocom as raquetes. Em1977 começou a serusado no circuito pro-fissional um modeloque, no centro da áreade rebatida, usava du-plas de cordas cober-tas com um plástico –cuja aparência gerouo apelido de “encor-doamento espaguete”.A novidade fazia comque, em cada golpe, ocontato com a bolafosse prolongado, au-mentando o efeito derotação (spin) com

que ela era devolvida ao adversário. Funcionou tãobem que, no Torneio Aberto dos Estados Unidos da-quele ano, Michael Fishbach (200º do ranking) bateucom ela Stan Smith (16º); em uma disputa em Paris,o quase desconhecido francês Georges Goven venceuo romeno Ilie Nastase, líder do campeonato; Nastaserapidamente se adaptou ao novo modelo de raquetee, com ele, quebrou uma invencibilidade de 50 jogosdo argentino Guillermo Vilas. Logo depois disso, aFederação Internacional de Tênis baniu o modelo“espaguete”.

Homem x tecnologia - Há no esporte, portanto, umatensão permanente entre desempenho estritamentehumano e inovação tecnológica. Para se posicionarno assunto, o engenheiro Steve Haake, do Grupo dePesquisa em Engenharia Esportiva da Universidadede Sheffield, na Inglaterra, analisou a evolução da tec-nologia em algumas modalidades esportivas olímpi-cas, como o salto com vara e o arremesso de dardo.Sua conclusão: há relativo equilíbrio das autoridades

Tênis com processador: promessa deadaptar o solado à atividade praticada

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desportivas ao lidar com a disputa do homem com atecnologia.

No caso do salto com vara, a técnica mudou bas-tante nos últimos cem anos. Antes os atletas tentavamsuperar a barra com os pés virados para baixo; hoje fa-zem uma manobra complexa, em que arremessam opróprio corpo usando o impulso da vara. Isso é resul-tado direto da tecnologia empregada no equipamen-to. As regras da modalidade, fixadas pela FederaçãoAtlética Amadora Internacional, são bastante liberais.Não há restrição sobre o material da vara, por exem-plo. Inicialmente, ela era feita de madeira maciça, masjá no começo do século 20 passou a ser de bambu fle-xível – bem mais leve, o que permitia aos atletas cor-rer melhor para ganhar impulso.

As marcas subiram seguidamente durante a pri-meira metade do século, mas começaram a se estabi-lizar nos anos 1950. Entra em cena, então, a vara de fi-bra de vidro. Nesse tipo de salto, usa-se a energiacinética do atleta correndo para armazenar energiana vara, por meio da deformação elástica. Essa ener-

gia depois é devolvida ao atleta eo impulsiona para cima. A vanta-gem do novo material era clara: avara de bambu podia armazenar100 joules de energia, enquanto ade fibra de vidro 2.500 joules.Na década de 1990, a introduçãode fibra de carbono representounovo degrau de evolução, fazen-do a vara ainda mais forte e maisleve. Houve ainda um ganho adi-cional: em 1996, o pesquisadorStuart Burgess, então no Depar-tamento de Engenharia da Uni-versidade de Cambridge, mos-trou que o estresse sofrido pelavara se concentrava em seu meioe que suas pontas poderiam sermais finas, sem que isso compro-metesse seu desempenho. A prá-tica consagrou seu achado, quegerou uma vara ainda mais leve.Na avaliação de Haake, tudo issofez do salto com vara uma moda-lidade em que foi claro o ganhoque a tecnologia trouxe para osatletas, hoje capazes de superarfacilmente a marca dos 6 metrosde altura.

Centro de gravidade - Experiên-cia diferente viveu o arremesso dedardo. Com a evolução dos mate-riais e do desenho, as autoridadesse viram obrigadas a alterar as re-gras. Nessa modalidade há várias

restrições: o comprimento do dardo deve estar entre2,6 e 2,7 metros e o peso mínimo não pode ser infe-rior a 800 gramas. Há regras também para seu dese-nho geométrico e onde deve estar seu centro de gra-vidade. A razão para isso é justamente a evolução dasmarcas. Em 1908, o vencedor lançou o dardo a pou-co mais de 50 metros; em 1976, essa distância foi au-mentada para quase 95 metros; e, em 1984, o atletaUwe Hohn, da então Alemanha Oriental, conseguiuum lançamento de 104,8 metros em um evento não-olímpico. A essa altura havia risco de lançar dardosfora do estádio ou ferir alguém nas arquibancadas. Asolução foi tão simples quanto científica: o ponto querepresenta o centro de gravidade foi alterado em ape-nas 4 centímetros, mudando a trajetória dos dardos eencurtando seus vôos em cerca de 15 metros.

“Há um equilíbrio entre tecnologia e tradição”,conclui Haake, com base nos casos que analisou. Eleacredita que a introdução de novas tecnologias nosequipamentos não represente vantagem indevidapara ninguém, desde que ela seja compartilhada pe-

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Salto com vara: fino e leve, bastão defibra de carbono impulsiona atletas

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los atletas. “Os problemas aparecem quando a tecno-logia está disponível exclusivamente para um grupo”,afirma. Ocorre que a exclusividade, que dá vantagema um atleta em relação aos demais, é justamente o mo-tor da introdução de novos equipamentos no mundoesportivo. A idéia é justamente dar um “algo mais” aum competidor, em um ambiente em que todos têmdesempenho muito próximo. “Uma vantagem tecno-lógica de um segundo pode ser decisiva”, afirma Ed-ward Tenner, pesquisador da Universidade da Pensil-vânia e autor de When things bite back (Quando ascoisas contra-atacam, numa tradução livre), um best-seller sobre o papel das inovações tecnológicas navida moderna. Essa desigualdade hoje é potenciali-zada por uma das lógicas que guiam a introdução deinovações no mundo do esporte – o interesse comer-cial. Para se tornarem bons garotos-propaganda deartigos novidadeiros, atletas de ponta são escolhidospelas empresas de material esportivo para desenvol-ver e utilizar os equipamentos de última geração.

om exemplo desse espírito são as roupasespecialmente criadas para a natação, cujaidéia básica é diminuir a resistência (atri-to) da água ao avanço do nadador. Lídermundial nesse tipo de vestimenta, a Spe-

edo já disponibilizava uma versão rudimentar dostrajes de competição na Olimpíada de Barcelona(1992), chamada S-2000. Mas foi nos jogos de Sydney(2000) que a terceira geração da roupa, batizada deFastSkin (pele rápida), deu o que falar. A novidade foiusada por um grupo seleto de nadadores e, segundo aempresa, estava no corpo de 80% dos ganhadores demedalha. Agora que o antigo modelo está mais popu-larizado, a Speedo desenvolveu uma nova geração daroupa, a FastSkin FSII. A fabricante sustenta que aversão do traje para Atenas é 4% mais eficiente em re-duzir o atrito que a anterior. O princípio da nova ge-ração é o mesmo: fazer com que o fluxo de água emtorno da roupa trabalhe a favor do movimento. Asroupas contam com a sutileza de usar desenhos e te-cidos diferentes conforme a região do corpo, tentan-do imitar a variedade de texturas presentes na pele deum grande nadador, o tubarão. A Speedo patrocina aequipe norte-americana e espera que 90% de seus 48nadadores usem a sua pele rápida.

Há pesos-pesados das piscinas, como o australi-ano Ian Thorpe, que ganhou três ouros em Sydney,que preferem a pele de tubarão confeccionada por em-presas concorrentes, como o JetConcept, da Adidas. ATyr, principal concorrente da Speedo nos EstadosUnidos, licenciou tecnologia desenvolvida pela Uni-versidade de Buffalo e colocou no mercado seu AcquaShift, com princípio semelhante ao da FastSkin. Tam-bém Arena, Diana e Nike têm seus investimentos naárea, numa disputa que tem como objetivo influen-ciar o consumidor comum. Segundo a associação

norte-americana de fabricantes de material esportivo,o mercado potencial para trajes de natação é estima-do em US$ 1,2 bilhão anual só nos Estados Unidos.

Indústria aeroespacial - A disputa pelas estrelas doesporte – e mais tarde pelo consumidor – tambémocorre em outras modalidades. A bicicleta mais co-biçada do momento pertence a ninguém menos doque o norte-americano Lance Armstrong, cinco vezesvencedor da Volta da França, uma das mais prestigio-sas provas de rua. A fabricante Trek desenvolveu paraele um modelo que usa no quadro uma fibra de car-bono especial, chamada OCLV (sigla de OptmizedCompactation, Low Void), que é mais forte e mais le-ve que as demais. Jim Colegrove, que desenvolveu omaterial, sustenta que sua compactação é maior doque a de fibras da indústria aeroespacial, na qual eletrabalhava. E ainda teria a vantagem de ser direcio-nável, isto é, no interior do material é possível disporas fibras de forma a absorver as vibrações e transfor-má-las em energia de movimento.

No caso de tênis e sapatilhas esportivas, há umcomplicador para a difusão de novas tecnologias parao grande público. Quanto mais a pesquisa avança, maisclaro fica que a forma de correr é algo tão pessoalquanto um registro de voz. Cada um tem sua passa-da própria, com pontos e momentos de pressão to-talmente diferentes uns dos outros. Assim, enquantoa Speedo analisou o físico de 450 nadadores para che-gar ao modelo ideal para sua pele rápida, os fabrican-tes de calçados esportivos apostam em desenvolvermodelos exclusivos para atletas de ponta. Para a elite,as empresas trabalham como uma butique, com pro-dutos sob medida. Para o grande público, uma opçãotalvez sejam os tênis inteligentes, como o protótipoAdidas 1, apresentado neste ano com a promessa de“ler” as condições do exercício e, com ajuda de umprocessador de 20 megahertz movido a bateria, adap-tar o solado ao usuário e à atividade praticada. É usarpara crer (ou não).

Casos em que a tecnologia esportiva é barata eestá ao alcance de todos são mais raros. Aconteceucom os tecidos esportivos. Após muitas pesquisas, osfabricantes chegaram a materiais capazes de absorvero suor da pele, expô-lo à superfície externa e assim con-tribuir para manter constante a temperatura corporaldurante o exercício prolongado. O benefício é fun-damental para a melhora do desempenho, pois comos novos uniformes o organismo “economiza” ener-gia e água. Esse avanço está ao alcance de praticamen-te todos os atletas por algumas dezenas de dólares, oque já não ocorre, por exemplo, com as sapatilhas deUS$ 450 fabricadas pela Nike para os corredores dos100 metros rasos.

Edward Tenner relativiza o poder da tecnologia.“Nunca ouvi falar de um atleta claramente mais fracovencer um mais forte por conta da tecnologia de seu

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equipamento”, afirma. Claro, ele admite que haja ca-sos em que o desenho e o engenho do equipamentoacabam contando tanto ou mais do que a destrezados atletas, como acontece nas competições náuticas.Também não esquece o clap skate. “Ele deu uma van-tagem crucial a quem o usava e mudou o esporte”, dizTenner. “Quem se negou a aceitá-lo foi derrotado.”Ele afirma, no entanto, que em quase todos os espor-tes há limites para a tecnologia dos equipamentos.

liga norte-americana de beisebol, por exem-plo, mantém os tacos de madeira, apesar

das dificuldades de ajuste dos jogadoresque saem das faculdades e do curso mé-dio, acostumados a bastões de alumí-

nio. Em alguns casos, é verdade, a tecnologia pode sig-nificar menos segurança para os atletas. No livro Whenthings bite back, o pesquisador norte-americano des-creve como a introdução de luvas para boxeadores le-vou a uma maior incidência de lesões. As luvas pre-tendiam tornar o combate mais seguro, protegendoas mãos dos lutadores. No final, o resultado obtidofoi o aumento de lesões cerebrais, inclusive mortes,pois se tornou possível socar a cabeça do adversáriosem quebrar as próprias mãos.

O especialista chama a atenção para o progressoque representou para o esporte a evolução no recru-

tamento de atletas, outro item incluído em sua listade avanços tecnológicos. Há cem anos, afirma Tenner,a maioria dos atletas olímpicos norte-americanos vi-nha de universidades como Harvard e Yale ou erammembros de clubes de elite. O código de amadoresdeixava de fora da prática competitiva os filhos daclasse operária, que só poderiam desenvolver suas ha-bilidades esportivas se fossem remunerados. Desde aSegunda Guerra Mundial, os programas de recruta-mento de atletas se expandiram por todo o mundo,influenciados pelo pioneirismo dos então países co-munistas do Leste. “Com tanta gente desde pequenapraticando hoje esportes, as diferenças de performan-ce se tornaram insignificantes”, diz Tenner. Seguindoesse mesmo princípio de eqüidade, o ideal é permitirque as inovações nos equipamentos se democratizem.“O esporte e seus praticantes têm a ganhar com isso.”

Não tem sido essa a regra. Larry Katz, do Labo-ratório de Tecnologia do Esporte da Universidade deCalgary, Canadá, sustenta em seus artigos que mui-tos esportes se tornam excludentes por conta dasinovações introduzidas. “A necessidade constante dedesenvolver equipamentos e técnicas de treinamen-to, que podem suavizar lesões e melhorar a perfor-mance, aumenta os custos de preparação dos atle-tas”, afirma Katz. “Isso exclui da prática ou do pódioaqueles sem acesso a recursos substanciais.” •

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Patinador de velocidade com o clap skate: lâmina móvel docalcanhar fica mais em contato com o gelo e aumenta impulso

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m abril de 2002, durante uma etapa daCopa do Mundo de Triatlo, no Japão,Carla Moreno sentiu uma dor intensa. Elatinha de nadar 1,5 quilômetro, pedalaroutros 40 quilômetros e, para finalizar,

correr mais 10 quilômetros. Ocorre que, acostumadaa terminar as provas com todo o corpo latejando, es-pecialmente as pernas e os braços, a triatleta pouco li-gou para os sinais que seu organismo emitiu de quehavia alguma coisa errada. “Fiz o de sempre: eu sim-plesmente deletei a dor”, relembra Carla, que chegouem 5º lugar. Três semanas depois disputou outra pro-va. Quando foi investigar a razão do desconfortoanormal, descobriu que tinha participado das duasprovas com uma fratura de estresse: fissuras em trêspontos da tíbia, principal osso que liga o tornozelo aojoelho e que, numa corrida, sustenta a maior parte dopeso do corpo e absorve o impacto contra o solo.

Essa espécie de microfratura foi provocada pormovimentos que o ser humano faz corriqueiramentetodos os dias, mas que, repetidos milhares de vezes navida esportiva, fazem o osso do atleta reagir como umpilar de concreto que se esfarela sob o peso excessivode uma construção. É um sinal claro de que o corpofoi além de seus limites. Nesses casos, a dor serve desinal de alerta – ou, pelo menos, deveria servir. “Nemliguei”, relembra Carla, de 27 anos. “Sou capaz deagüentar a dor até desmaiar.”

O relato de Carla, que disputa as Olimpíadas deAtenas pelo Brasil, está longe de ser um caso isolado.A vida do atleta de alto rendimento é marcada pela

carga excessiva de esforço físico e pela exposição a le-sões em articulações, ligamentos, músculos e ossos.Fruto de treinos diários com milhares de repetiçõesde um mesmo movimento. De saltos e aterrissagenscujo impacto pode se aproximar de 1 tonelada. Doexercício forçado com pesos, para aumentar a massamuscular. Dos jogos em que é comum levar pancadasdo adversário ou sofrer contusões provocadas pelospróprios movimentos, bruscos e vigorosos. Das ativi-dades que moem as articulações, submetidas a pres-são além do normal. Por conta disso tudo, inchaços,desconforto e dor são companheiros freqüentes doesportista. “Infelizmente, faz parte da realidade dosesportes de competição a máxima ‘No pain, no gain’(sem dor, não há vitória)”, avalia Moisés Cohen, che-fe do Centro de Traumatologia do Esporte, da Uni-versidade Federal de São Paulo (Cete-Unifesp). “Oatleta de elite convive tanto com a dor que acabaachando normal senti-la. É justamente essa tolerânciaque favorece lesões mais graves e permanentes.”

Procurando a melhoria contínua do desempenho,o esportista de competição ignora os limites de seuorganismo, com claros prejuízos para a saúde. “O es-porte de alto rendimento não é saudável nem provo-ca bem-estar”, afirma Antônio Carlos da Silva, doCentro de Estudos de Fisiologia do Exercício (Cefe),também da Unifesp. Pesquisas já mostraram que oesporte praticado com moderação faz o organismoproduzir endorfina, substância natural que tem estru-tura e efeito semelhantes aos de opiáceos, dando aoesportista sensação de bem-estar. Há evidências de

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A dor da vitória ou a vitória da dorPara se manter no topo,competidores de elite convivem com o sofrimento físico

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Em abril de 2000, Ronaldorompe o tendão da rótula dojoelho direito: um ano e meio afastado do futebol

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que, praticado em excesso, como fazem com freqüên-cia atletas de competição, o esporte faça o corpo pro-duzir cortisol, o hormônio do estresse, que provocadesconforto e é capaz até de diminuir as barreirasimunológicas do organismo.

Aos 21 anos, a ginasta Daiane dos Santos já sofreutrês cirurgias nos joelhos: no direito, passou por umaartroscopia em 2003 e, no último mês de junho, poruma artroscopia para retirada de um fragmento decartilagem; no esquerdo, operou o tendão patelar em2002. “Faz parte da vida do atleta”, costuma repetirDaiane, quando indagada sobre as dores que sentenos treinamentos e fora deles. Pesquisas de V. P. Pan-zer e colaboradores, da Universidade de Oregon, Es-tados Unidos, mostraram que na ginástica a força dosolo sobre o corpo na aterrissagem é de 8 a 14 vezes opeso do atleta. No caso de Daiane, isso significariaalgo como meia tonelada atuando por uma fraçãode segundo sobre seus ossos e articulações. “Daianepode até superar essa marca, pois salta muito alto eisso aumenta o impacto na volta ao solo”, avalia o fí-sico Marcos Duarte, da Escola de Educação Física eEsporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP),especialista na análise dos movimentos humanos (bio-mecânica). Daiane tem 42 quilos. Imagine o que sepassa com os gigantescos jogadores de vôlei. No augede sua forma, o jogador Marcelo Negrão tinha 90 qui-los, distribuídos em 1,98 metro de altura, e dava sal-tos em que seus pés chegavam a 1,10 metro do solo.O impacto de sua aterrissagem chegou a ser calcula-do em 900 quilos, e ele repetia esse movimento cercade cem vezes em um jogo. Isso é parte da explicaçãopara a lesão no joelho direito que o afastou das qua-dras por um ano e oito meses.

Forçar além do normal - Nos treinamentos, ir alémdo limite físico do atleta é um princípio básico, vistocomo a alavanca que gera a evolução.“A idéia é forçarum pouco além do normal para provocar uma adap-tação que trará ganho para o indivíduo”, explica Silva.O trabalho é feito em ciclos: primeiro vêm os exercí-cios, que são levados até a sobrecarga e mantidos atéexaurir as reservas do atleta; em seguida, vem a recu-peração. Nessa fase, espera-se do organismo uma su-percompensação, capaz de repor as reservas e aindaelevar a um novo patamar os recursos do esportista.

Há dois riscos nesse método. Um é negar o devi-do tempo para a recuperação. “É preciso dar boaspausas. Manter um ritmo além do normal, tempora-da após temporada, gera um efeito cumulativo de so-brecarga”, diz Silva. Outra atitude de risco é ignorarquando o físico do atleta já atingiu o limite máximode desenvolvimento. “Com freqüência, o treinador sevê diante de um dilema: será que meu atleta já desen-volveu todo o seu potencial?”, conta o pesquisador.Como uma pequena diferença pode significar umamedalha, há muitos que preferem arriscar e forçar

um pouco mais. Também aparece a tentação de apla-car dores e inchaço com analgésicos e corticóides, quepodem configurar doping. No esporte de elite, algunsde fato acabam cometendo esses pecados. “Para al-guns esportistas e treinadores, vale tudo na busca porresultados”, afirma Silva.

busos no esforço de preparação geram qua-dros conhecidos como de overtraining –

ou treinamento excessivo. O atleta passaa ter alterações no humor, problemaspara dormir, mudança de apetite e, nas

mulheres, início de osteoporose e alterações no ciclomenstrual. Mais: o rendimento começa a cair de ma-neira aparentemente inexplicável. Diagnosticado noinício, o overtraining tem um tratamento prosaico –férias. Mas, quando esses sintomas se tornam crôni-cos, podem ameaçar a carreira do esportista e o des-canso tem de ser prolongado por muitos meses. Infe-lizmente, é comum o atleta e sua equipe ignorarem ossinais do excesso de treinamento. E, na tentativa derecuperar a performance, fazerem treinamento aindamais puxado, que acaba agravando o quadro. O pes-quisador John Raglin, da Universidade de Indiana,Estados Unidos, estima que a maioria dos corredoresde elite de longa distância dá sinais de overtrainingpelo menos uma vez em suas carreiras. A cada ano,entre 5% e 15% dos atletas de competição estudadospor Raglin apresentaram quadro de overtraining, e de25% a 30% tiveram pelo menos parte dos sintomas.

Mais comuns na carreira esportiva são as peque-nas lesões. É raro encontrar um atleta que não tenhamuitas histórias para contar. O joelho é a principal ví-tima na maioria dos esportes. No futebol, por exem-plo, o desgaste parece inevitável. Quem duvidar dissoque converse com o atacante Ronaldo, o fenômeno.Sua imagem de dor ao romper o tendão da rótula dojoelho direito, em abril de 2000, quando atuava pelaInter de Milão, não deixa dúvidas. O jogador vinha decinco meses sem jogar, após uma cirurgia exatamen-te naquele local, e ficou quase um ano e meio afasta-do das partidas após a segunda contusão. “As lesõespodem fazer um jogador de 30 anos ter o joelho igualao de alguém anos mais velho”, afirma Cohen, emtese, sem se referir ao caso Ronaldo.

Nas modalidades em que é exigida maior explo-são, como vôlei, o atletismo de provas rápidas e o pró-prio futebol, lesões musculares são freqüentes. Nos es-portes de muito contato, como é o caso de basquete ehandebol, predominam as lesões nas articulações. Maspoucos esportes se comparam ao judô em matéria demoer atletas.“Várias pesquisas já mostraram isso”, sus-tenta Wagner Castropil, ortopedista especializado emmedicina do esporte e ex-judoca. Em 1996, Castropilfez um estudo com cem judocas que competiam e apu-rou que 70% dos atletas tinham problemas no om-bro, 60% no joelho e 55% nas mãos. Essas contusões

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e lesões levavam alguns desses atletas a se afastar dostreinos por 15 dias ou mais.“O judô é altamente agres-sivo ao aparelho locomotor e ao sistema esquelético”,afirma Castropil. “Enquanto no vôlei, por exemplo, ochoque com a bola dura no máximo um segundo, nojudô há esforço brutal nas articulações durante 40, 60segundos ininterruptos.” Em muitos sentidos os pra-ticantes da natação levam vantagem. Trata-se de es-porte que exige muito do sistema cardiorrespiratório,em que não há contato com adversários e o corpo in-terage com um meio que funciona como amortece-dor – a água. De forma geral, os nadadores estão me-nos expostos a lesões que seus colegas de outrosesportes. Em compensação, como nenhuma modali-dade é completa, sua postura corporal fora da águanem sempre é das melhores.

Além das dores em si, treinamentos extenuantes elesões constantes trazem um efeito colateral – o estres-se psicológico. Nessa área, o ex-corredor Joaquim Cruzdá um depoimento com tons dramáticos. Em sua car-reira de mais de 20 anos, o atleta conseguiu mais cirur-gias do que medalhas olímpicas, embora esteja entreos corredores brasileiros de maior sucesso em todosos tempos. Foram duas medalhas – ouro em Los An-geles (1984) e prata em Seul (1988), ambas nos 800metros rasos – contra oito operações – uma no pé di-reito, uma no joelho esquerdo e três em cada tendão-de-aquiles. Nem todas as intervenções eram neces-sárias, afirma hoje o corredor. “Poderia ter evitadoalgumas cirurgias, mas não agüentava o desgaste emo-cional de me afastar dos treinos”, relata. “Queria ‘con-sertar’ o mais rápido possível e voltar a treinar forte.”

ruz diz que houve momentos em suacarreira em que chegava à pista de treina-mento e “tinha vontade de correr paratrás”. O cansaço físico e emocional era ta-manho, relembra, que qualquer coisa se-

ria melhor do que repetir a rotina de correr para a fren-te. Ele descreve essa forma de estafa como dor – “umador psicológica’’ –, embora fosse bem diferente do des-conforto físico que o acompanhava no início da car-reira. Quando começou, Cruz costumava ter desarran-jos intestinais e falta de apetite antes da competição,que davam lugar a vômito e ardor nas pernas até meiahora após a corrida. Sem falar nas inúmeras vezes emque, durante toda a carreira, teve a impressão de queiria desmaiar durante a corrida.“Eu sentia que iria tra-var, mas insistia e achava energia além do limite”, re-lembra. Nada disso abalou sua convicção de que o es-porte de competição compensa. “Parece que a gentejá nasce para competir, pensando em vencer”, afirma.Para ele, quem vira atleta tem maior tolerância à dor.

O tenista Gustavo Kuerten, de 27 anos, é outro atle-ta que convive com a dúvida sobre ter feito a coisa cer-ta ao se submeter a uma cirurgia. Dois anos após teroperado o quadril, que apresentava desgaste em umaarticulação, o tenista admite que ainda vive em fun-ção da recuperação. Ele revela que está com 70% desua capacidade, mas diz que para jogar em nível com-petitivo é preciso estar 120%. Em jogos, começa asentir dores após meia hora ou pouco mais. Isso “sugasua energia”, como definiu em entrevista à revistaVeja em julho. Guga tentou mudar a maneira de ba-ter na bola após a cirurgia, mas não se adaptou. Porsinal, a forma como os tenistas passaram a golpear abola é um dos motivos para as contusões mais fre-qüentes no quadril e na virilha em atletas ligados aoesporte. Até os anos 1980, o mais comum era que,num golpe de direita, projetassem a perna esquerda àfrente. Agora os tenistas mantêm as pernas paralelas,como faz Guga, o que permite maior amplitude aomovimento e maior potência ao golpe. Um estudo

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Carla Moreno: triatleta disputouprovas com fissuras na tíbia

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do médico Rogério Teixeira, da Unifesp,mostrou que o efeito colateral dessa no-va forma de bater foi aumentar o desgas-te de músculos e articulações do quadril,devido à brusca rotação do tronco.

as, afinal, se a vida doatleta é tão sofrida,por que tantas pessoasse submetem a isso? Aquestão é que esporte

de competição não é atividade física paraaumentar o bem-estar e a saúde. Esportede alto rendimento é profissão. É um ca-minho para ter dinheiro, fama, influênciae – sim, também isto – desafiar os limitesdo homem. Assim, a pressão para conse-guir bons resultados envolve valores queultrapassam a ética exclusivamente espor-tiva.“Vivemos numa era em que o que im-porta é vencer”, afirma a psicóloga KatiaRubio, da EEFE-USP.“Na publicidade, naescola, no trabalho, valoriza-se a compe-tição e o vencedor. O mundo do esporte ea cabeça do atleta são um espelho disso.”A pesquisadora desenvolveu, com apoioda FAPESP, um projeto em que entrevis-tou todos os atletas brasileiros vivos queganharam medalhas olímpicas de 1920 a2000, cujo resultado foi o livro Heróisolímpicos brasileiros, lançado neste ano.Para Katia, os princípios éticos que pau-tavam o esporte amador ficaram no pas-sado e hoje predomina a competição ex-trema. “O atleta que quer a vitória a todocusto está mais suscetível a ignorar seus limites”, diz.

Já vai longe o tempo em que Adhemar Ferreira daSilva preferiu continuar pagando aluguel a aceitar umacasa para morar com os pais, após ter conquistado amedalha de ouro nos jogos de Helsinque (1952). Naocasião, isso poderia parecer remuneração, e Adhe-mar pretendia concorrer nos jogos seguintes – nosquais, por sinal, voltou a ganhar o ouro no salto tri-plo. Quando o nadador Mark Sptiz ganhou sete me-dalhas de ouro, em Munique (1972), houve suspeitasde que já tinha um contrato de patrocínio disfarçadocom um fabricante de material esportivo. “Ele foi pa-ra o pódio com um par de tênis amarrado no pescoço”,relembra Katia. Nos jogos de Moscou (1980), o ama-dorismo foi definitivamente deixado de lado pelas re-gras olímpicas. Hoje há desafios como o feito pelaSpeedo ao nadador norte-americano Michael Phelps,de 19 anos, que ganhará US$ 1 milhão se igualar o re-corde de medalhas de Spitz.

Apesar disso, a psicóloga não acredita que os inte-resses comerciais tenham enterrado de vez o espíritoolímpico e instalado um vale-tudo no esporte mun-

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Oscar: menisco em forma de “V” impede o ex-jogador de dobrar a perna direita totalmente

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dial. Para a psicóloga, o espírito esportivo ainda pre-valece em países com menos estrutura no mundo doesporte, como é o caso do Brasil. “Aqui, ainda vive-mos um misto de persistência, determinação e teimo-sia”, afirma Katia, lembrando que atletas brasileirosficam sem patrocínio mesmo após ganhar medalhas.

Uma agravante no sofrimento e nas lesões dos atle-tas é o fato de começarem a treinar cedo, quando aindasão muito jovens. Acontece que “criança não é adultopequeno”, como relembra Antônio Carlos da Silva.Seus sistemas muscular, cardiovascular e nervoso nãoestão preparados para sobrecarga de exercícios.“Há orisco de hipertrofiar um sistema e ignorar os outros”,exemplifica. “Resultado possível: um atleta com cora-ção que não acompanha o desenvolvimento dos ou-tros sistemas do organismo coloca sua vida em peri-go.” Moisés Cohen diz que não é raro atendercrianças e adolescentes que chegam ao centro detraumatologia da Unifesp com lesões provocadas porsobrecarga de exercícios. Para ele, a busca por espaçotem parte da culpa por terem ultrapassado os limites.“Eles se lesionam tentando se afirmar em um meio ex-

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tremamente competitivo”,afirma. Sem dúvida é pos-sível, sim, começar a trei-nar cedo para o esportecompetitivo. Mas o corre-to, segundo os especialis-

tas, é o jovem atleta teracompanhamento mul-tidisciplinar e se exerci-tar respeitando o nívelde maturidade de seuconjunto físico.

Quando o esportistaficar mais velho, seu corpo

vai agradecer. Poderá ter umavida mais confortável e uma

carreira possivelmente maislonga – as lesões são fator im-

portante no abandono das com-petições. Acima de tudo, terá menos

problemas quando ganhar mais idade –hora em que o organismo apresenta a con-ta por todos os abusos atléticos cometidosao longo da vida. Não é raro que artroses,

tendinites crônicas e lesões por esforço repeti-tivo transformem a vida do esportista aposen-tado em um martírio. “Vemos até gente comdificuldade de andar”, conta o médico Wagner

Castropil. Em 1989, já no final de sua carreira, aex-jogadora de basquete Hortência teve de acol-choar o genuflexório da igreja em que casou, casocontrário não suportaria uma dor no joelho que já

a acompanhava havia décadas. Ela também tem umador histórica no tornozelo e tendinite persistente noombro, devido a anos e anos fazendo mais de mil ar-remessos diários. O ex-jogador de basquete OscarSchmidt não pode ficar com o joelho esquerdo do-brado mais de uma hora e meia. No cinema, precisadar uma levantadinha no meio da projeção para seesticar. Seu menisco tem a forma de um “V”, o que oimpede de dobrar a perna direita totalmente. Tam-bém tem vários dentes quebrados.

Ironicamente, os exercícios físicos moderados sãoa melhor receita de saúde para atletas aposentados.Castropil cita um estudo finlandês que, analisandoatletas que participaram de Olimpíadas no início doséculo 20, verificou que aqueles que continuaram seexercitando após deixarem as competições tinham es-tado geral de saúde melhor do que um sedentário.Para os que pararam de se exercitar, no entanto, otempo foi implacável. “Esses ex-atletas sem exercíciotinham saúde geral pior do que uma pessoa sedentá-ria”, conta Castropil. A verdade é que muitos atletasgostam de se consolar com uma máxima já consagra-da: a dor é passageira, a glória é para sempre. Ciênciae experiência deixam cada vez mais claro que a fraseé tão impactante quanto questionável. •

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Guga: com 70% da capacidade dois anosapós cirurgia no quadril

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– Não posso sentir minha perna – diz a atleta.– Esqueça – rebate o técnico. Faça o melhor que puder. Você tem de saltar mais uma vez!– Não, você não está entendendo. Meu pé está machucado de verdade.– Esqueça.– Vou ter de fazer isso de novo?– Você pode? Pode? – pergunta o treinador.– Não sei ainda – responde a atleta, à beira das lágrimas, pouco antes de se decidir. Vou saltar...Vou saltar...

diálogo dramático aconteceu naOlimpíada de Atlanta (1996) entrea ginasta Kerry Strug e o técnico Be-la Karolyi, romeno que treinava aequipe norte-americana. No quarto

dia da competição Kerry foi vítima de uma torçãograve no tornozelo esquerdo, em seu primeiro sal-to sobre o cavalo. Não era permitido atendimentomédico antes de um novo salto, e a atleta se acon-selhou com o treinador, cujas frases e gestos enfá-ticos não deixaram dúvida: ela deveria tentar,mesmo machucada. Estava em jogo não apenasseu desempenho pessoal, mas a medalha de ouropor equipes, então inédita para as norte-america-nas. No segundo salto, Kerry correu, voou com efi-ciência e aterrissou com os dois pés. Um segundodepois, não resistiu à dor no tornozelo e desabouno chão. O técnico Karolyi – o mesmo que em1976 revelou a ginasta Nadia Comaneci – recolheuKerry do solo e a carregou nos braços. O salto re-cebeu nota 9,712. As meninas dos EUA ficaramcom o ouro, mas teriam conseguido a medalhamesmo sem o segundo salto de Kerry Strug. “Eume senti obrigada a saltar”, contou depois a atleta,na época com 18 anos.

O episódio, marcante na história olímpica, re-vela o papel decisivo que o fator psicológico pode

ter no esporte de alto rendimento. Em vários sen-tidos: mostra a importância da motivação parasuperar obstáculos, indica a ascendência do trei-nador sobre o atleta e é um exemplo dos efeitosdas discutíveis técnicas autoritárias, empregadasespecialmente contra mulheres. Acima de tudo ocaso mostra como a mente pode levar o atleta aoseu limite – e até além dele. “A preparação psico-lógica é a diferença entre o ouro e a prata”, acredi-ta Benno Becker Júnior, presidente de honra daSociedade Brasileira de Psicologia do Esporte.

Na verdade, esporte e psicologia andam juntosdesde os jogos da Grécia Antiga, quando os com-petidores se isolavam antes das competições e fica-vam imaginando resultados positivos – técnica co-nhecida como visualização. Quando o barão dePierre Coubertin ressuscitou os jogos, foi a mentedos atletas o tema do primeiro encontro interna-cional pré-olímpico. De forma geral os objetivoscontinuam os mesmos. A idéia é trabalhar o ladoemocional do esportista, usando técnicas que o le-vem a atingir o máximo de seu desempenho. Isso éimportante no esporte de competição, em que mi-lésimos de segundo fazem a diferença entre fracas-so e sucesso. John Kremer, da Queen’s University,da Irlanda, autor de livros sobre psicologia esporti-va, define o objetivo de sua profissão como modu-lar os três “cês”: em inglês, confidence (confiança),commitment (compromisso) e control (controle).

Ioga e meditação - Não há uma receita geral. Paracada modalidade esportiva e tipo de atleta, os in-gredientes entram em proporção diferente. Numesporte como o tiro, por exemplo, o preparo psico-lógico deve enfatizar o controle e a concentração;nos esportes coletivos ganha importância o enga-jamento, tentando tornar ótimos a comunicação eo espírito de equipe; na ginástica vale mais a con-fiança. As técnicas variam com o objetivo a ser al-cançado. O atirador irá praticar ioga, meditação e

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A batalha dos neurôniosTreinamento dos atletas inclui técnicas psicológicaspara melhorar o desempenho

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Final da Copa de 1998:abalo psicológico ederrota para a França

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relaxamento, a ponto de fazer seu coração bater maislentamente durante uma prova; um time de basquetedesenvolve dinâmicas de grupo para estimular a in-terdependência; e a ginasta faz exercícios mentais emque reproduz em sua cabeça a imagem do movimen-to perfeito – uma, duas, centenas de vezes.

“É fundamental ter uma preparação sob enco-menda e jamais depender apenas de uma técnica”,afirma John Kremer.“Numa competição, o atleta devecontar com estratégias variadas para atingir seu esta-do mental ótimo”, diz o psicólogo Dietmar Samulski,da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) eescolhido pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB)para acompanhar a delegação brasileira em Atenas.

Lição de casa - Em geral, as receitas de preparaçãosão escolhidas conforme o perfil do atleta. Um exem-plo foi a prescrita por Benno Becker Jr. para um na-dador da equipe brasileira dos 200 metros que tinhadificuldades emocionais em encarar os últimos 50 me-tros.“Percebi que uma boa técnica seria a da visualiza-ção, com diálogo interno”, relembra o psicólogo. Onadador ganhou uma “lição de casa”: várias vezes aodia deveria visualizar o momento em que faria a vira-da na piscina e encararia os últimos metros; no exer-cício, deveria se imaginar voando como um pássarosobre a água. “Deu certo”, avalia Becker Jr., que nãorevela o nome do atleta por sigilo profissional.

Os objetivos da preparação psicológica são anti-gos, mas as técnicas têm acompanhado o desenvolvi-mento da ciência. Becker Jr. cita um exemplo: hoje osatletas trabalham com a mentalização de no máximocinco metas, pois as pesquisas sobre retenção cogniti-va mostraram que essa é a quantidade ótima para umser humano. O conhecimento do cérebro mudou ro-tinas. O atleta hoje acorda pelo menos três horas antesde uma disputa, pois se sabe que o sistema nervosocentral leva esse período para despertar completa-mente após o sono. Também a tecnologia do vídeo,popularizada no mundo inteiro, tem ajudado atletasque trabalham com visualização de movimentos. Naginástica é usual o treinador gravar seqüências e exi-bir repetidamente o movimento ideal para o atleta, deforma a ajudá-lo na visualização.

Um dos campos mais promissores em termos deavanço científico relacionado à preparação psicológi-ca é o biofeedback. Trata-se mais de um instrumentopara avaliação do estado psicofisiológico do atleta doque de uma técnica psicológica. Tradicionalmente obiofeedback é usado em terapias de cura, como em pa-cientes que perderam o controle dos movimentos. Noesporte, exames para monitorar ondas cerebrais, fre-qüência cardíaca, pressão arterial, profundidade darespiração e temperatura, por exemplo, avaliam o es-tado mental do atleta. Com base nesses parâmetros,o especialista ganha em duas frentes: avalia o sucessoda técnica psicológica que está aplicando e dá ao es-

portista consciência clara de qual o estado mental emque tem seu melhor desempenho. Assim o atleta po-de reproduzir essa espécie de nirvana esportivo commaior facilidade ou avaliar quais técnicas o levam maispróximo desse ponto ótimo.

O biofeedback colabora para ampliar a confiabi-lidade da psicologia esportiva, ainda vista com algu-ma reserva. Para muitos, o trabalho psicológico fun-ciona para quem o faz funcionar – it works when youwork it, na expressão inglesa. “Conduzir uma avalia-ção científica da efetividade da ajuda psicológica pa-ra a performance atlética é um negócio complicado”,afirma o psicólogo norte-americano Michael Sher-mer, em artigo publicado na revista Scientific Ameri-can, em janeiro de 2000, no qual se assume um céti-co declarado. O psicólogo participou de uma ediçãoda Race Across América – prova ciclística que atra-vessa 3 mil milhas nos Estados Unidos – depois demeditar, participar de seminários sobre controle deestados internos, ouvir fitas motivacionais e aprenderauto-hipnose contra a dor. “Não sei dizer se funcio-nou, nem como cientista nem como ciclista”, avaliou.Ele explica as dificuldades de tirar a prova nessa área:seria preciso considerar todas as variáveis que influ-enciaram um atleta, ver se o trabalho psicológico tra-ria resultados semelhantes em outros competidores,ter um grupo de controle submetido a condições qua-se idênticas... Em resumo, ele acredita que os psicó-logos do esporte são “como a maioria dos cientistassociais”: saem-se melhor explicando um comporta-mento do que tentando controlá-lo.

questão da efetividade da psicologia espor-tiva e da validade de seus modelos é tão

controversa que há estudos destinadosunicamente a revisar as dezenas, cente-nas de pesquisas anteriores. Mas tam-

bém a revisão está sujeita a novas polêmicas. “O ren-dimento de um atleta de competição depende devários fatores, e cientificamente é muito difícil isolaro fator psicológico”, admite Samulski. “Pessoalmente,penso que medidas e mesmo testes psicológicos rara-mente oferecem compreensão tão profunda quanto adas abordagens qualitativas”, acredita John Kremer.Também é preciso ter em mente a consistência dos re-sultados. Pesquisas já mostraram o chamado efeitoHawthorne, que faz a performance melhorar no cur-to prazo apenas por conta do início do trabalho psico-lógico e do engajamento dos envolvidos. “Só de saberque há alguém se preocupando, o atleta já melhorasuas reações”, relata o psicólogo Eduardo Aguiar, dasFaculdades Metropolitanas Unidas (UniFMU), deSão Paulo, que atua na área esportiva e trabalhou napreparação da triatleta Carla Moreno para a Olimpía-da de Atenas. O bom impacto inicial não quer dizerque a melhora da performance veio para ficar, adver-tem os especialistas.

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Os psicólogos costumam lembrar a final da Copado Mundo de futebol de 1998 como uma boa prova danecessidade de trabalho emocional no esporte compe-titivo. Na decisão da França, o atacante Ronaldo teveum crise de convulsão – talvez um sinal de sobrecargaemocional – na véspera do jogo decisivo. O incidenteabalou o lado psicológico de toda a Seleção Brasileira.Resultados: uma equipe apática, uma atuação apaga-da e uma derrota inesquecível. Isso não significa quechamar um psicólogo às pressas diante de uma criseterá algum resultado benéfico. “Isso raramente fun-ciona”, avalia John Kremer. “Os melhores resultadosaparecem com trabalhos de longo prazo.”

Fibrilação - Há procedimentos indicados para situa-ções de crise. Repare nos gritos, nos gestos e na cara detranstornado que o técnico Bernardinho faz ao orien-tar a Seleção Brasileira masculina de vôlei. Existe umaexplicação, digamos, científica para isso. “Há momen-tos em que o time reage com apatia, como um coraçãoque sofreu fibrilação; nessa altura, só um choque podefazê-lo voltar ao normal”, explica Benno Becker Jr.“Osgritos são esse tratamento de choque.” Para Samulski,Bernardinho estuda psicologia esportiva por contaprópria e sabe o que faz. “Ele é um grande motivador”,diz o psicólogo do COB.

Para os especialistas,Bernardinho está longede ser comparável a trei-nadores como Bela Karol-yi, que protagonizou a cenamarcante da Olimpíada de

Atlanta. “Ele é exigente, mas escuta a opinião de seusjogadores”, avalia Samulski. “Isso não é ser autoritá-rio.” Claro que esse termo tem caráter negativo, masé preciso observar que autoritarismo não é sinônimode insucesso no esporte. Há treinadores bem-sucedi-dos tanto na linha dura como na democrática. Karolyi,por exemplo, dirigiu a equipe feminina norte-ameri-cana em várias Olimpíadas, com poder inclusive paraindicar as integrantes da equipe. “Mas é preciso rela-tivizar o sentido de sucesso, no caso da orientação au-toritária”, acredita Eduardo Aguiar.“Pode ser que essaabordagem consiga uma boa performance imediatado atleta, mas um péssimo resultado no longo prazoe quando se olha o ser humano como um todo.”

Em grande medida, os comportamentos indivi-duais refletem escolas nacionais. Rússia, Japão e Co-réia, por exemplo, são lembrados por sua cultura es-portiva autoritária. “Russos e japoneses chegam abater, especialmente em mulheres atletas”, afirmaBenno Becker Jr. O presidente de honra da Socieda-de Brasileira de Psicologia do Esporte cita uma pes-quisa feita no Japão, na década de 1990, que mostrao caráter cultural do procedimento: 83% disseram

que apanhar fazia bempara a disciplina e 86%revelaram que, se fossemtreinadores, também ba-teriam.“Talvez isso fun-cione para obter resul-tados, mas essa escolaautoritária cria gera-ções doentes.” •

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Técnico Bernardinho,

do vôlei: tratamento

de choque para o time

voltar ao normal

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m meados do ano passado, um treinadorcujo nome se mantém em sigilo, contatoua Agência Anti-Doping dos Estados Uni-dos (Usada) e contou uma história quedeve ter feito rolar em sua tumba (mais

uma vez) o barão Pierre de Coubertin, o francês que,no final do século 19, resgatou as Olimpíadas para aera moderna. Uma empresa de suplementos nutricio-nais do Estado da Califórnia, a Bay Area LaboratoryCooperative (Balco), havia desenvolvido, uns anosantes, uma droga cuja primeira e única finalidade se-ria turbinar o desempenho de esportistas de alto ní-vel. E mais: uma parte da elite do atletismo norte-americano (e mundial) estava usando, impunemente,o fármaco clandestino, disse o técnico. A tetrahidro-gestrinona, ou simplesmente THG, era um novo tipode esteróide anabolizante, classe de fármacos que au-menta a massa muscular de seus usuários, conferin-do-lhes mais força e potência e diminuindo o temponecessário para se recuperar de grandes esforços físi-cos. A droga prometia fazer tudo isso e ainda ofereciauma vantagem extra, muito atraente para esportistasque podem ser chamados a fazer testes anti-doping aqualquer momento: risco zero de ser detectada numexame de urina ou sangue. Era uma barbada.

Como assim? Usar o THG era o doping perfeito?Praticamente isso. Até o momento em que o miste-rioso treinador – alguns jornais norte-americanosdizem se tratar de Trevor Graham – resolveu abrir aboca, ninguém, fora do seleto círculo de amigos eclientes da Balco, sabia da existência da droga. Por-tanto, não havia a preocupação de incluí-la numa lis-ta de substâncias proibidas, tampouco meios de de-tectá-la. Mas o técnico conseguiu acabar com essafarra da química ilegal ao revelar a existência do THGe, sobretudo, ao fornecer uma seringa com amostrasdo composto. A pedido das autoridades anti-doping,o frasco foi analisado num laboratório da Universi-dade da Califórnia (Ucla), que confirmou se tratar deum esteróide sintético de estrutura molecular simi-lar, mas não idêntica, a uma droga usada normal-mente para combater problemas no aparelho repro-dutor feminino, a gestrinona, da qual parece ser umderivado. “O THG foi criado por meio da alteraçãode um radical da molécula original”, afirma o gaúchoEduardo Henrique De Rose, membro do Comitê deSaúde, Medicina e Pesquisa da Agência MundialAnti-doping (AMA), cuja lista de substâncias e méto-dos proibidos está em vigor na Olimpíada de Atenas(veja quadro na página 40).

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Auxílio ilegal esob medida

Droga desenhada em laboratório,o THG, inaugura nova faseda química proibida nos esportes

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Ben Johnson nos jogos de Seul, em 1988: ouronos 100 metros cassadopor causa de esteróide

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Semanas após a identificação do esteróide dese-nhado nas dependências da Balco, um teste anti-do-ping capaz de flagrá-lo foi desenvolvido. E não deuoutra: em 16 de outubro, a Usada anunciou publica-mente a descoberta do THG e disse que alguns atletasnão haviam passado nos testes para essa substânciaou eram suspeitos de a terem usado. Pronto. A “poçãomágica” ou o “limpo”, como a droga era chamada àboca pequena por seus criadores e usuários, tinha fi-nalmente vindo à tona. Desde então esportistas fo-ram punidos, medalhas conquistadas no passado re-cente mudaram de mãos, marcas excepcionais foramanuladas (ou estão sob suspeita). O atual recordistamundial dos 100 metros livres, o norte-americanoTim Montgomery, acusado de ter usado THG (e ou-tras substâncias proibidas) made in Balco e sua mu-lher, a velocista Marion Jones, enfrenta a mesma sus-peita. A corredora dos 1.500 metros, Regina Jacobs,testou positivo para THG e foi suspensa por quatroanos. Em julho, um dia antes do anúncio da punição,Jacobs, 40 anos, anunciou a sua aposentadoria daspistas. Enfim, reputações foram destruídas ou, no mí-nimo, arranhadas e alguns passaportes ilustres perde-ram o carimbo para Atenas.

sse filme parece ser velho e conhecido, ain-da mais quando ainda estão frescas na me-mória as cenas do maior escândalo de do-ping ocorrido em Olimpíadas: a final dos100 metros rasos em Seul, em 1988, quan-

do o canadense Ben Johnson, um feixe de músculos naforma de velocista, ganhou a prova com a marca de9,79 segundos, bateu o recorde mundial – e testou po-sitivo para outro esteróide, o estanolozol, delito queinvalidou sua performance e o baniu das pistas pordois anos. Mas o THG não é simplesmente mais umasubstância a entrar na lista dos compostos proibidospelas autoridades esportivas. Não é um compostoqualquer.“O THG é a primeira droga desenhada paraser usada especialmente como doping por atletas”, afir-ma Francisco Radler de Aquino Neto, coordenador doLaboratório de Controle de Dopagem do Instituto deQuímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), único centro nacional credenciado junto àAMA. “Ela não foi testada em seres humanos e nin-guém conhece a sua toxicidade. Pode ser um veneno.”Sua forma de criação foi, portanto, inusitada, sofisti-cada, talvez um sinal dos novos tempos.

Pelo que se sabe, o THG saiu dos laboratórios daBalco, que está sendo processada e pode pagar umamulta de mais de US$ 700 mil, e foi direto para oscorpos dos atletas. Não só o seu uso por corredores eesportistas configura doping como a sua própria fa-bricação em si é ilegal. É uma droga totalmente clan-destina. Ela existe para ser empregada na trapaça es-portiva. O mesmo não acontece com a maioria dosfármacos cujo uso é vedado aos atletas que tomam

parte de uma Olimpíada ou de outras competiçõesoficiais, mas que são úteis para a medicina no trata-mento de problemas de saúde. Imprescindível paraos diabéticos, a insulina é um exemplo de substânciaimportante para o tratamento de uma condição clí-nica. Nos esportes, no entanto, se utilizada por atle-tas não-diabéticos, seu efeito pode ser semelhante aode um anabolizante: aumenta a massa muscular. Ou-tro caso é o do Hormônio de Crescimento Humano(hGH). Empregado no tratamento de problemas denanismo ou perda de massa muscular, o hGH reduzo acúmulo de gordura, estimula a síntese de proteí-nas e eleva a porcentagem de massa corporal magraem atletas.

Pouca gente se dá conta de que o conceito de do-ping muda com o tempo e não é universal. Cada país,esporte ou época legisla (ou não) sobre as substân-cias ou métodos que podem ser usados para melho-rar a performance dos atletas. O que era definidocomo um auxílio ilegal ontem pode hoje ser encara-do como lícito, desde que o uso controlado de umasubstância não ofereça riscos à saúde ou ganhos dedesempenho a seus usuários. Estimulante presentenos grãos de café e em folhas de chá, a cafeína, porexemplo, acaba de ser retirada da lista de substâncias

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proibidas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI),que segue as recomendações da AMA. O COI só vaiinvestigar atletas nos quais for detectada uma quanti-dade muito elevada dessa substância. Algumas subs-tâncias, como o álcool e os beta-bloqueadores (quediminuem os batimentos cardíacos e aumentam aconcentração), só são proibidas em alguns esportes.Em outros não configuram um delito. Um jogador debasquete ou de vôlei pode jogar de porre e encharca-do de beta-bloqueadores (o que só prejudicará o seudesempenho); um atirador ou um jogador de futebol,não. Para esses últimos, o emprego dessas substânciasé vedado em competição.

partir dos anos 1970, os casos de doping pa-recem ter se tornado parte do esporte de

alto nível. Além do escândalo Ben John-son e do affair Balco/THG, Diego Mara-dona protagonizou outro caso rumo-

roso há alguns anos. Na Copa do Mundo de 1994, nosEstados Unidos, o ex-jogador argentino testou positi-vo para efedrina, estimulante muito usado como des-congestionante nasal (e para perder peso). Foi banidoda competição. Anos depois, jogando no time italia-no do Nápoli, traços de cocaína foram encontrados

em sua urina. Mas é falsaa impressão de que oemprego de ajuda ilegalpara melhorar a perfor-mance atlética remonta ameros 30 anos. Na ver-dade, o que começou hápouco mais de três déca-das foi a adoção sistemá-tica de controles anti-doping. Mas recorrer aformas nada esportivasde auxílio para deixarseus oponentes para trásé uma prática tão antigaquanto o homem.

Na China, há quase 5mil anos, chás de ma-chuang, folha com ele-vadas concentrações deefedrina, eram usadaspara estimular os traba-lhadores em suas tarefas.Quer dizer, Maradonaapenas seguiu um discu-tível hábito antigo paramelhorar a performan-ce. Chás de cogumelos epreparados à base de se-mentes de plantas tam-bém eram consumidosna Grécia durante as

primeiras Olimpíadas, séculos antes de Cristo. Porvolta do final do século 19, época em que o esportecomeçava a se organizar em nível internacional, a Eu-ropa produziu uma bebida muito especial, o Vin Ma-riani. Além de suco de uva fermentado, o tônico esti-mulante tinha traços de cocaína e fazia sucesso entrealguns esportistas, em especial os ciclistas. Aliás, aprimeira morte atribuída a doping é a de um corre-dor de bicicleta, o inglês Arthur Linton, em 1886. Eletomou uma overdose de speed ball, uma mistura decocaína com heroína.

O termo doping é derivado da palavra holandesadop, que originalmente designava uma bebida alcoó-lica feita com cascas de uva por guerreiros da tribozulu em busca de mais força e coragem para suas ba-talhas. No início do século 20, seu uso era bem espe-cífico: designar drogas dadas para turbinar a perfor-mance de cavalos de corrida. Com o tempo, dopingvirou sinônino de métodos ilegais ou atalhos quími-cos utilizados para melhorar a performance em qual-quer esporte. Até a década de 1930, a maioria dosatletas que trilhavam esse perigoso caminho usavacompostos à base de álcool, estricnina, heroína ou ca-feína. Mais tarde surgiu outro estimulante muito usa-do por atletas interessados em melhorar seu desem-

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A ex-nadadora Kristin Otto e o ciclista Lance Armstrong:muitas suspeitas de doping,mas nenhuma prova conclusiva

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penho a qualquer custo, a anfetamina. Após a SegundaGuerra Mundial, em cujos campos de batalha a anfe-tamina foi utilizada por soldados e pilotos de avião,entraram em cena dois grupos de compostos usadospor atletas para aumentar a massa muscular: os hor-mônios masculinos, semelhantes à testosterona, e osesteróides anabólicos androgênicos.

Essas substâncias, como a maioria dos compostosque se tornam doping, deveriam ser usadas apenaspara tratar problemas de saúde, mas logo foram pa-rar nas mãos – e no corpo – de musculosos compe-tidores. “Cada avanço da medicina traz coisas boaspara as pessoas e algumas ruins para os esportes,como novas formas de doping”, comenta De Rose. “Éum problema sem solução. Nem 1% dos atletas usaesses meios ilícitos, mas os casos de doping chamammuito a atenção na mídia.” Em 1960, o mundo es-portivo ficou chocado com o óbito de um ciclista di-namarquês em plena Olimpíada de Roma. De novo,a culpa foi do excesso de anfetamina. Em 1964, a úl-tima Olimpíada sem nenhum controle anti-do-ping, os atletas estavam tão musculosos em algu-mas modalidades que a saída foi elaborar, a partirdos jogos seguintes, na Cidade do México (1968),pela primeira vez uma lista de substâncias proibidas,então restritas a estimu-lantes e narcóticos, e afazer testes de urina.

Formas de dopingsangüíneo, por meio detransfusões ou da admi-nistração de substânciasque elevam o númerode hemácias no organis-mo, como a eritropoie-tina (EPO), ganharamusuários nos últimosanos. “Sempre há atletasdispostos a tentar qual-quer forma de doping”,diz Radler. Recorrer àEPO, um jeito ilegal deaumentar a resistênciaem provas longas, podelevar uma pessoa à mor-te: o sangue se torna tãoviscoso que o risco dehaver um derrame ouataque cardíaco aumen-ta consideravelmente.Mais uma vez os corre-dores de bicicletas (sem-pre eles) figuram entreos grandes usuários deEPO. O norte-america-no Lance Armstrong,um dos maiores ciclistas

da atualidade, é suspeito de usar essa forma de do-ping, embora ele não tenha sido pego em nenhumteste até agora. A saída foi, além do teste de urina,adotar exames de sangue. Essa medida entrou em vi-gor a partir do ano 2000, nos jogos de Sydney.

as décadas de 1970 e 1980, alguns paí-ses como a extinta Alemanha Orientalproduziam atletas do sexo femininotão fantásticas, como a nadadora Kris-tin Otto, ganhadora de seis medalhas

de ouro nos jogos de Seul (1988), que as suspeitas dedoping se tornaram uma constante. Em alguns casos,os infratores foram flagrados nos testes, mas issonunca aconteceu com Otto. Ou ela realmente compe-tia sem auxílio ilegal, ou seu doping era sofisticado de-mais para os exames de então. Nos Estados Unidos,onde muita gente gostava de dizer (com razão) que orecurso da química ilegal no esporte era uma políticade Estado dos países comunistas, o escândalo THGtrouxe um série de questões à tona. Uma delas foi a deque as autoridades esportivas locais simplesmente secalavam diante de testes positivos de muitos de seusatletas. Evitavam divulgar o caso e permitiam queseus esportistas disputassem Olimpíadas e campeo-

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Maradona (abaixo à direita) na Copa de 94 e Regina Jacobs neste

ano: efedrina na urina do jogador e THG no teste da corredora

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natos mundiais, onde, na maioria das vezes, passavamincólumes nos testes.

Passar num exame anti-doping não quer dizer ne-cessariamente que o atleta esteja limpo, que compitasem aditivos ilegais. Talvez o mais correto seja dizerque ele não usa nenhum produto ilegal cuja presençapode ser determinada com exatidão num laboratório.Alguns compostos, como o hGH, embora proibidos,não são flagrados nos testes. “Ainda não existe umexame para detectá-lo”, admite De Rose. E pegar a eri-tropoietina, apesar de possível, não é fácil. Seu pesomolecular é muito elevado e a maior parte dos espec-tômetros de massa não consegue separá-la em meioaos compostos da urina. Um timing perfeito tambémpode limpar a barra de um atleta que usa drogas proi-bidas. Ele pára de usar o composto ilegal dias ou se-manas antes de uma competição importante, ondevai haver testes de urina ou sangue. Dessa forma, temgrandes chances de não ser apanhado nos exames.Para minorar esses problemas, os esportistas de elitepodem hoje ser obrigados a fazer testes fora de com-petições, a qualquer hora, sem aviso prévio, até mes-mo em casa. “Avise os atletas que eles vão ter de fazerum teste com mais de 24 horas de antecedência e elesvão providenciar uma amostra, mas na qual você não

consegue detectar nada (de ilegal)”, afir-ma Casey Wade, diretor da AMA. Por-tanto, algumas portas do doping estãosemi-abertas para competidores dispos-tos a correr os riscos.

a era da clonagem e dostransgênicos, as autori-dades médico-esportivastentam ser pró-ativas e seantecipar a futuras ten-

dências em sua área de atuação. Nin-guém dúvida de que, em poucos anos,apareçam os primeiros atletas genetica-mente modificados, os X-Men dos es-portes, parafraseando o título de um filmede sucesso. No início do ano, pesquisa-dores da Universidade da Pensilvânia,Estados Unidos, aumentaram em 30% aquantidade de músculos em rato pormeio de uma alteração em um gene. É otipo de notícia que causa comichão e abre,digamos, perspectivas para certos atletase laboratórios como a Balco. Apesar deser um problema para o futuro próximo(ninguém deve estar manipulando genescom essa finalidade), o doping genéticojá está proibido. Mas, mais uma vez, ain-da não há forma de detectá-lo nos testesde urina e sangue hoje aplicados nosatletas olímpicos.

Numa posição com certeza polêmi-ca, alguns pesquisadores não consideram a manipu-lação genética uma forma de doping. “Não se trata dedefender simplesmente o seu uso nos meios esporti-vos”, explica Andy Miah, da Universidade de Paisley,na Escócia, autor do livro Genetically modified athle-tes. “Minha posição se baseia em uma noção maisampla do que é o ser humano, mais abrangente doque a admitida hoje no esporte.” O combate ao do-ping, por exemplo, é baseado na idéia do atleta natu-ral, do esportista que atinge a excelência por meio deesforços estritamente caracterizados como humanos.Miah acredita que a relação homem-tecnologia émais complexa do que essa noção. “Aceitar a modifi-cação genética é reconhecer que pode haver maneirasmais amplas de ser humano. Criminalizar possíveisalterações em genes, assemelhando-as ao doping, im-plica aceitar que todos concordamos sobre o papel dagenética. E isso não é verdade. A grande controvérsiasobre a validade da clonagem humana mostra queisso não é exatamente verdade.” Para o pesquisador,acolher os X-Men nos esportes poderia inclusive aju-dar a combater o doping por meio da administraçãode substâncias proibidas. Seria ainda uma maneira delevar os atletas a novos patamares de excelência e demanter o interesse pelo jogo. Será? •

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ESTIMULANTESAtuam no sistema nervoso e dei-xam corpo e mente alertas e acele-rados. Os estimulantes (anfetamina,cocaína, ecstasy) despistam o cansa-ço, aumentam a agressividade e po-dem melhorar o rendimento.

NARCÓTICOSTiram a sensação de dor dos atletas.Podem também provocar sensaçãode euforia, dando um empurrão pa-ra os competidores. Exemplos clás-sicos são morfina e heroína.

CANABINÓIDESNão há ganhos claros de perfor-mance associados a essas drogas(haxixe e maconha). Ao contrário.Provocam perda de concentração ecoordenação motora.

AGENTES ANABÓLICOSPromovem ganho de peso e mús-culos. Quando usados em mulhe-res, deixam-nas mais “masculinas”.São divididos em subcategorias.

� Esteróides anabólicos androgênicos exógenos

Não são produzidos naturalmenteno corpo humano. Sua presença

num teste de controle, indepen-dentemente da quantidade en-contrada, configura doping. Algu-mas substâncias incluídas nessegrupo: nandrolona, estalonozol eTHG (tetrahidrogestrinona).

� Esteróides anabólicos androgênicos endógenos

São substâncias, como testostero-na, androstenodiol e androsteno-diona, que são fabricadas pelo or-ganismo humano. O doping se ca-racteriza quando os testes flagramessas substâncias em níveis acimados naturalmente sintetizados pelohomem.

� Esteróides não-androgênicos

Duas drogas, clembuterol e zera-nol, são proibidas.

HORMÔNIOS PEPTÍDICOSEnglobam seis tipos de substân-cia, que, de acordo com o com-posto, podem resultar em diferen-tes tipos de ganho.

� Eritropoietina (EPO)

Estimula a produção de glóbulosvermelhos na medula óssea, au-mentando a quantidade de oxigê-

nio transportado aos tecidos mus-culares. Os rins fabricam natural-mente a EPO, mas a administraçãode doses extras de eritropoietina re-combinante aumenta a resistênciade esportistas em provas longas queexigem grande esforço aeróbico(alto consumo de oxigênio).

� Hormônio do crescimento humano (hGH) e Fator de crescimento semelhante à insulina (IGF-1)

Reduz o acúmulo de gordura, esti-mula a síntese de proteínas e eleva aporcentagem de massa corporalmagra. O IGF-1, cuja produção éinduzida pelo hGH, tem efeitos se-melhantes.

� Gonadotrofina coriônica humana (hCG)

Uso proibido em atletas homens.Eleva a produção natural de este-róides androgênicos, como a testos-terona, aumentando a massa mus-cular dos atletas.

� Gonadotrofinas sintéticas ou da pituitária, como o hormônio luteinizante (LH)

Proibidas apenas em atletas de sexo

O arsenal proibidoem AtenasDurante a Olimpíada,o uso de algumas substânciase de métodos considerados como dopingé proibido ou limitado

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AGENTES MASCARANTES

Algumas substâncias, como os diu-réticos (acetazolamida, amilorida,furosemida), são proibidas porqueaceleram a eliminação da urina.Também é interditado o uso de blo-queadores de excreção (probeneci-da) e expansores de plasma (dextra-na, albumina).

GLICOCORTICOSTERÓIDES

A administração via oral, retal, in-tramuscular ou endovenosa dessesantiinflamatórios (cortisona, dexa-metasona) é vedada. O doping sónão se configura se os glicocorticos-teróides forem administrados poroutras vias.

ÁLCOOL

Alguns esportes – futebol, boliche,bilhar, automobilismo, esqui, luta emotociclismo – exigem que seus es-portistas compitam 100% sóbrios.Nesse caso, qualquer quantidade deálcool configura doping. Outras mo-dalidades toleram diferentes concen-trações da substância. É o caso dotriatlo, caratê, esportes aeronáuticos,pentatlo moderno, arco-e-flecha, gi-nástica e patinacão. Os demais es-portes proíbem o uso de álcool.

BETA-BLOQUEADORESAo diminuir o ritmo dos batimen-tos cardíacos de um atleta, aumen-tam a sua concentração e reduzem atremedeira. Apenas as seguintes mo-dalidades vedam sua utilização: es-portes aeronáuticos, arco-e-flecha,automobilismo, bilhar, bobsleigh,boliche, boliche de 9 pinos, bridge,curling, esqui, futebol, ginástica,luta, motociclismo, saltos ornamen-tais e nado sincronizado, pentatlomoderno, tiro, vela (para os timo-neiros) e xadrez.

DIURÉTICOSSão proibidos em todos os esportes.Mas algumas modalidades em quehá disputas por categoria de peso ouem que a perda de peso turbina aperformance não aceitam nem mes-mo que seus atletas requeiram isen-ção de uso terapêutico para diuréti-cos. Tal restrição se aplica para o fi-siculturismo, boxe, salto com esqui,judô, caratê, levantamento de peso,luta, powerlifting, remo (peso ligei-ro), tae-kwon-do e wushu.

AUMENTO DE CARREADORESDE OXIGÊNIOÉ vedado tomar transfusões de san-gue, exceto em caso de tratamentomédico justificável, e usar produtosque aumentam a captação, o trans-porte ou o aporte de oxigênio, comoas eritropoietinas.

MANIPULAÇÃO DA URINANão podem ser usados métodos ousubstâncias que tenham como ob-jetivo alterar ou invalidar as carac-terísticas originais do xixi de umatleta, matéria-prima para o exameanti-doping, e assim encobrir algu-ma ajuda ilícita.

DOPING GENÉTICODefinido como o uso sem fins te-rapêuticos de genes, elementos ge-néticos ou células, como as células-tronco, que tenham a capacidadede aumentar o rendimento físicodo atleta.

masculino. Têm ação semelhante àda gonadotrofina coriônica humana.

� Insulina

Tem efeito anabolizante, especial-mente se usada com esteróides. Ape-nas atletas diabéticos, quando solici-tarem a devida autorização, podemtomá-la.

� Corticotrofinas

Antiinflamatórios com efeito seme-lhante ao de corticóides usados porvia oral, intramuscular ou injetável.Acima de determinados níveis, suapresença vira doping.

BETA-2 AGONISTASSubstâncias, como salbutamol e ter-butalina, que funcionam como esti-mulantes e, em doses muito altas,como anabolizantes.

AGENTES COM ATIVIDADEANTIESTROGÊNICAInibem o metabolismo da testoste-rona na tentativa de elevar sua con-centração no organismo. Proibidosapenas em atletas do sexo masculi-no. Exemplos dessas substâncias: clo-mifeno, tamoxifeno e inibidores dearomatase.

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as ciências não faltam fórmulas. Nafísica, química ou biologia, para ficarem três áreas tradicionais do conhe-cimento, há uma série de equações ecálculos que fornecem respostas às

mais variadas questões. Nada mais lógico pensar quetambém haja um método, ou vários, para detectarprecocemente jovens atletas com altíssimo potencialem meio à anônima população de esportistas. Algocomo um conjunto de regras, procedimentos e medi-ções de desempenho que, diante de dois garotos de 14anos com desempenho semelhante numa modalida-de atlética, permita prever qual deles tem mais chan-ces de ser um talento de porte internacional em suavida adulta. Sim, as fórmulas para encontrar candida-tos a futuros campeões existem (seria um exageropositivista dizer futuros campeões) e uma delas, a es-tratégia Z, reconhecida internacionalmente, foi con-cebida aqui mesmo, no Brasil. O modelo é uma cria-ção relativamente antiga, e ainda pouco conhecida, depesquisadores brasileiros do Centro de Estudos doLaboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul(Celafiscs), no ABC paulista, e em especial de seuidealizador, o médico Victor Matsudo.

Em 1992, em Barcelona, a estratégia Z ganhou oprêmio de melhor trabalho científico apresentado naOlimpíada Cultural, tradicional evento que sempre serealiza a cada quatro anos às vésperas dos jogos, na

mesma cidade-sede das competições esportivas. Foi,digamos, o primeiro ouro do Brasil em solo catalão.Desde então a equipe de Matsudo tem usado – menosdo que gostaria, é verdade – e aperfeiçoado a estraté-gia Z. “Procurar talentos para o esporte de alto nívelnão é e não pode ser prioridade para nenhum país.Isso é algo muito pequeno perto de questões mais im-portantes como incentivar a prática da atividade físi-ca moderada para melhorar a saúde de uma popula-ção”, afirma o especialista em medicina desportiva.“Mas as pessoas, os técnicos e os esportistas precisamsaber que há normas para encontrar talentos.” E paraMatsudo a estratégia Z, embora imperfeita e com li-mitações, é um bom modelo para perseguir esse ob-jetivo. Tanto que Cuba, uma potência olímpica, usasistematicamente métodos semelhantes para encon-trar talentos esportivos.

A lógica da estratégia é simples: medir com obje-tividade o quão melhor ou pior um esportista desem-penha uma tarefa, como correr ou saltar, do que o ci-dadão comum. Primeiro os pesquisadores realizamuma bateria de testes e exames no candidato a futurofenômeno esportivo, geralmente um menino ou me-nina entre 8 e 18 anos. Medem uma série de variáveis,como peso, altura, quantidade de gordura, potênciasaeróbia (parâmetro de resistência) e anaeróbia (indi-cador de explosão, força), velocidade, agilidade, im-pulsões vertical e horizontal. Em seguida, confrontam

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PERFORMANCE

Fórmula de campeãoInventada no Brasil,a estratégia Z ajuda a garimpar talentos do esporte

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A ex-jogadora de basqueteHortência: força deperna incomparável

os resultados do possível talento com odesempenho médio apresentado poruma população de mesmo sexo e idade.Dessa comparação, nasce o perfil Z dojovem em questão, composto por umconjunto de índices, cada um deles re-ferente a uma variável analisada.

garota ou garoto ganha umíndice Z para sua impul-

são vertical (indicador dequanto ele salta a mais oua menos do que o padrão

dos meninos de sua faixa etária), outropara sua velocidade e assim por diante.“É preciso saber o que é normal para seter uma idéia do que é fora de série”,afirma Matsudo. Após anos de traba-lho, a equipe do Celafiscs acumulouinformações sobre o desempenho de5.200 jovens em idade escolar de SãoCaetano, que servem como grupo decontrole, e de 3 mil esportistas de váriasmodalidades. Se os números do pos-sível talento forem muito melhores doque os do grupo usado como controle,sobretudo em itens de fundamental im-portância para a prática em alto nívelde um esporte, pode-se estar diante deum garoto com potencial para se tor-nar um futuro campeão se devidamen-te trabalhado para tal.

Para cada variável, um índice Z éexpresso em números, em geral de 0 a6. Os números podem ser positivos, sea performance do candidato for acimada média num quesito, ou negativos, seficar abaixo. Como são calculados osíndices? A fórmula é sempre a mesma.Para chegar ao Z de um esportistanuma variável, como impulsão vertical,são necessárias duas operações mate-máticas. Primeiro os pesquisadores pe-gam o quanto uma pessoa salta e dessevalor subtraem o quanto pula a médiada população de mesma faixa etária esexo. Em seguida o resultado dessa sub-tração é dividido pelo desvio padrãorelativo a essa variável apresentado poressa população. Um exemplo ajuda a

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visualizar a fórmula. Se um meninosalta 30 centímetros e a média dosgarotos dessa idade pula 27 centí-metros, sendo o desvio padrão paraessa variável igual a 3 centímetros, oseu Z para impulsão vertical será 1.Esse é o resultado de 30 - 27 dividi-do por 3. Se, em vez de 30 centíme-tros, o garoto saltar apenas 24, o seuZ para esse quesito é negativo, demenos 1. Nesse caso, a conta é 24 -27 dividido por 3.

alvez o maior desafiode quem usa a estraté-gia Z não seja obteríndices confiáveis, masinterpretá-los de forma

correta. Para ter chances de se tornarum campeão um garoto precisa deíndices Z de que magnitude? Ummenino com Z1 para a variável velo-cidade e Z2 para o quesito força depernas apresenta, respectivamente,um desvio padrão acima da médiapara o primeiro parâmetro e doispara o segundo. Em termos estatísti-cos, o Z1 significa que a criança cor-re mais rápido do que 84,13% doscolegas de sua idade. O Z2 quer dizer que suas pernassão mais fortes do que 99% dos colegas da mesma fai-xa etária (mas 1% dos garotos são ainda mais poten-tes). Em outras palavras, ele é um pouco rápido ebem forte de pernas, sem ser excepcional. Se o sonhodo menino é ser corredor dos 100 metros, prova emque essas duas variáveis são decisivas, suas chances desucesso são quase nulas. Ele vai deixar muita gentepara trás na corrida, é verdade, mas dificilmente seráo vencedor. Os talentos regionais ou nacionais têm aomenos índices Z de ordem 3. Os campeões interna-cionais chegam a índices bem mais elevados em cer-tas variáveis. “Quem tem um Z6 não é da nossa espé-cie”, diz, em tom de brincadeira, Matsudo. Mas nuncase deve olhar apenas para um índice. É preciso enca-rar o conjunto de números, com ênfase nos mais im-portantes para cada modalidade.

Um dos primeiros atletas em que foram usados osconceitos, ainda incipientes, da estratégia Z foi a ex-jogadora de basquete Hortência. Fenômeno das qua-dras, ela começou sua carreira, ainda menina, em SãoCaetano na década de 1970. Em três itens fundamen-tais para a prática desse esporte (agilidade, velocidadee impulsão vertical) Hortência apresentava, aos 21anos, índices Z de, respectivamente, 3,5, 4,3 e 8,3.“Aos 13, ela já tinha números semelhantes”, lembraMatsudo, que acompanhou de perto os primeirosanos da carreira da jovem Hortência. Os fãs do espor-

te ainda devem se recordar de que a brasileira, qualum Michael Jordan, era a única jogadora que quaseparava no ar ao dar um arremesso. Sua força de per-na era impressionante. Ela tinha, no entanto, umponto fraco. Cansava relativamente fácil. Sua potên-cia aeróbia – capacidade de produzir energia a partirdo oxigênio respirado – não era excepcional. Nessequesito, seu índice Z era 2. Na Seleção Brasileira, essadeficiência era compensada pela presença de Paula,jogadora quase tão excepcional quanto Hortência, sóque com características diferentes. Paula era o motordo time. “Sua potência aeróbia absoluta era superiora 7”, afirma Matsudo.

Maturidade sexual - Prever se um campeão mirimou infantil repetirá seus feitos na fase adulta é umadas questões mais angustiantes para um programa decaça-talentos esportivos. Obviamente não há comoprognosticar isso com 100% de certeza. Mas a ciênciafornece algumas pistas. Uma delas é observar a matu-ridade sexual do atleta em formação, que se caracte-riza pela maior presença de pêlos em seus órgãos ge-nitais. Às vezes, dois jovens, de mesma idade, têmdesempenhos esportivos semelhantes (com índices Zidênticos) e, pressionado para selecionar apenas umdeles, o treinador escolhe o que apresenta resultadosligeiramente melhores. A opção pode ser um erro seo escolhido já estiver maduro sexualmente. Motivo:

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PERFORMANCE

Cubano Javier Sottomayor: a ilha procuracampeões de forma sistemática

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jovens maduros sexualmente estão mais próximos deter atingido o ápice de seu desempenho esportivo.Não têm muito espaço para melhorar, ao contráriodos menos desenvolvidos sexualmente. “É precisocorrigir a idade biológica por meio da observação damaturidade sexual dos jovens esportistas”, afirma opesquisador Timóteo Araújo, do Celafiscs.

rofessores de educação física e técnicos co-metem, às vezes, um clássico engano nahora de garimpar futuros campeões. Elesignoram ou se esquecem de que nem to-das as características ou habilidades de

um atleta surgem de uma só vez, num único instante,como num passe de mágica. Algumas variáveis são deamadurecimento precoce, como agilidade e velocida-de. Aos 14 anos, um menino ou uma menina correcom uma rapidez equivalente a cerca de 90% de seudesempenho na fase adulta. Sua agilidade também éapenas 10% menor do que será quando atingir os 18anos. Portanto, salvo algum imprevisto, quem é mui-to veloz e hábil na infância também será quando vi-rar gente grande – se for devidamente treinado. Ta-lentos baseados na velocidade e agilidade, como umleve e lépido atacante driblador do futebol, um Robi-nho, do Santos, ganham os holofotes logo cedo. Jáquem depende de muita força física pode despontarsó mais tarde. A potência muscular é uma variável de

amadurecimento tardio. “Essas peculiaridades de ca-da variável têm de ser levadas em conta no momen-to de analisar a performance de um garoto”, afirmaMatsudo.

E isso não é tudo. Sabe-se hoje que, devido a par-ticularidades genéticas, algumas pessoas respondemmenos ou mais tardiamente ao treinamento físico (ea determinadas dietas alimentares) do que outras. Éum processo semelhante ao que faz alguns remédiosfuncionarem adequadamente em alguns indivíduos eserem totalmente inócuos em outros. Determinadasalterações em genes ligados ao sistema sangüíneoHLA podem determinar entre 15% e 25% da preco-cidade ou não da resposta às influências do ambien-te, que, no caso, se trata da atividade física. Trabalhosdo pesquisador canadense Claude Bouchard com pa-res de gêmeos univitelinos (monozigóticos) forne-cem outro tipo de dado sobre o efeito da genética naperformance atlética. Estudos com gêmeos univiteli-nos (homozigóticos) sugerem que, nos homens, aporção de DNA presente na mitocôndria – organelacuja principal função é gerar energia – também é de-terminante em sua maior ou menor sensibilidade aotreinamento. Como o DNA mitocondrial é herdadoapenas da mãe, o peso do material genético vindo dopai seria pequeno nesse quesito. “Por isso costumobrincar que filho de ‘peixa’, peixinho é”, afirma Mat-sudo. “E não que filho peixe, peixinho é.” •

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Jovens em jogo aquático: Brasil não busca talentos infantis com rigor científico

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e devidamente praticado, esporte não é sósaúde e lazer. Produz também história eciência, gera riquezas e empregos, com re-percussões em diversos campos da vida na-cional. De 1996 a 2000, as atividades econô-

micas ligadas a essa área cresceram cinco vezes e meiaa mais do que Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil– 12,34% ante 2,25%. Em 1999, uma projeção daFundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro in-dicava que o esporte respondia por 1,7% do PIB na-cional, algo como US$ 12 bilhões. Estima-se que aquias atividades físicas, com ou sem fins competitivos,gerem um milhão e meio de postos de trabalho diretose indiretos, mais do que a indústria têxtil. Em 2003,ainda segundo dados da FGV, só de empregos diretoseram 963 mil, sobretudo em campos e instalaçõespara a prática de futebol, academias, centros hípicose náuticos, clubes esportivos, autódromos. Isso semcontar os pesquisadores e professores que tocam 43laboratórios cujo tema central ou auxiliar é a ativida-de física. São centros que estudam a fisiologia ou a bi-omecânica (movimentos) do exercício, benefícios econtusões do esporte, entre outros aspectos.

Essas informações e muitas outras – de caráterhistórico, econômico, científico ou social – constamdo Atlas do esporte no Brasil, projeto que, com o auxí-lio de quase quatrocentos voluntários, garimpou da-dos de diversas fontes para traçar um panorama dasatividades físicas em território nacional. “Estamoslançando o atlas em CD-ROM e em setembro na for-ma de um livro”, diz o professor de educação física La-martine Pereira da Costa, da Universidade Gama Filho(UGF), do Rio de Janeiro, coordenador da iniciativa,que montou um consórcio de onze entidades para via-

bilizar a empreitada. “O atlas é um trabalho hercúleoque mostra de onde viemos e para onde devemos ir”,afirma o velejador e secretário da Juventude, Esporte eLazer do Estado de São Paulo, Lars Grael, que escre-veu um dos capítulos do projeto. “Servirá de basepara o desenvolvimento da indústria do esporte e aformulação de políticas para o setor.”

Para Costa, que tem doutorado em filosofia, a in-dústria do movimento pode crescer mais ainda noBrasil. “No mundo desenvolvido, as atividades físicasrespondem por 2% a 2,5% do PIB e empregam emmédia 2% da mão-de-obra. Na Alemanha, por exem-plo, a indústria do esporte é maior que a petroquími-ca”, afirma o pesquisador da UGF. Costa diz que o Bra-sil é o quarto ou quinto do mundo nesta indústria,mesmo sem ter uma política para o desenvolvimentodo setor: “Foi o mercado e a própria sociedade que acriaram. No esporte, os indivíduos financiam, as pes-soas pagam para fazer atividades físicas. O governo sótem que desobstruir caminhos. Pode ajustar o que jáexiste e funciona”.

Segundo o atlas, quase todo mundo que praticaalguma atividade física ou esporte, ou seja, mais da

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RADIOGRAFIA

Aindústria domovimentoAtlas mostra o peso econômicoe social das atividades físicas e recupera a memória do esporte no Brasil

SRENÉE CASTELO BRANCO

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e devidamente praticado, esporte não é sósaúde e lazer. Produz também história eciência, gera riquezas e empregos, com re-percussões em diversos campos da vida na-cional. De 1996 a 2000, as atividades econô-

micas ligadas a essa área cresceram cinco vezes e meiaa mais do que Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil– 12,34% ante 2,25%. Em 1999, uma projeção daFundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro in-dicava que o esporte respondia por 1,7% do PIB na-cional, algo como US$ 12 bilhões. Estima-se que aquias atividades físicas, com ou sem fins competitivos,gerem um milhão e meio de postos de trabalho diretose indiretos, mais do que a indústria têxtil. Em 2003,ainda segundo dados da FGV, só de empregos diretoseram 963 mil, sobretudo em campos e instalaçõespara a prática de futebol, academias, centros hípicose náuticos, clubes esportivos, autódromos. Isso semcontar os pesquisadores e professores que tocam 43laboratórios cujo tema central ou auxiliar é a ativida-de física. São centros que estudam a fisiologia ou a bi-omecânica (movimentos) do exercício, benefícios econtusões do esporte, entre outros aspectos.

Essas informações e muitas outras – de caráterhistórico, econômico, científico ou social – constamdo Atlas do esporte no Brasil, projeto que, com o auxí-lio de quase quatrocentos voluntários, garimpou da-dos de diversas fontes para traçar um panorama dasatividades físicas em território nacional. “Estamoslançando o atlas em CD-ROM e em setembro na for-ma de um livro”, diz o professor de educação física La-martine Pereira da Costa, da Universidade Gama Filho(UGF), do Rio de Janeiro, coordenador da iniciativa,que montou um consórcio de onze entidades para via-

bilizar a empreitada. “O atlas é um trabalho hercúleoque mostra de onde viemos e para onde devemos ir”,afirma o velejador e secretário da Juventude, Esporte eLazer do Estado de São Paulo, Lars Grael, que escre-veu um dos capítulos do projeto. “Servirá de basepara o desenvolvimento da indústria do esporte e aformulação de políticas para o setor.”

Para Costa, que tem doutorado em filosofia, a in-dústria do movimento pode crescer mais ainda noBrasil. “No mundo desenvolvido, as atividades físicasrespondem por 2% a 2,5% do PIB e empregam emmédia 2% da mão-de-obra. Na Alemanha, por exem-plo, a indústria do esporte é maior que a petroquími-ca”, afirma o pesquisador da UGF. Costa diz que o Bra-sil é o quarto ou quinto do mundo nesta indústria,mesmo sem ter uma política para o desenvolvimentodo setor: “Foi o mercado e a própria sociedade que acriaram. No esporte, os indivíduos financiam, as pes-soas pagam para fazer atividades físicas. O governo sótem que desobstruir caminhos. Pode ajustar o que jáexiste e funciona”.

Segundo o atlas, quase todo mundo que praticaalguma atividade física ou esporte, ou seja, mais da

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Aindústria domovimentoAtlas mostra o peso econômicoe social das atividades físicas e recupera a memória do esporte no Brasil

SRENÉE CASTELO BRANCO

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oportunidades no setor de esportes de praia, sobretu-do no Nordeste, mas faltam dados sobre esse ramo deatividade física. Essa é uma das lacunas registradaspelo atlas, que, entre outros objetivos, tem o de apon-tar o que falta no setor. Há ainda pólos importantesde esportes considerados de elite, mas que geram mui-tos empregos, como hipismo e golfe, muito procura-do pelo capital estrangeiro.

Alguns dos dados do atlas foram levantados pelaequipe de voluntários (professores, dirigentes), ou-tros são reproduzidos de fontes secundárias, comoFGV, Instituto Nacional do Câncer (Inca) e entidadesde classe. “Por isso, muitas vezes as informações nãosão comparáveis entre si”, explica Costa. Elas, no en-tanto, servem para dar uma boa idéia das atividadesdo setor. O projeto é um mapeamento, não um censo.Buscou a memória do esporte, e não a história, algomuito mais sistemático. Cada voluntário (ou equipe)escreveu um capítulo, seguindo os padrões do ma-peamento. Em suas quase 900 páginas, o atlas privile-gia as informações sobre esportes olímpicos. Mas tra-ta também dos não-olímpicos, dos esportes radicais(que crescem muito), dos tradicionais de algumas re-

ESPECIAL ESPORTE E CIÊNCIA � PESQUISA FAPESP � AGOSTO / SETEMBRO DE 2004 � 47

metade da população brasileira, o faz ocasionalmen-te. Isso inclui pessoas que vão a pé ou de bicicletapara o trabalho ou se dedicam regularmente a tarefasdomésticas. A atividade física com mais praticantesocasionais é a pesca, com 25 milhões de indivíduosque, vez ou outra, jogam o anzol para pegar um pei-xe (o futebol vem em segundo lugar, com 23 milhõesde praticantes). Já as pessoas que, pelo menos umavez por semana, praticam regularmente um esporte,fazem ginástica ou caminhadas com o propósito de seexercitar não chegam a 11 milhões. E apenas 749 milpodem ser consideradas muito ativas: freqüentam aca-demias de ginástica ou praticam algum esporte decompetição duas ou mais vezes por semana. A classi-ficação da atividade física adotada pelo atlas seguiuparâmetros internacionais.

Há 20 mil academias de ginástica no Brasil, ape-nas os Estados Unidos têm mais estabelecimentosdesse tipo, embora 13,2% dos norte-americanos fre-qüentem ginásios e aqui só 2%. Segundo Costa, exis-tem boas perspectivas para os negócios do esporte li-gados ao turismo, uma tendência mundial. Há umpólo de turismo no Pantanal, ligado à pesca, muitas

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Esportistas na USP:atividades físicas respondempor 1,7% do PIB

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giões (como rodeio, peteca ecapoeira). E de esportes deraízes, como os jogos indí-genas, e até de brincadeirasinfantis. Ao todo, o atlas co-bre 21 itens, enfocando ain-da os Sistemas EsportivosNacionais, como os do Sesi,da Associação Cristã de Mo-ços e outros, e o tema ciên-cias do esporte.

ó para e ter umaidéia da atual pu-jança do setor, nocomeço do séculopassado nem se-

quer havia uma faculdade deeducação física no país. Aprimeira foi criada na décadade 1930. Era uma escola deeducação física, que depoisfoi incorporada pela Uni-versidade de São Paulo, fun-dada em 1934. Hoje são 397cursos em 279 faculdades,quantidade só superada nosEstados Unidos. Os primei-ros professores dos cursosde educação física foram for-mados na Alemanha. Eramfilhos de imigrantes, que iamestudar no país de origem de seus pais e em geral vi-viam em cidades brasileiras portuárias. Tais regiõesformaram pólos (clusters) esportivos. Muitos sobrevi-vem até hoje. Os mais importantes brotaram na re-giões Norte e Nordeste (em Belém, Manaus e SãoLuís) – e no Sudeste (no Rio de Janeiro e Santos).

Um deles, o mais antigo, o Turnen, no Rio Gran-de do Sul, que deu origem ao atual Sogipa, tem umahistória singular. Formou-se ao longo de um rio, aliáscomo aconteceu anos depois com o pólo do rio Tie-tê, em São Paulo. Os alemães ocuparam o territóriogaúcho com clubes na beira de rios e os italianos nasmontanhas e nas cidades. A primeira piscina do Brasilfoi construída em 1885 nas margens do rio Guaíba,em Porto Alegre. Os clubes alemães em geral estavamassociados a centros culturais, a escolas e a igrejas fre-qüentadas pela comunidade, católica e protestante.Isso gerou uma atividade econômica dinâmica, comfábricas de material para ginástica. Até o começo doséculo 20, o Rio Grande do Sul era muito forte no es-porte. Esses clubes apoiaram-se inicialmente no Mo-vimento Turnen, que preservava a identidade étnicados alemães. Por isso, no começo da Segunda GuerraMundial, quando Getúlio Vargas optou por apoiar osAliados, os clubes gaúchos foram fechados.

As guerras mundiais também afetaram o pólo deNiterói, onde a difusão de clubes esportivos foi in-fluenciada pela rivalidade entre ingleses e alemães nosanos dos conflitos bélicos. A cidade fluminense, umgrande centro de esportes, acabou gerando um pólodentro do pólo: a vela, modalidade esportiva que, aolado do atletismo, garante muitas medalhas olímpi-cas ao Brasil. De acordo com o atlas, quase todas asmedalhas dessa modalidade foram conquistadas pordescendentes de alemães: seis do Rio Iate Clube deNiterói, uma do Iate Club do Rio de Janeiro e cinco doIate Club Santo Amaro, na represa Guarapiranga,em São Paulo. O velejador paulista Robert Scheidt,que tem um ouro e uma prata em Olimpíadas, é umdesses campeões de origem germânica. A história doiatismo no Brasil começou em Niterói, perto doNatal de 1895, quando o Clube de Regatas Gragoatápromoveu regatas de remo e vela. Anos depois foicriado o que talvez tenha sido o clube de vela maisantigo do país: o Iate Clube Brasileiro, formado porsócios brasileiros, ingleses e alemães. Quando come-çou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, os inglesesse retiraram e criaram outro clube nas redondezas,o Rio Iate Clube. O Iate Clube Brasileiro foi um pio-neiro. Editou uma revista de vela, criou o protótipo

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Beira do rio Guaíba, emPorto Alegre, em 1885:clube alemão monta a primeira piscina do Brasil

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do veleiro Guanabara e ainda inventou um modelode mastro que, segundo apurou o atlas, acabou sendoadotado em outras partes do mundo.

Um dos clusters esportivos mais importantes cria-dos a partir da imigração européia no século 19 – odo rio Tietê, na cidade de São Paulo – não foi derro-tado pelas guerras nem por uma revolução, mas per-deu a sua pujança devido à deterioração do meioambiente depois dos anos 1940. A saga do pólo co-meça em 1889, ano da proclamação da República,quando o Clube Espéria, fundado por italianos, seinstala às margens do Tietê, numa região então arbo-rizada, conhecida como Chácara da Floresta. Empoucos anos, 11 clubes se instalaram nas redonde-zas e desenvolveram um dinâmico centro de nata-ção e remo. Com a crescente poluição do rio, mui-tos clubes migraram para outras áreas da cidade. OGermânia, atual Pinheiros, foi, por exemplo, paraperto de outro rio, o Pinheiros, numa zona mais no-bre. A natação também se expandiu para clubes dointerior de São Paulo, onde até hoje é forte. A Fede-ração Paulista de Natação, criada no auge do pólo doTietê, tem atualmente 150 clubes filiados e abriga75% dos nadadores que defendem o Brasil em com-petições internacionais. •

ESPECIAL ESPORTE E CIÊNCIA � PESQUISA FAPESP � AGOSTO / SETEMBRO DE 2004 � 49

Robert Scheidt e laboratório da USP:presença germânica na vela nacionale 43 centros de pesquisa do esporteem universidades brasileiras

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50 � AGOSTO / SETEMBRO DE 2004 � PESQUISA FAPESP � ESPECIAL ESPORTE E CIÊNCIA

ATLETAS

Fernando SchererNatação

André DomingosAtletismo

Daniele HipolitoGinástica Hugo Hoyama

Tênis de mesa

Carolina e Isabela de Moraes Nado sincronizado

Vania IshiJudô

Jadel GregórioAtletismo

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