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Ensaios sobre o pensamento K K A A R R L L P P O O P P P P E E Paulo Eduardo de Oliveira (organizador) o de E E R R

Ensaios Sobre o Pensamento de Karl Popper

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Ensaios sobre o pensamento de

KKAARRLL PPOOPPPPEE

Paulo Eduardo de Oliveira (organizador)

ensamento de

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Não me considero especialista nem em ciência nem em filosofia. Tenho, contudo, tentado com afinco, durante toda a minha vida, compreender alguma coisa acerca do mundo em que vivemos. O conhecimento científico e a racionalidade humana que o produz são, em meu entender, sempre falíveis ou sujeitos a erro. Mas são também, creio, o orgulho da humanidade. Pois o homem é, tanto quanto sei, a única coisa no universo que tenta entendê-lo. Espero que continuemos a fazê-lo e que estejamos também cientes das severas limitações de todas as nossas intervenções.

Karl Raimund Popper (O mito do contexto)

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Copyright © 2012

Todos os direitos desta edição reservados ao CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES

OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.) Ensaios sobre o pensamento de Karl Popper / Paulo Eduardo de Oliveira (org.). Curitiba: Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012. ISBN 978-85-65531-02-3

1. Filosofia. 2. Filosofia da Ciência. 3. Epistemologia. 4. Filosofia Política. Inclui bibliografia.

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CÍRCULO DE ESTUDOS BANDEIRANTES Afiliado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná Rua XV de Novembro, 1050 - Curitiba – Paraná Fone: (41) 3222-5193 http://www.pucpr.br/circuloestudos/ Presidente: Prof. Dr. Clemente Ivo Juliatto Diretor: Prof. Sebastião Ferrarini Conselho Editorial Prof. Dr. Agemir de Carvalho Dias – FEPAR Prof. Dr. Edilson Soares de Souza – FTBP Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Cruz – PUCSP Prof. Drª Etiane Caloy Bovkalovski – PUCPR Prof. Dr. Euclides Marchi – UFPR Prof. Dr. Gerson Albuquerque de Araújo Neto – UFPI Prof. Dr. Jean Lauand – USP Prof. Dr. Jean-Luc Blaquart – Universidade Católica de Lille (França) Prof. Dr. João Carlos Corso – UNICENTRO Prof. Dr. Joaquín Silva Soler – PUC-Chile Prof. Drª Karina Kosicki Bellotti – UFPR Prof. Dr. Lafayette de Moraes – PUCSP Prof. Drª Márcia Maria Rodrigues Semenov – UNISANTOS Prof. Drª Maria Cecília Barreto Amorim Pilla – PUCPR Prof. Dr. Paulo Eduardo de Oliveira – PUCPR Prof. Dr. Silas Guerriero – PUCSP Prof. Dr. Uipirangi Franklin da Silva Câmara – FTBP Prof. Drª Wilma de Lara Bueno – UTP

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Nota do Organizador A sequência dos capítulos não obedece a um critério específico. No entanto, esta mesma sequência é utilizada para a apresentação da breve biografia dos respectivos autores dos capítulos, na sessão Sobre os Autores. Procurou-se, ao longo de toda a obra, dar certa homogeneidade aos formatos das citações e referências bibliográficas utilizadas. Contudo, na medida do possível, respeitou-se também o estilo de cada autor. As notas de rodapé têm numeração sequencial em toda a obra, independentemente do capítulo, de modo a manter a unidade do trabalho.

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SSUUMMÁÁRRIIOO AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO

8

SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS 14

TTEEOORRIIAA DDAASS PPRROOPPEENNSSÕÕEESS Gerson Albuquerque de Araujo Neto

19

OO PPLLUURRAALLIISSMMOO DDAA TTEESSEE DDOO MMUUNNDDOO 33 DDEE PPOOPPPPEERR João Batista Cichero Sieczkowski

32

PPOOPPPPEERR,, AA DDEEMMAARRCCAAÇÇÃÃOO DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA EE AA AASSTTRROOLLOOGGIIAA Cristina de Amorim Machado

50

PPOOPPPPEERR EE AA QQUUEESSTTÃÃOO DDAA PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE Ney Marinho

70

AALLGGUUMMAASS NNOOTTAASS SSOOBBRREE AA CCOOSSMMOOLLOOGGIIAA DDEE KKAARRLL

PPOOPPPPEERR Julio Cesar R. Pereira

89

OO RREEAALLIISSMMOO EEMM PPOOPPPPEERR EE PPEEIIRRCCEE:: UUMM CCOONNTTRRAAPPOONNTTOO José Francisco dos Santos

113

AA HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA EE AA EEPPIISSTTEEMMOOLLOOGGIIAA DDEE

PPOOPPPPEERR Jézio Hernani Bomfim Gutierre

134

AASS RREELLAAÇÇÕÕEESS EENNTTRREE PPOOPPPPEERR EE KKUUHHNN Elizabeth de Assis Dias

145

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VVEERRDDAADDEE EE VVEERROOSSSSIIMMIILLHHAANNÇÇAA NNAA EEPPIISSTTEEMMOOLLOOGGIIAA DDEE PPOOPPPPEERR Gelson Liston

169

NNOOTTAASS SSOOBBRREE AA ““PPRROOPPEENNSSÃÃOO QQUUÂÂNNTTIICCAA”” PPOOPPPPEERRIIAANNAA Raquel Sapunaru

184

AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÃÃOO PPOOPPPPEERRIIAANNAA ÀÀ DDIISSTTIINNÇÇÃÃOO EEXXPPLLIICCAAÇÇÃÃOO--CCOOMMPPRREEEENNSSÃÃOO Gustavo Caponi

198

AA FFIILLOOSSOOFFIIAA DDEE KKAARRLL PPOOPPPPEERR EE SSUUAASS IIMMPPLLIICCAAÇÇÕÕEESS NNOO EENNSSIINNOO DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA Fernando Lang da Silveira

210

PPOOPPPPEERR EE AA EECCOONNOOMMIIAA:: EEXXIISSTTEE UUMM MMÉÉTTOODDOO PPRRÓÓPPRRIIOO PPAARRAA AASS CCIIÊÊNNCCIIAASS DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE?? Brena Paula Magno Fernandez

231

IINNTTEERRVVEENNÇÇÃÃOO SSOOCCIIAALL EE DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO HHUUMMAANNOO EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR Solange Regina Marin

252

NNOOTTAASS EEMM TTOORRNNOO DDOO DDEEBBAATTEE PPOOPPPPEERR––AADDOORRNNOO Túlio Velho Barreto

274

LLIINNGGUUAAGGEEMM EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO:: KKAARRLL PPOOPPPPEERR EE AA QQUUEESSTTÃÃOO DDAA CCOOMMUUNNIICCAAÇÇÃÃOO Marcia Maria Rodrigues Semenov

295

ÉÉTTIICCAA EE TTOOTTAALLIITTAARRIISSMMOO:: AA CCRRÍÍTTIICCAA DDEE PPOOPPPPEERR AAOO

HHIISSTTOORRIICCIISSMMOO EE ÀÀ DDOOUUTTRRIINNAA DDOO PPOOVVOO

EESSCCOOLLHHIIDDOO Paulo Eduardo de Oliveira

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AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO Karl Popper é a principal referência da epistemologia

contemporânea e suas ideias, como escreveu Imre Lakatos, “constituem o mais importante desenvolvimento da filosofia do século XX”. Para David Miller, um de seus discípulos e principal assistente ao longo de muitas décadas, “poucos filósofos sentiram uma sede de conhecimento tão revigorante e insaciável”. Segundo o professor Leônidas Hegenberg, tradutor da edição brasileira de A lógica da pesquisa científica, Popper “se revela um dos pensadores mais fecundos de nosso tempo, digno sucessor de Kant e Russell, e que só tem uns poucos rivais de nota, como Carnap e Quine”.

A grandeza de seu pensamento decorre da fecundidade e alcance de sua obra, traduzida em mais de 20 idiomas, cujos principais títulos, em forma de livro, são: A lógica da pesquisa científica (1934), A miséria do historicismo (1944-1945), A sociedade aberta e seus inimigos (1945), Conjecturas e Refutações (1963), Conhecimento Objetivo (1972), Autobiografia intelectual (1974), O eu e seu cérebro, escrito em parceria com John C. Eccles (1977), Os dois grandes problemas da teoria do conhecimento (preparado na década de 1930, mas publicado apenas em 1979), a trilogia Pós-Escrito à Lógica da Pesquisa Científica (1982-1983), Um mundo de propensões (1990) e O mito do contexto (1994). Entre as publicações póstumas, destacam-se: Em busca de um mundo melhor (1995), A lição deste século (1996), O mundo de Parmênides (1998) e A vida é aprendizagem (1999).

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No Brasil, a introdução do pensamento de Popper, em língua portuguesa, se deu em 1959, pela publicação de A sociedade aberta e seus inimigos, seguida por A lógica da pesquisa científica (1974) e Conhecimento Objetivo (1975). Nas décadas de 1980 e 1990, surgiram novas traduções, publicadas em Portugal e no Brasil, além de trabalhos de comentadores, incluindo dissertações e teses sobre elementos diversos do pensamento popperiano.

Algumas notas biográficas poderão ser úteis para situar o filósofo em seu contexto. Karl Raimund Popper nasceu em Viena, em 1902. Estudou matemática, física, filosofia e psicologia, obtendo seu doutorado em 1928, na Universidade de Viena. Casou-se em 1930, imaginando que sua carreira seria definida pela dedicação ao ensino secundário de matemática e física. Porém, foi estimulado a apresentar para publicação as ideias que havia discutido com alguns intelectuais de Viena, inclusive com membros do Círculo de Viena. Assim nasceu sua primeira obra, Logik der Forschung [A lógica da pesquisa científica], em 1934: note-se que a tradução inglesa, sob o título The logic of scientific discovery, veio a público apenas em 1959.

Nos anos seguintes, Popper fez uma série de viagens a convite de algumas universidades europeias e norte-americanas, realizando conferências e divulgando sua obra. Desse modo, tornou-se “filósofo profissional”.

Em 1937, por ser filho de família judia, fugiu da perseguição nazista, emigrando com a esposa para a Nova Zelândia, onde permaneceu até o final da Segunda Grande Guerra. No início de 1946, partiu para a Inglaterra, para assumir a cadeira de “Lógica e Método Científico”, na London School of Economics. Membro da Royal Society, tornou-se Sir em 1965. Aposentado em 1969, foi eleito “Professor Emérito” da Universidade de Londres. Desde então, nunca deixou de estudar, escrever e fazer conferências em todo o mundo. Continuou a viver de forma simples e modesta, em

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Buckinghamshire, nas proximidades de Londres, até sua morte, ocorrida em 1994.

Popper é reconhecido pela originalidade de sua posição filosófica acerca da ciência. Considerado, como afirma Neurath, “a oposição oficial do Círculo de Viena”, desenvolveu uma abordagem crítica em relação à tendência positivista. Para ele, nosso conhecimento, incluindo o conhecimento científico, é sempre falível, conjectural e passível de erro. Desse modo, propõe a falseabilidade como critério de demarcação entre teorias científicas, de um lado, e teorias não científicas ou pseudo-científicas de outro lado (além da matemática, da lógica e da metafísica). Para tanto, Popper sugere que a construção de teorias científicas se apoie não mais na lógica indutiva, cujo problema ele afirma ter resolvido, mas na lógica dedutiva, em razão da assimetria lógica que descobre entre indução e dedução: enquanto, na indução, muitos casos particulares não conseguem provar a verdade de uma teoria, na dedução um só caso consegue provar sua falsidade. Com efeito, teorias devem ser apresentadas como conjecturas ousadas a serem submetidas a testes rigorosos com o intuito de falseá-las ou, eventualmente, de corroborá-las mas, jamais, de verificá-las ou confirmá-las de modo absoluto.

Popper sustenta, então, que o que distingue a racionalidade científica é a atitude crítica, mais preocupada com a busca da verdade do que com a defesa de teorias que possam eventualmente ocultá-la ou dela se afastar: daí sua compreensão de que a ciência se assemelha a um pântano, onde de vez em quando se encontra uma pedra firme.

Seu racionalismo crítico, como ficou conhecido o núcleo de seu pensamento, coloca-se frontalmente contra algumas das principais construções teóricas de seu tempo, sobretudo a Psicanálise de Freud, a Psicologia Individual de Adler e o Marxismo (além do Positivismo Lógico, como já dissemos). De

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outro lado, Popper afirma inspirar-se em Einstein e também em Darwin, cujo pensamento científico denota a estrutura conjectural que ele tanto valoriza.

A base ética do pensamento popperiano assenta-se na compreensão dos limites do conhecimento humano, de sua fragilidade, e da absoluta falta de condições de se estabelecer um critério de verdade. Desse modo, cabe-nos desenvolver a atitude da modéstia intelectual que, como Sócrates, admite a pequenez de nosso saber diante do abismo de nossa ignorância. Tal concepção ética terá reflexos em sua epistemologia e também em seu pensamento político. Expressão disso é a crítica popperiana aos regimes totalitários e às filosofias políticas que conduzem ao totalitarismo que, na sua opinião, estão expressas sobretudo no pensamento de Platão, Hegel e Marx.

A concepção popperiana de racionalidade crítica vai se opor, de igual modo, a todas as expressões filosóficas obscuras, que fogem da simplicidade e da clareza, virtudes que devem ser a marca do discurso de todo intelectual, segundo Popper. O principal alvo das críticas de Popper, neste sentido, são os pensadores da Escola de Frankfurt, sobretudo Adorno e Habermas. No campo da epistemologia, principalmente, o pensamento de Popper não deixou de produzir reações críticas. Entre as expressões mais vigorosas dessa crítica devemos recordar os trabalhos de Imre Lakatos, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Porém, tais posicionamentos críticos não foram capazes de ofuscar a grandeza da obra de Popper, que teve a oportunidade de discuti-los e replicá-los abertamente.

Os ensaios reunidos neste volume constituem importante contribuição não apenas para a divulgação do pensamento de Karl Popper, mas também para abrir perspectivas críticas para a análise de sua obra e para uma avaliação ponderada de suas propostas. Pela forma como o

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próprio Popper entende sua filosofia, desde as primeiras linhas, trata-se de “propostas” que obrigam-nos a “tentar encontrar respostas novas e insuspeitadas”1. Nada estaria mais distante do racionalismo crítico que uma tentativa de transformá-lo em dogma e “moda filosófica” aceitos sem crítica. Não sem razão, Popper sempre esteve aberto às críticas, nascidas até mesmo de seus discípulos mais próximos, como Lakatos, Kuhn e Feyerabend, como já dissemos. Tentava ele, desse modo, viver o que ensinava ao insistir tantas vezes na seguinte expressão: “Posso estar errado e vocês podem estar certos, mas por um esforço poderemos nos aproximar da verdade”2.

Os autores destes ensaios, sem exceção, são pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, que se dedicaram, em cursos de mestrado e/ou doutorado, a apresentar pesquisas referentes à filosofia popperiana em seus mais diferentes aspectos. Alguns artigos resultam destas dissertações ou teses; outros são desenvolvimentos posteriores das pesquisas realizadas. Atualmente, como se pode ver na seção Sobre os Autores, estes pesquisadores se dedicam ao ensino em cursos de graduação e pós-graduação, em instituições espalhadas de norte a sul do país, representando assim a riqueza dos pontos de vista e das análises a partir de contextos diversos.

Os temas aqui tratados abrangem os principais elementos da obra de Popper, permitindo ao leitor uma visão de amplo horizonte das temáticas desenvolvidas pelo filósofo austríaco, embora sem esgotar todos os aspectos que a obra de Popper apresenta. Não há uma ordem pré-estabelecida entre os capítulos, de modo a permitir uma leitura mais livre do conjunto da obra.

1 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 39. 2 POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, vol. 2, cap. 24, p. 232.

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Quero manifestar minha mais profunda gratidão a todos os autores que participam desta publicação conjunta, cujo empenho e dedicação a este trabalho é de reconhecido mérito. Sem eles, esta obra não passaria de um sonho. Com eles, ela se tornou realidade e, hoje, pode ser oferecida aos leitores brasileiros que já conhecem a obra de Popper ou que a ela estão sendo apresentados. É nossa esperança que estes textos estimulem a todos para uma compreensão ampliada do pensamento de Popper que, em última instância, como ele mesmo afirmava, dedicou seu trabalho em prol da construção de um mundo melhor.

Quero agradecer, de modo especial, ao Círculo de Estudos Bandeirantes, órgão cultural agregado à Pontifícia Universidade Católica do Paraná, que aceitou a publicação deste trabalho e envidou todos os esforços para sua produção editorial.

Em nome dos meus co-autores, tomo a liberdade de oferecer este trabalho a todos os nossos alunos, que são a razão de nosso empenho em compreender sempre mais o valor do conhecimento e, ao mesmo tempo, em desenvolver a atitude da modéstia intelectual, que é, sem dúvida, a mais significativa lição da vida e da obra de Popper.

Paulo Eduardo de Oliveira

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

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SSOOBBRREE OOSS AAUUTTOORREESS

GGEERRSSOONN AALLBBUUQQUUEERRQQUUEE DDEE AARRAAUUJJOO NNEETTOO Graduado em Engenharia Civil e Filosofia pela UFPI. Fez Mestrado em Filosofia pela PUC-SP e Doutorado em Comunicação e Semiótica pela mesma universidade. Fez Pós-Doutorado em Filosofia pela UERJ. É professor Associado da UFPI, onde leciona no Departamento de Filosofia e no Mestrado em Ética e Epistemologia. JJOOÃÃOO BBAATTIISSTTAA CCIICCHHEERROO SSIIEECCZZKKOOWWSSKKII Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Doutor em Filosofia na área de Epistemologia pela PUCRS. Licenciado e bacharel em filosofia pela UFRGS e mestrado na PUCRS com a dissertação: A Falseabilidade, a tese dos três mundos e o mundo três em Karl Popper. Leciona nas áreas de metodologia científica e história e filosofia das ciências. Entre outras publicações, publicou O pluralismo da tese dos três mundos de Popper e a crítica de Habermas, em 2006, na Revista Princípios.

CCRRIISSTTIINNAA DDEE AAMMOORRIIMM MMAACCHHAADDOO Bacharel em Filosofia pela UERJ, mestre em Filosofia pela PUC-Rio e doutora em Letras também pela PUC-Rio. Lecionou nos Departamentos de Filosofia da UERJ, PUC e Bennett, e foi bolsista PCI do MAST, onde desenvolveu pesquisa sobre o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). Atualmente é

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professora adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM). NNEEYY MMAARRIINNHHOO Psiquiatra e Psicanalista. Membro Efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Coordenador dos cursos: Estudo da obra de W.R.Bion e Investigação Psicanalítica das Psicoses, no Instituto da SBPRJ. Doutor em Filosofia (PUC-Rio). Pós doutorando no Programa História das Ciências, Técnicas e Epistemologia (COPPE/UFRJ). Realiza atualmente pesquisa sobre a noção de loucura na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). JJUULLIIOO CCEESSAARR RR.. PPEERREEIIRRAA Doutor em Filosofia pela PUCRS. Publicou: Epistemologia e Liberalismo – Uma Introdução a Filosofia de Karl Popper e organizou: Popper – As Aventuras da Racionalidade, além de vários artigos em jornais e revistas. Lecionou na PUCRS, UFSM, UEL, FACCAT. JJOOSSÉÉ FFRRAANNCCIISSCCOO DDOOSS SSAANNTTOOSS É graduado em Filosofia pela FEBE (atual Unifebe – Brusque-SC), especialista em Fundamentos da Educação pela FURB (Blumenau-SC), mestre e doutor em Filosofia pela PUC-SP. É professor na Faculdade São Luiz e Unifebe (Brusque-SC) e Faculdade Sinergia (Navegantes-SC). JJÉÉZZIIOO HHEERRNNAANNII BBOOMMFFIIMM GGUUTTIIEERRRREE Professor de Filosofia da Ciência e Filosofia da Linguagem no departamento de Filosofia da Unesp-FFC-Marília. Sua área de pesquisa estende-se pelos debates da epistemologia anglo-saxã em torno do racionalismo e ontologia da ciência. Entre seus recentes trabalhos publicados encontra-se a organização e

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tradução de Escritos sobre ciência e religião, de T. H. Huxley (2008). EELLIIZZAABBEETTHH DDEE AASSSSIISS DDIIAASS Doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, professora de Filosofia da Ciência da Faculdade de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pará. Publicou o livro Popper e as Ciências Humanas. GGEELLSSOONN LLIISSTTOONN Gelson Liston é Doutor em Filosofia (UFSC, 2008) e Bolsista da CAPES (Proc. BEX 9362/11-8). Atualmente, é professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina. Atua principalmente na Graduação em Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. RRAAQQUUEELL SSAAPPUUNNAARRUU Graduada em Física pela UFRJ, mestrado e doutorado em Filosofia pela PUC-Rio. Atua como professora adjunta do Instituto de Ciência e Tecnologia da UFVJM, onde ministra as disciplinas de Fundamentos e Técnicas de Trabalho Intelectual, Científico e Tecnológico, Questões de Sociologia e Antropologia da Ciência e Questões de História e Filosofia da Ciência e coordena o Núcleo de Filosofia e História da Física Matemática (NUFIHM). GGUUSSTTAAVVOO CCAAPPOONNII Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência (UNICAMP, 1992), é Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do CNPq. Ele é autor de: Georges Cuvier: un fisiólogo de museo (UNAM: México, 2008); Buffon (UAM: México, 2010) e La segunda agenda darwiniana (Centro Lombardo Toledano: México, 2011).

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FFEERRNNAANNDDOO LLAANNGG DDAA SSIILLVVEEIIRRAA Licenciado em Física e mestre em Física pela UFRGS. Doutor em Educação pela PUCRS. Professor associado, lotado no IF-UFRGS, lecionando na graduação e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Física. Produção intelectual relacionada ao ensino de Física, com ênfase em Tópicos de Física Geral, História e Filosofia da Ciência e Métodos Quantitativos aplicados à Pesquisa em Ensino de Física. BBRREENNAA PPAAUULLAA MMAAGGNNOO FFEERRNNAANNDDEEZZ Economista, formada pela UFRJ. Especialização em Filosofia Econômica pela FGV/RJ. Pós-Graduação em Lógica, Filosofia Pragmática e Filosofia Econômica pela Johann Wolfgang Von Goethe Universität – Frankfurt/Alemanha. Mestrado em Filosofia e Doutorado em Ciências Humanas pela UFSC. Pós-Doutorado em Epistemologia pela USP. Atualmente trabalha como Professora Adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina. SSOOLLAANNGGEE RREEGGIINNAA MMAARRIINN Graduada em Ciências Econômicas, Mestre em Desenvolvimento Rural e Doutora em Desenvolvimento Econômico, com estágio de doutoramento na Marquette University/WI-USA. Atualmente é professora do curso de Ciências Econômicas e do Mestrado em Economia e Desenvolvimento da UFSM.

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TTÚÚLLIIOO VVEELLHHOO BBAARRRREETTOO Cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Recentemente, publicou os livros Na Trilha do Golpe – 1964 Revisitado (2004), A Nova República – Visões da Redemocratização (2006) e 1964 – O Golpe Passado a Limpo (2007). MMAARRCCIIAA MMAARRIIAA RROODDRRIIGGUUEESS SSEEMMEENNOOVV Filósofa, Pedagoga, Bacharel em Direito, Comunicóloga e Semioticista. Experiente em Magistério desde os 17 anos de idade. Doutora em Comunicação e Semiótica, Mestre em Filosofia, ambos pela PUC-SP; Bacharel e Licenciada em Filosofia na USP; Pedagoga pela UNIMES; Bacharel em Direito pela “Católica UniSantos”onde é Professora Titular. Leciona Filosofia da Ciência, Ontologia, Metodologia da Pesquisa Científica e Ética e Legislação. Publicou muitos artigos de Filosofia. Lecionou na UNISANTA e UNILUS. PPAAUULLOO EEDDUUAARRDDOO DDEE OOLLIIVVEEIIRRAA Filósofo, com Pós-Doutorado pela UFPR. Doutor e Mestre em Filosofia das Ciências Humanas pela PUCSP. Graduado em Filosofia pela PUCPR. Atualmente, é professor titular do Departamento de Filosofia da PUCPR, em Curitiba. Autor, entre outros, de Introdução ao pensamento de Karl Popper (Champagnat, 2010, em parceria com o Prof. Bortolo Valle) e Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper (Paulus, 2011).

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CAPÍTULO 1 TTEEOORRIIAA DDAASS PPRROOPPEENNSSÕÕEESS

Gerson Albuquerque de Araujo Neto

A obra de Karl Popper, um dos maiores filósofos do

século XX, é bastante eclética. Abrange desde a questão da demarcação do conhecimento científico, o problema da indução, o marxismo, a história, a probabilidade, etc. Todos estes assuntos foram tratados com profundidade, apresentando respostas originais e polêmicas para muitas destas questões. O objetivo deste texto é analisar a Teoria das Propensões de Karl Popper. Esta é sua proposta para resolver algumas questões das teorias das probabilidades.

Popper afirma que se aproximou dos problemas das probabilidades por acreditar que “yet we still lack a satisfatory, consistent definition of probability; or what amouts to much the same, we still lack a satisfactory axiomatic system for the calculus of probability” (POPPER, 1980, p. 146)3.

Acrescenta Popper que os epistemólogos precisam explicar melhor a relação entre a probabilidade e a

3 Na tradução brasileira de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota, publicada pela Edusp, com o título A Lógica da Pesquisa Científica, em 1993, 9ª ed., página 160, afirma: “continua a faltar uma definição coerente e satisfatória de probabilidade, ou, o que vale aproximadamente dizer o mesmo, continua faltar um sistema satisfatório para o cálculo de probabilidades”. Uma nota de esclarecimento precisa ser feita. As citações por nós utilizadas algumas vezes aparecem em inglês, outras vezes aparecem em português. Na escolha, utilizou-se o critério de maior clareza.

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experiência. De fato, no mesmo texto, mais adiante, ele observa: “the ralations between probability and experience are also still in need of clarification” (POPPER, 1980, p. 146)4.

Alguns críticos de Popper entendiam que o cálculo das probabilidades entrava em conflito com sua teoria demarcatória da ciência, o falseacionismo. Contudo, para Popper, esse conflito era apenas aparente. Sobre esse fato, ele afirma: “in investigating this problem we shaw discover what will at first seem na almost insuperable objection to my methodological views” (POPPER, 1980, p. 146)5.

Ele resolveu, então, elaborar uma teoria do cálculo das probabilidades, tentando superar essa aparente confrontação, advertindo, no entanto, que desenvolverá esta sua teoria na linha adotada por Richard Von Mises, a teoria das probabilidades em termos de frequência. Observa, porém, que não adotará o axioma do limite ou axioma da convergência.

Popper, também, se propõe a resolver o problema da relação entre probabilidade e experiência. A esse, ele chamou de problema de decidibilidade das sentenças probabilísticas.

Queria com isso ajudar os físicos a sair de uma situação em que as teorias das probabilidades, à sua disposição, eram insatisfatórias. Isto está claro quando ele afirma: “my hope is that investigations will help to relieve the present unsatisfactory situation in which physicists make much use of probabilities wilthout being able to say, consistently they mean by ‘probability’” (POPPER, 1980, p. 146-147)6.

4 Trad. brasileira, p. 160: “As relações entre probabilidade e experiência também reclamam esclarecimento”. 5 Trad. brasileira, p 160: “Ao investigar esse problema, descobriremos o que, à primeira vista, parecerá um obstáculo quase insuperável a minhas concepções metodológicas”. 6 Trad. brasileira, p. 161: “Espero que essas investigações ajudem a afastar a insatisfatória situação atual em que os físicos se encontram, fazendo amplo uso das probabilidades sem estarem habilitados a dizer, coerentemente, o que pretendem dizer com ‘probabilidade’”.

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Embora Popper tenha começado a escrever sobre a Teoria das Propensões no seu livro Lógica da Pesquisa Científica, ele escreveu esta teoria no Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, como aponta seu discípulo David Miller numa conferência, de uma série realizada pelo Royal Institute of Philosophy, no período de outubro de 1994 e março de 1995. Posteriormente, essas conferências foram transformadas em livro, com o título Karl Popper: Philosophy and Problems. TEORIA DAS PROBABILIDADES

A palavra probabilidade possui diversas acepções e diversas são as suas aplicações. Na economia, nos jogos, na estatística, etc. Podemos arriscar dizer que é difícil um campo de estudo que não aplique um pouco de probabilidade no seu trabalho. Observamos que a ciência da saúde, os diversos campos da tecnologia, a política e qualquer outra ciência sempre se defrontam com imprecisões ou situações que requerem o uso de probabilidade. Portanto, os teóricos dessas ciências precisam, em alguns casos, da aplicação da probabilidade. Na pior das hipóteses, um teórico de uma ciência qualquer precisa conhecer noções elementares de probabilidade. Dessa forma, ressaltando sua importância, Jan Von Plato se reporta à relação da probabilidade com a física: “The developement of phisics has had a profund influence on our ideas about probability” (PLATO, 1994, p. 10).

O problema da teoria das probabilidades não pode, portanto, ser dissociado do estudo da filosofia da ciência, porque está ligado à ciência. Logo, qualquer reflexão sobre a ciência tem que envolver, em algum momento, a questão da probabilidade. Além do que David Miller, no seu livro Critical Rationalism a Restament and Defence, afirma: “One of the principal challenges confronting any objectivist theory of the

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scientific knowledge is to provide a satisfactory understanding of physical probabilities” (MILLER, 1994, p. 176). NASCIMENTO E BREVE HISTÓRIA DA PROBABILIDADE

Entre os primeiros grandes teóricos das teorias das probabilidades encontramos Bernouilli, Bayes e Laplace. Eles definiam a probabilidade como o quociente entre o número de casos favoráveis e o número de casos possíveis.

A questão da probabilidade não foi discutida e nem desenvolvida pelos gregos e nem tampouco por nenhum matemático antigo. Durante a Idade Média, o assunto não interessou a nenhum pensador. A primeira obra de que se tem notícia que abordou a probabilidade foi um manual de matemática, escrito no século XVI, pelo italiano Girolamo Cardano. Porém, o assunto era tratado de forma superficial.

A questão só veio a despertar interesse na França, a partir de 1650. Nessa época, o jogo era algo bastante popular na sociedade francesa. Cada vez mais, sofisticado e intrigante, ele despertou um interesse de alguns estudiosos em encontrar uma teoria matemática que conseguisse apresentar resultados relativos aos chamados jogos de azar.

Um famoso jogador francês, chamado De Méré, desenvolveu um método para o estudo de tais jogos. Contudo, ele encontrou resultados diferentes entre os observados nos jogos e os previstos pelo seu método. Ele resolveu, então, inquirir o famoso matemático e filósofo Blaise Pascal sobre esse problema. Pascal, naquele momento vivendo em Paris, dedica-se ao problema e, nessa época, mantém uma correspondência com outro grande matemático, Pierre Fermat que residia em Toulouse. Dentre os inúmeros problemas discutidos entre os dois está o problema da probabilidade. A partir destas cartas, são estabelecidas as bases para todos os trabalhos sobre probabilidade. A conclusão de Pascal e Fermat

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foi a de que o cálculo de De Méré estava errado. Ele estava tentando aplicar fórmulas que só eram válidas em caso geral, não sendo aplicáveis em casos específicos.

O primeiro tratado matemático formal sobre probabilidade foi escrito por Christiaan Huygens, em 1657. Para escrever esta obra, Huygens se baseou na correspondência Pascal-Fermat. Outra obra importante na história da probabilidade foi a Ars Conjectandi, de 1713, redigida pelo famoso matemático Jakob Bernoulli. Aliás, a família Bernoulli contribuiu muito para o desenvolvimento da probabilidade. Outros de seus membros, Daniel Bernoulli, por exemplo, escreveu tratados matemáticos sobre a probabilidade. Dentre os matemáticos que se preocuparam com o problema da probabilidade, podemos citar Abraham De Moivre, Leonhard Euler, Joseph Louis Lagrange e Pierre Simon Laplace.

Essa definição clássica de probabilidade, mencionada acima, foi contestada por Hans Reichenbach e Richard Von Mises. Estes dois pensadores vão propor a substituição do número de casos pela medição de frequência relativa. Esta frequência relaciona um determinado número de casos com a classe a que estes casos pertencem. Já a frequência absoluta seria a classe por completo.

Alguns pensadores acreditam que o problema da falta de certeza na previsão de alguns fenômenos está na incapacidade do sujeito que estuda estes fenômenos. Muitos pensadores, então, resolveram desenvolver teorias que trabalhassem as teorias das probabilidades pela ótica subjetiva, entre os quais estava Keynes.

Lorde Maynard Keynes, um dos maiores economistas do século XX, desenvolveu uma teoria subjetiva da probabilidade. Esta era bem mais requintada que as anteriores. Nela, ele propõe um cálculo de medida de aproximação lógica entre os enunciados científicos. Assim, se tivermos dois

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enunciados, estes podem estar numa relação de incompatibilidade, independência mútua ou de deduzibilidade. Na teoria de Keynes, se os enunciados p e q forem incompatíveis, a relação de probabilidade será zero e se, por outro lado, forem dedutíveis, será igual a um. Os valores intermediários entre zero e um são obtidos da dedução de p e q, sendo que a probabilidade p dado q aumenta quando o seu conteúdo é menor do que o que já está contido em q. CRÍTICAS DE POPPER ÀS TEORIAS DAS PROBABILIDADES

Popper critica, e com, razão, a definição clássica de probabilidade, que é o resultado da divisão do número de casos favoráveis pelo número de casos possíveis. Para ele, esta definição leva a embaraços lógicos. Estes casos favoráveis, por exemplo, dependem de quê? Para um defensor da interpretação subjetiva da probabilidade, eles estariam ligados à crença que o sujeito tem nestes casos. Desta forma, o grau de probabilidade estaria ligado aos sentimentos inerentes ao sujeito, tais como certeza, dúvida, etc.

Para Popper, é complicada a aplicação desta probabilidade psicológica nos casos de probabilidade numérica. Aliás, ele é um crítico do conhecimento subjetivo e, portanto, um defensor do conhecimento objetivo. Por sinal, este é o título de uma de suas obras.

Ele acredita, inclusive, que o conhecimento objetivo vai ajudar na formação da nossa subjetividade. Portanto, muitas vezes, nossas crenças e nossos sentimentos são resultados de um processo que tem como base o nosso conhecimento objetivo.

Podemos dizer, ainda, que na realidade Popper não rejeita o conhecimento subjetivo. Ele, na verdade, condena a posição daqueles que defendem esta forma de conhecimento como única. Acredita, também, que estes dois tipos de

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conhecimento se relacionam, de modo que tanto o conhecimento subjetivo ajuda a formar o conhecimento objetivo como vice-versa. Popper vai além e afirma: “Esta via é seguida com muito mais frequência do que a que vai do conhecimento subjetivo para o conhecimento objetivo”.

Na sua obra Lógica da Pesquisa Científica, Popper faz uma exposição da Teoria Frequencial das Probabilidades de Richard Von Mises. Popper aponta contradições nesta teoria e afirma ser projeto seu rejeitar as teorias subjetivas da probabilidade e elaborar uma teoria frequencial da probabilidade que pudesse superar os problemas das teorias até então apresentadas.

Popper vai concordar com as críticas a Von Mises pelo conceito e por ele ter, em sua teoria, combinado os axiomas da aleatoriedade e da convergência. Alerta Popper que a aplicação do “conceito matemático de limite ou de convergência a uma sequência que, por definição (ou seja, por força do axioma da aleatoriedade) não deve estar sujeito a qualquer regra ou lei matemática” (POPPER, 1993, p. 169).

Diante disso, ele se propõe a melhorar o axioma da aleatoriedade e eliminar o axioma da convergência, classificando estas duas tarefas em um problema de matemática e um problema epistemológico.

Na Lógica da Pesquisa Científica, Popper desenvolve, então, uma teoria das probabilidades, que ele vai modificar depois, ao apresentar a sua Teoria das Propensões. Esta sua primeira teoria das probabilidades já se caracteriza como uma teoria objetiva das probabilidades.

Nessa sua primeira teoria das probabilidades, Popper utiliza a Fórmula Binomial de Newton e também o Teorema de Bernoulli. Ele elimina o axioma da convergência, fazendo uma axiomatização de sua teoria das probabilidades.

Quando Popper ainda acreditava que a questão das probabilidades poderia ser resolvida com as teorias das

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probabilidades em termos de frequência, apresentou uma regra do cálculo de probabilidades, que ele mesmo chamou de “uma forma do teorema de Bayes” (POPPER, 1987, p. 259). Esta fórmula é a seguinte: “Desde que p(a)=0 e que b seja previsível a partir de a, p(a,b) aumenta com p(b), quer dizer, com a probabilidade absoluta de não b, que é o mesmo que a improbabilidade lógica de b, ou Ct(b), o conteúdo de b” (POPPER, 1987, p. 259). Depois, Popper abandona este projeto e investe em uma nova proposta intitulada teoria das propensões. TEORIA DAS PROPENSÕES

A teoria das propensões segue a mesma definição clássica de probabilidade, só que, enquanto nesta o quociente se dá entre o número de casos favoráveis e o número de casos possíveis, e estes casos possíveis, por definição, são iguais, na teoria das propensões isto não ocorre. Os casos possíveis assumem valores diversos, o que provoca pesos diferentes entre eles.

Para Popper, na teoria das propensões, os enunciados singulares estariam sujeitos às propensões. São elas que os determinariam. Portanto, as propensões adquirem uma importância fundamental no que diz respeito ao estudo dos enunciados singulares.

Considera Popper que estas propensões ou pesos são como forças físicas que atuam na possibilidade. A este respeito, ele explica:

é uma interpretação física das possibilidades, que considera não serem simples abstrações, mas sim tendências ou propensões físicas para ocasionar o estado de coisas possível – tendência ou propensões para efectuar aquilo que é possível (POPPER, 1987, p. 292).

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Ele acreditava que estas propensões podiam ser expressas em forma de frequências relativas. Estas seriam, assim, tradução matemática de uma propensão. As propensões não poderiam ser visualizadas. Mas, poderiam ser expressas matematicamente.

As teorias clássicas das probabilidades constituem-se em um caso da teoria das propensões, onde as possibilidades assumem pesos iguais. Portanto, a teoria das propensões não vem para romper com as teorias clássicas das probabilidades, mas para complementá-las. Ela procura acrescentar tendências, ou como Popper utiliza “propensões”, para possíveis resultados de eventos probabilísticos. Ele chega, inclusive, a dizer que acha válidas outras teorias objetivas das probabilidades.

Na teoria clássica, a probabilidade é dada pela fórmula: p(a,b)=r, onde se lê: a probabilidade de acontecer a, dado b, é igual a r. Já na teoria das propensões, a mesma fórmula é lida da seguinte maneira: “Na interpretação em termos de propensão, é a asserção de que as condições b produzem uma propensão r em que se realize o resultado a” (POPPER, 1987, p. 296).

No volume 1 do “pós-escrito”, Popper esclareceu que prefere usar o termo grau de corroboração no lugar de probabilidade, da seguinte forma:

Nesta secção pretendo apenas discutir uma questão terminológica – as minhas razões para propor que se fale de ‘grau de corroboração’ e não de probabilidade de uma hipótese à luz dos testes. A minha razão principal é, é claro, que esta última expressão – ainda que perfeitamente legítima – presta-se a provocar confusões (POPPER, 1987, p. 236).

Para Popper, as propensões não dependem

exclusivamente do objeto estudado, mas, também, da situação em que o fenômeno está inserido. Vejamos o que Popper

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declara: “Eu salientara que as propensões não deviam ser vistas como propriedades inerentes a um objeto, como dado ou moeda, mas sim como inerentes a uma situação (da qual o objeto faz parte)” (POPPER, s/d, p. 26).

Nestas palavras de Popper, podemos ver a importância que ele atribui à situação em que ocorre o evento. Esta, inclusive, pode ser determinante na alteração das propensões.

Através de sua teoria das propensões, Popper vai aceitar que todas as variáveis, ou que a maior parte delas, sejam levadas em conta nos experimentos. Popper afirma: “É a hipótese de que todos os dispositivos experimentais (e, portanto, todos os estados de um sistema) geram propensões que podem, por vezes, ser testados com frequências” (POPPER, 1987, p. 358).

Para ele, os experimentos da física quântica, como a experiência da dupla fresta, por exemplo, confirmam estas suas ideias.

Mas qual a principal diferença entre a interpretação em termos de frequência e a interpretação em termos de propensão? Segundo Popper, “a principal diferença entre a interpretação em termos de frequência e a interpretação em termos de propensão reside no estatuto dos enunciados probabilísticos singulares” (POPPER, 1987, p. 259).

Para os defensores da teoria da frequência, os enunciados singulares não possuem muita importância. Porém, para a teoria das propensões, estes representam o resultado de uma propensão.

Continuando com esta reflexão sobre a diferença entre a teoria das propensões e a teoria frequencial das probabilidades, Popper afirma que, na teoria frequencial, se “atribui uma probabilidade ao acontecimento individual apenas enquanto este acontecimento individual for um elemento de uma sequência de acontecimentos com uma frequência relativa” (POPPER, 1987, p. 292).

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Na teoria das propensões, o caso é diferente, como afirma Popper:

Em oposição a isto, a interpretação em termos de propensão associa uma probabilidade a um acontecimento individual enquanto este é representativo de uma sequência de acontecimentos virtual ou concebível, e não enquanto ele é um elemento de uma sequência concreta (POPPER, 1987, p. 292).

CRÍTICAS A POPPER

A teoria das propensões de Popper recebeu diversas críticas. Ele mesmo classifica a mais séria:

Deste modo pode-se esperar evitar o que a mim parece ser o aspecto mais objectável da interpretação em termos de propensão: a sua semelhança intuitiva com ‘forças vitais’ e antropomorfismos semelhantes, de que tantas vezes se disse serem pseudo-explicações estéreis (POPPER, 1987, p. 355).

A nosso ver, estas acusações têm consistência. Pode-se

perceber um cunho metafísico na teoria das propensões quando analisamos a seguinte afirmação de Popper: “Assim, as frequências relativas podem ser consideradas o resultado, ou a expressão exterior, ou aparência de uma disposição, tendência ou propensão física oculta e não diretamente observável” (POPPER, 1987, p. 292).

Constatamos haver, nesta afirmação, a incorporação ao discurso popperiano de um pensamento semelhante aos dos metafísicos. Ele fala de “propensão física oculta” e “não diretamente observável”, e isto é muito parecido com o discurso metafísico.

E como testar estas forças, estas propensões? Segundo Popper, “uma hipótese respeitante à força desta disposição, tendência ou propensão física pode ser testada por estatísticos,

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quer isto dizer, por observações de frequências relativas” (POPPER, 1987, p. 292).

A defesa de Popper se apega ao fato de os cientistas terem introduzido a ideia ou conceito de força para explicar algumas teorias físicas que apresentavam alguns problemas. Este conceito de força não encontra nenhum objeto físico que o corresponda, ou seja, não existe nenhum objeto no universo que seja uma força. Ou seja, no discurso científico há o emprego de conceitos que não têm observação empírica. REFERÊNCIAS MILLER, David. Critical rationalism: a restatement and defense. Illinois: Open Court, 1994. _______. (ed.). Popper selections. Princenton: Princenton University Press, 1985. NEIVA, Eduardo. O Racionalismo crítico de Popper. Rio: Francisco Alves, 1999. O’HEAR, Anthony. Karl Popper: filosofia e problemas. São Paulo: Editora da Unesp, 1997. PLATO, Jan Von. Creating modern probability. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. PELUSO, Luis Alberto. A Filosofia de Karl Popper. Campinas: Papirus, 1995. POPPER, Karl. The logic of scientific discovery. London and New York: Routledge, 1987. A edição brasileira está intitulada A Lógica da pesquisa científica. 9 ed. trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1993. _______. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1975.

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_______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 1. O realismo e o objetivo da ciência. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. _______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 2. O universo aberto. Argumentos a favor do indeterminismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988. _______. Pós-Escrito à Lógica da descoberta científica. Volume 3. A teoria dos quanta e o cisma da física. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. _______. Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, s. d. SCHILPP, Paul (ed.). The Philosophy of Karl Popper. La Salle: Open Court, 1974.

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CAPÍTULO 2 OO PPLLUURRAALLIISSMMOO DDAA TTEESSEE DDOO MMUUNNDDOO 33 DDEE PPOOPPPPEERR

João Batista Cichero Sieczkowski

Para Popper, os dois problemas fundamentais da

epistemologia são os problemas da indução e da demarcação. Sendo assim, consideramos que, para ele, os dois problemas fundamentais da Nova Metafísica são os problemas da relação entre corpo-mente e o da existência e realidade dos objetos matemáticos. Esses dois problemas têm uma âncora em comum que ajuda Popper a chegar a uma solução: a Tese dos Três Mundos (TTM) e o Mundo 3 (M3).

Pouco se tem dito a respeito da importância dessa tese para a epistemologia de Popper, mesmo porque, muitos a relacionam ao idealismo de Platão, sem mesmo entender a proposta popperiana. Dessa forma, o problema aqui será o seguinte: qual é o sentido da Nova Metafísica que Popper oferece aos seus leitores? Ora, Popper propõe uma nova maneira de conceber a metafísica e de compreender essa realidade como não-física e não-psíquica. Assim, o nosso objetivo é contribuir para o esclarecimento do papel do M3, em sua realidade, e a existência, dentro da TTM de Popper. Para que isso se cumpra é preciso lançar luzes à Nova Metafísica de Popper, onde a TTM e o M3 estão inseridos.

Procuraremos desenvolver esse trabalho a partir destes 5 pontos: (1) A ciência com ou sem metafísica? Popper e o positivismo lógico de Viena; (2) O que é metafísica?; (3) Qual

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metafísica?; (4) O M3 de Popper; (5) Qual realidade? O conceito de realidade. 1. A CIÊNCIA COM OU SEM METAFÍSICA?

Iniciemos pela relação entre Popper e o positivismo lógico de Viena. Popper trata, no livro O Realismo e o Objectivo da Ciência, na seção 21, do problema da eliminação da metafísica. Os pensadores que pretendiam eliminar a metafísica defendiam a ideia de uma ciência possuidora de uma linguagem científica universal, e pretendiam unificar todo o conhecimento científico por meio desta linguagem. Eles eram os positivistas lógicos do assim chamado Círculo de Viena. Dessa forma, esses pensadores falavam de uma análise da linguagem onde a metafísica seria excluída, porque as suas proposições não teriam sentido. Seria uma operação-limpeza. O objetivo era o de limpar as teorias científicas, o discurso científico de termos e proposições sem sentido. A ciência deveria alcançar o seu objetivo maior que seria o de livrar-se da metafísica. Mas, podemos eliminar todos os elementos metafísicos da ciência? Os positivistas lógicos afirmavam que sim. E, para tanto, desenvolviam métodos e técnicas que serviriam de bisturi para tal operação, ou seja, análise.

Popper é enfático em sua afirmativa: “Não creio que a metafísica seja algo sem-sentido, e não acho que seja possível eliminar todos os ‘elementos metafísicos’ da ciência: eles estão intimamente entrelaçados com os restantes” (POPPER, 1987, p. 195). Aqui está a primeira razão para a eliminação parcial da metafísica, mas não completa como queriam os positivistas lógicos. Popper percebia muito bem que havia elementos metafísicos que poderiam ser eliminados, porque o que estava equivocado no positivismo lógico era a eliminação completa e definitiva da metafísica, e não simplesmente a eliminação de alguns termos ou proposições da metafísica. Mesmo a

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eliminação completa e definitiva seria impossível dado ao fato de que estes elementos estão entrelaçados, segundo o próprio Popper. Popper aceitava que alguns elementos fossem eliminados para melhorar as ciências. Portanto, seria uma eliminação parcial, que beneficiasse o avanço da ciência.

Diz Popper: “Pois a eliminação de um elemento não testável da ciência remove um meio de se evitarem refutações; e isto terá tendência para aumentar a testabilidade ou refutabilidade da teoria em causa” (POPPER, 1987, p. 195). Essa é a segunda razão contra a eliminação parcial e não completa da metafísica. Imunizar uma teoria contra a refutação é deixar de jogar o jogo da ciência para Popper. Usar termos ou proposições metafísicas para camuflar uma refutação é uma estratégia que impossibilita o avanço da ciência. Os positivistas lógicos pensavam que o seu critério de demarcação pudesse servir para identificar esses elementos metafísicos e eliminá-los, por meio de técnicas linguísticas e gramaticais. Popper apenas diz que o seu critério de demarcação não se destina a ser uma técnica com essa finalidade. Aliás, Popper vai além do formalismo dos positivistas lógicos. Não podemos parar na eliminação de termos ou proposições metafísicas, mas temos que reconstruir a teoria afetada mediante uma nova interpretação. Diz Popper:

Não se pode construir nada sobre esses ‘dados’, mesmo se supusermos que eles existem. Mas não existem: não há ‘dados’ não interpretados; não há nada que nos seja simplesmente ‘dado’, sem ser interpretado; nada que se tome como base. Todo o nosso conhecimento é interpretação à luz das nossas expectativas, das nossas teorias, e é, portanto, de alguma maneira, hipotético (POPPER, 1987, p. 125).

Portanto, devemos melhorar uma teoria por meio da

crítica.

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Popper não pretendeu reduzir o positivismo lógico ao papel de exterminador da metafísica, mas reconhece a importância dos problemas levantados pelos participantes do Círculo de Viena. Em Carnap, o objetivo de eliminar a metafísica é bem claro. Na Sintaxe Lógica da Linguagem (1934), Carnap quer

mostrar que as questões metafísicas tradicionais são pseudo questões, na medida em que o seu mistério assenta na confusão e na mistura de expressões que se referem aos objectos do mundo e expressões que se referem às próprias propriedades da linguagem (GRANGER, s/d, p. 87-100).

A metafísica, para Popper, cumpre um papel

importante, enquanto que no positivismo lógico não há nenhum aspecto positivo na metafísica. Qual é o papel da metafísica para Popper? Ora, se a metafísica não é totalmente exterminada da ciência, então é justo que cobremos de Popper a importância da metafísica. Em que sentido a metafísica é positiva em Popper, então? A metafísica deve ser examinada por outros métodos que não sejam os científicos. A testabilidade, como critério, serve só para teorias científicas. Porém, uma teoria metafísica pode vir a tornar-se uma teoria científica, isto é, uma teoria testável. Os exemplos de Popper são o atomismo de Leucipo e Demócrito e o mecanicismo de Descartes. Assim, a função da metafísica é (a) indicar a direção da busca de uma teoria científica; (b) indicar o tipo de explicação que satisfaz essa busca; (c) permitir uma apreciação crítica de uma teoria científica. Por fim, a metafísica estimula o progresso da ciência, incitando o debate racional de teorias.

O limite do critério de verificação empírica do positivismo lógico de Viena é, no entender de Popper, estreito demais porque não consegue constatar a presença de termos e proposições metafísicas dentro da ciência. Por outro lado, o critério positivista é largo demais, porque inclui o que deveria

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ser excluído. Ao longo da existência do positivismo lógico, não se demonstrou que conceitos, proposições e teorias científicas poderiam ser definidos por meio de definições empíricas, como salienta Popper. Por exemplo, as proposições puramente existenciais: não há como testá-las, mas estão presentes na ciência. Essa é a consequência de uma ciência sem metafísica. Só há ciência com metafísica.

Em resumo, partes generosas de teorias científicas deveriam ser excluídas, porque são metafísicas. Todas as teorias científicas têm algum conceito e/ou alguma proposição assentados na metafísica. Ao pretender eliminar toda a metafísica, incorre-se no erro de excluir teorias científicas importantes para a física, por exemplo. Não há como confirmar de maneira definitiva a verdade de uma teoria. Toda teoria científica não pode ser completamente verificada, mas poder ser falsificada, ou seja, testada (falsificável, testável). Essa é a consequência de uma ciência com metafísica. Não há ciência sem metafísica. Essa é a primeira lição. 2. O QUE É METAFÍSICA?

O que fizemos até agora foi mostrar a razão de Popper admitir que ciência sem metafísica não é possível. Mas, o que é metafísica, para Popper? Popper diz pouca coisa a respeito do que seria metafísica (mesmo porque ele dá pouca importância para perguntas do tipo “o que é isto ou aquilo?”, por essas nos levarem ao essencialismo). Contudo, há alguns elementos importantes. Em primeiro lugar, Popper é adepto do realismo metafísico. Isso ele deixa claro. Em diversas ocasiões, ele faz referência a essa posição como sendo a melhor que dispomos. O realismo metafísico é um pressuposto na filosofia popperiana, e é um importante elemento para entendermos o que é metafísica e a “sua” metafísica. Diz Popper: “o realismo de cunho metafísico – a concepção segundo o qual existe um

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mundo real a ser descoberto” (POPPER, 1977, p. 160). Um mundo a ser descoberto. Este mundo já existe, portanto. Resta-nos descobri-lo. É o mundo 3, como veremos. Popper era um realista desde a publicação da Lógica da Pesquisa Científica (1934), mas, confessa ele, neste livro não havia dito muita coisa a respeito do realismo: “O motivo estava em que, ao escrever a obra, eu não havia compreendido que uma posição metafísica, embora não passível de prova, podia ser criticada e debatida racionalmente” (POPPER, 1977, p. 159). O realismo era uma confissão de fé. Assim, em 1969, em Conjeturas e Refutações, Popper assume que “as teorias metafísicas podem ser submetidas ao crivo da crítica e da argumentação, já que são tentativas feitas no sentido de resolver problemas – problemas talvez passíveis de receberam soluções mais ou menos apropriadas” (POPPER, 1977, p. 159). O realismo objetiva atacar a concepção idealista e subjetivista de conhecimento. Tanto como o idealismo, o realismo é irrefutável, todavia, é o melhor recurso que dispomos no momento. A vantagem está em que o idealismo é falso e o realismo é verdadeiro. O realismo é pensável (no sentido kantiano), é possível logicamente, e o idealismo não é pensável logicamente. O realismo, apesar de indemonstrável e não testável, é pensável. Está mais de acordo com a realidade.

Em segundo lugar, podemos falar do debate racional que a metafísica proporciona. O debate racional de teorias está alicerçado em princípios éticos que, para Popper, é questão importante. Em primeiro lugar, um debate racional deve respeitar o princípio de falibilidade. Esse princípio diz que, em um debate racional, há três consequências possíveis: talvez tu tenhas razão; talvez eu tenha razão; talvez nós dois não tenhamos razão, mas nunca nós dois teremos razão, porque a minha posição é contrária à tua. Não há debate racional quando eu e tu concordamos. Em segundo lugar, o próprio princípio da discussão racional. Temos que ponderar os nossos

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argumentos contra e a favor a certa teoria. Devemos ser críticos; e, por último, o princípio da aproximação da verdade. Esse princípio diz que nossa discussão deve ser objetiva, mesmo que não possamos chegar a um acordo. Essa ética do debate fundamenta a metafísica de Popper, na medida em que exige que nossas teorias acerca da realidade possam ser discutidas ou debatidas racionalmente. Isso nos leva ao terceiro elemento do que podemos entender por metafísica em Popper.

O terceiro elemento é a formação da realidade. Eis aí o ponto chave a considerar: a metafísica será uma teoria acerca da formação da realidade ou da estrutura empírica da realidade. Diz Popper:

a formação da realidade é, portanto, nossa obra; um processo que não pode ser compreendido se não tentamos compreender todos os seus três lados, esses três mundos; e se não tentamos compreender a forma em que os três mundos interagem entre si (POPPER, 2006, p. 45).

Teorias a respeito da formação da realidade são

metafísicas. E o realismo metafísico é verdadeiro também por essa razão. O realismo metafísico possibilita elaborarmos teorias metafísicas a respeito da formação da realidade. Assim fez Popper. A realidade não permanece a mesma, mas se modifica. Assim, as teorias metafísicas a respeito da realidade se modificam. E a ciência aproveitará essas teorias para se desenvolver. 3. QUAL METAFÍSICA?

Popper discordava, em relação ao Círculo de Viena, que um critério de demarcação separasse ciência e metafísica. Para Popper, um critério de demarcação deveria separar ciência e pseudociência. Quanto à ciência e à pseudociência, a

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pergunta principal deveria ser: em que condições eu recusaria a minha teoria? Se não se formulassem tais condições, o debate racional se tornaria inviável. É o que aconteceu com a psicanálise e com o marxismo. Essas teorias, por não apresentarem as condições em que deveriam ser abandonadas, se imunizaram, ou seja, se protegeram contra o falseamento. Para a metafísica, essa tese é importante, porque a viabiliza como teoria que estimula o progresso da ciência por meio do debate racional. Diz Popper:

Tal como imaginei na primeira vez que foi objeto de minha atenção, o problema da demarcação não era o de traçar fronteiras entre ciência e metafísica, mas separar Ciência e pseudociência. Naquela época, a Metafísica não me interessava. Foi somente mais tarde que estendi meu critério de demarcação à Metafísica (POPPER, 1977, p. 48). Mas, qual é a metafísica que Popper propõe? As teorias

metafísicas devem ser “um possível sistema de referência para teorias científicas comprováveis” (POPPER, 1977, p. 177). Portanto, sua teoria metafísica deveria ter o mesmo caráter. A teoria metafísica de Popper é a Tese dos Três Mundos (TTM). O caminho provável que Popper seguiu para formular essa teoria foi a partir das considerações de Bolzano, em seu livro Wissenschaftslehr (1837). Ali, Bolzano fala de enunciados em si mesmos em contraposição a processos mentais subjetivos. Assim, uma coisa é apreender enunciados (o que é psicológico) e outra é considerá-los em sua própria estrutura (o que é próprio da lógica). São mundos distintos: o mundo das relações psicológicas e o mundo das relações lógicas. Diz Popper:

Se denominarmos primeiro mundo o mundo das coisas – dos objetos físicos – e de segundo mundo o mundo das experiências subjetivas (tais como os processos mentais), poderemos denominar de terceiro mundo o mundo dos enunciados em si mesmos. (Atualmente,

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prefiro falar em ‘mundo 1’, ‘mundo 2’ e ‘mundo 3’; a este último, Frege denominou, por vezes, ‘terceiro reino’) (POPPER, 1977, p. 191). O indicativo é claro: Popper é leitor de Frege, onde

descobriu a possibilidade dessa teoria. Mas quais são as questões que preocupam Popper em relação a essa teoria? A natureza e a existência desses mundos; a redução do M3 ao M2; do M2 ao M1; e a caracterização desses mundos. Ora, segundo Popper, esses mundos mantêm relações causais. Assim, o M2 é mediador entre o M1 e o M2. O M1 é o mundo das coisas materiais, dos estados físicos que atuam com processos, forças, campos de força. É o efeito dessas coisas materiais sobre nós que leva-nos a constatar a realidade do M2. Aqui é a interação entre o M1 e o M2 que ocorre. O M2 é o mundo dos estados mentais, da consciência, do sujeito. Popper cita o exemplo da dor de dente como interação entre o M2 e o M1. A cárie é um processo físico-químico material, enquanto que a dor que advém é subjetiva. Apesar de claras essa distinção e relação, há aqueles que negam a existência do M2. São os defensores de teorias materialistas. Por outro lado, Popper acredita que um dos problemas clássicos da filosofia, o problema corpo-mente ou cérebro-mente, encontra o caminho de sua solução na interação desses dois mundos. Diz Popper: “Una de las soluciones concebibles de este problema es el interaccionismo: a teoria de que los estados mentales y físicos interactúam” (POPPER, 1977, p. 42).

A partir de então, Popper introduz a divisão tripartida dos três mundos. Esse é o pluralismo interacionista de Popper. Diz ele:

Um dos problemas fundamentais dessa filosofia pluralista refere-se à relação entre esses três ‘mundos’. Os três relacionam-se de tal modo que os dois primeiros podem interagir e os dois últimos também podem interagir. Assim, o segundo mundo, o mundo das experiências subjetivas ou

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pessoais, interage com cada qual dos outros dois mundos. O primeiro mundo e o terceiro mundo não podem interagir senão pela intervenção do segundo mundo, o mundo das experiências subjetivas ou pessoais (POPPER, 1975, p. 152).

Como dissemos, a relação entre os três mundos é

causal. Há pontos de intersecção entre o M3 e o M2, e o M1 e o M2. Portanto, o M1 e o M3 não se relacionam de forma causal. O M1 e o M3 se relacionam indiretamente, isto é, com a mediação do M2. Aqui há uma lição fundamental na leitura de Popper: o sujeito conhecedor tem uma importância decisiva no interacionismo pluralista. A materialização das teorias do M3 em possibilidades tecnológicas do M1, passa pela descoberta do sujeito do M2. Escreve Popper uma vez mais: “Assim, essas possibilidades estavam ocultas nas próprias teorias, nas próprias ideias objetivas; e foram descobertas nelas por homens que tentaram compreender essas ideias” (POPPER, 1975, p. 153). Essa é a realidade objetiva da TTM. Aqui, o sujeito assume a função de apreender os objetos do M3 e materializá-los no M1. 4. O M3 DE POPPER

Popper passa a explicar a natureza e a existência do M3, pensando na matemática. Ora, como M1 é o mundo físico, o M2 o mundo psicológico e o M3 o mundo da lógica, não dificultou mais a situação a introdução do M3, uma vez que somente a postulação da existência e realidade de um M2 interagindo com o M1 já abriu um intenso debate? Popper tem em vista os objetos matemáticos, também. Como se explica a existência e a realidade desses objetos? Assim, o centro do debate não é mais a interação entre os três mundos somente, mas a existência e a realidade do M3. Qual é a realidade objetiva do M3? A resposta desta questão explica a natureza e a existência de objetos matemáticos para Popper. Popper já

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havia travado um intenso debate com os monistas materialistas por admitir a existência e a realidade do M2. Estes queriam, na melhor das hipóteses, reduzir toda a realidade do M2 ao M1. Outros nem mesmo admitiam a existência do M2. Bem, agora Popper insere a ideia de um M3, além do M1 e do M2. Qual é a explicação de Popper? Para Popper, o problema inexplicável pelos monistas materialistas é a existência e a realidade objetiva dos conceitos, proposições, argumentos e teorias da matemática. Os conceitos, as proposições e as teorias são entidades ou objetos que povoam e são habitantes do M3, juntamente com problemas e argumentos. A existência desses objetos no M3 é independente da apreensão feita pelo sujeito do M2. Diz Frege, defensor do M3, que antecedeu Popper:

É preciso admitir um terceiro domínio. O que este contém coincide com as ideias, por não poder ser percebido pelos sentidos, e também com as coisas, por não necessitar de um portador a cujo conteúdo de consciência pertenceria. Assim, por exemplo, o pensamento que expressamos no teorema de Pitágoras é intemporalmente verdadeiro, independentemente do fato de que alguém o considere verdadeiro ou não. Ele não requer nenhum portador. Ele é verdadeiro não a partir do momento de sua descoberta, mas como um planeta que já se encontrava em interação com outros planetas antes mesmo de ter sido visto por alguém (FREGE, 2002, p. 27).

Frege coloca várias características do M3. O M3 é

atemporal, no sentido de que uma teoria, que é verdadeira, não ter-se tornado verdadeira no momento em que foi formulada, mas já o sendo antes. A lógica e os números primos o são também neste sentido; é algo independente de um sujeito; seus objetos são descobertos, mas não construídos. Popper aponta para uma autonomia parcial do M3 com estas características. Na matemática, por exemplo, há a descoberta dos seus objetos (logicismo matemático), e não a construção

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por parte do matemático de tais objetos (intuicionismo matemático). A segunda visão é mentalista e subjetivista, diz Popper. Colocamos as construções matemáticas em uma forma linguística que, por sua vez, requer objetos do M3. Portanto, o M3 se antecipa a qualquer construção intuitiva do matemático. Diz Popper:

Pois os objetos matemáticos podem agora tornar-se cidadãos de um terceiro mundo objetivo: embora originariamente construídos por nós – o terceiro mundo origina-se como produto nosso – os conteúdos de pensamento levam consigo suas próprias consequências não pretendidas (POPPER, 1975, p. 136-7).

E continua adiante: “Surge assim uma nova espécie de

existência matemática: a existência de problemas; e uma nova espécie de intuição: a intuição que nos faz ver problemas e nos faz compreender problemas antes de resolvê-los” (POPPER, 1975, p. 137).

A autonomia se explica pelo fato de que o matemático descobre problemas. Outro bom exemplo que Popper nos apresenta da realidade do M3, como autônomo, está no livro O Eu e o seu Cérebro, de 1977. Diz Popper ali:

Sirva como ejemplo el hecho de que los Grundgesetze de Frege se escribieron y se imprimieron en parte cuando éste dedujo, a partir de uma carta escrita por Bertrand Russell, que habia una autocontradicción en sus fundamentos. Objetivamente, esa autocontradicción había estado allí durante años. Frege no se había dado cuenta; a autocontradicción no había estado ‘em su mente’[...] Russell no produjo ni invento la inconsistência, sino que la descubrió [...] Si la teoria de Frege no hubiese sido objetivamente inconsistente, no podría haberle aplicado la prueba de inconsistência de Russell y no se hubiera

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convencido a símismo de esse modo de su carácter insosteníble (POPPER, 1980, p. 64-5)7.

Por outro lado, o M3 é produto da atividade humana.

Aquela parte do M3 que interage com o M2 torna-o bastante diferenciado de um mundo de essências ou formas puras, como em Platão. Assim como o mel é produto das abelhas e as teias são produto das aranhas, o M3 é um produto da atividade humana quando considerado em seu ponto de intersecção com o M2. As teorias, os problemas, os conceitos e os argumentos (como habitantes que povoam o M3) são formulados em uma linguagem. A linguagem é o produto da atividade humana, assim como o mel é das abelhas e a teia é das aranhas. Aqui está a realidade objetiva do M3. A realidade objetiva do M3 reside em sua autonomia e por ser produto da atividade humana. Diz Popper:

Acho que é possível manter uma posição que difira da de ambos os grupos de filósofos: sugiro que é possível aceitar a realidade ou (como se pode chamar) a autonomia do terceiro mundo e ao mesmo tempo admitir que o terceiro mundo tem origem como produto da atividade humana. Pode-se mesmo admitir que o terceiro mundo é feito pelo homem e, num sentido muito claro, sobre-humano ao mesmo tempo. Transcende seus fabricantes (POPPER, 1975, p. 156).

7 Tradução nossa: “Sirva como exemplo o fato de que os Fundamentos de Frege foi escrito e publicado em parte quando este deduziu, a partir de uma carta escrita por Bertrand Russell, que havia uma autocontradição em seus fundamentos. Objetivamente, essa autocontradição estava ali durante anos. Frege não tinha se dado conta. A autocontradição não estava ‘em sua mente’ [...] Russell nem produziu, nem inventou a inconsistência, mas descobriu-a [...] Se a teoria de Frege não fosse objetivamente inconsistente, não poderia ter sido aplicada a prova de inconsistência de Russell e não teria se convencido a si mesmo desse modo do caráter insustentável.

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5. QUAL REALIDADE? O CONCEITO DE REALIDADE É aqui que Popper supera Platão e torna-se

incompreensível para os materialistas radicais (fisicalistas, etc.). Que realidade que é essa de que Popper fala? É uma realidade que não é somente ideal ou inteligível (platônica), mas também não é somente material ou física (fisicalistas). Manter uma simbiose entre ciência e metafísica, sem analisar o conceito de realidade, é algo temerário. Que realidade é essa que é superior ou diferente da realidade física ou sensível? Como temos acesso a essa realidade? O M3 tem duas realidades: uma delas é autônoma, a outra é algo que interage com o M2. Olhando separadamente, teremos na autonomia do M3 uma realidade platônica e, olhando a interação do M3 com o M2, teremos algo perto do materialismo fisicalista reducionista. Mas, como compreender essas realidades como uma só? Não podemos apenas acrescentar um mundo a mais no pluralismo da TTM, mas temos que repensar o conceito de realidade.

Em primeiro lugar, se a realidade é distinta da aparência, então a realidade não poderia comportar contraexemplos ou contrafactuais. Se tivermos uma ‘realidade’ que é aparente, o é apenas por não ser a realidade factual. Mas, como a realidade factual pode possuir contraexemplos ou contrafactuais, então o que seria a ‘realidade aparente’? Os contraexemplos ou contrafactuais são a realidade ou a realidade é aquilo que dizíamos ser quando não considerávamos os contraexemplos ou contrafactuais? O que é aparente pode tornar-se realidade. Com este argumento, queremos mostrar que, se a realidade de que chamamos de aparente pode tornar-se realidade, então mesmo que a realidade do M3 seja aparente (o que para nós é duvidoso!) poderá vir a ser real. Mas que realidade é essa? É uma realidade objetiva que é independente da experiência, no sentido de que usamos estruturas conceituais, teóricas e

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argumentativas para compreender o mundo real ou factual (em Popper, M1). A realidade entendida como tal é a pedra de toque para entender o realismo metafísico de Popper. O realismo metafísico diz:

(a) existem objetos reais (habitualmente a concepção se preocupa com objetos espácio-temporais), (b) esses existem independentemente da nossa experiência e do nosso conhecimento deles e (c) têm propriedades e entram em relação independentemente dos conceitos com os quais os entendemos ou da linguagem com a qual os descrevemos (BUTCHVAROV, 2006 in AUDI, 2006, p. 798).

Ora, é errôneo alegar que esses objetos reais (M3 de

Popper) são explicados por conceitos que já temos em nossa linguagem e experiência. Tais conceitos só fazem parte de nossa linguagem descritiva e argumentativa, porque suas estruturas foram abstraídas do M3, apreendidas e aplicadas por um sujeito ao M1 (a realidade factual). Caso contrário, de onde teriam surgido tais conceitos? Butchvarov coloca muito bem a questão:

Mas isso tem uma consequência de muito maior alcance ainda: ou (i) aceitamos a ideia aparentemente absurda de que não haja objetos reais (pois a objeção aplica-se igualmente às mentes e a seus estados, a conceitos e palavras, a propriedades e relações, a experiências, etc), visto que dificilmente acreditaríamos na realidade de alguma coisa da qual não podemos formar absolutamente nenhuma concepção; ou (ii) temos que enfrentar a tarefa, aparentemente sem esperança, de uma drástica mudança naquilo que queremos significar quando dizemos ‘realidade’, ‘conceito’, ‘experiência’, ‘conhecimento’, ‘verdade’ e muito mais (BUTCHVAROV, 2006 in AUDI, 2006, p. 798).

Em segundo lugar, a distinção kantiana entre conhecer

e pensar assume uma importância decisiva em nosso modo de ver. Há aquilo que podemos conhecer no mundo, mas há

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também aquilo que nos ajuda a conhecer, assim como há marceneiros, mas também há o conceito de marceneiro. Podemos conhecer muitas coisas no mundo, mas também precisamos de ‘ferramentas’ para pensar essas coisas do mundo. Mas, ter conhecimento dessas ‘ferramentas’ em si mesmas não está a nosso alcance. Esse é o nosso limite. O M3 é o mundo das coisas em si mesmas, no sentido em que, não podemos nada dali, mas podemos operar com esses objetos, fazer uso dessas estruturas lógicas conceituais, estruturas teoréticas, estruturas lógicas de argumentos, etc. Diz Kant, na Crítica da Razão Pura:

Para conhecer um objecto é necessário poder provar a sua possibilidade (seja pelo testemunho da experiência a partir da sua realidade, seja a priori pela razão). Mas posso pensar no que quiser, desde que não entre em contradição comigo mesmo, isto é, desde que o meu conceito seja um pensamento possível, embora não possa responder que, no conjunto de todas as possibilidades, a esse conceito corresponda ou não também a um objeto (KANT, 1985, p. 25).

Dessa forma, eu posso pensar a TTM e o M3 desde que

isso não leve acontradizer-me comigo mesmo, isto é, que o meu pensamento seja logicamente possível. Acreditamos que foi isso que Popper usou como sustentação para a TTM e principalmente para o M3. Por sua vez, o anti-realismo não passa de uma tautologia. Para os anti-realistas, nós conhecemos (podemos conhecer) a realidade somente como a conhecemos (podemos conhecê-la). Isso é pouco e não diz nada da maneira, não descreve o modo de como acessamos essa realidade. CONCLUSÃO

Mesmo que não aceitemos o anti-realismo, por ser uma mera tautologia, não podemos ter uma ideia simplista do

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nosso relacionamento cognitivo com o mundo, como diz Butchvarov. O que Popper fez foi reestruturar a metafísica em uma época em que tal pensamento tinha perdido toda e qualquer credibilidade. As ideias de David Hume sobre o papel da metafísica como obstáculo para o progresso da ciência e a tese da eliminação da metafísica defendida pelo positivismo lógico do início do século XX ofuscaram qualquer função mais importante para a metafísica. Popper recompõe a metafísica de forma que esta aparece, com a ideia de discussão racional, como estimulante para a descoberta científica. Toda a nossa argumentação aqui objetivou mostrar a importância da metafísica para Popper; mostrar que a teoria metafísica de Popper é a TTM, e que o M3 ocupa um lugar diferenciado na metafísica por seu caráter de descoberta.

Ademais, outro aspecto que é importante destacar é que, em momento algum, tivemos a intenção de esgotar a abordagem de Popper sobre o pluralismo da TTM e do M3. Indicamos um caminho a explorar: o conceito de realidade. Na obra de Popper O Mundo de Parmênides (1998) esse conceito é trabalhado dentro da filosofia grega nas figuras de Xenôfanes, Parmênides e Heráclito, entre outros. REFERÊNCIAS AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. FREGE, Gottlob. Investigações Lógicas. Org. trad. Paulo Alconforado. Porto Alegre: PUCRS, 2002. GRANGER, Gilles G. e outros. Filosofia Analítica. Lisboa: Gradiva, s/d. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

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POPPER, Karl R. O Realismo e o Objectivo da Ciência. Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica. Vol. I Lisboa: Dom Quixote, 1987. _______. Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975. _______. El Mundo de Parménides. Barcelona: Paidós, 1999. _______. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977. _______. Em Busca de um Mundo Melhor. São Paulo: Martins Fontes, 2006. _______. El Yo y Su Cerebro. Barcelona: Labor, 1980.

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CAPÍTULO 3 PPOOPPPPEERR,, AA DDEEMMAARRCCAAÇÇÃÃOO DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA EE AA AASSTTRROOLLOOGGIIAA

Cristina de Amorim Machado

Neste capítulo8, veremos como a astrologia se insere

numa das principais questões da filosofia da ciência, a saber: o que é ciência? Para isso, será preciso desdobrar o problema da demarcação, formulado na década de 1930 por Karl Popper, já na primeira versão do seu livro A lógica da pesquisa científica. De modo esquemático, abordaremos os critérios estabelecidos para fazer a distinção entre ciência e não-ciência, como verificabilidade, falseabilidade e ciência normal, propostos, respectivamente, pelo Círculo de Viena, por Karl Popper e por Thomas Kuhn. Ademais, essas três concepções foram questionadas nos anos 1970 por Paul Thagard, que propôs seu próprio critério no artigo “Why astrology is a pseudoscience?”. Sendo assim, partindo da filosofia da ciência popperiana, o objetivo deste capítulo é apresentar o problema da demarcação, que produz o conceito de pseudociência, e analisar a pertinência da atribuição desse estatuto à astrologia.

8 Este capítulo baseia-se na minha dissertação de mestrado em Filosofia pela PUC-Rio (MACHADO, 2006).

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A CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA DE POPPER

O filósofo austríaco Karl Popper (1902-1994) considerava inadequado o critério de demarcação proposto pelo Círculo de Viena9 – a verificabilidade –, que, por ser indutivista, era demasiado restritivo em alguns aspectos e amplo em outros10. Popper propôs, então, a falseabilidade como princípio de distinção da racionalidade científica, tendo em vista que, para ele, não há indução em ciência, pois o princípio de indução não se baseia na experiência, e qualquer tentativa de fazê-lo leva a um regresso infinito, como já havia sido esclarecido duzentos anos antes pelos argumentos de Hume acerca do princípio de indução (POPPER, 1975, p. 29).

Com seu critério – a falseabilidade –, Popper transfere para o momento da crítica da teoria a possibilidade de identificá-la como científica ou não, ou seja, se uma teoria não fornece os meios para um possível falseamento empírico, se não há experiência capaz de falseá-la, ela deve ser reconhecida como um mito, explicação pseudocientífica do real. Uma teoria científica deve ser falseável empiricamente, ou seja, se as

9 O Círculo de Viena (anos 1920 a 1930) formou-se por filósofos e cientistas, sob a orientação intelectual do filósofo alemão Moritz Schlick. O que os reuniu foi o interesse comum por certos tipos de problemas e a mesma abordagem positivista-empirista para resolvê-los. Vale lembrar que a preocupação principal dos membros do Círculo de Viena era com a linguagem científica, que, para eles, deveria ser neutra e livre das ambiguidades típicas da metafísica, de maneira que a ciência pudesse garantir seus procedimentos uniformes e intersubjetivos. Para isso, era necessário estabelecer um critério de demarcação entre enunciados significativos e não significativos. Os significativos poderiam ser de dois tipos: 1) lógico-matemáticos, sem compromisso com o fornecimento de informações acerca do mundo e, portanto, com a experiência; e 2) verificáveis, ou seja, os que pretendessem fornecer informações acerca do mundo e que pudessem ser verificados empiricamente. Se o enunciado não fosse lógico-matemático nem verificável empiricamente, seria considerado não significativo e, portanto, não científico (MAGEE, 1973, p. 49). 10 Amplo, porque incluiria formas de conhecimento como a astrologia, a psicanálise e o marxismo, que contêm proposições verificáveis empiricamente; e restritivo, pois excluiria boa parte da ciência contemporânea, cuja verificação empírica é problemática.

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proposições observacionais dela deduzidas forem falseadas, a teoria será considerada falsa.

Para Popper, o falseamento se dá por intermédio dos falseadores potenciais, ou seja, os resultados experimentais previstos pela teoria que, se ocorrerem, a falsearão (POPPER, 1975, p. 90). Em outras palavras, por uma questão de honestidade intelectual, ao propor uma teoria, o cientista também deve explicitar em que condições abriria mão dela. A classe dos falseadores potenciais constitui o conteúdo empírico de uma teoria. Quanto maior o conteúdo empírico de uma teoria, mais ela é falseável. Chalmers (1994, p. 93-96) critica essa noção, pois ela nada diz sobre o mundo fora das situações experimentais: o domínio da aplicabilidade da teoria equivale ao domínio de suas situações de teste. Logo, para comparar teorias rivais, não bastaria comparar suas classes de falseadores potenciais.

Esse procedimento, ao contrário do critério de verificabilidade do Círculo de Viena, nada tem a ver com o problema do significado, como ressalta Magee (1973, p. 4), dado que muitas teorias científicas resultam de desenvolvimentos baseados em mitos, e não faria sentido que, como mitos, carecessem de significado. Parece mais adequado distinguir entre conhecimento crítico (científico) e dogmático (não científico). Para Popper, o fato de uma teoria não ser considerada científica não quer dizer que seja desprovida de significado ou importância, muito pelo contrário, ela pode ser desenvolvida para vir a ser testável.

Segundo Alan Chalmers (1994, p. 27-34), Popper chama a atenção para o permanente caráter hipotético das teorias científicas, ou seja, não há base segura para a ciência, cujas teorias nunca podem ser provadas. Ao contrário dos positivistas, cujo apreço pela ciência causou a ênfase na geração e verificação de teorias com base no método indutivo, Popper enfatiza a falseabilidade da ciência; no entanto, assim

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como eles, acredita num método característico de todas as ciências para demarcar a fronteira entre ciência e pseudociência. E esse método, no caso popperiano, é hipotético-dedutivo.

Além disso, o conhecimento, em Popper, é um produto da cultura humana, resultante da modificação do conhecimento anterior, estabelecido num embate com o mundo físico, muito embora Popper ressalte o chamado “problema da base empírica” (POPPER, 1975, p. 44-46). Grosso modo, o problema da base empírica decorre do fato de todos os testes serem dependentes de teorias que, como afirma o próprio Popper, são falíveis. Consequentemente, os testes não constituem uma base empírica sólida para confirmação ou falseamento, e a “base empírica” é colocada entre aspas, sendo necessário admitir que o mundo pode ser diferente do que diz a teoria. Do ponto de vista metodológico, as teorias devem ser expostas a críticas e não devem ser modificadas de maneira ad hoc com a introdução de acréscimos impossíveis de testar para resolver evidências problemáticas. A CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA DE KUHN

O físico, filósofo e historiador da ciência norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996) interessou-se por uma “concepção de ciência historicamente orientada” (KUHN, 1996, p. 15), especialmente pelo que há de ordinário e extraordinário em ciência. Afastou-se da tradição epistemológica, adotando um discurso metacientífico e interdisciplinar. Sua ênfase está na comunidade científica e nas questões psicossociais, políticas, econômicas e éticas envolvidas com a produção científica.

Em sua principal obra, Estrutura das revoluções científicas, publicada em 1962, e que acabou por se tornar o best-seller da filosofia da ciência, Kuhn caracteriza a ciência

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como um processo cíclico11 que alterna períodos de ciência normal, nos quais o paradigma vigente é cumprido por meio da solução de quebra-cabeças12, e períodos de crise, que podem culminar com a emergência das descobertas científicas e a quebra do paradigma, o que constitui uma revolução científica. Ao mudar de paradigma, o pensamento muda de lugar, pois a imagem de mundo é outra, e o que era considerado verdade ou erro talvez não o seja mais.

Segundo Kuhn, a ciência normal é a prática científica tradicional com a qual os cientistas ocupam a maior parte do seu tempo. Ela é condicionada por uma educação profissional que tenta submeter a natureza a esquemas conceituais. A ciência normal pressupõe o comprometimento e o consenso da comunidade científica:

A ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico. [...] A ciência normal não se propõe descobrir novidades no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem-sucedida, não as encontra (KUHN, 1996, p. 77).

O conceito de paradigma aparece com várias definições

diferentes. A primeira delas, logo no prefácio, considerada

11 Entenda-se “processo cíclico” como a alternância entre ciência normal e revolução científica, o que não implica uma repetição de conteúdo, apenas de forma. O que está em jogo aqui é uma concepção de ciência historicamente orientada, que se caracteriza por um modelo circular, em contraposição, por exemplo, a um modelo linear e cumulativo. Nesse modelo circular, é possível recontar uma história a partir de outra perspectiva, de outra imagem de mundo, ou seja, de outro paradigma. 12 Os quebra-cabeças são os problemas típicos da ciência normal, pois são previstos pelo paradigma. Segundo Kuhn (1996, p. 59-60), eles não são os problemas mais importantes, tendo em vista que os mais importantes, por exemplo, a paz duradoura, talvez não tenham solução, mas os quebra-cabeças, ao contrário, certamente têm solução, porque são compatíveis com o paradigma. Constituem, dessa maneira, os únicos problemas aceitos como científicos pela comunidade e caracterizam-se por regras bem definidas, enunciados reconhecidos e limitação de soluções aceitáveis.

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pelo próprio autor como circular13 (KUHN, 1996, p. 219), estabelece que o paradigma é constituído de “realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1996, p. 13). À última definição de paradigma, no fim do livro, “os paradigmas determinam ao mesmo tempo grandes áreas da experiência” (KUHN, 1996, p. 165), ainda se segue uma mais abrangente no posfácio:

De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal (KUHN, 1996, p. 218).

Segundo Margareth Masterman (1970, p. 65), é possível

classificar todas essas definições de paradigmas em três: metafísicos, sociológicos e de constructos. Os metafísicos seriam aqueles definidos como mitos ou conjuntos de crenças; os sociológicos seriam os que Kuhn definiu como conjuntos de instituições políticas ou realizações científicas concretas; e os de constructo seriam aqueles concebidos como ferramentas ou analogia. Além disso, ela afirma que apenas os metafísicos foram criticados pelos filósofos.

Outro conceito importante na obra de Kuhn é o de anomalia. A anomalia é uma violação de expectativa paradigmática que pode gerar uma crise aguda, causando a perda de confiança no paradigma vigente. A ciência normal é

13 Kuhn a considera circular – por atrelar o conceito de paradigma à comunidade, que, por sua vez, também se define pelo paradigma –, mas não viciada, constituindo uma fonte de dificuldades reais.

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ameaçada pela anomalia, suas regras são reavaliadas e há um esforço para tentar ajustar a anomalia. Ela pode dar origem a um período de revisão extremamente conturbado em função da insegurança profissional. Por outro lado, a descoberta começa com a anomalia, ou seja, é nessa crise que amadurecem as condições para uma revolução científica, na qual o anômalo torna-se o esperado. AS CRÍTICAS DE POPPER A KUHN E VICE-VERSA A concepção de ciência normal de Kuhn foi criticada por Popper não por discordar da existência daquilo que Kuhn descreve como tal, mas pelo fato de Kuhn considerá-la “normal”. Para Popper, a ciência normal é um perigo para a ciência, pois resulta do espírito dogmático, típico de quem aprende uma técnica e a aplica sem perguntar por quê. Por esse motivo, ele distingue o cientista aplicado do cientista puro. O cientista aplicado é esse que resolve quebra-cabeças, que seriam nada mais do que problemas rotineiros, referentes à aplicação de uma teoria dominante, o paradigma. O cientista puro, ao contrário, dedica-se a situações “cheias de problemas, problemas genuínos, novos e fundamentais, e de conjecturas engenhosas – conjecturas que frequentemente competem umas com as outras – sobre possíveis soluções” (POPPER, 1970, p. 54). Popper enfatiza que discorda de Kuhn no que diz respeito às diferentes concepções de ciência, mas admite que talvez Kuhn use o termo “quebra-cabeça” no mesmo sentido em que ele usa “problema”. Ainda assim, o conceito de ciência normal, segundo Popper, exige crítica. Para ele, as noções de paradigma e revolução científica também são problemáticas, porque são apropriadas para a astronomia, mas não se aplicam a outras ciências. Propõe uma concepção de paradigma diferente, com o sentido de “programa de pesquisa

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– um modo de explicação que é considerado tão satisfatório por alguns cientistas que eles precisam da sua aceitação geral” (POPPER, 1970, p. 55), em vez do sentido de teoria dominante, como em Kuhn. Outro ponto de atrito entre os dois filósofos é que Popper considera Kuhn um relativista, já que ele pressupõe que a racionalidade depende de uma linguagem comum e de um acordo sobre os fundamentos, ao passo que Popper afirma acreditar numa verdade absoluta e objetiva, apesar de não ser ingênuo de achar que ela se encontre no “bolso de alguém”. Ademais, a tese da incomensurabilidade14 entre paradigmas também é negada por Popper, que a considera um dogma perigoso. Para ele, trata-se de uma dificuldade, por sinal muito frutífera, e não de uma impossibilidade de tradução dos elementos de um paradigma a outro. Apesar de concordar com a ideia de desenvolvimento revolucionário do conhecimento, com uma nova teoria contradizendo a antiga e corrigindo-a, Popper insiste que há uma continuidade nesse processo e que a nova teoria deve explicar por que a teoria antiga foi bem-sucedida. Além dessas diferenças, há muitas semelhanças entre as concepções de Popper e Kuhn, como estas que o próprio Kuhn (1970, p. 1-2) lista em seu texto “Logic of discovery or psycology of research?”:

1) preocupam-se com o processo dinâmico pelo qual o conhecimento científico é adquirido, em vez de com a estrutura lógica dos produtos da pesquisa científica;

14 Este é mais um dos conceitos importantes da obra de Kuhn, já problematizado por diversos autores, que diz respeito à impossibilidade de tradução dos conceitos de um paradigma para outro. Nesse sentido, os termos de um certo paradigma não fazem sentido para os adeptos de outro paradigma.

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2) enfatizam os dados legitimados, os fatos e o espírito da vida científica real;

3) retornam à história para encontrar os dados necessários;

4) rejeitam a ideia de progresso cumulativo da ciência e muitas outras teses positivistas;

5) realçam o processo revolucionário pelo qual uma teoria mais antiga é rejeitada e substituída por uma teoria nova incompatível;

6) destacam o papel da falha ocasional da teoria mais antiga em atender aos desafios impostos pela lógica, experimentação ou observação;

7) consideram a observação e a teoria científica íntima e inevitavelmente relacionadas;

8) duvidam dos esforços para produzir uma linguagem de observação neutra;

9) insistem que os cientistas podem desejar inventar teorias que expliquem o fenômeno observado e que fazem isso em termos de objetos reais.

Apesar dessas e de outras concordâncias, há muitas

outras diferenças entre os dois pensadores, além das que já vimos anteriormente. É importante ressaltar aqui a discordância de ambos, ou “diferença de intenção”, como prefere Kuhn (1970, p. 3), em termos de demarcação de ciência. Apesar dos resultados semelhantes, os processos são muito diferentes, já que trabalham com aspectos distintos do problema. Assim como Popper, que elaborou o seu critério com base nos casos do marxismo e da psicanálise, Kuhn concorda que ambos são pseudociências, mas afirma que “chegou a essa conclusão por um caminho muito mais seguro e mais direto que o dele” (KUHN, 1970, p. 7). Kuhn considera o seu critério de solução de quebra-cabeças menos equívoco e mais fundamental que o de Popper.

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Kuhn enfatiza a importância do compromisso com a tradição científica, evita a noção de verdade e não gosta do termo “falsificação” (KUHN, 1996, p. 186). Ele afirma também que Popper “caracterizou o empreendimento científico inteiro em termos que se aplicam apenas às suas partes revolucionárias ocasionais” (KUHN, 1970, p. 6), tendo em vista que ele só se refere aos procedimentos por meio dos quais a ciência se desenvolve, substituindo uma teoria aceita por outra melhor. Dessa maneira, Popper estaria ignorando justamente a parte da ciência na qual se encontraria, segundo Kuhn, um critério de demarcação, ou seja, a ciência normal, onde também ocorreria o progresso da ciência.

Bryan Magee (1973, p. 43) sintetiza as diferenças entre Popper e Kuhn da seguinte maneira:

Popper sempre se mostrou preocupado, antes de tudo, com a descoberta e a inovação e, por conseguinte, com o teste de teorias e com a expansão do conhecimento; Kuhn preocupa-se com a maneira como os que aplicam essas teorias e esse conhecimento orientam seu trabalho. [...] A teoria de Kuhn é, em verdade, uma teoria sociológica acerca das atividades do cientista em nossa sociedade. Essa teoria não é incompatível com as ideias de Popper e, mais ainda, Kuhn modificou-a sensivelmente na direção do pensamento popperiano, desde que, pela primeira vez, a apresentou.

DIÁLOGO ENTRE POPPER E KUHN ACERCA DA ASTROLOGIA

Partindo do princípio de que Popper faz oito referências à astrologia só no seu Conjecturas e Refutações (POPPER, 1982), Kuhn (1970) também optou por tomá-la como exemplo no artigo “Logic of discovery or psycology of research?”15,

15 É importante lembrar que Kuhn também menciona o problema da astrologia tanto em Estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1996) quanto em A revolução copernicana (KUHN, 1957).

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considerando-se a recorrência do caso da astrologia como exemplo de pseudociência.

Segundo Popper, as interpretações dos astrólogos são muito vagas e explicam qualquer coisa, inclusive os falseadores potenciais da teoria astrológica. Para fugir da falsificação, os astrólogos impossibilitaram a testabilidade da astrologia. Kuhn concorda com o que ele chama de “generalizações” sobre a testabilidade da astrologia e a postura dos astrólogos, mas não acha possível basear-se nelas para identificar um critério de demarcação. Seu argumento baseia-se na própria história da astrologia, que registra diversas previsões que falharam. Dessa maneira, para Kuhn, “a astrologia não pode ser excluída das ciências devido à forma com que suas previsões foram elaboradas” (KUHN, 1970, p. 8).

Além disso, ele também não aceita a exclusão da astrologia com base nas explicações que os astrólogos oferecem para as falhas. Segundo Kuhn, “não há nada de não científico nas explicações dos astrólogos sobre as falhas” (KUHN, 1970, p. 8). Lembra, inclusive, que argumentos similares são usados hoje em dia para explicar falhas na medicina ou na meteorologia. No entanto, ele afirma que a astrologia não é uma ciência, mas uma “arte prática”, como a engenharia e a medicina de um século e meio atrás, e a psicanálise hoje em dia.

Eu acho que a semelhança com uma medicina mais antiga e a psicanálise contemporânea é particularmente próxima. Em cada um desses campos, a teoria compartilhada era adequada apenas para estabelecer a plausibilidade da disciplina e fornecer um fundamento para as várias regras que controlam a prática (KUHN, 1970, p. 8).

Essas regras práticas, apesar de úteis, não foram

suficientes para evitar as falhas recorrentes. Mas ainda assim

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não faria sentido abandonar essas disciplinas plausíveis, necessárias e relativamente bem-sucedidas porque ainda não se elaborou uma teoria melhor. É justamente nessa ausência de uma teoria melhor, que impede a pesquisa, que Kuhn identifica o problema da pseudocientificidade da astrologia: “embora houvesse regras para aplicar, eles não tinham quebra-cabeças para resolver e, portanto, nenhuma ciência para praticar” (KUHN, 1970, p. 9).

Ao comparar as atividades de astrônomos e astrólogos, Kuhn afirma que, ao contrário dos astrônomos, com suas atividades de medição, cálculo, correção de erro etc., atividades tipicamente de solução de quebra-cabeças, os astrólogos não teriam tais desafios. Eles explicam a ocorrência de falhas, mas tais falhas não suscitam os quebra-cabeças que caracterizam a pesquisa científica. Com isso, “a astrologia não pôde tornar-se uma ciência, ainda que as estrelas, de fato, controlassem o destino humano” (KUHN, 1970, p. 10).

Ao afirmar que os astrólogos fazem predições testáveis e reconhecem que essas predições às vezes falham, Kuhn finaliza sua crítica ao critério de demarcação de Popper, apesar de concordar com a exclusão da astrologia do conjunto das ciências. Para ele, Popper teria se concentrado demais nas revoluções ocasionais da ciência, o que o teria impedido de perceber o real motivo dessa exclusão: “testes não são requisitos para as revoluções por meio das quais a ciência avança, mas isso não é verdade para os quebra-cabeças” (KUHN, 1970, p. 10).

Uma distinção interessante é apresentada por John Watkins (1970, p. 32). Ele sugere que os astrólogos são, de alguma maneira, cientistas normais, na mais perfeita acepção kuhniana. Eles resolvem quebra-cabeças no nível dos horóscopos individuais, despreocupados com os fundamentos da sua teoria geral, ou paradigma.

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POR QUE A ASTROLOGIA NÃO É UMA PSEUDOCIÊNCIA? Em seu artigo “Why astrology is a pseudoscience?”, Paul

Thagard (1978, p. 223-234) critica os critérios existentes para distinguir as disciplinas pseudocientíficas, como a verificabilidade, a falseabilidade e a ciência normal. Ele considera que há uma falta de preocupação com o avanço da ciência e com as questões éticas, gerada, entre outras coisas, pela popularidade das pseudociências. Dessa maneira, Thagard considera essa distinção necessária para poder superar a negligência com a ciência genuína.

Assim como Popper, Thagard considera a astrologia verificável. Desdobrando um pouco mais a questão, diz que ela é verificável por meio de métodos estatísticos, como os utilizados por Michel Gauquelin16, por mais controvertidos

16 Se o que se pretende é buscar uma evidência mensurável da premissa astrológica, ou seja, de que há uma relação entre um determinado conjunto de eventos celestes e certos eventos terrestres, dois caminhos são possíveis dentro da prática científica padrão: o controle clínico e a verificação estatística. Segundo Gauquelin (1983, p. 14), estatístico francês responsável pela maior pesquisa astrológica do século XX, o controle clínico, utilizado também para avaliar a capacidade de diagnóstico de médicos e psicólogos, é interessante e deve ser examinado, mas é também insuficiente, pois coloca em questão a habilidade de determinado profissional e não a doutrina que ele professa. A falha de um médico, psicólogo ou astrólogo não serve para refutar a medicina, a psicologia ou a astrologia. Por outro lado, para Gauquelin, a verificação estatística constitui um método mais objetivo e rigoroso para avaliar a teoria astrológica, dado que “uma lei estatística é uma lei natural como qualquer outra” (GAUQUELIN, 1983, p. 14), e ele cita o exemplo de Mendel para corroborar essa afirmação. Dessa maneira, alinha-se com o que se pensa atualmente sobre o uso da estatística como ferramenta de destaque nas ciências naturais e sociais (GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 77). Não é o caso aqui de nos estendermos numa digressão sobre os métodos estatísticos, mas é importante lembrar que, na prática científica, há também métodos qualitativos, além dos quantitativos, especialmente nas ciências sociais (GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 109), e que, em astrologia, há tanto configurações qualitativas quanto quantitativas. Segundo o astrólogo André Barbault, referindo-se aos resultados das pesquisas de Gauquelin, “até hoje nota-se que a estatística tem proporcionado resultados convincentes quando o ‘quantitativo’ prevalece sobre o ‘qualitativo’: a passagem de um astro no horizonte e no meridiano constitui uma configuração puramente ‘quantitativa’ e representa até a configuração mais poderosamente valorizadora, a que dá maior ‘destaque’ a uma tendência. Não ocorre o mesmo com as posições dos planetas nos signos. Neste caso, o ‘qualitativo’

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que sejam seus resultados. Assim como Kuhn, Thagard não considera a falseabilidade como critério suficiente para rejeitar a astrologia, tendo em vista que ela é substituível. Como “a falsificação só ocorre quando surge uma teoria melhor [...], a astrologia não parece pior que as melhores teorias científicas, que também resistem à falsificação até que surjam teorias alternativas” (THAGARD, 1978, p. 226). Ele considera que a falseabilidade é só uma questão de capacidade de substituição de uma teoria por outra melhor. Além disso, ele afirma que os problemas não resolvidos, como resultados negativos, precessão dos equinócios, planetas novos, gêmeos e desastres, também não são suficientes para identificar a astrologia como pseudocientífica, dado que as melhores teorias lidam com problemas não resolvidos. Thagard (1978, p. 228) propõe, então, um critério de demarcação entre ciência e pseudociência baseado em três elementos que, separados, seriam insuficientes: teoria, comunidade e contexto histórico:

Uma teoria ou disciplina que pretenda ser científica é pseudocientífica, se e somente se: 1) ela tem sido menos progressiva que as teorias alternativas há bastante tempo, enfrenta muitos problemas não resolvidos, mas 2) a comunidade de praticantes faz poucas tentativas de desenvolver a teoria no sentido das soluções dos problemas, não demonstra preocupação com as tentativas de avaliar a teoria em relação às outras e é seletiva ao considerar confirmações e negações.

prevalece sobre o ‘quantitativo’” (BARBAULT, 1990, p. 69). Para entender melhor essa citação, é importante saber que a pesquisa de Gauquelin apresentou alguns indícios de que há uma correlação entre certas posições planetárias no horizonte e no meridiano e certas profissões, o chamado “efeito-Marte”, mas, em relação às posições dos planetas nos signos, nenhuma frequência estatisticamente significativa foi encontrada.

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Ao comparar o seu critério de demarcação com o de Kuhn, Thagard afirma que são totalmente diferentes. Para ele, a atividade da ciência normal não é capaz de distinguir ciência de pseudociência, tendo em vista que, assim como vimos anteriormente em Watkins, a atividade dos astrólogos se parece muito com a típica ciência normal no sentido de Kuhn:

O que torna a astrologia pseudocientífica não é a ausência dos períodos da ciência normal kuhniana, mas o fato de seus proponentes adotarem as atitudes acríticas dos cientistas ‘normais’, independentemente da existência de teorias alternativas mais progressivas (THAGARD, 1978, p. 228).

Com base nesse critério, Thagard relaciona quatro

características da astrologia que ele considera mais importantes para classificá-la como pseudociência: 1) a astrologia não é progressiva, de maneira que mudou pouco e nada foi adicionado à sua capacidade explicativa desde os tempos de Ptolomeu; 2) problemas como a precessão dos equinócios17 estão pendentes; 3) há teorias alternativas de personalidade e comportamento disponíveis desde o século XIX, que explicam em termos psicológicos o que a astrologia atribui às influências celestes. Independentemente de essas

17 Um dos três movimentos básicos do nosso planeta, o movimento do eixo de rotação da Terra, que se assemelha ao movimento de um pião parando e se dá em um período de 26 mil anos aproximadamente, define um círculo no céu dos pólos. Assim como a rotação e a translação são percebidas da Terra de maneira diferente, definindo respectivamente o dia e o ano terrestres (temos a impressão de que a esfera celeste gira de leste para oeste diariamente e acompanhamos o movimento aparente anual do Sol em meio às constelações), o movimento do eixo de rotação é percebido na Terra como a precessão dos equinócios, ou seja, um fenômeno contínuo de deslocamento do ponto equinocial vernal (1o a cada 72 anos), no sentido contrário à ordem das constelações, ou seja, a cada 2 mil anos, aproximadamente, há um movimento aparente de retrogradação de 30o do ponto equinocial vernal em relação às constelações. Com isso, signos e constelações só se encontram sobrepostos a cada 26 mil anos, aproximadamente, o que não afeta em nada a astrologia ocidental, já que esse sistema astrológico baseia-se nos signos (12 divisões de exatamente 30o da eclíptica), e não nas constelações. Cf. Machado, 2006, p. 71-3.

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teorias psicológicas serem verdadeiras, elas seriam alternativas mais progressivas à astrologia; e 4) a comunidade de astrólogos geralmente não se preocupa com o tratamento dos problemas pendentes ou com a avaliação da sua teoria em relação às outras.

No entanto essas características também podem ser questionadas, a saber:

1) O que Thagard entende por “mudou pouco”? Embora essa afirmação seja vaga, não parece plausível que a astrologia tenha “mudado pouco” desde os tempos de Ptolomeu, ou que nada tenha sido adicionado à sua capacidade explicativa. Além da contribuição árabe (MARTINS, 1995, p. 76), é possível citar também as pesquisas de Gauquelin (GAUQUELIN, 1983), só para ficarmos em dois exemplos. Há que se notar também que o potencial interpretativo18 da astrologia é um fator cultural, resultando do contexto no qual se insere o astrólogo e a entidade representada no mapa; portanto este talvez seja o elemento que “mais muda” no âmbito da astrologia, pois acompanha as mudanças dos sistemas de pensamento;

2) O “problema” da precessão dos equinócios já está resolvido, tendo sido erroneamente considerado como tal em função da confusão conceitual entre signo e constelação. No entanto, ainda que consideremos a precessão dos equinócios um problema, as melhores teorias científicas lidam com problemas não resolvidos, como o próprio Thagard reconhece;

3) Ao tratar a astrologia como uma teoria de personalidade e comportamento, Thagard a compara com a psicologia, que seria uma teoria rival e mais bem-sucedida.

18 Entenda-se “potencial interpretativo” como as diversas possibilidades de se interpretar um mapa astrológico, tendo em vista as variáveis em jogo: trata-se de um sistema simbólico que, por ser traduzido por um ser humano, depende da experiência, da capacidade e da disposição afetiva do astrólogo, além da própria circunstância histórica e existencial em que isso se dá.

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Além de podermos questionar se de fato astrologia e psicologia são teorias rivais, essa definição restringe o escopo da astrologia, excluindo outras aplicações que nada têm a ver com personalidade e comportamento, como meteorologia, economia e política, só para citar algumas. Portanto não faz sentido comparar a astrologia com a psicologia, tendo em vista que são disciplinas distintas, cada qual com seus objetos de estudo, métodos e problemas;

4) O argumento da comunidade astrológica toma como modelo uma comunidade científica institucionalizada, que conta com apoio, incentivo e patrocínio público e privado para tratar seus problemas e fazer avaliações, o que não ocorre com a comunidade astrológica. Contudo, apesar dessa não-institucionalização, os problemas da astrologia têm sido investigados em vários trabalhos, tanto no meio acadêmico-científico quanto no astrológico. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no estudo apresentado neste capítulo, percebe-se a limitação do modelo normativo de filosofia da ciência defendido não só por Popper, mas também pelo Círculo de Viena, que pretendiam dizer como a ciência deveria ser. Além disso, ainda que Kuhn não estivesse propriamente propondo um critério de demarcação nos mesmos moldes, a sua concepção do que é ciência ou não também pode ser criticada. O critério de Thagard, por sua vez, que pretende dar conta do problema da demarcação, mostrando as limitações dos critérios anteriores para definir o estatuto da astrologia, parece igualmente insuficiente para estabelecê-la como pseudociência. O próprio Thagard reconhece, posteriormente, que a forma lógica que ele utilizou é imprópria, apesar de não abrir mão da ideia de que ainda seja possível definir um “perfil de pseudociência” (THAGARD, 1993, p. 157-173).

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As perguntas que se podem fazer são: para quê? Afinal, o que há de tão especial sobre a ciência que demande esse tipo de diferenciação? Não seria ela um tipo de conhecimento como outro qualquer? Ou será que é realmente mais verdadeira, melhor ou superior a outros saberes?

Uma reflexão importante, que talvez seja a principal justificativa para o estudo aqui proposto é: será que a filosofia da ciência pode realmente demarcar o domínio científico? Porque, se não pode definir o que é ciência, também não pode definir o que não é. Tal situação de impasse, revelada pelo estudo do caso da astrologia, indica o esvaziamento dos modelos normativos de filosofia da ciência, que tentaram conceber uma ciência independentemente da sua circunstância, formulando critérios e métodos que se aplicassem sempre. Esta é uma concepção idealizada de ciência, considerada neutra, universal, apolítica e uniforme, por meio da qual se poderia distingui-la de outros conhecimentos a fim de legitimá-la como o lugar da verdade.

A partir da década de 1960, a filosofia da ciência pós-kuhniana passa a conceber a ciência como tributária de uma história e, portanto, o conceito de pseudociência também. Essas noções são construídas na narrativa histórica, tornando-se aceitável a ideia de que algo que é considerado ciência ou pseudociência hoje possa vir a não ser mais amanhã, e vice-versa. O problema da demarcação, num sentido definitivo e exclusivamente metodológico, como o proposto inicialmente pela filosofia da ciência, torna-se, então, impróprio e, junto com ele, o seu vocabulário. Os interesses voltam-se para a prática científica, que, além de questões epistemológicas, implica também questões psicossociais, políticas e econômicas. É por isso que, nos dias de hoje, chamar a astrologia ou qualquer outra disciplina de pseudociência parece um anacronismo.

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REFERÊNCIAS BARBAULT, André. Tratado prático de astrologia. Tradução de Liliane Barthod. São Paulo: Cultrix, 1990. CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: UNESP, 1994. GAUQUELIN, Michel. The truth about astrology. Tradução de Sarah Mattews. Londres: Hutchinson, 1983. GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais. In: ALVES-MAZZOTTI, A; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais. São Paulo: Pioneira, 1998. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1996. _______. A revolução copernicana. Tradução de Marília Costa Fontes. Lisboa: Edições 70, 1957. _______. Logic of discovery or psycology of research. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A (Org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge University Press, 1970. MACHADO, Cristina de Amorim. A falência dos modelos normativos de filosofia da ciência – a astrologia como um estudo de caso. Dissertação de mestrado, PUC-Rio, 2006. MAGEE, Brian. As ideias de Popper. Tradução de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1973. MARTINS, Roberto. “A influência de Aristóteles na obra astrológica de Ptolomeu (O Tetrabiblos)”. Trans/Form/Ação, São Paulo, 1995. MASTERMAN, Margareth. The nature of a paradigm. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A (org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge University Press, 1970. POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Ocatnny Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.

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_______. Conjecturas e refutações. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora UNB, 1982. _______. Normal science and its dangers. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A (Org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge University Press, 1970. THAGARD, Paul. Computational philosophy of science. Cambridge: The MIT Press, 1993. _______. “Why astrology is a pseudoscience?” PSA 1978, volume I – p. 223-234. WATKINS, John. Against “normal science”. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A (Org.). Criticism and the growth of knowledge. London: Cambridge University Press, 1970.

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CAPÍTULO 4

PPOOPPPPEERR EE AA QQUUEESSTTÃÃOO DDAA PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE19

Ney Marinho

Após o colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado por uma revolução: a atmosfera estava carregada de slogans e ideias revolucionárias; circulavam teorias novas e frequentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a teoria da relatividade de Einstein era sem dúvida a mais importante; outras três eram a teoria da história de Marx, a psicanálise de Freud e a “psicologia individual” de Alfred Adler. Durante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com essas três teorias [...] passei a ter dúvidas sobre seu status científico. Meu problema assumiu, primeiramente, uma forma simples: “O que estará de errado com o marxismo, a psicanálise e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes da teoria de Newton e especialmente da teoria da relatividade? (POPPER, 1972, p. 64).

A psicanálise foi uma questão para Popper desde sua

juventude (17 anos), quando precocemente foi despertado para o problema de traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência. Contudo, ao contrário do que ocorreu em relação à teoria de Einstein e ao marxismo, aos quais dedicou inúmeros textos, pouco encontramos em Popper sobre a

19 Este trabalho é dedicado ao Prof. Carlos Alberto Gomes dos Santos, que com paciência, tolerância e extrema competência me apresentou ao pensamento popperiano e ao debate epistemológico anglo-saxão, em toda a sua complexidade.

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psicanálise. As referências são esparsas, ligeiras e, até certo ponto, pouco significativas, ou mesmo ambivalentes. Talvez, aí esteja a origem de avaliações tão díspares em relação à psicanálise, inspiradas na epistemologia popperiana, como as de Adolf Grünbaum e Gregorio Klimovsky20.

No presente capítulo, pretendo fazer um breve relato da crítica epistemológica de Popper à psicanálise e apontar o que julgo ser algumas de suas insuficiências e até contradições. Uma exposição mais ampla da epistemologia popperiana e sua aplicação à teoria psicanalítica pode ser encontrada em minha dissertação de mestrado (MARINHO, 2001), assim como a avaliação epistemológica que proponho para a psicanálise está contida em minha tese de doutorado (MARINHO, 2006), ambos os textos fazem parte de uma pesquisa – Razão e Psicanálise – iniciada no Departamento de Filosofia da PUC-Rio e que prossegue no programa História das Ciências, Técnicas e Epistemologia (COPPE/UFRJ). Julgo necessárias estas informações, pois, no momento, vou restringir-me exclusivamente ao texto popperiano, deixando de lado toda a ampla gama de críticas e desenvolvimentos que gerou, talvez, um de seus maiores méritos. 1. A CRÍTICA DE POPPER À CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE

É no primeiro capítulo de Conjecturas e Refutações [POPPER, (1963), 1972] que vamos encontrar suas críticas mais extensas à psicanálise. Estas podem ser agrupadas nos seguintes itens:

20 Adolf Grunbaum em sua avaliação filosófica da psicanálise defende a tese que a psicanálise – ao contrário do que pensava Popper que a considerava irrefutável – é uma teoria refutável e quando exposta a testes é refutada! Em sentido contrário, Gregorio Klimovsky considera a psicanálise capaz de ser sujeita a testes, próprios para as ciências humanas, e quando submetida a tais procedimentos se sai tão bem quanto qualquer outra ciência humana.

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Uma excessiva capacidade de explicação. “Não conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que ambas as teorias (refere-se à de Freud e à de Adler) fossem incapazes de explicar” (POPPER, 1972, p. 65).

A ideia de uma “confirmação” da teoria a partir de experiências anteriores. Neste caso, a referência que faz é diretamente a uma conversa com Alfred Adler21, embora sugira que a atitude dos adeptos de Freud fosse a mesma:

Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias eram constantemente verificadas por “observações clínicas”. Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que não me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele não teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. ‘Porque já tive mil experiências desse tipo’ - respondeu; ao que não pude deixar de retrucar: ‘Com este novo caso, o número passará então a mil e um ...’ O que queria dizer era que suas observações anteriores podiam não merecer muito mais certeza do que a última; que cada observação havia sido examinada à luz da ‘experiência anterior’, somando-se ao mesmo tempo às outras como confirmação adicional (POPPER, 1972, p. 65).

A utilização de “observações clínicas”. “As observações

clínicas, como qualquer tipo de observação, são interpretações empreendidas à luz das teorias, por esta razão podem parecer sustentar as teorias à luz das quais foram interpretadas”

21 Em sua Autobiografia Intelectual (1977), Popper conta-nos que nessa época trabalhava com Alfred Adler num ambulatório de atendimento a crianças pobres. Era um trabalho voluntário, não esclarecendo sua específica função. Era uma atividade na Viena Vermelha – uma das muitas vienas que coexistiam - onde as ideias socialistas empolgavam os jovens, sendo aqueles bairros populares dominados politicamente pela esquerda austríaca. É desta época o breve namoro de Popper com a psicanálise e o socialismo.

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(POPPER, 1972, p. 67, nota 3). Além da circularidade das “observações clínicas”, Popper critica a falta de observações que fossem empreendidas como testes (“tentativas de refutação”). Pede também critérios de refutação que estabelecessem as condições em que a teoria, não um diagnóstico em particular, fosse passível de ser refutada.

O “Efeito de Édipo”. Expressão que cunhou para caracterizar “a influência exercida por uma teoria, expectativa ou predição sobre o acontecimento previsto ou descrito” (POPPER, 1972, p. 67, nota 3). Lembra a série de acontecimentos casuais que levaram Édipo ao parricídio, a partir da predição deste evento pelo oráculo. Popper cita Freud:

do ponto de vista da teoria analítica, nenhuma objeção pode ser feita à afirmativa de que a maioria dos sonhos usados durante uma análise [...] devem sua origem à sugestão (do analista) [...] não há nada neste fato que possa prejudicar a confiabilidade dos resultados obtidos (POPPER, 1972, p. 67, nota 3).

Esta é uma citação truncada, que vai ser corrigida por

Grünbaum, em sua crítica não menos contundente, porém mais rigorosa, à psicanálise. Aceitando, provisoriamente, a leitura que Popper faz de Freud, o que desejamos registrar é sua afirmação de que tal impossibilidade de uma previsão “arriscada”, por parte da teoria psicanalítica, torna-a uma teoria irrefutável. Tanto o oráculo como o analista seriam agentes indutores de falsas corroborações de suas teorias.

Em que pese tais críticas, que embora gerais são incisivas, acredita Popper que “pessoalmente, não duvido da importância de muito do que afirmam (refere-se a Freud e Adler) e acredito que algum dia essas afirmações terão um papel importante numa ciência psicológica ‘testável’” (POPPER, 1972, p. 67).

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As objeções que Popper faz à cientificidade da psicanálise são compatíveis com os pontos de vista que desenvolve no que consideramos a primeira fase de sua epistemologia22. Estava então voltado para o estabelecimento de um critério de demarcação entre ciência e pseudociência, servindo a psicanálise – assim como a astrologia – como um bom exemplo da segunda (pseudociência), sobretudo por não oferecer possibilidade de ser testada por algum enunciado básico que a refutasse. Não teria a psicanálise previsões arriscadas que pudessem servir como experiências cruciais refutadoras. Além do mais, o que insinua na crítica às observações clínicas é que estas não só seriam teorias que interpretariam os dados, mas que, na melhor das hipóteses, cairiam nos velhos vícios dos processos indutivos. Lembremos de uma de suas famosas frases: “Pode ser útil colecionar insetos, mas não observações”. Está também implícito na primeira objeção – “excessiva capacidade explicativa” – o uso de hipóteses ad hoc pela psicanálise, pois, só assim poderia explicar tantos fenômenos. O uso de tal tipo de hipótese (ou seja, hipóteses auxiliares que não podem ser testadas independentemente) imunizaria a teoria psicanalítica de qualquer refutação.

Algumas das críticas que Popper recebeu relacionavam-se a este tão rigoroso critério de demarcação. É muito comum o rigor científico encobrir uma fragilidade não percebida e este pareceu ser o caso, segundo alguns críticos de Popper. Referimo-nos, em especial, às críticas de Lakatos e

22 Dividimos a obra de Popper em três fases, para cada uma elegemos um de seus livros como característico: 1) A Racionalidade Científica. A crítica à lógica indutiva. O critério de demarcação entre ciência e pseudociência. A noção de refutabilidade. A Lógica da Pesquisa Científica [(1934) 1974]; 2) O Racionalismo Crítico. O método das conjecturas e refutações. Introdução da noção de “lógica situacional”. Conjecturas e Refutações [(1963) 1972]; 3) A Epistemologia Evolucionária. A obejtividade do conhecimento: A Teoria dos Três Mundos. Os Programas de Pesquisa Metafísica. Conhecimento Objetivo [(1973) 1975].

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Feyerabend que, utilizando exemplos de outros campos do conhecimento (ciências naturais), recusam que os cientistas trabalhem como propõe Popper e, Lakatos em particular, considera ingênuo (ou dogmático) o falseacionismo desta fase da obra de Popper, Acrescentaríamos que Gregório Klimovsky (em Las Desventuras Del Conocimiento Científico), autor de declarada orientação popperiana, após discutir minuciosamente as dificuldades de utilização de experiências cruciais (experiências capazes de refutar uma teoria, segundo Popper), assim como o caráter necessariamente convencional dos enunciados de primeiro nível (observacionais), conclui:

Toda afirmação acerca da base empírica é de natureza hipotética e é, portanto, revisável [...] Se isto é assim, o que resta da ambição da ciência de dispor de uma série de conhecimentos indiscutíveis a partir dos quais se possam contrastar hipóteses e teorias? Desde o ponto de vista filosófico, a resposta é que tal conhecimento indiscutível não existe (KLIMOVSKY in ETCHEGOYEN, 1989, p. 223).

Popper certamente concordaria com tais afirmações.

Contudo, seu critério de demarcação foi excessivo, a nosso ver, não tanto pelo rigor, mas por substituir a questão da racionalidade pela da cientificidade, ou, pelo menos, borrar tal distinção num primeiro momento de sua obra. Mesmo que aceitemos o critério proposto – com todo o necessário caráter hipotético dos refutadores – não nos satisfaz a vasta gama de produção científica que ficaria relegada à pseudociência, num limbo epistemológico pouco diferenciado: psicanálise, astrologia, teoria da seleção natural de Darwin etc. A mesma insatisfação acometeu Popper, até por sua grande simpatia pela teoria darwiniana, daí propor o método de conjecturas e refutações e a “análise ou lógica situacional”.

Curiosamente, Popper não retoma o tema da teoria psicanalítica no restante de sua obra. Entretanto, a proposta de

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utilização da “análise situacional” visa exatamente fornecer um espaço mais amplo para a discussão daquelas teorias que, embora não testáveis – metafísicas, na terminologia popperiana -, são passíveis de discussão racional, uma vez que se propõem a dar conta de problemas reconhecidos pela comunidade científica. Lembraríamos que, nesta segunda fase, Popper passa a falar com maior insistência de escolha entre teorias rivais. Na fase anterior, talvez, o que avalizasse mais a crítica de Lakatos seria o fato da pretensão (dogmática) de refutação de uma teoria isolada. Neste sentido, oferecemos um exemplo, a partir de Freud, de uma das teorias componentes da teoria psicanalítica que pretende exatamente dar conta de uma situação-problema. Não entraremos na discussão da solução dada por Freud, porém registramos sua formulação, uma vez que corresponde, a nosso ver, ao modelo que Popper espera encontrar nas legítimas teorias metafísicas.

Nossa proposta é tomar a teoria psicanalítica – em termos popperianos – como um programa de pesquisa metafísica, isto é: uma teoria não empírica (metafísica), não passível de refutação, mas capaz de avaliação racional e aperfeiçoamento através do método de lógica (ou análise) situacional. Tal posição vem ao encontro de outros comentadores como Elizabeth Saporiti, Renée Bouveresse Quilliot e Roland Quilliot (SAPORITI, 1997).

2. POPPER VERSUS POPPER A análise situacional é expressa por Popper através da

fórmula muitas vezes repetida:

P1 → TT → EE → P2

Em que:

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P1: Problema apresentado.

TT: Teoria ou Solução Experimental, Teoria Testável.

EE: Eliminação de erros (por discussão crítica ou por testes experimentais).

P2: Novo problema surgido.

O ponto que defenderemos neste tópico é que, ao contrário do que Popper pensava, a psicanálise se presta de forma muito feliz à aplicação da proposta popperiana de análise situacional. Consideremos uma das teorias que compõem o edíficio psicanalítico.

Referimo-nos à obra de Freud Análise do Ego e Psicologia do Grupo (FREUD, 1921, S.E. 18, p. 66-143). Vejamos como o texto freudiano se enquadra numa análise situacional:

Problema (P1): Os indivíduos, quando em grupo, sob

certas condições, se comportam, sentem, pensam, de modo muito diverso do que seria esperado por suas formas usuais de comportamento, sentimento e pensamento.

E esta condição (pertencer a um determinado grupo) é sua inserção numa coleção de pessoas que adquiriram as características de um ‘grupo psicológico’. O que é, então, um ‘grupo’? Como ele adquire a capacidade de exercer uma tão decisiva influência sobre a vida mental do indivíduo? E qual é a natureza da mudança mental que ele impõe ao indivíduo?” (FREUD, 1921, S.E. 18, p. 72).

Freud considera que é tarefa de uma teoria psicológica sobre grupos dar conta destas três questões. A validade do problema e a pertinência das questões são dadas pelo reconhecimento pela comunidade científica, que apresentou

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várias teorias a respeito, e pela observação cotidiana. No correr do texto, Freud examina as principais teorias disponíveis, como a de Le Bon, a de McDougall e a de Trotter. Aponta concordâncias e assinala as insuficiências de tais teorias como, por exemplo, a incapacidade de darem uma resposta adequada ao fenômeno do pânico. Este ocorreria de forma desproporcional ao perigo existente. Assim, as teorias que atribuíam o pânico ao “contágio” (“indução primária”), como a de McDougall, não dariam conta do contra-exemplo de estados de pânico em ausência de graves perigos, ou o inverso, da capacidade do grupo de enfrentar estados de reais graves ameaças.

Teoria proposta (TT): Os grupos psicológicos se formam por desenvolver uma ligação entre seus membros de caráter libidinal23 e seu líder representar para cada membro seu próprio ideal. Tal teoria dá conta das três perguntas acima levantadas e esclarece o papel do líder melhor que as anteriores, outra das críticas que Freud faz em seu texto às teorias até então disponíveis. Além disso, o texto freudiano estimulou

23 “Libido é uma expressão tomada da teoria das emoções. Chamamos por este nome a energia, vista como uma magnitude quantitativa (ainda que no momento não seja realmente mensurável), daqueles instintos relacionados com tudo o que pode ser compreendido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos dizer por amor consiste (e isto é o que comumente é chamado amor, e aquilo que os poetas cantam) naturalmente do amor sexual com a união sexual como seu objetivo. Mas não separamos disto – o que em qualquer caso tem uma participação no termo ‘amor’- quer o amor por si mesmo (self-love), quer o amor pelos pais ou filhos, amizade e amor pela humanidade em geral, e também a devoção a objetos concretos e a ideias abstratas. Nossa justificação jaz no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências são uma expressão dos mesmos impulsos instintivos; nas relações entre os sexos esses impulsos forçam seu caminho em direção à união sexual, mas em outras circunstâncias eles se afastam de seu objetivo ou são impedidos de alcançá-lo, ainda que sempre preservem bastante de sua natureza original para manter sua identidade reconhecível (em traços como o anseio pela proximidade, e o auto-sacrifício)” (FREUD, 1921, S.E. 18, p. 90-91).

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experiências de tratamento psicanalítico em grupo, assim como da utilização de técnicas grupais para diversas formas de assistência, que por sua vez trouxeram novos problemas. Assim, o conhecimento foi ampliado, como desejava Popper de uma teoria. Uma das aplicações da compreensão psicanalítica aos grupos foi o caso das experiências de W. R. Bion e John Rickman (BION, 1970)24 no exército britânico – na recuperação psicológica de combatentes – e de W. R. Bion na Tavistock Clinic (BION, 1970).

Eliminação de erros (EE): As experiências citadas exigiram a correção da teoria original (T1), a qual não dava suficientemente conta do papel e do processo de escolha do líder, entre outros problemas (P2). Novos problemas (P2): Como é escolhido o líder num grupo? Qual o seu papel (além do que Freud havia sugerido)? Como explicar a formação e o papel que exercem os sub-grupos dentro do grupo maior? Nova teoria (T2): Para dar conta dessas questões, a nova teoria foi formulada por Bion, colocada a teste, através da aplicação de sua metodologia em grupos variados, surgindo novos problemas (P3) que exigiram repensar e formular nova teoria (T3)25, a partir da correção de erros (EE).

24 As experiências foram realizadas na década de 40 e, inicialmente, publicadas no início dos anos 50. 25Ver Atenção e Interpretação. Uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos [BION, (1970) 1973], onde o autor, através da utilização de novos conceitos (continente/contido; mudança catastrófica, etc.), estuda problemas da psicologia dos grupos até então não enfrentados pelas teorias psicológicas, tais como: qual o mecanismo de mudanças súbitas nos grupos, dos cismas, ou, da substituição de lideranças.

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A experiência psicanalítica com grupos, somente possível a partir do trabalho original de Freud, permitiu a formulação de novas teorias, eliminando erros anteriores, ou seja, tendo uma maior capacidade explicativa e abrindo novos campos de investigação. Os resultados empíricos se expressaram pela capacidade que a experiência citada forneceu de uma mais rápida e melhor recuperação de combatentes, assim como pela possibilidade de utilização de técnicas grupais no tratamento de pacientes internados em hospitais psiquiátricos (a experiência de comunidades terapêuticas, na qual a própria vida comunitária representava um importante fator terapêutico, reduzindo o tempo tradicional de internação e facilitando a ressocialização), e ainda nos tratamentos em hospitais gerais de pacientes com distúrbios psicossomáticos ou com resistência a tratamentos de enfermidades crônicas (como a diabetes), entre outras aplicações de terapêuticas grupais. Citamos, muito sumariamente, este exemplo de análise situacional de uma das teorias componentes da teoria psicanalítica, apenas para registrar que há um espaço que não foi explorado por Popper para uma aproximação mais criativa e menos dogmática da “questão da psicanálise”. 3. POPPER, FREGE E BION – PENSAMENTOS EM BUSCA DE UM PENSADOR Em nossa divisão da obra de Popper, reservamos para sua última fase a noção de conhecimento objetivo, e tomamos como texto de referência a obra Conhecimento Objetivo [POPPER, (1972) 1975] e, neste ensaio, o capítulo “Epistemologia sem um sujeito conhecedor”. Neste texto, há uma indicação explícita de Frege como uma das fontes de sua ideia da independência dos pensamentos. Contudo, há diferenças nas duas formulações. Popper, muito

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impressionado pela teoria darwiniana, vai propor uma abordagem evolucionária – subtítulo do livro - para a sua proposta epistemológica, que cada vez mais vai tornando-se uma descrição da evolução natural do pensamento, nos moldes de como vê a evolução darwiniana. Não cabe aqui discutir a validade das afirmações de Popper ou mesmo se esta interpretação desta fase de Popper é a melhor. O que pretendemos, no momento, é chamar a atenção para mais um ponto de contato com o desenvolvimento da teoria psicanalítica que foi ignorado por Popper e que poderia permitir um diálogo muito enriquecedor para ambas as partes. Com o desenvolvimento da psicanálise, ou seja, a aplicação do método psicanalítico ou de seus príncipios a novos campos além do tratamento individual de pacientes adultos neuróticos, novas questões e teorias surgiram. Assim, a análise de crianças, principalmente a partir dos trabalhos de Melanie Klein, na Inglaterra, abriu espaço para a compreensão de estágios mentais precoces, o que permitiu um entendimento muito maior das psicoses. Tal entendimento permitiu a análise de psicóticos. Algo semelhante ao que ocorreu com o trabalho com grupos, conforme já comentamos. Muitos dos seguidores de Melanie Klein eram psiquiatras experimentados e passaram a dedicar-se com afinco à análise de psicóticos. Destacamos, entre eles, Wilfred Ruprecht Bion, que muito publicou a respeito, além de ter sido um leitor de Popper e Frege, assim como um importante epistemólogo da Psicanálise. Bion, independente de Frege e Popper, chegou à conclusão – a partir de sua experiência de análise com pacientes com graves distúrbios de pensamento – da importância de postular a existência de “pensamentos sem pensador” ou, em termos mais Pirandellianos26, “pensamentos

26 Num posfácio a O Falecido Mattia Pascal, em resposta a seus críticos que o consideravam um autor “muito cerebral”, Luigi Pirandello faz uma bela e convincente defesa da liberdade e independência da criação artística. Realça a diferença entre

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à espera de um pensador”, como os Seis personagens em busca de um autor. O ponto que desejamos realçar é o desperdício de Popper ao prender-se a um modelo de ciências da natureza, mais especificamente da Física, que o impediu de aproveitar o diálogo com outras áreas, como a Psicanálise e a Estética27. Pois, da mesma forma que Frege, na derradeira revisão de sua obra filosófica, sentiu a necessidade de encontrar um espaço mais apropriado aos pensamentos verdadeiros, também outros pensadores sentiram igual necessidade. Como já mencionamos, Pirandello expõe este ponto de vista em várias obras. No caso da Psicanálise, a questão se torna mais premente, uma vez que os distúrbios de pensamento que caracterizam as psicoses envolvem e acarretam um afastamento da realidade, da verdade, como ideia reguladora e, em especial, do pensamento crítico. Pois, se não podemos ter acesso direto à realidade, podemos reconhecê-la28 através de nosso compromisso com a verdade e, consequentemente, com a atitude crítica. Curiosamente, Popper, como já comentamos anteriormente, captou esta contribuição da psicanálise, mas infelizmente não avaliou sua profundidade na formulação de uma teoria do pensar. Esta teoria do pensar será formulada em termos psicanalíticos por Bion, em 1961 (ver BION, 1961), e atenderá a muitas das sugestões do texto de Frege acerca da investigação lógica dos pensamentos.

verossimilhança e verdade, sublinhando que esta última é, como a vida, necessariamente independente e assim não precisa ser “verossímil”. Ver “Advertência sobre os escrúpulos da fantasia”, in O Falecido Mattia Pascal [PIRANDELLO, (1904) 1971]. 27 Importante registrar o abandono por Popper do que consideramos um importante insight ao concordar com a teoria psicanalítica que aproxima o pensamento neurótico do dogmático (POPPER, 1972, p. 79). 28 Utilizamos aqui o termo reconhecimento no sentido ambíguo de respeito e conhecimento, ou seja: admissão de limites.

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Bion vai sugerir que o aparelho para pensar surge da necessidade de lidarmos com os pensamentos, isto é: os pensamentos precedem o pensar; não são produzidos conforme pretende a tradição. Esta independência em relação ao pensar vai permitir, por exemplo, o reconhecimento da mentira como fruto de um pensador, o que não ocorre com os pensamentos verdadeiros que podem passar anos ou séculos sem serem formulados por um único pensador. É importante registrar que Frege já havia observado que

quando um pensamento é apreendido, em princípio, ele só produz mudanças no mundo interior de quem o apreende, permanecendo ele próprio intocado em sua essência, uma vez que as mudanças que sofre só dizem respeito às propriedades não-essenciais [FREGE, (1918-19) 2001].

A referida menção de Bion à questão dos pensamentos precedendo o pensar, como já dissemos, está muito ligada à sua experiência com pacientes psicóticos. Nestes casos, os distúrbios de pensamento, além de ocuparem um lugar privilegiado na psicopatologia e diagnóstico, têm um importante papel na ordenação da vida do paciente. Em outros termos: o distúrbio de pensamento não é um fenômeno isolado de toda uma forma de vida peculiar e, a nosso ver, sempre – mesmo que sutilmente – bizarra. Neste sentido é que um pensamento crítico que estivesse comprometido com a noção de verdade – qualquer que fosse – ameaçaria toda uma arquitetura mental que obedeceria outros parâmetros, tais como: a realização de desejos, o afastamento de aspectos dolorosos da realidade (como perdas afetivas, por exemplo), para citar os mais gritantes. Uma série de outras implicações do abandono da noção de verdade e, muitas vezes, sua substituição por soi-disant “valores morais” (lembremos que os delírios nunca são neutros, enaltecem ou desqualificam cruelmente seus portadores) acarreta o caráter

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incompreensível ou extravagante da manifestação psicótica. Assim, certas questões que costumam frequentar a academia, questões epistemológicas, passam a ser cruciais no dia a dia dos pacientes com distúrbios graves de pensamento. Lembremo-nos ainda o sofrimento com que são descritos aqueles casos de pacientes que, no início do surto psicótico, procuram lugares ermos para verificar se as “vozes” continuam, isto é, quando ainda há uma incerteza a respeito das alucinações auditivas. Em geral, a progressiva organização de um delírio dá a coerência que faltava ao paciente em sua nova condição. Fizemos esta breve digressão para mostrar que uma aproximação maior, sem preocupações prescritivas, de como os pesquisadores da área da psicopatologia trabalham, poderia ter permitido a Popper uma reflexão diversa da tentativa de dar uma “objetividade” à psicologia que, caso alcançada, lhe retiraria todo o interesse e não tocaria nos seus reais problemas. Junto com a recusa a dar à psicanálise uma cientificidade, ou, como sugerimos, o status de um programa de pesquisa metafísica, afastou-se Popper dos problemas com que a psicanálise se defrontava e procurava dar suas respostas. Assim, as noções de sugestão ou ambivalência, para citar apenas dois exemplos, antes de mencionar a mais importante – a loucura - não foram apreciadas como deveriam na obra popperiana. São questões que qualquer teoria psicológica terá que dar conta, pois frequentam o cotidiano deste campo de conhecimento e acompanham os problemas interessantes da psicologia. 4. RAZÃO, LOUCURA E EPISTEMOLOGIA Este é um breve ensaio sobre Karl Popper e a Psicanálise. O tema nos levaria muito longe, uma vez que pensamentos tão vigorosos surgiram num lugar e momento

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histórico – lembremo-nos de Viena Fin-de-siècle29 – onde tudo foi discutido, talvez, numa antevisão da catástrofe que se anunciava: a Segunda Grande Guerra, o Holocausto, Hiroshima e Nagasaki. Viena, o “laboratório de pesquisa da destruição do mundo”, segundo Karl Kraus, era uma fábrica de sonhos, esperanças e ressentimentos. Como temos um limite de espaço a respeitar, registramos sumárias e provisórias conclusões de um debate que poderíamos identificar como entre a razão e a loucura. Afinal, Freud trouxe para o centro da discussão aquilo que a ciência tradicional relegava à vala comum do irracional, à espera de alguma explicação fisiológica ou anatômica, que encerrasse de vez a investigação. Contudo, a loucura – a desmedida, o irracional, o nonsense, o que não pode ser dito –, em quaisquer de suas formulações, mostrou-se resistente ao aprisionamento, ou mesmo banimento do debate. Partilhamos com aqueles, como Porchat (2003), que consideram insatisfatório o tratamento dado por Descartes ao seu argumento da loucura e, em texto específico, tentamos mostrar as consequências dogmáticas – a sedução da certeza – do arbitrário afastamento da loucura (MARINHO, 2002). Talvez nossa maior crítica à proposta popperiana não seja tanto em relação à sua indiscutível má vontade com a psicanálise – uma idiossincrasia como outra qualquer – mas o ignorar a loucura como interlocutora imprescindível de qualquer projeto de racionalidade. Popper ficou muito preso à noção de cientificidade que não abrange a de racionalidade, fato que reconheceu, mas não explorou suficientemente, conforme procuramos mostrar. Além disso, sua relutância em

29 O clássico livro de Schorke (1988) mostra o início de um debate que, a rigor, se estenderá até a anexação, o Anschluss (1938), e que pode ser acompanhado por uma vasta bibliografia, da qual fazem parte muitos dos personagens do ambiente popperiano (como o Círculo de Viena, Ludwig Wittgenstein, Paul Feyerabend, entre outros). Uma ótima referência, dentre muitas, é A Viena de Wittgenstein (JANIK e TOULMIN, 1991).

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admitir um papel para a linguagem, além de um mero intermediário entre pensamento e realidade, impediu-no uma compreensão maior das questões com que lidam as ciências humanas. Estas, caso seguissem o projeto popperiano de transformá-las em subsidiárias de um pensamento sociológico objetivo ou mesmo da economia (POPPER, 1978), ganhariam a seu ver status científico, mas em troca de se tornarem extremamente desinteressantes, perdendo seu objeto de investigação. Este é um ponto que desejamos frisar. A questão da psicanálise é, a nosso ver, a questão da loucura. Concordemos com suas conclusões, ou não, Freud trouxe para o cotidiano de nossas reflexões a loucura, o irracional, que desde então não pode mais ser evitado ou banido da reflexão filosófica, como a tradição sempre o fez. Pensar a loucura como uma das dimensões do humano, talvez, seja o desafio que se coloca tanto para freudianos como para popperianos, que certamente muito lucrariam com um amplo e fraterno debate. Infelizmente, Popper, sempre interessado nas questões da racionalidade, não teve acesso, supomos pela intensa censura que o nazismo e os belicistas em geral impuseram, ao diálogo entre um pensador que tanto admirava, Einstein, e Freud sobre o Por que a guerra? (FREUD, 1933, S.E. XXII). Este texto se presta a uma bela investigação epistemológica do papel do conhecimento e da ciência para o desenvolvimento do Homem. Esperamos, através deste gentil convite, contribuir de alguma forma para o resgate deste diálogo perdido. REFERÊNCIAS BION, W. R. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1970 (1948).

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CAPÍTULO 5 AALLGGUUMMAASS NNOOTTAASS SSOOBBRREE AA CCOOSSMMOOLLOOGGIIAA DDEE KKAARRLL PPOOPPPPEERR**

Julio Cesar R. Pereira

No prefácio da 1ª edição inglesa de The Logic of Scientific Discovery, Popper expressa de maneira clara os seus interesses cosmológicos, ao afirmar

eu acredito que exista pelo menos um problema filosófico no qual todos os homens estão interessados. É o problema cosmológico: o problema de compreender o mundo – incluindo nós mesmos e o nosso conhecimento como parte desse mundo (POPPER, 1990, p. 15).

Porém, nem por isso nos parece que todas as

implicações dessa problemática se achem imediatamente dadas. Defenderemos a ideia de que é a tentativa de desenvolver plenamente essa questão que comanda a evolução da filosofia de Popper. 1. CONHECIMENTO E REALIDADE

A obra The Logic of Scientific Discovery parte da constatação de que a atividade científica é um procedimento de teste de enunciados, e busca descobrir o que demarca sua

* Para o meu amigo Rogério Gobetti, uma verdadeira rocha em todos os momentos

difíceis.

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especificidade. A resposta popperiana – dedutivismo falibilista – pressupõe, em primeiro lugar, uma clara distinção entre problemas lógicos e problemas psicológicos. A epistemologia trata apenas da validade dos enunciados e não de sua origem (PETRONI, 1992), a origem resulta de uma intuição criadora30 que, uma vez formulada, é submetida a teste.

A ideia da testabilidade está estribada na assimetria entre enunciados singulares e enunciados universais, que se formaliza no Modus Tollens. Popper, obviamente, está ciente de que qualquer refutação pode ser evitada ad hoc, mas julga que o método científico se caracteriza

pela maneira com que busca expor a falsificação, de todas as formas possíveis, o sistema que está sendo testado. Sua meta não é salvar a vida de sistemas insustentáveis mas, pelo contrário, selecionar aquele que se revele comparativamente melhor, expondo a todos a mais violenta luta pela sobrevivência (POPPER, 1990, § 6, p. 42, grifo nosso)31.

A testabilidade resolve o problema da demarcação,

ainda de que de maneira inversa à solução dada pelo empirismo clássico e pelos positivistas lógicos. O referencial empírico da ciência não se dá no sentido positivo, mas sim no sentido negativo e permite, na medida em que está fundado no Modus Tollens, substituir a insustentável lógica indutiva por transformações tautológicas da lógica dedutiva, o que implicará na existência de enunciados que sirvam de premissa nas inferências falseadoras. A objetividade desses enunciados,

30 “A suprema tarefa do físico consiste, então, em procurar as leis elementares mais gerais, a partir das quais, por pura dedução, se adquire a imagem do mundo. Nenhum caminho lógico leva a tais leis elementares. Seria antes exclusivamente uma intuição a se desenvolver paralelamente à experiência” (EINSTEIN, 1981, p. 140). 31 Nessa passagem, já temos clara a analogia com o darwinismo. Cabe ressaltar, entretanto, que este tipo de interpretação não é, em absoluto, uma questão pacífica; cf., por exemplo, WATKINS, 1995.

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denominados ‘básicos’ decorreria da possibilidade de seu teste intersubjetivo, o que pressupõe:

1) enunciados científicos não descrevem eventos

únicos; 2) se os enunciados básicos são objetivos então serão

sempre revisáveis, o que implicará que na ciência não podem existir enunciados definitivos;

3) a capacidade do teste intersubjetivo pressupõe, a nosso juízo, o Realismo32, caso contrário o que nos garantiria que apenas a adoção de uma mesma forma lógica de enunciados conduziria outra pessoa ao mesmo resultado?

No § 15 de Realism and the Aim of Science, Popper

advoga que a meta da ciência é obter explicações satisfatórias, nela buscamos explicações causais, o que pressuporá leis gerais explicitamente formuladas, fazendo com que a explicação assuma a forma de um argumento dedutivo onde teremos:

a) Leis Relevantes; b) Condições Iniciais; c) Prognose - fato a ser explicado.

32 Popper é, no mínimo, ambíguo nessa questão. No Realism and the Aim of Science, aparentemente descarta nossa interpretação, apontando apenas um valor heurístico para o Realismo: “[...] parece-me que em metodologia não precisamos pressupor o realismo metafísico. Nem podemos retirar dele nenhuma ajuda, a não ser do tipo intuitivo” (POPPER, 1996 a, § 15, p. 145). Por outro lado, o reconhecimento do suporte metafísico realista, como estamos propondo, acarretará uma concepção sistêmica de filosofia. Lakatos, ao discutir a polêmica Popper-Kneale, percebeu essa implicação: Popper e Kneale teriam em comum a assunção de uma metafísica realista: “Crêem que existe um mundo real independente de nossa mente e governado por algum tipo de lei natural.”, como ambos acreditam que esse mundo real pode ser conhecido “[...] esse otimismo epistemológico equivale a uma Weltanschuung completa” (LAKATOS, 1981, p. 168-169). A recusa em seguir nessa direção é patente em Lakatos, o que gera sua concepção de programas de pesquisa.

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Reconhece Popper que, usualmente, podemos chamar

as condições iniciais de “causas” e a predição de “efeito” e, dessa maneira, aparentemente, nos livrarmos não só das leis gerais, como também, do princípio de causalidade. Infelizmente as coisas não são assim tão simples. Atentemos para o seguinte exemplo proposto por Popper: se tomarmos um relógio de corda e o desmontarmos, e tornarmos a montar poderemos, talvez repetindo algumas vezes o processo, “explicar” o funcionamento do relógio, e mesmo consertar seus eventuais defeitos. Nesse sentido poderemos dizer que o relógio é consequência da interação das partes que o compõem. Teríamos assim a prognose inferida apenas das condições iniciais, sem aparentemente o concurso de leis gerais. Porém, se atentarmos melhor, veremos que as condições iniciais pressupõem, por exemplo, que as peças do relógio são rígidas, impenetráveis, possuem uma determinada resistência ao desgaste, etc.; essas últimas, por sua vez, somente se compreendem a partir da estrutura de seus átomos, que pressupõem uma estrutura subatômica, e assim por diante. Nesse sentido, a explicação pressupõe o que Popper denomina “propriedades estruturais do mundo”, que são justamente as propriedades presentes nas Leis Universais. A falsificação a que tais leis podem ser submetidas nos garante a existência de algo frente ao que podem se chocar, isto é, um mundo independente, tal como explicitamente afirmado por Popper: “ainda que as nossas teorias sejam feitas por nós, ainda que sejam invenções nossas, não deixam por isso de ser asserções genuínas acerca do Mundo, pois podem chocar com algo que não fomos nós que fizemos” (POPPER, 1996 a, § 15, p. 137). Novamente a ambiguidade ressurge. O Realismo não parece ter apenas uma função heurística, sendo, portanto passível de ser altaneiramente dispensado por uma

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metodologia auto-suficiente. Popper, no entanto, não parece saber muito bem como enquadrá-lo33:

O realismo metafísico não é uma tese da LScD [The Logic of Scientific Discovery], nem em parte alguma desempenha o papel de um pressuposto. E, no entanto, está lá, e está muito presente, constitui uma espécie de pano de fundo que dá corpo à nossa busca da verdade (POPPER, 1996 a, § 7, p. 81).

Um “pano de fundo”, seja lá o que isso possa significar,

independente e, em princípio, dotado de regularidades causais.

2. O PROBLEMA DA BASE EMPÍRICA A discussão até aqui levada a cabo nos permite precisar

a definição popperiana de teoria científica: uma teoria será dita científica quando a classe de seus falseadores potenciais não é vazia. Todo o problema é que estes falseadores potenciais devem igualmente ser passíveis de teste intersubjetivo. Desta forma, como sustentar a objetividade dos enunciados básicos sem nos embretarmos nos meandros do Trilema de Fries?

O Trilema de Fries34 pode ser enunciado de maneira bem sucinta da seguinte forma:

se os enunciados da ciência não são aceitos dogmaticamente, nós devemos poder justificá-los. Se exigirmos uma justificação por meio de argumentação, em seu sentido lógico seremos levados a concepção segundo a qual enunciados somente podem ser justificados por enunciados. A exigência de que todos os enunciados devam ser logicamente justificados

33 É provável que esse tipo de receio leve alguns intérpretes a subestimar o papel da metafísica na filosofia de Popper. Cf., por exemplo, Corvi (1997, p. 77ss). 34 Wettersten (1992, principalmente p. 140-154), tece toda uma série de considerações em torno das influências externas que conduziram Popper a redigir o argumento que apresentaremos a seguir baseados fundamentalmente no Capítulo V de The Logic of Scientific Discovery.

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(descrita por Fries como ‘predileção por provas’) nos conduz, portanto, a um regresso infinito. Agora, se nós desejamos evitar o perigo do dogmatismo, como também a regressão ao infinito, parece que o único recurso que nos cabe é o psicologismo, isto é, a doutrina segundo a qual enunciados podem não apenas ser justificados por enunciados, como também por experiências perceptuais (POPPER, 1990, § 25, p. 93-94).

Dogmatismo, regressão ao infinito ou psicologismo, tal

é o Trilema de Fries. Ora, como estamos às voltas com a ciência empírica, o psicologismo parece ser a opção mais adequada, pois nele encontraríamos um conhecimento imediato e indubitável, o que tornaria a ciência uma gigantesca classificação e organização de nossas convicções subjetivas. Nesse ponto, Popper apresenta um de seus argumentos favoritos: o caráter imediato das impressões sensoriais é apenas ilusório:

(Uma ‘experiência imediata’ é ‘imediatamente dada’ apenas uma vez; ela é única.). Pela palavra ‘copo’ nós denotamos corpos físicos que apresentam certo comportamento legalóide (law-like behaviour), o mesmo acontecendo com a palavra ‘água’ (POPPER, 1990, § 25, p. 95).

Mas, se assim é, qual seria a alternativa? Sobra-nos

apenas o dogmatismo e a regressão ao infinito... A alternativa consiste em reposicionar o problema. A

Epistemologia não deve indagar sobre a origem dos enunciados científicos, mas tão-somente pela maneira pela qual, por dedução, podemos submetê-los a testes. Nessa perspectiva o teste de uma teoria se interrompe em algum enunciado básico que decidimos aceitar; todavia, sob o ponto de vista lógico, não existe qualquer necessidade de interrupção do processo de teste. Popper reconhece estar pressupondo que seja possível chegarmos a enunciados básicos frente aos quais os investigadores optam por convencionar sua aceitação. Feito

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esse acordo, decidimos encerrar os testes; apenas nesse sentido podemos admitir o dogmatismo, porém, se por qualquer razão objetiva o acordo for rompido, os testes podem continuar; a regressão infinita sempre é possível, apenas é estéril, pois o que buscamos na ciência são explicações sobre o funcionamento do mundo35. O acordo se estabelece com base na corroboração que os testes propiciam à teoria, o motivo que nos guia poderia ser tanto o valor preditivo, quanto a dominação da natureza, ou qualquer outro que se queira aventar. Na base da ciência, temos uma decisão livre36 que, no caso de Popper, opta por uma explicação causal da realidade.

Novamente se coloca de maneira explícita a questão da realidade, coisa que se aparentemente não surge de maneira clara no texto frio do Capítulo V de The Logic of Scientific Discovery, mas aparece de forma cabal no Adendo de 1968, incluído na 5ª edição alemã de 1973:

(2) O capítulo assenta um robusto realismo e revela que ele é compatível com um empirismo novo, não dogmático e não subjetivo. Esse realismo orienta-se contra as teorias do conhecimento que se assentam em experiências ou percepções subjetivas – contra, pois, o empirismo (subjetivista) clássico, o idealismo, o positivismo [...]. Procuro substituir a clássica ideia de experiência (observação) pelo exame crítico objetivo – e a experimentação (observabilidade) por uma testabilidade objetiva (POPPER, 1972, p. 120)37.

35 Como podemos observar, o papel da experimentação em Popper é sempre enquadrado a partir das demandas teóricas, nesse sentido talvez seja oportuna a seguinte observação de Ian Hacking: “Não existe filósofo da ciência europeu no século vinte mais influente do que Karl Popper. No entanto, Popper escreve sobre a experiência como se fosse um mero apêndice da teorização” (HACKING, 1992, p. 21); o mesmo se dá com Thomas Kuhn, que virtualmente não teria dito nada sobre a experiência (cf. p. 23ss). 36 Discuti as implicações políticas dessa questão em Pereira (1993). 37 Grifos de Popper. Referimos à edição em português, porque esta passagem não se encontra na edição inglesa que estamos manuseando.

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Cabe sublinhar, em primeiro lugar, que no texto de The Logic of Scientific Discovery, de 1934, Popper em momento algum afirma de maneira clara o Realismo Metafísico38, mesmo em algumas passagens de Realism and the Aim of Science parece não saber muito bem como enquadrá-lo; o Realismo surge explicitamente formulado apenas nos textos posteriores, principalmente a partir do 3º Volume do Posfácio da Lógica da Pesquisa Científica – Quantum Theory and the Schism in Physics39. Vejamos como isso se dá.

Na base da ciência moderna, temos Copérnico e Galileu. O primeiro não partiu de problemas concretos nem de dados observacionais40, na linguagem de Popper o heliocentrismo, como qualquer outra teoria científica, é fruto de uma intuição criadora; essa intuição produziu uma teoria que tem sua validade fundada a partir de sua capacidade explicativa, da qual deduzimos certas predições passíveis de teste. O Sidereus Nuncius, de Galileu, ao introduzir o telescópio no âmbito da ciência, já pressupunha em Copérnico pelo menos três dos quatro ingredientes básicos do Realismo. Newton-Smith (1991, p. 39-43) os designa da seguinte maneira: a) ingrediente ontológico: as teorias são verdadeiras ou falsas em virtude de um mundo que delas independe; b) ingrediente causal: as evidências que tornam a teoria verdadeira refletem as conexões do mundo; c) ingrediente epistemológico: é possível oferecermos boas razões para se optar por essa teoria em detrimento de outra; d) tese da verossimilhança, - não

38 Alan Musgrave (1994) argumenta que mesmo em The Logic of Scientific Discovery é possível perceber o Realismo. Confesso não reconhecer isso com a mesma nitidez que Musgrave. 39 A esse respeito Gattei (2009, p. 52) concorda conosco. 40 “Temos aqui o que parece um exemplo quase perfeito de uma mudança de pensamento sem ser dirigida à resolução de nenhum problema novo, apresentando, contudo uma nova solução” (HALL, 1988, p. 85). Popper (1963, p. 187) sugere que foram razões de ordem metafísica, de cunho platônico, que orientaram a mudança proposta.

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presente em Galileu, devido a seus aspectos essencialistas -, historicamente a sequência de teorias que se sucedem nos aproxima da verdade. Em seus aspectos (b) e (c), essa realidade independente se revela dotada de uma estrutura uniformemente determinada, passível de ser descrita em linguagem matemática. Esse Realismo Metafísico culmina em Newton no grande projeto mecanicista.

A demarcação surge, para Popper, exatamente na falência do projeto newtoniano. Popper percebeu que a relatividade, ao derrubar a mecânica de Newton, o faz afirmando o ingrediente ontológico do Realismo (a), e a tese da verossimilhança (d) – ainda que sob forma intuitiva, apresentando como convite ao filosofar a reelaboração de (b), (c) e (d) numa dimensão não tão subjetiva. As respostas modernas – Hume e Kant - pressupunham, ainda que por razões distintas, o mecanicismo: para Hume, enquanto fundamento ontológico para suas inferências indutivas psicológicas41, e para Kant em seus juízos sintéticos a priori. A resposta do Positivismo Lógico apresentava, em sua base, graves dificuldades: a ideia de que o discurso científico seja em si auto-sustentável, porque oriundo do método indutivo, transformava as leis científicas em: a) enunciados carentes de sentido, pois sua inferência não é logicamente justificável; b) regras para a formação de enunciados, semelhantes a regras de inferência, o que em nada ajudaria já que a fundamentação das regras de inferência na dedução se dá por sua capacidade de transmissão de verdade, e como a indução não permite isso.... c) instrumentos preditivos, o que suprimiria o aspecto descritivo da ciência.

O dedutivismo falibilista reconheceu, na refutação einsteiniana, a afirmação de um mundo independente, ingrediente ontológico, e a ideia do conhecimento enquanto

41 Cf., por exemplo, Popper (1996a, § 4-7).

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processo governado por conjecturas e refutações, ingrediente epistemológico. Mediante a constatação da assimetria existente entre as hipóteses universais intuitivamente criadas e os enunciados básicos delas dedutíveis, compreendidos como seus falseadores potenciais, temos um critério de demarcação perfeitamente enquadrado na cosmologia – preocupação central de Popper. A objetividade do discurso científico, enquanto teste intersubjetivo, tornou necessário que não apenas os enunciados universais fossem passíveis de teste, como também os enunciados básicos, que adquirem sua legitimação pela possibilidade de estabelecerem um “choque” com o mundo - o que é uma decorrência do Realismo -, que torna a opção por esses, enquanto corroboração, uma resposta às demandas explicativas que se constituem no objetivo da ciência.

3. INDETERMINISMO E PROPENSÕES

A questão que se impõe agora é a seguinte: se nos foi dado argumentar que o Realismo, enquanto metafísica, é um pressuposto necessário da epistemologia de Popper, cabe reconhecer que isso acarreta pelo menos uma espinhosa dificuldade. A realidade nos garante a testabilidade, mas se afirmamos a sua independência e, ao mesmo tempo, o fato de ser essa dotada de regularidades - sem as quais noções como teste, corroboração etc., não fariam o menor sentido -, então por que, por exemplo, a indução não é admissível? Conciliar Realismo e Indeterminismo torna-se, assim, uma tarefa imperativa para a sustentação do pensamento de Popper.

O argumento que Popper julga decisivo contra o determinismo metafísico, e que lhe permite propugnar a defesa de um Realismo Indeterminista, é o argumento

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denominado ‘Lâmina de Landé’42. Sua estrutura é a seguinte: tomemos 1000 bolas de bilhar perfeitamente idênticas a descer por um tubo em direção de uma lâmina de aço. O resultado será uma média de 50% das bolas caírem à direita da lâmina e 50% caírem à esquerda. Sempre é possível atribuir a alguns desses lançamentos o caráter acidental, porém um determinista deverá dizer que estava pré-fixado na estrutura das bolas que caem à direita esse comportamento, o mesmo se dando com as que caem à esquerda. Se pedirmos ao determinista uma justificativa da média de 50%, ele deverá responder que também essa razão já estava antecipadamente determinada. A questão é que 50% de cada lado é uma média que pode oscilar de acordo com a estatística dos acontecimentos aleatórios, por que estaria também a estatística de acordo? A resposta deverá ser que existiria uma harmonia pré-estabelecida entre acontecimentos que se comportam como se fossem aleatórios, e a realidade, que é pré-fixada. O problema é que isso inverte as coisas. O real é a aleatoriedade, o “como se” é que é a construção determinista, se ele nos dissesse que este “como se” se dá a partir de uma realidade anterior determinada, cairá numa regressão infinita.

O que a Lâmina de Landé fornece a Popper é a possibilidade de introduzir a indeterminação dentro da própria realidade, isto é, a possibilidade de racionalmente argumentar a propósito de uma Metafísica Realista de cunho Indeterminista mediante a noção de ‘propensão’. Vejamos como isso se dá por um cotejo inicial com a noção de ‘probabilidade’.

Na perspectiva de Popper, a teoria clássica da probabilidade se constrói a partir da seguinte definição: “a probabilidade como sendo o número de casos favoráveis

42 Popper (1992 b, § 29). O argumento é bem mais complexo e extenso do que estamos apresentando aqui; nós o resumimos por uma questão de espaço; ainda assim, David Miller (1995 e 2007) apresenta várias ressalvas quanto a esse argumento.

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dividido pelo número de casos possíveis. Isto sugere que possamos interpretar a probabilidade como uma medida de possibilidades” (POPPER, 1996a, p. 286). Dessa forma, a possibilidade de dar “coroa” no lançamento de uma moeda é 1/2, e de dar ‘4’ em um lance de dados é 1/6. A pergunta que pode ser formulada agora é: e se o dado estiver viciado, ou a mesa sobre a qual se joga a moeda não for plana? As possibilidades continuariam a ser as mesmas, mas os resultados não. Se o dado contiver um pequeno peso sob a face ‘1’, aumentam as chances de sair ‘6’. O que coloca de imediato a questão: como descobrir essas tendências? A resposta é óbvia: mediante um método estatístico, através do qual um número suficientemente grande de repetições nos permitirá calcular a frequência do resultado. Isso posto, podemos extrair como conclusão inicial que a tendência de sair ‘6’ no dado viciado é inerente ao objeto, é uma propensão, que num elevado número de repetições aponta para uma estabilidade, estabilidade essa produzida pelo objeto em si e pela interação que esse estabelece com o restante da situação física com a qual interage.

Na interpretação de Popper, as propensões não são possibilidades lógicas, “mas sim tendências ou propensões físicas para ocasionar o estado de coisas possível – tendências ou propensões para ocasionar aquilo que é possível” (POPPER, 1996a, p. 286), mas, ao contrário das probabilidades matemáticas, que se medem entre ‘0’ e ‘1’, onde ‘0’ é impossibilidade e ‘1’ é certeza, nas propensões físicas ‘1’ significa a noção clássica de causalidade, onde causa-efeito se conectam de forma necessária. Para todos os valores menores que ‘1’, devemos assumir que forças distintas interagem apontando para possibilidades que podem ou não ser atualizadas numa ou noutra direção, na medida em que o objeto está imerso em uma situação objetiva - o dado viciado ainda precisa ser lançado, e mesmo que o fosse por uma

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máquina, esbarraríamos não só na impossibilidade de construí-la de forma absolutamente determinada, como também com a interação com as demais forças em ação.

Não resta dúvida que a ideia de ‘propensão’ é altamente especulativa, porém permite a Popper uma alternativa objetiva entre o “Demônio de Laplace” e o “Deus jogador de dados” de Heisenberg. Seguindo a metáfora, não é que Deus não jogue dados, ele até é um grande jogador, porém os dados de Deus são viciados, no entanto se o ‘6’ ocorre mais vezes, isso não significa que o ‘4’ não possa ocorrer: “todas as possibilidades não-zero, mesmo aquelas que só têm uma pequena propensão não-zero, concretizar-se-ão no tempo, desde que tenham tempo para isso”(POPPER, s.d., p 32). Em sendo a realidade um sistema de propensões, ela não é pré-fixada, é objetivamente aberta ao novo, sendo justamente essa abertura da realidade que permite a Popper a elaboração de sua ontologia evolutiva, como veremos a seguir. 4. UM UNIVERSO CRIATIVO E EMERGENTE

O indeterminismo e a teoria das propensões permitem a Popper compreender o universo como um sistema onde todas as propriedades são disposicionais, sendo que o seu estado real é a soma de todas as suas propensões. Nesse mundo, o movimento é a atualização de algumas dessas propensões, que se cristaliza em algo que novamente é propensão, porém não redutível às anteriores. Como resultado, as propensões nos forneceriam uma imagem de mundo “em que há lugar para os fenômenos biológicos, para a liberdade humana e para a razão humana” (POPPER, 1992a, p. 160). Em sendo as propensões “reais”, cabe precisar o que se entende pela palavra ‘realidade’.

De um modo geral, o termo ‘realidade’ é empregado para designar coisas materiais, de um tamanho mais ou menos

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manipulável, se estendendo posteriormente tanto para aviões quanto insetos. O princípio que parece reger essa inferência é o que diz que coisas são reais se podem exercer algum efeito causal sobre objetos que prima facie podemos manipular. É claro que os átomos ou as bactérias não são diretamente observáveis, nós os admitimos enquanto tais por terem seus efeitos corroborados, o que pressupõe uma teoria que os constitua enquanto “realidade”. Desse modo, entidades reais podem ser mais ou menos abstratas, dependendo do tipo de teoria que as constitua, porém na medida em que sua realidade é constituída por corroboração, em momento algum podem ser ditas entidades últimas.

O interessante é que nesse

universo material alguma coisa nova pode emergir. A matéria morta parece assim ter mais potencialidades do que meramente produzir matéria morta. Em particular produziu mentes – sem dúvida em lentos estágios – e por fim o cérebro humano, a mente humana, a consciência humana do eu e a consciência humana do universo (POPPER e ECCLES, 1993, parte 1, § 5, p. 11).

Temos aqui uma argumentação que parece conduzir-

nos na direção do evolucionismo:

Esse interesse me levou, no transcurso dos anos, desde que escrevi essa parte do Post Scriptum (Parte III), mais além da física, especialmente à biologia, à mente humana e aos produtos da mente humana (a que chamei de Mundo 3) (POPPER, 1992a, Preface, 1982, § X, nota 39, p. 31).

Seguindo nessa direção, Popper elabora, a partir do

Posfácio da Lógica da Pesquisa Científica, a noção de ‘programa metafísico de pesquisa’. E o que faz esse programa? Deixemos que Popper nos diga:

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Chamo ‘metafísicos’ a esses programas também porque são o resultado de concepções gerais sobre a estrutura do mundo e, ao mesmo tempo, de concepções gerais sobre como se situam esses problemas dentro da cosmologia física. Os chamo “programas de investigação” porque incorporam, junto com a perspectiva sobre quais os problemas são mais urgentes, uma ideia geral sobre qual seria uma solução satisfatória para esses problemas (POPPER, 1992 a, § 20, p. 161).

Para Popper, a interpretação usual da seleção natural a

toma como resultando do cego acaso interno – mutação – interagindo com forças externas sobre as quais o organismo não tem controle algum, pelo menos é o que parece, em princípio, se depreender da conceituação de Darwin:

Por outro lado, podemos estar certos de que qualquer variação que se mostre nociva, por menor que seja, acarretaria inflexivelmente a destruição do indivíduo. É a essa preservação das variações favoráveis e eliminação das variações nocivas que dou o nome de Seleção Natural (DARWIN, 1994, p. 89-90).

Nessa interpretação, as preferências e objetivos do

organismo não podem ser tomados em si, mas apenas como produto da seleção natural. O erro dessa ideia foi descoberto pelos darwinistas J. M. Baldwin e C. Lloyd Morgan, que denominaram sua teoria de “evolução orgânica“.

A ideia básica dessa teoria é que todo o organismo vivo dispõe de um conjunto mais ou menos amplo de disposições comportamentais, isto é, na linguagem de Popper, os organismos são sistemas de propensões, nenhuma das quais iguais a ‘1’, e quando adotam uma delas, não necessariamente a de grau mais elevado, o organismo pode alterar o seu meio, o que significa dizer que decisões por parte de um organismo criam alterações no seu meio e, por consequência, pressões seletivas distintas para seus descendentes, influindo e alterando a própria direção do processo de seleção natural. O

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interessante na ideia de evolução orgânica é que essa, ao imprimir dentro da realidade da evolução o caráter subjetivo das decisões dos organismos, permitirá compreendermos como emerge no processo a mente humana:

Nós poderemos dizer que ao decidir falar e ter interesse por falar, o homem decidiu desenvolver seu cérebro e sua mente; a linguagem, uma vez criada, exerceu uma pressão seletiva sobre a emergência do cérebro humano e da consciência do eu (POPPER e ECCLES, 1993, Parte. 1, § 6, p. 13).

A ser correta essa ideia, isso implicaria, em Popper, que

o novo se formaria por uma “causação descendente”, as escolhas dos organismos alteram o meio criando pressões hereditárias que terminaram por tornar os descendentes diferentes dos genitores, nesse sentido o descendente não é pré-formado pelo genitor.

Permanece, todavia, a pergunta sobre como interpretar essa realidade independente. A resposta surgirá a partir da conhecida tese dos Três Mundos, que permitirá a Popper um enlace entre o caráter formal da epistemologia de The Logic of Scientific Discovery e o Evolucionismo.

A tese dos Três Mundos é bem conhecida43, Popper argumenta sobre ela em vários textos44, e pode ser inicialmente enunciada de maneira bem simples: um livro, por exemplo, é um objeto físico, nesse sentido, faz parte do que Popper chama de Mundo 1; porém, foi escrito por alguém, é o que Popper

43 Talvez essa minha afirmação reflita certo otimismo. Niinluoto (2006, p. 59), por exemplo, afirma que a tese dos 3 Mundos é ignorada pela maioria dos filósofos que trabalham com questões similares. Por outro lado, no universo popperiano, ela nos parece central, não apenas para o ponto que estamos discutindo, como também em outros aspectos da filosofia de Popper. O’Gorman (2008) aponta sua importância para a epistemologia da economia; Shearmur (1996, p. 78ss) sublinha seu papel na política; fizemos o mesmo quanto a ética em Pereira (2009); Gorton (2006, cap. 2 e 3), a discute enquanto fundamento das ciências sociais. 44 Para nossos propósitos, dois textos serão nossa referência principal: Popper e Eccles (1993), e Popper (1996b).

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chama de Mundo 2; entretanto, esse livro veicula uma ideia, que pode ser verdadeira ou falsa, consistente ou contraditória, é o que Popper chama de Mundo 3. Esse singelo exemplo chama a atenção por distinguir M2 de M3; afinal de contas, se não existem grandes dificuldades em admitir que um livro é um objeto físico, distinguir M2 de M3 é distinguir entre o fato de o livro ter sido produzido por alguém e o conteúdo do livro. Para fins de argumentação, Popper oferece-nos um exemplo oriundo da matemática para sublinhar essa distinção: parece ser inegável que os homens inventaram a sequência dos números, mas eles inventaram que ela era infinita, ou descobriram, dentro de sua invenção, que ela não tem fim? Da mesma maneira, os homens inventaram a sequência dos números naturais, mas essa invenção tem regras, regras das quais deduzimos consequências imprevistas e talvez mesmo insolúveis. Quanto mais se avança na sequência, menos números primos aparecem, terão os números primos um fim? Existirá o maior de todos os números primos? Nada disso foi inventado, foi descoberto dentro da invenção. A pergunta que se impõe, portanto, é: se a sequência dos números foi inventada e escrita num livro, os números primos, o infinito, o maior de todos os números primos foram descobertos. Onde existiam antes de serem descobertos? São objetos “incorporais” ou existiam no M2? Se existirem no M2, caem a objetividade e a autonomia do M3, portanto a resposta de Popper deverá conduzi-lo não só a argumentar a favor da existência de objetos incorporais, como também que a captação dos objetos do M3 não depende de sua incorporação física em um livro ou numa partitura musical. Temos agora duas questões: qual é o modo de existência dos objetos incorporais, e como captá-los. Comecemos com a segunda.

Para Popper, a compreensão de qualquer objeto do M3 se dá mediante sua reconstrução sistemática. Para clarificar esse ponto, tomemos o exemplo de uma teoria falsa (POPPER,

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1979, cap. 4, § 7-9): a Teoria das Marés de Galileu. Galileu a apresentava como prova indireta do movimento da Terra. A Terra giraria em torno do Sol e em torno do seu eixo. Chamemos de ‘α’, o movimento em torno do Sol, e assim distinguimos o movimento da Terra à meia-noite do movimento da Terra ao meio-dia; chamemos de ‘β’ ao primeiro e de ‘χ’ ao segundo. Em uma face da Terra, teríamos uma situação de ‘α’ e ‘β’ apontando na mesma direção, enquanto que na face oposta ‘χ’, a Terra operaria em sentido oposto a ‘α’. Partindo dessa mudança de velocidade, Galileu explicava o movimento das marés e inferia a veracidade do heliocentrismo copernicano. Para compreender essa teoria, é necessário descobrir qual o seu problema imediato, e qual a situação-problema na qual se insere. O problema imediato é óbvio: explicar as marés; já a situação-problema é algo mais complexo, pois, ao buscar as marés como forma de argumentação sobre a validade do heliocentrismo, a teoria está implicada numa enorme reformulação do M3 de sua época, que envolve não só a supressão do modelo ptolomaico e a sua substituição pelo modelo copernicano, como também na rejeição da física aristotélica e a construção de uma nova física fundada na ideia de inércia e na conservação dos movimentos circulares. Mas por que basear a fundamentação de Copérnico apenas sobre duas ideias e, principalmente, por que admitir a questão dos movimentos circulares quando Galileu já conhecia as órbitas elípticas de Kepler? E mais, por que Galileu negou qualquer influência da Lua sobre as marés?

Popper responde a essas questões da seguinte maneira: a restrição explicativa de Galileu apenas a duas leis gerais é sem dúvida uma simplificação, mas é uma simplificação que expõe claramente sua teoria ao processo crítico de refutação. Galileu simplifica para viabilizar a refutabilidade do sistema teórico que constrói. E pó rque rejeitar qualquer papel à Lua?

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Porque Galileu está comprometido em construir uma nova física, e nesse momento histórico a astrologia associa os corpos celestes a deuses e falar numa atração a distância seria abrir o flanco para os poderes ocultos.

A compreensão desse objeto do M3 leva-nos ao seguinte esquema:

P¹ → TE → EE → P²

Onde ‘P¹’ é a reconstrução da situação-problema de

Galileu, ‘TE’ é a teoria de Galileu, que por sua estrutura lógica viabiliza ‘EE’, isto é, todos os processos de eliminação de erro que viriam a culminar em Newton gerando ‘P²’. Como podemos observar, a captação de um objeto do M3 é um meta-problema para o sujeito que está desde já imerso nos objetos do M3; é por sermos sujeitos imersos em M3 que podemos compreender e captar M3. Certo, objetará o leitor, mas a teoria de Galileu, mesmo sendo falsa, é um objeto incorporado nas estruturas lingüísticas do M3, e quanto aos objetos não incorporados? Os objetos não incorporados nada mais são do que consequências lógicas que os objetos linguisticamente formulados estabelecem não só a partir de si, como também entre si.

Como podemos observar, o que Popper faz com as entidades não incorporadas nada mais é do que transferir a ideia de propensões não atualizadas, que no M1 são possibilidades físicas, para o M3, agora com o estatuto de possibilidades lógicas, que geram sobre o M2 o mesmo processo de “causação descendente” que anteriormente discutimos.

Popper reconhece que a ideia dos três mundos pode parecer, à primeira vista, como pareceu para ele mesmo, algo “imensamente abstrato, filosófico e vago”, somente se decidindo por sua publicação quando percebeu ser possível

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uma “abordagem biológica e evolutiva do mundo 3” (POPPER, 1996b, p. 32), pois, afinal de contas, a autonomia do M3 é parcial, já que é produto do ser humano, mas não de uma abstrata razão humana, mas sim de um sujeito inserido no processo de evolução da vida. Vejamos como isso se dá.

O indivíduo que está a resolver problemas o faz criando modelos de comportamento, ensaia procedimentos de solução e os corrige em caso de erro. Popper chama de ‘armas’ os comportamentos propostos pelo indivíduo. Sob esse aspecto, os comportamentos são as armas dos indivíduos, enquanto os indivíduos são as armas da espécie para conquistar determinado nicho ecológico. Cada organismo dispõe de uma estrutura genética e um conjunto de disposições comportamentais, ‘TE’, que, por um processo de enfrentamento com o meio, EE, busca sua perpetuação. Todavia, nesse esquema não podemos falar em uma ascensão genética, mas sim num processo de ensaio e erro, onde aumenta a variedade com vistas à solução de novos problemas que se apresentam. O interessante é que ‘P²’ não é redutível a ‘P¹’, tal como podemos observar rapidamente por uma análise da linguagem.

Popper distingue, na linguagem humana, quatro funções; duas das quais compartilhadas com as linguagens animais, e uma talvez parcialmente: a) função sintomática ou expressiva; b) função sinalizadora; c) função descritiva; d) função argumentativa. Em suas duas primeiras funções, a linguagem pode ser considerada como veiculando conhecimento subjetivo, disposições para comportamentos e, se tomarmos a linguagem enquanto objeto escrito, também os animais teriam um correlato na figura da casa do joão-de-barro ou na colméia da abelha. “Estes produtos do comportamento animal têm uma base genética, conquanto alguns deles também contenham um componente de tradição, e constituem o antecedente de animalidade que se

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transformaria no Mundo 3 dos seres humanos” (POPPER, 1996b, p. 82-83). Como podemos observar, não temos um abismo entre o reino especificamente humano e os demais seres vivos45. Apesar disso, nenhum animal produz algo semelhante ao M3, portanto, o específico do humano radica no conhecimento objetivo. Um segundo ponto a ser considerado é o caráter evolutivo das funções da linguagem: se as funções ‘a’ e ‘b’ estão presentes nos animais, e se talvez possamos dizer, como conjectura Popper, que uma abelha pode expressar sua excitação por descobrir um novo grupo de flores, comunicar isso às demais e descrever sua direção, ainda assim não pode contar uma história ou dizer uma mentira, sob esse aspecto a descrição humana introduz os valores de verdade.

O proveito biológico das funções superiores da linguagem é elementar - mediante descrições podemos flexibilizar antecipações instintivas, substituindo-as por descrições conscientes sobre o futuro; perguntar e responder, objetivando resolver problemas; desenvolver a imaginação e posteriormente estruturas explicativas; tudo isso torna possível uma hereditariedade não genética de características adquiridas, o arco e flexa, por exemplo, etc. Todavia, a autonomia do M3, que decorre da linguagem, cria um esquema geral enriquecido, no qual um mesmo ‘P¹’ pode demandar várias alternativas:

TEa → EEa → P²a P1 → TEb → EEb → P²b

TEn → EEn → P²n

Tendendo, potencialmente, ao infinito...

45 No prefácio de The Self and its Brain, Popper e Eccles apontam essa questão como um de seus pontos de divergência: Eccles julga que essa distância é bem maior do que pensa Popper.

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CAPÍTULO 6 OO RREEAALLIISSMMOO EEMM PPOOPPPPEERR EE PPEEIIRRCCEE:: UUMM CCOONNTTRRAAPPOONNTTOO

José Francisco dos Santos

Peirce e Popper desenvolveram suas filosofias em

épocas diferentes, e Popper teve um contato muito superficial com as obras de Peirce, insuficiente para que estas pudessem influenciar de modo decisivo o seu pensamento. Não obstante, ambos desenvolvem teses bastante convergentes acerca da falibilidade da ciência. O presente capítulo resume trabalho de maior fôlego, que compara a teoria dos dois autores, buscando destacar seus pontos em comum e suas divergências, sobretudo no que se refere ao realismo, que aparece como fundamento necessário à tese do falibilismo. O realismo mais abrangente de Peirce fortalece seu falibilismo, enquanto o realismo de Popper, que não consegue superar a noção do senso comum, faz com que seu falseacionismo apresente lacunas e inconsistências. 1. SOBRE A NOÇÃO DE REALISMO

A concepção de realismo, no contexto da metafísica, influi na visão que Popper e Peirce têm da ciência. Este viés constitui a contribuição principal da tese aqui apresentada. A noção de ciência dos dois pensadores apresenta muitas similaridades, sobretudo na ênfase à sua falibilidade, que se contrapõe à crença tradicional de ciência como conhecimento

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universal e necessário. Embora o termo “falibilismo” se aplique genericamente aos dois autores, utilizamos esta expressão para caracterizar, mais especificamente, a teoria peirceana e o termo “falseacionismo” para nos referir à teoria de Popper.

Ambos atacam o subjetivismo e o idealismo que aparecem como consequência do modelo empirista. Advogam, ainda, um princípio de indeterminação operante na natureza, contra os necessitaristas, que defendem um mundo regido por leis rígidas, onde uma possível aleatoriedade já teria sido dada desde o início.

Há, no entanto, diferenças importantes na abordagem e na fundamentação de suas teses, que procuramos evidenciar ao longo deste capítulo, que tenta responder à questão acerca do embasamento realista de cada um e sua força na sustentação de seus respectivos posicionamentos. 2. REALISMO E FALSEACIONISMO EM POPPER

O problema levantado por David Hume acerca da validade da indução é um dos pontos de partida da filosofia de Popper. Hume concluiu, sumariamente falando, que a necessidade e a universalidade, imprescindíveis à ciência, não nos podem ser dadas a posteriori e não há nenhum outro recurso lógico que possa nos socorrer neste ponto, dado que, pela concepção empirista, todas as ideias são formadas apenas após as sensações e impressões.

Para Popper, o ponto central do problema é o fato de se exigir que a adoção ou rejeição das teorias científicas dependa dos resultados da observação e experimentação, o que ele chama de “princípio do empirismo”. A solução de Hume é o abandono da justificação racional, afirmando que a confiança nas conclusões gerais se deve ao hábito.

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A “solução”46 popperiana se dá com o acréscimo do que ele chama de “princípio do racionalismo crítico”. O autor declara: “exigimos que a nossa adoção e a nossa rejeição de teorias científicas dependam do nosso raciocínio crítico [combinado com os resultados da observação e da experimentação]” (POPPER, 1992, p. 32, grifos no original). A novidade é a tese de que as nossas teorias funcionam apenas como conjecturas ou suposições, que podem ser testadas por observações, na esperança de se atingir a verdade. A ideia de verdade é retida como o padrão ou “ideia reguladora”, o que denota a crença realista que Popper se recusa a abandonar.

Assim, se a crítica nos permite escolher uma teoria em detrimento de outra, não é porque a teoria escolhida seja verdadeira, o que, afinal, nunca saberemos. Escolhemos entre uma teoria falsa e uma que “pode” ser verdadeira. E o que faz com que consideremos uma teoria melhor que sua concorrente é o nosso interesse em aproximar-nos sempre mais da verdade, nosso “ideal regulador”.47 Esta visão conjectural da ciência, segundo Popper, permite resolver o problema da indução sem o recurso a qualquer princípio apriorístico.

Em O Realismo e o Objetivo da Ciência, o autor distingue quatro fases do problema. A primeira aparece da consideração de que, se não podemos dar uma justificativa válida para uma teoria a partir da observação, ela seria tão razoável quanto qualquer outra, não se podendo distinguir o cientista do lunático. A resposta de Popper a esta questão é de que a observação pode, a favor do cientista, demonstrar a falsidade de sua teoria e nisto consiste o cerne do seu falseacionismo. A

46 Utilizamos as aspas no intuito de não nos comprometermos pessoalmente com a aceitação da tese popperiana de que sua abordagem de fato tenha solucionado o problema da indução. Por outro lado, não adentramos nessa polêmica específica, muito embora algumas das críticas à tese popperiana possam aparecer neste trabalho. 47 Esta questão, fundamental para a sustentação do realismo popperiano, é mais discutida adiante, quando abordamos sua crítica ao convencionalismo e ao instrumentalismo.

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segunda fase, denominada “problema da crença racional”, deve-se à insistência do cético de que, embora tenhamos teorias bem testadas e preferíveis, não se poderia justificar a crença na ciência como algo que tenha uma grande quantidade de conhecimento positivo.

A este problema, que Popper considera menor por não dar importância ao aspecto da “crença” em sentido subjetivo, ele contrapõe a ideia de que, embora possamos crer racionalmente na ciência, isso não significa crer na verdade de teorias científicas particulares. É a verossimilhança, e não a verdade, o objetivo da nossa crença racional na ciência. Uma teoria verossímil é aquela que resistiu a severos testes e constitui-se, assim, numa boa aproximação da verdade48. A terceira fase do problema da indução, chamada por Popper de “problema do amanhã”, consiste em se saber se o futuro será do mesmo modo que foi o passado, ou seja, se as leis da natureza continuarão a ser válidas amanhã. Esta questão contém um viés de metafísica analisado na quarta fase do problema. Popper a trata em termos de crer-se que uma teoria até aqui aceita e que tenha resistido a testes continuará a sê-lo no futuro. Sua resposta é evidentemente negativa, uma vez que aceitar o contrário seria uma “recaída” indutivista, o que invalidaria todo o corpo de suas teorias. A história da ciência está repleta de casos de teorias aceitas e corroboradas que acabaram sendo refutadas. Nesses casos, foi refutada uma teoria acerca do funcionamento do universo em tal ou tal caso, o que nada mais é do que uma produção humana, e não o modo real como o universo se apresenta (POPPER, 1992, p. 52-71).

A quarta fase, que consideramos de maior relevância para a análise do realismo popperiano, é decorrente da terceira e se constitui num problema metafísico. A questão aqui é se,

48 Esta ideia é desenvolvida no capítulo X de Lógica da Investigação Científica (POPPER, 2002, p. 29-31).

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para além de qualquer teoria específica, há leis universais verdadeiras. Popper diz acreditar num princípio mais fraco de que “existe pelo menos uma lei universal verdadeira”. Sua justificativa se liga à solução que dera aos estágios 1 e 3 do problema da indução anteriormente discutidos. Primeiro, tendo em vista que as teorias científicas são conjecturas que podem ou não ser verdadeiras, o fato de não saber se uma teoria é verdadeira não determina sua falsidade. Em segundo lugar, há razões para acreditar numa teoria científica bem testada e discutida. Assim,

desde o momento que nós temos, de fato, um número considerável de leis da natureza minuciosamente discutidas e bem testadas, há, na verdade, razões empíricas a favor da crença de que existe pelo menos uma lei da natureza verdadeira (POPPER, 1992, p. 79).

Isto implica a questão da realidade do mundo físico

que o indutivismo não pode sustentar. Popper propõe reformular o quarto estágio do problema do seguinte modo: “eu acredito que vivemos num mundo real, que ostenta alguma espécie de ordem estrutural que se nos apresenta sob a forma de leis. É possível mostrar que essa crença é razoável?” (POPPER, 1992, p. 80).

Não se trata apenas da existência de corpos físicos, mas de leis. Para o autor, a crença neste realismo é o pano de fundo do que ele desenvolveu em Lógica da Investigação Científica, muito embora esta sua crença realista não tivesse sido utilizada para justificar o que lá estava exposto. Este viés é dado, segundo o autor, pelo seu afastamento de qualquer teoria subjetivista acerca do conhecimento que, afinal, não consegue sustentar o realismo metafísico.

O abandono da questão acerca da origem do conhecimento permitiria fugir ao inevitável subjetivismo que o empirismo acarreta. Uma vez formuladas, as hipóteses

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adquirem, segundo Popper, um caráter objetivo, não dependendo mais do sujeito que as formulou. Este ponto é parte da “teoria dos três mundos”. Não cabe aqui detalhar tema tão amplamente conhecido49. Ressaltamos, para os fins deste trabalho que O Mundo 3 tem existência própria e consiste no conjunto das ideias que produzimos teoricamente para explicar o mundo. A ideia de dar vida própria às nossas teorias é desvincular a epistemologia de seus laços subjetivos. Deste modo, poderiam desaparecer todos os homens do planeta, mas as ideias permaneceriam e poderiam ser decifradas e discutidas por outros seres inteligentes que porventura viessem parar aqui. As teorias poderiam ser refutadas e nós sobrevivermos, fazendo conjecturas cada vez mais ousadas. É neste sentido que podemos falar de “conhecimento objetivo”.

O que há de realismo nesta concepção? Primeiramente, há que se considerar a crença na existência do mundo físico para além das consequências idealistas do empirismo. A afirmação do Mundo 1, como o mundo das coisas naturais, que não se confunde como o mundo dos nossos estados mentais (Mundo 2), é uma reafirmação do que Popper já havia indicado na sua crítica ao subjetivismo dos empiristas. A realidade e a autonomia do Mundo 3, no entanto, não nos parecem ser um passo tão significativo na direção do realismo metafísico, uma vez que não se trata da realidade das leis naturais, mas apenas da autonomia das nossas conjecturas em relação à nossa subjetividade. Não obstante esteja além do processo de “fabricação”, no sentido de que uma obra, depois de fabricada, não depende mais do seu autor, as teorias e, ademais, todos os outros “habitantes” do Mundo 3 são obras humanas (POPPER, 1972, p. 157).

49 Sobre o tema do “Mundo 3”, veja-se o capítulo 2 deste livro: O pluralismo da tese do Mundo 3 de Popper, de João Batista Cichero Sieczkowski. [Nota do organziador].

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Destarte, os três mundos não nos parecem fornecer nenhum argumento positivo em favor do realismo científico, senão argumentos negativos contra o idealismo e o subjetivismo em teoria do conhecimento.

A vantagem do realismo sobre o idealismo se dá ainda porque, caso a tese idealista seja verdadeira, qualquer coisa será possível, inclusive o que realmente acontece (uma vez que não existiria uma realidade objetiva para se contrapor às nossas ideias), o que torna esta tese vazia de qualquer poder explicativo.

Há muitos aspectos do falseacionismo de Popper que não podem ser analisados aqui, mas que confirmam o viés realista do autor. Este realismo se mostrou, desde o início, na solução que Popper pretende dar ao problema da indução, fugindo do subjetivismo e do idealismo aos quais o indutivismo, segundo ele, inevitavelmente leva. Daí a ideia de que o nosso conhecimento não surge das sensações, o que, aliás, Popper considera como algo simplesmente fictício.

O falseacionismo, como critério de demarcação entre ciência, pseudociência e metafísica, mostra sua veia realista enquanto faz o cientista buscar evidências que refutem sua teoria. Cada vez que uma teoria é falseada, ela terá se chocado com a realidade e terá havido um avanço em direção à verdade, o ideal regulativo da ciência. O verificacionismo, ao contrário, como Popper mostrou na sua discussão acerca da tese freudiana da interpretação dos sonhos, tende sempre a enxergar em tudo a confirmação da teoria proposta, uma vez que toda observação está carregada de teoria. Isto dificulta o confronto com a realidade, estimula a formulação de hipóteses ad hoc e serve mais para salvar a reputação da teoria e do próprio cientista do que para buscar a verdade.

Deste modo, o realismo constitui, no entender de Popper, o “pano de fundo” do falseacionismo, que procura fugir do subjetivismo e do idealismo, buscando testes que

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permitam “tocar” a realidade e, assim, aprofundar-se cada vez mais nela.

A formulação deste realismo, no entanto, nos parece bastante tímida. Talvez a principal evidência disto seja o assombro de Popper frente à questão da realidade das leis naturais que parecem ainda estar envoltas na nuvem da “coisa em si” kantiana, a qual Popper parece querer repelir, mas sem dar um passo verdadeiramente decisivo neste sentido. 3. PEIRCE E A REALIDADE DAS LEIS

Tal como Popper, Peirce se dedica à tarefa de superação do subjetivismo e do idealismo que caracterizaram a filosofia moderna. Peirce caracteriza como “nominalismo” toda filosofia que tenda a colocar no sujeito, ou na mente individual, a solução para o problema da unidade das impressões dos sentidos. Ele afirma que “o nominalismo surge a partir daquela concepção de realidade que encara tudo o que está no pensamento como causado por algo nos sentidos, e tudo o que está nos sentidos como causado por algo fora da mente” (CP, 8.25)50.

Nesta perspectiva, sua tarefa é encontrar uma explicação alternativa que supere também a solução kantiana, a qual coloca o sujeito transcendental como o constituidor da síntese necessária à validação da ciência, relegando a realidade do mundo como a “coisa-em-si” incognoscível.

Esta alternativa viria com o que Apel (1981, p. 22) chamou de “transformação semiótica”, na qual o conceito de signo adquire importância fundamental. O signo passa a ser o elemento que rompe a dualidade sujeito-objeto que prevalecia tanto no cartesianismo quanto no empirismo.

50 Essa é a forma clássica de citação da obra Collected Papers of Charles Sanders Peirce, dividida em oito volumes. CP indica o nome da obra, o número imediatamente após a vírgula indica o volume e o número após o ponto, o parágrafo.

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A noção de signo como mediador entre o sujeito e o objeto permitiu a Peirce afastar-se das consequências nominalistas tanto do cartesianismo, que via a intuição e a introspecção como formas de conhecimento, quanto do empirismo que, ao colocar nas sensações o fundamento das ideias, abria caminho mesmo para a negação da existência do mundo exterior independente da mente subjetiva.

Para Peirce, toda ação mental pode ser reduzida a uma das formas de raciocínio válido (CP, 5.267). O autor entende que ocorre algo dentro do organismo que é equivalente ao que acontece num processo silogístico, já que “se um homem acredita nas premissas, no sentido em que ele agirá segundo elas e dirá que são verdadeiras, sob certas condições favoráveis também estará pronto a agir conforme a conclusão e dizer que é verdadeira” (CP, 5.268).

O que ocorre na mente é um processo inferencial e nunca uma mera intuição ou associação de sensações.

As formas de raciocínio válido são a dedução, a indução e a hipótese (abdução). A indução é definida por Peirce como uma inferência que atribui verdade para uma inteira coleção, a partir do que é verdadeiro para uma amostra dela, ou um certo número de casos tomados ao acaso, o que poderia ser chamado, segundo ele, de argumento estatístico.

A validade de um tipo de inferência, assim, só poderia ser estabelecida em longo prazo (long run), quando se poderia chegar a conclusões bastante corretas a partir de premissas verdadeiras (CP, 5.275).

A necessidade de uma investigação em longo prazo para determinar a validade da indução introduz um elemento extremamente importante na constituição do realismo peirceano e também do seu falibilismo. Trata-se da “comunidade de investigadores” que, num processo contínuo de investigação, possibilitaria a correção dos erros e o avanço em direção à verdade – que seria a opinião final da

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comunidade de investigadores, não estando atrelada a um indivíduo nem a um número definido de indivíduos (CP 5,311-316). Este é um passo adiante na superação do subjetivismo e implica uma noção histórica da investigação, num ambiente virtual de discussão crítica que, parece-nos, teria interessado muito a Popper na formulação de seu racionalismo crítico.

Outro passo em direção a um realismo mais consistente se dá quando Peirce assume a tese de que uma representação geral significa mais que um acordo ou convenção (nominalista) para reduzir à unidade a multiplicidade das sensações. O signo, fundamento das nossas concepções, não é produto da nossa mente, embora seja relativo a ela.

Eu a limitei [a ideia de signo] a uma definição em que um signo é qualquer coisa que, de um lado, é determinado (ou especializado) por um objeto e, de outro lado, determina a mente de seu intérprete, o último sendo assim imediatamente, ou indiretamente, determinado pelo objeto real que determina o signo (NEM51 III, 886).

O signo, assim, é determinado pelo objeto real e a ele se

refere, sendo também nossa única forma de contato com esse objeto. Conforme Santaela (2000, p. 49), “ainda que a percepção constitua uma porta de entrada para o conhecimento, nunca estamos em situação de corpo e mente imediatamente colados a uma objeto que possa ser tomado como sendo originário de uma semiose”.

Se, de um lado, o objeto nunca se apresenta “em si mesmo”, senão através da mediação sígnica, de outro lado não se pode dizer que não exista um objeto real. Este objeto (chamado na semiótica de objeto dinâmico) é apreendido na

51 New Elements of Mathematics.

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percepção e é a fonte de toda a intrincada rede de significações que se darão no seu processo de significação.

Compreender o processo de percepção é, portanto, fundamental para entender o papel do signo e como a teoria peirceana da percepção constitui-se num importante passo na superação do subjetivismo e suas consequências nominalistas. Em Peirce, encontramos três elementos fundamentais na percepção: o percepto, que é o objeto externo; o percipuum, o modo como esse objeto aparece à mente daquele que percebe; e o julgamento perceptivo (CP, 7.643).

Em que esta tríade reforça o realismo peirceano? Primeiramente, pelo aspecto da realidade do percepto como exterior e independente da mente. Afastando-se da máxima “ser é ser percebido”, típica do idealismo subjetivista, Peirce realça a realidade do mundo exterior em relação à mente.

Santaella (1998, p. 90) comenta que a grande prova que Peirce apresentou em favor do seu realismo “encontra-se na evidência de que nossa percepção comete erros. Deve, portanto, haver alguma coisa lá, em algum lugar diferente da nossa mente, que não depende da nossa percepção”.

O erro nos coloca frente aos “fatos duros” da segundidade52, que se forçam à nossa percepção e que, em última análise, nem mesmo precisariam ser percebidos. Este elemento é físico e nunca poderá ser exaurido pelo nosso julgamento de percepção, uma vez que nosso aparato perceptivo nos faz perceber algumas coisas e não outras, e percebê-las de um determinado modo, de acordo com nossa natureza e a nossa capacidade de interpretação. Santaella apresenta ainda um interessante exemplo como argumento a favor da realidade do percepto, quando escreve acerca da

52 É a categoria da percepção que indica a resistência que a mente encontra em relação aos fatos do mundo. Na tríade das categorias de Peirce, a “primeiridade” corresponde ao acaso e a “terceiridade” à generalidade ou lei. Para uma explanação mais completa sobre estas três categorias, cf. Ibri (1992).

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abelha que vem em nossa direção. Quando tentamos nos livrar dela, damo-nos conta de quanto é real e independente da mente (SANTAELLA, 1998, p. 93).

Assim, muito embora não tenhamos um contato cognitivo direto com o objeto (percepto), senão através da mediação sígnica, sua realidade fica demonstrada. De igual modo, essa realidade está além do percipuum, que é o modo como o objeto se apresenta à percepção. Um homem atingido por um tiro mortal nas costas, por exemplo, terá uma determinada percepção do fato, dependendo da dor que sentir ou das suas informações anteriores sobre esse tipo de ferimento, o que fará com que produza um julgamento perceptivo quiçá deficiente. Mas a realidade do objeto dinâmico (percepto) terá sido inexorável.

Acreditamos estar suficientemente fundamentada a realidade do percepto enquanto segundo, como algo externo que resiste e força-nos à cognição. Mas em que aspecto temos generalidade ou terceiridade53 na percepção e qual a sua “realidade”?

Na definição de signo, também aparece a ideia de generalidade, uma vez que, segundo Peirce, nenhum signo pode ser absolutamente preciso, já que sua relação com o objeto que representa também nunca o será, deixando para um outro signo, o seu interpretante, a tarefa de complementá-lo, num processo contínuo. Estas características de generalidade e vagueza se ligam ao realismo, porque permitem afirmar a realidade das concepções gerais, que não se confundem com a determinação de um individual. Concepções gerais, como correlatos da terceiridade, podem ser estabelecidas como verdadeiras ou falsas no processo histórico de investigação da comunidade de investigadores. Conceitos gerais representam alguma coisa e são verdadeiros ou falsos em relação a essa

53 Categoria da generalidade ou da lei.

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coisa que representam. Como afirma Peirce, o conceito geral “homem” é verdadeiro em relação a alguma coisa, então, o que ele significa é real (CP, 5.312).

A cognição, assim, é equivalente à realidade no sentido de que a estrutura do signo mostra que a verdade é objeto de um processo contínuo, que se estende ad infinitum, referindo-se sempre ao mundo exterior, cuja representação só pode ser esgotada no consenso ou opinião final da comunidade de investigadores. Esta opinião, é claro, só pode ser considerada verdadeira na sua relação com o mundo, o objeto dinâmico do signo que ela representa. No fluxo do tempo, a repetição dos eventos parece associá-los a um caráter de generalidade, à medida que deixam de ser meros reagentes individuais, pondo-se em relação segundo uma regra que permite sua compreensão pela consciência. Assim, forma-se o conceito de lei, subsumida à categoria da terceiridade. Isto só é possível devido às regularidades das reações do mundo que, quando tomadas isoladamente, formam a segunda categoria: “o mero poder ser do fenômeno mediativo tem seu fundamento lógico no dever ser da generalidade real” (IBRI, 1992, p. 32).

Está levantada, então, a hipótese da terceiridade real, ou seja, da existência de leis, independentes da consciência, que regem o comportamento dos individuais. Evolui-se de um realismo de individuais para um realismo de universais, numa aproximação ao realismo escolástico. Nós percebemos não apenas individuais reagentes, mas também a regularidade de suas reações, e essa regularidade permite-nos conhecer o comportamento das coisas no fluxo do tempo.

Dizer que essa regularidade é uma construção da própria consciência, como faz o nominalismo, seria negar a própria observação. Ora, tal generalização deve dizer sobre o futuro, pois pressupõe a permanência dessa regra geral. Como pode se dar isso, se o mundo não se comportar da mesma forma mais adiante? Como definir a lei como mero constructo

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da mente humana sem descaracterizar dela o papel de esse in futuro? Parece não poder haver lei sem que estejam presentes, ao mesmo tempo, a generalidade e a alteridade (CP, 5.48).

Um mundo composto de meros individuais, sem quaisquer relações de ordem entre si, seria um mundo caótico e dele nenhuma representação seria possível. Segue-se, então, que uma generalidade real se impõe como condição de inteligibilidade. Quando a reação se manifesta com regularidade, insistindo contra a consciência, deixa de ser mera reação bruta, podendo ser representada em uma mediação, passando da segunda à terceira categoria. Sua realidade é a realidade das leis.

4. CONTRAPONDO OS DOIS REALISMOS Em Popper, como vimos no início deste capítulo, há

uma versão fraca do realismo, que ele denomina “realismo de senso comum”, enfatizando a existência do mundo concreto, do mundo dos objetos físicos, em oposição ao idealismo subjetivo. A versão mais forte do realismo, acerca da realidade das leis naturais, está subentendida em Popper, mas muito pouco desenvolvida, embora seja fundamental ao seu projeto falseacionista.

Em Peirce, estas questões estão amplamente discutidas, com os contornos bem delineados do mundo dos objetos, entendidos como reagentes, subsumidos à categoria da segundidade. O mesmo acontece com a terceiridade real, o que dá o toque distintivo ao realismo peirceano.

Embora possam aparentar alguma semelhança, os três mundos de Popper são muito diferentes das três categorias de Peirce. Acreditamos que, mais uma vez, é o tipo de realismo de cada um que sustenta estas diferenças. Para Popper, o toque de realismo está dado no seu Mundo 1, ou o mundo dos objetos físicos. Este Mundo 1 é, basicamente, o que Peirce

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chama de segundidade, o mundo dos individuais reagentes. As teorias, entendidas apenas como as formulações humanas, independentes da subjetividade de quem as formulou, e que formam o Mundo 3 popperiano, são diferentes da terceiridade de Peirce, visto que Peirce confere o estatuto de real também a esta categoria.

Nossas teorias, segundo Popper, “tocam a realidade”, tendendo a chegar cada vez mais próximas da verdade, entendida como correspondência com os fatos. Este realismo, embora se incline para a posição peirceana, é o que poderíamos chamar de “realismo de segundidade”, encontrando aí sua limitação. Parece faltar aquele grau de objetividade das leis naturais, do qual Popper pode ter se aproximado, mas acabou se rendendo ao seu “mistério”.

Consideradas como hipóteses formuladas subjetivamente, sem uma relação mais direta com algum tipo de “terceiridade real”, as teorias em Popper apresentam um indesejável grau de nominalismo, que poderia ser evitado com a assunção de um realismo mais robusto. O nominalismo entende que os universais são apenas criação da mente e pode conviver tranquilamente com uma noção realista do tipo popperiana, já que a realidade do Mundo 3 é considerada real apenas como artefato humano, como o mel é artefato da abelha e, após produzido, torna-se independente dela. Assim, embora se advogue a existência do mundo como realidade, as leis gerais não encontram correlato nessa realidade, sendo apenas conjecturas humanas, muito embora Popper afirme que, quando falseada, a teoria toca a realidade.

Podemos afirmar que há algo em Popper que tende a ir além do que isso, mas não está formulado de modo claro. Tal aparenta ser o estatuto do Mundo 3 de Popper. A realidade (ou objetividade) do Mundo 3 consiste na realidade “física” das teorias, que depois de formalizadas, subjetivamente, cristalizam-se nos livros, e acabam tendo consequências e

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desenvolvimentos independentes do controle subjetivo. No modelo evolucionista popperiano, a realidade do Mundo 3 representa uma forma de interação dos humanos com o meio, na qual a espécie pode sobreviver apesar dos erros que suas conjecturas sempre têm. A realidade do Mundo 3 permite que o aprendizado por tentativa e erro, que é o eixo central do falseacionismo, seja uma ferramenta a mais para a sobrevivência dos humanos, enquanto, para outras espécies, um erro poderia ser fatal.

Para Peirce, há outros ingredientes nesta questão. Em Pragmatismo e Abdução (CP, 5.180-212), ele apresenta, nas suas “proposições cotárias”, a gênese da abdução como uma conaturalidade entre a mente e o mundo, caracterizadas por aquele “afinamento” que nos permite “adivinhar” as leis da natureza, uma capacidade que o autor compara com a capacidade aeronáutica dos pássaros (CP, 7.48). Popper não vai tão longe. Em Lógica da investigação científica, ele ressalta que não crê que exista algum método lógico de conceber ideias novas e se afasta desta questão por considerá-la de natureza psicológica e não lógica (POPPER, 2002, p. 8). A força de sua argumentação está na possibilidade de refutação das teorias já elaboradas. Há bastante proximidade com Peirce neste ponto, mas parece faltar em Popper (ou seria “sobrar” em Peirce?) um elemento mais ousado que decorre do realismo extremo de Peirce. O realismo de Popper não consegue, ou evita dar esse passo.

Desconhecemos, além da posição peirceana, outra que assuma uma postura realista desta natureza. Peirce abordou o tema (sem prever, obviamente, o seu desdobramento no século XX), nas suas Lições de história da filosofia (CP, 1.1-40). Ali, ele afirma que, nos dias de Roger Bacon, Santo Tomás de Aquino e Duns Scotus, a questão entre o realismo e o nominalismo era tomada conclusivamente a favor do realismo. No mesmo parágrafo, Peirce entra na discussão sobre o teor metafísico da

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questão, pois a realidade dos universais é uma noção de metafísica e não de lógica. No entanto, quando se pergunta se as nossas convicções do senso comum são verdadeiras, a análise do significado da questão é lógica e não metafísica.

Nesta perspectiva, a metafísica peirceana estava fundada na lógica, pois a realidade da terceiridade não é uma formulação a priori, mas responde à questão de como são possíveis as nossas cognições num mundo caótico, “(des)organizado” nominalisticamente. Ao assumir uma tal posição metafísica, ele está embasado na lógica. Como ressalta Haack (1992, p. 21), esta questão tem profundas consequências e é um importante argumento em favor do realismo, sendo o pragmatismo, propriamente entendido, inerentemente realista.

Peirce considera que questões políticas acabaram sendo determinantes na desarticulação do realismo e na ascensão do nominalismo, criando uma maré nominalista na filosofia moderna, dentro da qual se encontram filósofos como Descartes, Locke, Berkeley, Hume, Leibniz e Kant. Aliás, Peirce afirma que a filosofia de Kant seria mais forte e consistente, tivesse ele se orientado pelo realismo, “como teria feito certamente, se tivesse lido Scotus” (CP, 1.19). Ainda no mesmo texto, Peirce afirma, ao comentar acerca da terceiridade:

Não passam cinco minutos de nossa vida enquanto acordados, sem que façamos algum tipo de predição [...] uma predição é essencialmente de uma natureza geral. [...] dizer que uma predição tem uma tendência a ser cumprida, é dizer que os eventos futuros realmente estão, nalguma medida, governados por lei. [...] ‘Oh’, dizem os nominalistas, ‘esta regra geral não é mais que uma palavra ou um par de palavras’. Eu respondo: ‘Ninguém sonhou em negar que o que é geral é da natureza de um signo geral; mas a pergunta é se eventos futuros se conformarão a isso ou não. Se eles vão [se conformar], seu adjetivo mera parece estar mal colocado. Uma regra para qual eventos futuros têm uma tendência para

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conformar é ipso facto uma coisa importante, um elemento importante no acontecimento desses eventos’ (CP, 1.26).

O reconhecimento de generalidades reais se perdeu enquanto a filosofia moderna se afastou do realismo escolástico e teve um tratamento assaz preconceituoso no século XX. Na sua forma mais extremada, esse sentimento antimetafísico fez com que um discurso dessa natureza fosse taxado de pseudoproposição. Popper, embora tenha se colocado do lado oposto dos positivistas lógicos e tenha controvérsias com o Círculo de Viena acerca dessa demarcação entre ciência e metafísica pelo critério do significado (POPPER, 1992, p. 174-177), não superou a oposição ao “realismo escolástico extremo”54, estando sua posição realista presa ao senso comum, ou seja, à sustentação da realidade do mundo dos objetos individuais, e carente de uma sustentação mais consistente quanto à realidade das leis gerais. Apesar disto, sua posição, às vezes, é bastante parecida à de Peirce, sobretudo em O Realismo e o Objetivo da Ciência, onde chega a afirmar que as leis da natureza podem ser interpretadas como descrição de estruturas do mundo. Ao mesmo tempo em que aceita esta posição, reconhece que se trata de uma metáfora vaga.

Devemos, julgo eu, aceitar a existência de leis da natureza; mas fazê-lo, receio bem, como um mistério que se tornou talvez ainda mais impenetrável de Einstein para cá; pois as próprias leis da natureza, que postulam, segundo Einstein, que não há efeitos que se possam difundir com velocidades superiores à da luz, fazem com que seja impossível compreender a onipresente homogeneidade estrutural do Mundo (POPPER, 1992, p. 150).

54 Utilizamos a expressão de Haack (1992).

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Popper aponta isso fazendo alusão ao “místico” de Wittgenstein, como um embaraço para o realista metafísico. O idealista se sai melhor, pois pode, como Kant, dizer que o nosso intelecto é que impõe a ordem ao universo. Popper (1994, p. 152) salienta: “não acho que se possa resolver esse mistério pensando que o mundo é o que é por uma espécie de necessidade lógica. A esperança de reduzir as ciências naturais à lógica me parece absurda e repelente”.

Popper parece totalmente seduzido por um realismo que vá além do que chamamos anteriormente como seu “realismo de segundidade”. Sua necessidade de que existam leis gerais o faz estar no limiar da terceiridade peirceana, passo que, ao final das contas, ele não dá. Para Peirce, o problema não se apresenta com esta mesma coloração. A existência das tais “leis estruturais” é consequência natural de sua abordagem.

Convém apontar, aqui, a observação de Apel, que indica o uso limitado que Popper faz do critério de falseacionismo, reduzindo-o apenas à experimentação. Peirce, ao contrário, dá importância fundamental ao processo de descobrimento, ou abdução, e a experimentação caminha para um princípio de convergência progressiva até “um realismo cada vez melhor justificado” (APEL in LANDÁZURI, 2002, p. 9). Faltaria, para Popper, um princípio desta natureza, que regulasse adequadamente o processo de melhoramento das teorias, rumo a uma aproximação cada vez maior da realidade. No nosso entender, isso está, de certa forma, implícito em Popper, mas seu realismo incompleto o impede de formulá-lo melhor.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não pudemos aqui, pelas limitações óbvias desse tipo

de trabalho, tecer todas as considerações acerca da filosofia

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dos autores analisados, apresentando apenas um relato conciso do caminho percorrido na pesquisa. A abordagem, no entanto, parece suficiente para chamar a atenção sobre um contraponto que só recentemente vem sendo considerado, uma vez que o conhecimento limitado que Popper parece ter tido da obra peirceana o impediu de levá-la na consideração que deveria, ao formular seu falseacionismo. De fato, o realismo, tão enfaticamente sustentado por Popper, careceu nele de um fundamento mais abrangente, ao passo que Peirce, um autor que Popper, nas poucas alusões que lhe faz, parece admirar, já havia trabalhado o mesmo problema de modo bem mais abrangente.

Somos tentados a imaginar que se esse diálogo tivesse ocorrido de modo mais intenso, teria modificado em boa parte a discussão filosófica no século XX, que se viu presa às amarras de um nominalismo que não logrou ser refutado consistentemente, mesmo por Popper, que se opôs a ele com veemência. Acreditamos que um conhecimento maior da obra de Peirce teria sido um ingrediente decisivo nessa discussão. O presente século, ao que tudo indica, será tempo de suprir tais lacunas, e esperamos estar contribuindo, em alguma monta, para essa finalidade.

Evidenciar o realismo, nas bases em que Peirce o propõe, coloca na nossa agenda filosófica também um novo olhar para a metafísica, tão combalida nas considerações filosóficas do século passado. O próprio Popper parece ter sido presa dessa aparente falta de fundamentação da metafísica, uma vez que não conseguiu formular seu realismo no âmbito completo em que poderia sustentar suas teses. REFERÊNCIAS APEL, Karl Otto. Transformação da filosofia II: o a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

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IBRI, Ivo Assad. Kosmos noetos: Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1992. LANDÁURI, Carlos Ortiz de. Dos meglioristas: decisionismo metodológico o ética de las creencias, 2002. [on line] Disponível em http://www.unav.es/gep/AF69/AF69Ortiz.html. Acessado em 13 ago. 2005). PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Edited by Charles Harsthorne, Paul Weisse Arthur Burks Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, I vol., 1931-35 e 1958. _______. The new elements of mathematics by Charles Sanders Peirce. Edited by Carolin Eisele. The Hague, Mounton Publishers, 5 vols, 1976. POPPER, Karl R. The logic of scientific discovery. London and New York: Routledge, 2002. _______. Objective knowledge: an evolutionary approach. New York: Oxford Clarendon Press, 1972. _______. Conjectures and refutations. London: Routledge and Kegan Paul, 1999. _______. Realism and the aim of science: postcript to the Logic of Scientific Discovery, vol. I. London and New York: Routledge, 1992.

SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. São Paulo: Editora Experimento, 1998. SANTOS, José Francisco dos. Realismo e falibilismo: um contraponto entre Peirce e Popper. Curitiba: Editora CRV, 2011.

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CAPÍTULO 7 AA HHIISSTTÓÓRRIIAA DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA EE AA EEPPIISSTTEEMMOOLLOOGGIIAA DDEE PPOOPPPPEERR

Jézio Hernani Bomfim Gutierre

A História e a prática da ciência têm papel coadjuvante

ou central na epistemologia de Popper? Uma resposta a essa pergunta é relevante para a caracterização e cenário crítico do falsificacionismo ao circunscrever muito do campo de batalha há tanto tempo tão frequentado por Popper e seus desafetos. Várias das interpretações mais recentes lançam mão de evidências historiográficas para a análise do racionalismo crítico e frequentemente consideram os custos que recairiam sobre ele caso se confirmasse a decantada ausência de exemplos históricos que o corroborassem. Como se sabe, Kuhn, Feyerabend, Lakatos e tantos outros depois deles assacaram contra Popper uma presumível vacuidade historiográfica, e a consequência decorrente e amplamente difundida é a de que aquela teoria epistemológica não passaria de um esqueleto seco, uma teoria idealizada sem aplicação ou interesse para a intelecção e normatização de um organismo dinâmico, vivo e concretamente evolutivo como é a ciência empírica. De fato, considerando-se sua vacuidade histórica, a admissão de uma teoria assim contribuiria, no limite, para o gradual afastamento entre cientistas e filósofos, circunstância

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propiciadora de efeitos epistemologicamente perniciosos e, segundo alguns, socialmente catastróficos55.

Não cabe aqui considerar a correção do severo diagnóstico, estritamente historiográfico, que subtrai do falsificacionismo qualquer corroboração da prática56. O que se pretende discutir é o vínculo entre aquela proposta epistemológica e a História, uma convivência que amiúde se acredita não apenas conflitiva, mas inaplicável ao caso do sistema popperiano – um sistema, presume-se, estruturalmente a-histórico e, justamente por isso, irrelevante.

Mas seria a relação de Popper com a prática científica concreta realmente tão frágil quanto fazem crer os intérpretes-padrão? Quando na tão citada passagem de A estrutura das revoluções científicas Kuhn fala dos que tratam a História como mero repositório de “anedotas ou cronologias” (KUHN, 1970a, p. 1), a carapuça serviria em Popper? Tal caracterização anedótica do uso anedótico da História parece trivialmente aplicável a várias passagens da obra do filósofo austríaco. Se considerarmos o uso ilustrativo que a História pode ter para a exposição de uma metodologia, certamente que isso é identificável desde a primeira edição de Logik der Forschung. Mas é também claro que o emprego da ilustração historiográfica não é privilégio de Popper, e mesmo filósofos com as melhores credenciais historicistas (Kuhn inclusive) seguem, compreensivelmente, esse caminho. O que se critica não é obviamente a eventual ilustração historiográfica, mas o

55 Cf., por exemplo, o diagnóstico de Evert Bethe: “a crescente discrepância entre ciência e filosofia [...]” seria “uma das principais causas para a queda da filosofia contemporânea [...]”, e “ameaça seriamente o futuro desenvolvimento da Civilização Ocidental.” [citado em SUPPE, 1989, p. 6]. Consequências igualmente trágicas são extraídas das mesmas causas por autores à primeira vista tão diversos quanto Popper e Feyerabend. 56 Popper e seguidores – particularmente J. Agassi (cf. AGASSI, 1963) – certamente nunca abandonaram o front historiográfico. Para eles, a história da ciência, especialmente em seus grandes momentos revolucionários, reflete invariavelmente na prática a aplicação do modelo metodológico falsificacionista.

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emprego sistemático e exclusivo dos registros da práxis científica apenas como ilustrações. Seria este o caso de Popper?

O próprio Kuhn responde negativamente a essa questão quando reconhece que Popper é o mentor de uma linhagem de filósofos que, ao contrário de seus predecessores positivistas, estão atentos à práxis e lhe dão papel substantivo. E essa é justamente a fonte da perplexidade de Kuhn frente às críticas popperianas (cf. KUHN, 1970b, p. 235ss): por que um autor com esse perfil lhe endereçaria críticas anti-historicistas? Assim, delineia-se uma (mais uma) indagação hermenêutica: quando Popper faz uso não anedótico da História e da prática da ciência? Ou, pergunta relacionada, como dissipar a perplexidade kuhniana frente às críticas popperianas?

Para enfrentar essas questões é interessante que isolemos dois ângulos do sistema popperiano – o meta-metodológico e o metodológico – e analisemos os diferentes papéis que reservam para a História.

Na definição de sua epistemologia, Popper é um pensador clássico. Em linhagem racionalista canônica - em que se estabelece a Filosofia, em particular suas ramificações gnosiológicas, como a rainha das ciências, uma Filosofia Primeira -, ele pretende definir normas, uma reconstrução racional do que o cientista deveria fazer caso pretendesse seguir um processo racional de decidibilidade. É isso que permite a Popper caracterizar sucintamente o centro de sua doutrina como “uma recomendação (normativa)” (POPPER, 1981, p. 99-100, n. 41, grifo no original). Entretanto, paralelamente ao teor normativo de sua proposta, ele também sustenta reiteradamente a rígida distinção entre questões de fato e de direito, mais especificamente, entre questões empíricas e de justificação (cf. POPPER, 1992, p. 7 e passim). Segue-se daí que a maneira como os cientistas realmente se comportam – sua práxis e a História da ciência - é tema de saída epistemologicamente desinteressante. Por isso mesmo

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Popper se permite dizer que “minha teoria da ciência não pretendeu ser uma teoria histórica, ou uma teoria sustentada por fatos históricos ou fatos empíricos de outra ordem” (POPPER, 2000, p. xxxi)57. Essa é a posição que Popper professa contundentemente por várias vezes e de maneira aparentemente inequívoca quando caracteriza seu empreendimento e o objetivo que persegue:

Inclino-me a afirmar que deveríamos tentar determinar o que eles [os cientistas] “devem” [“ought”] fazer. Esse “devem” obviamente não tem teor ético (embora a ética esteja também envolvida aqui), mas seria antes o “devem” de um imperativo hipotético. A questão é: “Como deveríamos proceder caso desejássemos contribuir para o crescimento do conhecimento científico?” E a resposta é: “Você não tem melhor alternativa que proceder conforme o método crítico de tentativa (conjectura) e eliminação do erro, procurando testar ou refutar suas conjecturas.” O argumento que suporta essa resposta pertence à lógica situacional. Não penso que devemos nos voltar para a questão (sociológica) sobre o que os cientistas realmente fazem ou dizem (POPPER, 1974b, p. 1036).

Alicerça-se assim uma teoria da racionalidade, teoria

que não parte da necessidade de retratar alguma característica típica à ciência ou qualquer outra entidade histórica definida.

É bem verdade que mais de um autor afirmou que Popper teria partido da apodítica constatação do progresso científico, uma característica essencial e primitiva da ciência, para estruturar o falsificacionismo (e.g., O’HEAR, 1980, p. 2-3 e 96). O raciocínio desses intérpretes é direto: Popper teria o objetivo de identificar o legítimo método científico, responsável pelo conspícuo sucesso da ciência, e comunicá-lo

57 Na sequência imediata à mesma passagem, Popper complementa: “Entretanto, duvido que exista qualquer teoria da ciência que possa lançar tanta luz sobre a história da ciência quanto a teoria da refutação seguida pela reconstrução revolucionária, embora conservadora“ [grifos no original].

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a outras disciplinas que não usufruem da mesma sorte. E, reconheça-se, algumas observações popperianas parecem dar peso a essa alegação. Passagens como “o crescimento do conhecimento pode ser mais bem estudado a partir do estudo do crescimento do conhecimento científico” (POPPER, 1992, p. xix) podem ser entendidas como um estímulo para o desempenho de tarefa semelhante a uma cópia, uma transposição de regras e práticas, sabidamente bem-sucedidas no caso da ciência empírica, ao conhecimento em geral. Entretanto, isso simplesmente não se aplica ao projeto de Popper: ele não pressupõe o “fato” do progresso científico e, por extensão, não pode justificar a escolha de um método com base em que ele assegura aquele sucesso – na verdade, nunca se pode pressupor o progresso gnosiológico (ou qualquer progresso humano) e, de fato, por vezes, a História da Ciência pode bem ser a história de uma tragédia epistêmica58. O máximo que podemos tentar alcançar é o estabelecimento e disseminação dos traços definidores da racionalidade de nossas escolhas, sem que isso garanta o desempenho futuro das teorias escolhidas.

Tudo isso leva à inescapável conclusão de que, no terreno meta-metodológico, Popper recusa a ingerência histórica e reafirma seu vínculo com o racionalismo normativo clássico. Seu interesse não reside na procura de um método que espelhe um progresso efetivamente alcançado, mas sim na busca de uma metodologia que sustente processos de decidibilidade empírica, assegurando a crítica (leia-se, a razão) no âmbito científico.

58 Nesse particular, a história do embate entre Mach e Boltzmann em torno da teoria atomística seria, segundo Popper, icônico. De acordo com a História, Boltzmann foi, ao menos ao longo de sua vida, derrotado. Entretanto, conclui Popper, se o juízo histórico foi desfavorável a Boltzmann, isso apenas desqualifica aquele juízo: “Tanto pior para a História” (POPPER, 1974b, p. 125). A redenção historiográfica é um mito, e injustiças gnosiológicas podem muito bem ser chanceladas historicamente.

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Até este ponto, portanto, o decantado alheamento popperiano em relação à prática e a evidências históricas parece bem atestado. Entretanto, a fortuna da História experimenta uma reviravolta quando se considera uma outra face do edifício popperiano: sua proposta metodológica. Para evidenciar essa diferente atitude frente à História, reexaminemos alguns dos bem conhecidos elementos fundamentais de um típico processo popperiano de teste.

Conforme o modelo falsificacionista e os parâmetros centrais da metodologia dedutivista, para a efetivação de testes na ciência as hipóteses testadas devem ser confrontadas com enunciados básicos aceitos e eventualmente rejeitadas quando contradizem as hipóteses. O que distingue a seleção popperiana dos enunciados básicos - relativamente à aparentemente abraçada por neo-positivistas extremados como M. Schlick – é que a aceitação de tais enunciados não equivaleria à aceitação de “fatos”. Tal aceitação é decorrente de um debate interno à comunidade científica, travado ao longo do processo de teste e finalmente estabelecida por um acordo, uma convenção. Que este debate não é aleatório ou artigo de fé é o que Popper procura ilustrar ao equipará-lo à deliberação de um júri: embora não guiado por regras que forcem uma determinada conclusão, nem por isso deixa de ser judicioso e racional.

No entanto, para a análise de uma dívida historicista em Popper, o que é proveitoso levar em conta é o papel que se atribui à comunidade científica e ao conhecimento de fundo a ela acoplado. O que fornece a baliza crítica aos testes empreendidos é o conhecimento de base aceito por uma comunidade científica59, e o rigor dos testes empreendidos,

59 Note-se que os perfis do conhecimento de base e da comunidade em larga medida se entrelaçam e se definem mutuamente: as fronteiras de comunidades distintas são estabelecidas por distintos conhecimentos de base e o conhecimento de base é o

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elemento central da dinâmica de seleção e corroboração teóricas, depende fundamentalmente da expectativa que o conhecimento de base impõe àquela comunidade. Como afirma Popper:

Qualquer teste empírico sério consiste sempre em tentativa de encontrar refutação, um contra-exemplo. Para procurar contra-exemplos precisamos usar nosso conhecimento de base: sempre procuramos refutar em primeiro lugar as previsões mais arriscadas, as “consequências [...] mais improváveis” [...]; o que significa que sempre procuramos os contra-exemplos mais prováveis nos lugares mais prováveis – mais prováveis no sentido de que esperamos encontrá-los à luz do nosso conhecimento contextual (POPPER, 1989, p. 240, grifos no original).

Em síntese, uma corroboração empírica legítima

proviria da eficiência da teoria em responder a testes rigorosos, e testes rigorosos seriam aqueles que, à luz do conhecimento de base, provavelmente levem à refutação da teoria.

Mas comunidade e conhecimento de base, seus parâmetros, valores e fronteiras, variarão diacronicamente. E sendo esse o caso, o coração do método falsificacionista será constituído por entidades essencialmente históricas. De fato, qualquer corroboração de uma teoria científica dependerá do contexto histórico no qual a teoria foi proposta, tanto quanto será uma tarefa historiográfica determinar quais as entidades componentes do conhecimento de base em cada situação concreta de teste60.

Nesses termos, o trajeto hermenêutico que levou ao famoso momento gestáltico de Kuhn, quando reconhece a

conhecimento que conjunturalmente não é posto em dúvida pela comunidade (Cf., e.g., POPPER, 1979, p. 55 e 75). 60 A esse respeito, consulte-se a extensiva análise apresentada por Musgrave (1974, p. 7).

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presença dos demais pressupostos teóricos assumidos pela física aristotélica e deixa de considerar Aristóteles um físico medíocre (cf. KUHN, 2000, p. 16ss), é algo deslocado, mais previsível e corriqueiro, para alguém que trilhe os passos popperianos. Popper não tem qualquer dificuldade em trazer para o campo do racional episódios como o do obstinado apego de Galileu à sua teoria das marés, ou ainda sua igualmente firme resistência à teoria kepleriana das órbitas planetárias – ambas posições inconcebíveis à luz do conhecimento atual. Um estudo historiográfico competente, que pusesse à mostra a base e a estrutura teóricas sob as quais Galileu (ou Aristóteles...) trabalhava, segundo Popper, demonstraria que nessa situação-problema seu comportamento foi racional e metodologicamente correto (cf. POPPER, 1979, p. 170ss). E é justamente nessa circunstância que explicitamente enaltece o relevo hermenêutico da historiografia da ciência:

há duas coisas a dizer sobre a história da ciência. Uma é que só quem compreende a ciência (isto é, os problemas científicos) pode compreender sua história; e a outra é que só quem tem alguma compreensão real de sua história (a história de suas situações-problema) pode compreender a ciência (POPPER, 1979, p. 185).

O Popper “algoz da História” é agora dramaticamente

substituído pelo “historicista”. Mas a esquizofrenia é apenas aparente: navega-se aqui no nível do método científico, da identificação da racionalidade dos procedimentos científicos por parte da averiguação historiográfica, e tendo a metodologia popperiana reservado o papel que reserva para a práxis, não é estranho que seja a dinâmica histórica, ao final das contas, a definidora do destino das escolhas científicas. Dada a centralidade dos enunciados básicos aceitos para todo o desenvolvimento da ciência, não deixa de ser um tanto

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intrigante que Popper seja tão lacônico a respeito do processo que, afinal, rege a comunidade científica em sua escolha daqueles enunciados. O máximo que fornece é a metáfora do júri – tão elucidativa quanto insuficiente. Mas talvez não seja, afinal, tão estranho que se restrinja a isso quando se reconhece que nesse contexto modelos são sistematicamente superados pela multifacetada trajetória dialética e dialógica vivenciada pela comunidade científica, um caleidoscópio tão multiforme quanto multiforme é a história (qualquer história) humana.

A pergunta original da qual partimos está assim parcialmente respondida. A prática e a História não são empregadas apenas na ilustração (“anedota e cronologia”) da metodologia popperiana. Ambas têm lugar e função mais destacados e orgânicos em meio à dinâmica do falsificacionismo. Considerando-se o quadro resultante, aquele grupo de questões bem poderia ser substituído por outro referente à integração entre a meta-metodologia e a metodologia popperianas: é harmônica a convivência entre uma meta-metodologia a-historicista e uma metodologia que preconiza ser a base empírica de teste - e, em última instância, da definição da decidibilidade crítica - dependente da história e da prática? A complexa dinâmica de uma metodologia como essa deverá se conformar com ideais regulativos, em particular ideais aléticos, que presumivelmente serão preservados pelo método empregado. No caso popperiano, a meta-metodologia tem o objetivo explícito de preservar processos metodológicos racionais de crítica que idealmente possibilitem a eliminação sistemática de erros, de enunciados falsos, e que permitam a maximização, senão da verdade, da verossimilhança. Mas como a metodologia historicista de Popper responde aos requisitos a-historicistas de sua meta-metodologia?

Essa nova bateria de questões (bem mais abrangente que a anterior) ironicamente enseja a conclusão de que talvez o repto historicista mais contundente a ser transposto pelo

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falsificacionismo advenha não de seus clássicos adversários, mas do próprio Popper, que precisa exibir a proficiência de seu método de acordo com os seus próprios critérios meta-metodológicos de aceitação. REFERÊNCIAS AGASSI, Joseph. Towards an Historiography of Science. Middletown: Wesleyan University Press, 1967. KUHN, Thomas Samuel. The Structure of Scientific Revolutions (2nd edition). Chicago: University of Chicago Press, 1970a. _______. “Reflections on my critics”. In: LAKATOS, Imre e MUSGRAVE, Alan (orgs.). Criticism and the Growth of Knowledge, p. 231-278. Cambridge: Cambridge University Press, 1970b. _______. The Road since ‘Structure’. Chicago: University of Chicago Press, 2000. MUSGRAVE, Alan. “Logical versus Historical Theories of Confirmation”. In: The British Journal for the Philosophy of Science, vol. 25, p. 1-23, 1974. O’HEAR, Anthony. Karl Popper. London, Boston, Henley: Routledge e Kegan Paul, 1980. POPPER, Karl Raimund. “Autobiography of Karl Popper”. In: SCHILPP, Paul Arthur (org.). The Philosophy of Karl Popper (vol.I), p. 1-181. La Salle: Open Court, 1974a. _______. “Replies to my Critics”. In: SCHILPP, Paul Arthur (org.). The Philosophy of Karl Popper (vol.II), p. 959-1197. La Salle: Open Court, 1974b. _______. Objective Knowledge: An Evolutionary Approach. Oxford: Oxford University Press, 1979. _______. “The Rationality of Scientific Revolutions”. In: HACKING, Ian (org.). Scientific Revolutions, p. 80-106. Oxford: Oxford University Press, 1981.

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_______. Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge. London, New York: Routledge, 1989. _______. The Logic of Scientific Discovery. London, New York: Routledge, 1992. _______. Realism and the Aim of Science. London, New York: Routledge, 2000. SUPPE, Frederick. The Semantic Conception of Theories and Scientific Realism. Urbana, Chicago: University of Illinois Press, 1989.

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CAPÍTULO 8 AASS RREELLAAÇÇÕÕEESS EENNTTRREE PPOOPPPPEERR EE KKUUHHNN

Elizabeth de Assis Dias

No presente estudo, pretendemos tratar das relações

entre dois eminentes filósofos da ciência do século passado, Karl Popper e Thomas Kuhn. Esses filósofos tiveram a oportunidade de confrontar seus pontos de vista acerca da ciência e de seu progresso em um Seminário Internacional sobre Filosofia da Ciência, realizado em Londres, em 1965. Outros importantes filósofos da ciência, seguidores de Popper, também contribuíram para o debate que teve como cerne das controvérsias a concepção de ciência de Thomas Kuhn. Dentre esses filósofos, destacam-se Imre Lakatos, Paul Feyerabend, Stephen Toulmin e John Watkins. O debate foi reproduzido em um livro intitulado A Crítica e o desenvolvimento do conhecimento, organizado por Lakatos e Musgrave. Nosso objetivo não é reconstruir o debate Popper-Kuhn em todas as suas nuances, mas sim delinear pontos em comum entre eles de modo a mostrar a proximidade de suas ideias, como também destacar aspectos problemáticos sobre os quais eles divergem. No nosso entender, Kuhn é um popperiano heterodoxo, que tem a intenção de superar seu mestre, ao pretender ter uma compreensão mais precisa da atividade científica e de seu progresso, levando em consideração, em sua análise do desenvolvimento científico, não apenas os aspectos

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lógico-metodológicos, mas também, os aspectos históricos e os psicossociais.

No seu artigo “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”, Kuhn se diz um admirador da obra de Popper e considera difícil criticá-la (KUHN, 1979, p. 5). Declara que, antes mesmo de ter publicado sua obra A Estrutura das Revoluções científicas, já percebera “características especiais e frequentemente enigmáticas” da relação entre suas ideias e as de Popper. E reconhece certa similaridade entre seus pontos de vista: “nossas opiniões sobre ciência são quase idênticas” (KUHN, 1979, p. 6).

Essa similaridade de pontos de vista não é uma mera coincidência, pois Kuhn assistiu, por diversas vezes, conferências proferidas por Popper, em Harvard, em 1950, nas quais este expôs suas principais ideias sobre a ciência como “Conferencista William James”. Kuhn foi, inclusive, um dos membros mais ativos e críticos dos seminários dos quais participou. Haveria, então, uma dívida intelectual de Kuhn para com Popper? Mas qual seria esse legado intelectual que Popper teria lhe repassado? Ao se reportar a esta dívida, Kuhn admite que ela existe, mas que, devido às circunstâncias nas quais manteve contato com Popper, considera não ser possível especificá-la. No nosso entender, é por reconhecer essa dívida que Kuhn procura, em suas obras, sobrepor os seus pontos de vista, acerca da ciência, aos de Popper, na tentativa de mostrar, não só pontos de concordâncias entre eles, mas também aspectos sobre os quais eles divergem e que sua forma de abordá-los teria lhe possibilitado avanços significativos com relação a Popper.

Mas, fazer uma comparação entre a concepção de ciência de Kuhn e a de Popper, de modo a distinguir em que pontos o filósofo norte-americano teria suplantado a tradição epistemológica, em sua “nova filosofia da ciência”, não é tarefa

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fácil. Stegmuller chama atenção para vários obstáculos que esta tarefa envolve:

As tentativas feitas por Kuhn, objetivando separar sua concepção da ciência natural de concepções tradicionais, esbarram, naturalmente, em vários obstáculos; como ele próprio reconhece, há exageros em muitos pontos particulares; ênfase excessiva dada a certos aspectos, em detrimento de outros; e alguns senões semelhantes aos que são comuns nas concepções rivais que ele procura suplantar (STEGMULLER, 1977, p. 370).

Consciente destas dificuldades, em nossa análise

daremos ênfase não só aos pontos de concordância e de divergência, mas também aos aspectos que a concepção de ambos foi mal-entendida, possibilitando leituras equivocadas de suas posições.

Kuhn inicia seu artigo “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?” relacionando os pontos de concordância com Popper. Um primeiro aspecto diz respeito ao interesse maior pelo processo dinâmico de aquisição do conhecimento científico do que pela estrutura lógica das teorias científicas. Em virtude desse interesse comum, ambos consideram como dados legítimos, para compreender esse processo, os fatos da vida científica real e a história da ciência. Esse compartilhamento de dados os conduz a conclusões idênticas em relação ao progresso científico: ambos se contrapõem à ideia de que a ciência progride por acumulação; ambos defendem uma concepção de progresso científico como revolucionário e enfatizam o fracasso da teoria mais antiga na evolução do conhecimento, ao ser confrontada com desafios provenientes da lógica, da experimentação ou da observação (KUHN, 1979, p. 6). No que diz respeito a este último aspecto, referente aos testes das teorias, há divergências reais entre os dois filósofos, e Kuhn parece querer superar as limitações da

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concepção de seu mestre, com veremos, quando tratarmos das divergências entre ambos.

Um segundo ponto de confluência de ideias entre os dois filósofos diz respeito à oposição às teses do positivismo. Ambos sustentam as inter-relações entre as observações e as teorias científicas e se mostram contrários à ideia de uma linguagem observacional neutra; ambos se declaram não-indutivistas e negam a existência de regras para se inferir teorias corretas tendo por base os fatos, não aceitando tampouco que teorias corretas ou incorretas sejam obtidas a partir do procedimento indutivo; finalmente, ambos sustentam que os cientistas inventam suposições imaginativas para explicar os fatos, ou melhor, recorrem ao método hipotético-dedutivo para a descoberta de suas teorias (KUHN, 1979, p. 6).

Esses focos de preocupações comuns já nos permitem ver Kuhn como um herdeiro do legado popperiano. Mas, a atitude do filósofo norte-americano não é de apenas concordar com Popper, pois ele pretende suplantá-lo. Em que aspectos Kuhn teria dado um passo à frente de seu mestre? Qual seria a “região periférica” das divergências entre eles a que Kuhn se refere? É importante esclarecer que muitos aspectos referentes às divergências entre os dois filósofos, que vieram à tona no debate Popper-Kuhn, são frutos de mal-entendidos do pensamento de ambos, que uma vez esclarecidos acabam por atenuar ou até mesmo dissipar tais divergências.

Kuhn, reportando-se aos mal-entendidos, considera que estes levaram a uma leitura distorcida de suas ideias e ressalta a necessidade de que estes sejam esclarecidos até mesmo para tornar visíveis as divergências entre ele e seus críticos.

Estes mal-entendidos são todos danosos, não importando qual seja minha responsabilidade por possibilitá-los. Posto que ainda deixe uma profunda divisão entre mim e os meus

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críticos, a eliminação dos mal-entendidos é indispensável até para descobrir nossas divergências (KUHN, 1979, p. 321-322).

A acusação de ter um entendimento equivocado das

ideias do opositor é mútua. Popper, ao analisar uma crítica feita por Kuhn, no que diz respeito ao caráter da prática científica, considera que este não o entendeu ou o interpretou mal por ter se aferrado a um trecho de sua obra que ele supunha tratar-se de uma discordância entre ambos, não tendo, com isto, percebido a concordância:

Kuhn cita com desaprovação um trecho do início do primeiro capítulo do meu livro, The Logic of Scientific Discovery [...]. Ao passo que o breve trecho citado por Kuhn poderá soar, fora do contexto, como se eu não tivesse a par do fato, destacado por ele, de que os cientistas desenvolvem necessariamente suas ideias dentro de uma estrutura teórica definida, seu imediato predecessor de 1934 soa quase como uma antecipação desse ponto central da opinião de Kuhn (POPPER, 1979, p. 63).

Kuhn acusa Popper de ter ignorado um dos traços

característicos da atividade científica que a distingue das demais, a saber: a existência de uma estrutura organizada de suposições. Mas, Popper não nega a existência dessa estrutura. Ele defende não só sua existência como, também, que esta constitui um dos traços definidores da atividade científica, antes mesmo do reconhecimento de Kuhn. No prefácio à primeira edição da Lógica da pesquisa científica, de 1934, ao distinguir o cientista do filósofo, Popper procura mostrar que os dois estão em posições diferentes. O cientista conta sempre com a existência de uma estrutura organizada de doutrinas já existentes e com situações de problemas que são reconhecidas como problemas nessa estrutura. Ao passo que o filósofo não dispõe de uma “estrutura organizada”, mas apenas de “um amontoado de ruínas, muito embora haja aí tesouros” (POPPER, 1975 p. 23).

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Uma vez esclarecidos esses mal-entendidos, fica claro que ambos comungam a ideia de que há uma estrutura organizada no âmbito da ciência que fornece aos cientistas os parâmetros que irão orientar suas pesquisas. O próprio Kuhn, em artigo posterior (“Resposta a meus críticos”), reconhece que um dos pontos de concordância entre eles diz respeito ao fato acentuado por Popper de que “os cientistas desenvolvem necessariamente suas ideias dentro de um referencial comum”, de uma estrutura (KUHN, 1979, p. 299).

Kuhn, por sua vez, reportando-se à forma equivocada da interpretação de suas ideias, observa que do debate travado no Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência emergiu um outro Kuhn, moldado a partir das leituras de sua obra feitas por Popper, Lakatos, Toulmin, Watkins e Feyerabend. Este outro Kuhn defende pontos de vistas que subvertem o pensamento original do filósofo norte-americano.

Kuhn1 é o autor deste ensaio e do primeiro artigo deste volume. Também publicou em 1962 um livro chamado “A Estrutura das revoluções científicas” [...]. Kuhn2 é o autor de outro livro com o mesmo título. [...]. O terem os dois livros o mesmo título não será de todo acidental, pois os pontos de vista que apresentam coincidem com frequência e, de qualquer maneira, são expressos com as mesmas palavras. Chego, porém, à conclusão de que suas preocupações centrais são em geral muito diferentes. Segundo afirmam meus críticos [...] Kuhn2, parece, em algumas ocasiões, defender pontos de vista que subvertem aspectos essenciais da posição delineada pelo seu homônimo (KUHN, 1979, p. 285-286).

Os pontos referentes aos mal-entendidos, com relação à

teoria da ciência de Kuhn, dizem respeito a três categorias: método, ciência normal e natureza da mudança de uma tradição científica normal para outra, bem como as técnicas que se utiliza para se resolver os conflitos resultantes. Cada uma dessas categorias ilustra, de certa forma, as dificuldades

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do debate travado entre eles e os equívocos decorrentes dessas questões.

O primeiro aspecto diz respeito às divergências quanto aos procedimentos metodológicos: lógica versus história e psicologia social. Kuhn, no que diz respeito a este aspecto, não considera que haja propriamente uma diferença entre eles. Afirma o filósofo: “Embora possamos diferir em nossos padrões e diferimos seguramente no tocante a algumas questões substanciais, dificilmente poderemos ser distinguidos por nossos métodos” (KUHN, 1979, p. 287-288). E acrescenta: “No tocante aos métodos, os que emprego não diferem significativamente do método dos meus críticos popperianos” (KUHN, 1979, p. 298).

Kuhn, tal como os outros filósofos da ciência de sua época, valoriza os aspectos lógico-empíricos da atividade científica, a reconstrução racional das teorias e a descoberta de seus fundamentos. Seu objetivo é, também, ter uma compreensão da ciência, das razões de sua eficácia, bem como de seu status teórico. Mas, diferentemente dos demais filósofos da ciência, sua análise da atividade científica vai da história da ciência para a epistemologia. O seu olhar de historiador da ciência lhe possibilitou ver que os “cânones metodológicos” não são suficientes para definir a prática científica, pois muitos cientistas, apesar de os violarem, conseguem ter êxito em suas pesquisas. Sua pretensão não é a de descartar os aspectos lógico-empíricos, defendidos pela tradição epistemológica, como característicos da racionalidade científica, uma vez que, de certa forma, determinam a aceitação ou rejeição de um sistema teórico, mas, sim, ir além, complementando essa abordagem com uma análise dos aspectos históricos e psicossociais da atividade científica.

Reportando-se, mais especificamente, às críticas de Popper, que afirma ser “surpreendente e decepcionante” o fato de ele ter recorrido à sociologia, à psicologia e à história

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com o propósito de esclarecer as metas da ciência e de seu progresso, uma vez que essas ciências são “amiúde espúrias”, não podendo assim, encontrar nelas uma “descrição pura, objetiva”, Kuhn confessa não entendê-las, pois neste aspecto parece não existir diferenças entre eles, já que o trabalho de ambos não tem por base essas ciências. Kuhn levanta a possibilidade de Popper estar duvidando da importância, para a Filosofia da Ciência, de observações coligidas por historiadores e por sociólogos. Nesse sentido, seria difícil compreender o trabalho de Popper, pois ele tem uma posição muito próxima à de Kuhn no que diz respeito à valorização da história da ciência, recorrendo frequentemente a esta, em suas obras, para ilustrar seus pontos de vista. Atribui a Popper ter treinado uma legião de seguidores que valorizam a historiografia da ciência, entre os quais ele próprio se inclui.

Um interesse sistemático pelos problemas históricos e uma disposição para empenhar-se em pesquisas históricas originais distinguem os homens que ele treinou dos membros de qualquer outra escola atual de filosofia da ciência. Nesses pontos me confesso popperiano impenitente (KUHN, 1979, p. 291).

Kuhn se revela aqui um popperiano convicto não só no

que diz respeito à valorização dos aspectos lógico-metodológicos característicos da racionalidade científica, mas também quanto à importância dada à história da ciência.

Muito embora existam desacordos explícitos entre os dois filósofos quanto à existência de pesquisa de ciência normal, parecem existir certos acordos implícitos entre eles. Popper nega que a evolução da ciência obedeça à tipologia estabelecida por Kuhn: períodos de ciência normal, dominados por um paradigma, seguido de períodos de ciência revolucionária. Mas, compartilha com ele a ideia de que as revoluções científicas exigem a definição de novos referenciais

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ou de estruturas organizadas e que elas supõem a substituição de uma estrutura por outra. Ora, sendo a ciência normal a pesquisa que tem por base uma estrutura organizada, ela só pode ser considerada como “o reverso de uma moeda cujo anverso são as revoluções” (KUHN, 1979, p. 299). Então, se há revoluções é porque existe a ciência normal. Nesse sentido, estaria implícito nos trabalhos de Popper que a ciência normal é corolário da existência de revoluções. E, por outro lado, as revoluções, através da crítica, tal como Popper as defende, exigiriam a ciência normal tanto quanto as revoluções, através da crise, concebidas por Kuhn.

Outra categoria de mal-entendidos diz respeito à natureza da mudança de uma tradição normal para outra e o recurso à persuasão, nos debates sobre a escolha de teorias, que levou os críticos de Kuhn a acusarem-no de “irracionalismo e relativismo,” por entenderem que ele teria proposto que nem a lógica, nem a observação, nem as boas razões estão implicadas na escolha de teorias, sendo a verdade completamente relativa. Popper, a este respeito, diz que “Kuhn parece propor a tese de que a lógica tem pouco interesse e nenhum poder explanatório para o historiador da ciência” (POPPER, 1979, p. 68).

Mas, Kuhn não descartou a lógica e a observação, nem tampouco sugeriu que não haja boas razões para a escolha de uma teoria em detrimento de outra. O que ele sustenta é que as boas razões, assim como a exatidão, a simplicidade, a produtividade são valores que norteiam as escolhas e não propriamente regras de escolha. Podendo ocorrer que cientistas que compartilham boas razões façam escolhas diferentes nas mesmas situações. Dois fatores determinariam essas escolhas diferentes: o primeiro diz respeito ao fato de que, em muitas situações concretas, valores diferentes conduzem a conclusões e escolhas diferentes; o segundo diz respeito ao compartilhamento de valores pelos cientistas, pois

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muito embora eles tenham valores em comum ao desenvolver sua prática, não os aplicam da mesma maneira. Valores como simplicidade, alcance, produtividade, precisão podem ser julgados diferentemente por pessoas distintas, e estas podem diferir em suas conclusões, sem violarem regras aceitas.

Por outro lado, os cientistas muito embora partilhem valores em seus campos de estudos, não podem escolher qualquer teoria que lhes agrade justamente porque concordam em suas escolhas e as põem em prática. A grande maioria dos enigmas (puzzle solving)61 da ciência normal é ditada diretamente pela natureza e todos envolvem indiretamente esta. Portanto, não é possível impor arbitrariamente uma teoria à natureza.

O relativismo de Kuhn, na interpretação de seus opositores, estaria relacionado à tese de que a prática científica pressupõe uma estrutura organizada, um referencial, que é compartilhado por todo o grupo de praticantes de uma ciência. Este referencial comum que norteia esta prática implicaria na existência de uma linguagem e de um conjunto de suposições comuns. De acordo com este ponto de vista, a comunicação e o entendimento, bem como a discussão crítica, seriam impossíveis entre os praticantes de uma determinada especialidade científica que não partilhasse os mesmos referenciais. A mudança de referencial, ou de teoria, implicaria na conversão do grupo de praticantes de uma ciência a uma nova teoria ou a um novo referencial.

Opondo-se a essa forma de conceber o progresso científico, por não ver nela regras lógicas que nos permitam decidir sobre a superioridade de uma teoria em relação à sua antecessora, Popper acusa Kuhn de estar comprometido com o mito do referencial comum, que pode ser assim enunciado:

61 Para facilitar a leitura deste capítulo, evitamos as repetições da expressão inglesa puzzle solving que se vincula, aqui, ao conceito de enigmas. O uso do itálico ajudará o leitor a se recordar deste sentido que o termo assume. [Nota do organizador].

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A existência de uma discussão racional e produtiva é impossível, a menos que os participantes partilhem um contexto comum de pressupostos básicos, pelo menos tenham acordado em semelhante contexto em vista da discussão (POPPER, 1999, p. 57).

Muito embora Popper concorde que os cientistas

desenvolvem suas pesquisas no âmbito de uma estrutura organizada, de um referencial, ele não aceita a impossibilidade da discussão crítica e uma comparação entre referenciais divergentes, pois em sua perspectiva estes não são intraduzíveis, conforme advoga Kuhn.

Em sua resposta à acusação de relativismo, Kuhn admite dois sentidos em que este termo pode ser atribuído à sua posição. O primeiro diz respeito ao fato de ele negar a tese de que a ciência progride de acordo com critérios objetivos. Para responder a essa acusação, Kuhn recorre à metáfora da árvore evolutiva. De acordo com essa imagem, o desenvolvimento das diferentes especialidades científicas é um processo evolucionário que tem uma origem comum na filosofia natural primitiva. As teorias científicas, ao longo desse desenvolvimento, relacionam-se entre si por descendência. Se analisarmos duas teorias não muito próximas da origem, poderemos determinar qual é a mais velha e a sua descendente, levando em conta critérios tais como: “precisão de predições, graus de especializações e número de soluções de problemas concretos” (KUHN, 1979, p. 326). O desenvolvimento científico seria assim, “unidirecional e irreversível,” e, no decorrer desse processo evolutivo, seria possível determinar o nível de desenvolvimento das teorias. A mais desenvolvida seria aquela que atingisse melhores níveis de precisão, especialização e de solução de problemas. Nesse sentido, Kuhn parece concordar com Popper a respeito de um progresso genuíno no âmbito da ciência e não simplesmente

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uma mera substituição de um paradigma por outro. De acordo com seus critérios, o novo paradigma é objetivamente superior a seu predecessor. Essa posição, defendida por Kuhn, o distanciaria do relativismo histórico de que é acusado de defender.

Mas há um segundo sentido, referente ao termo relativismo, que se atribui a Kuhn, relacionado aos contextos em que ele se mostra cauteloso com relação à aplicação do conceito de verdade. O emprego deste conceito, tal como é pensado por Kuhn, em contextos intra-teóricos, não parece ser problemático, pois no que diz respeito às consequências de uma teoria, compartilhada por membros de uma comunidade científica, existe concordância entre eles sobre as teorias que foram capazes de suportar o teste da experiência e que, portanto, são verdadeiras, e as que não foram bem sucedidas nos testes, e que por isso são falsas.

Mas, o conceito de verdade é empregado com certa cautela quando se trata de comparar teorias que pretendem explicar a mesma extensão de fenômenos naturais. Diz Kuhn:

Quando se trata de teorias históricas [...] posso dizer com Sir Karl que cada uma delas foi dada por verdade em sua época e depois posta de lado por falsa. De mais a mais, posso dizer que a teoria mais recente é a melhor das duas como instrumento para a prática da ciência normal [...]. Podendo chegar a esse ponto, não me sinto relativista (KUHN, 1979, p. 326-327).

Assim, quando analisa as teorias sob a perspectiva de

seu progresso, Kuhn compartilha com Popper a ideia de que, em um determinado momento da história de uma ciência, mesmo quando uma teoria é reconhecida como verdadeira pode, posteriormente, com o advento de uma melhor, ser colocada de lado como falsa. Kuhn não afirma, assim, a relatividade da verdade aos períodos históricos, mas sim,

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condiciona a verdade ou a falsidade das teorias à evolução do conhecimento. Enfim, ao progresso científico.

Muito embora Kuhn concorde com Popper neste aspecto, rejeita a noção de verdade como correspondência, bem como a ideia de verossimilhança defendida por Popper.

Não obstante, há outro passo, ou espécie de passo, que muitos filósofos da ciência desejam dar e que eu recuso. Eles desejam comparar teorias como representações da natureza, como enunciados sobre “o que há realmente lá fora”. Admitindo-se que nenhuma teoria de um par histórico é verdadeira, eles procuram, apesar disso, um sentido em que a mais recente está mais perto da verdade. Acredito que nada disso existe (KUHN, 1979, p. 327).

Kuhn não compartilha com Popper o seu realismo

científico, que considera a ciência como representação de um mundo real, de uma realidade objetiva. Não vê os casos de mudança de teoria, no âmbito da história da ciência, como uma tentativa de aproximação da verdade.

Esclarecidos esses mal-entendidos entre os dois filósofos, caberia indagar em que aspectos suas concepções se distanciam. Em que aspectos Kuhn teria tentado suplantar Popper? Onde estaria o foco de suas divergências?

Muito embora os dois filósofos defendam que a ciência se desenvolve por um processo não-cumulativo, no qual uma determinada estrutura teórica é substituída por outra, divergem entre si sobre os mecanismos e a extensão destas mudanças, na medida em que elas envolvem maneiras distintas de se conceber a prática científica. Para Popper, esta prática se desenvolve dentro de uma tradição crítica, que procura submeter a testes as teorias e falseá-las. Para Kuhn, essa prática realiza-se em dois momentos: no âmbito da ciência normal, que tem como tradição a solução de enigmas; no âmbito da ciência extraordinária, que desenvolve pesquisas

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na tentativa de solucionar anomalias não resolvidas pela ciência normal.

Kuhn resumiu a dois aspectos os pontos sobre os quais a sua discordância com o filósofo austríaco é mais explícita: “a ênfase que dou à importância de um compromisso profundo com a tradição e meu descontentamento com as implicações do termo falseamento” (KUHN, 1979, p. 7). Para analisar as divergências entre os dois filósofos, tomaremos esses dois aspectos como pontos centrais.

Quanto ao primeiro, muito embora ambos valorizem a tradição e considerem que esta desempenha um papel essencial no desenvolvimento científico, eles concebem de forma diversa a natureza e o papel da tradição na prática científica. Para Popper, esta tradição tem o papel de crítica, de debate das teorias produzidas de modo a garantir a objetividade do conhecimento. O cientista deve ser ao mesmo tempo um crítico e um proliferador de teorias alternativas.

Os cientistas que exercitam a crítica estão empenhados em refutar a teoria ou, pelo menos, pretendem mostrar que ela não foi capaz de resolver o problema que pretendia resolver. Na discussão crítica, avaliam-se os méritos e os pontos fracos de duas ou mais teorias comparativamente. Os méritos de uma teoria dizem respeito ao seu poder explicativo, à sua capacidade de resolver problemas e de explicar os fatos, à sua consistência com outras teorias e à sua capacidade de lançar luz sobre velhos problemas e de sugerir problemas novos. O principal ponto fraco está relacionado à sua inconsistência, inclusive com relação a resultados de experiências que outras teorias concorrentes conseguem explicar.

A origem dessa tradição de discussão crítica de teorias remonta aos primeiros filósofos gregos, mais precisamente à Escola Jônica. Tales teria fundado essa tradição baseado em um novo relacionamento entre mestre e aluno, por não só tolerar a crítica de seus discípulos, como também por

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estimulá-la. Esta tradição de discussão crítica constitui o único meio praticável de expansão do conhecimento. Assim, a mudança de teorias e o progresso científico ocorrem através do processo de crítica das teorias produzidas e a consequente substituição das que fracassam em suas pretensões.

Na perspectiva de Kuhn, a descrição de Popper da tradição crítica, onde “razões, contra-razões e debates sobre questões fundamentais” (KUHN, 1979, p. 12) são travados, é muito bem feita, mas em nada se assemelha com a prática da ciência. Caracterizaria mais propriamente a Filosofia e boa parte das Ciências Sociais, nas quais não há enigmas a serem solucionados, pois, “é precisamente o abandono do discurso crítico que assinala a transição para uma ciência” (KUHN, 1979, p. 11). Trata-se do momento em que um determinado campo de estudo atinge sua maturidade ao instaurar-se a pesquisa de ciência normal e com ela uma tradição de solução de enigmas. Para que esse campo de estudo conquiste este estágio de desenvolvimento, faz-se necessário que adquira uma estrutura organizada ou um paradigma (teorias, técnicas, valores, etc.) para nortear a sua prática. Essas teorias e técnicas que compõem o paradigma devem satisfazer às seguintes condições:

Em primeiro lugar, o critério de demarcação de Sirl Karl, sem o qual nenhum campo é potencialmente uma ciência: para certas classes de fenômenos naturais as predições concretas terão de emergir da prática do campo. Em segundo lugar, para algumas subclasses interessantes de fenômenos, o que quer que passe por sucesso preditivo deve ser sistematicamente alcançado [...]. Em terceiro lugar, as técnicas preditivas precisam ter raízes numa teoria que, embora metafísica, simultaneamente as justifique, explique seu sucesso limitado e sugira meios para melhorá-los não só na precisão mas também no alcance. Finalmente, o aprimoramento da técnica preditiva precisa ser uma tarefa desafiadora, que exige em certas ocasiões a mais alta dose de talento e devoção (KUHN, 1979, p. 303).

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O cientista, de posse de uma boa teoria, que satisfaz

todos esses requisitos, desenvolve pesquisas de ciência normal com o objetivo de ampliar a esfera de ação da teoria, de precisar a teoria e a experiência existentes, bem como de melhorar o ajuste entre elas. Sua pretensão é também a de eliminar conflitos entre as diferentes teorias empregadas em sua prática e entre as formas de se usar uma única teoria em diferentes aplicações. Nesse estágio, não há lugar para a crítica e para a proliferação de teorias. Há uma espécie de fé do cientista na teoria que norteia suas pesquisas. O discurso crítico só se apresenta em momentos de crise, quando o paradigma se mostra incapaz de solucionar determinados enigmas.

O segundo ponto de discordância entre os dois filósofos diz respeito aos testes das teorias. Kuhn destaca três aspectos concernentes aos testes sobre os quais ele diverge da posição de Popper: o que está sendo testado, o momento em que o teste deverá ocorrer e a sua natureza.

Na análise popperiana da prática científica, o cientista, ao se defrontar com problemas, formula enunciados ou sistemas de enunciados para solucioná-los. No caso das ciências empíricas, propõe hipóteses ou sistemas de teorias e testa-os confrontando-os com a experiência. Este teste não visa confirmar a teoria, mas antes se constitui em uma tentativa séria de falseá-la ou refutá-la, não importando qual o elemento que esteja sendo testado. Todo conhecimento, embora testado, não deixa de ser falível, e mesmo conjectural.

No que diz respeito a esse aspecto, Kuhn critica Popper por não ter especificado o elemento teórico que deverá ser testado: se a teoria ou os enunciados. Os testes no âmbito da ciência normal não são dirigidos à teoria corrente, pois esta funciona como uma “espécie de regra do jogo” (KUHN, 1979, p. 9), que norteia a prática científica, já que o objetivo do

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cientista é resolver os enigmas de ciência normal. A teoria se mostra fundamental não só para definir os enigmas, mas também para assegurar a possibilidade de solucioná-lo, se o cientista for suficientemente talentoso.

O que é testado no âmbito da ciência normal são as conjecturas pessoais dos cientistas no sentido de equacionar o enigma (puzzle solving). Se as suas conjecturas passarem no teste, então, é sinal de que ele fez uma descoberta ou resolveu o enigma (puzzle solving) para o qual buscava solução. Caso seja mal sucedido, terá de deixar de lado o enigma (puzzle solving), ou então, buscar uma nova hipótese. Kuhn admite assim que, no âmbito da ciência normal, há dois tipos de enunciados ou teorias: um que diz respeito à estrutura organizada que norteia a prática da ciência normal; e outro referente às hipóteses do cientista, em sua tentativa de solucionar o enigma (puzzle solving). O teste só se aplica à capacidade do cientista de conjecturar soluções para os problemas de ciência normal e não propriamente à teoria.

É evidente que quem se propõe a um tal empreendimento precisa testar com frequência a solução conjectural do enigma que seu engenho lhe sugere. Mas só é testada a sua conjectura pessoal. Se ela não passar pelo teste, só se impugna a capacidade do cientista e não o corpo da ciência corrente. Em suma, conquanto ocorram com frequência na ciência normal, esses testes são de um gênero peculiar, pois na análise final, é o cientista e não a teoria vigente que se põe à prova (KUHN, 1979, p. 10).

O outro aspecto criticado por Kuhn diz respeito ao

momento em que ocorrem os testes das teorias, uma vez que, em sua concepção, a prática científica se desenvolve em dois momentos distintos: o da pesquisa de ciência normal e o da pesquisa revolucionária.

Os testes, tal como são concebidos por Popper, se apresentam no decorrer do desenvolvimento científico, ao

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visar à exploração das limitações da teoria e à revelação dos seus pontos fracos, ao submetê-la a provas severas. Para que uma teoria nova seja considerada um avanço com relação à sua antecessora, ela deve ser confrontada com esta e conduzir pelo menos a algum resultado conflituoso. Do ponto de vista lógico, significa dizer que a nova teoria deve contradizer sua antecessora, isto é, deve derrubá-la. Nesse sentido, a substituição de uma teria por outra é sempre um processo revolucionário.

Esse tipo de teste, considerado como clássico por Kuhn, só ocorre raramente, nos momentos da prática científica revolucionária, onde os compromissos básicos de um determinado campo de estudo estão sendo testados. Mas, para que tal ocorra, faz-se necessário que a pesquisa normal revele os aspectos que devem ser testados e a maneira pela qual eles serão testados. Assim, Popper teria caracterizado toda a prática científica levando em conta um determinado tipo de situação, os testes empíricos, que só se apresentam em momentos revolucionários ocasionais (KUHN, 1979, p. 11).

Olhando a questão dos testes sob a perspectiva da história da ciência, Kuhn observa que muitos exemplos, citados por Popper, ilustram o que de fato ocorre. Mas, tais situações são raras e só ocorrem de tempos em tempos, sendo possível encontrar teorias, no âmbito da história da ciência, que foram substituídas por outras sem antes terem sido testadas. Este é, por exemplo, o caso da teoria de Ptolomeu, citado por Popper. Kuhn conclui que, em algumas ocasiões, os testes não são essenciais às revoluções. No âmbito da ciência normal, esta situação é completamente diferente, pois uma teoria só é substituída por outra se ela deixar de sustentar uma tradição de solução de enigmas. E é esta tradição que, tendo consciência do funcionamento defeituoso da teoria, estabelece as condições para sua substituição.

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Esses pontos de divergências de Kuhn em relação a Popper, acerca dos testes das teorias, têm como pano de fundo a existência da ciência normal, vista como o momento de pesquisa estável, que é ignorada ou considerada de pouca importância por Popper. No âmbito desta não ocorre o tipo de teste proposto por Popper, uma vez que os compromissos teóricos do grupo não estão sendo avaliados.

A tentativa de Kuhn é de suplantar certos problemas que a maneira de Popper conceber a prática científica os trás à tona, ao considerar que a crítica é uma atitude permanente na produção do conhecimento científico. Deste modo, as teorias científicas estariam sempre em crise, sujeitas a serem constantemente derrubadas e substituídas por outras, uma vez que não há momentos de estabilidade teórica e de possível defesa de uma teoria. Kuhn, ao distinguir os momentos de pesquisa normal e de pesquisa revolucionária, deixa claro que, no decorrer do desenvolvimento científico, há momentos de pesquisa convergente nos quais segue-se uma determinada tradição e, por outro lado, momentos revolucionários, em que esta tradição entra em crise e é substituída por outra.

Mas, o cerne da discórdia entre os dois filósofos diz respeito à natureza do falseamento ou refutação das teorias. A posição de Popper tem seus pilares em uma assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, de modo que uma teoria jamais poderá ser verificada por um determinado número de fatos particulares, mas poderá ser falseada por estes.

Essa assimetria se torna possível porque Popper tem por base as inferências puramente dedutivas da lógica tradicional e, utilizando-se do modus tollens, pode concluir pela falsidade de enunciados universais a partir da verdade de enunciados singulares. Assim, se aceitamos um enunciado singular que esteja em contradição com a teoria que estamos tentando testar, essa deverá ser rejeitada, por ter sido falseada.

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Mas isso não significa que essa teoria tenha sido verificada, pois não é possível a verificação de teorias ou leis universais.

Divergindo da posição de Popper, Kuhn defende a ideia de que, no âmbito da prática científica, uma teoria não é substituída por outra só porque uma situação particular a contradiz, ou porque a teoria não se aplica a ela. Pois, entende que é contestando observações e ajustando teorias que o conhecimento científico progride.

Todas as experiências podem ser contestadas, quer quanto à relevância, quer quanto à exatidão. Todas as teorias podem ser modificadas por uma variedade de ajustamentos ad hoc sem com isso deixar de ser, em suas linhas gerais, as mesmas teorias (KUHN, 1979, p. 20).

O falseamento não é, assim, condição suficiente para a

rejeição de teorias, pois o que geralmente ocorre no âmbito da pesquisa de ciência normal, quando há um aparente fracasso da teoria, é a contestação da experiência falseadora e o ajustamento da teoria. O recurso a hipóteses ad hoc, no sentido de corrigir uma teoria de modo a evitar o falseamento é uma atitude que Popper reprova, mas que Kuhn considera como uma prática corrente no âmbito da ciência normal. Ao invés dos cientistas rejeitarem uma teoria por existir um enunciado que a contradiz, todo o esforço deles é o de salvar a teoria, fazendo os ajustes necessários de modo a eliminar a contradição e a evitar, assim, o falseamento da mesma.

A crítica de Kuhn com relação ao falseamento de uma teoria diz respeito ainda, ao modo como este deverá ser realizado pelos cientistas, pois, muito embora Popper tenha rejeitado a refutação concludente de uma teoria, por considerar que os resultados experimentais possam ser questionados, ele não teria proposto uma alternativa para esta, na medida em que não esclarece como o cientista relacionaria sentenças derivadas de uma teoria (pertencentes ao campo da

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lógica) com observações e experiências reais (provenientes do âmbito factual).

Popper, reportando-se às críticas de Kuhn sobre esse aspecto, qualifica como “lenda” a ideia de que Kuhn teria mostrado que seu falseacionismo pode ser refutado pelos fatos, ou seja, pela história da ciência, pois não considera que ele tenha tido tal pretensão, uma vez que, em relação ao falseacionismo, não vê grandes diferenças entre seu ponto de vista e o dele:

Mas a respeito quer da falseabilidade, quer da impossibilidade de haver provas terminantes de falsificação, e do papel que estas desempenham na história das ciências e das revoluções científicas, não me parece que haja qualquer diferença significativa entre Kuhn e eu (POPPER, 1987, p. 30).

O filósofo cita, inclusive, uma passagem da obra A

Revolução Copernicana, na qual não só Kuhn “aceita na prática” os seus pontos de vista sobre o caráter revolucionário da evolução das ciências, como parece seguir de perto seu falseacionismo:

Mas o cientista paga um certo preço pelo seu comprometimento [...]. Uma simples observação que seja incompatível com a sua teoria pode demonstrar que tem estado a usar uma teoria errada o tempo todo. O seu esquema conceptual tem então de ser abandonado e substituído (KUHN, 1990 in POPPER, 1987, p. 31).

Em outra passagem da mesma obra, ao apresentar um

“resumo útil” da lógica de uma revolução científica, Kuhn reforça novamente a ideia de que a revolução ocorre devido ao falseamento de teorias, ou seja, é fruto da “incompatibilidade entre teoria e observação”.

A forma como Kuhn descreve a atitude falseacionista é criticada por Popper por considerá-la uma simplificação de

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suas ideias, pois considera ser impossível produzir uma refutação indiscutível de uma teoria empírica com base na observação. Muito embora Kuhn concorde com ele, continua a acusá-lo de “falsificacionista ingênuo”. É claro que o conceito de falseamento de Popper apresenta problemas, conforme Lakatos teve oportunidade de mostrar, mas Kuhn não conseguiu perceber a sutileza das questões envolvidas com este conceito. Sua pretensão não é a de negar todo e qualquer processo de falseamento das teorias, mas mostrar suas dificuldades.

No decorrer deste estudo, tivemos oportunidade de mostrar a existência de focos de preocupações comuns entre Popper e Kuhn, que nos permitem situar a ambos como membros de um grupo seleto de filósofos da ciência contemporânea. Mas, as relações entre ambos não se esgotam nos pontos em que ambos compartilham. Em nosso entender, Kuhn é o grande herdeiro do legado popperiano, que, ao contrário dos outros discípulos que mantiveram-se fiel ao falseacionismo de Popper, viu nele problemas e procurou superá-los. Kuhn é um popperiano não-ortodoxo, pois embora tenha conservado em sua teoria da ciência vários aspectos com os quais comunga com Popper, não teve o pudor de introduzir elementos novos e de abandonar aspectos problemáticos da teoria de seu mestre, em sua tentativa de dar um passo à frente. Por isso, não segue fielmente o falseacionismo de Popper, já que não vê nele o único traço característico da atividade científica, ao reconhecer a existência de novos elementos que complementam a lógica da pesquisa científica proposta pelo filósofo austríaco. Esses elementos dizem respeito aos aspectos históricos e psicossociais da atividade científica.

A ciência é vista por Kuhn como produto de uma comunidade de especialistas e, para explicar o seu desenvolvimento científico, julga necessário examinar não só

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os cânones lógico-metodológicos que fundamentam suas teorias, mas também a natureza do grupo científico, a educação que recebeu, os valores que compartilha, além dos que tolera e que desdenha. REFERÊNCIAS KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1975. _______. “Lógica da descoberta ou psicologia da pesquisa?”. In: LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento: quarto volume da atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência, realizado em Londres, em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 5-32. _______. “Reflexões sobre meus críticos”. In: LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento: quarto volume da atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência, realizado em Londres, em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 285-343. _______. “Reconsiderações acerca dos paradigmas”. In: A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1989. _______. A revolução copernicana. Lisboa: Edições 70, 1990. LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979. POPPER, Karl. “A ciência normal e seus perigos”. In: LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, quarto volume da atas do Colóquio Internacional sobre Filosofia da ciência, realizado em Londres, em 1965. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979, p. 33-48. _______. A Lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. _______. O realismo e o objectivo da ciência: 1º volume do Pós-escrito à Lógica da Descoberta Científica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.

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_______. O mito do contexto: Em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70, 1999. _______. Conjecturas e refutações: pensamento científico. Brasília: Ed. da UnB, 1982. STEGMÜLLER, Wolfgang. A Filosofia Contemporânea. São Paulo: EPU, 1977, vol. 2. WORRAL, John. “Normal Science and dogmatism, paradigms and progress: Kuhn versus Popper and Lakatos”. In: Contemporary Philosophy in focus. Edited by Thomas Nickles, Cambridge University Press, 2003, p. 65-100. VALLE, Bortolo e OLIVEIRA, Paulo Eduardo de. Introdução ao pensamento de Karl Popper. Curitiba: Champagnat, 2010.

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CAPÍTULO 9 VVEERRDDAADDEE EE VVEERROOSSSSIIMMIILLHHAANNÇÇAA NNAA EEPPIISSTTEEMMOOLLOOGGIIAA

DDEE PPOOPPPPEERR

Gelson Liston

São muitas as formas de abordagem da epistemologia crítica de Karl Popper. Pretendemos, neste capítulo, discutir os conceitos de verdade e verossimilhança enquanto ideias centrais do método de conjecturas e refutações: o método de formular teorias e submetê-las criticamente a provas, selecionando-as de acordo com o desempenho alcançado. Para tanto, faremos uma apresentação, ainda que breve, a título de introdução, do critério de demarcação do discurso empírico científico. A demarcação é um problema central da filosofia da ciência de Popper. Trata-se do seu interesse em proporcionar um adequado critério que possibilite analisar o método e o desenvolvimento racional da ciência empírica, traçando uma linha demarcatória entre ciência e não-ciência. Em nossa análise, a demarcação deve ser vista como um problema lógico e metodológico; um problema que envolve os procedimentos da investigação científica.

O falseacionismo é o critério que permite a demarcação, pois, de posse deste critério, podemos avaliar a cientificidade de uma teoria na medida em que ela faz asserções sobre o ‘mundo’ e tais asserções podem colidir com a ‘realidade’, podendo, portanto, ser refutada com base na experiência. Mais precisamente, uma teoria é científica quando faz afirmações que proíbem determinados eventos

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(falseadores potenciais), cuja ocorrência permite seu falseamento. O critério popperiano de falseabilidade sustenta-se no método dedutivo de prova – um procedimento crítico para testar e selecionar hipóteses a partir de seu conteúdo informativo. As hipóteses, por sua vez, podem ser refutadas ou corroboradas pela experiência. Quanto às hipóteses cujas decisões forem positivas, porque resistiram a severos testes, estas permanecem aceitas apenas temporariamente, até que novos testes surjam e, com eles, mantenha-se a possibilidade de serem refutadas. Uma teoria (ou sistema teórico), segundo Popper (1995, p. 32), deve ser logicamente consistente; ser empírica (não tautológica) e ser passível de comparação com outras teorias, pois ela deve representar avanço científico. Após tal exame, a teoria é submetida a testes empíricos, realizados a partir do confronto dos enunciados logicamente deduzidos (predições) com os enunciados metodologicamente aceitos.

A preocupação de Popper em demarcar o campo do discurso científico, eliminando dele as hipóteses consideradas não-falseáveis, demonstra um interesse eminentemente epistemológico, pois, através do critério falseacionista, Popper enfrenta o problema da indução que, segundo ele, ameaçava a racionalidade dos procedimentos de investigação científica. Sobre isso, Popper afirma que “encontrar um critério aceitável de demarcação deve ser uma tarefa crucial para qualquer epistemologia que não aceita a lógica indutiva” (POPPER, 1995, p. 35). Deste modo, a falseabilidade, enquanto critério de demarcação, é uma questão lógica: “tem a ver somente com a estrutura lógica de enunciados e de classes de enunciados” (POPPER, 1992, p. xx). Assim, um enunciado (ou uma teoria) é classificado como falseável e, consequentemente, como científico se, e somente se, existir ao menos um falseador potencial que descreva um acontecimento (observações possíveis) que seja logicamente inconsistente com ele.

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Dada a noção lógica de falseabilidade, devemos fazer uma distinção entre falseabilidade e falseamento. A falseabilidade é a possibilidade ou capacidade lógica de uma teoria entrar em conflito com os enunciados básicos e, portanto, de ser falseada. O falseamento é um fato, uma consequência deste conflito. Contudo, o falseamento, na epistemologia popperiana, não pode ser uma simples consequência lógica, conforme a definição dada, pois envolve dificuldades que exigem regras metodológicas imprescindíveis. No empreendimento científico da proposta popperiana, o falseamento é uma decisão e, como tal, depende de regras metodológicas determinadas pelo contexto da pragmática da investigação científica.

É neste contexto de investigação que passamos a analisar os conceitos de corroboração e de verossimilhança enquanto constituintes fundamentais da epistemologia falseacionista de Karl Popper. O primeiro se refere ao desempenho e resistência de uma teoria frente à imposição de rigorosos e constantes testes. O segundo está relacionado com a definição de verdade enquanto ideia reguladora que motiva a busca constante de leis universais verdadeiras. Contudo, a busca de teorias mais próximas da verdade ou mais satisfatórias envolve a necessidade de um confronto direto entre teorias. Neste confronto, temos o exame crítico de teorias – uma tentativa de teste e, consequentemente, de refutação. A escolha entre teorias competidoras tem como referencial a expansão do conhecimento e aproximação da verdade. Assim, a teoria corroborada (teoria que resistiu) representa um avanço em relação à teoria refutada, uma vez que os testes são sempre cruciais.

Uma hipótese é corroborada toda vez que submetida a teste for capaz de resistir e manter-se no jogo científico. Trata-se, portanto, da resistência diante de rigorosos testes, cujo objetivo é o falseamento. A severidade destes testes determina

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em que medida uma teoria é corroborada. Assim, podemos falar de maior ou menor grau de corroboração entre duas teorias concorrentes na medida em que estas são submetidas aos mesmos testes, sendo que uma delas resiste aos testes que falseiam a outra.

Ao apreciar o grau de corroboração de uma teoria, Popper refere-se à relação lógica entre teoria e enunciados básicos aceitos (enunciados de teste), segundo a qual o grau de corroboração aumenta conforme o número de instâncias corroboradoras. Deste modo, quanto maior for o grau de universalidade de uma teoria, maior será sua testabilidade, podendo aumentar o grau de corroboração. Neste caso, o grau de universalidade de uma teoria T1 é atribuído em relação a outra teoria T2. Esta relação pode ser explicada da seguinte forma:

Considerem-se as seguintes hipóteses; (1) Todo metal quando aquecido se dilata. (2) Todo cobre quando aquecido se dilata.

Comparando os dois enunciados acima, podemos ter uma ideia dos conceitos de grau de universalidade e grau de falseabilidade. Estes enunciados possibilitam uma comparação a partir das relações de subclasses, ou seja, o enunciado (1) possui um grau maior de universalidade e de falseabilidade porque sua classe não-vazia de falseadores potenciais inclui a classe não-vazia dos falseadores potenciais do enunciado (2) como sua subclasse. O conteúdo informativo da hipótese (1) é maior, o que pode ser visto ao compararmos as respectivas classes de falseadores potenciais, pois qualquer enunciado que falsear (2), falseará necessariamente (1). Contudo, o contrário não é verdadeiro.

Segundo Popper (1992, p. 134), o objetivo da ciência é “avançar para teorias de conteúdo cada vez mais rico, teorias

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com um grau cada vez mais elevado de universalidade, e com um grau cada vez maior de precisão”. Tal busca está de acordo com outro objetivo da ciência que é o de encontrar explicações satisfatórias, isto porque uma explicação (causal) se dá a partir de leis, rigorosamente testadas, e de condições iniciais. As refutações são de fundamental importância na medida que impulsionam o avanço rumo a melhores explicações.

A testabilidade de uma teoria está estreitamente relacionada ao seu conteúdo empírico. Assim, quanto maior for o conteúdo de uma teoria, maior será sua testabilidade e, consequentemente, a falseabilidade aumenta, diminuindo a probabilidade, já que o conjunto de falseadores potenciais é maior.

A consideração de Popper é a seguinte:

Caracteriza-se como preferível a teoria que nos diz mais – isto é, a teoria que contém mais informação empírica, ou conteúdo; que é logicamente mais forte; que tem maior capacidade explicativa e poder de previsão; e que, portanto, pode ser testada mais rigorosamente, pela comparação dos fatos previstos com observações. Em resumo, preferimos as teorias interessantes, ousadas e altamente informativas às que são triviais (POPPER, 1994, p. 243).

O progresso através de refutações tem como

pressuposto a ideia de verossimilhança. Deste modo, a teoria aceita deve manifestar um grau maior de corroboração em relação à teoria falseada, representando uma maior aproximação à verdade. Conforme a metodologia popperiana, também podemos afirmar que uma teoria pode ser preferível em relação à sua concorrente antes mesmo de serem testadas, com base apenas na relação de conteúdo, pois o conteúdo determina a testabilidade e esta, por sua vez, é um fator de escolha.

Ao tratarmos da escolha racional de teorias em conflito a partir da noção de grau de corroboração, devemos fazer uma

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importante distinção entre corroboração e verossimilhança. Em primeiro lugar, devemos dizer que o conceito de corroboração não pode ser identificado com o conceito de verdade. Portanto, o grau de corroboração não pode ser tomado como medida de verossimilhança de uma teoria, ou seja, a corroboração não é um valor verdade, pois depende de um momento no tempo. O alto grau de corroboração de uma teoria não representa, por si só, uma maior aproximação da verdade. A corroboração é uma apreciação lógica que resulta da relação entre uma teoria ou sistema teórico e um conjunto de enunciados básicos aceitos em um determinado ponto no tempo (cf. POPPER, 1995, p. 275). O que está em jogo, neste caso, é o desempenho da teoria e não o valor de verdade que, por sua vez, é atemporal.

A distinção entre corroboração e verossimilhança é apresentada, por Karl Popper, da seguinte forma:

O grau de verossimilhança objetiva precisa também ser distinguido claramente do grau de corroboração; o grau de verossimilhança de uma teoria, como a ideia da verdade, é atemporal, embora difira desta por ser relativa. O grau de corroboração de uma teoria depende essencialmente do tempo, sendo um conceito histórico (POPPER, 1994, p. 439).

A noção de progresso sustentada pela ideia de

aproximação da verdade tem como pano de fundo a definição de verdade62 dada por Popper. Postular a verdade como um ideal regulador impulsiona a busca constante de leis verdadeiras, ainda que busquemos a verdade sem saber se a encontraremos, pois não dispomos de um critério para reconhecê-la. Ter um conceito de verdade é algo muito distinto de possuir um critério para decidir acerca da verdade de um enunciado. Um critério de verdade pode ser interpretado

62 A verdade é a correspondência entre enunciados e fatos (cf. POPPER, 1994, p. 252).

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como um método de decisão, a partir do qual podemos inferir o valor de verdade de um enunciado. A definição de verdade, por sua vez, nos dá o significado da palavra verdade (cf. HAACK, 1978, p. 88). Contudo, a falta de um critério de verdade, aliada à constante possibilidade de erro, não torna arbitrária ou não-racional a escolha entre teorias concorrentes, apenas apóia a tese que assevera a falibilidade de nosso conhecimento (cf. POPPER, 1974a, p. 394). Embora a metodologia popperiana seja negativa, no sentido de admitir o progresso através de refutações, Popper defende uma visão realista do mundo, segundo a qual o objetivo da ciência deve ser o de conseguir explicações cada vez melhores (cf. POPPER, 1992, p. xxv). Para Popper, o realismo constitui uma espécie de ‘pano de fundo’ para a busca da verdade:

A discussão racional, isto é, a argumentação crítica com o interesse de nos aproximarmos da verdade, seria vazia sem uma realidade objetiva, um mundo que empreendemos descobrir; desconhecido, ou em parte desconhecido: um desafio ao nosso engenho, à nossa coragem e à nossa integridade intelectual (POPPER, 1992, p. 81).

A visão realista de Popper é manifestamente expressa

ao discutir e argumentar em favor da possibilidade de progresso científico a partir da constante superação (revolucionária) de teorias. O argumento de Popper é o de que uma teoria é uma tentativa de solução para algum tipo de problema real. É deste modo que podemos falar de uma aproximação da verdade no sentido de que uma teoria T2 está mais próxima da verdade que outra T1. É claro que neste caso as teorias devem ser vistas como tentativas de solução para os mesmos problemas, que é o que torna possível a comparação. Popper expressa a importância destes problemas para a prática científica da seguinte forma:

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A discussão racional não deve, porém, ser praticada apenas como um jogo para passar o tempo. Ela não pode existir se não houver problemas reais, sem a busca da verdade objetiva, se não houver a missão de descoberta que nos impomos: sem uma realidade a descobrir – uma realidade a explicar por leis universais (POPPER, 1992, p. 157).

Ao tratar da verossimilhança, Popper assume uma

posição realista na medida em que caracteriza o êxito da investigação científica na possibilidade de uma progressiva aproximação da verdade, isto é, “de descrições verdadeiras de certos fatos ou aspectos da realidade” (POPPER, 1975, p. 48).

A tentativa de aproximação da verdade só tem sentido quando toma como referencial a busca de soluções para algum problema de relevância científica. É neste caso que a capacidade explicativa de uma teoria deve ser explorada e rigorosamente testada. Assim, duas teorias concorrentes, T1 e T2, podem ser avaliadas sob a luz da verossimilhança. Deste modo, T2 pode ser considerada uma melhor aproximação da verdade (corresponde melhor aos fatos) do que T1 nas seguintes situações:

(1) Quando T2 faz assertivas mais precisas do que T1, as quais resistem a testes que são também mais precisos (2) Quando T2 leva em consideração ou explica mais fatos do que T1; (3) Quando T2 descreve ou explica os fatos com mais detalhes do que T1; (4) Se T2 resistiu a testes que refutaram T1; (5) Se T2 sugere novos testes experimentais, que não haviam sido considerados antes da sua formulação, conseguindo resistir a eles; (6) Se T2 permitiu reunir ou relacionar entre si vários problemas que até então pareciam isolados (POPPER, 1994, p. 258).

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A teoria da verossimilhança permite uma avaliação crítica de teorias concorrentes tendo como referência o conteúdo verdade (Ctv) e o conteúdo falsidade (Ctf). A partir disso, Popper sugere a seguinte definição de verossimilhança: Vs(a) = Ctv(a) – Ctf(a) (cf. POPPER, 1994, p. 259). Neste caso, o conteúdo de a é a classe de todas as consequências lógicas de a [Cn(a)]. Popper divide o conteúdo lógico ou classe de consequência de um enunciado T em duas subclasses; a subclasse das asserções verdadeiras derivadas de T e a subclasse das asserções falsas derivadas de T. Feito isso ele nomeia a primeira subclasse como o conteúdo verdade de T, e a segunda subclasse como o conteúdo falsidade de T [Av = Cn(A) ∩ V; Af = Cn(a) ∩ F]. Com a nova definição, podemos dizer que T2 é melhor que T1 nos seguintes casos: (a) Ctv(T2) > Ctv(T1) ∧ Ctf(T1) ≥ Ctf(T2); (b) Ctf(T2) < Ctf(T1) ∧ Ctv(T1) ≤ Ctv(T2).

Testar uma teoria é sempre uma tentativa crucial de falseamento que envolve uma situação-problema. As teorias são hipóteses feitas a partir de algum problema. Os testes fazem parte de um processo científico que visa a eliminação de erros, possibilitando ou impulsionando o surgimento de novas hipóteses e de novos problemas. Este é o método das ciências empíricas e devemos estar conscientes de que podemos aprender com nossos erros desde que assumamos uma postura eminentemente crítica. O esquema deste método, segundo Popper (1975, p. 223 e 1994, p. 443), é o seguinte:

P1 → TT → EE → P2...

Este esquema mostra que a ciência começa e avança com problemas. No esquema, P1 é o problema inicial; TT são as teorias tentativas para resolvê-lo; EE é o processo de

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eliminação de erros e P2 é o novo problema que surge, exigindo novas teorias tentativas. O conceito de verdade absoluta e objetiva constitui o fundamento do racionalismo crítico de Karl Popper (cf. MALHERBE, 1979, p. 125). O esquema que simboliza o estabelecimento da crítica constante e rigorosa pressupõe a possibilidade do avanço científico, rumo a teorias melhores, através da eliminação de erros.

Na Lógica da Pesquisa Científica, ao tratar das teorias, Popper faz uso de uma metáfora63, em que identifica as teorias com redes que são “lançadas para capturar aquilo que denominamos de ‘mundo’: para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo. Nossos esforços são no sentido de tornar as malhas da rede cada vez mais estreitas” (POPPER, 1995, p. 59). As teorias ou redes, seguindo a metáfora, são construídas ou inventadas por nós para descrever ou explicar propriedades do mundo. Tornar a malha mais estreita significa aumentar o grau de precisão, tornando a teoria mais vulnerável à refutação.

Popper, ao defender a noção intuitiva de verossimilhança, estabelece como pressuposto básico de aplicabilidade que os conteúdos (Ctv e Ctf) das teorias concorrentes sejam comparáveis. Satisfeita esta condição, podemos asseverar que um enunciado p está mais próximo da verdade do que outro enunciado q, mesmo que ambos sejam falsos. A fim de evidenciar esta posição, Popper exemplifica da seguinte forma: (1) Estamos agora entre 9 horas e 45 e 9 e 48; (2) Estamos agora entre 9 horas e 40 e 9 e 48 (POPPER,

1975, p. 61).

63 A metáfora também aparece como epígrafe desta obra de Popper: “As hipóteses são redes: só quem as lança colhe alguma coisa” (Novalis).

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Dado que a observação é feita às 9 horas e 48, podemos asseverar, segundo Popper, que o enunciado (1) está mais próximo da verdade do que o enunciado (2). Este exemplo é particularmente interessante por permitir dois tipos de análise, uma vez que podemos interpretar a palavra ‘entre’ de duas maneiras distintas, a saber, ela pode tanto incluir, quanto excluir os limites (cf. POPPER, 1975, p. 62). Se ela for interpretada de modo a incluir o limite maior, então os enunciados (1) e (2) são verdadeiros. Em contrapartida, se ela excluir o limite maior, então os enunciados se tornam falsos. A questão que mais nos interessa nesta análise é a posição de Popper frente às duas possibilidades de interpretação, pois nos dois casos, segundo Popper, é possível, a partir da noção intuitiva de verossimilhança, afirmar que o enunciado (1) tem maior verossimilhança do que o enunciado (2), já que, nas duas situações, eles são comparáveis. A conclusão de Popper é que a ideia de verossimilitude pode ser aplicada a quaisquer tipos de asserções (verdadeiras e falsas), desde que sejam comparáveis. Contudo, a verossimilitude de uma teoria não pode ser expressa em termos numéricos, ou seja, os graus de verossimilhança são uma ideia intuitiva que, por sua vez, não pode ser numericamente determinada.

No entanto, como veremos, as posições de Popper com relação à teoria da verossimilhança foram alvo de inúmeras e contundentes críticas. As críticas apontam a insustentabilidade da teoria popperiana ao assumir que, entre duas teorias falsas, uma pode ser preferível à outra por estar mais próxima da verdade (cf. TICHÝ, 1974, p. 155).

Para Tichý, não faz sentido enunciar, de duas teorias concorrentes falsas, que uma está mais próxima da verdade do que a outra. Assim, se b é falsa, então a não tem menos verossimilhança que b, ou seja, não há como demonstrar, a partir da definição popperiana de verossimilhança, que uma

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teoria falsa pode estar mais próxima da verdade do que outra teoria falsa.

David Miller, ao analisar a teoria da verossimilitude, afirma que Popper foi o único que fez progresso no sentido de resolver o problema da verossimilitude (cf. MILLER, 1974a, p. 166). No entanto, a teoria de Popper não alcança todos os seus objetivos, pois apenas teorias verdadeiras podem ser avaliadas. A objeção de Miller aponta para o fato de que, se duas teorias são comparáveis através da verissimilitude, então elas devem ser comparáveis pelo conteúdo verdade. De duas teorias falsas, o que pode ocorrer é que uma delas pode exceder a outra tanto em conteúdo verdade, quanto em conteúdo falsidade, anulando a proposta popperiana de aproximação da verdade. Uma observação importante a ser feita é que, ao falarmos de conteúdo excedente, estamos, obviamente, referindo-nos a uma comparação que permite a inclusão de conteúdos, no sentido de que o Ctv(T2), por exemplo, inclui o Ctv(T1) como sub-conjunto, por isso o excede. A objeção de Miller também atinge os casos em que duas teorias, uma verdadeira e uma falsa, (por suposição) são avaliadas, e uma delas, sendo falsa, excede a outra, verdadeira, em conteúdo falsidade e em conteúdo verdade, o que é perfeitamente possível, tornando-as incomparáveis pela condição de verossimilitude (cf. MILLER, 1974a, p. 172). Sendo assim, a conclusão de Miller é que a teoria popperiana é inadequada.

O que torna problemática a discussão sobre a teoria da verossimilhança de Popper é o fato de haver uma relação intrínseca com o objetivo de Popper ao ver a ciência como algo que busca progredir na direção de teorias cada vez melhores, aproximando-se, cada vez mais, da verdade objetiva e absoluta. O problema, como aponta Harris (1974, p. 162), é explicar o significado de tal pressuposto, ou seja, o de “dizer que uma teoria está mais próxima da verdade do que outra,

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especialmente nos casos em que ambas são falsas” (“são algumas falsidades menos falsas que outras?”). A definição de verissimilitude não satisfaz o pressuposto popperiano, perdendo a plausibilidade.

Em uma nota (POPPER, 1976), respondendo às críticas, Popper considera o debate sobre a teoria da verissimilitude um acontecimento muito importante, pois a preocupação principal aponta para a possibilidade de se obter uma posição segura, resolvendo o problema da verissimilitude. Para Popper, o problema central, a saber, o de comparar a verossimilhança de teorias falsas, ainda não foi resolvido. Contudo, o enunciar, de duas teorias concorrentes, a e b, que uma delas está mais próxima da verdade do que a outra, embora não seja demonstrável, pode ser assumido como uma conjectura (cf. POPPER, 1976, p. 158). A discussão crítica, incluindo a severidade dos testes, não pode ser esquecida, pois desempenha um papel fundamental na escolha de teorias. A constante busca de teorias melhores (mais próximas da verdade) deve ser mantida, o que só é possível mediante um procedimento altamente crítico.

A análise objetiva sempre é possível, mesmo quando duas teorias, a e b, não podem ser comparadas por verossimilhança. Isso acontece, por exemplo, quando a teoria a é uma melhor aproximação com respeito a um objetivo x, e b é melhor com relação a um objetivo y. O que pode ser feito, de acordo com Popper (1976, p. 159), é buscar (ou construir) uma teoria com as vantagens de a e b, mas sem suas desvantagens. Enfim, a definição popperiana de verissimilitude não consegue demonstrar que a ciência faz progresso rumo à verdade. No entanto, ela é compatível com a metodologia falseacionista que impulsiona a escolha de teorias científicas com maior conteúdo, maior poder explicativo e, consequentemente, com um alto grau de testabilidade.

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CAPÍTULO 10

NNOOTTAASS SSOOBBRREE AA ““PPRROOPPEENNSSÃÃOO QQUUÂÂNNTTIICCAA”” PPOOPPPPEERRIIAANNAA

Raquel Sapunaru

O presente estudo pretende discutir a evolução do pensamento popperiano em torno do problema do cálculo das probabilidades envolvido na fundamentação da Teoria Quântica.

Logo na primeira edição da Lógica da Pesquisa Científica, datada de 1934, e, posteriormente, em sua Autobiografia Intelectual, de 1975, Karl Popper confrontou uma interpretação objetiva contra uma interpretação subjetiva da probabilidade. No artigo intitulado “Propensões, probabilidades e teoria quântica”, de 1957, Popper colocava o problema da objetividade versus subjetividade na Mecânica Quântica da seguinte forma:

(1) Solucionar o problema de como interpretar a teoria das probabilidades é fundamental para interpretar a teoria quântica, uma teoria probabilística. (2) A ideia de uma interpretação estatística é correta, mas carece de clareza. (3) Como consequência dessa falta de clareza, a interpretação costumeira das probabilidades na física oscila entre dois extremos: uma interpretação objetiva, puramente estatística, e uma interpretação subjetiva que destaca o nosso conhecimento incompleto ou a informação disponível. (4) Na interpretação ortodoxa de Copenhagen sobre a teoria quântica encontramos a mesma hesitação entre uma interpretação objetiva e outra subjetiva: a famosa intromissão do observador na física. (5) Em

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contraste com tudo isso, proponho uma interpretação estatística revista ou reformada, a interpretação da probabilidade como propensão. (6) A interpretação baseada na propensão é puramente objetiva. Elimina a oscilação entre interpretações objetiva e subjetiva e com ela a intromissão do sujeito na física (POPPER, 2010, p. 197).

A primeira, objetiva, denominada frequentista,

formulada por Richard Von Mises, afirmava, resumidamente, que se se pudesse repetir ou observar um experimento um grande número de vezes e registrar quantas vezes um evento A ocorreria, então, a probabilidade de A, P(A), seria igual ao número de vezes em que A ocorre dividido pelo número total de repetições do experimento (NAGEL, 1969, p. 19-26). Na segunda, a probabilidade era interpretada como uma medida de grau de convicção ou como uma quantificação de um ponto de vista particular (POPPER, 1974, p. 161), e isto denotava que não seria preciso que um experimento fosse não-repetitivo para considerar subjetiva sua probabilidade de ocorrer. Em linhas gerais, a interpretação subjetiva alegava que uma proposição verdadeira seria redutível ao sentimento de aprovação, e uma proposição falsa, ao sentimento de desaprovação. Explicando de outro modo, o verdadeiro ou o falso dependeria da mente do observador, ou seja, seria valorativa e não factual, como se marca qualquer ciência. No entanto, para a interpretação objetiva, o conhecimento poderia ser qualificado como algo acerca de uma realidade independente da mente, que se exprimiu através de juízos que continham proposições verdadeiras e estas proposições seriam verdadeiras, e não falsas, porque representariam com precisão uma realidade. Por fim, Popper (1974, p. 166-175) se decidiu, neste primeiro momento, pela interpretação frequentista e justificou sua escolha afirmando:

A probabilidade criou-me problemas, assim como o trabalho, levando-me a estudo agradável e estimulante. O problema

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fundamental, examinado na Lógica da Pesquisa Científica, era o de prova de enunciados probabilísticos da Física. Esse problema era um desafio importante para minhas concepções gerais acerca da Epistemologia e eu o resolvi com o auxílio de uma ideia que fazia parte integral dessa epistemologia e não, penso, de uma ideia ad hoc. [...]. Na Lógica da Pesquisa Científica, eu sublinhara que havia muitas interpretações possíveis para a noção de probabilidade, ressaltando que somente uma teoria das frequências (como a proposta por Von Mises) seria aceitável nas Ciências Físicas (POPPER, 1977, p. 107-115).

Posteriormente, aventarei de modo sucinto a

interpretação da propensão, substituta de Popper da interpretação objetiva de probabilidade em termos de frequência. Esta interpretação, criada por Popper, seria uma nova interpretação objetiva, fortemente relacionada com a teoria frequentista anteriormente mencionada. Na ideia de Popper, esta nova interpretação objetiva seria “uma teoria de probabilidades, em termos de teoria frequencial (modificada)” (POPPER, 1974, p. 164). Por enquanto, vale lembrar a letra de Popper sobre a interpretação objetiva das teorias, ideia que acompanhou o filósofo por toda sua vida: “Manifesto, assim, a fé que tenho numa interpretação objetiva, acima de tudo por acreditar que somente uma teoria objetiva é capaz de explicar a aplicação dos cálculos de probabilidades em ciência empírica” (POPPER, 1974, p. 164). Historicamente falando, o interesse de Popper pela questão da probabilidade advinha de duas fontes distintas, a saber: 1) dos problemas da Física, mais especificamente da Teoria Quântica em plena ascensão e 2) de sua crítica à tese do Círculo de Viena de que a verificação das teorias científicas poderia ser medida via cálculo de probabilidades64. A título de esclarecimento, vale lembrar as

64 Ressalto que, para Popper, quanto maior o conteúdo empírico, maior a testabilidade da teoria. Sobre esta afirmação, Popper exemplificou: “Seja a a sentença ‘Choverá na sexta-feira’; b a sentença ‘O tempo estará bom no sábado’; e ab a sentença ‘Choverá na sexta-feira e o tempo estará bom no sábado’: é obvio que o conteúdo informativo da

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diferenças entre as teses de Popper e as do Círculo de Viena, isto é, as diferenças entre o racionalismo crítico e o empirismo lógico, respectivamente:

a) o realismo, para o empirismo lógico, seria uma

tentativa de descobrir a verdade através da observação e da indução e, para o racionalismo crítico, a observação seria seu princípio de falsificação;

b) sobre a demarcação, o empirismo lógico gostaria que esta tese fosse forte o suficiente para negar tudo aquilo que não é ciência; o racionalismo crítico, por sua vez, veria as teorias não-científicas como fonte possível de inspiração para teorias que seriam falsificadas ou não;

c) a ciência e o progresso acumulativos do empirismo lógico teriam um sentido de soma através da observação e, para o racionalismo crítico, este progresso se daria pelo descarte de teorias que foram falsificadas;

d) a distinção entre observação e teoria no empirismo lógico se daria no sentido observação/teoria e, no racionalismo crítico, o sentido seria o oposto;

e) a precisão de conceitos científicos e termos empregados na ciência seria típico do empirismo lógico;

f) o contexto de descoberta no empirismo lógico seria a observação e no racionalismo crítico seria a invenção em geral, e o contexto de verificação no primeiro seria a análise lógico-linguística e no segundo seria a falsificação.

Neste contexto, cujas diferenças são menos sutis do que

se supõe, destaco que, para Popper, o verificacionismo não

última sentença, a conjunção ab, será maior que sua componente a e também que sua componente b. E também a probabilidade de ab (ou, o que dá no mesmo, a probabilidade de ab ser verdadeira) será menor que cada um de seus componentes” (POPPER, 2002, p. 295). Assim, para o filósofo, o conteúdo informativo não é dado pelo cálculo da probabilidade, visto que Ct(a)Ct(ab)Ct(b) ≠ p(a)p(ab)p(b).

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seria o bom método de ajuizar teorias e, portanto, o filósofo estaria amarrado à crítica ao uso do cálculo da probabilidade para asseverar sua tese falseacionista: segundo Popper, a falsificação deveria substituir a verificação enquanto critério de cientificidade de teorias. Na letra do autor:

Todavia, para poder abordar, em toda a sua generalidade, o problema dos enunciados probabilísticos, era preciso desenvolver um sistema axiomático para o cálculo da probabilidade. Isso era também necessário para outro propósito – o de estabelecer minha tese, proposta na Lógica da Pesquisa Científica, de que a corroboração não é uma probabilidade, no sentido do cálculo de probabilidades. Em outras palavras, era preciso desenvolver o sistema axiomático para estabelecer que certos aspectos intuitivos da corroboração tornavam impossível identificá-la com a probabilidade, tal como esta aparece no cálculo de probabilidades (POPPER, 1977, p. 108).

Complementando, decididamente, Popper não

acreditava no verificacionismo do Círculo de Viena, pois, como seguidor da corrente realista do pensamento, ele afirma: “Nossas falsificações, deste modo, indicam os pontos onde nós tocamos a realidade, como ela seria” (POPPER, 2002, p. 156). Desse modo, percebo que Popper estava ciente do fato de que era preciso desenvolver um sistema axiomático para o cálculo da probabilidade para provar que sua teoria falseacionista, ou tese corroborativa, não era uma probabilidade no sentido usual do cálculo de probabilidades. Concomitantemente, Popper, como crítico severo da disseminação do positivismo entre os físicos, estava muito interessado em alguns problemas de interpretação da então emergente Teoria Quântica. Para Popper, a teoria das propensões

difere da interpretação puramente estatística ou de frequência apenas nisto: considera a probabilidade como uma propriedade característica do arranjo experimental, e não

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como uma propriedade de uma sequência. O ponto principal dessa mudança é que passamos a considerar fundamental a probabilidade do resultado de um único experimento, relacionando-o às suas condições, em vez da frequência de resultados numa sequência de experimentos. Se desejarmos testar um enunciado probabilístico, temos de testar uma sequência experimental. Agora, porém, o enunciado da probabilidade não é uma afirmação sobre essa sequência: é um enunciado sobre propriedades das condições experimentais ou do arranjo experimental (POPPER, 2010, p. 200).

Nessa linha de ação, Popper criticou duramente

Werner Heisenberg pela defesa das relações que levam certos limites à medição de certas grandezas físicas, o que, em outras palavras, na explanação do físico José Leite Lopes, seria: “Heisenberg propõe que a teoria só introduza grandezas ou variáveis construídas a partir de dados experimentais e assim capazes de serem fisicamente observadas” (LOPES, 1993, p. 13). Essas relações, conhecidas como Relações de Heisenberg mostram, de fato, que é impossível localizar uma partícula quântica num ponto preciso do espaço com o momentum definido ou medir, simultaneamente, a energia e o tempo de sua duração. Em outras palavras, é impossível traçar a trajetória bem determinada de uma partícula quântica. Estas partículas são corpúsculo e onda, simultaneamente, diferentes das partículas mecânicas que são somente corpúsculos. Para completar, as ondas da Mecânica Quântica também são diferentes das ondas da Mecânica Clássica: essas são ondas de probabilidade de achar a partícula, ou melhor, as ondas que permitem o cálculo da realização de um estado final a partir de um estado inicial (LOPES, 1993, p. 13). Popper afirmou que as relações de Heisenberg, assim como a interpretação estatística da função de onda da Teoria Quântica, proposta por Max Born, expressavam somente uma dispersão estatística de um conjunto de dados experimentais. Esta visão, apesar de compatível com a teoria frequentista da probabilidade

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defendida por Popper, inicialmente, era diferente da posição da Escola de Copenhague, para a qual indeterminismo quântico não significaria jamais acaso ou imprecisão, mas era algo fundamental, inerente à natureza. Contudo, Popper não tinha uma ideia tão clara do indeterminismo quântico: para o filósofo, este indeterminismo seria sinônimo de utilitarismo. Acredito que o indeterminismo popperiano com relação às teorias físicas teria tomado seu maior vulto não logo de início, quando o filósofo começou a se interessar pelas interpretações dos problemas da Teoria Quântica, mas somente a partir da segunda metade da década de 50, quando ele começou a perceber a verdadeira dimensão da Mecânica Quântica. Em sua Autobiografia Intelectual, Popper alega:

A luz começou a fazer-se quando percebi a importância da interpretação estatística da teoria, devida a Born. De início, a interpretação de Born desagradou-me: a interpretação original de Schrödinger me parecia mais apropriada, quer sobre um ângulo estético, quer na condição de explicação do assunto. Ao notar, porém, que a interpretação de Schrödinger não era sustentável e que a de Born era bem sucedida, perfilhei esta última e não compreendia como alguém que aceitasse as ideias de Born podia defender a interpretação que Heisenberg atribuía às suas fórmulas de indeterminação (POPPER, 1977, p. 108).

De acordo com Popper era evidente que, se a Teoria

Quântica teria que ser, a fortiori, interpretada estatisticamente, as fórmulas de Heisenberg teriam que ser entendidas como funções de ondas ou relações de espalhamento, como queria Born. Ressalto que Born formulou a bem aceita interpretação da densidade da probabilidade da equação de Schrödinger na Mecânica Quântica (LOPES, 1993, p. 14), e esta interpretação estava em perfeita sintonia com o conjunto do pensamento popperiano, pois se tratava de um pensamento objetivo que imprimia uma quase realidade à Mecânica Quântica, ao

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contrário das visões de Heisenberg e Niels Bohr. Segundo Popper,

essa interpretação encara o princípio da incerteza como um limite imposto a nosso conhecimento; por conseguinte ela é subjetiva. A outra interpretação possível, objetiva, assevera ser inadmissível, ou incorreto, ou metafísico atribuir à partícula algo como uma ‘posição cum momentum’ ou uma ‘trajetória’ claramente definida: a partícula simplesmente não tem ‘trajetória’, mas apenas ou uma posição exata, combinada com um momento inexato, ou um momento exato, combinado com uma posição inexata (POPPER, 1974, p. 243).

Todavia, a interpretação aludida por Popper, a

frequentista de Von Mises, não resolvia totalmente uma questão-chave: saber se as relações de Heisenberg tinham significado quando aplicadas a fenômenos singulares65. Popper só reconheceu esta questão quando formulou a já mencionada interpretação das propensões. Como já foi aludido anteriormente, grosso modo, as teorias frequentista e da propensão normalmente afirmavam que se pode aplicar o conceito de probabilidade de modo cientificamente objetivo apenas a eventos ou classes de objetos, diferentemente das teorias subjetiva e lógica. Noto que, na teoria subjetiva, a probabilidade é um grau de crença e, na lógica, ela mede uma relação entre duas proposições de uma linguagem objeto; e mais ainda: tratando-se da Teoria Quântica, subjetividade não significa necessariamente falta de objetividade: às vezes, o que está em jogo, não é o grau de crença, mas sim, a falta de conhecimento do estado do sistema. Esta interpretação, em

65 A teoria frequentista de von Mises diz que se pode chegar à probabilidade de um dado atributo ocorrer em uma classe de indivíduos, por exemplo, a proporção de gatos que morrem de AIDS felina, mas não de um evento singular, ou seja, a probabilidade do gato de meu vizinho morrer de AIDS felina.

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particular, é chamada de interpretação epistêmica66. Recolocando a análise anterior, Popper propôs a interpretação probabilística da propensão, segundo a qual seria possível quantificar o grau com o qual certas condições geradoras teriam a propensão de produzir um evento que pertencesse a uma sequência cuja frequência seria determinável por essas condições geradoras. Na interpretação probabilística da propensão, diferentemente da frequentista, termos teóricos como condições e disposições são definidos a priori, apesar de o resultado depender do arranjo experimental correspondente. A probabilidade como propensão indicaria uma tendência na natureza de que determinado acontecimento ocorresse seguindo-se a determinadas causas físicas. Trata-se de uma probabilidade que é relativa ao tempo, pois à medida que o tempo no qual o evento previsto para ocorrer se aproxima, a probabilidade de sua ocorrência pode mudar, aumentando ou diminuindo a propensão do mesmo ocorrer. Assim, para Popper, “o mais importante na interpretação da propensão é que ela retira o mistério da teoria quântica, deixando na teoria, ao mesmo tempo, a probabilidade e o indeterminismo” (POPPER, 2010, p. 201). No entanto, mesmo que, na década de 30, Popper tenha assumido um papel de destaque nos meios filosóficos analíticos, principalmente devido às suas pertinentes críticas ao positivismo lógico do Círculo de Viena, infelizmente, o mesmo não ocorreu em relação aos acalorados debates sobre a interpretação da Teoria Quântica. Em sua Autobiografia

66 Na interpretação epistêmica, a negação significa literalmente que aquilo que está sendo negado não é conhecido ou não é acreditado. A interpretação epistêmica tem a vantagem de poder ser combinada muito simplesmente com a negação clássica para formalizar sentenças como “o contrário não pode ser mostrado”, onde “contrário” é a negação clássica e “que não pode ser mostrado” é a interpretação epistêmica da negação por falha. Ver: “Possibilidades Discursivas do e – um conector coringa” (MONNERAT, 2003, p. 185-204). Disponível em: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0401/v4%20n1.pdf. Último acesso em 27 de fevereiro de 2011.

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Intelectual, o filósofo admite ter ficado assaz desencorajado com o erro que cometera ao julgar precipitada e indevidamente a interpretação indeterminista da Mecânica Quântica de Heisenberg e Bohr, como confessa:

No que diz respeito à Física Quântica, senti-me assaz desencorajado por vários anos. Não conseguia esquecer o erro do meu experimento conceptual. Hoje, todavia, embora ache natural lamentar qualquer engano, penso que atribuí demasiada importância a essa falha (POPPER, 1977, p. 101-2).

Porém, Popper reavaliou nessa mesma Autobiografia

Intelectual os erros cometidos na Lógica da Pesquisa Científica e em outros textos, escritos principalmente ao longo dos anos 50, como, por exemplo, afirma: “O instrumentalismo é adotado por Bohr e Heisenberg somente para se livrarem das dificuldades especiais que a teoria quântica tem” (POPPER, 2002, p. 153). Nessa autocrítica, Popper chegou a conclusões interessantes, a saber: 1) sobre o determinismo e o indeterminismo, não haveria nada na Mecânica Quântica que depusesse contra o determinismo, pois ela seria uma teoria estatística e não-determinista67. Recordo que a equação de Schrödinger é uma equação diferencial e, portanto, uma vez resolvida, ela fornece os possíveis estados futuros e suas probabilidades. Isto pode ser chamado de determinismo quântico, que difere do determinismo clássico, produtor de certezas ao invés de probabilidades. Indo um pouco além: não haveria nada que provasse também que o determinismo tivesse uma base sólida na Física, e a teoria newtoniana, já refutada, seria a maior prova disso e 2) sobre a probabilidade,

67 Cabe observar que, para Popper, uma teoria não-determinista difere de uma teoria indeterminista. O filósofo argumentava que ser não-determinista é, por exemplo, ser diferente da teoria newtoniana cuja parametrização inicial leva ao resultado final. A seu turno, ser indeterminista era justamente o que Popper dizia que uma teoria científica não poderia ser.

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no que tange à Mecânica Quântica, esta deveria ser, tout court, física, objetiva e realista; e mais ainda: passível de provas estatísticas, aplicáveis aos casos singulares e relativas aos experimentos (POPPER, 1977, p. 101-103). A dureza desta autocrítica pode ser percebida nas palavras de Popper escritas a respeito de um encontro com o físico Bohr:

Isso me levou a cogitar da “compreensão”. Bohr afirmava, de certa maneira, que a Mecânica Quântica era apenas em parte compreensível e, mesmo assim, só através da Física clássica. Parte da compreensão era alcançada por via do clássico “modelo de partículas” e por via do clássico “modelo ondulatório”; os dois modelos eram incompatíveis e constituíam o que Bohr chamava de complementaridade. Não havia esperanças de chegar a uma compreensão mais completa ou mais direta da teoria; exigia-se “renúncia” a qualquer tentativa de compreensão mais cabal (POPPER, 1977, p. 101).

No entanto, ao olhar mais cuidadosamente, numa

perspectiva histórica, o contexto no qual Popper cometeu os erros de interpretação citados, isto é, nos anos 40-50, concluo que o desconforto de Popper expressava também algo de obscuro com relação aos aspectos político-intelectuais daquela época. Argumento que a Escola de Copenhague, por falta de teorias concorrentes fortes, tomou conta, de modo ditatorial, da inteligência que sustentava a Teoria Quântica, impondo a complementaridade como uma espécie de mandamento divino. A seu turno, nos anos 20-30, quando ainda havia opositores de calibre grosso à então emergente Teoria Quântica, em fase de consolidação (como Einstein e de Broglie, entre outros), Popper aliou-se abertamente a estes físicos, cujas interpretações realistas e deterministas se encontravam em perfeita harmonia com sua filosofia. Em 1956, provavelmente um pouco antes de perceber seus erros de interpretação com

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relação à Teoria Quântica, Popper criticou severamente os dogmas interpretativos de Bohr nas seguintes passagens:

Então, a filosofia instrumentalista fez uso de hipóteses ad hoc em vez de fornecer uma saída para as contradições que ameaçavam a teoria [quântica]. Esta filosofia tem sido usada de maneira defensiva - para resgatar a teoria existente; e o princípio da complementaridade tem (eu acredito que por esta razão) permanecido completamente estéril com relação à física. Em vinte e sete anos, esta teoria não produziu nada além de discussões filosóficas, e alguns argumentos para a confusão dos críticos (especialmente Einstein) (POPPER, 2002, p. 135).

E ainda:

Se teorias são meros instrumentos nós não precisamos descartar nenhuma teoria em particular, mesmo que nós acreditemos que nenhuma interpretação física consistente dos formalismos desta teoria em questão exista. Resumindo, podemos dizer que o instrumentalismo é incapaz de dar conta da importância da ciência pura que testa severamente até a mais remota implicação de suas teorias, pois ele [o instrumentalismo] é incapaz de dar conta do puro interesse científico no que é verdadeiro ou falso. Em contraste com a mais alta atitude crítica requisitada pela ciência pura, a atitude do instrumentalismo (como o da ciência aplicada) é complacente com o sucesso das aplicações. Logo, ele [o instrumentalismo] pode ser responsável pela recente estagnação da teoria quântica (POPPER, 2002, p. 152-155).

Finalizando, compreender o processo científico que

induziu à transformação do panorama da discussão sobre os fundamentos e a interpretação da Teoria Quântica será sempre um desafio para os filósofos e historiadores da ciência, principalmente se eles analisarem este período sob a luz da epistemologia popperiana. As preocupações com esta teoria, somadas à interpretação da Teoria das Probabilidades, acompanharam quase toda a vida político-intelectual de

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Popper e, muitas vezes, os historiadores e filósofos da ciência a tomaram como o mesmo evento: um belo fruto de sua visão científica absolutamente original, porém compatível com o discurso científico da época. Em face do que procurei mostrar anteriormente, fica claro que foram as exigências de interpretação da Teoria Quântica que levaram Popper à formulação da interpretação probabilística da propensão. Como argumentei ao longo deste capítulo, Popper foi um dos mais proeminentes protagonistas, entre os anos 30 e 50 do século XX, dos debates sobre as interpretações da Teoria Quântica. Sem dúvida, foi Popper quem legitimou estes debates como eventos de cunho científico-filosófico. Seu realismo, aliado a um grande prestígio nos meios filosóficos, contribuiu para o desenvolvimento de uma visão realista da Mecânica Quântica, mesmo que, inicialmente, Popper tenha encarado esta nova e estranha visão da Física como puro utilitarismo. Em suas próprias palavras:

Eu acredito que os físicos irão brevemente dar-se conta de que o princípio da complementaridade é ad hoc e (o que é mais importante) que sua única função é evitar críticas e prevenir discussões sobre interpretações físicas; embora a crítica e as discussões sejam urgentes e fundamentais para reformular qualquer teoria. Eles irão em breve acreditar que o instrumentalismo lhes está sendo imposto pela estrutura da física teórica contemporânea (POPPER, 2002, p. 153).

Contudo, a história mostrou e continua mostrando o

retumbante sucesso da Teoria Quântica que, num primeiro momento, fora mal interpretada por Popper. Esta interpretação equivocada lhe custou uma dolorosa autocrítica. Porém, a principal contribuição científico-filosófica genuinamente popperiana para o debate sobre a Teoria Quântica foi a Teoria das Propensões. Na busca de uma alternativa que realmente respondesse à altura as demandas da Teoria Quântica, Popper propôs a adoção de uma nova

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interpretação, em termos de propensões, para os enunciados probabilísticos. Destarte, considerando o fato de que as disputas sobre a interpretação da Teoria Quântica ainda não estão totalmente decididas, a simples existência de uma possibilidade interpretativa não deve, de modo algum, ser desprezada. Não posso também ignorar o fato de que a interpretação em termos de propensões de Popper teria sido, no mínimo, muito útil para fins heurísticos. REFERÊNCIAS LOPES, José Leite. A Estrutura Quântica da Matéria. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993. MONNERAT, Rosane Santos Mauro. Possibilidades Discursivas do e – um conector coringa. In: Linguagem em (Dis)curso, 2003, p. 185-204. Disponível em versão eletrônica no seguinte endereço: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0401/v4%20n1.pdf. Último acesso: 27 de fevereiro de 2011. NAGEL, Ernest. Principles of the Theory of Probability. Chicago: The University of Chicago Press, 1969. POPPER, Karl. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix e Edusp, 1977. _______. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Pensamento e Cultrix, 1974. _______. Three Views Concerning Human Knowledge. In: POPPER, Karl. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge, 2002, p. 130-190. _______. Truth, Rationality, and the Growth of Knowledge. In: POPPER, Karl. Conjectures and Refutations. Londres: Routledge, 2002, p. 291-338. _______. Propensões, Probabilidades e Teoria Quântica. In: MILLER, David. (org.) Popper: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio, 2011, p. 197-203.

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CAPÍTULO 11 AAPPRROOXXIIMMAAÇÇÃÃOO PPOOPPPPEERRIIAANNAA ÀÀ DDIISSTTIINNÇÇÃÃOO

EEXXPPLLIICCAAÇÇÃÃOO--CCOOMMPPRREEEENNSSÃÃOO

Gustavo Caponi

Em Miséria do Historicismo, Popper (1973, p. 145) sustentou que não havia nenhuma diferença metodológica essencial entre as ciências humanas e as ciências naturais. Ambos os conjuntos de disciplinas, dizia ele ali, obedecem a tentativas de construir e contrastar explicações causais dos fenômenos estudados em um e outro caso: sejam eles sociais ou naturais. Mas, em escritos posteriores, essa posição foi revisada, e a mesma noção de análise situacional, que inicialmente tinha sido proposta para caracterizar um mero recurso heurístico que se utilizaria na construção de supostas explicações nomológico-dedutivas da ação humana (POPPER, 1973, p. 163ss), começou a ser identificada com a noção de compreensão objetiva (POPPER, 1978, p. 25; 1974, p. 177).

Este último conceito foi introduzido por Popper (1978, p. 25) para caracterizar a operação teórica distintiva e comum a todas as ciências humanas: uma operação cuja peculiaridade consistiria em que, ao executá-la, já não pensamos a ação humana como um comportamento cuja descrição pode-se deduzir de uma conjunção de condições iniciais e enunciados nomológicos, mas a consideramos como uma resposta adequada para determinada situação problema cuja reconstrução conjetural constitui justamente aquilo que denominamos ‘compreensão’. E o que essa reconstrução nos

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mostraria é como, dada uma determinada equação entre as metas de um agente, seus valores e as informações com as quais ele conta, o percurso de ação por ele escolhido pode ser considerado como o mais indicado, o mais oportuno ou o mais conveniente e aceitável para resolver a situação-problema na qual dito o agente está inserido. COMPREENSÃO E RACIONALIDADE

Pode-se caracterizar a compreensão objetiva como obedecendo a uma estrutura silogística muito simples, cuja conclusão (C) é uma descrição da ação ou opção que queremos compreender e cujas premissas são: (A) uma descrição das supostas metas do agente e (B) uma descrição, não só das informações e das teorias, mas também das pautas axiológicas às quais obedece a sua opção. Assim, é possível representar esse tipo de raciocínio com este esquema geral:

(A) A meta do agente X é Y. (B) Considerando as teorias, informações e pautas axiológicas de X, Z é o melhor e mais aceitável dos recursos ou caminhos disponíveis para obter Y. (C) X opta por (realizar, empreender ou apelar a) Z.

Mas se o que nos interessa é, justamente, explicitar a

forma e a lógica dessa operação chamada compreensão, um esquema tão simples e claro como esse que acabamos de propor só pode nos servir para mostrar que a ideia popperiana de análise situacional parece supor algo a mais do que a mera referência às metas e pautas cognitivas ou axiológicas do agente cuja ação ou opção nós queremos compreender. E esse algo a mais, tal como o próprio Popper (2010, p. 351) apontou, não é outra coisa que esse princípio “conhecido na literatura como princípio de racionalidade” segundo o qual “os agentes

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sempre agem de maneira apropriada à situação em que se encontram”. Entende-se aqui, é claro, que os fins e as atitudes de tais agentes são os elementos definidores dessa situação (POPPER, 2010, p. 351). Ou, como explicou John Watkins (1974, p. 86):

um indivíduo está imerso em uma situação-problema objetiva; ele tem determinadas metas […] ou possivelmente uma meta única, e ele faz uma apreciação factual, que pode ser uma apreciação errônea, da sua situação problema. O princípio de racionalidade diz que ele atuará de um modo apropriado para sua[s] meta[s] e apreciação situacional.

A questão principal, entretanto, reside menos na

formulação de dito princípio que na determinação do seu estatuto epistemológico. Assim, uma possibilidade consistiria em pensá-lo como uma espécie de enunciado nomológico, entre inexato e trivial, ao qual, talvez por não contar com uma alternativa melhor ou talvez por motivo dessa mesma trivialidade, nós sempre apelamos na explicação da ação. Mas outra possibilidade diferente seria a de considerá-lo como constituindo uma referência indispensável para toda tentativa de compreender a ação. No primeiro caso, voltaríamos para a posição que Popper (1985, p. 427) já tinha esboçado naquele parágrafo de A Sociedade Aberta e seus Inimigos, onde dizia que

a maior parte das explicações históricas faz um uso tácito nem tanto de leis sociológicas e psicológicas triviais, mas do que chamamos […] a ‘lógica da situação’; quer dizer que, além das condições iniciais que descrevem os interesses, objetivos pessoais e demais fatores da situação […], essas explicações históricas supõem tacitamente, como primeira aproximação, a lei geral trivial de que as pessoas normais atuam, em geral, de forma mais ou menos racional.

Assim, não só poderíamos concluir que, para Popper, a

compreensão não é mais do que um tipo de explicação

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nomológica, mas também poderíamos identificar seu princípio de racionalidade com aquele enunciado legaliforme que, segundo Churchland (1970), está implícito nas nossas explicações causais da ação. Todavia, e embora o próprio Popper (2010, p. 355-6), por fim, parecesse inclinado a optar por esse modo de ver as coisas, seus escritos também nos dão elementos suficientes para tentarmos esboçar e propor aquela outra maneira de entender o “princípio de agir de maneira adequada à situação” (POPPER, 2010, p. 353) à qual aludi acima: aquela maneira de pensá-lo em que o consideramos não como um mero recurso para a explicação da ação, mas justamente como um princípio metodológico constitutivo e definidor dessa outra operação chamada compreensão. Quer dizer: considerando-o como se esse princípio fosse aquilo que propõe e define a forma de toda indagação que, com relação ao sentido da ação, caiba colocar e desenvolver.

Trata-se, em definitivo, de atender à possibilidade de reconhecer que esse enunciado constitui uma “genuína máxima reguladora da pesquisa social” (FARR, 1983, p. 172), cujo lugar na compreensão da ação humana poderia ser pensado como análogo ao lugar que, segundo o próprio Popper, o princípio de causalidade ocupa na explicação dos fenômenos físicos, e quando digo isso estou aludindo ao tratamento proposto para esse último princípio na Lógica da Pesquisa Científica.

REGRAS METODOLÓGICAS

Na Lógica da Pesquisa Científica, na apresentação do modelo nomológico-dedutivo de explicação, Popper (1980, p. 59) afirma que, no contexto de uma reflexão metodológica como a que ali está sendo desenvolvida, não é necessário introduzir nenhuma afirmação relativa à aplicabilidade universal desse modelo de explicação, tal como o seria um princípio de

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causalidade universal, entendido seja como um enunciado empírico, seja como um princípio relativo à constituição da própria experiência. Sob uma perspectiva metodológica, diz, com efeito, Popper (1980, p. 59), basta aceitar a decisão ou cláusula metodológica de que “não abandonaremos a busca de leis universais e de um sistema teórico coerente, nem cessaremos as nossas tentativas de explicar causalmente todo tipo de acontecimento que possamos descrever”.

Quer dizer, a metodologia não somente não precisa apelar para uma frágil ou impossível justificação empírica do princípio de causalidade, como a proposta por Mill: ela tampouco requer uma fundamentação metafísica desse princípio. E quando digo isso, não só penso em uma clássica ontologia determinista, ou simplesmente causalista, mas também aludo, em geral, a qualquer alternativa de apresentar dito princípio, em virtude de argumentos transcendentais, como se fosse constitutivo de toda experiência possível, seja esse o caso de Kant, e sua segunda analogia da experiência, ou o caso do primeiro Wittgenstein (1987, 6.362), para quem: “o que se pode descrever pode ocorrer também, e o que exclui a lei de causalidade é coisa que tampouco pode ser descrita”.

Trata-se, em resumo, tanto de prescindir de qualquer tentativa de prometer o mundo às nossas hipóteses causais (quer dizer: de garantir a priori a sua inteligibilidade), como de evitar toda pretendida justificação dos eventuais, duvidosos e frágeis êxitos obtidos nos nossos esforços por explicar e predizer os fenômenos em termos nomológico-dedutivos. Mas, se tais recursos são evitados, não é tanto porque sejam considerados problemáticos, e inclusive ilegítimos, mas por considerar-se que, no contexto de uma reflexão metodológica, nós só necessitamos de uma norma que nos conduza a procurar uma explicação causal aceitável para todo fenômeno físico registrado ou observado. Desse modo, torpemente formulada, essa regra metodológica seria mais ou menos

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assim: Sendo a descrição (C) de um fenômeno X, deve-se formular e testar um conjunto de hipóteses tal que contenha: [1] a descrição (B) de outro fenômeno Y, e [2] a formulação de um enunciado nomológico (A) tal que este estabeleça uma conexão causal entre X e Y.

Entretanto, muito mais importante do que obter uma formulação mais ou menos elegante e precisa dessa máxima reguladora da pesquisa física, é reconhecer que ela, longe de pretender nos oferecer um guia para resolver problemas físicos, o que faz é instituir a forma e o princípio gerador de tais problemas. Ela nos dá, podemos dizer, a pauta do que se espera que saibamos: mas nada nos diz sobre como sabê-lo. Ela nos propõe, em definitivo, um modo de interrogação: aquele que é próprio e definidor da Física e de outras ciências naturais, e em cujo contexto, perante um fato qualquer, o pesquisador haverá sempre de se perguntar sob a mediação de que leis, que causas, produziu-se esse fato. E a resposta que se espera para essa pergunta é o que se considerará uma explicação do fenômeno constatado. O PRINCÍPIO DE RACIONALIDADE COMO REGRA METODOLÓGICA

É claro, de todo modo, que nem sempre interrogamos a realidade em termos causais: nem sempre pedimos explicações nomológicas dos fenômenos. Em algumas ocasiões, indagamos o mundo a partir de outra perspectiva, e há alguns fenômenos que não consideramos como efeitos resultantes de uma conjunção de leis naturais e condições iniciais. É o que ocorre nas ciências humanas. Ali as ações, que são os fenômenos a serem explicados, são consideradas, conforme vimos acima, como respostas ou soluções para situações-problema que devem ser elucidadas. Nesse caso, já não se atende a essa máxima reguladora, ou decisão metodológica, que

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nos exige que os fenômenos em estudo sejam explicados nomológico-causalmente: ali se segue o imperativo dessa outra decisão metodológica que muito bem poderíamos chamar princípio de racionalidade, ou, inclusive, princípio da adequação das ações.

Tal princípio poderia ser formulado da seguinte forma: Sendo a descrição (C) de um percurso de ação Z escolhido por um agente X, deve-se formular e contrastar um conjunto de hipótese tal que contenha: [1] a atribuição (A) de uma meta E a X, e [2] a enumeração (B) de um conjunto de informações, teorias, preferências e pautas axiológicas, também imputáveis a X, sob cuja consideração Z poderia ser pensado como a melhor, ou mais correta, alternativa disponível para conseguir Y. É mister não perder de vista, entretanto, que essa

versão metodológica do princípio de racionalidade já não cumpre nem a função daquele L1 formulado por Churchland, nem a função daquela grosseira e inexata aproximação ao real de que Popper nos falava. O papel dessa regra metodológica não é o de completar a explicação intencional explicitando uma premissa tácita que permitiria predizer uma ação em virtude de hipóteses sobre metas, crenças e preferências: seu papel é o de nos dizer qual deve ser a forma de tal explicação intencional. Assim, longe de nos ajudar a compreender, o princípio de racionalidade nos diz em que consiste a compreensão e estipula o que devemos saber para poder afirmar que compreendemos um determinado curso de ação ou uma determinada opção.

Por isso, se essa máxima reguladora da ação social não serve como complemento do modelo de explicação teleológica proposto por Von Wright (1980a; 1980b), é simplesmente porque a sua função é justamente a de nos mostrar a forma e sancionar a suficiência desse modelo, indicando-nos que

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compreender não é outra coisa que conhecer as pautas cognitivas e axiológicas sob cuja consideração uma ação pode ser pensada como adequada a um fim. É nesse sentido que as analogias entre ambas as formulações metodológicas dos princípios de causalidade e de racionalidade são óbvias e bem-vindas.

Entendido como regra metodológica, o princípio de causalidade define a operação epistêmica requerida para tornar inteligível um fenômeno físico, e, desse modo, essa regra marca o rumo à Física e às outras ciências naturais. Enquanto isso, ao ser entendido como regra metodológica, o princípio de racionalidade faz o mesmo com a operação requerida para tornar inteligível uma ação, e, desse modo, ele marca o rumo às ciências humanas. O princípio de causalidade, poderíamos assim dizer, nos diz o que é explicar causalmente, e o princípio de racionalidade nos diz o que é compreender. Mas nenhuma dessas regras, insisto, constitui um recurso para tais operações: nem o princípio de causalidade reforça a explicação causal, nem o princípio de racionalidade reforça a compreensão.

Notemos, além disso, como a ambas as regras se seguem, de um modo tácito, critérios para avaliar a suficiência dos elementos de julgamento com que contamos para explicar os fenômenos físicos e para compreender a ação humana. Assim, enquanto no primeiro caso o princípio de causalidade nos indica que aquilo que aduzimos para explicar um fenômeno deveria ser suficiente para predizê-lo, no referente ao segundo caso o princípio de racionalidade parece nos dizer que: se o curso de ação adotado por determinado agente não se mostra adequado aos objetivos e atitudes que hipoteticamente lhe imputamos, então esse último conjunto de hipóteses deve ser retificado ou ampliado com informação adicional. E isso significa que, se compreendêssemos cabalmente uma ação, nós deveríamos ser capazes de antecipá-la, sendo que a dificuldade para obter esse feito pode ser considerada como índice de uma falta, ou insuficiência, de

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compreensão. Por isso, e como o próprio Popper (2010, p. 354-5) o explica,

sempre que procuramos compreender um ato, inclusive de um louco, usamos o princípio de racionalidade até o limite. Tentamos explicar os atos do louco, tanto quanto possível, por seus objetivos (que podem ser monomaníacos) e pelas informações com base nas quais ele age, isto é, por suas convicções (que podem ser obsessões, ou seja, teorias falsas, sustentadas com tamanha tenacidade que se tornam praticamente incorrigíveis). Ao explicar desse modo as ações de um louco, nós as explicamos em termos de nosso conhecimento mais amplo de uma situação problemática, a qual inclui a visão mais estreita que ele tem de sua situação; compreender seus atos significa ver a adequação deles segundo sua visão – loucamente equivocada – da situação problemática.

No estudo da ação humana, desistir da compreensão

está tão fora de cogitação, assim como desistir de procurar causas na Física ou na Fisiologia. Contudo, abundar aqui em analogias pode ser menos proveitoso do que chamar a atenção para as diferenças entre as operações de explicar e compreender que os princípios de racionalidade e de causalidade permitem estabelecer. Assim, do mesmo modo que já se disse que o princípio de racionalidade não deve ser considerado como um tipo peculiar, ou precário, de lei científica, também se deve insistir que a compreensão não deve ser entendida como um tipo peculiar, talvez parcial, de explicação causal. Compreender não é determinar as causas de um comportamento, ou mesmo os motivos ou estímulos que o desencadearam. As metas, as teorias, as informações e as pautas axiológicas, sob cuja consideração uma ação pode ser julgada como adequada a uma situação, não são a causa eficiente dessa ação. A compressão não exibe uma conexão causal: exibe uma conexão teleológica, uma conexão de sentido. E era a isso que eu aludia quando me referia a esses contextos onde a

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experiência já não é pensada em termos de relações nomologicamente estabelecidas de causa e efeito, e sim em virtude da dupla solução-problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário entender, por fim, que esse deslocamento no modo de interrogar a experiência tampouco deve ser pensado em termos de auxílio ou de complemento. A compreensão não está chamada a completar, a socorrer, ou mesmo a suplantar a explicação causal quando esta enfrenta fenômenos muito complexos ou muito especiais: ambas as operações respondem a interesses cognitivos diferentes, a modos distintos de interrogar os fenômenos que ficam plasmados em duas regras metodológicas também diferentes. A compressão não pode responder às perguntas que pedem por uma explicação causal, e as explicações causais não satisfazem nossos esforços por compreender. Quando deixamos de considerar um comportamento em termos puramente fisiológicos, quando deixamos de considerá-lo como um movimento ou uma reação passível de explicação, e começamos a entendê-lo como uma ação digna de compreensão, não é porque careçamos de recursos para responder às perguntas do fisiologista, mas porque as próprias perguntas mudaram.

O que queremos saber, o que ignoramos, já não é o mesmo. E o que mudou é, antes de tudo, a própria forma da nossa interrogação: ela passou a ser guiada por outra regra metodológica. Eis aí, pois, a primeira e fundamental diferença entre compreensão e explicação causal que esse outro enfoque popperiano da questão nos permite visualizar e destacar.

Por fim, e retornando agora ao jogo de analogias entre os princípios de racionalidade e de causalidade, no qual antes me demorei, quero também insistir no fato de que as duas regras

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permitem caracterizar e distinguir as operações de explicar causalmente e de compreender sem apelar para considerações relativas à constituição da própria experiência. Sendo enunciados puramente metodológicos, essas máximas reguladoras da pesquisa definem dois procedimentos cognitivos diferentes sem pressupor nada com relação aos fenômenos aos quais cada um deles aponta. Nem o princípio de causalidade promete uma natureza legaliforme e, portanto, explicável, nem o princípio de racionalidade promete uma humanidade racional e, portanto, compreensível. REFERÊNCIAS CHURCHLAND, Paul. “The logical character of action-explanations”. The Philosophical Review 79: 214-236, 1970. FARR, James. “Popper’s hermeneutics”. Philosophy of Social Sciences 13: 157-176, 1983. POPPER, Karl. La miseria del historicismo. Madrid: Alianza, 1973. _______. Conocimiento objetivo. Madrid: Tecnos, 1974. _______. La lógica de las ciencias sociales. México: Grijalbo, 1978. _______. La lógica de la investigación científica. Madrid: Tecnos, 1980. _______. La sociedad abierta y sus enemigos, Vol. II. Buenos Aires: Orbis, 1985. _______. “O princípio de racionalidade”. In: MILLER, David (ed.). Popper: textos escolhidos [p. 349-358]. São Paulo: Unesp, 2010. VON WRIGHT, Georg. Explicación y comprensión. Madrid: Alianza, 1980. _______. “El determinismo y el estudio del hombre” [p.183-204]. In: Ensayos sobre explicación y comprensión. Madrid: Alianza, 1980b.

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WATKINS, John. “Racionalidad imperfecta”. In: La explicación en las ciencias de la conducta [p. 80-98]. Madrid: Alianza, 1974. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus. Madrid: Alianza, 1987.

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CAPÍTULO 12 AA FFIILLOOSSOOFFIIAA DDEE KKAARRLL PPOOPPPPEERR EE SSUUAASS IIMMPPLLIICCAAÇÇÕÕEESS

NNOO EENNSSIINNOO DDAA CCIIÊÊNNCCIIAA6688

Fernando Lang da Silveira

O filósofo da ciência Karl Popper repensou algumas questões importantes relativas ao conhecimento científico. Suas ideias são revolucionárias e não podem permanecer desconhecidas para todos aqueles que fazem ou ensinam ciências. Ele debateu as ideias com grandes pensadores e cientistas do século XX, em especial Einstein e Schrödinger foram seus interlocutores.

O presente capítulo pretende apresentar uma parte do pensamento de Popper e discutir algumas implicações para o ensino de ciências. A LÓGICA DEDUTIVA

Segundo Popper, a lógica dedutiva desempenha papel de importância capital dentro do método da ciência. Ela é:

a) transmissora da verdade; b) retransmissora da falsidade; e c) não retransmissora da verdade.

68 Uma primeira publicação deste trabalho aparece em Cardenos Catarinenses de Estudo de Física, Florianópolis, agosto de 1989, p. 148-162.

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Ela transmite a verdade das premissas para a

conclusão, ou seja, sendo verdadeiras as premissas de um raciocínio dedutivo, será necessariamente verdadeira a conclusão. Ela retransmite a falsidade da conclusão para as premissas, ou seja, se a conclusão de um raciocínio dedutivo for falsa, então uma ou mais premissas são falsas. Ela não retransmite a verdade da conclusão para as premissas, ou seja, sendo a conclusão de um raciocínio dedutivo verdadeira, poderão ser falsas uma ou mais premissas.

Essas três propriedades da lógica dedutiva podem ser exemplificadas através de um silogismo válido:

a) premissa maior: todos os A são B; b) premissa menor: X é A; e c) conclusão: X é B.

A transmissão da verdade das premissas para a

conclusão ocorre no seguinte exemplo no qual as premissas são verdadeiras:

a) premissa maior: todos os metais são condutores elétricos; b) premissa menor: o cobre é metal; e c) conclusão: o cobre é condutor elétrico.

A retransmissão da falsidade da conclusão para as

premissas ocorre no seguinte exemplo onde a conclusão é falsa porque a premissa menor é falsa:

a) premissa maior: todos os metais são condutores elétricos; b) premissa menor: o vidro é metal; e c) conclusão: o vidro é condutor elétrico.

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A não retransmissão da verdade da conclusão para as

premissas ocorre no seguinte exemplo em que a premissa maior e a conclusão são verdadeiras e a premissa menor é falsa:

a) premissa maior: todos os metais são condutores elétricos; b) premissa menor: o carvão é metal; e c) conclusão: o carvão é condutor elétrico.

A REFUTAÇÃO DA LÓGICA INDUTIVA

Um dos problemas da filosofia da ciência em que Popper trabalhou é o chamado “problema da indução”. Acreditavam os indutivistas ser possível, a partir dos fatos, obter leis, as teorias científicas. Dado um conjunto de fatos poder-se-ia, utilizando a lógica indutiva, chegar às leis universais, às teorias. Como Popper explica,

é comum dizer-se ‘indutiva’ uma inferência, caso ela conduza de enunciados singulares (por vezes também denominados enunciados particulares), tais como descrições de resultados de observações ou experimentos, para enunciados universais, tais como hipóteses ou teorias. [...] Ora, está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos. A questão de saber se as interferências indutivas se justificam e em que condições é conhecida como o problema da indução (POPPER, 1985, p. 27-28).

Outra maneira de se formular o problema da indução é

indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras. Pode-se

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justificar a alegação de que uma teoria é verdadeira a partir de resultados experimentais ou observações? A resposta de Popper é negativa. Não importa quantas asserções de teste (resultados experimentais ou de observações) se tenha, não é possível justificar a verdade da teoria porque de uma teoria falsa pode-se obter conclusões verdadeiras (não retransmissão da verdade das conclusões para as premissas).

Outra razão contra a existência de uma lógica indutiva está em que um conjunto de fatos sempre é compatível com mais de uma lei. Por exemplo, se todos os cisnes até hoje observados são brancos, algumas possíveis leis compatíveis são as seguintes:

a) todos os cisnes são brancos; ou b) todos os cisnes são brancos ou negros; ou c) todos os cisnes são brancos ou vermelhos.

Tendo refutado o método indutivo, sobre o qual

pretensamente estavam apoiadas as ciências empíricas (física, química, biológica, etc.), Popper parte então para outro problema: qual é o método das ciências empíricas?

MÉTODO HIPOTÉTICO-DEDUTIVO Não é tarefa da lógica do conhecimento a

“reconstrução racional” das fases que conduziram o cientista à descoberta da teoria científica (POPPER, 1985, p. 32). Não há caminho estritamente lógico que leve à formulação de novas teorias e, como veremos mais adiante, a história da ciência mostra com frequência o surgimento de novas teorias inspiradas não em fatos novos, mas em teorias metafísicas.

Para Popper a tarefa da epistemologia ou da filosofia da ciência é reconstruir racionalmente “as provas posteriores pelas quais se descobriu que a inspiração era uma descoberta

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ou veio a ser reconhecida como conhecimento” (POPPER, 1985, p. 32). Em outras palavras, a epistemologia não deve se preocupar em reconstruir a inspiração do cientista e não é importante para ela em que condições o cientista formulou a teoria; importa, sim, discutir como a teoria é testada.

O método da ciência se caracteriza pela crítica das teorias e pode ser denominado método hipotético-dedutivo. Dada uma teoria, é possível, com auxílio de condições iniciais ou de contorno e com auxílio da lógica dedutiva, derivar conclusões. Essas conclusões são confrontadas com os fatos. Exemplificando, consideremos a teoria sobre a queda dos corpos que diz que a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso, ou seja:

a) hipótese: a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso; b) condições iniciais: o tijolo é mais pesado do que uma pedra pequena; ambos são abandonados simultaneamente a 2 m acima do solo; c) conclusão: o tijolo atingirá o solo antes da pedra.

O confronto da conclusão com os fatos pode levar a

dois resultados: a conclusão é incompatível ou compatível com os fatos. No primeiro caso, como a lógica dedutiva é retransmissora da falsidade, no mínimo uma das premissas é falsa; se as condições iniciais forem verdadeiras, então a teoria foi falseada. No segundo caso, como a lógica dedutiva é não retransmissora da verdade, não é necessariamente verdadeira a teoria. Na terminologia de Popper, a teoria foi corroborada, passou no teste empírico.

Sempre haverá a possibilidade de, no futuro, derivar da teoria uma consequência que seja incompatível com os fatos e, portanto, teorias científicas são sempre conjecturas que poderão ser refutadas. Não há forma de se provar a verdade

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de uma teoria científica, mas às vezes é possível descobrir que uma teoria é falsa.

Os indutivistas sempre enfatizaram a necessidade de se verificar as teorias através das suas consequências. No pensamento indutivista, o que importa é a verificação, pois, através dela poder-se-ia saber se uma teoria é verdadeira ou pelo menos provável. Para Popper, as verificações somente são relevantes na medida em que constituem os resultados de tentativas de refutação da teoria, casos verificadores são facilmente encontráveis para quase todas as teorias. Exemplificando, mais uma vez, com a teoria de que a velocidade de queda de um corpo é proporcional ao seu peso: é possível encontrar uma imensidade de casos verificadores constituídos por pares de corpos do tipo pedra e pena. Outro bom exemplo de alto grau de verificação pode ser encontrado na teoria astrológica, pois qualquer astrólogo é capaz de apresentar um número grande de previsões realizadas. As severas tentativas de refutar uma teoria e que resultaram em corroborações são as que realmente importam.

A história da ciência mostra teorias que, durante um certo período de tempo, foram corroboradas e que acabaram sendo refutadas. O exemplo mais impressionante é o da mecânica newtoniana, que durante mais de duzentos anos foi corroborada espetacularmente. Aliás, algumas corroborações da mecânica newtoniana mostram que a “lógica indutiva” é insustentável. A mecânica newtoniana corrigiu os fatos dos quais os indutivistas acreditam ter sido derivada a lei da gravitação universal, ou seja, frequentemente se afirma que a lei da gravitação universal teria sido induzida das leis de Kepler. Isso não é possível logicamente, pois a mecânica newtoniana rigorosamente contradiz aquelas leis, afirmando, por exemplo, que as órbitas planetárias não são exatamente elípticas, mas aproximadamente elípticas. Nesse caso, a corroboração é espetacular, pois a teoria de Newton prevê

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perturbações nas órbitas planetárias que posteriormente foram observadas. Ora, se existisse a “lógica indutiva”, o mínimo que deveria ocorrer nas “induções” das leis a partir dos fatos é que as leis não contraditassem os fatos que as geraram.

Outras corroborações impressionantes da mecânica newtoniana são as descobertas dos dois últimos planetas do sistema solar (Netuno e Plutão). Primeiramente, foi observado que o planeta Urano, o último planeta conhecido, violava a órbita prevista a partir das leis de Newton. Essa violação foi interpretada não como uma refutação das leis de Newton, mas como resultado da ação de um planeta até ali desconhecido sobre a órbita de Urano. A hipótese da existência do planeta Netuno possibilitou, inclusive, prever teoricamente a sua posição; os astrônomos posteriormente conseguiram observá-lo. O mesmo fato se repete em relação a Netuno, que aparentemente não cumpria as leis da mecânica. Mais uma vez, salva-se a teoria de Newton admitindo-se a existência de uma perturbação provocada por um planeta ainda desconhecido, mais uma vez os astrônomos conseguiram observar a existência do novo planeta, Plutão.

A descoberta dos dois últimos planetas do sistema solar exemplifica um outro aspecto relativo ao método científico: a possibilidade de se evitar o falseamento de uma teoria a partir de uma hipótese suplementar. Se a consequência de uma teoria é contraditada pelos fatos, logicamente é possível retransmitir a falsidade às condições iniciais ou de contorno ao invés de retransmiti-la à teoria. Foi isso que efetivamente ocorreu quando da descoberta dos dois últimos planetas. Entretanto, essa hipótese, que salva a teoria, é testável de forma independente. Hipóteses suplementares, que não sejam testáveis independentemente, isto é, hipóteses ad-hoc (hipóteses a favor das quais os únicos fatos são aqueles que elas pretendem explicar) devem ser evitadas.

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Quando uma teoria é refutada, como finalmente o foi a mecânica newtoniana, a nova teoria deverá ser capaz de explicar todos aqueles fatos corroboradores da teoria superada e os novos fatos que a refutaram. A antiga teoria pode, então, sobreviver como um caso limite da nova teoria. Historicamente, é o que aconteceu com as teorias de Galileu e Kepler, que são casos limites da teoria de Newton; esta, por sua vez, é um caso limite da teoria de Einstein.

Para concluir esta seção, são citados alguns trechos da palestra que Popper proferiu em 1948, intitulada “O Balde e o Holofote: Duas Teorias do Conhecimento”, que ajudam a compreender as questões até aqui apresentadas.

Não há estrada, real ou como seja, que leve da necessidade de um “dado” conjunto de fatos específicos a qualquer lei universal. O que chamamos “leis” são hipóteses ou conjecturas que sempre fazem parte de um sistema de teorias mais amplo (de fato, de um horizonte inteiro de expectativas) e que, portanto, não podem ser testadas em isolamento. O progresso da ciência consiste de experiências, de eliminação de erros, e de mais tentativas guiadas pela experiência adquirida no decorrer das tentativas e dos erros anteriores. Nenhuma teoria em particular pode, jamais, ser considerada absolutamente certa: cada teoria pode tornar-se problemática, não importa quão bem corroborada possa parecer agora. Nenhuma teoria científica é sacrossanta ou fora de crítica (POPPER, 1975, p. 330).

Popper continua afirmando que esse fato foi esquecido

principalmente no século XIX quando, devido às corroborações espetaculares das teorias mecânicas, elas vieram a ser tomadas como verdadeiras e

chegamos agora a ver que é tarefa do cientista submeter sua teoria a testes sempre novos e que nenhuma teoria deve ser declarada definitiva. Realizam-se os testes tomando a teoria a ser testada e combinando-a com todos os tipos possíveis de condições iniciais, assim como outras teorias, e comparando

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então com a realidade as predições resultantes. Se isto leva a expectativas decepcionantes, a refutações, então teremos que reconstruir nossa teoria (POPPER, 1975, p. 331).

A única forma do conhecimento científico avançar é

através do falseamento das teorias. “É verificando a falsidade de nossas suposições que de fato entramos em contato com a ‘realidade’” (POPPER, 1975, p. 331). Entretanto, sempre é possível salvar a teoria da refutação através de hipóteses suplementares, mas esse não é o caminho do progresso.

A reação adequada ao falseamento é buscar novas teorias que pareçam ter a possibilidade de oferecer-nos melhor apreensão dos fatos. A ciência não está interessada em teorias que pareçam ter a probabilidade de oferecer-nos melhor apreensão dos fatos. A ciência não está interessada em ter a última palavra, se isso significar o fechamento de nossas mentes ao falseamento das experiências, mas sim em aprender com as nossas experiências; isto é, em aprender com os nossos enganos (POPPER, 1975, p. 331).

Finalmente, Popper conclui dizendo que os princípios

do progresso científico são muito simples:

Requerem que abandonemos a ideia antiga de que podemos atingir a certeza (ou mesmo um alto grau de ‘probabilidade’ no sentido do cálculo de probabilidade) com as proposições ou da ciência (ideia que deriva da associação da ciência com a magia e do cientista com o mago): o alvo do cientista não é descobrir uma certeza absoluta, mas descobrir teorias cada vez melhores (ou inventar holofotes cada vez mais potentes), capazes de ser submetidas a testes cada vez mais severos (e conduzindo-nos com isto sempre a novas experiências, que iluminam para nós). Mas isto significa que essas teorias devem ser mostradas falsas: é pela verificação de sua falsidade que a ciência progride (POPPER, 1975, p. 332).

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O PROBLEMA DA DEMARCAÇÃO Outro problema da filosofia da ciência com que Popper

se preocupou é o chamado “problema da demarcação”, ou, como ele mesmo formula, “como é que se pode distinguir as teorias das ciências empíricas das especulações pseudocientíficas, não científicas ou metafísicas?” (POPPER, 1987, p. 177).

Para os indutivistas, a demarcação entre ciência empírica e pseudociência, não ciência e metafísica era realizada pelo “método indutivo”. As teorias científicas eram obtidas a partir dos fatos e podiam por eles ser verificadas. Além disso, os positivistas (indutivistas) tomaram o termo metafísico como pejorativo: as ideias metafísicas não tinham qualquer importância para a ciência, pois, na sua opinião, careciam de sentido.

Para Popper, ao contrário, o critério de demarcação é dado pela refutabilidade ou testabilidade. As teorias das ciências empíricas podem em princípio ser refutadas pelos fatos; porém, as teorias pseudocientíficas, não científicas ou metafísicas não são testáveis, ou seja, não há fatos que as possam refutar.

Essa é uma concepção de ciência que considera a abordagem crítica sua característica mais importante. Para avaliar uma teoria o cientista deve indagar se pode ser criticada – se se expõe a críticas de todos os tipos e, em caso afirmativo, se resiste a essas críticas (POPPER, 1982, p. 284).

A irrefutabilidade das teorias não é uma vantagem e

não pode ser confundida com a verdade. É possível se ter duas teorias contrárias, o que implica que ambas não podem ser verdadeiras, apesar de ambas serem irrefutáveis (um exemplo de teorias contrárias e irrefutáveis é o determinismo e o indeterminismo), por isso não é uma atitude científica a formulação de uma teoria irrefutável, assim como também não

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é uma atitude científica o salvamento da teoria através de hipótese ad hoc. Entretanto, Popper nota a existência de teorias, tidas como científicas, que são capazes de dar conta de qualquer fato. Não importando qual seja o fato em pauta, ele sempre poderá ser tomado como uma “verificação” da teoria. Entre essas teorias pseudocientíficas, ele cita a psicanálise de Freud, a psicologia individual de Adler e o materialismo histórico de Marx. Neste sentido, afirma Popper,

um marxista não era capaz de olhar para um jornal sem encontrar em todas as páginas, desde os artigos de fundo até os anúncios, provas que constituíam verificações da luta de classes; e encontra-las-ia sempre também (e em especial) naquilo que o jornal não dizia. E um psicanalista, fosse ele freudiano ou adleriano, diria sem dúvida que todos os dias, ou até de hora a hora, estava a ver as suas teorias verificadas por observações clínicas (POPPER, 1987, p. 180).

O método de procurar verificações para as teorias,

utilizado pelos freudianos, adlerianos, marxistas e astrólogos, além de ser acrítico, promovia uma atitude acrítica nos leitores e “ameaçava assim destruir a atitude de racionalidade, de argumentação crítica” (POPPER, 1987, p. 181).

Popper não considera a metafísica necessariamente destituída de sentido como faziam os positivistas: com efeito, afirma, “é impossível negar que, a par de ideias metafísicas que dificultam o avanço da ciência, têm surgido outras – tais como as relativas ao atomismo especulativo – que o favoreceram” (POPPER, 1985, p. 40).

Um exemplo importante de como a metafísica inspira as teorias científicas é a revolução copernicana. Copérnico teve a ideia de colocar o Sol como centro, em vez da Terra, não devido a novas observações astronômicas, mas sim devido a uma interpretação de fatos à luz de concepções semi-religiosas, neoplatônicas. Para os platônicos e neoplatônicos, o

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Sol era o astro mais importante e por isso não poderia girar em torno da Terra, esta é que deveria girar em torno do Sol.

Kepler foi um seguidor de Copérnico e, assim como Platão, estava imerso em ensinamentos astrológicos. Kepler procurava descobrir a lei aritmética subjacente à estrutura do mundo (misticismo numerológico dos pitagóricos), que forneceria, entre outras coisas, os raios das órbitas circulares planetárias. Ele nunca encontrou o que procurava, não descobriu, nos dados de Tycho Brahe, a desejada confirmação da crença que Marte girava em torno do Sol em movimento circular uniforme. Os dados de Tycho Brahe levaram-no a refutar a hipótese de órbita circular. Depois de diversas tentativas, adotou a hipótese de órbita elíptica e pôde então notar que as observações astronômicas podiam se ajustar a essa nova hipótese somente se admitisse que Marte não se deslocava com velocidade constante. “As observações astronômicas não provaram que a hipótese elíptica estava correta, mas podiam ser explicadas por essa hipótese – ajustavam-se a ela” (POPPER, 1982, p. 215). Apesar da inspiração metafísica, Kepler foi um crítico. Aceitou a refutação da sua teoria pelos fatos e formulou uma nova teoria.

A ideia metafísica que talvez tenha motivado o maior número de descobertas científicas foi a da “pedra filosofal” (existe uma substância capaz de transformar metais vis em ouro). Esses e outros exemplos da história de ciência mostram que a metafísica pode servir como ponto de partida para as teorias científicas e que, portanto, teorias metafísicas não são necessariamente sem sentido.

Para os positivistas, era muito importante justificar de onde o cientista formulou a teoria e a única fonte válida para a formulação da teoria estava nos fatos. Para Popper, a questão epistemológica importante não tem a ver com as fontes da teoria (todas as fontes são válidas e bem-vindas), mas tem a

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ver com a testagem da teoria. “Não há ‘fontes últimas’ do conhecimento. Toda fonte, todas as sugestões são bem-vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exame crítico” (POPPER, 1982, p. 55). A TEORIA DO CONHECIMENTO

Popper denomina de “teoria do balde mental” a concepção de que nosso conhecimento consiste em percepções acumuladas ou em percepções assimiladas, separadas e classificadas. “O ponto de partida desta teoria é a doutrina persuasiva de que, antes de podermos conhecer ou dizer qualquer coisa acerca do mundo, devemos ter tido percepções – experiências de sentido” (POPPER, 1975, p. 313).

Os empiristas ingênuos aconselham-nos a interferir o mínimo possível no processo de acumular conhecimento. Segundo eles, o conhecimento verdadeiro está livre de preconceitos, ele é constituído da experiência pura e simples.

Popper contesta a “teoria do balde”, notando que o que tem valor para o conhecimento é mais do que a simples percepção, é a observação. Esta é um processo ativo, é uma percepção planejada e organizada. Qualquer observação é precedida de um problema, uma hipótese que a orienta. As observações são sempre seletivas e pressupõem um princípio de seleção. Não é possível observar tudo, aquilo que se observa já é antecedido por algo teórico. Assim, todas as observações estão impregnadas de teoria.

Em cada instante de nosso desenvolvimento pré-científico ou científico estamos vivendo no centro do que costumo chamar um ‘horizonte de expectativas’. Com isto, quero significar a soma total de nossas expectativas, sejam subconscientes, ou talvez mesmo explicitamente proferidas em alguma linguagem (POPPER, 1975, p. 317).

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A observação é importante, pois em função dela poderemos alterar a teoria que a originou. Nesse sentido, é possível sustentar que o novo conhecimento (nova teoria) é precedido pela observação.

A “teoria do balde” considera que as hipóteses surgem da observação por generalização, associação, ou classificação.

Em contraste, podemos agora dizer que a hipótese (ou teoria expectativa, ou seja lá o que se chame) precede a observação, ainda que uma observação que refute certa hipótese possa estimular uma nova hipótese (e, portanto, uma temporalmente posterior) (POPPER, 1975, p. 318).

A hipótese é um guia, que “ilumina” as observações e

conduz a novos resultados observacionais (“teoria do holofote”). A ciência nunca está livre de suposições, o que caracteriza a ciência é a possibilidade de se criticar as suposições.

A “teoria do holofote” pode ser representada pelo esquema abaixo:

P1 →TS →EE →P2

P1 é o problema de partida; TS é a tentativa de solução,

é a hipótese ou teoria que conjecturamos para resolver o problema; EE (eliminação do erro) consiste em um rigoroso exame crítico da teoria; P2 é o problema que emerge da primeira tentativa crítica da solução.

A teoria do conhecimento de Popper é evolucionária. O conhecimento evolui por um processo de tentativa e eliminação do erro. A sua concepção é uma extensão do darwinismo ao problema do conhecimento. As teorias “mais aptas à sobrevivência” passam pelo crivo da crítica racional e empírica, entretanto, a sobrevivência passada não garante a

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sobrevivência no futuro, pois o exame crítico sempre poderá ser aprofundado, levando à refutação.

Ele estende a sua teoria do conhecimento além do conhecimento científico, pois acredita que todo o conhecimento surge da necessidade de solucionar problemas e é sempre precedido por uma expectativa, hipótese ou teoria. Os seres vivos já trazem teorias inatas, talvez determinadas geneticamente. A aprendizagem por tentativa e erro é confundida com a aprendizagem por repetição (indução). AS IDEIAS DE POPPER E O ENSINO DA CIÊNCIA

A versão indutivista (empirista) da ciência continua dominante entre os professores e cientistas. Ela pode ser encontrada facilmente nos livros-texto, como exemplificam as citações seguintes: “As leis da física são generalizações de observações e de resultados experimentais” (TIPLER, 1978, p. 3); “Tudo que sabemos a respeito do mundo físico e sobre os princípios que o governam foi aprendido de observações dos fenômenos da natureza” (SEARS; ZEMANSKY; YOUNG, 1983, p. 3); “A física, como ciência natural, parte de dados experimentais” (NUSSENZVEIG, 1981, p. 5); “Através de um processo indutivo, [é possível] formular leis fenomenológicas, ou seja, obtidas diretamente a partir dos fenômenos observados” (NUSSENZVEIG, 1981, p. 5). Ainda nos livros-texto a versão indutivista é encontrada nas “reconstruções racionais” da criação das teorias a partir dos fatos.

As atividades experimentais são outros bons exemplos da influência do empirismo. Quantas vezes os alunos são levados ao laboratório para que aprendam como as teorias são construídas a partir dos fatos, ou para verificarem a verdade das teorias.

Há necessidade de uma mudança de concepção. Mesmo aqueles filósofos da ciência que criticam Popper, como

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Kuhn e Feyerabend, por exemplo, aceitam a posição popperiana de que a concepção indutivista está ultrapassada. Um possível caminho para se conseguir essa mudança de mentalidade é a introdução de disciplinas de filosofia e história da ciência nos cursos de graduação. Penso que essas disciplinas não devam ocorrer no início do curso, mas no final, quando o aluno já tenha um bom domínio do conteúdo da ciência que estuda e talvez já tenha se deparado com problemas relativos ao conhecimento científico.

Passarei agora a abordar alguns aspectos do ensino da ciência que têm relação com as ideias de Popper e que deverão ser repensados em função destas.

Para algumas pessoas, o problema da aprendizagem estaria resolvido se o aprendiz entrasse em contato com os fatos. Se o aluno tiver a possibilidade de realizar experimentos, redescobrirá as leis e as teorias. Portanto seria suficiente que a abordagem de um novo conteúdo começasse com atividades experimentais. Essa forma de encarar o processo de construção e aquisição do conhecimento nada mais é do que a “teoria do balde mental”. Mesmo que fosse possível a construção da teoria a partir dos fatos, é ingenuidade crer que o aluno pudesse reconstruir em curto espaço de tempo o conhecimento científico produzido em muitos anos ou até mesmo em séculos. Fica evidente, na “teoria do holofote”, a importância de todo o conhecimento trazido pelo aluno. O aluno não pode ser tratado como uma “tábula rasa”, as teorias ou expectativas que ele traz são relevantes para a aquisição do novo conhecimento. Popper afirma que todo o novo conhecimento é uma modificação do conhecimento anterior.

Penso que o ensino poderá ser mais eficiente na medida em que o professor conhecer as teorias que seus alunos possuem. Uma formulação clara e precisa dessas ideias seria tomada como ponto de partida. Nesse sentido, temos

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aprendido muito nos últimos anos através dos estudos voltados às concepções alternativas, intuitivas, espontâneas ou seja lá como nós as denominamos.

O primeiro passo seria a crítica dessas ideias: o professor deverá ser capaz não apenas de apresentar a “teoria oficial” mas também de criticar as teorias inadequadas. Ele não pode assumir a posição ingênua de acreditar que seus alunos aprenderão porque ele está ensinando “o certo”; um professor já dizia: esqueçam tudo que vocês sabem porque agora eu lhes ensinarei a verdade. Ele não pode admitir que os alunos sejam capazes de efetivamente abandonar as suas ideias enquanto essas não forem mostradas como problemáticas. O confronto entre a “teoria oficial” e a(s) “teoria(s) alternativa(s)” não deve ser evitado, ele é desejável e necessário para que o aluno perceba a vantagem da primeira. O professor também não pode esquecer que o aluno sempre terá a possibilidade de fugir à refutação da sua teoria através da introdução de hipóteses suplementares.

Atrevo-me a propor uma sequência de passos, coerente com as ideias de Popper, visando à superação da “teoria alternativa” e à apreensão da “teoria oficial”:

a) primeiro passo: formulação mais clara e precisa

possível da “teoria alternativa”; b) segundo passo: discussão crítica da “teoria

alternativa”, visando não apenas identificar pontos problemáticos, mas também corroborações. Essa discussão crítica pode ter aspectos não-empíricos e exclusivamente racionais, lógicos. Às vezes, é possível apontar uma inconsistência lógica dentro da “teoria alternativa”: os experimentos mentais têm essa função e Popper dedica uma seção sobre eles em seu A Lógica da Pesquisa Científica. A crítica empírica também é relevante, ou seja, é preciso mostrar casos

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refutadores da “teoria alternativa”. Se a “teoria alternativa” reproduzir alguma teoria encontrada ao longo da história da ciência, pode-se buscar na história os subsídios relevantes; e

c) terceiro passo: apresentação da “teoria oficial” e seu

debate crítico. É importante ressaltar as vantagens dessa teoria sobre a anterior, mostrar como ela é capaz de dar conta tanto de todos os aspectos que corroboravam quanto dos aspectos problemáticos da anterior.

Penso também que essa discussão deva ser retomada

diversas vezes, em momentos diferentes, quando se avança em profundidade na “teoria oficial”. Creio que um bom indicador da apreensão da “teoria oficial” pelo aluno é quando ele se torna capaz de responder questões baseando-se em ambas as teorias.

Tentarei exemplificar esses passos com uma “teoria alternativa” à mecânica newtoniana (o leitor certamente poderá melhorar o exemplo):

a) primeiro passo: a “teoria alternativa” pode ser

formulada em termos dos seguintes princípios: para que um corpo esteja em movimento, deve agir sobre ele uma força; a força e a velocidade do corpo têm a mesma orientação; e quanto maior a força, maior é a velocidade;

b) segundo passo: trazer casos que corroboram a teoria

(por exemplo: um corpo que estava em repouso sobre a mesa do professor é colocado em movimento através de uma força aplicada por este, a orientação do movimento desse corpo coincide com a da força, etc).

Uma conclusão importante que pode ser derivada dos princípios enunciados no primeiro passo é a seguinte: cessando a força, cessa o movimento. O professor notará,

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então, que a força que ele aplica no corpo sobre a mesa cessa quando ele perde o contato com o corpo. A experiência mostrará que a cessação do movimento ocorrerá algum tempo depois da perda do contato. O professor observará a existência de outras ações sobre o corpo, em especial a da mesa na direção paralela à superfície (força de atrito), que não cessam quando ele deixa de agir. Uma possibilidade de evitar essa refutação é formular a hipótese ad hoc de que a força que o professor fez ficou impressa, capitalizada no corpo;

c) terceiro passo: enunciar a primeira e a segunda leis

de Newton, retomar os exemplos práticos anteriores, mostrando que as leis de Newton dão conta de explicá-los; enfatizar que a diminuição da velocidade e o retorno ao repouso observados no corpo sobre a mesa é consequência da força de atrito; prever, a partir da teoria, uma duração mais longa para o movimento do corpo quando a força de atrito for menor; e testar experimentalmente essa conclusão (aqui se poderia relatar as experiências de Galileu a esse respeito).

Essa foi, grosso modo, a sequência seguida pelo professor e relatada no artigo “Validação de um teste para detectar se o aluno possui a concepção newtoniana sobre força e movimento” (SILVEIRA, et al., 1986). Conforme esse artigo, poder-se-ia atribuir a mudança significativa observada na concepção dos alunos à sequência apresentada.

Nas atividades de laboratório, é usual propor um experimento no qual o aluno, manipulando uma variável (por exemplo, a diferença de potencial elétrico aplicada sobre um condutor), observa e mede o comportamento de outra variável (por exemplo, a intensidade da corrente elétrica no mesmo condutor), obtenha uma série de pontos. Em seguida, pede-se que o aluno descubra a lei que rege o fenômeno, encontrando a curva que descreve o comportamento observado. Essa

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proposta nada mais é que a aplicação do “método indutivo”. Quando se pede que o aluno descubra a lei, está implícita a ideia de que há uma maneira de determinar inequivocamente a curva que descreve aqueles resultados experimentais. Existem infinitas curvas que descrevem com precisão absoluta os resultados obtidos (curvas que passam exatamente pelos pontos obtidos) e outras infinitas curvas que descrevem os mesmos resultados com o grau de precisão que se quiser (curvas que passam próximas aos pontos obtidos). Não existe um procedimento que leve a uma única curva (qualquer conjunto de fatos é compatível com mais de uma lei conforme destacado na terceira seção deste trabalho). Qualquer procedimento analítico (como, por exemplo, o método dos mínimos quadrados, para citar apenas um) permite, especificada a forma da curva (por exemplo, uma equação do segundo grau), determinar os parâmetros da equação. Em outras palavras, se a lei for uma equação do segundo grau, o método dos mínimos quadrados permitirá determinar a melhor parábola que se adequa aos resultados experimentais.

Fica claro que essa proposição – descubra a lei a partir dos dados – não é realizável. Qual é a abordagem mais adequada? Uma possibilidade é solicitar ao aluno que formule a sua teoria e verifique se os resultados experimentais são compatíveis com ela. Por exemplo, se a sua teoria for uma equação do primeiro grau, avalie se os pontos obtidos experimentalmente se situam próximos de uma reta. A rigor, para se efetivar este julgamento, o conhecimento de uma teoria dos erros de medida terá que ser utilizada.

Outra possibilidade é fornecer a teoria ao aluno, em vez de ele a formular, aliás, isso ocorre frequentemente, pois as aulas de laboratório costumam ser antecedidas pelas aulas teóricas sobre o assunto. Se o aluno já conhece a “teoria oficial”, a atividade de laboratório consistirá na testagem da teoria.

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A versão empirista do método científico não se sustenta, como bem notou Popper, por volta de 1930. Entretanto, os professores e os próprios cientistas ainda acreditam nela. Urge que se adote a nova concepção: a teoria vem antes dos fatos. Os fatos podem corroborar ou refutar a teoria, mas nunca poderão prová-la: todo conhecimento científico é conjectural e está aberto à crítica. É justamente o aprofundamento do exame crítico, expondo uma teoria ao falseamento, que torna possível o progresso e a evolução do conhecimento. REFERÊNCIAS NUSSENZVEIG, H. M. Curso de física básica. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 1981. POPPER, K. R. Conhecimento objetivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975. _______. Conjecturas e refutações. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. _______. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix, 1985. _______. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. SEARS, F.; ZEMANSKY, M. W.; YOUNG, H. D. Física 1 – Mecânica da partícula e dos corpos rígidos. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1983. SILVEIRA, F. L.; MOREIRA, M. A.; AXT, R. “Validação de um teste para detectar se o aluno possui a concepção newtoniana sobre força e movimento”. Ciência e Cultura, v. 38, n. 12, p. 2047-55, 1986. TIPLER, P. A. Física 1. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois,1978.

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CAPÍTULO 13 PPOOPPPPEERR EE AA EECCOONNOOMMIIAA:: EEXXIISSTTEE UUMM MMÉÉTTOODDOO PPRRÓÓPPRRIIOO PPAARRAA AASS

CCIIÊÊNNCCIIAASS DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE??

Brena Paula Magno Fernandez

Hands (1985) defende que o “PopperS” (o epistemologista das ciências sociais) é tão diferente do “PopperN” (o epistemologista das ciências naturais), que a tese fundamental do monismo metodológico – tão veementemente defendida por Popper em The Poverty of Historicism e em The Open Society and its Enemies – é manifestadamente falsa. No que segue, pretendemos endossar esta posição, explicitando os argumentos de Popper no que concerne à metodologia das ciências sociais e, em particular, à metodologia da economia. A fim de atingir tal objetivo, será necessário reconstruir os argumentos de Popper em três momentos distintos de sua defesa (a) do monismo metodológico (através do modelo nomológico-dedutivo), (b) do falseacionismo e (c) da lógica situacional (e do princípio da racionalidade). INTRODUÇÃO

A questão se as ciências sociais são realmente ciências, no sentido forte da palavra, há muito vem provocando uma acalorada discussão entre os filósofos que se debruçam sobre o tema. Perguntar sobre o estatuto epistemológico dos

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fenômenos sociais (em relação aos fenômenos naturais) remete-nos inevitavelmente a outra questão: se as ciências sociais – incluindo aqui, naturalmente, a economia – estão ou não autorizadas a ingressar no seleto rol da “boa ciência”, que historicamente tem como paradigma a física clássica e seus métodos próprios de investigação. Tendo em mente os problemas metodológicos específicos das ciências sociais, esse trabalho se propõe discutir algumas contribuições de um dos filósofos da ciência de maior influência do século XX – o professor Karl Popper.

Em suas duas primeiras obras de maior repercussão internacional (A Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos), Popper coloca-se declaradamente na posição de defensor da unicidade metodológica para todas as ciências. Naquele momento, em que pese sua já presente preocupação com o falseacionismo, o método científico consiste, para ele, sobretudo no modelo nomológico-dedutivo de explicação. Sendo assim, qualquer cientista, pertencesse ele ao âmbito natural ou social, deveria estar fundamentalmente interessado na explicação causal e, como consequência, na previsão de eventos específicos em suas respectivas áreas de conhecimento, já que explicação e previsão são, segundo essa abordagem, logicamente equivalentes, e correspondem tão somente a “dois lados da mesma moeda”.

Não obstante, no decorrer deste capítulo, procuramos defender a tese de que, com o amadurecimento da reflexão metodológica de Popper, sua de início veemente defesa de um isomorfismo lógico entre os métodos das ciências naturais e sociais foi paulatinamente enfraquecendo, até o ponto em que, nos seus ensaios do final dos anos sessenta do século XX, o amadurecimento dos conceitos de “análise situacional”, “lógica situacional” e “compreensão objetiva” como que aproxima-o de um certo dualismo metodológico entre essas

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áreas do conhecimento, incorporando, entretanto, as exigências do falseacionismo.

Essa leitura da obra de Popper (com relação à flexibilização em sua concepção do método), vai na contramão de uma visão mais difundida que se tem desse autor, qual seja, a acusação que seus críticos [que vão de Habermas e Adorno a Feyerabend, passando por Brian Fay e Lezlek Koolakowski (in FARR, 1983, p. 157)] insistentemente fazem, e que ele próprio insistentemente rejeita: a de ser um positivista.

Podemos apontar brevemente pelo menos três razões para aquilo que Popper encarava como um “mal entendido”. A primeira delas é óbvia: apesar de em sua Autobiografia Intelectual (1974, p. 95-6) afirmar ter “matado o positivismo”, Popper concentra, em seus primeiros trabalhos de grande repercussão, como foi dito, todo seu poder de fogo na argumentação a favor da explicação dedutivo-causal e na defesa da unicidade da ciência, o que naturalmente sempre funcionou e continuará funcionando como combustível para seus críticos.

A segunda razão é de caráter histórico. O primeiro artigo em que Popper explicita esse dualismo com todas as letras – e que levou Farr (1983) inclusive a argumentar no sentido da existência de uma hermenêutica popperiana (Popper´s Hermeneutics) –, foi publicado pela primeira vez em francês, em 1966 (POPPER, 1966), e demorou a ser traduzido para o inglês, o que arrefeceu o impacto que certamente teria causado caso as circunstâncias fossem outras.

Por fim, podemos ainda mencionar o fato de que os trabalhos de Popper que se centraram na discussão metodológica das ciências sociais, como não poderia ter sido diferente, permaneceram ofuscados por aqueles onde a proposta do falseacionismo como alternativa ao verificacionismo ocupava o centro das atenções, como bem salienta Matzner, 1997 (in NOTTURNO, 1998, p. 401):

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In spite of Popper´s forceful plea for ‘situational analysis’, its impact, compared to the attraction of his ‘falsification criterion’, was very modest. There are hardly more than a dozen articles in the specialist literature.

A divisão dos temas a serem abordados foi concebida

em três blocos, além desta introdução, a saber: a parte inicial deste trabalho (item 2) se ocupa do primeiro momento da metodologia de Popper, na qual o autor se coloca na posição de defensor da unicidade do método científico, mediante a análise de suas duas primeiras obras de maior projeção: A Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos.

O passo seguinte (item 3) será mostrar o início de uma fase de transição, na qual Popper se vê obrigado a adotar uma flexibilização em sua definição de método científico, no sentido de não mais identificá-lo ao modelo nomológico-dedutivo de explicação e, como decorrência, à explicação do tipo causal. Serão utilizados os artigos “Previsão e Profecia nas Ciências Sociais” – de sua obra Conjecturas e Refutações, bem como algumas teses de A Lógica das Ciências Sociais.

A última sessão (item 4) se propõe a discutir a fase mais madura da reflexão metodológica popperiana, encontrada mais especificamente nos artigos: “La Rationalité et le Statut du Principe de Rationalité”, “Models, Instruments and Truth – The status of the rationality principle in social sciences” e “A Pluralistic Approach to the Philosophy of History”, de 1966, 1967 e 1969, respectivamente, nos quais Popper, através de uma melhor lapidação dos conceitos de “sociologia compreensiva”, “lógica situacional” e “princípio da racionalidade” passa ao reconhecimento de uma metodologia própria e característica para as ciências sociais69 e, como

69 Uma conclusão semelhante é defendida por Hands (1985), que critica a utilização da abordagem falseacionista como aquela mais adequada para a economia “The problem with this strict falsificationist view of Popper is that it is inconsistent with what

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decorrência dessa mudança, surge a conscientização da impropriedade de se fazer previsões específicas no âmbito social – inclusive na Economia – área onde de início ele as aceitava.

1. A DEFESA DO MÉTODO UNO: O MODELO NOMOLÓGICO – DEDUTIVO

Nos anos 1940, Popper publica duas obras de grande repercussão na filosofia da ciência: em 1944, A Miséria do Historicismo, que tem como uma de suas principais teses a defesa de que a história não possui um sentido ou uma direção particular, e A Sociedade Aberta e seus Inimigos, de 1945, cujo objetivo central é basicamente político: a defesa da sociedade democrática. Nesse último texto, Popper rejeita dois tipos de filosofia, segundo ele reacionárias e utópicas – o platonismo e o marxismo –, que teriam oferecido a legitimação intelectual/filosófica para dois regimes totalitários – o de Hitler e o de Stalin, respectivamente (MAGEE, 1973, p. 88ss).

Nosso intuito nesse momento, entretanto, será examinar um tema que aparece de forma secundária, porém recorrente, nesses dois trabalhos: a discussão de qual o método mais adequado para o tratamento das ciências sociais. Nesses dois trabalhos, Popper apresenta uma tinta claramente positivista em dois sentidos importantes: em primeiro lugar, por defender um monismo metodológico no sentido

Popper and the Popperians within philosophy of science have actually written about economics and other social sciences. In the few places where Popper directly refers to economics, he is almost never discussing his falsificationist approach to natural science. Instead, economics is discussed in the context of his ‘situational analysis’ or ‘situational logic’ approach to historical and social explanation” (Hands, 1985, p. 84). Hands considera que a lógica situacional oferece de fato uma proposta diferente para o tratamento dos fenômenos sociais e propõe que se distingua entre as duas abordagens, o PopperN (para as ciências naturais) e o PopperS (para as ciências sociais).

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tradicional do termo, isto é, a ideia de unidade do método científico independentemente da diversidade dos objetos temáticos da investigação. E depois, por adotar uma visão muito específica de explicação – a causalidade – como a única forma capaz de satisfazer as exigências de um tratamento genuinamente científico (o que, automaticamente, inviabilizaria outras possibilidades de explicação, como a intencional [ou teleológica] e a funcional).

A explicação causal consiste na subsunção de casos individuais sob leis gerais hipotéticas. O que se tem aqui, em suma, é uma elaboração do modelo nomológico (ou hipotético) – dedutivo de explicação científica. Esse modelo foi concebido de forma sistemática pela primeira vez, por Karl Popper, em sua Lógica da Pesquisa Científica, em 1934 (posição que depois ele viria a repetir em A Miséria do Historicismo, de 1944), e por Carl Hempel, em seu ensaio “The Function of General Law in History”, publicado no Journal of Philosophy, em 1942. Trata-se, em última instância, de uma tentativa de se responder à seguinte questão: “o que é uma boa explicação?”. Segundo esse modelo, uma explicação científica é um conjunto de enunciados científicos composto pelo Explanandum e o Explanans.

Podemos dizer que o Explanandum (ou Explicandum) é uma descrição do fenômeno a ser explicado. O Explanans, por sua vez, está constituído pelas premissas, que são as condições iniciais em conjunto com as leis universais. As condições iniciais descrevem as causas do fenômeno cuja descrição desejamos explicar, enquanto que a lei científica fornece-nos uma relação (universal) entre magnitudes.

Ao defender o monismo – ou seja, a existência de um isomorfismo lógico entre as ciências naturais e sociais – e a necessidade de se buscar explicações causais, Popper automaticamente inclui as previsões de eventos específicos

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como parte daquilo que qualquer cientista (inclusive social) deveria buscar.

Outro aspecto de fundamental relevância nessa discussão, que precisa ser enfatizado, é o significado atribuído por Popper, nessas obras, ao seu “Método de Hipóteses”. Este consiste no elaborar conjecturas ousadas e submetê-las a teste com o objetivo de rejeitar as falsas teorias e aceitar momentaneamente aquelas que resistiram à refutação, ou seja, no princípio do falseacionismo. Esta proposta já coexiste, em caráter ainda incipiente, com a necessidade de busca por explicações causais.

Naquele momento, Popper – assim como Hempel – acreditam que não só os fenômenos naturais, como também a ação humana deveriam ser explicados pelo modelo nomológico-causal. Nesse último caso, o Explanandum se traduziria na ação humana que se deseja explicar e o Explanans estaria constituído pela lei geral (e trivial) da racionalidade da ação humana (o princípio de racionalidade), e pelas condições iniciais (expressas pelas metas do agente, bem como pela consideração de outros fatores relevantes que definem a situação).

Essa posição pode ser verificada com clareza no seguinte trecho de A Sociedade Aberta e seus Inimigos:

Na realidade, a maior parte das explicações históricas utiliza não tanto leis psicológicas e sociológicas triviais, mas [...] a lógica da situação; isto é, além das condições iniciais que descrevem os interesses pessoais, os objetivos e outros fatores situacionais, tal como a informação disponível à pessoa envolvida, tacitamente ela admite, como espécie de primeira aproximação, a lei trivial geral de que pessoas de juízo perfeito, em regra, agem mais ou menos racionalmente (POPPER, 1945, p. 273).

Como se vê, temos aqui a lógica da situação (que mais

tarde Popper reformula e chama de “princípio da

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racionalidade”), funcionando como um enunciado nomológico (inexato, é preciso que se diga), mas ao qual sempre recorremos para explicar uma ação, talvez até mesmo por falta de uma alternativa melhor, isto é, uma ideia não muito clara de “lei trivial do comportamento humano” (que nos anos subsequentes viria a ser amadurecida e apresentada em pormenores). Ainda em A Sociedade Aberta, lemos que:

O método da ciência reside antes na procura de fatos que possam refutar a teoria. É a isso que chamamos comprovar uma teoria – ver se podemos ou não encontrar brechas nela [...] Sustento, assim, que é a possibilidade de derrubá-la, ou sua falsificabilidade, o que constitui a possibilidade de pô-la a prova e, portanto, de comprovar o caráter científico de uma teoria; e o fato de que todas as provas de uma teoria são tentativas de desmentir as predições que se deduzem com sua ajuda fornece a chave do método científico (POPPER, 1945, p. 268).

Ou seja, conforme já observamos, a concepção

falseacionista já está presente na proposta de unicidade metodológica de Popper. Entretanto, como vimos nos parágrafos anteriores, a ênfase, nesse momento, recai sobre o caráter causal das explicações científicas, e não sobre a necessidade de falseamento de teorias, uma vez que o aparato hipotético-dedutivo funciona como um pré-requisito (via predições de eventos) para a possibilidade do falseamento das teorias, conforme percebemos da última citação de A Lógica da Pesquisa Científica.

Constatamos, portanto, que a estrutura lógica da explicação nas ciências é sempre a mesma (e constitui-se no modelo nomológico-dedutivo em conjunto com o procedimento de teste e falseamento de teorias).

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2. A FASE DE TRANSIÇÃO Neste momento da argumentação, concentramo-nos na

reflexão sobre alguns trabalhos do professor Popper nos quais acreditamos encontrar indícios (de início tímidos, mas que depois se tornam cada vez mais claros) que apontam para um afrouxamento de sua defesa da unicidade metodológica para as ciências, como entendido naquele primeiro momento de meados dos anos trinta que analisamos acima; ou seja, no sentido que equipara o método científico ao modelo nomológico-dedutivo e, consequentemente, à explicação do tipo causal.

Junto a essa modificação na concepção do método científico, especialmente no que tange à concepção de uma metodologia própria e característica para as ciências sociais, surge em Popper a conscientização da impropriedade das previsões específicas no âmbito social – inclusive na Economia, área onde de início ele as aceitava.

Estes textos foram publicados nos anos 1960, como “A Lógica das Ciências Sociais”, de 1961 – da coletânea de ensaios homônima –, e “Sobre a Teoria da Mente Objetiva”, de 1968, do livro Conhecimento Objetivo.

No texto de 1961, Popper propõe vinte e cinco teses relacionadas à lógica das ciências sociais. Temos, então, uma elaboração mais minuciosa do que denominou “compreensão objetiva”. Nesse seu trabalho, percebe-se em Popper, diferentemente do que ocorria em versões anteriores, quase que uma defesa de um dualismo metodológico justamente através do amadurecimento desse conceito. Ali, a compreensão objetiva e o princípio da racionalidade (que Popper não distingue) são já tratados como um tipo de operação teórica de natureza distinta da explicação do tipo causal.

Tratar-se-ia da conscientização, por parte de Popper, de que, em determinados domínios do conhecimento, o nexo causal perderia importância se comparado ao nexo teleológico.

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Em última instância, estaríamos nos referindo a uma opção ou decisão metodológica, a dois modos distintos de interrogar os fenômenos que se guiam por vínculos diferentes: do tipo causa versus efeito (no caso da explicação causal) ou solução versus problema (no caso da explicação do tipo teleológico).

Assim, teríamos que a compreensão não deveria ser entendida como uma classe especial (ou talvez “parcial”) de explicação causal: compreender não significa o mesmo que determinar as causas (ou ainda os motivos ou estímulos) que desencadearam um comportamento. As metas, as teorias, e as pautas axiológicas, sob cuja consideração uma ação pode ser julgada como “adequada à situação”, não são causa eficiente da mesma, e por isso não se requer nenhum enunciado nomológico que as vincule de modo necessário. A compreensão não exibe uma conexão causal, mas sim teleológica. Como ambas as operações – explicação causal e explicação teleológica – respondem a interesses diversos, ou a dois modos distintos de interrogar os fenômenos, uma nunca poderá servir para responder as perguntas que pedem pela outra (CAPONI, 1998, p. 34-35).

Voltando ao ensaio “A Lógica das Ciências Sociais”, na sexta tese Popper começa a elaborar uma versão mais branda do que a anterior daquilo que então acredita ser o método científico:

Sexta tese: a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente (POPPER, 1961, p. 16).

Note-se que esta segunda formulação de seu “Método

de Hipóteses”, embora totalmente compatível com a primeira

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e de certo modo já contida naquela, desloca a ênfase da unicidade metodológica para a concepção falseacionista do método científico (através do contraste das hipóteses com a realidade), enfraquecendo a importância do caráter causal das explicações, acentuada na versão anterior.

Mais adiante, ainda no mesmo artigo de 1961, Popper elabora com mais detalhes seus conceitos de “sociologia da compreensão objetiva”, “método da compreensão objetiva” ou “lógica situacional”, já sinalizando no sentido de um amolecimento em relação à sua postura anterior (de defesa veemente do isomorfismo lógico entre as ciências naturais e sociais). Sua vigésima quinta tese chama a atenção para o que seria um método característico das ciências sociais. Popper, além disso, enfatiza uma vez mais a independência da sociologia (e das ciências sociais de maneira genérica) de todo e qualquer subjetivismo ou psicologismo. Em sua opinião, por exemplo, a Economia não pode ser reduzida à psicologia do Homo-Oeconomicus70, como percebemos na citação talvez mais representativa do texto, que por este motivo optamos por reproduzir por inteiro:

Vigésima-quinta tese: A investigação lógica da Economia culmina com um resultado que pode ser aplicado a todas as ciências sociais. Este resultado mostra que existe um método puramente objetivo nas ciências sociais, que bem pode ser chamado de método de compreensão objetiva, ou de lógica situacional. Uma ciência orientada para a compreensão objetiva ou lógica situacional pode ser desenvolvida independentemente de todas as ideias subjetivas ou psicológicas. Este método consiste em analisar suficientemente a situação social dos homens ativos para explicar a ação com a ajuda da situação, sem outra ajuda maior da psicologia. A compreensão objetiva consiste em considerar que a ação foi objetivamente apropriada à situação. Em outras palavras, a

70 Talvez essa seja sua maior diferença com John Stuart Mill, que acreditava poder justamente fazê-lo.

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situação é analisada o bastante para que os elementos que parecem, inicialmente, ser psicológicos (como desejos, motivos, lembranças e associações), sejam transformados em elementos da situação. O homem com determinados desejos, portanto, torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos; e um homem com determinadas lembranças ou associações torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que é equipado, objetivamente, com outras teorias ou com certas informações. Isso nos permite compreender, então, ações em um sentido objetivo, a ponto de podermos dizer: reconhecidamente, possuo diferentes alvos e sustento diferentes teorias (de, por exemplo, Carlos Magno), mas se tivesse sido colocado nessa situação, logo, analisado – então eu, presumidamente vocês também, teria agido de uma forma semelhante à dele. O método da análise situacional é, certamente, um método individualista e, contudo, não é, certamente, um método psicológico, pois exclui, em princípio, todos os elementos psicológicos e os substitui por elementos objetivos situacionais. Eu chamo isso, usualmente, de “lógica situacional” ou “lógica da situação (POPPER, 1961, p. 31, grifos nossos).

Assim, o fato dos indivíduos agirem racionalmente

significa que a ação está de acordo com a situação que se lhes apresenta, levando em consideração as informações de que dispõem no momento, suas crenças, e toda sorte de outros fatores que ajudam a compor a situação, bem como seus objetivos pessoais.

Aqui, o princípio da racionalidade, do qual a análise situacional se utiliza, já não é mais tratado como um enunciado nomológico como o foi em A Miséria do Historicismo e mesmo em outros segmentos da própria Sociedade Aberta, mas sim começaria a receber o tratamento de “máxima regulativa da investigação social” (FARR, 1983). O método da análise situacional é exposto de forma bastante clara na seguinte passagem:

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By situational analysis I mean a certain kind of tentative or conjectural explanation of some human action which appeals to the situation in which the agent finds himself. It may be a historical: we may perhaps wish to explain how and why a certain structure of ideas was created. Admittedly, no creative action can ever be fully explained. Nevertheless, we can try, conjecturally, to give an idealized reconstruction of the problem situation in which the agent found himself, and to that extend make the action ‘understandable’ (or rationally understandable’), that is to say, adequate to his situation as he saw it. This method of situational analysis may be described as an application of the rationality principle (POPPER, 1968, p. 179).

3. A POSIÇÃO DEFINITIVA

O propósito deste último item é a apresentação de alguns desenvolvimentos da fase mais madura de Popper, que adquirem um caráter que difere em muito daqueles que apresentava nos anos 40 do século XX. Em seu ensaio “A Pluralistic Approach to the Philosophy of History”, por exemplo, Popper reafirma seu esquema do método de ensaio e erro (apresentado pela primeira vez em sua Lógica), e o apresenta em pormenores. Um esquema simplificado da metodologia nas ciências seria o seguinte (POPPER, 1969, p. 140):

P1 → TT → DC → P2, onde:

P1: problema inicial (prático, teórico ou histórico); TT: teoria tentativa; DC: discussão crítica e P2: novo(s) problema(s).

Importante é observar que a investigação científica tem

início e fim com algum problema, o que é apenas uma outra forma de dizer que, em última instância, ela não termina

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nunca (NOTTURNO, 1998, p. 419). Uma vez que Popper acredita firmemente não existir observação pura ou totalmente descomprometida, toda investigação surge da constatação de que há alguma incoerência entre nossos mitos e preconceitos (ou aquilo que julgávamos conhecer) e aquilo que nos apresentam os fatos (P1).

A partir da consciência do problema, partiríamos para uma tentativa de resolução, através da elaboração de uma série de conjecturas ou soluções tentativas para o problema (TT). Essas múltiplas teorias seriam então submetidas à discussão crítica (DC), o que teria como principal objetivo a eliminação de erros. No final do processo, chegaríamos a novos problemas (P2) e o ciclo se reiniciaria.

O esquema de ensaio e erro acima esboçado seria, portanto, uma descrição do método compartilhado pelas ciências teóricas, sejam elas naturais ou sociais, e também pela História. Aqueles que negassem essa uniformidade estariam movidos por uma total incompreensão acerca daquilo que de fato consistiria o método das ciências naturais. Isso porque ainda prevalecia a crença errônea e amplamente difundida de que, nas ciências naturais, a investigação teria seu início na observação dos fenômenos e, por meio de um processo de indução, se chegaria à elaboração de teorias que explicassem as regularidades observadas e que fossem capazes de prever novas ocorrências do fenômeno. Entretanto, Popper não acredita na possibilidade da observação pura e simples como propulsora do processo de investigação, nem no âmbito das ciências naturais nem no das ciências sociais.

Em outro artigo, em que continua abordando os mesmos temas (“La Rationalité et le Statut du Principe de Rationalité”, de 1966), Popper também analisa o status ou o estatuto epistemológico desse princípio, investigando sua não refutabilidade. Ele discute então duas alternativas: se

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deveríamos considerá-lo como hipótese empírica ou como princípio metodológico.

No primeiro caso, se uma teoria fosse submetida a testes e malograsse, não haveria motivos para se excluir a possibilidade de que o próprio princípio fosse considerado responsável pelo fracasso, uma vez que uma hipótese empírica participa do corpo do modelo, devendo, portanto, ser submetida a teste junto com todo o resto da teoria.

Ocorre que, na prática, não é isto que se verifica. Se uma teoria malogra nos testes, o que se costuma fazer, via de regra, (ou o que a “boa prática metodológica” sugere que se faça), não é rejeitar o princípio da racionalidade, mas, ao contrário, no caso de dificuldades empíricas, mantemos o princípio e revemos a teoria (no caso, o modelo situacional). Assim, Popper chega à conclusão de que esse princípio é irrefutável uma vez que se encontra no plano lógico, mas sim no plano metodológico; isto significa que o usamos de um modo que exclui a possibilidade de refutação, talvez mesmo para salvaguardar a refutabilidade de todo o sistema.

Com relação à questão da possibilidade de predição de eventos específicos, ainda nesse mesmo artigo de 1966, a posição de Popper com relação aos fenômenos sociais já é a de que o cientista deveria abrir mão da previsão de acontecimentos específicos em prol de uma previsão de “padrões de ocorrência” desses fenômenos. Sua análise tem início com uma distinção entre o que seriam as duas principais categorias de problemas de explicação e predição: a primeira teria como objetivo a explicação e predição de um pequeno número de eventos singulares. Um exemplo específico do âmbito econômico-social seria, por exemplo, a questão “quando ocorrerá a próxima onda de desemprego em Midlands?”. E outro exemplo, do âmbito da natureza, seria “quando ocorrerá o próximo eclipse lunar?”. A segunda categoria de problemas estaria relacionada com a explicação

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ou predição de um determinado tipo ou padrão de eventos. (Como, por exemplo, ainda na esfera social: por que ocorrem acréscimos e decréscimos sazonais da taxa de desemprego na construção civil? E uma questão equivalente na astrofísica: por que os eclipses ocorrem periodicamente e apenas quando a Lua está cheia?) (POPPER, 1966, p. 142).

A diferença fundamental entre essas duas espécies de problemas seria que, enquanto os da primeira categoria (explicação e predição de eventos singulares) poderiam ser resolvidos apenas com a análise das leis universais envolvidas e das condições iniciais relevantes em cada caso, os da segunda categoria (explicação e previsão de eventos típicos) obteriam melhores resultados mediante a construção de modelos, que representam algo como “condições iniciais típicas”, além de também se utilizarem de leis “de animação” (animating laws), sem as quais seria impossível movimentar o modelo.

Neste ponto, Popper diz-se convencido de que, nas ciências sociais teóricas, nunca seria possível responder a perguntas da primeira categoria que, como vimos, dizem também respeito à predição de eventos particulares. Isto porque, “as ciências sociais teóricas servem-se quase sempre do método de construção de modelos.” Dito de outro modo, a primeira classe de problemas acima apresentada deveria ser analisada mediante a elaboração de teorias, enquanto que os problemas da segunda categoria, por seu turno, deveriam ser investigados via construção de modelos.

A importância que Popper passou a atribuir à construção de modelos nas ciências sociais está, sem sombra de dúvidas, relacionada à sua mudança de concepção com relação à unicidade metodológica (entendida naquele primeiro sentido de necessidade do aparato hipotético-dedutivo como salvaguarda do caráter científico de um segmento do conhecimento). Isto porque, segundo esse modelo, devemos

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deduzir asserções, ou seja, predizer ou retrodizer acontecimentos que serão utilizados para testar nossas teorias. Essas predições só são possíveis quando temos a nosso dispor uma ou mais leis gerais e um número suficiente de condições iniciais (confiáveis). Ora, se a possibilidade de predizer eventos individuais aparece, para Popper, inviável nesse momento, significa reconhecer que, no âmbito das ciências da sociedade, essas condições não podem ser satisfeitas, como ele acreditava anteriormente

Deste modo, verificamos que, com a elaboração mais cuidadosa do princípio da racionalidade e do método da análise situacional, Popper identifica-os não mais com o modelo nomológico-dedutivo de explicação (aplicado desta vez para o âmbito social), como o fizera em 1944 e 1945, mas aqui inequivocamente relaciona-os com a segunda versão de seu “Método de Hipóteses”, ou seja, seu método de ensaio e erro, ou, se preferirmos, de Conjecturas e Refutações. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso objetivo, nesse capítulo, foi o de tentar mostrar uma transformação da proposta inicial de Popper, ou seja: a modificação de sua defesa inicial de que haveria um isomorfismo lógico em termos metodológicos entre todas as ciências em direção a uma postura de maior precaução no que tange ao caso específico das ciências sociais.

Propusemos o seguinte esquema de desenvolvimento da concepção metodológica popperiana para os três momentos analisados:

(1) 1944/45: Monismo Metodológico

Ênfase no caráter causal das explicações, seguindo o esquema do modelo hipotético-dedutivo:

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- Lei Universal - Condições Iniciais _________________________

- Predições Específicas

(2) 1961: Concepção Falseacionista do Método Científico

P1 → TT → DC → P2

(3) 1966/69: Lógica Situacional: Compreensão Objetiva

Aponta na direção de um método típico para as ciências sociais, seguindo o seguinte esquema:

- Princípio da Racionalidade - Condições Iniciais _________________________________________

- Previsão de Padrões de Ocorrência dos Eventos

Estamos defendendo, em última instância, que no final dos anos sessenta do século XX, Popper abandona a possibilidade de predição de eventos específicos para o âmbito social. Essa posição decorre diretamente da adoção da proposta do falseacionismo no lugar da necessidade do modelo nomológico-dedutivo como garantia unificadora do método científico.

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Como bem coloca Farr (1983), com uma mais adequada elaboração do conceito de “compreensão objetiva”, ou seja, no sentido de uma reconstrução conjectural da situação-problema com o auxílio do princípio da racionalidade, houve, em última instância, uma reordenação na posição metodológica popperiana (que o afasta da proposta positivista), uma vez que a análise situacional em si não é uma forma de explicação dedutiva.

Ora, se a defesa da unicidade metodológica de Popper não se baseia mais na necessidade do modelo nomológico-dedutivo, e sim na concepção falseacionista, então tornar-se-ia a defesa de uma unicidade para a ciência tão tênue que teria que englobar não apenas as ciências naturais e as sociais, mas também um amplo leque de outras esferas do conhecimento humano (que o positivismo sempre rejeitou).

Esperamos, desta forma, ter contribuído com a defesa da tese de que Popper, com a elaboração mais minuciosa daquilo que denominou “análise situacional” e do “princípio da racionalidade”, do qual o modelo situacional se utiliza, se afasta (de início titubeante e timidamente, mas depois de maneira definitiva) do modelo nomológico-dedutivo e adota, em seu lugar, uma a proposta que funciona quase como a concessão de um certo dualismo metodológico entre essas áreas do conhecimento, incorporando, entretanto, as exigências do falseacionismo. REFERÊNCIAS APEL, K. “Comments on Farr’s Paper (II): Some Critical Remarks on Karl Popper’s Contribution to Hermeneutics”. Philosophy of the Social Sciences, v.13, n.2, 1983, p. 183-193. CAPONI, G. “Aproximatión Metodológica a la Teleologia”. Manuscrito, n. 21, 1998, p. 11-45.

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FARR, J. “Popper’s Hermeneutics”. Philosophy of the Social Sciences, vol.13, n. 2, 1983, p. 157-176. HANDS, D. W. “Karl Popper and Economic Methodology: A New Look”, Economics and Philosophy, 1985, vol. 1, p. 83-99. HEMPEL, C. G. “The Function of General Laws in History”. The Journal of Philosophy, v. 39, n. 2, 1942, p. 35-48. _______. Filosofia da Ciência Natural. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. MAGEE, B. As Ideias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1973. NADEAU, R. (1986): “Popper, Hayek et la Question du Scientisme”. Manuscrito, v. 9, n. 2, 1986, p.125-156. NOTTURNO, M. A. “Truth, Rationality and the Situation”. Philosophy of the Social Sciences, v.28, n. 3, 1998, p. 400-421. POPPER, K. Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1975. _______. The Poverty of Historicism. London and New York: Routledge, 1997. _______. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1987. _______. “Previsão e Profecia nas Ciências Sociais”. In: POPPER, K. Conjectures and Refutations. London: Routledge e Kegan Paul, 1989. _______. “Science: Conjectures and Refutations”. In: POPPER, K. Conjectures and Refutations. London: Routledge e Kegan Paul, 1989. _______. “Lógica das Ciências Sociais”. In: POPPER, K. Lógica das Ciências Sociais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978. _______. “La Rationalité et le Statut du Principe de Rationalité”. In: CLASSEN; EMIL M. (ed.) Les Fondements Philosophiques des Systemes Economiques. Paris: Payot, 1966.

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_______. “Models, Instruments and Truth – The status of the rationality principle in social sciences”. In: POPPER, K. The Myth of the Framework – In defence of science and rationality. London and New York: Routledge, 1994. _______. “A Pluralistic Approach to the Philosophy of History”. In: POPPER, K. The Myth of the Framework – In defence of science and rationality. London and New York: Routledge, 1994. _______. Autobiografia Intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977. WATKINS, J. “Racionalidad Imperfecta”. In: BERGER, R./CIEFFI, F. (ed.) La Explicación en las Ciencias de la Conducta. Madrid: Alianza, 1974. _______. “Ideal Types and Historical Explanation”. In: RYAN, A. (ed.) The Philosophy of Social Explanation. Oxford: Oxford University Press, 1973. WISDOM, J.O. “Some Overlooked Aspects of Popper´s Contributions to Philosophy, Logic, and Scientific Method”. In: BUNGE, M. (ed.) The Critical Approach to Science, and Philosophy. London: The Free Press of Glencoe, 1964. WRIGHT, G. H. “El Determinismo y el Estudio del Hombre”. In: BALIBAR, E. et all. Teoria de la Historia. Mexico: Terra Nova, 1981.

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CAPÍTULO 14 IINNTTEERRVVEENNÇÇÃÃOO SSOOCCIIAALL EE DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO HHUUMMAANNOO

EEMM KKAARRLL PPOOPPPPEERR

Solange Regina Marin

The piecemeal engineer will, accordingly, adopt the method of searching for, and fighting against, the greatest and most urgent evils of society, rather than searching for, and fighting for, its greatest ultimate good (POPPER, 1957, p. 158).

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento humano deve ser pensado, segundo Karl Raimund Popper (1902-1904), a partir da intervenção social mediante a tecnologia social gradual (em contraponto à tecnologia social holista, conduzida pelo pensamento totalitário), intervenção essa possível mediante a aceitação de que o nosso conhecimento é limitado e falível. Popper, assim, relaciona a sua proposta de intervenção social com a epistemologia fundada no debate crítico, que considera teorias e planos sociais simples como tentativas de soluções aos problemas mais proeminentes das ciências e das sociedades. O TOTALITARISMO COMO PONTO DE PARTIDA

Popper é contrário às formas de pensamento que ele considera obstáculos à liberdade de pensamento individual.

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Segundo ele (POPPER, 1992, p. 115), os livros A Miséria do Historicismo e A Sociedade Aberta e seus Inimigos, escritos nos anos 1940, representam seu esforço de guerra, defendendo a liberdade de pensamento, ao invés de ideias totalitárias (dogmáticas). Além disso, eles estão vinculados à sua teoria do conhecimento e seus problemas centrais: “o que podemos saber” ou “quão certo é o nosso conhecimento”. Em suma, a teoria institucional do progresso humano de Popper contrasta a liberdade de pensamento com o totalitarismo e o autoritarismo. Essa teoria institucional substitui as teorias psicológicas, como as posições adotadas por J. S. Mill (1806-1873) e A. Comte (1798-1857), que assumem uma conexão entre a lei da natureza humana e o progresso (POPPER, 1945, seção 32, p. 86-8; 1966, p. 87-8)71.

Para Popper, as pessoas precisam ser cuidadosas em fazer a distinção entre os fins últimos e os fins intermediários, já que os intermediários são os meios usados para atingir os primeiros. Essa distinção é importante: permite suspeitar dos planejadores políticos holistas que estabelecem um fim político último – o Estado Ideal – antes de tomar qualquer ação prática. Somente depois que a pessoa, na posição de planejador, possuir um planejamento para a sociedade, ela começa “to consider the best ways and means for its realization, and to draw up a plan for practical action” (POPPER, 1957, p. 157). Todavia, a tentativa utópica de construir um estado ideal por meio de um plano para toda a sociedade pode conduzir à ditadura (POPPER, 1957, p. 159-60). Além disso, esse plano será valorado somente se o planejador assumir que ele servirá de base até o fim de todo o trabalho. Esse requerimento

71 Harris (1956) apresenta a teoria do progresso de John Stuart Mill, afirmando que, na concepção de Mill, progresso significa desenvolvimento da capacidade para autodireção, a socialização dos atributos humanos e uma melhora quantitativa dos objetos de desejos dos homens. “Progresso não consiste primariamente em melhoria material, mas em moral-aesthetic culivation”(p. 173).

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utopista, Popper (1957, p. 160) insiste, é um engano; os objetivos podem mudar ao longo do processo e os planos são difíceis de serem implementados de acordo com o que foram concebidos. E, ainda, é complicado admitir que qualquer intervenção social produzirá todos os resultados esperados (POPPER, 1957, p. 161).

Popper não assume que um ideal nunca poderia ser realizado; somente não acredita na reconstrução de uma sociedade de acordo com uma única mente humana. Argumenta, também, que qualquer proposta para a sociedade como um todo, lembrando a construção de uma sociedade como se ela fosse uma única planta de engenharia, pode criar tirania e gerar a privação de liberdade individual e de pensamento, uma vez que a planta pode desconsiderar aspectos específicos da vida das pessoas, de suas instituições e tradições. Tal reconstrução da sociedade, além de não abordar as instituições e tradições existentes, leva-nos à ditadura ao invés da liberdade de pensamento e autonomia das pessoas.

A recomendação utopista requer “esteticismo” – isto é, um desejo do artista de construir um “admirável mundo novo”. Para Popper (1957, p. 165), o esteticismo pode ter valor somente se acompanhado pela razão, por um sentimento de responsabilidade e por um impulso humanitário de ajudar: ao contrário disto, é uma atitude incompreensível. Diferentemente de Platão (428-347 a.C), que propôs um modelo ideal, Popper acredita que as vidas humanas não podem ser meios para satisfazer o desejo do artista expresso nessa idealidade. Ele defende que toda pessoa teria, se assim desejasse, o direito de modelar sua própria vida, desde que isso não interferisse na vida das outras pessoas.

Popper enfatiza, então, que uma natureza humana fixa não pode ser o aspecto mais importante relacionado ao progresso. Diferentes estruturas de pensamento, bem como diferentes culturas, permitem confrontos nos quais florescem o

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pensamento crítico e a liberdade de pensamento, que influenciam a nós mesmos e as nossas próprias atitudes72. Os confrontos de culturas tiveram um papel essencial no iniciar da Ciência Grega: “our ideas of freedom, of democracy, of toleration, and the ideas of knowledge, of science, of rationality, can all be traced back to these early Greek experience” (POPPER, 1994, p. 38). Para Popper, cultura, tradição e instituições sociais são elementos para o desenvolvimento de uma teoria institucional do progresso. Porém, esse desenvolvimento requer (i) o descobrimento de quais são as condições necessárias para o progresso, tentando imaginar ao mesmo tempo aquelas condições nas quais ele poderia não ser atingido, e (ii) a substituição da propensão ao psicologismo por uma análise institucional (POPPER, 1945, p. 86-7). O progresso científico e industrial pode ser atingido por meio de instituições sociais – dentre elas, a linguagem, a escrita e o método científico – considerando-se que a ciência e o progresso científico são resultado “da competição livre do pensamento”73. Esse contato social, Popper insiste, é uma maneira de alcançar, através da intersubjetividade, a objetividade da ciência, e o progresso “depends on political factors; on political institutions that safeguard the freedom of thought: on democracy” (POPPER, 1945, p. 87).

A impossibilidade de discussão crítica nas práticas holistas e utopistas poderia ser enfrentada por instituições sociais, tais como os sistemas educacionais, interessadas em promover a diversidade, e não a uniformidade de mentes humanas. Todavia, Popper argumenta que a melhor das instituições não pode atingir esse objetivo sem ser devidamente administrada. Além de instituições sociais, é preciso pessoas com mente aberta, isto é, que adotem uma postura de crítica e incentivem a liberdade de pensamento. O

72 Ver também Popper (1992, Cap. VIII). 73 Ver também Popper (1968, nota II, seção 85, p.279).

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fator pessoal, Popper defende, deve ser o elemento necessariamente irracional presente nas teorias institucionais e sociais que questionam as visões caracterizadas por reduzirem as teorias sociais ao psicologismo ou por acreditarem numa natureza humana fixa. Ao invés de reduzir as considerações sociais à psicologia (ou à natureza humana), como ocorre nos métodos de Comte e Mill, Popper sugere que o fator humano seja o elemento incerto na teoria, sendo incontrolável pelas instituições. Toda tentativa de controle pode levar-nos à tirania e ao totalitarismo: “holistic control, that is the equalization not of human rights but human minds, would mean the end of progress” (POPPER, 1945, p. 88).

Uma sociedade aberta, como defende Popper, desenvolve a liberdade individual e as instituições políticas participativas e não autoritárias, ou seja, as pessoas podem participar livremente nas diversas decisões sociais como agentes críticos e responsáveis. Isso é possível porque tal sociedade confia na democracia e nas tradições, valoriza o debate crítico e o racionalismo crítico. Uma democracia constitucional é melhor do que uma democracia tirânica, na política ou na ciência, na qual as pessoas com ‘mentes livres’ podem discutir as diferentes teorias que nada mais são do que tentativas de solução para os males da sociedade. Essa recomendação moral para a filosofia política atinge, também, a filosofia da ciência, isto é, a epistemologia, as instituições e as tradições científicas.

Popper foi contrário à forma totalitária e dogmática de se arquitetar uma intervenção social – o planejamento total para a sociedade. Um plano total para a sociedade não permite que ocorram modificações ao longo do processo, bem como não considera as instituições e as tradições existentes. Por caracterizar-se numa prática dogmática, esse plano também não possibilita o aprendizado com os erros via a aplicação do método científico social, isto é, não vislumbra um crescimento do conhecimento, uma vez que parte de um conhecimento

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tido como certo e único. Além disso, Popper defende que a liberdade de pensamento individual está entre os fatores de maior importância no que se refere à intervenção social e à evolução do conhecimento. As pessoas devem ser consideradas como agentes ativos e responsáveis, capazes de participar das decisões sociais. Mais ainda, as pessoas devem ter condições de modelar suas próprias vidas, e não serem consideradas meio para a satisfação do desejo de um artista (planejador). Com esta visão, Popper elabora um método para a intervenção social – a tecnologia social gradual.

A TECNOLOGIA SOCIAL GRADUAL

Para Popper (1944, p. 130-1; 1985, p. 313), é difícil estabelecer uma relação entre um planejamento holista, que tem um ponto de partida certo e único, e o método científico embasado na falibilidade de nosso conhecimento e na possibilidade de um debate crítico-social. Para entender o significado desta dificuldade relacionada com a epistemologia e a prática social é necessário compreender que Popper acredita na realização contínua de reformas sociais ou de engenharia social. Para evitar a comparação com o plano total baseado num conhecimento certo e único, Popper sugere que a engenharia social pode ser executada via tecnologia social. Essa tecnologia pode ser entendida como uma forma modificada de conhecimento mais modesta do que o conhecimento certo. Ainda para prevenir uma possível comparação com o planejamento coletivista social, Popper adiciona o termo “gradual” ao conceito de tecnologia social. Popper recomenda a tecnologia gradual tendo como base um argumento epistemológico, com vistas ao crescimento do conhecimento, e um argumento prático, visando uma forma de intervenção social com possibilidade de correção de rota ao

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longo do tempo, respeitando sua proposta de método científico – o debate crítico.

Os holistas sugerem uma tecnologia social que (i) negligencia a importância de experimentos passo-a-passo para a prática social e (ii) contribui pouco para o método experimental, não permitindo adquirir conhecimento através da comparação entre os resultados atingidos e previstos. Popper critica essa tecnologia social holista e estabelece um argumento epistêmico, afirmando uma prática social baseada na tecnologia social que não segue um plano total, e uma conotação negativa, enfatizando a previsão das consequências inesperadas de qualquer ação prática desenvolvida. Além disso, Popper sugere que a tecnologia social gradual não exclui os problemas teóricos que podem aparecer junto com os problemas práticos. Pelo contrário, ela nos auxilia na seleção dos problemas, impondo disciplina em nossa inclinação especulativa, e forçando-nos a submeter nossas teorias a padrões definitivos como a clareza e a testabilidade prática (POPPER, 1944, p. 120). A tecnologia social gradual que Popper (1957, p. 158) sugere está fundada em instituições simples, tais como o cuidado com a saúde, o seguro desemprego e a reforma educacional, e adota um plano mais modesto para a sociedade. Para ele (POPPER, 1944, p. 122-3), a principal tarefa dos engenheiros sociais graduais é desenhar as instituições sociais. Tais engenheiros consideram as instituições de um ponto de vista funcional, quer dizer, as instituições são meios para conseguir determinados fins, avaliadas de acordo com a sua adequação, eficiência e simplicidade. Porém, essas instituições não podem ser consideradas apenas como instrumentos mecânicos (meios). Elas se modificam de forma similar ao crescimento dos organismos, isto é, apresentam resultados não previstos em sua origem, resultados de seleção e adaptação ao ambiente (POPPER, 1957, p. 24).

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Os engenheiros sociais graduais planejam para toda a sociedade, mas esse planejamento não implica a reconstrução da sociedade como um todo; eles tentam atingir os fins através de pequenos ajustes que podem ser continuamente aperfeiçoados. Como ensina Sócrates (470 ou 469 a.C), eles podem aprender com os próprios erros, comparando os resultados atingidos com os esperados, e olhando para as consequências inesperadas e evitáveis de qualquer reforma (POPPER, 1944, p. 123). Em vista disso, Popper enfatiza que, se queremos introduzir o método científico no estudo da sociedade, da política e da intervenção social, precisamos adotar uma atitude de crítica, e entender que o método de tentativa e eliminação dos erros é relevante como posição metodológica.

We try, i.e., we are not merely registering our observations, but we are actively engaged in the solution of some more or less practical and definite problem. And we are making progress because, and only if, we are prepared to learn from our mistakes, that is to say, to recognize our errors and to utilize them critically instead of persevering in them dogmatically. Thought this analysis may sound trivial, it describes, I believe, the method of all empirical science. […] Scientific method in politics means that the great art of convincing ourselves that we have not made mistakes, of ignoring them, of hiding them, and of blaming others for them, is replaced by the greater art of accepting the responsibility for them of trying to learn from them, and of applying this knowledge so that we may avoid them in the future (POPPER, 1944, p. 131).

Popper trata, então, de questões éticas quando defende

a possibilidade de reformas sociais através da tecnologia social gradual. Ele assume que uma luta sistemática contra o sofrimento, a miséria e a injustiça econômica e social é mais fácil de ser compreendida por um grande número de pessoas do que uma luta para estabelecer alguma sociedade ideal.

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Além disso, ele elabora a tecnologia social gradual como uma forma de intervenção social para combater os problemas mais urgentes da sociedade, tais como a pobreza e o desemprego. Popper, diferentemente de Frederick A. Von Hayek (1899–1992), não entendia a intervenção do Estado como indefensável em razão da falta de conhecimento. Pelo contrário, ele acreditava na possibilidade de uma intervenção através da tecnologia social gradual que permitisse a observação dos acontecimentos inesperados – conotação negativa – e sua correção. Ou seja, que fosse adotado o método científico na intervenção social de forma que favorecesse o crescimento do conhecimento com a aceitação de que o nosso conhecimento é limitado e incerto. Ele escreve: “Who suffer can judge for themselves, and others can hardly deny that they would not like to change places. A few persons could judge a large-scale change” (POPPER, 1957, p. 159). E ainda: “Success or failure is more easily appraised though incremental changes, and there is no inherent reason why this method should lead to an accumulation of power, and to the suppression of criticism” (POPPER, 1944, p. 132).

Os planos graduais mais simples permitem reajustamentos e condições realistas para a condução de experimentos que podem ser repetidos “without revolutionizing the whole society” (POPPER, 1957, p. 162). Além disso, a tecnologia social gradual pode fazer com que os políticos observem e aprendam com seus próprios erros.

Politicians begin to look out for their own mistakes instead of trying to explain them away and to prove that they have always been right. […] This – and not Utopian planning or historical prophecy – would mean the introduction of scientific method into politics, since the whole secret of scientific method is a readiness to learn from mistakes. […] Politics, I demand, must uphold equalitarian and individualistic principles; dreams of beauty have to submit to the necessity of helping men in distress, and men who suffer

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injustice; and to the necessity of constructing institutions to serve such purposes (POPPER, 1957, p. 163-5).

Popper vincula seu pensamento político ao seu método

científico, uma vez que a engenharia social gradual significa uma abordagem racional e crítica para a conduta política e a intervenção social. Sua filosofia unifica, então, as ações individuais com o desenvolvimento social, as questões éticas com o planejamento político, e o debate crítico com a liberdade humana. As ações individuais estão vinculadas ao desenvolvimento social na defesa da participação das pessoas nas diversas decisões sociais. As questões éticas estão ligadas com o planejamento político, porque as intervenções sociais estão baseadas em planos modestos dirigidos para reformas sociais simples tais como melhoria na educação e nas condições de emprego, ou seja, estão voltados para os problemas mais recorrentes da sociedade. E, finalmente, a filosofia de Popper liga o debate crítico, fundamento do seu método científico, com a liberdade humana, uma vez que as pessoas são entendidas como agentes capazes de modelar suas próprias vidas e de participarem da vida social. A POSSIBILIDADE DA INTERVENÇÃO SOCIAL?

Popper não é inimigo da intervenção do Estado na vida social: “Why do we prefer living in a well-ordered state to living without a state, i. e., in anarchy?” (POPPER, 1957, p. 109). Essa questão, ele argumenta, é típica para um técnico social responder antes de moldar, de uma forma racional, as instituições sociais. O técnico popperiano responderia: “What I demand from the state is protection; not only for myself, but for others too. I demand protection for my own freedom and for other people. I wish to be protected against aggression from other men” (POPPER, 1957, p. 109-110).

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Popper (1992a, p. 156-7) insiste na possibilidade de reformas institucionais. Em decorrência, ele (1966, p. 238) estabelece um vínculo entre o racionalismo crítico e a demanda de intervenção social através da proposta da tecnologia social gradual. Essa tecnologia se assenta em planos simples que permitem a previsão e a correção dos acontecimentos inesperados. Popper (1966, p. 238) sugere reformas institucionais passo-a-passo em um ambiente com instituições e tradições já existentes, reconhecendo assim o papel das instituições sociais na proteção da liberdade de pensamento e do ser humano.

Além de insistir na possibilidade de reformas institucionais baseadas em planos simples, Popper acreditava que a política seria o caminho para resolver alguns problemas da sociedade, como a injustiça distributiva. Discordava de Hayek, que defendeu intransigentemente o sistema capitalista de free market e censurou a atividade do Estado na esfera econômica: “there is no freedom if it is not secured by the state; and conversely, only a state which is controlled by free citizens can offer them any reasonable security at all” (POPPER, 1957, p. 111). O conhecimento limitado era citado por Hayek como um empecilho à intervenção social, ou seja, ele não tinha uma visão muito otimista sobre a relação entre intervenção social e desígnio da sociedade. Em consequência, enquanto que para Hayek a intervenção poderia ser obra de algum tirano que tomasse para si o poder do conhecimento (limitado), para Popper essa deficiência no conhecimento poderia ser dirimida através da política, com democracia institucional e atitude crítica.

Segundo Kerstenetsky (2004, p. 452), Popper aceita a pressuposição de Hayek de que o conhecimento limitado imporia uma restrição à intervenção social, mas em uma intervenção do tipo holista, como aquelas contidas no plano total dos engenheiros utopistas, nas quais não se poderiam

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corrigir as consequências não intencionadas. Popper quer assegurar-se de que, mesmo diante de um conhecimento limitado, as reformas pretendidas tenham sucesso, através das ações passo-a-passo recomendadas pela proposta de engenharia social gradual. Em vista disso, Kerstenetsky enfatiza que as reformas graduais seriam necessárias como um método que permite aos “ignorantes racionais” aprender com os próprios erros.

Kerstenetsky ainda afirma que Popper confia na possibilidade de substituição de uma técnica política – um conjunto de instruções articuláveis para se atingir propósitos abrangentes no mundo social – por uma tecnologia social, derivada de exercício de imaginação crítica. Mesmo não sendo previamente conhecido o propósito comum que uma sociedade deve perseguir, a deliberação democrática sobre fins sempre é possível, e mesmo necessária. “Por conta, portanto, da ignorância de meios e fins, a política, longe de ser uma dimensão superficial da vida social enquanto tal, torna-se o terreno crucial” (KERSTENETSKY, 2004, p. 447-8).

Popper acreditava que, além das forças de mercado, as reformas sociais poderiam ser realizadas por meio da tecnologia social gradual conduzida por governos ou por ações públicas não governamentais. Mas, para não ser comparada aos planos totais dos engenheiros holistas, que podem gerar tirania e improvisação, e evitar críticas como as de Hayek acerca da influência do problema de conhecimento limitado, Popper alega que a engenharia social é possível graças a uma forma modificada de conhecimento, mais modesta do que a do conhecimento certo. “A tecnologia social é uma hipótese de conhecimento que equivale a uma auto-consciência da limitação do conhecimento: é um conjunto de leis condicionais que pode ser instrumentalizado para intervir no mundo social” (KERSTENETSKY, 2004, p. 452).

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Para fazer a conciliação entre essa proposta de prática social e seu argumento epistêmico, Popper enfatiza a importância de um estado democrático. Ele destaca que quanto “more tolerant, less authoritative systems; which (within the limits of mutual toleration) leave more freedom and initiative to the individual, and curb the power of tyrants, and of state officials” (POPPER, 1974, p. 1162). Os princípios mais importantes dessa ética igualitária e humanitária são (i) ser tolerante com outras decisões morais, (ii) lutar contra a tirania e (iii) minimizar o sofrimento (POPPER, 1957, p. 235, 284 e 285). É possível usar esses princípios para arguir uma analogia entre a intervenção social e o método científico. Os dois primeiros princípios são compatíveis com o racionalismo crítico, e o terceiro é análogo ao falsificacionismo ou negação das leis universais. Isto significa que, ao invés de desejar o melhor dos mundos, tais como a felicidade na vida prática e a verdade na ciência, Popper defende a urgente eliminação do sofrimento ou das teorias falsas.

Ainda no que se refere à importância da democracia para as suas propostas científicas e sociais, Popper afirma que as tradições vinculam as instituições com as intenções e avaliações do indivíduo (POPPER, 1992a, p. 156; 1957, nota 4, p. 265-6). Mais ainda, que essa vinculação pode ser entendida como estando na base de um estado democrático. Nesse estado, a regra da maioria poderia não ser aceitável, porque a decisão da maioria estaria representando “quem coordenará”, ou seja, a decisão da maioria poderia ser expressão do comando de um tirano. Alternativamente, uma democracia pode ser constituída por um governo regulado por instituições e pela participação pública dos indivíduos. Porém, o voto individual também poderia não garantir o sucesso de um estado democrático. Em vista disso, Popper defende um estado democrático constitucional, composto por tradições e instituições que toleram a objetividade e o debate crítico e

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social. Ou, como Kerstenetsky (2004, p. 455) enfatiza, a democracia para Popper não seria o arranjo político desenhado para implementar o politicamente certo, “a vontade do povo”, mas seria concebida como o arranjo destinado a evitar o pior: a perseverança no erro por parte dos poderosos.

[...] em acréscimo ao reformismo limitado: a democracia seria a forma de governar mais apropriada à condição de conhecimento limitado, uma vez que, frente às alternativas, ela oferece o maior grau de imunização contra o dogmatismo no poder (KERSTENETSKY, 2004, p. 455).

Ao invés de levar em consideração a crítica de Hayek,

que defendeu a indesejabilidade da intervenção social, a não ser que seja para garantir a não intervenção – uma intervenção anti-intervencionista (KERSTENETSKY, 2004, p. 446) –, dado que possuímos um conhecimento limitado da realidade, Popper conjectura que é justamente sobre essa base limitada de conhecimento que se estrutura a intervenção social. Mais ainda, afirma que a política seria crucial em termos de um espaço onde são decididos os meios e os fins uma vez que eles não seriam pré-determinados dentro um plano total. Portanto, a partir da noção de um conhecimento limitado ou falível, Popper sugere as intervenções planejadas sobre a ordem econômica e social. Essa forma de intervenção estaria baseada em mecanismos metodológicos como o racionalismo crítico, a tecnologia social e um estado democrático. Ou seja, Popper defende a tecnologia social com reformas representando tentativas para solucionar os problemas mais imediatos da sociedade, e não reformas holistas que intencionam levar a felicidade geral.

Uma censura aos argumentos de Popper é a dificuldade de se praticar a atitude crítica e, com isso, a intervenção social propugnada. Thomas Kuhn (1922–1996) foi

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eloquente ao destacar a influência das tradições sobre os cientistas de modo que o falsificacionismo de teorias seria algo quase impossível de ocorrer, sendo o normal seguir as tradições. Popper responde que o cientista deve ser ousado, e não normal no sentido kuhniano. Popper também reconhece a influência das tradições que produzem nossos valores, mas afirma que somos capazes de criá-los e, principalmente, de criticá-los. Para convencer o cientista normal de Kuhn, Popper destaca que somente quem está preparado para agir seriamente e aprender com a tentativa e o erro será também impressionado pelos argumentos críticos. Popper recomenda uma atitude crítica até diante das tradições, mas, entendo, permanece válido o alerta de Kuhn, notadamente se as tradições não estão submetidas ao debate crítico.

Popper acreditava na possibilidade de uso da atitude crítica, não apenas na prática científica, mas também na área de intervenção social. Ele sugere que o método da tecnologia social gradual, baseado em planos simples adotados passo-a-passo, a falibilidade de nosso conhecimento e a possibilidade de aprendermos com os erros, seria a forma de realizar as reformas sociais ou institucionais. Diferentemente de Hayek, Popper acreditava na possibilidade de intervenção social diante de um conhecimento limitado. Popper é enfático ao relatar a relação positiva entre a ação planejada de forma simples e as reformas sociais. Mais ainda, ele acreditava que a intervenção via tecnologia social gradual possibilitava não apenas o cuidado com as consequências inesperadas, mas, sobretudo, o aprendizado com elas e com sua tentativa de correção. Ou seja, Popper tinha plena confiança na política como um meio de evitar a injustiça distributiva, e sugeria que a tecnologia social gradual seria a forma mais adequada de intervir na ordem econômica e social, uma forma compatível para enfrentar as dificuldades decorrentes da limitação natural do conhecimento humano.

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A forma de intervenção social de Popper é instrumental para a análise de atividades de desenvolvimento, uma vez que permite avaliar como os projetos destinados aos problemas mais imediatos da sociedade estão sendo desenvolvidos. Ou seja, é possível verificar se as várias tentativas de solução para os problemas sociais estão seguindo uma tecnologia gradual, que parte de planos simples e tem como pressuposto o aprendizado com os erros, ou de uma tecnologia total, que tem como ponto de partida os planos totais e um conhecimento certo e dogmático. A IMPORTÂNCIA DO RACIONALISMO CRÍTICO

Como visto, a proposta da tecnologia social gradual está associada à atitude crítica dos cientistas. Contudo, a ênfase de Popper no racionalismo crítico – atitude crítica frente aos problemas e suas tentativas de solução – reflete um entendimento que se situa entre um princípio metodológico e uma definição de racionalidade humana.

W. W. Bartley (citado por ARTIGAS, 1999, p. 19), questiona o racionalismo crítico de Popper, enfatizando que esse tipo de racionalismo deve, também, ser criticado. Ele requer uma “teoria da racionalidade” para ultrapassar a simples “fé na razão” manifestada por Popper. Porém, o racionalismo crítico de Popper não é uma tese, nem uma teoria, nem um dogma; é uma atitude de um indivíduo que quer conhecer (ARTIGAS, 1999, p. 30).

As to the rationality of science, this is simply the rationality of critical discussion. Indeed, there is nothing, I think, which can better explain the somewhat abstract idea of rationality than the example of a well-conducted critical discussion. And a critical discussion is well-conducted if it is entirely devoted to one aim: to find a flaw in the claim that a certain theory presents a solution to a certain problem. The scientists participating in the critical discussion constantly try to refute

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the theory, or at least its claim that it can solve its problem (POPPER, 1994, p. 160).

Paul Bernays (1974, p. 604) afirma que a atitude crítica

pode ser restritiva, sugerindo a criatividade como outro importante componente da racionalidade. Popper (1974, p. 1085) não considera isso um problema sério; ele menciona a simplicidade e a ousadia na formulação de problemas e de suas tentativas de solução como outros componentes da racionalidade. Contudo, Popper defende que a atitude crítica é o ponto decisivo da racionalidade; é a capacidade de maior importância. Popper é anti-essencialista e não conjectura o que é ‘racionalidade’; prefere, à la Sócrates, associá-la à capacidade de adotar uma atitude racional de prontidão para escutar os argumentos críticos e para aprender com a experiência (POPPER, 1966, p. 224-5). Para Popper, se estamos aprendendo com a experiência, isso significa apenas que algumas de nossas teorias podem ser falsas. A teoria do conhecimento de Popper tem esse fundo socrático na atitude do racionalista crítico, uma vez que a ciência pode ser “a learning enterprise whose sole objective is to find errors in our understanding” (BOLAND, 1998, p. 167). CONSIDERAÇÕES FINAIS: INTERVENÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO

A proposta metodológica de Popper não fica restrita à prática científica, mas tem reflexos na realização de intervenções sociais e seus múltiplos propósitos, dentre os quais o combate à pobreza, ao desemprego e a todas as formas de miséria social e econômica que impossibilitam as pessoas de desempenharem sua autonomia como seres humanos. Entendo ação social como qualquer forma de intervenção sobre a ordem social e econômica com diferentes propósitos, desde os constitucionais até os distributivos, e

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desenvolvimento humano, como um processo de expandir as capacitações humanas, dentre as quais a autonomia.

Seguindo as orientações de Karl Popper, as reformas sociais são realizadas com o emprego da tecnologia social gradual, baseada em planos simples e com o reconhecimento da falibilidade de nosso conhecimento acerca da realidade. Esse método de intervenção social está relacionado com o método científico-social de tornar públicas as propostas das diferentes atividades de desenvolvimento (como se fossem teorias). Isso incentiva o debate público e crítico, estruturado sobre o racionalismo crítico, na busca dos possíveis efeitos não esperados, na sua comparação com os esperados, e na tentativa de propor soluções para mitigar esses efeitos adversos. A comparação permite ajustamentos das propostas de intervenção social para melhor atingir o objetivo de desenvolvimento humano, bem como propiciar o crescimento do conhecimento acerca da realidade das pessoas envolvidas.

Popper demonstra que a atividade de conhecer, própria da razão humana, não fica restrita ao que então se conhecia como ciência, ou seja, apenas aos fatos que possuem comprovação empírica. Estamos cercados de tantos outros elementos de nossa realidade, além da nossa capacidade de percebê-los, que faz com que o nosso conhecimento seja falível. Mas isso não impede que estejamos sempre às voltas com conjecturas ousadas acerca da realidade, ou sobre o que é possível conhecer dela, conjecturas essas que dizem respeito a nossa participação, como seres ativos e reformadores das situações práticas individuais, e nossas ações sociais, que implicam mudanças institucionais e até revoluções na sociedade semelhantes às revoluções científicas. Portanto, não apenas os fatos sociais que observamos orientam nossos procedimentos sobre como devemos viver, mas, principalmente, somos seres capazes de usar nossa racionalidade para modificar e implementar novos

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procedimentos em busca do que conjecturamos ser o desenvolvimento humano.

Nesse sentido, Popper enaltece a democracia institucional e sugere a adoção da tecnologia social gradual. A perspectiva metodológica-social de Popper mostra um método que permite a intervenção sobre a sociedade via suas instituições e, com isso, permite também empreender mudanças sociais com diversos propósitos tais como o distributivo e o de minimizar o sofrimento. A preocupação epistemológica de Popper influencia sua proposta de intervenção social. As mudanças sociais – engenharia social – são possíveis de serem implementadas desde que sigam o método da tecnologia social gradual a partir de planos simples e do reconhecimento de que o nosso conhecimento é limitado e incerto. O conhecimento incerto e falível propicia a deliberação dos efeitos inesperados – as consequências não intencionadas – da política. E é na comparação dos resultados esperados com os inesperados que podemos modificar nosso conhecimento prévio e pensar em como modificar a proposta de política para resolver os efeitos adversos e promover o desenvolvimento humano. É esse processo de descoberta dos erros (consequências não intencionadas) e suas correções (com propostas alternativas) que possibilita o crescimento do conhecimento e o desenvolvimento da sociedade. A estrutura do pensamento de Popper arquiteta a intervenção social para agir sobre a sociedade, mudando instituições com o propósito principal de combater a injustiça econômica e social.

No entanto, permanecem problemas que não foram aprofundados por Popper. Faltam, ainda, explicações sobre como poderíamos avaliar os impactos das intervenções sociais sobre o bem-estar individual e social, tendo como pressuposto o entendimento de desenvolvimento como um processo de criar as condições para as pessoas terem autonomia nas suas próprias vidas. Ou seja, como deveria ser avaliado, por

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exemplo, o impacto de uma concessão de microcrédito para a fabricação de doces e compotas para mulheres pobres vivendo em determinada região rural. Como avaliar o desenvolvimento humano dessas mulheres em decorrência da intervenção social? Quais seriam as informações necessárias para fazer uma avaliação da intervenção social que tem como objetivo mudar a vida das mulheres vivendo em condição de pobreza?

Faltam, também, estudos sobre os ambientes propícios ao debate crítico, em vista da censura de Kuhn. Ainda que seja indicada por Popper uma sociedade do tipo participativo e democrático, não se pode olvidar a situação das pessoas em extrema pobreza, incapazes de participação social ativa, sendo necessário pensar em intervenção social que observe essas condições participativas atuais e que promova a plena integração das pessoas situadas à margem da sociedade ideal fundada no racionalismo crítico.

Contudo, aqui destaco o fio condutor recomendado por Popper: a necessidade de se dedicar aos problemas sociais mais urgentes, tais como o combate à fome, à miséria e ao desemprego, bem como todas as formas de injustiça social e econômica, problemas estes que merecem uma intervenção mais decisiva e rápida por parte dos técnicos sociais. Trata-se de temas sobre os quais há consenso que deveriam ser imediatamente atacados, prescindindo de debates anteriores acerca da necessidade de inclusão no plano de intervenção social.

O desafio é analisar o impacto dessas necessidades urgentes e outras ações sociais sobre o bem-estar das pessoas. Entretanto, a intervenção deveria ser realizada sem que se perca a autonomia das pessoas de guiarem suas próprias vidas, ou seja, sem se excluir a liberdade individual como direito prático da democracia. Em vista disso, ressalto o papel da discussão pública como a prática social mais valorizada

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quando se pretende planejar, empreender e avaliar atividades de desenvolvimento humano. REFERÊNCIAS ARTIGAS, Mariano. The Ethical Nature of Karl Popper’s Theory of Knowledge. Bern, Berlin, Bruxelas, New York: Peter Lang, 1999. BERNAYS, Paul. “Concerning Rationality”. In: Schilpp, Arthur Paul (ed.) (1974) The Philosophy of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern University and Sourthern Illinois University, 1974, p. 597-605. BOLAND, Lawrence. The Foundations of Economic Method. Canada: Simon Fraser University, 1998. HARRIS, Abram L. (1956). “John Stuart Mill’s Theory of Progress”. Ethics. 66 (3), 1956, p. 157-175. HAYEK, Frederick A. Von. “Scientism and the Study of Society”. Economica. New Series, 10 (37), 1943, p. 34-63. KERSTENETZKY, Célia. Ignorância e Intervenção em Popper e Hayek. Revista de Economia Política, 24 (3), 2004, p. 442-457. KUHN, Thomas S. “Logic of Discovery or Psychology or Research ?”. In: SCHILPP, Arthur Paul (ed.) The Philosophy of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern University and Sourthern Illinois University, 1974, p. 798-819. POPPER, Karl. “The Poverty of Historicism, II. A Criticism of Historicist Methods”. Economica, 11 (43), 1944, p. 119-137. _______. “The Poverty of Historicism, II”. Economica, 12 (46), 1945, p. 69-89. _______. The Open Society and Its Enemies. Vol. I. London: Routledge e Kegan Paul LTD, 1957. _______. The Open Society and Its Enemies. Vol. II. Princeton and New Jersey: Princeton University Press, 1966.

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_______. The Logic of Scientific Discovery. New York: Harper, 1968. _______. “Reply to my Critics”. In: SCHILPP, Arthur Paul (Ed.) (1974) The Philosophy of Karl Popper. Books I and II, La Salle, Illinois: Northwestern University and Sourthern Illinois University, 1974. _______. Search of a Better World. Lectures and essays from thirty years. London and New Your: Routledge, 1992a. _______. Unended Quest. An Intellectual Autobiography. Routledge: London, 1992b. _______. e NOTTURNO M. A. (Ed.) The Myth of the Framework. In defence of science and rationality. London and New York: Routledge, 1994.

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CAPÍTULO 15 NNOOTTAASS EEMM TTOORRNNOO DDOO DDEEBBAATTEE PPOOPPPPEERR––AADDOORRNNOO

Túlio Velho Barreto

Em seu Congresso de 1961, a Sociedade Alemã de

Sociologia promoveu um debate em torno do positivismo e da dialética como modelos explicativos nas ciências sociais. Sob a mediação de Ralf Dahrendorf e outros, Karl Popper, considerado, às vezes, não sem controvérsias, influenciado pelos membros do Círculo de Viena – mas, certamente, um pensador bastante lido e discutido por eles –, expôs suas teses acerca da lógica das ciências sociais. Na ocasião, coube a Theodor Adorno, representante da Escola de Frankfurt e, ao lado de Max Horkheimer, um dos formuladores da Teoria Crítica, oferecer uma réplica àquelas teses, tendo como ponto de partida a dialética.

Em seguida, surgiu uma série de comentários sobre o tema, além dos que foram feitos durante o evento e publicados na forma de livro, o que bem demonstra a sua relevância. Tal fato, aliás, está ressaltado, entre nós, por exemplo, em Marcondes (1998, p. 265), quando este lembra a importância da “polêmica dos frankfurtianos com Karl Popper, nos anos 60, em torno da caracterização da racionalidade científica”, e em Freitag (1986, p. 43-52), que destaca as contribuições que se seguiram ao debate, em particular as de Herbert Marcuse, de Jürgen Habermas e do próprio Adorno.

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É do conteúdo de tal debate que trata este capítulo. Aqui é abordado o pensamento de Popper, contido naquelas teses, e o de Adorno, consubstanciado na teoria crítica, como disse, e em suas próprias formulações da “dialética do esclarecimento”, de 1947, e da “dialética negativa”, de 1965 – esta última desenvolvida após o debate. Não se trata de discutir amplamente os dois autores, dada a vasta obra produzida por cada um deles, mas de trazer à tona aspectos pontuais expostos durante a polêmica provocada por seus trabalhos e dos comentadores74.

Para tanto, além de tratar da exposição de Popper (1978a, p. 13-34) e da réplica de Adorno (1986, p. 46-61), utilizam-se, aqui, os comentários complementares feitos a posteriori por ambos (ADORNO, 1983, p. 209-257; POPPER, 1978b, p. 35-49)75. Ainda nesse sentido, faz-se necessário uma referência a Freitag (1986), que dedica uma seção de seu livro sobre a Escola de Frankfurt a tratar especificamente daquele debate, bem como ao comentário de Habermas sobre o mesmo (1983, p. 277-312). No final, pode-se verificar a bibliografia complementar utilizada.

Finalmente, o presente texto está organizado da seguinte forma: a primeira e a segunda seções tratam, respectivamente, das teses de Popper e da réplica de Adorno, mas também um pouco das ideias originais desses autores e

74 O presente texto é uma versão resumida de artigo publicado pela revista Perspectivas Filosóficas (BARRETO, 2001). Ressalte-se que a principal diferença do original em relação ao texto que o leitor agora tem em mãos foi a supressão de duas subseções: uma, que tratava do diálogo entre os chamados ‘positivistas ou empiristas lógicos’ do Círculo de Viena e Popper; e outra, que abordava o contexto em que Adorno e Horkheimer formularam as principais ideias em torno da Teoria Crítica. Tal fato, no entanto, em nada prejudica a compreensão do debate aqui tratado. 75 Os dois primeiros textos, a conferência de Popper e os comentários de Adorno, foram publicados, originalmente, em 1962, no ano seguinte à realização do debate. Já o segundo de Adorno é de 1969, enquanto o de Popper é de 1970. Finalmente, o texto de Habermas é de 1969. Tais datas correspondem às primeiras edições em alemão. Aqui, como se indica acima e na bibliografia, foram utilizadas as edições brasileiras, devidamente identificadas.

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das escolas que eles representam ou às quais são associados; na terceira e última são expostos e discutidos os comentários posteriores de ambos acerca do tema. POPPER E SUAS TESES SOBRE “A LÓGICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS”

Sob o título acima, Popper elaborou, a pedido da organização do Congresso de Sociólogos Alemães, um paper onde expôs e defendeu suas principais ideias relacionadas, sobretudo, à epistemologia das ciências sociais na forma de teses enumeradas, visando facilitar a discussão. Esta seção trata de tais teses. Aqui, o objetivo é, antes de tudo, dar uma ideia de seu conteúdo geral e destacar aqueles pontos mais relevantes para o debate que se seguiu entre Popper e Adorno.

Popper propõe, logo no início de sua exposição, partir de duas teses, onde ele opõe o conhecimento e o não-conhecimento (a ignorância). Com efeito, afirma ele, “conhecemos muito” (primeira tese), mas “nossa ignorância é sóbria e ilimitada” (segunda), inclusive “no campo das próprias ciências naturais”. No entanto, segue Popper, apenas aparentemente há contradição entre essas duas teses, pois é do desencontro entre tais situações que surge a tensão que impulsiona o conhecimento. Cabe então à lógica do conhecimento discutir tal tensão (terceira e quarta teses) Assim, pode-se dizer que

o conhecimento não começa de percepções ou observações ou de coleção de fatos ou números, porém, começa, mais propriamente, de problemas. Poder-se-ia dizer: não há nenhum conhecimento sem problemas; mas, também, não há nenhum problema sem conhecimento. Mas isto significa que o conhecimento começa da tensão entre conhecimento e ignorância (POPPER, 1978a, p. 14).

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Na tese seguinte, Popper desenvolve a relação entre a importância do problema a ser investigado e a forma (o método) como isso deve ser feito. Assim, para ele, “é o caráter e a qualidade do problema e também, é claro, a audácia e a originalidade da solução sugerida, que determinam o valor ou a ausência do valor de uma empresa científica” (POPPER, 1978, p. 15). Dito isso, e antes de apresentar sua sexta e “principal tese”, Popper redimensiona o papel da observação para a produção e aquisição do conhecimento científico (quinta tese). Afirma Popper:

[Em todas as ciências] o ponto de partida é sempre um problema [teórico ou prático] e a observação torna-se algo como um ponto de partida somente se revelar um problema. [Mas] o ponto de partida de nosso trabalho científico é não tanto a pura e simples observação, porém, mais adequadamente, uma observação que desempenha um papel particular, isto é, uma observação que cria um problema [de pesquisa] (POPPER, 1978a, p. 15).

Ao se referir à sexta tese como a principal, Popper, é

evidente, tinha uma razão maior. Nela, como veremos a seguir, Popper praticamente resume a lógica que defende não só para a investigação no campo das ciências sociais mas também para as ciências naturais. Trata-se, sem dúvida, de uma clara síntese de seu princípio da refutabilidade, por um lado, e do que ele denominava de “racionalismo crítico”, por outro. Por esta razão, abaixo a reproduzo na íntegra.

a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente.

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b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la; pois toda a crítica consiste em tentativas de refutação. c) Se uma solução tentada é refutada, através do nosso criticismo, fazemos outra tentativa. d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e criticada mais além. e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severas críticas. É um desenvolvimento crítico consistente do método de ‘ensaio e erro’. f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e mais ainda, que o instrumento principal da crítica lógica – a contradição lógica – é objetivo (POPPER, 1978a, p. 15-16).

Como consequência da tese anterior, mas, sobretudo, a

partir das demais que se seguem, apreende-se que o critério para definir o caráter científico de uma teoria está na possibilidade de validá-la, refutá-la e testá-la. Deve-se aceitar, ainda, que todo conhecimento é provisório no sentido em que é uma verdade momentaneamente aceita até que seja operado novo teste, nova tentativa de refutação. Em tal processo, é necessário, entretanto, rejeitar o dogmatismo – consubstanciado, para Popper, principalmente no marxismo e na psicanálise – e o indutivismo.

Contra o indutivismo, particularmente, Popper dedica várias de suas teses para refutá-lo, enquanto faz a defesa da adoção do método hipotético-dedutivo. Antes, porém, ele aborda, também em diversas teses, a questão da objetividade e da neutralidade valorativa do conhecimento científico. Em ambos os casos, tais temas estão submetidos à crítica lógica. Quanto à objetividade científica, Popper, além do que afirma em sua sexta tese – particularmente no último tópico –, nega

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que ela dependa da objetividade do cientista, quer ele se dedique às ciências naturais ou às sociais. Ademais,

o que pode ser descrito como objetividade científica é baseado unicamente sobre uma tradição crítica que, a despeito da resistência, frequentemente torna possível criticar um dogma dominante. [Assim,] a objetividade da ciência não é uma matéria dos cientistas individuais, porém, mais propriamente, o resultado social de sua crítica recíproca, da divisão hostil-amistosa de trabalho entre cientistas, ou sua cooperação e também sua competição (POPPER, 1978a, p. 23).

Quanto à questão da valoração, segundo Popper,

existem os valores e desvalores puramente científicos e os extra-científicos. Cabe, portanto, ao cientista crítico demarcar claramente quais os valores e desvalores situados em um e em outro campo, impedindo, sobremodo, que aspectos extra-científicos se confundam com as questões de verdade.

No que diz respeito ao indutivismo, é relevante ressaltar que, para Popper, “a função mais importante da pura lógica dedutiva é a de um sistema de crítica” incompatível com o indutivismo. Mas o que Popper quer dizer ao usar a expressão “lógica dedutiva”? Em suas palavras:

A lógica dedutiva é a teoria da validade das deduções lógicas ou da relação de consequência lógica. Uma condição necessária e decisiva para a validade de uma consequência lógica é a seguinte: se as premissas de uma dedução válida são verdadeiras, então a conclusão deve também ser verdadeira. [Portanto] a lógica dedutiva é a teoria da transmissão de verdade, das premissas à conclusão (POPPER, 1978a, p. 26; grifos no original).

Consequentemente, conclui Popper (1978a, p. 27),

a lógica dedutiva torna-se a teoria da crítica racional, pois todo criticismo racional toma a forma de uma tentativa de demonstrar que conclusões inaceitáveis podem se derivar da

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afirmação que estivemos tentando criticar. Se tivermos sucesso em deduzir, logicamente, conclusões inaceitáveis de uma afirmação, então, a afirmação pode ser colocada como digna de ser recusada.

Já em suas teses finais, Popper, por um lado, mantém o

foco sobre o “conceito de verdade”, que considera indispensável à sua abordagem crítica, e acerca da ideia de explicação causal, que lhe é tão cara, já que “a solução tentada de um problema, isto é, a explicação, consiste sempre numa teoria, em um sistema dedutivo que nos permite explicar o ‘explicandum’ [aquilo que se quer explicar] relacionando-o a outros fatos (as assim chamadas condições iniciais)” (POPPER, 1978a, p. 28). Assim, com tais conceitos lógicos, busca-se, sobretudo, a “aproximação da verdade” e o “poder explicativo de uma teoria”. Por outro lado, Popper acrescenta à lógica formal um método, que considera necessário às ciências sociais, denominado de “lógica da situação” ou “situacional”. Tal método “consiste em analisar suficientemente a situação social dos homens ativos para explicar a ação com ajuda da situação, sem outra ajuda maior da psicologia”. Para ele, trata-se de “um método puramente objetivo nas ciências sociais, que bem pode ser chamado de método de compreensão objetiva, ou de lógica situacional” (POPPER, 1978a, p. 31-32; grifos no original). É o próprio Popper que explica:

A compreensão objetiva consiste em considerar que a ação foi objetivamente apropriada à situação. Em outras palavras, a situação é analisada o bastante para que os elementos que parecem, inicialmente, ser psicológicos (como desejos, motivos, lembranças e associações), sejam transformados em elementos da situação. Um homem com determinados desejos, portanto, torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos; e um homem com determinadas lembranças ou associações torna-se um homem cuja situação pode ser caracterizada pelo

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fato de que é equipado, objetivamente, com outras teorias ou com certas informações (1978a, p. 31-32; grifos no original).

Daí, Popper chama a atenção, o método da lógica

situacional é individualista mas não psicológico, e que as explicações que o método propicia são “reconstruções racionais e teóricas” onde o mundo físico, que nos cerca e no qual agimos, é considerado.

Por fim, devo ressaltar que outras questões foram abordadas por Popper em suas teses, mas, no meu entendimento, são as que tratei aqui aquelas que mais chamaram a atenção de Adorno e foram discutidas por ele. Dessa forma, passo, a seguir, a expor a réplica oferecida por Adorno a partir da dialética apregoada pela Escola de Frankfurt.

A RÉPLICA DE ADORNO A POPPER

Inicialmente, é importante ressaltar que Adorno não seguiu a mesma estrutura do texto de Popper para apresentar a teoria crítica e o método dialético, segundo os frankfurtianos, conforme havia sido solicitado pela organização do evento. Isso, parece-me, lança uma espécie de névoa sobre o próprio debate, tanto quanto, possivelmente, dificulta uma síntese mais detalhada e precisa daquela réplica. Com efeito, Adorno foi bastante seletivo e, como bem aponta Freitag (1986, p. 46-47), concentrou-se em alguns conceitos para criticar ou contestar as teses originais. Por essa razão, e visando facilitar esta exposição, procurei ler o texto original de Adorno levando em consideração algumas das observações já oferecidas por Freitag, mas, principalmente, cotejar o que foi dito pelo autor frankfurtiano com as teses de Popper.

Adorno (1986, p. 46-61), logo no início de sua exposição, procura demarcar a diferença entre sua

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compreensão e a de Popper acerca do termo lógica, contido no título do trabalho debatido. Para ele, aquele termo tem “uma conotação mais ampla [que para Popper]; evoca mais os procedimentos concretos da sociologia do que regras genéricas de pensamento, a disciplina dedutiva” (ADORNO, 1986, p. 46). A partir daí, referindo-se às principais teses de Popper, Adorno começa a desenvolver seus argumentos em defesa da teoria crítica e da dialética, contrapondo-as ao racionalismo crítico e à lógica formal de seu antecessor.

Adorno parte, então, das duas primeiras teses de Popper, que tratam, como expus, do conhecimento abundante e do ilimitável não-conhecimento, com as quais Adorno concorda, embora as considere insuficientes. Para ele, a superação do “não-conhecimento passageiro”, a que se refere Popper, ou sua incorporação à esfera do conhecimento não ocorre, “no progresso da ciência e da metodologia, [...] por aquilo que, com um termo fatal e impróprio, denomina-se síntese. O objeto contrapõe-se à unidade simplista e sistemática das frases interligadas” (ADORNO, 1986, p. 47). Assim, ele critica a rejeição da contradição, um das características da dialética, no método da explicação sociológica, inclusive porque a sociedade, seu objeto, é contraditório, apesar de determinável. Dessa forma, para Adorno,

o ideal de conhecimento de uma explicação unívoca, simplificada ao máximo, matematicamente elegante, fracassa quando o próprio objeto, a sociedade, não é unívoca nem simples, nem tampouco se sujeita de modo neutro ao arbítrio da formação categorial, pois difere daquilo que o sistema de categorias da lógica discursiva antecipadamente espera (ADORNO, 1986, p. 47).

Por isso, os procedimentos da sociologia devem curva-

se ante o caráter contraditório da sociedade, caso contrário, “o

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empreendimento das ciências sociais corre permanentemente o risco de, por amor à clareza e à exatidão, passar ao largo daquilo que quer conhecer” (ADORNO, 1986, p. 47).

Relativamente à “primazia de problemas como tensão entre o saber e o não-saber”, Adorno, embora, a princípio, também concorde com Popper, manifesta a necessidade de ir mais longe. Para ele, por não ser unívoca, mas contraditória, “a sociedade é um problema enfático”, que nos leva a uma “insuficiência de julgamento” insuperável apesar da constante incorporação de conhecimento sobre ela. Da mesma forma, a contradição não deixa de existir porque conhecemos mais ou porque formulamos o problema de maneira mais clara ou, ainda, porque uma solução proposta foi verificada ou refutada. Na verdade, a diferença reside no fato de que, para Popper, “o problema é algo de caráter meramente epistemológico”, enquanto para Adorno, “é também algo prático”. Por isso, Adorno considera que separar os problemas reais dos imanentes seria fetichizar a ciência (ADORNO, 1986, p. 48-49).

Adorno faz igualmente algumas ponderações acerca das teses de Popper onde este defende a prioridade do problema sobre as percepções e a observação. Trata-se de discutir acerca do significado ou interesse que têm os problemas identificados pelo cientista e para os quais devem-se buscar soluções. Para Popper, observa Adorno,

a qualidade do desempenho científico-social está na exata proporção da significação ou do interesse que tenham os seus problemas. Desse modo, por trás disso tudo está, indubitavelmente, a consciência daquela irrelevância, à qual inúmeras investigações sociológicas são condenadas por obedecerem ao primado do método e não ao primado do objeto (ADORNO, 1986, p. 50).

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É certo, continua Adorno, que Popper não se recusa a dar peso ao objeto. Entretanto, novamente há que se “ponderar que sobre a relevância dos assuntos nem sempre se pode emitir um julgamento a priori” (ADORNO, 1986, p. 50). Da mesma forma, “a exigência de relevância do problema não poderá ser dogmatizada”, isto é, Adorno considera que

a escolha do tema de pesquisa legitima-se amplamente pelo que o sociólogo consegue depreender do objeto por ele escolhido, sem que isso sirva, de resto, de pretexto para todos os inúmeros projetos simplesmente desenvolvidos para a carreira acadêmica, nos quais a irrelevância do objeto combina perfeitamente com a obtusidade das técnicas de pesquisa (ADORNO, 1986, p. 50).

Ainda neste tópico, Adorno aborda as características

que, para Popper, devem ser observadas na definição, se os problemas de pesquisa são relevantes ou significativos e se as investigações entabuladas resultam em trabalho científico. Quanto à honestidade, Adorno ressalta que, na vida real, normalmente, se identifica tal qualidade no trabalho daquele que pensa o que todos pensam, mas dificilmente daquele que dá primazia ao objeto. Da mesma forma, trata da linearidade e da simplicidade, objetivos a serem perseguidos pelos investigadores sociais. Adorno os considera questionáveis na medida em que a própria sociedade é tão complexa e contraditória. Além do mais, para ele, é necessário desvencilhar-se das barreiras criadas pelo senso comum. Assim, diferentemente de Popper, Adorno entende que o arrojo e a peculiaridade das soluções propostas, características já apontadas pelo primeiro, são mais importantes.

Em seguida, Adorno defende que não só as soluções devem ser criticadas, mas, igualmente, os problemas, pois, “enquanto categoria, também não deve ser hipostasiado”, isto é, substantivado. Na prática, Adorno chama a atenção, “não

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raro têm-se soluções; ocorre-nos algo e posteriormente formula-se o problema. Mas isso não é mera coincidência”. Pois, continua,

as teorias do conhecimento [...] foram concebidas, mesmo pelos empiristas, de cima para baixo. Com frequência não conseguiram fazer justiça ao conhecimento adquirido efetivamente. Segundo um projeto de ciência que lhe é externo, ele foi ajustado como contínuo indutivo e dedutivo (ADORNO, 1986, p. 51).

Adorno procura mostrar, então, como a teoria do

conhecimento deve enfrentar tal questão:

entre as novas tarefas da teoria do conhecimento [...] está a reflexão a respeito de como se processa o conhecimento, ao invés de se descrever de antemão o desempenho de conhecimento segundo um modelo lógico ou científico, o qual, na realidade, não corresponde ao conhecimento produtivo (ADORNO, 1986, p. 51).

Assim sendo, como destaca igualmente Freitag (1986,

p. 46-47), Adorno contesta que o método – que, no caso de Popper, significaria as regras da lógica formal e situacional – tenha papel predominante no processo de aquisição de conhecimento. E vai mais longe ao observar que não é a adoção de tal método que garante objetividade e neutralidade à empreitada do cientista em busca da verdade científica. No mesmo sentido, embora concorde com Popper sobre o papel da crítica, a ideia de Adorno acerca desse conceito não é formal, assim como o é para o racionalismo crítico, mas material, e mesmo existencial. De fato, concorda Adorno, o “conhecimento sociológico é crítica” (ADORNO, 1986, p. 51).

É Freitag que nos ajuda a especificar melhor esta assertiva de Adorno:

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a sociologia concebida como dialética e crítica não pode deixar de guiar-se pela perspectiva do todo, ainda quando estuda um objeto particular, vendo esse todo não como sistema estabelecido, mas como produto histórico do passado e como aspiração de realização no futuro. A sociologia crítica não se reduz a uma autocrítica interna da disciplina, ela estende a sua crítica ao próprio objeto de análise: à sociedade contemporânea e também às hipóteses, conceitos e teorias desenvolvidas para representá-la, analisá-la. A crítica passa a ser o elemento que permeia todo o processo de conhecimento (FREITAG, 1986, p. 47).

Por último, cabe ressaltar ainda, Adorno não concorda

com a aproximação – ou mesmo equiparação – que Popper faz entre crítica e o princípio da refutação. Para ele, “a refutação é fértil apenas como crítica imanente”, pois, se é verdade, por um lado, que “a crítica de forma alguma pode ser separada da solução”, por outro lado, “as críticas são, via de regra, primárias, imediatas e apenas suscitam a crítica, pela qual são transmitidas a continuidade do processo de conhecimento; sobretudo, a figura da crítica pode, inversamente, implicar a solução, caso tenha logrado a boa forma; quase nunca ela surge de fora” (ADORNO, 1986, p. 52-53). Por isso, para Adorno, o próprio pensamento especulativo faz parte do processo de conhecimento e, portanto, não significaria não-saber social.

FINALIZANDO, AS TRÉPLICAS DE POPPER E ADORNO

Popper e seu racionalismo crítico suscitaram muitos debates. E continuam suscitando. Aquele, travado com os frankfurtianos, foi apenas um deles. Carvalho (1994), por exemplo, analisa a polêmica entre Popper e Thomas Kuhn. Esse mesmo debate é retomado por Worral (1995, p. 91-123). Há que se lembrar também aqueles travados com os

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empiristas lógicos de Viena, que Popper (1978b) tanto faz questão de ressaltar.

Aqui, tendo escolhido abordar o debate entre Popper e Adorno, pude, assim, retomar uma perspectiva teórica e metodológica bastante discutida na primeira metade do século XX e abordar uma outra bem distinta, que tanto marcou o pós-Segunda Guerra Mundial, de tal forma a possibilitar um contraponto. Contudo, como já havia antecipado, o debate entre tais perspectivas apenas começou em 1961, como se observa nas tréplicas oferecidas por Adorno e Popper e nos comentários de outros autores.

É interessante observar que Popper e Adorno, nas suas respectivas tréplicas, referem-se a um comentário de Raph Dahrendorf, que teria ficado surpreso com a relativa concordância entre aqueles autores, e ambos buscam contestá-lo. Por um lado, Popper justifica-se afirmando que não tinha razão para atacar a Escola de Frankfurt já que deveria falar acerca da lógica das ciências sociais. No entanto, isso não o impede de concluir, na ocasião dessa tréplica, que podia ter utilizado os argumentos expostos em obras anteriores, em particular contra os hegelianos e os marxistas, para demarcar suas divergências com a Escola de Frankfurt. Popper considera, ainda, que Dahrendorf nutria esperanças de que as diferenças políticas e ideológicas, inclusive em torno das concepções sociológicas, viessem à tona. Daí, sua frustração (POPPER, 1978b, p. 35-39).

Por outro lado, Adorno entende que ambos procuraram “tornar teoricamente comensuráveis as posições”, mas também que a discussão ficou no campo da ciência em geral e houve pouca articulação dessa com a sociologia. Contudo, Adorno considera que o que mais concorreu para a “aparente” concordância entre os dois pode ser resumido na “tese da prioridade” da lógica formal sobre qualquer outra, recurso, segundo Adorno, decerto positivista: “para ser

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possível, ela [a discussão] precisa proceder conforme a lógica formal”. Assim, para ele,

se um debate, impreterível como o presente, fosse conduzido a respeito de visões de mundo, partindo de pontos de vista extremamente opostos, seria infrutífero a priori; mas, passando à argumentação, sofre a ameaça de serem reconhecidas sem discussão as regras do jogo de uma das posições, que não perfazem por último o objeto de discussão (ADORNO, 1983, p. 209-210).

Ainda acerca da participação dos frankfurtianos no

debate, Adorno reclama que

os positivistas precisam fazer o sacrifício de abandonar a posição denominada por Habermas de ‘não-estou-entendendo’; não desqualificar simplesmente como ininteligível tudo o que não é concorde com categorias como os seus ‘critérios de sentido’ (ADORNO, 1983, p. 211).

Embora Adorno pareça ter razão, lembro que um

comentarista de sua obra, mais virulento, disse a respeito de um de seus livros que os trechos mais claros, ali contidos, são as citações que Adorno faz de Hegel, quando este, como se sabe, é considerado um autor quase impenetrável (cf. COHN, 1983, p. 7-8). De minha parte, devo confessar que, dos textos aqui utilizados, a tréplica de Adorno é, sem dúvida – chamemos assim –, o mais “pesado”. Mas, de fato, é nele que Adorno procura reafirmar seus pontos de vista, opondo-se, principalmente, aos argumentos de Hans Albert, debatedor que se posicionou a favor de Popper, também para contestar o que ele chama de “positivismo popperiano” – “mais ágil que o positivismo atual” – e defender a validade do debate acerca da controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, então questionada. Para Adorno, portanto, a despeito do que dizem aqueles que não veem progresso ou sentido na continuidade

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do debate, “um prosseguimento da controvérsia teria por tarefa tornar [claros] aqueles antagonismos básicos, de maneira alguma já inteiramente articulados”, pois tais antagonismos

não constituem divergências de visão de mundo. Têm seu lugar nas questões da lógica e da teoria do conhecimento, concernentes à concepção de contradição e não-contradição, essência e fenômeno, observação e interpretação. [Assim sendo,] a dialética se comporta de modo intransigente durante a disputa, porque acredita continuar pensando ali onde seus opositores se detêm, frente à não questionada autoridade do empreendimento científico (ADORNO, 1983, p. 257).

Por sua vez, Popper se queixa principalmente quanto

ao fato de os frankfurtianos qualificá-lo de positivista. E embora ele credite a Habermas a associação de seu nome ao positivismo (cf. HABERMAS, 1983), penso que, desde o início do debate, ainda na réplica de Adorno, era evidente tal intenção. Não só porque a associação já fora feita antes, como ele mesmo reconhece, mas também porque, para os frankfurtianos, o debate significava atacar o racionalismo crítico de Popper como herdeiro das tradições positivistas e, em particular, dos vienenses, apesar das propaladas diferenças entre ambos. Segundo Popper, todo o esforço dos frankfurtianos resultou apenas na associação de seu nome ao positivismo. Porém, suas teses não foram (sequer uma) contestadas por eles. Além disso, acrescenta Popper,

a principal consequência do livro [publicado com o conteúdo do debate] ficou sendo a acusação de Adorno e Habermas de que um ‘positivista’ do tipo de Popper está obrigado por sua metodologia a defender o ‘status quo’ político (POPPER, 1978b, p. 38).

Para se livrar de tal “acusação”, Popper, expõe, então,

sua ideia em torno dos papéis da teoria e da epistemologia nas

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ciências sociais do ponto de vista do racionalismo crítico, muitas vezes denominada de incrementalismo (político), que contribuiu para desenhar seu perfil ideológico, isto é, o de um liberal.

E é fato que minha ‘teoria social’ (que preconiza uma reforma gradual e setorial, controlada por uma comparação crítica entre os resultados esperados e os obtidos) contrasta fortemente com a minha ‘teoria do método’, que procura ser uma teoria das revoluções científicas e intelectuais (POPPER, 1978b, p. 39).

Ou seja:

Faz parte da minha epistemologia que, no homem, através da evolução de uma linguagem descritiva e argumentativa, tudo isto [as mutações errôneas, segundo a evolução darwiniana] modificou-se radicalmente. [...] Desta forma, [...] nós chegamos a uma nova possibilidade fundamental: nossas escolhas, nossas hipóteses experimentais, podem ser eliminadas criticamente pela discussão racional, sem eliminação a nós mesmos. Este é, de fato, o propósito da discussão racional crítica. O ‘suporte’ de uma hipótese exerce uma importante função nestas discussões; ele tem de defender a hipótese contra críticas erradas, pode talvez tentar modificá-la, se sua forma original não puder ser sustentada com êxito (POPPER, 1978b, p. 39).

Popper conclui tais argumentos defendendo que a

adoção do racionalismo crítico é a única forma de tornar a violência obsoleta, sendo, portanto, o papel dos cientistas o de fazer com que isso ocorra. Para tanto, é necessário usar “uma linguagem clara e simples” (POPPER, 1978b, p. 39), sobretudo porque “os padrões de verdade e do racionalismo crítico [...] dependem de clareza” (POPPER, 1978b, p. 41). Aqui, creio, reside uma crítica não explícita à maneira, por assim dizer, descritiva do método dialético da teoria crítica.

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Em seguida, Popper discute novamente a questão da objetividade nas ciências para (re)afirmar que a objetividade não se encontra no cientista, mas “no caráter público e competitivo da empresa científica e, isso, em certos aspectos sociais dela”, em outras palavras, “num ‘criticismo racional mútuo’, numa abordagem crítica, numa tradição crítica” (POPPER, 1978b, p. 40). Tal posição não deixa de ser semelhante à dos frankfurtianos. No entanto, há, parece-me – e assim desconfia Popper – enormes diferenças quanto ao significado que Popper e a Escola de Frankfurt atribuem ao termo crítica, como já pude, aliás, ressaltar na seção anterior.

A essa altura, e antes de concluir, Popper passa a referir-se à contribuição de Habermas ao debate, esclarecendo que “a maior parte do que ele diz parece-me trivial; o resto parece-me errado” (POPPER, 1978b, p. 46). Como Popper identifica, a discussão gira em torno do “princípio da identidade entre teoria e prática” (cf. HABERMAS, 1983), onde ele (Popper) usa os termos experiências, práxis, história, relacionando-os à ciência e à teoria. Penso, no entanto, que o desejo de Habermas, no referido texto, é questionar a capacidade do método do racionalismo crítico, em particular, e o positivismo, em geral, de teorizar acerca da sociedade por não a compreenderem “como totalidade, integrada no espírito dialético” (HABERMAS, 1983, p. 277). Evidentemente, Popper contesta a tese da primazia da teoria crítica frankfurtiana, em especial a dialética e suas implicações práticas e revolucionárias, sobre o racionalismo e o seu incrementalismo ou gradualismo reformador. Tal contestação tem, é claro, implicações de ordem prática e política, mas também, assim penso, de natureza epistemológica, pois, o que Popper parece querer dizer, enfim, é que não há superioridade de uma sobre a outra no sentido de interpretar, compreender e explicar a sociedade.

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Enfim, volto a um aspecto já mencionado, o fato de que Popper declara não ser positivista. De fato, para Popper, ser chamado de positivista “é um equívoco antigo, criado e perpetuado por aqueles que conhecem a minha obra somente de segunda mão” (1978b, p. 47). Tal “equívoco” foi criado, segundo Popper (1978b), pela tolerância de alguns membros do Círculo de Viena que chegaram a publicar suas críticas ao positivismo lógico. Como o próprio Popper afirma, é necessário

uma última palavra a propósito do termo ‘positivismo’. Eu não nego, decerto, a possibilidade de estender o termo ‘positivista’ até que ele abranja todos os que tenham algum interesse pelas ciências naturais, de forma que venha a ser aplicado até aos adversários do positivismo, como eu próprio. Sustento apenas que tal procedimento não é nem honesto nem apto a esclarecer o assunto. [...] Eu sempre lutei contra a estreiteza das teorias ‘cientificistas’ do conhecimento e, especialmente, contra todas as formas de empirismo sensualista. Eu lutei contra a imitação das ciências naturais pelas ciências sociais e pelo ponto de vista de que a epistemologia positivista é inadequada até mesmo em sua análise das ciências naturais as quais, de fato, não são ‘generalizações cuidadosas da observação’, como se crê usualmente, mas são essencialmente especulativas e ousadas (POPPER, 1978b, p. 47-48).

O debate em torno dos argumentos de Popper e de

Adorno já faz parte da história da filosofia da ciência do século XX. Mas, certamente, as tradições que eles representam continuam se confrontando, embora não tenham mais as cores originais, em função da morte prematura de Adorno, em 1969 – apesar do papel cumprido por Habermas depois disso e até a morte de Popper, em 1994. Com o passar dos anos, o que parece ter mudado são os artífices do debate, que têm se esmerado em formular novas versões da lógica formal cartesiana e da dialética hegeliana ou marxiana, pontos de

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partida de dois caminhos que, embora eventualmente se aproximem, não se tocam.

REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Introdução Sobre o Positivismo na Sociologia Alemã. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 209-257 (Coleção Os Pensadores). _______. Sobre a Lógica das Ciências Sociais. In: Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 46-61 (Coleção Grandes Cientistas Sociais). BARRETO, Túlio Velho. Positivismo versus Teoria Crítica: em torno do debate entre Karl Popper e Theodor Adorno acerca do método das Ciências Sociais. Perspectivas Filosóficas, vol. VIII, nº 15, 2001, p. 141-178. CARVALHO, Maria Cecília M. de. A Construção do Saber Científico: algumas posições. In: CARVALHO, Maria Cecília M. de (org.). Construindo o saber. Metodologia científica. Fundamentos e técnicas. Campinas: Papirus, 1994, p. 63-86. COHN, Gabriel. Adorno e a Teoria Crítica da Sociedade. In: Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Ática, 1986, p. 46-61 (Coleção os Grandes Cientistas Sociais). FREITAG, Bárbara. A Teoria Crítica: ontem e hoje. São Paulo: Editora Brasiliens, 1986. HABERMAS, Jürgen. Teoria Analítica da Ciência Dialética. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 277-299 (Coleção Os Pensadores). HORKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983a, p. 117-154 (Coleção Os Pensadores). _______. Filosofia e Teoria Crítica. In: W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno, J. Habermas. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983b, p. 155-161 (Coleção Os Pensadores).

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MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. POPPER, Karl. A Lógica das Ciências Sociais. In: POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Brasília: Universidade de Brasília, 1978a, p. 13-34. _______. Razão ou Revolução? In: POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/Brasília: Universidade de Brasília, 1978b, p. 35-49. WORRALL, John. ‘Revolução Permanente’: Popper e a mudança de teorias na Ciência. In: O’HEAR, Anthony (org). Karl Popper: filosofia e problemas. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, p. 91-123.

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CAPÍTULO 16 LLIINNGGUUAAGGEEMM EE CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO:: KKAARRLL PPOOPPPPEERR

EE AA QQUUEESSTTÃÃOO DDAA CCOOMMUUNNIICCAAÇÇÃÃOO Marcia Maria Rodrigues Semenov

Ler entre linhas é expressão própria do filósofo; todavia, Popper mostra-nos o próprio “entre linhas” a ser lido e ainda nos diz como lê-lo. Dele recebemos o legado do filósofo que acorda o discípulo para a dedução. Ele indica objetivamente o método de pesquisa; não discute o que seja o mal-estar de deparar-se com o desconhecido; mas, ao contrário, investiga o aparente mistério, pela lógica do conhecimento científico, pela propensão e por instâncias em realidades ou Mundos, – eis seu formidável procedimento teórico-filosófico.

Popper conduz-nos ao reconhecimento do Mundo da Linguagem, tão distinto que, apesar de ser M3, está presente nos três mundos. Em O Eu e seu Cérebro, mostra-nos a ocorrência de estágios evolutivos cósmicos (POPPER e ECCLES, 1991, p. 35) ou mundos possíveis de reconhecimento, tais como: o M1, M2, M3 e outros, - dando-nos abertura à ontologia ou metafísica, como diria Queraltó (1996), - pois novas descobertas advirão à medida que mais e melhor nos conhecermos. Popper mostra-nos a metafísica da natureza, refletida hodiernamente pelos que debatem teorias astrofísicas e a teoria quântica. Tal realização iniciou-se com a façanha de Popper ao livrar a ciência e a filosofia do método indutivo.

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O FETICHISMO DA INDUÇÃO E A OPÇÃO PELO SABER CONJETURAL

I do not believe in Beliefs (M. Forster).

Popper critica a definição por só resolver problemas

verbais, sendo pois, dispensável em ciência e filosofia. Definição equivale à significação. O conceito está definido se dele já foram obtidas a significação e a explicação precisas.

Popper combate Wittgenstein que, no aforismo 6.53 do Tractatus, diz: “O método correto da Filosofia seria: só dizer o que pode ser dito, isto é, as proposições das ciências naturais, - e, portanto, sem nada a ver com a Filosofia”. Wittgenstein reprova quem não define os conceitos fundamentais, advertindo-o que não dá sentido ao que diz: “e quando alguém quisesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que em suas proposições há sinais aos quais não foi dada denotação” (WITTGENSTEIN, 1987, p. 141-142), mostrando que o interlocutor não sabe o quê e do quê fala. Para Wittgenstein, quem não define o que quer falar, não sabe do que fala. Popper opõe-se a Wittgenstein. Por isso, nós chamamos, popperianamente, o método de dar sentido ao que se diz pelo uso da definição, de “fetichismo da definição” (SEMENOV, 2002, p. 32).

Tal fetichismo incide na definição por tentar incorporar “fetichistamente” o objeto a que se refere. Para Popper, em Sociedade Aberta, Universo Aberto, ela “teria que ser vista como ultrapassada pela ciência, pois a ciência traz novos problemas que levam para bem longe da linguagem preparada, construída” (POPPER, 1987b, p. 34).

Popper critica Carnap que defende a definição: “Carnap não vê que através de definições só são resolvidos problemas verbais” (POPPER, 1987b, p. 34). Ademais, para não retroceder ad infinitum, as definições, por indução, apelam

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para conceitos indefinidos. Logo, por meio delas, não se chega à “significação unívoca” (POPPER, 1987b, p. 35).

Popper reconhece que, de modo eficaz, mas não intencional, matou o neopositivismo. A indução “encobre” o percepto e simula haver um ponto final onde não há. “Os testes não podem ser levados “ad infinitum”: cedo ou tarde temos que parar”, diz Popper, na Lógica da Pesquisa Científica (POPPER, 1975a, p. 280); porém, Popper exige que “todos esses enunciados sejam suscetíveis de ser testados.”

Na Autobiografia Intelectual, Popper mostra a Logik der Forschung (1934) como crítica ao positivismo. As ideias de Popper eram discutidas no Círculo de Viena e foram editadas por Frank e Schlick junto às ideias dos positivistas. Filósofos ingleses e norte-americanos pensavam Popper como “um membro dissidente do positivismo lógico” que pretendia a “substituição do critério de verificabilidade pelo critério de falseabilidade” (POPPER, 1986, p. 95).

Na Seção 2, A lenda de Popper, e na 3, O pano de fundo da lenda: Critério de Demarcação versus Critério de Sentido, em Replies to my Critics (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963-964), Popper expõe a lenda sobre pertencer ao Círculo de Viena.

Em Reply to my Critics, Seção 1, Popper impressionou-se com o brilhantismo de Schilpp ao dizer que cada filósofo “deveria ter uma plataforma a partir da qual ele possa responder ao menos a alguns de seus críticos” (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 961 e 963). “Contudo a lenda cresceu, e continua crescendo” (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963), diz Sir Karl.

Popper afirma haver metafísicos e anti-metafísicos dizendo absurdos, mas apesar da “ausência de sentido de certas ideias metafísicas (como o atomismo, no passado), elas colaboram com o progresso das teorias científicas” (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963, parêntesis nossos). Assim,

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“absurdos” metafísicos do passado, hoje compõem a ciência, pois metafísica não é pseudo-discurso. “Opus-me às tentativas do Círculo de Viena de desprezar a metafísica outorgando-lhe o critério de ‘falta de sentido’ ou de significado” (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 963).

Combatendo a lenda, Popper alerta: “Meu critério de falseabilidade – que não é de significado, mas de demarcação, - é frutífero: prepara para o caminho da teoria de testabilidade e conteúdo, e para o fim do problema da indução” (POPPER in SCHILPP, 1974, vol. II, p. 964).

A “lenda de Popper” afirma fatos inexistentes. Popper nunca admitiu ser positivista e membro do Círculo de Viena. Todavia, Alice Ambrose (in SCHILPP, 1974, vol. 2, p. 964) defende o lendário “empirismo lógico de Popper”: “A dificuldade apresentada pelo princípio de [...] verificabilidade, [...] o Professor Karl Popper tentou evitá-la por um novo critério: uma demonstração é significante se ela for falseável”.

Os positivistas lógicos preferiram Popper mais como aliado que como crítico. John Laird, em Recent Philosophy, o descreve como “’crítico, mas também aliado’ do Círculo de Viena” (in POPPER, 1986, p. 220, nota 113a). Os neopositivistas esquivaram-se da crítica popperiana por concessões verbais, “autopersuadindo-se de que eu concordaria em substituir verificação por falseamento como critério de significatividade” (POPPER, 1986, p. 95), diz Popper; que resolveu não fazer concessões e nem voltar à carga e, antes da Segunda Guerra Mundial, o positivismo lógico estava morto.

Para Popper, o conhecimento científico é feito de hipóteses e conjeturas. Ele afirma: “Não acredito em definições, e nem que elas aumentem a exatidão; e detesto termos pretensiosos e a pseudo-exatidão que lhes é correspondente” (POPPER, 1983, p. 41).

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Popper se percebe (POPPER, 1983, p. 41), muitas vezes, como o soldado que constata que, salvo ele próprio, todos os outros estão com o passo trocado. Por sorte, uns membros do grupo acertam o passo com o seu: “Isto aumenta a confusão; e, não sendo um admirador da disciplina filosófica, satisfaço-me por suficientes membros do batalhão estarem com o passo trocado entre si” (POPPER, 1983, p. 41).

Hipóteses denotam mutações; e, aderindo ao evolucionismo darwiniano, a crítica racional de Popper leva nossas hipóteses a morrerem em nossos lugares. Advirão pois, ideias novas, superiores às convencionais. A pluralidade de conjeturas competidoras surge com a metodologia dedutiva de testes popperiana.

Popper afirma: “o que é indução para muitos, não passa de má compreensão do que é a dedução e a seleção. Testar é, obviamente, um procedimento dedutivo-seletivo. Inventamos uma coisa e a testamos. Quer dizer: abandonamo-la à seleção” (POPPER, 1987b, p. 54). Logo, o “indutivo, é não-criativo” (POPPER, 1987b, p. 56). Popper afirma que “a teoria da indução é a que tenta negar a criatividade do espírito e diz que tudo vem apenas do exterior” (POPPER, 1987b, p. 56). Ele nos norteia: “viver é resolver problemas” (POPPER, 1987b, p. 68).

A LINGUAGEM E OS ENIGMAS DO MUNDO E DO CONHECIMENTO

Interesso-me por ciência e filosofia para saber sobre o enigma do mundo em que vivemos e o enigma do conhecimento que temos do mundo. Só o reavivamento no interesse desses enigmas salvará as ciências e a filosofia das estreitas especializações e da fé obscurantista nas habilidades dos especialistas e em seu conhecimento e autoridade pessoais (Sir Karl Raimund Popper).

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Popper crê, como Darwin, na evolução do conhecimento e, como Bergson, que o “novo” surge da “alegria criadora”. “Novas ideias” aumentam o conhecimento, e “toda descoberta tem ‘um elemento irracional’ ou uma ‘intuição criadora’, no sentido de Bergson” (POPPER, 1975, p. 267), afirma Sir Karl.

Einstein fala da ‘busca das leis sumamente universais [...] a partir das quais se obtem uma imagem do mundo por dedução pura. Não há um caminho lógico’- diz Einstein, - ‘que leve a essas [...] leis. Só se pode alcançá-las por intuição, baseada em algo parecido com um amor intelectual (Einfühlung) dos objetos da experiência’ (POPPER, 1975, p. 267).

O realismo indeterminista subjaz à filosofia popperiana

baseada no Princípio da Incerteza de Heisenberg, pai da “nova teoria quântica” (POPPER, 1986, p. 98 e 99), como diziam na época. Deste Princípio, diz Hawking (2001, p. 111), “não se tem certeza da posição e da velocidade de uma partícula, ao mesmo tempo. Se mais precisamente se conhece uma, menos precisamente é possível conhecer a outra”.

Popper visitou Einstein em Princeton em 1950, ao fazer a “conferência (que Einstein assistiu), o ensaio Indeterminism in Quantum Physics and in Classical Physics [...] que seria a base deste volume do Pós-Escrito” (POPPER, 1988, p. 24 e 25, nota 2). Popper relata que conversaram sobre o indeterminismo, e que tentou fazer Einstein sair do determinismo, “que equivalia à ideia do mundo como um universo-bloco parmenidiano tetradimensional no qual a mudança era ilusão humana, ou perto disso.” Einstein concordou que esta era sua perspectiva, “e enquanto a discutíamos, chamei Einstein de ‘Parmênides’”. Popper disse “que se os homens e outros organismos têm experiência [...] no tempo, então isso era real”. Não se afasta a experiência do tempo; e não se pode pensá-lo, como uma

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coordenada espacial (anisotrópica). Na mesma nota de rodapé, Popper diz que, quatro anos após, em 1954, Pauli escreve a Born que Einstein já mudara, e que seu ponto de vista passara a ser “realista e não determinista”. Popper acresce: “a realidade do tempo e da mudança pareciam-me ser a crux do realismo.” E diz:

Apresentei a Einstein-Parmênides [...] minha convicção [...] contra qualquer visão idealista do tempo. E que, ainda que a visão idealista fosse compatível tanto com o determinismo como com o indeterminismo, se devia tomar uma posição clara a favor de um universo “aberto” – um universo no qual o futuro não estivesse em sentido nenhum contido no passado ou no presente, se bem que estes lhe impusessem severas restrições. Argumentei que não nos deveríamos deixar dominar pelas nossas teorias e ser levados a abandonar o senso comum com demasiada facilidade (POPPER, 1988, p. 25, nota 2).

O cisma se dá na Mecânica Quântica se o físico achar

que todos os problemas só têm origem e resolução na Física. Popper não aceitou o determinismo-instrumentalista, e atingiu os seus saberes do conhecimento e da epistemologia, desapegando-se de teorias inaptas à resolução de problemas. Aceitando mudanças, ele se autocriticou e corrigiu seu erro na Lógica, seção 77, indicando outra solução (POPPER, 1985, p. 118) mais verossimilhante, logo que percebeu falha em sua argumentação anterior, devido a um experimento imaginário que fizera anteriormente, mas que, após seus estudos sobre Born, notou sua não validade. Mas Popper optou por sustentar a tese de que o problema de interpretar a teoria quântica une-se ao de interpretar a teoria da probabilidade, pois defende que a teoria quântica seja vista como uma teoria estatística em relação a conjuntos. Popper diz que “a luz se fez ao notar a interpretação estatística da teoria quântica devida a Born”. Ele diz:

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de início, eu nem sempre distinguia o espalhamento de um conjunto de partículas de outro; mesmo eu contornando a dificuldade nos enunciados ‘formalmente singulares’ de probabilidades, a questão só se aclarou com a ajuda da noção de propensão (POPPER, 1986, p. 99-100).

Popper aceita a interpretação de Everett: “Interpretação

de Muitos Mundos”, da Mecânica Quântica, que é “devida essencialmente a Hugh Everett, III, e (foi) exposta de forma interessante por Wheeler e outros,” e continua:

As contribuições de Everett são excelentes [...] é uma discussão objetiva da Mecânica Quântica. No enfoque de Everett (contrário à interpretação de Copenhagen), não há necessidade nem ocasião para distinguir entre sistemas físicos “clássicos” [...] e os sistemas mecânico-quânticos. Por outro lado, todos os sistemas físicos são sistemas mecânico-quânticos, [...] mormente o usado nas medições; e, certamente, o universo (POPPER, 1985, p. 108).

Tal interpretação de Everett vem a ser uma

interpretação metafísica (POPPER, 1985, p. 109-110, nota 95). E, para entender a postura quântica de Popper, reportemo-nos ao êxito de Wheeler em colocações experimentais, em que “físico e fóton estão envolvidos num diálogo criativo que sempre transmuta uma das inúmeras possibilidades quânticas numa realidade definida, corriqueira”, diz Zohar (1990, p. 49 e 50).

Em experiências, Wheeler mostra que o cientista no mundo físico ou M1 espera a reação ou “opção” de um fóton, ao estímulo. O cientista e o fóton interagem; e o fóton tem suas possibilidades. Do universo participativo de Wheeler surgem questões: “Além das partículas, dos campos de força, da geometria, do espaço e do tempo, será o componente fundamental, o ato ainda mais etéreo do observador participante?” (in ZOHAR, 1990, p. 50) – o que equivale a

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perguntar: o fóton se decide assim, por haver alguma interferência do pensamento do observador?

“Como a realidade acontece” depende de nós que a desejamos do nosso modo preferido. Há as influências que emanamos e as que captamos no mundo em que vivemos. A consciência do observador é o agente metafísico da realidade, e por processos mentais e cerebrais, ele interage com o M1, resolvendo problemas. Para Wheeler, a consciência humana é o elo entre o mundo dos elétrons e a realidade cotidiana. Na vida diária, se alguém decide cantar, dirigir o carro, construir um prédio e de fato o faz, a consciência produz efeitos na realidade física. O ato de interferir na natureza exige que mudemos o modo de ver-nos e o nosso lugar no mundo natural.

As descobertas da Física Moderna talvez iluminem a natureza de nossa consciência ou mente, para compreendermos a interação participativa num diálogo criativo entre matéria e consciência, em nível quântico. A suposição de que a mente consciente do observador influi no surgimento de reações atômicas, numa experiência, - tal como na de Wheeler, - coincide com as preocupações do realismo indeterminista e da metafísica da natureza, de Sir Karl Popper.

Popper também se refere a ineficazes potências que se atualizam mesmo mostrando a evidência de desgaste e de fim natural. O revigoramento e a continuidade vital da matéria merecem atenção científica, apesar da aparente incompreensibilidade do caráter das coisas naturais. Diz Popper que a “matéria morta parece ter mais potencialidades que meramente produzir matéria morta” (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 28). Para ele, a consciência é um fenômeno emergente, uma propriedade de sistemas complexos superiores, mas não de átomos:

Parece que, num universo material, algo de novo pode emergir. Matéria morta parece ter mais potencialidades [...],

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produziu mentes em etapas demoradas, e, por fim, o cérebro e a mente humana, a consciência humana do “eu”, e a compreensão humana do universo. Na hipótese evolucionária: “a evolução produz as mentes e a linguagem humanas. [...] a mente humana cria histórias, mitos, utensílios, obras de arte e ciência (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 28 e 29).

A evolução humana não viola leis da Física, e a

Química segue critérios da natureza. Mas, com a vida, diz Popper (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29), - o universo passa a resolver dificuldades; e, com as formas mais complexas, objetivos são almejados.

Resta admirarmo-nos pelo fato da matéria transcender-se, produzindo mente, vontade, e todo um mundo de produtos da mente humana [...] Um dos primeiros produtos da mente humana é a Linguagem humana. Suponho-a como o primeiro dos produtos, e que o cérebro e a mente evoluíram em interação com a linguagem (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29).

A Linguagem, primeira construção teórica do M3,

aprimorou a onomatopeia e foi desenvolvendo sua normatização. A comunicação humana, por onomatopeia, fala e gestos, modulava-se por emissões sonoras de controle fonético, imitando sons da natureza (KEESING, 1961, p. 549ss). Referindo-se à realidade por signos, o homem objetivou-se ao seu interlocutor. Dedicando-se ao M3, na ânsia de dominar o mundo, a raça humana sobreviveu elaborando pari passu teorias relativas à linguagem, à confecção de artefatos e às estratégias de convívio tribal.

A Revolução Verde ou Agro-Pastoril, do Período Neolítico, foi possibilitada pela Linguagem do Homo Sapiens Sapiens. Nesta etapa antropológica, o homem criou o mito, impossível de existir sem a Linguagem.

Para Popper, a evolução humana não é somente o resultado da interação do acaso cego entre as forças do interior

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do organismo gerando mutação genotípica e as forças externas sobre o organismo criando mudança fenotípica.

Preferências e objetivos do organismo são produtos da seleção natural. Popper fala da “evolução orgânica” que é a nova interpretação científica de dois darwinistas, Baldwin e Lloyd Morgan, e que consta “no importante livro de Sir Alister Hardy, The Living Stream (in POPPER e ECCLES, 1991b, p. 29). Nela, os organismos têm repertório variado de comportamentos à sua disposição. Um novo comportamento adotado pode mudar o ambiente; por exemplo, a mudança consciente do animal para um novo tipo de alimentação, causa mudança biológica e ecológica. Assim, preferências individuais e habilidades novas podem levar à seleção e, daí, à construção de novo nicho ecológico. “Escolhendo” o seu ambiente, o organismo se exporá, como também aos seus descendentes, a um novo conjunto de pressões seletivas do novo habitat.

Darwin não se preocupou com influências ambientais em defesa das hereditárias, tal como os darwinistas modernos. Em Popper, encontramos tais ideias de Darwin, de seu The Origin of Species: “Seria fácil para a seleção natural adaptar a estrutura do animal aos seus novos hábitos”. “É [...] difícil decidir, e indiferente para nós, se os hábitos geralmente mudam primeiro, e as estruturas depois; ou se ligeiras modificações da estrutura conduzem à mudança de hábitos; provavelmente, ambos ocorrem, quase sempre, simultaneamente”- às quais Popper reage posicionando-se criticamente:

Concordo em que ambos ocorram, e em que neles é a seleção natural que age sobre a estrutura genética. [...] penso que em muitos casos, [...], os hábitos mudam primeiro. São estes os casos chamados de “evolução orgânica”. [...] discordo de Darwin ao dizer que a questão é “indiferente para nós”. Acho que ela nos interessa muitíssimo. Mudanças evolutivas que

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começam com novos padrões de comportamento – com novas preferências, novos propósitos do animal – não somente tornam mais compreensíveis muitas adaptações, mas também revestem as metas subjetivas e propósitos do animal de um significado evolutivo. [Assim destaca-se] o valor seletivo de uma certa liberdade inata de comportamento, em oposição à rigidez comportamental que torna mais difícil para a seleção natural a produção de novas adaptações. E pode tornar mais compreensível o modo como surgiu a mente humana (POPPER e ECCLES, 1991b, p. 31).

Para Sir Alister Hardy, tal “reestruturação” da teoria

darwiniana ajudará na elucidação de “sua relação com o espírito do homem”; e Popper destaca na escolha do homem, por falar e em seu interesse pelo discurso, a opção humana pela evolução de seu cérebro e de sua mente. A linguagem, assim que criada, exerceu sua pressão própria sobre a seleção, da qual emergiu o cérebro humano e a consciência do “eu”.

O interesse filosófico-científico popperiano está no desenvolvimento epistemológico e no progresso científico. Popper ressalta:

Na auto-observação, podemos verificar-nos, com frequência, na fronteira, nos limites da não-consciência [...] Nós, quase normalmente, sofremos durante o sono uma quase completa perda de consciência, perda grave, no sono muito profundo. [...] este tipo de evidência é [...] o que temos [...] sobre a possível emergência da consciência. [No caso do recém-nascido] embora ele, com toda a probabilidade, não tenha nada que se possa chamar de memória, ele, é natural, tem alguma espécie de conhecimento, informações ou expectativas, e tem de separar o consciente do que é, certamente, não-consciente. Embora a recriação da consciência aconteça a cada dia, eu penso que ela é possivelmente tão miraculosa quanto a primeira ocorrência da consciência [no recém-nascido] e que é quase tão difícil de entender (POPPER e ECCLES, 1992, p. 28 e 29).

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A consciência e sua evolução dependem da Linguagem e seu desenvolvimento, – o que corresponde à produção criativa constante e aprimorada do que chamamos M3. Popper assevera: “A consciência total depende de se ter uma teoria abstrata que deve ser formulada de modo linguístico” (POPPER e ECCLES, 1992, p. 30). E corrobora: “não há nada tão importante como a linguagem: minha teoria é que é pela linguagem que nos tornamos humanos e que a consciência humana – a consciência do eu – é uma consequência da linguagem” (POPPER, 1994, p. 71).

Outrossim, Popper afirma que

gostaria de descrever o problema da consciência dos animais como uma espécie de problema metafísico, no sentido de que qualquer hipótese, qualquer conjetura sobre ele não é falseável de nenhum modo, pelo menos no momento atual. E por não ser falseável ou testável, ele é metafísico (POPPER e ECCLES, 1992, p. 32).

Resumindo: a ocorrência epistemológica “como se

processa o conhecimento, no homem, acerca do universo” só ocorre pela linguagem.

O M3 é autônomo. Nele se dão descobertas e invenções que eram insondáveis até emergirem no M3. Ele é aberto e avança por conta própria. A Linguagem é exigência primordial para a elaboração do conhecimento no M3; conhecimento este correspondente às teorias, “essas redes que lançamos para capturar o que chamamos ‘o mundo’”– como diz Popper na Lógica da Pesquisa Científica, capítulo III.

Vivendo no M1, ao usarmos uma folha de papel (M1), e nela marcarmos estudos de teorias popperianas (M3), nós o fizemos por deixarmos o M3 (mundo de teorias) agir sobre nossas mentes (M2). Também nossa consciência (ou mente) ou M2 atua sobre o M1 que está nos livros e experiências, ao passo que o M2 pode abrir-se receptivamente ao M3. De forma

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distinta, “o Mundo 3 é intrinsecamente aberto” (POPPER, 1988, p. 128). Dele advêm as teorias.

Ademais, interessante é a argumentação de Queraltó (1996, p. 169): “na cosmologia do universo aberto se ‘recupera’ o caráter do tempo como fluência de fenômenos e como direção da evolução própria do mundo.”

O weltanschauung de Popper, em Universo Aberto, é indeterminista devido à novidade; daí sua coerência com o propensivismo e o indeterminismo.

Popper pensa o universo como um mundo de propensões, compatibilizando-se com as ideias de Born, por ver na questão probabilística a forma correta de interpretação do mundo. Nela, conforme Born, o mundo corresponde à movimentação das bolas de um jogo de bilhar romano.

Por conseguinte, foram estados virtuais, representados por probabilidades ou propensividades que fizeram parte da realização de múltipla escolha, ocorrida no momento da decisão sobre o meio (que se deveria escolher), pelo qual um processo físico indeterminado poderia se resolver.

Popper teve longevidade que, unida à sua genial racionalidade crítica, propiciou-lhe muitos posicionamentos filosóficos. “Sou quase tão velho como o automóvel”, disse ele, lembrando-se desta invenção de 1886 (POPPER, 1995, p. 218). Apesar de ter escrito tantas páginas sobre a Metafísica da Natureza, só foi reconhecido como metafísico ao ser publicada a frase que ele escreveu ao pronunciar-se às críticas recebidas no artigo de Hilary Putnam: “I am a tottering old metaphysician” (in SCHILPP, 1974, vol. 2, p. 993).

Sir Karl fornece-nos melhores explicações deste conhecimento certeiro que se pode ter da natureza, em Um Mundo de Propensões, segunda parte, no texto “Para uma Teoria Evolutiva do Conhecimento”, onde ele afirma que: “O nosso conhecimento tem muitas vezes o caráter de expectativas inconscientes, e por vezes podemos tornar-nos conscientes de

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ter tido uma expectativa deste tipo quando se verifica que ela não se realizou” (POPPER, 1991a, p. 46).

Vale lembrar Russell (1974, p. 176), ilustrando o problema epistemológico pela história de Chuang-Tze dos dois filósofos na ponte. Diz o primeiro: “vejam como os pequenos peixes se movimentam rapidamente. Nisso consiste o prazer dos peixes”. Replica o segundo: “como sabes, não sendo peixe, no que consiste o prazer dos peixes?” A isto, o primeiro retorque: “como sabes, não sendo eu, que eu não sei no que consiste o prazer dos peixes?”.

“Minha posição é a do segundo filósofo. Se outros filósofos sabem ‘o que seja o prazer dos peixes’, felicito-os; mas não tenho tal dádiva”, diz Russell.

Por que será que Popper parecer-nos-ia dar uma chance ao primeiro filósofo? Tal questão permanece em nós. Em Três Concepções Acerca do Conhecimento Humano (POPPER, 1975b, p. 385), Popper mostra Galileu e Kepler fazendo descobertas que hoje, podendo o homem olhar a Terra, de fora, do espaço, são primárias e básicas. Todavia, como eles sabiam que Copérnico estava certo? A resposta está em terem estudado o sistema solar por intuição criativa, interpretação matemática e pela visão evolucionária em relação aos fatos. Lembremos que Popper exalta a tradição racionalista da civilização ocidental, ativada por Galileu na discussão crítica na busca da verdade. “Avalia-se a ciência por sua influência liberalizadora – como uma das forças máximas que se dirigem para a liberdade humana” (POPPER, 1975b, p. 386).

Voltando à ilustração epistemológica de Russell da história de Chuang-Tze, entendemos que Popper aceitaria o primeiro filósofo da ponte provisoriamente, dando-lhe a chance de explicar sua ideia nova teoricamente e de abri-la à refutação. De fato, Popper defende a flexibilidade necessária do epistemólogo para dar à teoria a chance de corroborar sua têmpera.

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Nossa época é de cuidados ecológicos e não de morrer e nem querer que ninguém morra por ideias. Galileu, já em sua época, era possuidor de mente moderna, e achou que não valia a pena morrer por uma teoria que, mais cedo ou mais tarde, seria vista como verdadeira; e assim, continuou vivo e pesquisando.

A Linguagem será a patrocinadora do pacifismo, porque é pela Linguagem desenvolvida que as teorias são lançadas fora de nós. Popper afirma: “Na minha filosofia se alberga um elemento a que poderíamos chamar de darwinístico-combativo” (POPPER, 1987b, p. 19). Nenhum progresso seria possível sem a linguagem:

O progresso maior e mais importante que foi atingido no desenvolvimento do homem, que fez do homem homem, é, creio eu, o desenvolvimento da linguagem. É o desenvolvimento da linguagem que permite que coloquemos as hipóteses fora de nós (POPPER, 1987b, p. 19).

Finalmente, observemos que se o M1 e o M3 atuam um

sobre o outro, interagindo por meio do M2, torna-se coerente que repensemos profundamente o homem, à medida que ele se vai abrindo ao M3, - sobre o desenvolvimento e a evolução da sua autoconscientização.

SOBRE VALORES E METAS POPPERIANAS

A crítica racional é, na verdade, um meio através do qual aprendemos, crescemos em conhecimento e nos transcendemos (Sir Karl Raimund Popper).

Popper assim se autodesigna: “Eu sou um dos últimos

paladinos do Iluminismo” (POPPER, 1987b, p. 22). Ele defende o progresso da ciência, como também o progresso social na linha democrática que advém da Antiga Grécia. Seu

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fundamento filosófico é a Verdade, e sua norma principal: “não devemos temer a verdade” (POPPER, 1987b, p. 22), constitui fundamento do Iluminismo, do qual também faz parte a tolerância.

A conferência Tolerância e Responsabilidade Intelectual, de Popper, tem seu título corroborado pelo argumento de Voltaire (POPPER, 1987b, p. 97), - o Pai do Iluminismo, segundo Popper: “A tolerância é consequência do conhecimento de que somos falíveis: errar é humano e todos nós cometemos erros. Logo, devemos desculpar uns aos outros as nossas tolices. É esse o fundamento do direito natural”.

Finalizando, reiteramos com Sir Karl Popper:

Concluindo, só há um caminho para a ciência – ou para a filosofia: encontrar um problema, ver sua beleza e apaixonarmo-nos por ele; casarmo-nos com ele, até que a morte nos separe – a não ser que obtenhamos uma solução. Mas mesmo encontrando uma solução, poderemos descobrir, para nossa satisfação, a existência de toda uma família de encantadores, se bem que talvez difíceis, problemas-filhos, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com uma finalidade em vista, até o fim dos nossos dias (POPPER, 1983, p. 42).

REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 17 ÉÉTTIICCAA EE TTOOTTAALLIITTAARRIISSMMOO:: AA CCRRÍÍTTIICCAA DDEE PPOOPPPPEERR AAOO HHIISSTTOORRIICCIISSMMOO EE ÀÀ DDOOUUTTRRIINNAA DDOO PPOOVVOO EESSCCOOLLHHIIDDOO

Paulo Eduardo de Oliveira

A compreensão da posição crítica de Popper em relação às teorias historicistas exige a colocação de, pelo menos, dois pressupostos. Primeiro: sua crítica ao historicismo está fortemente marcada por um elemento de caráter religioso. Com efeito, a controvérsia popperiana com as tendências e manifestações historicistas está diretamente ligada à sua compreensão da natureza historicista da doutrina judaica do povo eleito. Portanto, não é possível compreender a posição anti-historicista de Popper, em toda sua amplitude, sem referência ao que o filósofo analisou a respeito de tal doutrina. Segundo pressuposto: sua crítica ao historicismo assenta-se, do ponto de vista filosófico, conceitual e metodológico, nos elementos constituintes de sua epistemologia e, mais precisamente, na sua posição pessoal em relação ao Racionalismo Crítico. De fato, as consequências teórico-práticas de sua concepção de conhecimento e de ciência aplicam-se, necessariamente, à sua compreensão da filosofia social e política. Esses dois pressupostos nortearão as reflexões aqui apresentadas.

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A INFLUÊNCIA DA EPISTEMOLOGIA DE POPPER EM SUA FILOSOFIA POLÍTICO-SOCIAL

A filosofia político-social de Popper funda-se a partir de sua vigorosa crítica ao historicismo, explicitada inicialmente em The Poverty of Historicism (1944-1945 [2002]) e ampliada significativamente em The Open Society and Its Enemies (1945 [1987]). Como analisa o próprio Popper, trata-se de “dois trabalhos mais ou menos complementares” (1977, p. 121). Entendidas pelo autor como seu “esforço de guerra”, estas duas obras tinham um duplo objetivo: de um lado, “pretendiam ser uma defesa da liberdade contra as ideias totalitárias e autoritárias”; de outro, colocavam-se como “uma advertência contra o perigo das superstições historicistas” (1977, p. 123).

Embora Popper tenha feito sua aparição no cenário filosófico como um filósofo da ciência, ao publicar, em 1934, sua Logik der Forschung [A Lógica da Pesquisa Científica (1972)], seus escritos de natureza sócio-política não destoam das linhas inicias de sua filosofia. Pelo contrário, são decorrentes de suas posições epistemológicas e de sua proposta original quanto à lógica da pesquisa científica. Neste sentido, no que diz respeito a The Poverty e The Open Society, Popper afirma que

brotaram ambos da teoria do conhecimento exposta em Logik der Forschung e de minha convicção de que nossas concepções, frequentes vezes inconscientes, acerca da teoria do conhecimento e de seus problemas centrais (‘Que podemos saber?’, ‘Até que ponto é certo nosso conhecimento?’) são decisivas para orientar nossa atitude em relação a nós mesmos e à política (1977, p. 123).

Note-se que Popper se refere a uma atitude, e não

apenas a uma posição teórica ou concepção filosófica. Portanto, mais do que simplesmente manter uma mesma linha de orientação teórico-metodológica, em relação à sua

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concepção de ciência e de conhecimento, a filosofia social de Popper aparece como decorrência natural da atitude que aquela concepção implica. É neste sentido que se pode compreender que seu Racionalismo Crítico não é uma teoria, mas uma “atitude prática ou comportamento” (1987, v. II, p. 232). Pode-se então dizer, continua Popper, que

o racionalismo é uma atitude de disposição a ouvir argumentos críticos e a aprender da experiência. É fundamentalmente uma atitude de admitir que ‘eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, poderemos aproximar-nos da verdade’. É uma atitude que não abandona facilmente a esperança de que por meios tais como a argumentação e a observação cuidadosa se possa alcançar alguma espécie de acordo sobre muitos problemas de importância, e que, mesmo onde as exigências e os interesses se chocam, é muitas vezes possível discutir a respeito das diversas exigências e propostas a alcançar – talvez por arbitramento – um entendimento que, em consequência de sua equidade, seja aceitável para a maioria, senão para todos. Em suma, a atitude racionalista, ou, como talvez possa rotulá-la, ‘a atitude da razoabilidade’, é muito semelhante à atitude científica, à crença de que na busca da verdade precisamos de cooperação e de que, com a ajuda da argumentação, poderemos a tempo atingir algo como a objetividade (1987, v. II, p. 232).

Termos como ‘esperança’, ‘crença’ e, sobretudo,

‘atitude’ (note-se que este último figura repetidas vezes) exprimem o caráter metalógico do Racionalismo Crítico, que ultrapassa os contornos puramente epistemológicos dos problemas discutidos. Como atitude intelectual, dessa forma, o Racionalismo Crítico é um modo próprio de se posicionar frente à vida, à sociedade, à ciência e à filosofia. O próprio Popper parece ter aplicado a si esta atitude, fato que fica claro nesta passagem da Logik:

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Admito, com sinceridade que, ao formular minhas propostas, fui guiado por juízos de valor e por algumas predileções de ordem pessoal. Mas espero que as propostas se tornem aceitáveis para os que apreciam não só o rigor lógico, mas também a ausência de dogmatismos; para os que se importam com as aplicações práticas, mas se interessam ainda mais pelas aventuras da ciência, pelas descobertas que, uma após outra, nos acareiam com novas e inesperadas perguntas, obrigando-nos a tentar encontrar respostas novas e insuspeitadas (1972, p. 39, grifos nossos).

Depreende-se daí uma concepção do conhecimento e

da ciência como uma constante aventura, uma busca permanente, uma aproximação da verdade, e jamais uma conquista definitiva. Se esta concepção-atitude vale para as ciências naturais, Popper acredita que também valha para as ciências sociais, apesar das peculiaridades desta. É neste sentido de oposição a todo dogmatismo, portanto, que Popper rejeita qualquer pretensão de alguém se autonomear “profeta” em termos de compreensão dos processos históricos. E afirma: “Em vez de nos estadearmos como profetas, devemos tornar-nos os autores de nosso destino” (1987, v. II, p. 289). A base de sua crítica ao historicismo reside precisamente aí.

Para compreender melhor a posição de Popper, em sua filosofia político-social, é preciso, portanto, ter em mente sua concepção epistemológica e, assim, vislumbrar as atitudes dela decorrentes. Em breves passadas, pode-se dizer que a tese central da Logik é de que o conhecimento, mesmo no nível daquilo que se denomina ciência, é sempre falível e suscetível a erro. As melhores teorias não passam de aproximações ou verossimilhanças daquilo que o mundo é. Portanto, a atitude básica de todo cientista (ou intelectual) deve ser a modéstia (como rejeição de todo dogmatismo), a partir da qual o compromisso pessoal do pesquisador se volta para a permanente busca da verdade e não para a defesa das próprias teorias ou concepções. Esta busca permanente da verdade

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caracteriza-se pelo empenho do cientista em constantemente tentar, por meio de testes empíricos, falsear ou refutar suas posições (formuladas sempre como hipóteses ou conjecturas) ao invés de buscar verificá-las. Mesmo quando uma conjectura sobrevive aos testes empíricos, a teoria é aceita “provisoriamente” ou tida como “corroborada” (1972, p. 34), mas jamais como definitivamente verdadeira. Com efeito, afirma Popper, “nunca suponho que, por força de conclusões ‘verificadas’, seja possível ter por ‘verdadeiras’ ou mesmo meramente ‘prováveis’ quaisquer teorias” (1972, p. 34).

Ao propor que a lógica da pesquisa científica faz o caminho das hipóteses para o teste empírico [por meio do método dedutivo (1972, p. 33ss)], Popper abandona a lógica indutiva (1972, p. 27ss), que caracteriza a posição positivista, da qual o filósofo se distancia. Desse modo, ele sublinha a assimetria existente entre verificabilidade e falseabilidade (1972, p. 43), que se pode entender da seguinte forma: enquanto as sucessivas verificações (indutivas) não são suficientes para provar a verdade definitiva de uma hipótese, a falseabilidade (dedutivamente) é capaz de provar sua falsidade. Um exemplo: enquanto sucessivos testes bem sucedidos não conseguem provar a verdade definitiva da teoria “todos os cisnes são brancos”, um só teste contrário consegue provar, definitivamente, sua falsidade.

Aspecto central na Logik é o “problema da demarcação” (1972, p. 34), ou seja, a distinção entre teorias ou posições que podem ou não ser consideradas científicas. Popper sustenta que a linha de demarcação entre as teorias científicas e as não científicas (ou pseudo-científicas) é traçada a partir do critério de falseabilidade (1972, p. 41ss): toda teoria que não for capaz de dizer o modo ou as condições em que pode ser falseada (ou seja, toda teoria não falseável) não deve ser admitida como científica. Por outro lado, as teorias que se expõem à refutação

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são, na opinião de Popper, aquelas que estão no âmbito do que se denomina conhecimento científico. A CRÍTICA DE POPPER AO HISTORICISMO

Popper considera que “o historicismo fora a inspiração tanto do marxismo quanto do fascismo” (1977, p. 122), na medida em que suas propostas de mudança social eram apresentadas como forma inexorável de dar prosseguimento ao processo histórico. O aparente sucesso de tais propostas pode ser explicado como resultado de que o historicismo exerce sobre as pessoas uma espécie de “atrativo emocional”, enquanto desperta “uma sensação de estar sendo arrastado para o futuro por forças irresistíveis” (2002, p. 178).

Popper entende que “as ideias historicistas facilmente se salientam em tempos de grande mudança social”, como quando “se rompe a vida tribal dos Gregos, assim como a dos Judeus é destroçada pelo impacto da conquista babilônica” (1987, v. I, p. 31; o mesmo tema aparece também em v. II, p. 29). Portanto, o historicismo, em suas diferentes facetas, pode ser compreendido como um movimento de reação social, que fortalece ainda mais a ideia de tribo, como Popper indica na seguinte passagem:

Um dos traços que têm em comum as doutrinas do povo eleito, da raça eleita e da classe eleita é o de que as três se originaram e adquiriam importância como reações contra certo tipo de opressão. A doutrina do povo eleito adquiriu relevo na época da fundação da igreja judaica, isto é, durante o cativeiro babilônico; a teoria da raça ariana dominante do Conte Gobineau foi uma reação do emigrado aristocrático ante a afirmação de que a Revolução Francesa havia expulsado com êxito os senhores teutônicos. A profecia marxista da vitória do proletariado é a resposta a um dos mais sinistros períodos de opressão e exploração da história moderna (1987, v. I, p. 221, nota 3 ao capítulo 1).

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Em sua análise, Popper distingue duas abordagens de

doutrinas historicistas: a antinaturalista (2002, p. 19) e a pronaturalista (2002, p. 49). Em sua vertente antinaturalista, “o historicismo afirma que a relatividade histórica das leis sociais faz com que a maioria dos métodos da física sejam inaplicáveis à sociologia” (2002, p. 20). Para justificar esta posição, os historicistas recorrem a argumentos que envolvem questões como a generalização, o método experimental, a complexidade dos fenômenos sociais, a dificuldade de uma predição exata e a importância do essencialismo metodológico. Quanto à abordagem pronaturalista, os historicistas adotam um ponto de vista de que “a sociologia, como a física, é um ramo de conhecimento que pretende ser, ao mesmo tempo, teórico e empírico” (2002, p. 49, grifos no original). Na sua dimensão teorética, cabe-lhe explicar e predizer acontecimentos, enquanto que empiricamente lhe é reservada a tarefa de corroborar suas teorias pela experiência (2002, p. 49). Então, “certos métodos – predição por meio de leis e o pôr à prova as leis por meio da observação – devem ser comuns à física e à sociologia” (2002, p. 50). Quanto ao ponto de vista pronaturalista, afirma Popper, “estou totalmente de acordo [...] apesar de que o considere um dos pressupostos básicos do historicismo” (2002, p. 50). Porém, continua Popper, “não estou de acordo com o desenvolvimento detalhado deste ponto de vista”, que implica “as doutrinas antinaturalistas do historicismo e mais especificamente a doutrina das leis ou tendências históricas (2002, p. 50, grifos no original).

O historicismo, segundo Popper, “empenha-se em encontrar o Caminho pelo qual a humanidade está fadada a marchar, empenha-se em descobrir a Chave da História” (1987, v. II, p. 277). Mas, Popper o considera “um método falho, que produz resultados sem valor” (1987, v. I, p. 22). Isso porque “a história não tem qualquer significação” (1987, v. II, p.

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278, grifos no original). Isso poderia soar, à primeira vista, como uma forma de ceticismo histórico ou derrotismo, o que pareceria destoar com a atitude crítica do racionalismo. Contudo, continua Popper, afirmar que a história não tem significação “não quer dizer que tudo quanto possamos fazer a tal respeito seja olhar atônitos para o poder político, ou que devamos encará-la como uma cruel zombaria” (1987, v. II, p. 286). Pelo contrário,

podemos interpretá-la com vistas àqueles problemas do poder político cuja solução escolhemos tentar em nossa época. Podemos interpretar a história do poder político do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade, liberdade e pelo controle do crime internacional. Embora a história não tenha fins, podemos impor-lhe esses fins nossos: e embora a história não tenha significação, podemos dar-lhe uma significação (1987, v. II, p. 286-7, grifos no original).

Portanto, conclui o filósofo, “nem a natureza nem a

história podem dizer-nos o que devemos fazer [...] Nós é que introduzimos propósito e significação na natureza e na história” (1987, v. II, p. 287). O HISTORICISMO E A DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO

A visão historicista, tal como é analisada e criticada por Popper, abriga, entre outras concepções de fundo, a crença na doutrina religiosa do povo eleito ou do povo escolhido, que é uma das mais simples e antigas formas de historicismo (1987, v. I, p. 22). Sua especial atenção a esta concepção se explica no fato de que, “antes de Heráclito, não encontramos na Grécia teorias que possam ser comparadas, em seu caráter historicista, à doutrina do povo eleito” (1987, v. I, p. 24).

A ideia de povo eleito é uma doutrina típica das assim chamadas “religiões proféticas” (1987, v. I, p. 329), as quais

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consideram, em sua crença historicista, o destino, a degeneração e a salvação como elementos do itinerário humano. De acordo com esta crença, “a lei do desenvolvimento histórico é submetida à vontade de Deus” (1987, v. I, p. 22) e o historicismo aparece, assim (erroneamente na opinião de Popper), como “um elemento necessário da religião” (1987, v. II, p. 279).

Tal como Popper a compreende, “a doutrina do povo escolhido considera que Deus escolheu determinado povo para funcionar como o instrumento predileto de Sua vontade, e que tal povo herdará a terra” (1987, v. I, p. 22). Essa promessa de herança concede às pessoas eleitas um sentimento antecipado de sucesso histórico, diante do qual todos os sofrimentos e adversidades da vida não passam de contingências momentâneas. Mas, para Popper, “a religião, em especial, não deveria ser um substituto de sonhos e de anelos, não deveria assemelhar-se nem à posse de um bilhete de loteria nem à de uma apólice de companhia de seguros” (1987, v. II, p. 288).

Para se compreender melhor a posição de Popper frente a esta questão, deve-se considerar, em primeiro lugar, o modo como o filósofo se relaciona com a tradição judaica, da qual descende. Considere-se, sobretudo, a situação de sua família, de origem semita, que se converteu ao Cristianismo protestante. Este fato deve ter suscitado no jovem Popper uma série de questionamentos que o levaram, aos poucos, a rejeitar pessoalmente o Judaísmo e a ter em alta conta o Cristianismo, como se poderá verificar mais à frente. O ponto nefrálgico da rejeição popperiana ao Judaísmo parece estar na crença judaica na doutrina do povo escolhido, que implica uma forma de nacionalismo. Com efeito, afirma decididamente Popper em sua Autobiografia Intelectual, “é mau todo nacionalismo e todo racismo, e o nacionalismo judeu não constitui exceção” (1977, p. 113). Na doutrina do povo escolhido, portanto, Popper

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identifica traços explícitos das tendências totalitárias, e é esta a principal razão de sua crítica.

A doutrina do povo escolhido “é uma das tentativas de tornar a história compreensível através de uma interpretação teística, isto é, pelo reconhecimento de Deus como o autor da peça desempenhada no Palco Histórico” (1987, v. I, p. 22). Afirma Popper que o componente historicista, na religião, “é um elemento de superstição e de idolatria” (1987, v. II, p. 288) e, por isso, constitui prejuízo para a própria religião. Com efeito, sendo o historicismo algo estranho à natureza da religião, é possível encontrar expressões religiosas que não sejam por ele contaminadas. Decorre daí o fato de Popper, ao mesmo tempo em que critica o historicismo judaico, considerar com especial valor a posição sugerida pelo Cristianismo. Assim, ele reafirma, a visão historicista “é pura idolatria e superstição, não só do ponto de vista de um racionalista ou um humanista, mas do próprio ponto de vista cristão” (1987, v. II, p. 279-80). Popper insiste no fato de que “alguns dos maiores pensadores cristãos repudiaram essa doutrina como idólatra” (1987, v. I, p. 23) e cita o grande teólogo protestante Karl Barth, por exemplo, que “caracteriza a doutrina neo-protestante da revelação de Deus na história como inadmissível e como uma usurpação da função de realeza de Cristo” (1987, v. II, p. 281). Para Popper, a incompatibilidade entre o historicismo e o Cristianismo não é apenas uma posição pessoal sua, mas já “pode ser encontrada na crítica de Kierkegaard a Hegel” (1987, v. II, p. 283), a qual, de certo modo, Popper dá continuidade.

É importante fazer notar, desde já, que a contraposição entre Judaísmo e Cristianismo vai permear a The Open Society. Enquanto Popper rejeita o historicismo judaico, ele reconhece na doutrina cristã algo como uma proposta que não apenas nega o historicismo, mas que também corresponde à sua concepção de atitude racional. Com efeito, afirma ele, “a única

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atitude racional, assim como a única cristã, em relação à história, da liberdade, é a de que somos responsáveis por ela, no mesmo sentido em que somos responsáveis pelo que fazemos de nossas vidas” (1987, v. II, p. 280).

Outro elemento característico da doutrina do povo escolhido “é a longinquidade do que apresenta como o fim da história” (1987, v. I, p. 23). Este ponto, segundo Popper, é particularmente problemático, porque

embora, de fato, possa descrever este fim com certo grau de definitividade, longo caminho teremos de percorrer antes de alcançá-lo. E o caminho não só é longo, como coleante, subindo e descendo, para a direita e para a esquerda. Em consequência, será possível enquadrar bem, no esquema da interpretação, qualquer acontecimento histórico concebível. Nenhuma experiência concebível poderá refutá-lo. E os que nisso acreditam extraem daí certeza com referência ao resultado final da história humana (1987, v. I, p. 23, grifo no original).

A EXPRESSÃO DA DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO NOS ESCRITOS BÍBLICOS

A doutrina do povo escolhido está presente em praticamente todos os principais textos do Antigo Testamento, a parte da Bíblia que corresponde ao livro sagrado dos judeus (Torá). É surpreendente notar que os principais livros da Bíblia contêm passagens que se referem à doutrina do povo escolhido. Levando-se em conta que estes textos não foram escritos de uma só vez e nem por uma única pessoa ou comunidade, compreende-se o quanto esta doutrina impregnou o pensamento e a tradição religiosa judaica por um longo período.

Eis algumas das principais passagens em que aparece, literalmente, a ideia de eleição divina do povo e outros conceitos a ela relacionados: “o seu povo escolhido” (Daniel

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11:15); “meu povo, [...] meu eleito” (Isaías 43:20); “Judá foi seu santuário, e Israel seu domínio” (Salmos 114:2); “meus eleitos” (Isaías 65:15).

A ideia de herança e de propriedade (como um tesouro, a melhor parte) aparece como uma variação da ideia de povo escolhido. Algumas passagens que refletem esta doutrina são: “[Israel] tornou-se a minha herança” (Jeremias 12:8); “Israel, minha herança” (Isaías 19:25); “sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos” (Êxodo 19:5); “são eles o teu povo e a tua herança” (Deuteronômio 9:29); “o Senhor te escolheu, de todos os povos que há sobre a face da terra, para lhe seres o seu próprio povo” (Deuteronômio 14:2); “Israel, meu eleito” (Isaías 45:4). Em decorrência desse sentimento de posse, que se atribui a Deus, acredita-se também que a libertação do povo, pela ação divina, é motivo de contentamento para o próprio Deus: “E tirou dali o seu povo com alegria, e os seus escolhidos com regozijo” (Salmos 105:43). E o próprio Deus se confronta com as outras nações, em defesa de seu povo escolhido: “Congregarei todas as nações, e as farei descer ao vale de Jeosafá; e ali com elas entrarei em juízo, por causa do meu povo, e da minha herança, Israel, a quem elas espalharam entre as nações e repartiram a minha terra” (Joel 3:2). Compreende-se, daí, que, como sustenta Popper, a doutrina do povo escolhido implica uma “interpretação da divindade como um deus tribal” (1987, v. II, p. 29). Por essa razão, segundo Popper, até mesmo a concepção de monoteísmo dos judeus é “tribal e exclusivista” (1987, v. I, p. 305).

Subjaz, na doutrina do povo escolhido, a ideia de distinção, de honra especial: “o Senhor teu Deus te escolheu, para que lhe fosses o seu povo especial, de todos os povos que há sobre a terra” (Deuteronômio 7:6). Disso decorre a ideia de poder e grandeza, acima de todos os outros povos: “teu povo que elegeste; povo grande, que nem se pode contar, nem

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numerar, pela sua multidão” (1 Reis 3:8). E é com base nesta ideia de grandeza que se pode compreender, também, a convicção de que, no futuro, estes eleitos “herdarão a terra” (Isaías 65:9).

A doutrina do povo escolhido também estabelece níveis de distinção moral. Todos os outros povos, “estranhos às alianças da promessa” (Efésios 2:12), ficam em situação de desvantagem moral. A tal ponto que, o contato com outros povos torna impuro o povo escolhido, como se depreende desta passagem: “porque tomaram das suas filhas para si e para seus filhos, e assim se misturou a linhagem santa com os povos dessas terras” (Esdras 9:2). Aquilo que torna impuro o povo escolhido pode, contudo, ser servido aos outros povos: “Não comereis nenhum animal morto; ao estrangeiro, que está dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao estranho, porquanto és povo santo ao Senhor teu Deus” (Deuteronômio 14:21).

Também no Novo Testamento, cujo cenário é o do nascimento do Cristianismo, também aparecem, nas entrelinhas, as marcas da concepção judaica de “povo escolhido”. Isso revela que a forte tradição do historicismo judaico não foi facilmente rompida pela novidade da mensagem cristã. É sobretudo nos escritos de Paulo que aparecem as antigas marcas historicistas. Com efeito, Paulo havia sido fariseu, formado na escola do grande rabino Gamaliel. O farisaísmo era uma seita judaica, de caráter fundamentalista e fanático. Assim se compreende porque é difícil ocultar o caráter judaizante da doutrina de Paulo. Algumas passagens que confirmam esta tese são: “Deus não rejeitou o seu povo” (Romanos 11:2); para ele, os cristãos continuam a ser os “eleitos de Deus” (Hebreus 5:1), os seus “escolhidos” (2 Timóteo 2:10). Ainda prevalece a separação entre os não crentes (gentios) e os escolhidos de Deus: “Alegrai-vos, gentios, com o seu povo” (Romanos 15:10). Ele

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ainda acredita que dos israelitas é que são as promessas (Romanos 9:4), pois são eles os “eleitos de Deus” (Colossenses 3:12). Os outros povos são “estranhos às alianças da promessa” (Efésios 2:12).

Tudo isto parece estar em contradição com as ideias cristãs. Não é de estranhar que Popper conceda ao Cristianismo muito mais simpatia do que ao Judaísmo, questão que será melhor analisada na próxima seção. Com efeito, a expressão de Jesus “destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão” (Mateus 3:9 e Lucas 3:8) é um importante divisor de águas. Elas foram pronunciadas num contexto em que os judeus se envaideciam e se orgulhavam por serem “filhos de Abraão” e, portanto, herdeiros da promessa que Deus tinha feito de lhe dar uma grande posteridade, incontável como as areias do mar. No entanto, para Jesus, o fato de pertencer ou não ao povo escolhido, pela descendência de Abraão, parece totalmente secundário: são as obras boas, as atitudes, e não a descendência israelita que constituem a nova filiação divina, a nova eleição por parte de Deus. A mensagem de Jesus, portanto, não é concedida exclusivamente ao “povo escolhido”, mas a todos os homens e mulheres, a toda a raça humana. Se a vinda de Jesus, como o Messias, é a grande realização das profecias bíblicas, esta realização rompe, definitivamente, com a doutrina de “povo escolhido”, a quem pertenciam tais promessas. Eles esperavam (e ainda esperam) um Rei-Messias que restabelecesse o Reino de Israel, tantas vezes destruído pela dominação de outras nações e, no contexto histórico de Jesus, dominado pelo Império Romano. Neste sentido pode-se compreender a postura de Jesus que come com os pecadores (Lucas 15:2), que conversa com a mulher samaritana (João 4:9), que apresenta um samaritano como exemplo de virtude (Lucas 10:33), atende às necessidades dos próprios pagãos (Mateus 8:5), que afirma ter vindo trazer vida a todos e não apenas aos escolhidos (João

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10:10). É neste sentido, também, que se pode compreender a expressão de Jesus de que “os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mateus 19:30), como também a afirmação de “os mansos herdarão a terra” (Mateus 5:5) e não os escolhidos. A condenação de Jesus à morte, como um malfeitor e blasfemo, por acusação dos judeus, é o evento que marca decisivamente a distinção profunda entre a crença judaica na doutrina do povo escolhido e a crença cristã na fraternidade universal, expressa no “Pai Nosso” e no mandamento “Amai-vos uns aos outros”. A POSIÇÃO DE POPPER EM RELAÇÃO AO CRISTIANISMO

A crítica de Popper ao historicismo não é uma crítica cristã ou confessional, quer dizer, ele não a faz em nome do Cristianismo nem de qualquer outra confissão religiosa específica. Ele tem em vista qualquer expressão religiosa que, ao seguir princípios racionais, também descarte a doutrina historicista. Com efeito, escreve Popper, “afirmo que o historicismo não só é racionalmente insustentável, como também entra em conflito com qualquer religião que ensine a importância da consciência, pois tal religião deverá concordar com a atitude racionalista em relação à história, na ênfase que põe em nossa suprema responsabilidade pelas nossas ações e por suas repercussões no curso da história” (1987, v. II, p. 288). Contudo, apesar dessa universalidade religiosa aqui explicitada, Popper não deixa de manifestar sua preferência explícita pelo Cristianismo, obviamente sob a perspectiva político-social, que é foco que lhe interessa. Neste sentido, ele assinala o “quanto devemos à influência do Cristianismo por nossos alvos e fins ocidentais, pelo humanitarismo, a liberdade, a igualdade” (1987, v. II, p. 280). Para ele, os principais objetivos políticos do ocidente encontram eco na mensagem cristã.

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Sobretudo quanto à perspectiva histórica, Popper percebe uma mudança radical no centro das atenções que, normalmente, marcam o registro oficial da história: “o que importa ao Cristianismo – afirma – não são os feitos históricos dos poderosos conquistadores romanos mas, para usar uma frase de Kierkegaard, o que alguns poucos pescadores deram ao mundo” (1987, v. II, p. 281). O que está em jogo, aqui, é a noção de sucesso histórico, a ideia do domínio de um povo sobre outro, como evidência da vitória final na história. “Tal chave da história implica a adoração do sucesso; implica que os mansos serão justificados porque estarão do lado do vencedor” (1987, v. II, p. 283). Esta ideia é um dos fundamentos mais perigosos da doutrina do povo escolhido e, por isso, é amplamente criticada por Popper. Apoiando-se no teólogo protestante Karl Barth, o filósofo mostra sua própria opinião de que o Cristianismo não se conforma com a perspectiva de um sucesso histórico: “Minha intenção, ao citar Barth, é mostrar que não é só meu o ponto de vista ‘racionalista’ ou ‘humanista’ de que a adoração do sucesso histórico parece incompatível com o espírito do Cristianismo” (1987, v. II, p. 281). Ao contrário do que propõe o Cristianismo, “toda interpretação teística da história tenta ver, na história tal como é registrada, isto é, na história do poder, a manifestação da vontade de Deus” (1987, v. II, p. 281).

Popper critica a doutrina de que Deus se revela, pois ela justificaria a atitude historicista dos judeus e “alguns cristãos [que] ousam ver a mão de Deus [e] ousam compreender e saber o que ele quer” (1987, v. II, p. 281). Porém, continua Popper, “não é só a arrogância que jaz sob essas tentativas; é, mais especificamente, uma atitude anti-cristã. Pois, entre o que diz, o Cristianismo ensina que o sucesso mundano não é decisivo” (1987, v. II, p. 281). Neste sentido, compreende-se que sua crítica tenaz ao sucesso histórico, que é uma crítica de raiz cristã, atinge também a

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crença no sucesso histórico da própria Igreja, como se tal sucesso fosse a manifestação da vontade de Deus:

Os que sustentam que a história do sucesso do ensinamento cristão revela a vontade de Deus deveriam perguntar a si mesmos se esse sucesso foi realmente um sucesso do espírito do Cristianismo; e se esse espírito não triunfou antes do tempo em que a Igreja era perseguida do que no tempo em que a Igreja foi triunfante. Que igreja encarnou mais puramente esse espírito: a dos mártires ou a igreja vitoriosa da inquisição? (1987, v. II, p. 282).

As recaídas historicistas por parte da Igreja Cristã não

podem deixar de ser alvo da crítica de Popper, pois, como ele afirma, existe uma profunda “incompatibilidade entre o historicismo e o Cristianismo” (1987, v. II, p. 283) e é isso que parece ser o elemento fundamental de sua simpatia pelo Cristianismo. A DOUTRINA DO POVO ESCOLHIDO, O TRIBALISMO E O COLETIVISMO

A doutrina do povo escolhido está diretamente ligada a dois conceitos inter-relacionados, aos quais Popper se refere repetidas vezes: o tribalismo e o coletivismo. Para o filósofo, “não há dúvida de que a doutrina do povo escolhido nasceu da forma tribal da vida social” (1987, v. I, p. 23). O tribalismo é “a ênfase na suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto” (1987, v. I, p. 23). E, embora o tribalismo, do ponto de vista historiográfico, antropológico ou sociológico, tenha ficado para trás, nas primeiras linhas da pré-história, ele ainda permaneceu vivo na filosofia política de toda a cultura ocidental, até nossos dias. De fato, afirma Popper, a supremacia da tribo sobre o indivíduo “é a mensagem de Platão, do prussianismo de Frederico Guilherme e de Hegel” (1987, v. II, p. 38).

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Nota peculiar do tribalismo é “atitude mágica para o costume social”, que leva à “falta de distinção entre as regularidades costumeiras ou convencionais da vida social e as encontradas na natureza”, o que faz crer que “ambas são impostas por uma vontade divina” (1987, v. I, p. 187). A tendência à identificação entre os elementos convencionais e os naturais é tão fortemente arraigada na consciência das pessoas que, como afirma Popper, “nem mesmo um Heráclito distingue claramente entre as leis institucionais da vida tribal e as leis da natureza” (1987, v. I, p. 188).

Em manifestações históricas mais recentes, o tribalismo evolui para o coletivismo, cuja tendência é “acentuar a significação de certo grupo ou coletividade [...] sem a qual o indivíduo nada significa” (1987, v. I, p. 23; ver também p. 221). Expressões tribalistas ou coletivistas atuais são o Estado, a nação ou a classe (no sentido marxista do termo). Desse modo, esclarece Popper, pode-se encontrar “analogia entre o povo escolhido e a classe escolhida” (1987, v. II, p. 260). E, por essa razão, continua o filósofo, “o movimento marxista na Europa Central [...] foi de muitos modos um movimento coletivista e mesmo tribalista” (1987, v. II, p. 353).

Popper analisa a importância decisiva da linha de continuidade do historicismo que se estende de Platão a Hegel. Para ele, “a significação histórica de Hegel pode ser vista no fato de representar ele o ‘elo perdido’, por assim dizer, entre Platão e a forma moderna de totalitarismo” (1987, v. II, p, 37).

Como mostra detalhadamente a obra The Open Society, “na maioria, os modernos totalitários não se aperceberam de que suas ideias podem ser rastreadas até Platão” (1987, v. II, p. 37) e não perceberam também que “o programa político de Platão é puramente totalitário” (1987, v. I, p. 184) e que se pode verificar “a identidade entre o platonismo e o totalitarismo” (1987, v. I, p. 185). Em Platão, tem-se “a

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culminância das várias ideias historicistas apresentadas pelos primitivos filósofos gregos” (1987, v. I, p. 25). Porém, antes dele “nunca houve homem mais empenhado em sua hostilidade para com o indivíduo” (1987, v. I, p. 118) e, portanto, também mais empenhado na defesa e na propaganda do tribalismo e do coletivismo. “Platão ansiava pela unidade perdida da vida tribal” (1987, v. I, p. 94). Para Platão, o “sonho de unidade, beleza, perfeição, esse esteticismo e holismo e coletivismo, é tanto produto quanto sintoma do perdido espírito de grupo do tribalismo” (1987, v. I, p. 215), tão fortemente conservado na doutrina do povo eleito.

A filosofia de Hegel, por sua vez, é uma expressão clara do “renascimento do tribalismo” (1987, v. II, p. 37). Por isso, Popper está convencido de que aqueles que são simpáticos às doutrinas totalitárias “sabem de sua dívida para com Hegel” e sabem também que, de certo modo, “todos eles foram criados na atmosfera fechada do hegelianismo” e, assim, “foram ensinados a adorar o estado, a história e a nação” (1987, v. II, p. 37). No espírito do “coletivismo radical de Hegel” (1987, v. II, p. 37), que admite que o estado é tudo, e nada é o indivíduo, a doutrina do povo escolhido permanece viva enquanto é mantida a crença historicista de que “o Estado é a marcha de Deus pelo mundo” (Hegel in 1987, v. II, p. 38).

CONCLUSÃO

A crítica de Popper à doutrina do povo escolhido é um componente de sua crítica global ao totalitarismo e ao historicismo, raiz de sua compreensão do racionalismo crítico como atitude ética (OLIVEIRA, 2011). Uma vez que “a interpretação historicista pode ser comparada a um holofote que focalizamos sobre nós mesmos” (1987, v. II, p. 277), tanto do ponto de vista epistemológico quanto político social, o

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historicismo é uma concepção errônea, nascido de um ato de desespero:

O historicismo nasceu de nosso desespero com a racionalidade e a responsabilidade de nossas ações. É uma esperança degradada, uma degradada fé, uma tentativa para substituir a fé e a esperança que nascem de nosso entusiasmo moral e do desprezo pelo sucesso por uma certeza que provém de uma pseudo-ciência: uma pseudo-ciência das estrelas, ou da ‘natureza humana’, do destino histórico (1987, v. II, p. 288).

Assim, podemos concluir, a postura crítica de Popper

em relação ao historicismo e à sua consequente doutrina do povo eleito nasce da convicção pessoal de que, tanto no âmbito das ciências quanto no da política, nós “necessitamos de esperança [...] não necessitamos de certeza” (1987, v. II, p. 288). REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Paulo Eduardo de. Da ética à ciência: uma nova leitura de Karl Popper. São Paulo: Paulus, 2011. POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. _______. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977. _______. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. _______. La miseria del historicismo. Madrid: Alianza, 2002.

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