Enquanto a Noite Nao Chega - Josue Guimaraes

5/22/2018 Enquanto a Noite Nao Chega - Josue Guimaraes

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Calam mais alto, mais fundoas pequenas alegrias...E o po dos ltimos dias

j um po do outro mundo!

MRIO QUINTANA

Canes


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1. Adroaldo

A velha suspirou: Se o Adroaldo fosse vivo, hoje estaria fazendo sessenta e oito anos.O marido corrigiu sem pressa:

Sessenta e sete, minha velha. Ele nasceu em 1911, numa quarta-feira. Eraum feriado qualquer, eu no consigo me lembrar bem que feriado, mas era diade ningum trabalhar.

Dirigiu-se cmoda onde estava o retrato do filho, em spia, descolorido,arranhado. Era um jovem revolucionrio de 30, entre dois companheiros, tendoao fundo as grandes rodas inteirias de uma locomotiva maria-fumaa. Os trsriam descontrados. Ao p deles um co branco com manchas escuras dormia,enrodilhado. O velho passou os dedos engelhados pela foto.

O nosso Adroaldo foi s o que pde dizer. Te lembras de como a gente recebeu a notcia da morte do menino, na

Revoluo de 30, quando o batalho dele andava pelos lados de Itarar? ela fezuma pausa. Itarar fica para os lados de So Paulo, no ?

Fica confirmou o velho depois de retornar cadeira de balano forradacom um velho pelego descolorido pelo tempo.

Perguntou se ainda tinham o suficiente para o mate de todos os dias; nocustava nada fazer uma espera na estrada, em geral deserta, na tentativa deencontrar um viajante qualquer e pedir que arranjasse um pouco de erva ou quea m andasse por um outro que viesse de torna-viagem. S um pouco de erva. Avelhinha foi at o armrio de portas envidraadas, torceu a chave e tirou l de

dentro uma grande lata quadrada. Depois de calcular a quantidade pelo peso,recolocou-a no lugar e fechou novam ente a porta. Tem menos de um quilo. Economizando bem a gente ainda tem erva para duas semanas.A velhinha retornou ao croch de l preta que desenrolava de um grande

novelo, engaiolado numa cesta de largas tiras de vime, e que resultara nodesfazimento de um velho pulover. No incio do vero ela transformava o

pulver em novelo de l, e, mal o outono chegava a m eio, as suas mos lentasrecomeavam a tecer com pacincia. Ento ela disse:

Pena que a gente no possa fazer com a erva o que se faz com a l. Se pode disse ele sem olhar para a m ulher. O meu falecido pai, na

Revoluo de 93, junto com mais trs companheiros, tomou mate durante umms inteiro s com um quilo de erva. Depois do chimarro a erva era colocadanum papel e ficava exposta ao sol at ficar bem sequinha. No dia seguinte

bastava misturar nela um pouco de erva nova para que o mate corresse a roda. Um ms com um quilo de erva! exclamou a velhinha, incrdula. E mais duraria se o inimigo no encontrasse os trs no esconderijo e no

tivesse passado pelas armas os dois amigos do meu pai. S pouparam o velho,porque um dos irm os dele era capito dos maragatos, portanto merecia

misericrdia. J ouvi esta histria tantas vezes que at sei tudo de cor.


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O velho fez um sinal de enfado. Ela vivia dizendo que conhecia todas as suashistrias. Repetiu a frase de sempre.

Pudera. A gente est casado h mais de sessenta e oito anos. Como se eu no soubesse disse ela, sempre tricotando. Dia 10 de

maro de 1910. Santana do Livramento. Com festa do lado uruguaio, emRivera...

Taquaremb corrigiu ele. Isso: Taquaremb. Na chcara do falecido Dom Pepe de Aguilar yAguilar, nosso padrinho de casamento.

Que morreu no ano seguinte, de tiro. Coitado. Coitada de Dona Mercedes que ficou com doze filhos para criar. Naquele tempo at que nem era difcil. L isso verdade. Mas, sem querer mudar de assunto: a gente bem que

podia tomar um chimarro agora. Pelo jeito j so seis horas. Com a erva que a gente tem, acho m elhor deixar o mate para quando o

dia amanhecer. verdade disse ele, contrariado. Se a inda houvesse por a um resto

qualquer de p de caf, no seria nada mau uma boa xcara. Eu estou enjoado deleite todo dia.

A velhinha suspendeu o trabalho com as agulhas, olhou por cima das lentesembaciadas dos culos de hastes amarradas com fios de linha, e reclamou:

Olha para o alto e agradece a Nosso Senhor Jesus Cristo por nos terdeixado ainda esta vaca de cria. Se no fosse ela, Seu Teodoro j teria nos levado

para aquelas covas abertas ao lado da morada dos nossos filhos.

Est bem, est bem disse ele, balanando a cadeira rem endada. Agradeo a Deus pela graa de nos ter deixado esta vaquinha.Ficou imvel, olhou para o cu lavado de nuvens e iluminado pelo sol fraco

do cair da tarde, e comentou: E Seu Teodoro que ainda no apareceu? Deve estar dormindo. Ele no sabe fazer outra coisa desde que enterrou o

ltimo falecido. Isso no trabalho para um homem de quase setenta anos disse ele,

passando a mo pelo rosto murcho. Cavar numa terra seca e dura como pedra,

levantar a p, cortar o cho e tudo o mais, comendo s um m ingau de leite acada dia.Ela apressou-se a corrigir:

Ontem o pobre comeu duas pores e na semana passada trouxemandioca que ficou muito boa depois de cozida.

Ora, ora, cozida em gua e sal. E onde vamos arranjar outras coisas? perguntou a velhinha, m eio

espantada.Dom Eleutrio ficou srio, ruminando em silncio os seus pensamentos.

Tornou a balanar a cadeira desconjuntada. Comentou, como se no desse muitaimportncia ao que dizia:

No gostei da conversa dele ontem de noite, a querer saber como vai a


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sade da gente, se a chuvinha do outro dia no gripou ningum aqui em casa, adizer que na nossa idade qualquer grau acima ou abaixo na temperatura pode sermuito perigoso.

Ele no m dico disse ela, retomando o croch. E nem padre para andar m exericando coisas. Se ele voltar hoj e com a

mesma conversa vou apontar a porta da rua e dizer que a serventia da casa,

que fique l pelo seu cemitrio, que sua obrigao, e nos deixe em paz. O que isso, meu velho? O coitado no tem mais o que comer e no custanada a gente dar leite para ele. E leite est sobrando, graas ao nosso bom Deus.

Esquece o que eu disse.Levantou-se com dificuldade, queixou-se de seu reumatismo, das dores nos

rins e da artrite que atacava os braos e as pernas, chegou-se janela e olhoupara o m undo l fora:

Veja s, caiu a parede da casa do Coronel Fabrcio e eu nem tinhareparado. Dava a metade dos anos que eu tenho, s para que aquele vaidosoestivesse aqui do meu lado e visse agora a casa dele, no estado em que se

encontra. Ele de pinguelim batendo nas botas de verniz, para l e para c nacalada, exam inando as paredes para ver se algum moleque no tinha riscado a

pintura com alguma ponta de pedra. Lembro que ele apanhou dois ou trs negrinhos riscando as paredes e

tratou logo de fazer justia por conta prpria. Batia com uma vara de m armelo, das grossas, at que o sangue

escorresse dos verges. E ningum dizia nada. O homem era importante,mandava e desmandava na poltica. Nem o delegado queria saber de nada.Recebia do coronel, em casa, de graa, caixas de rabada fresca, lingia, sacos

de batata e de feijo preto, melancia quando era poca, sacos de laranja e debergam ota. E nunca se ficou sabendo quem mandou matar os irmos Las Casas e o

Dr. Setembrino. E nem quem mandou botar fogo na tipografia de Seu Calegari para

acabar com o jornalzinho disse ele, sem voltar a cabea. Por acaso logo depois daquele artigo que dizia que o coronel j no

merecia a confiana do Dr. Borges de Medeiros; por isso ia perder as eleies. Que terminou perdendo. Pois eu agora pagava para que ele estivesse aqui

e visse a casa em runas, o mato tomando conta de tudo, a santa pinturinha deleque a chuva levou, os ratos fazendo ninho no lugar onde ficava a cama do casal,sol e chuva nos cacarecos podres que eram a m enina dos olhos dele.

Que a terra lhe sej a leve exclamou ela, fazendo o sinal-da-cruz. como se costuma falar: pois que a terra lhe seja leve para todo o

sempre. Mas palavra que ainda daria metade dos meus anos para que eleestivesse aqui, curtindo aquele orgulho todo, como se s a casa, os cavalos, oscopos de vidro trabalhado e as sedas da mulher e das filhas valessem algumacoisa neste mundo.

Dona Rosinha at que era boa pessoa, coitada.Ele continuava com os olhos pregados nas runas da antiga casa senhorial,

imprecisas pela distncia e pelo apagar do sol no horizonte:


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Dona Rosinha, uma boa pessoa, pois que a terra tambm lhe seja leve.Mandava dar dez chibatadas nas negras sempre que uma delas quebrava um

prato ou uma xcara. Expulsou uma que estava com barriga; e queira Deus que opai no fosse o prprio coronel, que era chegado a um galpo, com a desculpa dever como andavam as coisas por l, no meio da noite.

Cruzes, falar mal das pessoas mortas disse a velhinha.

Ele notou uma pequena coisa a movimentar-se nos escombros daPrefe itura, que havia desabado no ltimo temporal. No conseguia enxergarmuito bem atravs da catarata que s vezes lhe estendia uma cortina de sombrasdiante dos olhos. Mas alguma coisa se mexia entre as pedras e tijolos. No haviamais cachorros na cidade. Nem gatos.

Deve ser lebre, l pela Prefeitura disse ele, tentando dissipar a dvida. Eu acho que tenho ouvido lebres at aqui mesmo no ptio disse ela. Se a gente ainda tivesse uma arma, dava bem para cozinhar uma lebre na

panela. Que fim levou aquela nossa Winchester? Eu que no vou saber das tuas armas.

Aquele Colt de calibre onze vrgula quatro, com carregador para setecartuchos. Claro, eu sei para onde ele foi. Meti no bolso do capote do Adroaldoquando se alistou em 30, e afinal desapareceu com ele. Quantos anos tinha oAdroaldo quando foi para a revoluo?

Deixa eu ver a velhinha ficou contando nos dedos ; ele nasceu em1911, portanto morreu aos dezenove anos.

Cus, que idade para um menino morrer.Notou que a mulher limpava qualquer coisa no canto dos olhos, com a

manga de renda preta, e procurou desconversar:

Bem, no foi s o Adroaldo que morreu em 30. uma conta perdida detanto menino que desapareceu da face da Terra: foram milhares. E eu mepergunto, Santo Deus, para qu? Afinal, nunca m ais deixou de correr sangueneste pas depois de 30, e as mazelas at que aumentaram .

Mas o Adroaldo no era um entre m ilhares. Era o nosso filho, o que muito diferente. No me importo com a Revoluo de 30 nem com nenhuma dasoutras revolues depois dela. Mas o Adroaldo no precisava ter ido, s o queeu digo.

Havia anos que e la no conseguia mais chorar. O m arido lhe dava, toda a

vez em que falavam de coisas tristes, um pequeno leno de renda para enxugar opranto que no brotava mais. Era um hbito dos tempos em que suas faces semolhavam com lgrimas copiosas e ela se metia pelos cantos a fungardesesperadamente.

Ele era bom em matemtica disse o velho. Lembro como se fossehoje o elogio que recebemos um ano antes da Revoluo de 30, o professor adizer que o nosso Adroaldo ia ser engenheiro ou alguma coisa assim ligada comos nmeros; quando o tio dele, o Edmundo, deu ao menino um casaco de boa l,azul-marinho. Emerenciana enfiou no bolso dele algum dinheiro e o rapazaproveitou para levar a namorada ao cinema.

A Clarinha, filha da falecida comadre Doralice. Isso mesmo, a Clarinha confirm ou o velho, valendo-se da m emria da


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mulher.Uma pequenina sombra continuava a movimentar-se nos escombros da

Prefe itura. Uma lebre, repetia o velho, mas bem que podia ser qualquer sombrada noite tangida pelo vento de novembro, quando a primavera tira o plen dasflores e fecunda a terra. A pequena parreira ao fundo do quintal estava muitoviosa e com centenas de cachos em formao. O p de limoeiro-todo-o-ano, o

mamoeiro jeriv, a goiabeira, o p de laranja-do-cu, duas pitangueirascarregadinhas e a horta meio abandonada, com ps de couve, alfaces, salsa ecebolinha verde; o resto, capim forte, ino, cho coberto de folhas mortas.

Eles nunca sabiam as horas, o relgio de pndulo emperrara. Mas o sol e asestrelas ou aquele sexto sentido da idade, que costumam marcar o tempo, diziamaos dois as horas do dia ou da noite. E a inda o canto do galo, em anos passados, ocoaxar das rs, os grilos e at um perdido sabi-laranjeira que costumava saltitar

pelas rvores com os primeiros anncios do dia. Mas isso em outras pocas.A velhinha passou para a cozinha, espiou pela janela o estbulo em runas,

onde morava a vaquinha de cria. Pediu de l para o marido que ele fosse pegar o

gadanho e cortar um pouco de capim para o animalzinho. A vaquinha forneciatodas as manhs trs jarras de leite gordo e espumante, logo passado para uma

panela que perm anecia sempre num canto do fogo, depois da primeira fervura.Ainda mais naqueles dias de calor. Se no tomassem certos cuidados, o leitevirava coalhada e era preciso esperar pelo dia seguinte.

Ela botou mais pedaos de lenha no fogo, no fez nenhuma tentativa paraassoprar as brasas. Nessas ocasies sentia tonturas e tudo rodopiava de maneiradesagradvel. Fez um rodzio nas poucas panelas de ferro sobre a chapa quente,limpou as mos na barra da saia e retornou saleta onde o marido permanecia

imvel na janela. Fiz um pouco mais de mingau e botei acar sem pensar m uito naeconomia disse ela. Mas Seu Teodoro j devia estar aqui e queira Deus queno tenha acontecido nada com o pobre homem.

Ele vem disse o marido. Eu sei que ele vem .


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2. Inocncio Herdia

Ao fechar um dos tam pos da janela por causa do vento de primavera quelevantava poeira e folhas secas na rua, o velho bateu num porta-retrato pintadode dourado na ponta da cmoda, com uma foto imprecisa da filha Maria Ritanuma cadeira de espaldar alto, tendo ao lado, ereto, grossos bigodes engomados,colarinho de pontas viradas e gravata de plastro, seu marido, o farm acuticoInocncio Herdia, dono do Ao Boticrio, e m ais o filhinho Joo Matias, sentadono tapete, aos ps da me.

No sei quantas vezes vais derrubar esse retrato reclamou a velhinha,contrariada. Queira Deus que no tenha quebrado o vidro.

Ele fez um esforo para dobrar o corpo, as juntas estalavam, por fim catouo retrato. Passou a m o espalmada para sentir se o vidro havia quebrado. Estavaintacto, a moldura mantinha-se firme.

No houve nada.

Recolocou-o na mesma posio. Tentou enxergar os detalhes, o rosto deMaria Rita, a carinha de espanto do neto Joo Matias. Mais ntida do que o resto, acara prussiana do genro Inocncio Herdia. Fora um homem de um metro enoventa que alternava a vida parada da farmcia com a prtica matinal dehalterofilismo. Costumava bater nos bceps salientes como duas batatas, tinha

peito-de-pombo e partia nozes s com o polegar e o indicador. InocncioHerdia, a paixo dos dezoito anos de Maria Rita. Uma menina frgil, ao ladodaquele rinoceronte de bons modos, polido, educado, dono do mais prsperonegcio da cidade. Desprezando as receitas mdicas e ele prprio aviando

complicadas frmulas de um velho alfarrbio. Que mandava as pessoas abrirema boca para dizer um longo e sonoro a, para que pudesse examinar as amgdalas.Que preparava xaropes e infuses, pomadas e plulas, e que um dia resolveu

pedir a mo de Maria Rita para casar trs meses depois, um escndalo, ele deavental na sala da frente: O senhor sabe, Dom Eleutrio, as pessoas trazem do

bero a inscrio debaixo da pele com o nome da pessoa que o destino separoupara casar com a gente, e aqui no meu peito, se o senhor descascar a pele, vai lerMaria Rita; juro pelo que h de mais sagrado, juro pelos olhos da minha me.

Foram trs meses de correria, todas as mulheres da fam lia bordando ecosturando lenis e fronhas, toalhas, batas, e depois os comes-e-bebes disse avelhinha. E os proclamas no adro da igreja, os papis para o Juiz de Paz, asguirlandas estendidas pela casa toda, o assoalho lavado com escova, gua esabo, as cadeiras emprestadas, copos e pratos, os leites assados nos fornos davizinhana. Sei l, parece que foi ontem essa coisa toda. Maria Rita tofranzininha e desamparada, ele um brutamontes, que partia uma acha de lenhaem cima do joelho.

O velho repetiu, sem nenhum tom especial: Inocncio Herdia. Depois o Joozinho morreu com quatro anos, de varola disse a velha de

olhos secos. Falava tudo, estava comeando a armar arapuca no quintal e umdia chegou a apanhar um bicho qualquer, acho que um pardal que tentava bicar o


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miolo de po que servia de isca. Ajudado sempre pelo Inocncio Herdia disse o velho. Pois verdade. E da? Pai, por acaso, est proibido de ensinar filho a

pegar passarinho? No, eu no disse isso.Houve um silncio momentneo. Ficaram escuta. Estava na hora de

chegar o coveiro Teodoro. Pela claridade da rua ele estava dem orando mais quede costume. Bom rapaz, o Inocncio Herdia disse e le. Morreu no mesmo ano em que o filho foi chamado por Nosso Senhor

Jesus Cristo. Justamente ele, que levantava peso que nem dois cavalos seriamcapazes. Que tomava litros e litros de poo-de-longa-vida e que se vangloriavade que toda a sua fam lia costumava viver mais de cem anos.

Ela limpou os olhos secos, como de costume. O velho recordou com certamgoa no corao:

Maria Rita, a pobrezinha, tinha se finado um ano antes, na Quaresma,

resultado do parto do Pedrinho, quando Manuela no tinha ainda completado doisaninhos.

Ela m astigava uma recordao constrangedora, fazia questo de no darmuito crdito, mas comentou com o marido naquele cair de tarde:

Toda a gente dizia que Inocncio Herdia morreu de amor. Ser que issoacontece fora dos romances e das histrias de fadas?

Sei l, mas de um vivente acreditar.Ela segurou a barra da saia e parecia tentar desfi-la com os dedos de

grossas juntas, secos e duros:

Eu acho que, se tu morreres primeiro, eu no resisto um dia.O velho ficou emocionado, tossiu, tratou de disfarar. Voltou para a suacadeira e comentou que o vento estava forte, as pessoas ficavam nervosas.

Mas eu vou morrer primeiro disse ele, a custo. No sei por qu retrucou a velhinha, largando o vestido. A mulher

sempre morre primeiro. Qual o qu, eu estou com noventa e dois anos. Sou de 1886. Ou de 1885.

em sei bem ao certo. Mas o teu pai morreu com mais de cem anos.

Eram outros tempos, pelo amor de Deus. E alm do mais o meu pai nuncafumou, nunca bebeu, nunca j ogou. Essas coisas desgastam um homem. Ora, pois a est. H trinta anos que no fumas, no bebes e nem jogas. L isso verdade. Mas essas coisas deixam cicatrizes dentro da gente, nas

veias e coronrias, nos pulmes e nos brnquios. Ataca o corao, desgasta. Pois eu ainda nem fiz os meus oitenta e seis e ando to fraca que ainda

outro dia tirei o leitinho da Beleza e quase no fui capaz de carregar o balde.Cheguei a pensar que tinha dado dez litros naquele dia. Depois medi e pudecomprovar: s trs litros e pouco.

Suspirou, demonstrando cansao, e, quando notou que o marido pareciaimpressionado com sua confisso de fraqueza, procurou mudar de assunto:

Bom moo mesmo, Inocncio Herdia. E forte. Se algum perguntasse


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naqueles dias se ele aparentava a lguma doena por dentro seria bem capaz deser tachado de louco varrido, de m iolo mole. Ora, o Inocncio Herdia doente!

Pois no sei se ele morreu de amor. O fato que morreu dormindo. Tinhaa fisionomia muito tranqila e no foram poucos os que j uravam que InocncioHerdia estava com um sorriso nos lbios. Ele, que nos ltimos meses s sabiachorar a morte do Joozinho Matias, nem se alegrava com os outros dois, to

pequeninos, Manuela com menos de trs anos e o Pedrinho sem ter feito dois.A velhinha alisava a toalha remendada da mesa, pensamento distante, dedosque pareciam grossos arames re torcidos. Sorriu quase imperceptvel, suamemria rebuscava com dificuldade o tempo:

Inocncio Herdia no dia do seu casamento, santo Deus!Relembrou os trs msicos postados no ptio interno: flauta, violino e

contrabaixo. Os am igos do clube disputando um estpido concurso do melhorbebedor de cerveja; Inocncio Herdia despejou cinco garrafas numa j arra e foibebendo ao compasso ritmado de palmas, sem tomar flego, ele que estavacasando naquele dia, a bebida a escorrer pelos cantos da boca, pelo peito, at

quase encharcar a camisa engomada. Depois outra jarra. O Padre Ricoldi apedir m oderao, afinal em dia de casamento a temperana no fazia mal aningum. Chegou a esconder a jarra. Inocncio Herdia espetou o dedo no peitodo padre, pois que ele no se assustasse, gostava daquelas brincadeiras, e,desprezando a jarra escondida, comeou a abrir garrafa aps garrafa e bebia

pelo gargalo, regurgitando; depois ia entregando as garrafas vazias ao padre; eassim foi at chegar o Juiz de Paz, quando Inocncio Herdia tornou a colocar agravata preta, enfiou o casaco, limpou a cara m olhada de cerveja e casou comose tivesse bebido antes uma garrafinha de guaran, firme, reto, uma sequia ao

lado daquele pezinho de ara que se cham ava Maria Rita e que terminaria porfinar-se quatro anos depois, quando tinha trs filhinhos. bom quando as pessoas morrem de amor disse o velho.O vento l fora no deixou que eles ouvissem o arrastar dos ps do coveiro,

s pressentido quando seu vulto encheu o vo da porta e a voz familiar deu boatarde para depois corrigir para boa noite, que estavam no lusco-fusco, nomomento exato em que as lebres corriam assustadas pelos escombros da cidade.

Sim, eram lebres.


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3. Teodoro, o Coveiro

A velha perguntou se ele tinha fsforos. Teodoro no respondeu, mas umacham a brilhou entre seus dedos, enquanto ele se encam inhava para a m esa ondesabia estar o lam pio. A sala ficou mal-iluminada, mas ainda coava de fora oresto da luz do dia. O coveiro pediu licena para sentar-se. Estava ofegante.Confessou que antigamente percorria a distncia que separava o cem itrio docentro da cidade em menos de quinze m inutos, sem caminhar muito depressa,marcha batida, mas hoje as coisas haviam mudado.

A distncia a mesma disse a velha. Eu sei, Dona Conceio, mas a verdade que eu j no sou o mesmo

disse ele, passando a m o spera na boca. Ora, ora, quem que fica sem pre o mesmo, a no ser Deus? disse o

velho.O coveiro perguntou se e la no queria uma a juda na cozinha, era s dizer o

que queriam que ele se encarregaria de tudo, no era justo comer de graa,deixando as pessoas de casa trabalharem .

Est com muita fome, Seu Teodoro? Para falar bem a verdade, Dona Conceio, estou. A senhora sabe, eu

passo o dia todo sem botar nada na boca. Mesmo porque no sinto mais a mesmafome de outros tempos. Fico engolindo a saliva, cuidando dos canteiros, varrendoos caminhos, esfregando as pedras de mrmore, tirando a ferrugem das grades edas cruzes. Isso que h muito tempo no me importo mais com o polimento dosmetais, que acho puro orgulho dos vivos.

No tem encontrado mandioca, ultimamente? perguntou ela,interessada. A verdade que no tenho andado pelos lados onde ela costuma dar. Fica

um pouco longe e as minhas pernas no agentam mais longas estiradas. Semcontar com os braos que s vezes no conseguem arrancar as razes que seescondem debaixo da terra , e, como no tem chovido, anda tudo estorricado.

Fique aqui com o Eleutrio, que eu vou atiar o fogo e preparar o nossomingau.

Parou na porta da cozinha, encostou-se no batente, fez um inventrio: Sabe, Seu Teodoro, resta pouca coisa para ns. Menos de um quilo de

farinha, um pouco de erva-mate, uma lata pequena com acar, um potezinhode sal e, no sei bem, mas acho que meia lata de leo para cozinhar.

No tem passado ningum pela estrada? perguntou o velho. Olhe, Dom Eleutrio, l da minha janelinha vejo a estrada, l uma vez

que outra passa gente e ningum ouve o que a gente grita. Uma vez umcarroceiro me prometeu trazer um mao de cigarros, sal, bolachas, acar ealgumas coisinhas mais. Prometeu trazer as encomendas quando tornasse a

passar por aqui, e at hoje. Nem os pedidos nem o dinheiro de volta. At que em parte foi bom disse a velha ; o cigarro no faz bem a

ningum, muito pelo contrrio. Quem sabe no foi Deus quem guiou oesquecimento desse desconhecido? como dizia o falecido Padre Ricoldi: Deus


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escreve direito por linhas tortas.O velho Eleutrio comeou a balanar a cadeira nervosamente, pediu que a

mulher fosse preparar a comida, virou-se para o coveiro, que permanecia rgidona cadeira, as mos presas entre os joelhos vestidos de brim grosseiro:

E de que adianta mandar as pessoas parar na estrada, se ningum aquitem mais dinheiro? Ou acha que eles vo fazer caridade com a gente numa

cidade que no existe e onde nem os cachorros vm mais fuar entulhos? Econcluiu, magoado: At os ratos desapareceram. verdade disse o coveiro. A no ser lebres disse o velho apontando para os lados da Prefeitura em

runas. Lebres? exclamou desconfiado o coveiro. Lebres, sim senhor; vi com estes olhos que a terra h de com er. Lebres

daqui para l e de l para c, s a noite se anunciar. Pois olhe disse o coveiro , se eu chegar a pr minhas mos numa delas,

fao um ensopado de enfeitar aniversrio. Aprendi a preparar lebre com meu

pai, mas isso num tempo em que elas vinham beber gua no ptio da nossa casa.Ou ento se espalhavam armadilhas por entre as mudinhas de pinheiro-manso, el pela madrugada, noite quase, era s encher o em bornal com as bichinhas.Minha me preparava lebre nos vidros de conserva e o resto do ano a gente seguardava para comer, tanto fazia no almoo como no jantar. Fez uma pausa

para retomar flego e prosseguiu: Eu dava o resto dos meus dias por um vidrodaqueles, Dom Eleutrio. E no estou brincando, no.

O velho sorriu num esgar, sem dentes, alisou a cara: Est pagando pouco, Seu Teodoro, est pagando pouco.

O coveiro ficou novamente em silncio, enquanto se ouvia o barulho depanelas e pratos na cozinha, onde agora brilhava a luz fraca de outro lampio.Dona Conceio trabalhava devagar, mas no se importava porque nenhum

dos homens reclamava e, pelo visto, o assunto deles havia terminado. Quandoapareceu na porta pedindo a eles que fossem para a mesa, o coveiro j estava de

p e tratava de ajudar seu marido a levantar-se da cadeira de balano. Tragam o outro lampio pediu ela. No m elhor apagar um para econom izar querosene? disse o coveiro

delicadamente, para no ferir o orgulho dos donos da casa.

Os anj os falaram por sua boca disse ela, assoprando na manga docandeeiro. Estam os na ltima lata de querosene e, quando acabar, a gente vaiter que deitar mal o sol se ponha. Tenho s duas velas de saldo.

Eu sei disse o coveiro. Uma para a senhora e outra para DomEleutrio.

O homem notou que havia tocado em alguma coisa que no devia. Avelhinha permaneceu onde estava, o marido ficou olhando confuso para e le. Ovento l fora sibilava por entre os galhos de uma antiga casuarina e, pela

primeira vez, naqueles ltimos dois meses, os trs ouviram o pio lgubre de ummocho perdido.

A velha sentou-se mesa, depois o marido e finalmente o coveiro, que tinhaos olhos grudados no prato. Dom Eleutrio rezou:


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Senhor Nosso Deus, abenoai o alimento que temos hoje sobre a mesa eque ele nunca nos falte, amm.


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4. A Morte

O mingau de leite, engrossado com farinha de trigo, recebera uma doseescassa de acar, mas ningum reparava nesses pequenos detalhes. SeuTeodoro comia em silncio, mas de repente sentiu que no tinha mais fome. Aos

poucos, o estmago estava se desacostumando com a com ida. At os sonhos comgrandes comilanas haviam sumido. As gordas galinhas assadas nas brasas,cobertas com molho de manteiga, pimenta e sal. A carne assada com m olho decebolas. O simples feijo-com-arroz. O coveiro estremeceu quando DonaConceio tocou-lhe no brao.

Perdeu a fom e, hom em ? Pois , acho que meu estmago j no o m esmo. Quando eu cheguei

aqui, parecia que, se botassem um boi no meu prato, eu comeria o danado doschifres ao rabo. Agora eu vejo que era s o olho maior que a barriga. Vejam s,nem um pratinho de mingau cabe l dentro.

s vezes, a gente precisa forar a natureza disse Dom Eleutrio. No adianta, no, eu at me sinto meio envergonhado. Sabe de uma coisa, Seu Teodoro? disse a velha. Para mim o senhor

perdeu o resto da fome naquela horinha que falou nas velas, naquelas duas queainda nos sobraram.

Nas duas velas? Isso mesmo. Eu acho que as pessoas no devem ficar envergonhadas

quando falam aquilo que vem cabea, pois o maior pecado ainda o damentira.

Mas eu no sei do que a senhora est falando. Sabe, sim. Esto l as duas covas abertas, uma para m im, outra para oEleutrio, e o senhor est s esperando que a gente m orra para dar sepulturacrist a estes filhos de Deus. Nesse dia vai poder ganhar a estrada e terminarencontrando outro lugar onde uma pessoa possa viver com as outras.

No h nada de pessoal nisso, Dona Conceio. O meu dever cumprircom minha obrigao, mas posso garantir que no estou esperando pelo pior.Pelo menos tenho dois amigos que me a judam. Sabem , eu estou passando dacasa dos setenta, no sou mais criana, e alm do mais ns trs estamos numaencruzilhada.

O velho concordou com a cabea, enquanto chupava o mingau que vinha naponta da colher. Dona Conceio fazia que sim com a cabea e naquelemomento sentiu muita pena do coveiro, que ainda estava naquele lugar esquecido espera de que eles morressem e fossem enterrados em sepulturas decentes, etalvez ainda ele plantasse uma florzinha qualquer no montculo de terra. A morteno assustava nenhum deles, e s no fa lavam sobre ela por uma questo de

pudor, porque os filhos haviam morrido, os netos, os primos, os irm os, ataquela cidade morrera aos poucos, numa agonia lenta mas bem visvel; casasque ficavam vazias, telhados que deixavam filtrar a gua das chuvas, madeirame

apodrecendo, paredes ruindo e o mato crescendo onde antes eram salas devisitas, quartos e cozinhas. Seu Teodoro, agora, ali sua frente, trabalhava como


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um co e no arredaria p sem antes enterrar o ltimo sobrevivente, aferrado aprincpios que nem eles mesmos sabiam quais eram.

O senhor bem que podia pegar a sua trouxa e ir em bora, ganhar a estrada,desaparecer deste lugar.

E a senhora e Dom Eleutrio? Ns acabamos encontrando um jeito. Qualquer coisa aqui dentro me diz

que eu vou primeiro e o meu velho at que pode fazer o seu servio, nem preciso muita prtica nem muita fora . O trabalho mais pesado o senhor j fez,que foi o de abrir aquelas duas covas na terra seca.

No, Dona Conceio. Eu fiz um juramento que ia sair daqui depois daltima p de terra sobre o ltimo morador da cidade.

Juramento para quem ? quis saber a velha. Para mim mesmo, perante Nosso Senhor Jesus Cristo.Dom Eleutrio acabara de limpar seu prato e dormitava agora com o

queixo apoiado no peito. Ela disse: O coitadinho anda m uito esgotado e se a gente fala baixo ele term ina no

escutando nada. Isso bom disse Seu Teodoro, afastando o prato de sua frente. Bom por qu? Depois de um a certa idade o melhor mesmo no ouvir mais nada. A

senhora sabe que as pessoas surdas lembram-se de quase todas as coisas.Ela levantou-se para a tarefa de recolher os pratos, atiar o fogo, ferver um

pouco dgua para o ch de cidr, com folhas finas e serrilhadas tiradas de umatouceira no ptio, um pouco alm da porta dos fundos. Seu Teodoro fez menode aj ud-la, mas foi impedido por um gesto enrgico:

Fique onde est, estou velha m as ainda posso fazer as minhas coisas. Andopela cozinha desde os meus oito anos. Me lem bro como se fosse hoje, eu lavavaos meus primeiros pratos quando no mundo inteiro soltavam foguetes edanavam nas ruas, na festa de entrada deste sculo.

Eu at nem tive tanta pressa, vej a a senhora. Nasci oito anos depois queeste sculo chegou, nem fiquei sabendo de tantas festas naquela ocasio.

Dom Eleutrio cabeceou forte e acordou. Percorreu o olhar pela sala, esorriu. Perguntou sobre o que estavam falando. A velha gritou:

Sobre a m orte.

Ah, sim, sobre a morte disse ele.Seu Teodoro no entendeu, mas fez um gesto confirmando. Ela pediu aocoveiro que fizesse o favor de buscar umas folhas de capim-cidr, pois a gua dachaleira estava no ponto. O homem saiu da cozinha com dificuldade edesapareceu na escurido da noite, tateando troncos de rvores para orientar-se.Quando voltou, Dona Conceio disse a ele para no pensar que andava commedo da morte; muito pelo contrrio, estava disposta a receb-la como quemrecebe uma velha amiga de infncia, quando as senhoras costumavam servir chcom sequilhos e rem emorar passagens felizes da vida de cada pessoa.

A senhora sabe bem, ningum aqui nesta cidade tratou mais de perto coma morte do que eu. A princpio a coisa me apavorava, pois eu tinha dez anosquando comecei a aj udar meu pai a abrir covas e construir cruzes. Meu primo


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Ram iro, que Deus o tenha no seu Santo Reino, costumava dizer, antes de deixaresta cidade, que eu, como coveiro, nunca ia encontrar moa que quisesse casarcomigo, no que ele tinha razo. Chegou a dizer que no fim eu ia terminar casandocom a morte.

Tolices desse seu primo. Com a morte ningum casa. Era o que eu tambm pensava, m as num ponto ele tinha razo.

Que ponto? Aquele de que nenhuma m oa ia querer casar com um coveiro. No quea profisso seja diferente das outras. Ganha-se a vida como se pode, e tantagente que eu conheci, afinal, que sem pre viveu da morte. Eu me explico: genteque fornece madeira para fazer caixo de defunto; gente que tem fbrica deferragens para os pegadores; gente que planta flor e que vende flor; os queconseguem cadveres para as funerrias; os jornais que publicam convites deenterro; rdios que m antm espaos para notcias de falecimentos; tipografias

para imprimir convites e avisos fnebres; cartrios que fazem registros; eadvogados que fazem inventrios e testamentos. Tanta gente, Dona Conceio,

que se eu fosse lembrar agora entrava madrugada adentro. E s o coveiro recebe a culpa disse a velha. Pois como a senhora diz.Dom Eleutrio arrotou fracamente e repetiu:

Ento vocs falavam da m orte, se entendi bem. Mais ou menos disse ela. E acho bom que Seu Teodoro v para casa

dormir e que a gente faa o mesmo.Seu Teodoro aceitou o convite para ir embora, e tratou de se despedir logo,

agarrando o bon que deixara dependurado num prego da parede.

E depois, Dona Conceio disse quase na porta , o sono um grandealimento. Quando escasseia proviso de boca, o sono ajuda. V devagar, Seu Teodoro aconselhou ela. A noite est muito escura,

venta como se fosse o prprio fim do mundo e no h rua que estej a emcondies de se andar, com pedras soltas e lixo.

Conheo o caminho como a palma da m inha mo, fique descansada. Boanoite, Dona Conceio. Boa noite, Dom Eleutrio. Que Deus lhes conserve asade.

Quando ele desapareceu, engolido pelas trevas, Dona Conceio sorriu para

o marido, que parecia no ver nem escutar mais nada. E comentou: Gosto muito de Seu Teodoro, mas s vezes s diz as coisas da boca parafora. Ele ainda no deixou a cidade, porque jurou que s ia sair daqui quandoenterrasse o ltimo morador. E ns somos exatamente os ltimos.

Dom Eleutrio agora entendia tudo o que a mulher lhe dizia, porque elagritava mais alto do que o barulho do vento.

Pois, se a misso dele essa, que seja cum prida a vontade de Cristo NossoSenhor.

Cada um tratou de fechar janelas e portas, no que temessem um ladroqualquer, algum que pudesse entrar e praticar maldades. Havia m uito tempoque a cidade no recebia vivalma. Mas o vento estava forte demais e as cobertasque eles tinham na velha cama eram poucas e o cobertor, de to gasto, virara


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pano ralo. Pela madrugada a temperatura caa e eles no encontravam jeito deaquecer ps e mos, que chegavam a doer de friagem.

Dom Eleutrio levou o lam pio para o quartinho onde s cabiam a camaantiga e a mesinha de ps torneados. Deixou cair os chinelos, e, assim comoestava, deitou-se, corpo esticado, mos cruzadas sobre o peito magro, pernasunidas, na posio em que as pessoas costumam ser enterradas, pois ele tinha

muito medo de morrer enquanto dormisse.Dona Conceio assoprou por cima da manga embaciada do lampio,recostou-se no colcho sem travesseiros e deu boa noite para o marido. Quando

pensava que o velho j estivesse dorm indo, Dom Eleutrio disse: Tenho muita pena de Seu Teodoro, mas acho que a gente no pode fazer

nada para ajudar o homem.


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5. Maria Rita

Dom Eleutrio foi acordado pela mulher. Ela estava sentada na beira dacama e chupava com esforo, lbios murchos apertando a bomba do mate, cuia roncando, a gua quase morna. L fora o dia chegava radioso. Lampio

apagado sobre a mesinha, ele notou, pela janela que fora aberta, que o cu notinha nuvens e dentro de pouco mais surgiria o sol por detrs das runas daquiloque antigamente fora a igreja de duas torres.

Antes, a gente sabia das horas s pelo bater dos sinos disse ela, passandoa cuia para as mos trmulas do marido.

Com toda a vida que a gente j viveu disse ele , o relgio at que nofaz nenhuma falta. Posso garantir, no so cinco horas.

No precisa garantir nada, eu sei.Depois dos primeiros goles, ele disse:

Esta erva-m ate est ficando m ais fraca a cada dia que passa, mas, fica

sabendo, eu nem ligo para isso. O que faz bem o calorzinho da gua: reanima,limpa a garganta, adoa a boca depois do sono. Para falar a verdade, o dia emque a gente no tiver mais erva, toma-se o chimarro sem ela e se acostuma.

No h nada no m undo com que a gente no se acostume disse ela,retomando a chaleira que tinha depositado no cho, ao p da cama.

Mais um dia. O tempo se arrastava, ultimamente. Anos atrs Dom Eleutrionem sentiria o passar das horas, envolvido sempre com suas carpintarias,reformas de mesas e cadeiras, arm rio, portas e j anelas. Um tempo em que seusolhos enxergavam longe. Tinha os braos fortes e o flego comprido, havia

vizinhos com encomendas e no poucas vezes fizera caixes de defunto. Mas issonuma poca em que a cidade comeava a esvaziar-se e para ele no custavanada pegar umas tbuas de pinho de terceira e preg-las na forma de caixo,sem frisos nem trabalhos de goiva; mas depois, em pocas mais recentes, oscorpos eram s envoltos em lenis usados, pois nem caixes havia; era a terracontra o corpo, o montculo onde se cravava a cruz e, quando havia vagares, o

plantio de pequenas mudas de onze-horas, chagas ou mesmo gernios.Dona Conceio olhou para o retrato da filha Maria Rita.

Se ela fosse viva, a pobrezinha, completava sessenta e cinco anos estems.

Sabia de cor todas as datas, lembrava-se da filha quando nascera o primeironeto, o Joo Matias.

Trs anos, trs filhos disse ela. Por sorte disse Dom Eleutrio, quase indiferente , a pobrezinha morreu

um ano antes do Joozinho e assim no teve o corao partido como a gente. Naquele mesmo ano em que m orreu Inocncio Herdia, com diferena

de dois meses. Era golpe em cima de golpe. Quem diria, o Inocncio Herdia!Ele sustentava dois cavalos, a puxarem cada um para seu lado. Ganhou aquelaaposta com o Capito Marclio, e depois, comemorando, derrotou quatro

adversrios no jogo de pulso. E dizer que morreu depois de quatro meses,inconsciente, em cima de uma cam a, cego e mudo, corpo forte e rijo como


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sempre, sereno como se estivesse apenas dormindo a sesta. E Maria Rita to franzininha passou a cuia para as mos do marido, que

mantinha a cabea apoiada de encontro parede descascada e que teve trsfilhos, um depois do outro, sem folga nem descanso, acompanhando o maridonos bailes do clube at alta m adrugada, sem perder uma dana, dando fugidasnos intervalos para amamentar um dos filhos, que havia sempre um para aleitar.

Primeiro, Joozinho, desfigurado por aquelas inflamaes horrveis. Depois Manuela, quando faltavam cinco meses para com pletar seisaninhos. Os cabelos da cor-de-mel, olhinhos azuis, pele clara Dona Conceiorebuscava um passado distante ; sem adivinhar, a nossa bonequinha, que deviaatender ao cham ado de Deus Nosso Senhor. Mas iniciava as primeiras letras noGrupo Escolar. Ningum soube de que doena; podia ter sido saudade do pai e dame.

Ontem sonhei com Maria Rita disse Dom Eleutrio, ante habitualindiferena da mulher, pois ele sonhava todos os dias, mesmo quando apenascochilava na cadeira de balano.

No vou mais querer chimarro disse Dona Conceio, descansando acuia de encontro chaleira. E depois esta erva no tem gosto de nada; por sorteainda no mofou, graas ao tempo seco.

Ontem sonhei com Maria Rita repetiu o velho. A gente ainda nemmorava nesta casa, ela estava no segundo ano de piano, na escola particular deDona Mercedes, que no se cansava de dizer que era a aluna de mais futuro daclasse. Ela tocouLua Branca, de Chiquinha Gonzaga. E ainda sabia de corSertaneja, Abre AlaseA Bota do Diabo. Um dia, era sbado de Aleluia, lembrocomo se fosse hoje, que a Revoluo de 30 andava j nas ruas, ela me disse que

havia conhecido um rapaz muito bonito, de nome Inocncio Herdia,farmacutico como o pai, e que costumava divertir as moas desentortando

barras de ferro de quase meia polegada de espessura; partindo tijolos com umsoco e amassando moedas de quatrocentos ris com os dedos de uma s mo.

A velha foi buscar a foto da filha com o marido e o primognito. Viu que asimagens estavam desaparecendo. Perguntou:

Afinal, que sonho foi o teu com Maria Rita? Ela estava numa sala disse e le vestida toda de branco, sentada ao piano

e tocando muito baixinho. Eu pedia que ela tocasse m ais alto. As pessoas velhas

ouvem pouco. E ela m e disse: mas, pai, o senhor to moo ainda, mal passoudos trinta. Eu queria dizer a ela que no, que eu estou com mais de noventa e elaria como se eu tivesse dito uma coisa muito engraada. Depois rodopiou com o

banquinho e veio me dar um beijo e um abrao forte e dem orado. Quandoterminou, Maria Rita tinha os olhos cheios de lgrima e me disse: mesmo, pai, osenhor envelheceu tanto nestes ltimos anos que eu seria capaz de jurar que aculpa toda minha, que deixei de envelhecer, por esquecimento.

Dona Conceio recostou-se na parede, ao lado dele sentia-se quase semforas em certas horas , alisou os cabelos despenteados e recordou comaparente indiferena:

Quando nasceu o Pedrinho, o ltimo, Maria Rita me contou em segredo


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que sabia quase tudo do seu futuro, mas que no tinha coragem de dizer aningum, nem mesmo ao Inocncio Herdia. Eu pedi que ela me dissesse, poisas coisas que a gente no quer ou no pode dizer a ningum, podem e devem serditas para as mes, que so pessoas que aliviam as dores e o sofrimento s emsaber. Pobrezinha da Maria Rita.

Ela ento sabia que ia morrer um ano depois do nascimento do ltimo

filho? Sabia. E sabia tam bm que um ano depois ia morrer Inocncio Herdia.Eu cheguei a dizer: que absurdo, minha filha, um rapaz to cheio de vida, toforte. Mas ela sorriu daquele jeito que era to bonito e disse que sabia e pronto. Emais: Joo Matias tambm seria chamado por Deus quase junto com os pais eManuela no chegaria aos seis anos, nem Pedrinho ia completar doze.

Maria Rita recebia espritos. Era mdium. Algum do outro lado iadizendo as coisas para ela e por isso a pobrezinha nunca teve uma palavra derevolta nem de amargura, sempre to meiga e to doce.

Fez uma parada para tomar flego ele era de opinio que com a velhice

os pulmes vo encolhendo, encolhendo, incapazes de conter mais do que meiolitro de ar e depois confessou:

Ento eu no sonhei com Maria Rita. Ela esteve aqui para alegrar umpouco esta nossa vida. Eu que no cheguei a perceber bem.

S Deus quem sabe suspirou Dona Conceio, fazendo um breve sinal-da-cruz.

Depois levantou-se da cama com certa desenvoltura, repreendeu o marido,os dois ali no quarto quase escuro e l fora o dia cheio de sol, pois que fossem

para o ptio, para a frente da casa; os dois precisavam de ar fresco e da luz do

dia. Dom Eleutrio passou a mo na cara onde a barba hirsuta ameaavaemaranhar-se, lamentou que no tivesse em casa uma gilete e disse que com achegada do calor aquilo ia lhe comichar como os demnios. Dona Conceio

balanou a cabea; no seria por falta de gilete que ele deixaria de cortar abarba; tinha na gaveta a sua antiga tesoura Solingen e um velho pente de osso;que fossem l para fora, ela apararia a barba, deixando-a como se no tivessenem dois dias.

Vais me cortar a orelha ou a ponta do nariz resmungou ele. Vamos ver disse ela, j disposta a meter mos obra.

Ele sentou numa velha cadeira, no local onde antigamente teria sido acalada, queixo apontado para a frente e para o alto, olhos cerrados. Pedia, degengivas apertadas, que ela tivesse cuidado, pelo amor de Deus no me cortanem me fere, que no temos uma gota m ais de mercurocromo ou de qualqueroutro remdio nesta casa, nem em casa nenhuma. Dona Conceio mostrava-semuito disposta; resolveu pentear os cabelos esgrouvinhados, e a seguir iniciou otrabalho de corte, desbastando os chumaos de cabelos brancos e finos comoteias de aranha. O vento da primavera se encarregava de assoprar as levesmechas e ela tratava de compensar o tremor das mos com a firme deciso deacabar com a tarefa antes que ele a julgasse uma criatura imprestvel.

Quando parou, suspendendo o pente e a tesoura, disse que tudo estava feito epediu ao marido que passasse as mos no rosto. Foi o que ele fez, timidamente.


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Depois sorriu aberto e disse que estava muito grato pelo servio, pois no sentiriamais o calor do vero que se aproximava, desde que ela pudesse cortar a sua

barba todas as semanas. No sei se vou ter foras para tanto confessou a mulher, deixando cair

os braos ao longo do corpo, como se pente e tesoura pesassem em demasia. Nenhum corte exclamou ele admirado, em forma de elogio.

E nem podia ser de outra maneira contestou ela , pois tenho seis anosmenos do que tu. L isso verdade.Depois ele procurou um recanto com sombra, o sol estava forte demais,

esperou que a mulher fizesse o mesmo e comentou, lembrando o passado: Maria Rita nunca aparou a barba de Inocncio Herdia.


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6. Helosa

Sol a pino, Dona Conceio colheu m eia dzia de goiabas, aquelas que seencontravam nos galhos mais baixos, depois um p de couve roda pelas lagartas,e disse ao marido que ia preparar a couve picada, com um pouco de leo e sal,como fazia antigamente, s que naqueles tem pos temperava melhor a verdura equebrava um ovo sobre cada poro, e sempre tinha na mesa um prato de arroz,

pedaos de carne assada, algumas batatas. Mostrou as goiabas e disse que elasiam servir como sobrem esa; estavam maduras e perfumadas, mas que deviamter cuidado com os bichos.

No meu tempo de guri, este sculo nem havia chegado ainda disse ovelho , eu comia goiaba e nunca reparava nos bichos. Afinal eles so da prpriafruta, e, quando a gente pulava cerca para roubar dos vizinhos, quase sempre noite, no dava mesmo para examinar uma por uma.

Mas eu no gosto de bicho de goiaba disse ela.

Dom Eleutrio ajudou a mulher a catar gravetos no quintal para acender ofogo, juntou folhas secas e restos de madeira carcomida. A velha preparou oninho onde o fogo deveria pegar, abriu a caixa de fsforos e disse que norestava mais do que uma dzia de palitos. Era preciso economizar se quisessemfogo por mais algum tempo.

Seu Teodoro deve ter um a caixa lembrou o velho.Ela prosseguia ajeitando as folhas e gravetos. Tinha medo que no

pegassem de primeira, estavam ainda midos do sereno da noite. Reclamou domarido que fora apanhar folhas debaixo das rvores onde o sol no conseguia

chegar. No podemos pedir nada a Seu Teodoro disse ela. O coitado aindaprecisa viajar para qualquer outra cidade depois de cumprir a sua misso. Novai ser fcil um homem da idade dele sair a pelas estradas, a p, enfraquecido,depois de tanto tempo com to pouca comida.

Ainda bem que ele no vai precisar abrir nenhuma outra cova disseDom Eleutrio.

O fogo pegou bem nas folhas secas e logo depois os gravetos estalavam e achamin largava uma fumaa densa e escura no dia luminoso.

Queira Deus que o pobre do Seu Teodoro no vej a de l esta fum aa disse a velha , pois seno vai sentir gua na boca.

Ele sabe que temos pouca coisa.Comeram lentamente, com muita dificuldade, a couve que estava dura e

fibrosa. Sentiram o gosto e o cheiro de tempos passados, a gordura poucaamaciando a boca, e o sal que provocava forte salivao. Depois comeram emsilncio as goiabas, catando bichos e chupando as cascas macias. DonaConceio lembrou que deviam cortar um pouco de capim para a vaquinha quea cada dia parecia mais enfraquecida. Dom Eleutrio tranqilizou a mulher:cortara muito capim na vspera e at que a vaquinha no estava assim to fraca,

pois tentara arrombar as velhas tbuas do galpo para sair por a e s noconseguira por causa dos arames farpados que ele mesmo havia colocado para


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reforar a cerca apodrecida. Mesmo assim, foram ainda cortar um pouco maisde forragem e voltaram para casa to cansados que no tiveram mais nimosequer para conversar, ltima distrao que lhes restava.

O velho cochilou na cadeira de balano, queixo apoiado no peito. s vezessacudia o corpo todo num estremecimento sbito. Chegou a roncar, enquantoDona Conceio cruzava os braos sobre a mesa e recostava a cabea neles

como quem deseja apenas descansar um pouco. Afinal, dormira tambm. Squando uma alma-de-gato gritou forte numa ramada alta foi que os dois semexeram inquietos. A velha estendeu o brao e disse que gostaria de saber quehoras eram, mas com preciso, como antigamente, quando as pessoas diziam sotrs horas, vinte minutos, trinta segundos. Sem relgio, o tempo ficava m uito vagoe os dias e as noites se arrastavam longos demais. O velho olhou sem enxergar,viso ferida pela intensa claridade vinda da janela aberta, onde podiam perceberapenas o azul do cu e o verde difuso das rvores mais prximas.

Sonhei com Helosa. Que bom disse a velha. Eu no sonho com Helosa h muito tempo, e

at que devia sonhar. Outro dia m e lembrei dela quando abri a gaveta da cmodae encontrei um pedao de carta que ela mandou para ns, um ano antes demorrer em Porto Alegre, onde dizia que andava muito cansada e desgostosa davida, que no suportava m ais aquele em prego nos Correios e Telgrafos.Queixava-se das varizes e das tonturas, e dizia que era capaz de j urar que nasnoites de chuva ou de tempestade ouvia a voz da irmzinha Teresa, que morreraem 1918, de gripe espanhola, e que nem chegara a conhecer, a no ser deretrato.

Teresinha m orreu com trs anos de idade, meu Deus! exclamou o

velho. Pois ainda outro dia me lembrei da coitada da Helosa, que foi deixandopara casar amanh, para depois, no outro ano, exigindo sempre nos rapazesqualidades que nenhum deles podia ter, a repetir que era uma mulherindependente, at que depois dos trinta e quatro j urava que no se casaria mais,que no agentaria repartir a cam a dela com mais ningum.

O primeiro nam oro, parece que l por 1934, ela devia ter quantos anos?Uns quinze, tudo escondido, mas a gente sabendo das coisas e deixando. Foi comaquele rapaz que era filho do Dr. Linhares. Como era mesmo o nome do

menino? No me lembro mais disse ela. Pois as pessoas diziam que eles formavam um parzinho ideal e que o

rapaz tinha muito futuro, j andava se preparando para entrar na Escola deMedicina, o pai com duas fazendas e dono de uma banca de advogado de fazerinveja aos seus colegas da Capital.

Depois aquele nam oro com o tenente da Brigada Militar, que apareceucomo delegado de polcia, alegre, brincalho, bomio, que fazia serenatas nasnoites de vero, tocava piano nas reunies das famlias, pintava quadros comlagos, pssaros e muitas rvores. Depois se apaixonou pela Helosa e mandava

para e la, a cada dia, um soneto diferente. A na gaveta, ainda outro dia, encontre i um soneto dele, escrito com uma


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letra bem desenhada. Pois eu at que gostaria de ler esse soneto confessou Dona Conceio,

com alegria. No vai ser fcil encontrar no meio de tanto papel amarelado pelo tempo.

Mas espera, eu acho que ainda sei alguns versos, deixa eu ver, parece quecomeava assim: quem h que coraes alheios sonde? quantas vezes a m scara

do riso oculta dor latente que se esconde sob a curva de um falso paraso!Dom Eleutrio fez uma parada tentando rebuscar na m emria alguns dosoutros versos.

No lembras de nenhum outro? Sim, acho que sim, um pedacinho mais. Dizia assim: como a rama flrea

dos arbustos, onde o perfume se exala de improviso, tambm viceja do veneno afronde, limando a ponte de um punhal inciso.

To bonito suspirou a velha. Engraado que Helosa devolvia ao poeta quase todos eles, mas este

ficou nos seus guardados e depois que e la morreu veio parar na nossa casa, numa

caixa de cartas e recortes. Tudo o mais desapareceu com ela. E, depois que o tenente foi transferido, deixando com o despedida uns

versos muito tristes, falando na dor imensa de um corao ferido, Helosa aindateve um outro namorado, aquele rapaz da famlia Portinho, alto, magro, bemmoreno, cabelos rebeldes sempre a trapalhando os olhos, e que era dono de umentreposto colonial que tinha os seus depsitos ali para os lados da Viao Frrea.Ele nos mandava caixas de batatas e de cebolas, e para Helosa, cestas de frutase at saquinhos de bombons de Porto Alegre, com cartes coloridos de riachosentre pedras e ramos de flores com fitas de cetim.

Helosa tinha quase trinta anos, naquele tem po disse ele. Mas nem o rapaz devia ser m uito novo. At que as pessoas diziam que eleera vivo e que dera com os costados por aqui por puro desgosto, para esquecer o

passado. E, vej a s, Helosa no com ia os bombons e dava as frutas para os

vizinhos disse Dom Eleutrio, passando a lngua nos lbios ressequidos. Mas afinal disse ela , no contaste o sonho. verdade, tanta coisa para lembrar de antigam ente, que a gente chega a

esquecer o que se passa hoje. Eu disse que tinha sonhado com Helosa, no foi

mesmo? Foi o que eu entendi disse a velha. Pois foi. Eu estava j untando gravetos, o dia andava pelo meio, ento nossa

filha bateu no meu ombro e disse: pai, deixe que eu fao isso; na sua idade aspessoas devem descansar numa cadeira de balano. Eu disse que no estavacansado, e, mesmo que estivesse, a cadeira estava ocupada por sua m e. Helosadisse que eu estava enganado, que tu havias morrido em 1930 e que no havianingum na cadeira, que eu podia olhar, e me lembro que fiquei muito surpreso

porque vi que ela falava a verdade: a cadeira balanava sozinha, como se umfantasma estivesse sentado nela. Eu fiquei certo de que ela dizia a verdade, aindamais que estava vestida toda de preto, com o rosto lavado, pele muito branca, e,que coisa estranha, carregava j unto dela um menino que eu vi logo ser o nosso


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Silvrio, o pobrezinho. Mas ele morreu afogado na festa de Nossa Senhora dos Navegantes, em

1939. Ai, Jesus, como fiquei triste, o corpinho levado pelas guas disse ela. Mas o reverendo nos disse que Deus o tinha levado para o Reino dos Cus

e que devia seguir o caminho das guas do rio at desembocar nas guas do mar.o sei se isso era mesmo verdade. E nem perguntei a Helosa se o menino que

ela carregava pela m o era mesmo o Silverinho. Com os anos, s vezes, a genteesquece a fisionomia dos entes queridos. Mas e o resto do sonho? perguntou a velha. Ah, sim, o resto do sonho repetiu ele, sem nimo. Ento Helosa m e

afastou com o brao, largou a mo do menino que desapareceu misteriosamente,e comeou a recolher gravetos numa espcie de bolsa que fez com a ponta dasaia comprida e arrebanhada com uma das mos, e achei muito estranho queunto com os gravetos ela jogasse no vestido flores e folhagens. E de repente

Helosa estava dentro de um bosque e notei que havia passarinhos nos seuscabelos e que sua pele comeava a ficar to branca como a luz do dia. A ela

desapareceu.A velha foi at a janela, espiou para todos os lados, atentou bem para a

posio do sol e disse: Seu Teodoro j deve estar a caminho aqui de casa. Queira Deus que ele

tenha encontrado mais alguns ps de mandioca.


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7. Silvrio

Dona Conceio perguntou ao marido se ele no estava com fome. O velhodisse que era possvel, mas estava se desacostumando aos poucos, e se eladeixasse de perguntar ele era bem capaz de esquecer.

As pessoas no podem viver sem nada no estmago disse ela. Eu sei. O que quero dizer que quase no tenho fom e. Ento vamos esperar por Seu Teodoro.Dona Conceio desconfiou que ele no havia escutado o que dissera.

Repetiu em voz mais alta. Ele meneou a cabea por diversas vezes: verdade, verdade, vamos esperar por Seu Teodoro. Mas ele j no

devia estar chegando? Pois isso mesmo que estou achando estranho. No dem ora muito e o sol

desaparece de vez. Se bem que ele est acostumado a andar no escuro; conheceo caminho como poucos.

A velha foi para a cozinha e atiou o fogo. Na chapa quente a chaleirachiava com gua fervendo. O velho j tinha trazido a jarra com leite e sequeixara de que a vaca no era mais a mesma ou estava reduzindo o leite, coisamuito comum nos animais que vivem longe dos de sua espcie. Ela foi examinaras latas para saber o que havia restado. Notou que tudo diminua a olhos vistos, e

pensou no dia em que elas ficassem vazias e quando no adiantasse acender ofogo a no ser para esquentar a gua e ferver numa panela qualquer o que aindarestasse de couve ou para fazer ch de cidr, que eles beberiam sem acar.Mas havia ainda farinha de trigo. Abriu a lata e notou que era at bastante, em

comparao com as outras coisas. Voltou para a sala e disse para Dom Eleutrio,que dormitava de novo: Meu velho, acho que vou fazer po.Ele no entendeu, arregalou os olhos e colocou a mo em concha no ouvido,

perguntando que diabo ela ia fazer. Acho que vou fazer po repetiu ela.Dom Eleutrio meneou a cabea e esfregou as mos caquticas, ossos

quase furando a pele apergaminhada, e disse que nem se lembrava m ais do gostoque tinha o po.

Um dia ele comeou a lembrar como sempre, olhos perdidos num pontoqualquer , a pre ta Maria, que Deus a tenha no alto, fez uma fornada de pocaseiro, daqueles salpicados com erva-doce, e o Silvrio, que mal tinha feito osseus sete anos, correu para pegar a frma ainda fumegante e queimou asmozinhas, fazendo grandes bolhas que depois inflamaram e foi preciso que agente fosse at Porto Alegre, procurar um mdico bom.

O Doutor Antnio Torrado, portugus de Aveiros. Ele mesmo disse o velho. E l ficamos na casa do mano Ramiro.

aquele tempo ele morava na Rua da Varzinha, larga porta de escada e trsaneles com vidros floreados. Todo o mundo se preparava para receber o

Presidente e leito, o Dr. Washington Lus. Que ano foi isso? quis saber Dona Conceio.


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Olha, no estou bem certo, mas acho que foi l por 1926. Isso mesmo,1926. At que o Dr. Antnio Torrado festejava a proclamao do GeneralGomes da Costa, l na terra dele, e falava com orgulho num tal de ComandanteCabeadas.

Foi naquele ano que o tio Ramiro deu ao menino, como presente deaniversrio, a coleo do Tesouro da Juventude, e que terminou depois ficando

mais nas tuas mos do que mesmo nas mos do menino. Ah, o Tesouro da Juventude! Eu nem sei o que seria capaz de dar emtroca de um ou dois volumes daquela coleo de livros.

Que adiantava, se nem culos tens mais. Acho que os teus ainda me servem fez uma pausa com o se visse as

coisas do passado sua frente: O mano Ramiro, que tinha um crioulo s parapolir o seu automvel Overland, pneus de banda branca, grandes fariscromados. O sonho dele era ser visto pelo Presidente quando estivesse decolarinho de ponta virada, gravata de seda com prola espetada, imponente nosseus bigodes engomados.

Dona Conceio suspirou fundo, as lembranas lhe acudiam vvidas,palpveis:

Nessa viagem tu me deste uma caixa de p-de-arroz Rip e um vidro deextrato francs, e depois fomos assistir a um leilo dos Batista Pereira, na RuaErnesto Alves, s de mveis antigos de uma daquelas casas grandes, cheias detorrees, da Rua da Igreja.

Fui com o mano Ram iro recordava o velho, olhos semicerrados. Ocais fervilhava de gente quando encostou na am urada o navio Comandante Alvim,uma flotilha seguindo o barco, foguetes, Borges de Medeiros recebendo o

Presidente, o discurso do Intendente Otvio Rocha. Me lembro como se fossehoje. A banda de msica, contei cinqenta e dois professores, parecia umaorquestra sinfnica. Meu Deus, parece que foi tudo ontem.

O Silvrio, pobrezinho, ficou todo o tempo na j anela da casa do tio; elepensava que o cortejo fosse desfilar por ali e batia palmas com as duas mosenfaixadas, e no sentia nenhuma dor disse Dona Conceio.

Como no alimentasse nenhuma esperana de que Seu Teodoro viessenaquela noite, ela disse que era melhor passarem para a cozinha.

Teria acontecido alguma coisa com ele?

Acho que no disse a velha. Quem sabe uma indisposio, ou pode noter sentido fome, sei l, tanta coisa pode acontecer. E depois, Seu Teodoro no homem de cerimnias.

Ela arrastava as panelas de um lado para o outro, abriu a tampa do fornocom a mo protegida por um pano de prato encardido e roto. Depois foi buscar alata com farinha de trigo, botou gua numa tijela e disse que ia tentar fazer po

para aproveitar o ca lor do forno, lamentando que no tivesse ali nem ovo nemfermento.

Se a gente comer o po ainda quente disse ela , o po no chega a

endurecer. Estou com vontade de sentir o cheiro de po disse Dom Eleutrio,


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aspirando o ar da cozinha.Enquanto ela lidava com a massa pegajosa, o velho procurava rebuscar na

memria as coisas mortas: Foram muito importantes aqueles dias em Porto Alegre. O mano Ram iro

no sabia m ais o que fazer para agradar a gente. Comprou entradas para o CineGuarani, que levava naquelas noites a fita que era a coqueluche da poca, O

Fantasma da pera, com Lon Chaney. No existiu outro como ele, o Lon Chaney disse ela, suspirosa. Silvrio ficou em casa, constipado, nariz escorrendo e olhos vermelhos, a

tia lhe dando de hora em hora uma colher de xarope Bromil.Dona Conceio estava com a m assa quase no ponto. Ofegava pelo esforo,

e disse que ainda tinha farinha para duas ou trs fornadas. Tomara que d certo, ainda mais feito assim com tanta escassez; um

pouco de leite, duas colheres de acar, algumas gotas de leo, que nemmanteiga existe.

Abriu o forno, tirou l de dentro panelas e tampas avulsas, passou um panopara limpar um pouco a fuligem que cobria quase tudo e colocou a frma depo, fechando a portinhola.

Deus d nozes para quem no tem dentes, verdade disse ela, limpandoas mos no vestido. Tanto prato, tanta panela, tanto talher, e as latas vazias e euquase sem usar este forno que o melhor de todos os que tive na vida.

Ficou mexendo o mingau que cozinhava na chapa quente, olhar fixo naparede encardida.

V s como so as coisas disse Dom Eleutrio, ensimesmado, como seolhasse para dentro dele mesmo. Anos depois, voltei novamente ao cais de

Porto Alegre, mas ento para passar quase quarenta e oito horas naquelasamuradas, at que achassem o corpo do Silverinho que havia cado de uma das

barcaas na procisso de Nossa Senhora dos Navegantes, a padroeira dele. S foiencontrado perto da Lagoa dos Patos, a caminho do mar, que seria o seu destino.

O pobrezinho exclamou Dona Conceio. Com vinte anos, servio militar tirado, quase noivo, empregado de bom

salrio, sucesso em todos os bailes, alegre; santo Deus, s vezes eu nem sei o quepensar desta vida, mas at que a gente se conforma. Olha bem aqui, eu alem brar de tanta coisa e nem uma lgrima para provar a tristeza que estou

sentindo. Quando Inocncio Herdia morreu, o Silvrio andava pelos seus dezesseisanos disse a velha , e o pobrezinho ficou to desesperado, ele que adorava ocunhado, que eu cheguei a pensar que o m enino fosse ficar meio adoidado.

Para ele, o Inocncio Herdia devia ser assim como um rei de circo decavalinhos, entortando barras de ferro e batendo no pulso quanto aventureiro

passasse pelo seu balco. E, me lembro bem, depois daquela desgraa o meninoficou a chorar pelos cantos, como as meninas.

Febre alta durante a noite disse ela , pesadelos que faziam a casa todaacordar, no havia remdio que aplacasse aqueles calores, que tristeza!

Dom Eleutrio bateu na mesa, inquieto:


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Acho que no se deve pensar nas pessoas que se foram, dessa maneira.Eles descansam no Reino dos Cus e, se sabem que choram os e nos lamentamos,sofrem tambm e ficam a penar no limbo.

Que nos livre e guarde! disse ela.Entristecida, abriu o forno e viu que o po dourava e j desprendia um

cheiro gostoso que chegou a entrar pelo nariz de Dom Eleutrio: nem posso

acreditar, mesmo cheiro de po. Depois ele mergulhou no seu abatimento: Logo hoje que Seu Teodoro no veio. Deve ter acontecido alguma coisade ruim com o coitado. No encontro nenhuma explicao que me sirva.

Para falar a verdade disse a velha , no gostei muito do jeito deleontem. Sem apetite, sem energia e nada daquele entusiasmo que homem que se

preza precisa ter para ser um bom coveiro. S sei que vai deixar de comer umpo que apesar dos pesares me parece a m elhor coisa que se poderia ter feitonestas ltimas semanas.

J nem me lembro mais do gosto que tem o po disse Dom Eleutrio. O principal no esquecer o cheiro disse Dona Conceio, aspirando

fundo junto ao forno. Me lembro de uma vez que estivemos em Porto Alegre.O Silvrio era ainda um menino e queria comprar tudo o que via, at que

passamos pela porta de uma padaria e todos sentimos o cheiro de po recm -tirado do forno, e o menino fincou os ps na calada e disse que dali no sairiaenquanto a gente no lhe desse um daqueles pes bem quentinhos.

verdade. Agora me lembro do cheiro de po naquele dia disse o velho,olhando para longe.

Ento ns entramos prosseguiu ela, abrindo uma fresta na porta doforno, para espiar e o menino saiu de l com um enorme po-d'gua, a comer

como um esfomeado. As pessoas na rua at que paravam para olhar e sedivertiam com aquele menino faminto. E eu bem que sabia que no era s afome, mas o cheiro do po que ele comia. E isso ficou dentro de m im como umretrato. No como esses retratos de lbum, amarelado e impreciso, mas comoum desses retratos tirados ultimamente.

Dom Eleutrio suspirou, sorveu mais uma vez o ar perfumado pela farinhade trigo assando no forno. Perguntou, vivamente interessado:

Ser que este po j no est pronto?


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8. A Noite

Dom Eleutrio tossia muito e a velhinha no conseguia pensar em algumacoisa que pudesse acalmar os brnquios do marido. At m esmo o ch-de-cidrno resolvia mais. Lastimava a falta de tudo. Se Deus botasse ao alcance de suasmos, dentro de alguns daqueles vidros vazios, algumas colheres de mel, folhasde guaco e de agrio, saberia como preparar uma beberagem toda especialcontra aquela tosse irritante que deixava o marido extenuado. Tirou o pequenotabuleiro de po do forno, largou depressa o quentume sobre a mesa e foi buscaruma faca na gaveta. Tudo num lento ritual. O cheiro da fornada envolvendo todaa cozinha, os velhos aspirando o antigo perfume que se desprendia do po. DonaConceio tratou de cort-lo em fatias finas.

Ah, se a gente tivesse um pouco de manteiga disse e la.Dom Eleutrio no conseguia dizer nada, m as ficou olhando embevecido

para o po e term inou aproximando o rosto o mais que pde. Seus olhos estavam

enevoados, quando notou que o po murchava. Lembrou mulher que, se no ocomessem logo, pouco ia sobrar para o prazer deles.

Falta ferm ento disse ela. Mas ningum pretende guardar este po paraamanh. Vamos comer logo, afinal o que temos de melhor no dia de hoje.

Colocou uma fatia sobre a mesa, bem na frente do marido, preveniu quetivesse cuidado, pois estava muito quente. Pegou uma para si e pediu a ele queagradecesse a Deus pela graa de terem po mesa.

Senhor nosso Pai Todo-Poderoso, Te agradecem os a bno divina pelopo que nos d. Amm disse ele, olhos fechados, mos postas.

Tocou vrias vezes na fatia, como um gato, unhas esticadas, sentindo o calore vendo se dava para agarr-la firme, enquanto represava com os lbiosmurchos a saliva que ameaava descer pelo queixo. Dona Conceio botou

primeiro na boca um pequeno naco e a inda ficou alguns segundos a revolv-locom a lngua, at que o prendeu entre as gengivas, triturando-o com esforo eavidez. O marido permanecia quieto e curioso, como a esperar que a mulherdesse a sua opinio sobre o sabor do po quente.

E ento? quase com o o po do nosso tempo disse ela depois de engolir o

primeiro pedao. Est com medo de comer? No, estou apenas deixando que esfrie um pouco. um po que deve ser comido logo. Acho que dentro de m eia hora ele j

deve ficar duro como um pau.Dom Eleutrio decidiu-se, cortou um pedao com os dedos inseguros,

encheu a boca, ficou revirando o corpo estranho entre as gengivas calosas, faziasinal de aprovao para a mulher que o observava, at que a m assa desceu pelagarganta, rascante, e ele conseguiu dizer que o po estava uma beleza: lem brava

bem o po dos velhos tempos. Levantou-se com dificuldade, meteu sua canecanuma panela ao lado e retornou mesa:

Um pouco de leite sem pre aj uda. Fazia falta agora um caf disse ela. Para a gente no ficar aqui se


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lam entando, tanto mais que se sabe que h pessoas no mundo em situao bempior que a nossa.

Eu sei disso respondeu Dom Eleutrio. No estou me lamentando. Masessa outra gente que h no mundo, e que nem um pedao de po tem em cimada mesa, essa gente tambm nunca teve nos seus guardados um lbum defam lia como ns.

lbum de fam lia? quis saber ela, curiosa. Bem, no se pode dizer que sej a m esmo um lbum de famlia igual aesses que as pessoas tm na gaveta das suas cmodas ou na m esa da sala devisitas. Eu falo das lembranas.

Ficaram silenciosos por alguns instantes, cada um tentando mastigar o seupo do melhor j eito que podia, enquanto ele abrandava a secura da boca bebendopequenos goles de leite.

A noite cara de todo. O vento de primavera am ainara e quando algumrudo da rua chegava at a cozinha onde os dois mastigavam lentamente os seus

pequenos pedaos de po, Dom Eleutrio apontava com o queixo para os lados

da janela e dizia que eram as lebres, tinha certeza de que eram elas.s vezes a velha imaginava ouvir as passadas leves do coveiro. Depois se

despreocupava dos rumores de fora e esquecia-se de que nos ltimos temposhavia sempre trs pessoas mesa, com Seu Teodoro comendo o seumingauzinho sem alarde, esquivo, l uma vez que outra deixando escapar os seuscuidados sobre a sade de ambos. Ele, que mantinha as duas covas abertas esempre limpas, cobertas com velhas folhas de zinco para que no enchessemd'gua quando chovia, cuidando das mudinhas de flores que enfeitariam assepulturas depois de acabado o seu ltimo trabalho naquela cidade esquecida; e

a, ento, ele pegaria sua trouxa de roupas e de poucos utenslios, e abandonariaas runas e o passado; afinal cumprira com suas obrigaes e poderia dizer, aquem perguntasse, que estava de corao leve e conscincia tranqila.

Seu Teodoro no vem mesmo disse o velho. Era justamente nisso que eu estava pensando disse Dona Conceio,

limpando restos de po nos cantos da boca. Ou est doente ou decidiu irembora, pensando que a gente pode andar desgostosa por adivinhar que ele ests esperando que se morra.

Tolice , todos ns vamos morrer, uns primeiro, outros depois. E Seu

Teodoro, mais do que ningum, sabe disso. S fico com pena porque ele deixou de comer po. Quando o diaamanhecer a massa vai estar dura como pedra.

Acabou a farinha? quis saber o velho. Ainda no. Acho que d muito bem para um as duas ou trs fornadas,

desde que o po no seja m uito grande. Ento precisamos economizar disse ele. Como fizem os tantas vezes

durante a Grande Guerra. E isso que no era s farinha de trigo que a gente precisava econom izar

naquele tempo, mas tambm sal, acar, gasolina, querosene e energia eltrica. Carne, ests lembrada? Tantas semanas sem um pedacinho de carne

disse ele.


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A velha foi at o fogo, rem exeu nas brasas e enfiou mais gravetos.Encostou a mo na panela de leite, disse que estava bem quente.

Vamos comer agora um pouco do nosso mingau?Dom Eleutrio meneou a cabea; no estava com vontade de comer mais

nada: Estou querendo me recostar um pouco, tenho dores nas costas e, depois,

se a gente deitar, economiza pelo menos um pouco de querosene.Ento ela afastou a panela da chapa quente, fez o mesmo com a chaleira,ajudou-o a levantar-se e se encam inharam para o quarto, carregando o lampio

bruxuleante. Esperou que o marido se deitasse, deixou uma fresta na janela, queo tempo no parecia para chuva, apagou o lam pio e deitou-se tambm,lentamente, extenuada, atenta respirao opressa do marido.

Seus dedos caminharam pelo lenol pudo, levando a m o esclerosada e obrao m agro, at encontrarem a mo dele que repousava largada e fria.Pressionou a velha mo do companheiro, como a dizer que estava muito feliz porse encontrarem juntos havia quase setenta anos, apesar da c idade morta e do

rudo fugaz das lebres na noite cheia de pressgios.


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9. Teresa

O sono, afinal, fora carregado pelo vento, e a velha chegou a pensar queno deveria ter deixado a janela aberta; havia m uitas frestas nas juntas dastbuas empenadas. E assim era difcil conciliar o sono na longa noite. Sem que omarido dissesse uma palavra, sabia que ele estava de olhos arregalados no escurodo quarto. Chegavam da rua muitos sons estranhos, folhas secas em redemoinho,galhos que se partiam, pios de mochos eles haviam voltado depois de longaausncia , areia grossa atirada de encontro s velhas telhas, e as patinhasserelepes das lebres (ele era capaz de jurar que eram lebres) em corridas semdestino por entre as runas da cidade m orta.

No consegues dormir? disse Dom Eleutrio. O sono deve ter ido embora. Acho que o meu, ento, deve ter fugido com o teu, mas no faz mal, o

nico problema que a noite dobra de tamanho.

Um galho maior despencou da figueira e por um momento temeram que ofrgil telhado fosse cair na cabea deles. Mochos e lebres, assustados, sumiram

por algum tempo. Naquele instante ela imaginou ver no quarto, abrindo-se com oum leque, o lbum de famlia, visto por seus olhos embaciados que rebuscavamno passado distante vises de claro-escuro, pinceladas de cor ali e aqui, vozes erisos, imprecaes e doces palavras de ternura.

Agora, os dois, sem mesmo saber por qu, se lembravam da morte da filhaTeresa, com trs anos de idade, em 1918, levada pela gripe espanhola. Ogoverno mandara abrir valas comuns nas ruas para sepultar centenas e centenas

de mortos, numa seqncia de desgraas que a todos term inou por deixarinsensveis. Ningum mais conseguia chorar, que o fim do mundo afinal chegara.Mas o pensamento daqueles dias trgicos passou com a velocidade do prpriovento, e nem caberia um retrato de morte no lbum alegre das crianas, dosfilhos e netos, dos amigos, dos piqueniques, das festinhas de aniversrio, dos

passeios, dos grupos divertidos fotografados pelos lambe-lambes dos parques epraas.

Lembro que em 1916 Teresinha deu o seu primeiro passeio de jardineiracom o pai disse Dona Conceio, com voz que lembrava alguns tons cristalinosda garganta moa.

Ora, me lembro to bem com o se fosse hoje. A gente morava em PortoAlegre, na Rua da Margem. Samos por ali, no meio da poeira, a rua iaacompanhando as voltas do Riacho, eu ia abanando para os amigos que estavamna porta das casas ou que surgiam nas janelas baixas. Todos sabiam que era a

primeira viagem da m enina. Foi naquela poca em que inauguraram o PetitCasino, com tanta lmpada que ningum acreditava que no fosse haver umaexploso naquela caixa de luz. E numa noite isso aconteceu disse ele.

Mas nessa noite a gente no estava l. verdade, a gente no estava l. Soube depois que eles iluminaram a

cena com gs carbnico e tudo continuou como se nada houvesse acontecido.Era uma pea de Cludio de Souza.


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Eu Arranjo Tudo disse ela, lembrando-se do nome da pea. Isso mesmo. Naquele tempo eu fumava cigarros Lord e, sempre que

Teresinha pegava um resfriado e tossia muito, o rem dio era Peitoral Indiano.Dona Conceio sorriu enlevada, no escuro. Ao lado da cama onde agora se

encontravam os dois, insones, ela revia, com rara nitidez, o marido sentado numagrande cadeira de espaldar alto, entre os amigos de sempre: o bacharel Hiplito

dos Santos, mulato escuro de alvos dentes e gengivas vermelhas; o contador dafbrica de esquadrias, Guilherme Garcia, amasiado com uma preta, que eleescondia em casa durante o dia e s deixava sair, s vezes, noite, para queningum descobrisse seus am ores secretos, mas que todos conheciam emmincias; o fotgrafo Romildo Lopes, que costumava levantar o copo espumantede Cervej a Negrita, dos Irmos Bopp, para saudar o preclaro Dr. AntnioAugusto Borges de Medeiros, Presidente do Estado, e logo a seguir sofrer acontestao do guarda-fios dos Telgrafos, Etvo Menendez y Menendez,maragato de quatro costados, que saudava o eminente Dr. Assis Brasil, inimigodos republicanos.

Eu estou vendo aquela roda de cervej a disse ela que reunia os am igosno alpendre da nossa casa da Rua da Margem: o Estvo fazendo brindes e

brindes ao Dr. Assis Brasil... E o Romildo erguendo o copo pela sade do Dr. Borges. O fotgrafo,

desinfeliz, tinha um sexto sentido, parecia adivinhar a Revoluo de 23, quando ogoverno no quis reconhecer a candidatura do Dr. Assis Brasil Presidncia doRio Grande.

Quando nasceu o Joo Matias disse a velha o Dr. Assis Brasil tinha idopela segunda vez para Buenos Aires, como Embaixador. Estvo nem chegou a

ver isso, o coitado, morto daquela maneira na Revoluo de 30. Um ano antes de Teresinha ser cham ada para o cu, o nosso anj inho;

deixa eu ver, acho que foi em 1917 disse Dom Eleutrio , eu te dei deaniversrio o romanceA Duquesa de Martell, de Perez Escrich.

At parece que estou com ele agora, nas mos. Eu s tinha tempo mesmopara ler depois que todos se deitavam e dormiam, e era quando eu podia chorarde emoo.

Fez uma breve pausa, insegura, voz trmula: Ningum mais escreve livros com o Perez Escrich.

O vento amainara um pouco e eles ouviram nitidamente o baque surdo dealgo muito pesado. Deve ter cado o resto do muro dos fundos da Prefeitura disse Dom

Eleutrio. Ele estava cai-no-cai.Calou-se, enquanto a mulher permanecia silenciosa, s voltas com as folhas

invisveis de seu lbum. Depois disse: Espero que esta casa no desabe antes de ns. Tenho certeza que no tranqilizou ela. Ns estam os bem mais fracos.

A no ser que Seu Teodoro encontrasse um meio de apanhar algumas lebres devez em quando, mas ele se tornou vagaroso com a idade; o pobre anda to fracoque tenho c as minhas dvidas se ainda vai ter fora para pegar a p e j ogar


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terra em cima da gente. Quando a nossa hora chegar, m inha velha, s quando a nossa hora chegar

disse ele, com certa indiferena.Calaram-se, e parecia que tudo dormia. Teresa reapareceu para brincar

unto aos pais e vestia uma roupinha branca de rendas e grande gola golaparisiense, da Casa Sloper, relembrou Dona Conceio , e sua vozinha cristalina

confundia-se naquele momento com os rudos de fora, a brincar com suas bruxasde pano, de longas pernas, como naquele dia santificado da Assuno de NossaSenhora, sem saber que havia guerra no mundo, a f ilha cavalgando as pernas do

pai na mesma hora em que os soldados se matavam e na cidade as comissescvicas de moradores exigiam que as coisas no tivessem mais nomes alemes;quando a turba arrancou a placa do antigo Hotel Becker e logo depois era

pregada outra placa em seu lugar: Hotel Rio Branco. Morria, am edrontado, oRuder Verein Freundschaft e, das suas cinzas, renascia um outro clube, o Grmio

utico Unio, bandeira verde-amarela tremulando no topo dos mastros, o Hinoacional executado pelas bandas mveis que percorriam as ruas e praas.

Naquela poca eu achava que a nossa filhinha estava tuberculosa. Tobranquinha e frgil, aquela tosse que se ouvia na casa toda e varava as paredes, omedo silencioso dos irmos, o pnico que nos amargurava disse DonaConceio.

Eu at cheguei a pensar naquele caso de um pobre-diabo de Encruzilhada,que declarou aos jornais que estava ficando bom da tuberculose, porque depoisde cada hemoptise bebia uma colher de querosene.

E terminou morrendo queimado por dentro disse ela.A menina parecia correr agora por entre os canteiros da horta, alvoroando

patos e galinhas, o pai rindo muito das travessuras da filha, m eio tonto, a rodopiartam bm; a me sobressaltada com os pequenos arranhes e cortes, lavando comgua-da-guerra para evitar o ttano, e Dom Eleutrio a dizer que tudo aquilo era

bobagem, que deixasse a natureza em paz, que o anjo da guarda curava osferimentos e infeces.

Ele engoliu em seco: sabia adivinhar os pensamentos da mulher. Estavacerto de ter ouvido Dona Conceio dizer: cuidado, Teresinha, com essa cerca deespinhos. Mas era bem provvel que ela no tivesse dito nada. Comentou:

E vej a, quando chegou a gripe espanhola, foi justamente sobre ela que

recaiu o dedo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Parecia um caso isolado, ningumat ento adivinhava o que estava por vir, e foi at melhor que ningum soubesse.A menina chegara na porta e sua silhueta estava recortada por uma

estranha luz que vinha de fora, mas eles enxergaram distintamente seus olhosazuis e seus cabelos encaracolados, o vestidinho leve e transparente de rendas, avoz ntida na sua algaravia, tudo aquilo que tornava os dias de ento maravilhosos.

Dom Eleutrio fez um esforo demorado para levantar-se e correr paraabraar a filha miudinha, desprotegida naquela noite de rudos pressagos. E seuma lebre avanasse sobre ela e a devorasse como uma pequena muda de

pinheiro manso? Dona Conceio pediu que ele se aquietasse, a filha j se foracom o vento que assoprava assanhado e at que ela j podia ver pelas frinchasdas paredes que a madrugada estava a caminho, na hora exata em que o dia


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costumava fechar as pginas do seu velho e terno lbum, carregando para o seioda terra todas as lem branas das longas noites em que se imaginavam perdidosnum canto de mundo.

Estou ainda preocupada com Seu Teodoro disse ela. Pensei nele ainda h pouco confessou o velho. A gente precisa ir at

l, assim que o dia clarear e o sol comece a secar a umidade que cai do cu

durante a noite. uma cam inhada muito longa. Caminha-se devagar, ningum tem pressa. Leva-se uma terrina de leite

para e le, quem sabe mesmo uma sobra de po. A estas horas o resto de po virou pedra. Estou pensando outra coisa

disse ela. Vou levar farinha, sal, leo e assar no prprio forno da casa dele umoutro po novo e fresquinho.

Tudo isso disse o velho, buscando a mo da companheira enquantohouver bastante sol, enquanto a noite no chegar.

Ele notou, ento, que estavam muito ss.


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10. Madrugada

O sol deve estar a um palmo do horizonte disse Dom Eleutrio, abrindo aanela de par em par, aspirando fundo o ar da madrugada.

Tinha as costas dodas da noite insone, a garganta seca e contrada, os olhosenxergavam apenas a difusa e escassa claridade da manh que se anunciava.Perguntou mulher quando terminava a noite e comeava a manh. DonaConceio no entendeu a pergunta, mas disse que aquele pedao de tempo entrea noite e a m anh podia ser chamado de m adrugada. Ele aproximou-se da cama,

perguntou se a mulher precisava de aj uda para levantar-se, estendeu as mosque foram logo agarradas e, de respirao entrecortada, conseguiu mesmoajud-la a pr-se de p, vencendo um orgulho inexplicvel desde os tem pos emque era m oa e a ajuda no passava de um carinho indireto para reafirmar oamor entre eles. Mas o peso dos anos a puxava para o centro da Terra e, quandoo dia mal comeava a c larear, Dona Conceio precisava primeiro vencer a

fadiga do descanso, depois exercitava os dedos engelhados at o escasso sangueinfiltrar-se pelas veias, bombeado por um corao extenuado.

Dom Eleutrio disse que naquela manh ele tiraria o leite da vaquinha. Amulher preveniu que o leite estava escasseando. Ou o bichinho estava mesmo

preguioso ou no tinha mais nada que dar. Seu Teodoro, posso jurar, bem capaz de sugerir que se carneie a

pobrezinha disse ele. Carnear a Beleza? E eu pergunto: de que serve carnear o animalzinho se a

gente no tem gelo para conservar a carne e nem dentes e nem estmago para

comer ela em dois dias? L isso verdade concordou o velho, j sentindo na boca o gosto dacarne fresca.

Dona Conceio tirou umas canecas de gua da cisterna e tratou de lavar orosto na bacia de ferro esmaltado. Depois passou a mo molhada pela parede eno encontrou a toalha que ali ficava todos os dias, dependurada. Perguntou aomarido pela toalha e ele disse que na noite anterior havia se utilizado dela paraenxugar as mos antes de comer o po que sairia do forno. Fo

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Enquanto a Noite Nao Chega - Josue Guimaraes