Karl Popper Em Busca de Um Mundo Melhor

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Karl Popper - Em Busca de Um Mundo Melhor

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EM BUSCA DE UM MUNDO MELHORKarl Popper

"Penso que s h um caminho para a cincia ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele at que amorte vos separe - a no ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente,a no ser que obtenham uma soluo. Mas, mesmo que obtenham uma soluo, podero ento descobrir, para vosso deleite, a existncia de toda uma famlia de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difceis, para cujo bem-estarpodero trabalhar, com um sentido,at ao fim dos vossos dias."Karl Popper

Na coleco Problemas, dirigida por Joo Carlos Espada:

Ttulos publicados:

1 - Em Busca de um Mundo Melhor, de Karl Popper (1 edio: 1989; 2 edio: 1989; 3 edio: 1992)2 - O Antigo Regime e a Revoluo, de Alexis de Tocqueville (1989)3 - O Futuro Est Aberto, Karl Popper e Konrad Lorenz (1990)4 - O Poder. Uma Nova Anlise Social, de Bertrand Russell (1990) - esgotado5 - Um Mundo de Propenses, de Karl Popper (199 1)6 - Cartas Filosficas, de Voltaire (1992)

Ttulos a publicar:

Ensaios sobre o Liberalismo, de Ralf Dahrendorf Sobre a Liberdade, seguido de Sobre o Socialismo, de John Stuart Mill A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, de Karl Popper Filosofia Moral e Poltica, de David Hume A Constituio da Liberdade, Friedrich A. Hayek

Ttulo original: Auf der Suche Nach Einer Besseren Welt @ Karl R. Popper Traduo: Teresa Curvelo Reviso cientfica: Manuel Loureiro Reviso literria: Joo Carlos Espada

Capa: Raimundo Santos Todos os direitos reservados por Editorial Fragmentos, Lda.

Editorial Fragmentos, Lda. Rua dos Navegantes, 46-2.Q Esq.1200 LISBOA Telefs. 66 15 62 / 60 17 73

Esta obra est protegida pela lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o meio utilizado, incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor ser passvel de procedimento judicial

PREFCIO traduo portuguesa deAUF DER SUCHE NACH EINER BESSEREN WELT

Sinto-me muito feliz pela edio em lngua portuguesa do meu livro Auf der Suche nach einer besseren Welt. Amo o pas e o seu povo, ainda que s tenha visitado Portugal em idade avanada.

Este livro de ensaios foi predominantemente seleccionado a partir de um ponto de vista lingustico: escrevo regularmente em duas lnguas, ingls e alemo, sobretudo ingls, mas todos estes ensaios constituem comunicaes que proferi em lngua alem, com excepo de duas: uma conferncia que fiz em Lisboa em Outubro de 1987*, a convite do vosso muito admirado Presidente, Dr. Mrio Soares, e uma conferncia proferida no Congresso mundial de Filosofia em Brighton, Inglaterra, em Agosto de 1988.

Kenley, 5 de Dezembro de 1988

Karl Popper

* Com a autorizao expressa do Presidente da Repblica, inclui-se nesta 2 edio o texto da conferncia em Lisboa de Karl Popper. Como foi explicado na altura, o texto foi retirado da 1 edio, com vista a permitir que a sua primeira publicao fosse integrada na edio da conferncia "Balano do Sculo". Ignorando-se ento a excelente recepo que o livro viria a obter, acordara-se que o referido texto seria integrado numa eventual 2 edio.

UM SUMRIO EM JEITO DE PREFCIO

Todo o ser vivo procura um mundo melhor. Os homens, os animais, as plantas, e mesmo os organismos unicelulares, esto permanentemente activos. Procura melhorar a sua situao ou, pelo menos, evitar qualquer deteriorao. Durante o sono, o organismo mantm igualmente activo o seu estado de inrcia. A profundidade (ou a superficialidade) do sono um estado activamente provocado pelo organismo, que protege o repouso (ou mantm o organismo em estado de alerta). Todo o organismo est permanentemente ocupado na resoluo de problemas, problemas que decorrem da apreciao da sua situao e do seu enquadramento, que procura melhorar.

A tentativa de soluo revela-se muitas vezes errnea, conduzindo a uma degradao. E ento seguem-se novas tentativas de soluo, novas experincias.

Com a vida - mesmo com a dos organismos unicelulares - surge algo de completamente novo no mundo, algo que no existia antes: problemas e

tentativas activas de soluo; avaliaes e valores; ensaio e erro.

Presumivelmente sob a influncia da seleco natural de Darwin, manifestam-se sobretudo os mais diligentes decifradores de problemas, os buscadores e os achadores, os descobridores de novos mundos e de novas formas de vida.

Todo o organismo trabalha para conservar as suas condies vitais intrnsecas e a sua individualidade - actividade essa a que os bilogos chamam "homeostase". Porm, tambm isto constitui uma desordem interior, uma actividade interna: uma actividade que procura conter essa desordem interior dentro de limites, um mecanismo de reaco, de correco de erro. A homeostase deve ser imperfeita, impor limites a si mesma. Se fosse perfeita, seria a morte do organismo ou, pelo menos, a supresso temporria de todas as funes vitais. A actividade, a desordem, a procura essencial vida, eterna desordem, perptua imperfeio; ao eterno procurar, esperar, avaliar, encontrar, descobrir, aperfeioar, aprender e criar de valores; mas tambm, ao perptuo errar, ao perptuo criar de no-valores.

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O Darwinismo acentua o facto de os organismos, se adaptarem ao meio-ambiente e se reorganizarem, desse modo, atravs da seleco natural. E afirma que o fazem passivamente. No entanto, parece-me muito mais importante que os organismos, na sua busca de um mundo melhor, descubram, inventem e reorganizem novos meios-ambientes. Constrem ninhos, diques, montanhas. Porm, a sua criao mais transcendente porventura a transformao do invlucro atmosfrico da Terra atravs da acumulao de oxignio; por sua vez uma consequncia da descoberta de que a luz solar pode servir de alimento. A descoberta dessa fonte inesgotvel de alimento e dos numerosos mtodos de captao da luz deu origem ao reino vegetal. E a preferncia dada s plantas como fonte nutritiva criou o reino animal.

Ns crimo-nos a ns mesmos atravs da inveno da linguagem especificamente humana. Como diz Darwin (A Origem do Homem, lY Parte, Cap. III), o uso e a evoluo da lngua humana, "reflectiu-se sobre a mente" "reacted on the mind itsclf"). As suas proposies podem descrever um facto, podem ser objectivamente verdadeiras ou falsas. E assim chegamos procura da verdade objectiva, ao conhecimento humano. A procura da verdade, sobretudo a das cincias naturais, necessria a tudo o que de melhor e de mais importante a vida, na sua busca de um mundo melhor, tem criado.

Mas no teremos ns destrudo com a nossa cincia o meio-ambiente? No! Cometemos erros graves - todos os seres vivos os cometem. efectivamente impossvel prever todas as consequncias no-intencionais dos nossos actos. E neste aspecto, a cincia constitui a nossa maior esperana: o

seu mtodo a correco do erro.

No quero terminar sem umas palavras sobre o xito da busca de um

mundo melhor ao longo dos 86 anos da minha vida, num perodo que cobre duas guerras mundiais absurdas e ditaduras criminosas. Apesar de tudo, e muito embora tenhamos falhado em tanta coisa, ns, os cidados das democracias ocidentais, vivemos numa ordem social mais justa e melhor (porque mais favorvel s reformas) do que qualquer outra, de que tenhamos conhecimento histrico. Outros aperfeioamentos urgem. (No entanto, as alteraes que aumentem o poder do Estado acarretam muitas vezes, infelizmente, o oposto daquilo que procurvamos.)

Gostaria de mencionar dois aspectos que conseguimos melhorar.O mais importante prende-se com o facto de a terrvel misria da populao, que subsistia ainda durante a minha infncia e juventude, ter desaparecido entre ns. (Embora, infelizmente, no tenha desaparecido em Calcut.) H quem conteste esta melhoria com o argumento de que existem simultaneamente indivduos demasiado ricos. Mas que interessa isso, se j bastante quando mais no seja a boa vontade - lutar contra a pobreza e outros sofrimentos evitveis?

O segundo diz respeito nossa reforma do direito penal. Primeiramente, esperava-se que a moderao das penalidades levasse a uma moderao dos crimes. Porm, quando assim no aconteceu, encontrmos como alternativa a opo, na nossa coexistncia com os outros, de suportar o crime, a corrupo,

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o assassnio, a espionagem, o terrorismo, em vez de arriscar a tentativa muito duvidosa de exterminar pela fora estas realidades, correndo o risco de sacrificar tambm os inocentes. (Infelizmente impossvel evit-lo por completo.)

H quem acuse a nossa sociedade de ser corrupta, embora admitam que, de quando em quando, a corrupo punida (Watergate). Possivelmente no esto a ver qual a alternativa. Ns preferimos uma ordem que conceda plena proteco legal mesmo aos crimes mais graves, de modo a que no sejam punidos em caso de dvida. E preferimos esta ordem nomeadamente a uma outra ordem em que os no-delinquentes no tm tambm nenhuma proteco legal e so punidos, porque a sua inocncia nem sequer pode ser defendida (Sakharov).

Ao tomarmos esta deciso, porventura tambm optmos por outros valores. Possivelmente, adoptmos inconscientemente a maravilhosa sentena de Scrates: " prefervel suportar a injustia de que pratic-la".

Kenley, 1988

K. R. P.

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I.

SOBRE O CONHECIMENTO

1. CONHECIMENTO E FORMAO DA REALIDADE: A BUSCA DE UM MUNDO MELHOR*

A primeira metade do ttulo da minha conferncia no foi escolhida por mim, mas pelos organizadores do Frum de Alpbach, cujo ttulo era: Conhecimento e Formao da Realidade.

A minha exposio compe-se de trs partes: Conhecimento, Realidade e Formao da Realidade atravs do conhecimento.

A segunda parte, relativa realidade, bastante mais extensa, dado que contm j muito do que vem a ser desenvolvido na terceira parte.

1. Conhecimento

Comecemos pelo conhecimento. Vivemos numa poca em que o irracionalismo voltou a estar na moda. Quero, pois, comear por confessar que considero o conhecimento das cincias naturais como o melhor e o mais importante que possumos - se bem que de modo algum o nico. Os pontos fundamentais do conhecimento cientfico-natural so os seguintes:

1. Ele parte dos problemas, e tanto dos problemas prticos como dos tericos.

Um exemplo de um problema importante de natureza prtica a luta da medicina contra os sofrimentos evitveis. Esta luta teve j algumas consequncias considerveis, de que a exploso demogrfica constitui um resultado no-intencional. Isto significa que um outro velho problema, o problema do controlo da natalidade, se revestiu de maior premncia. Uma soluo realmente satisfatria desta questo constitui uma das mais importantes tarefas da cincia mdica.

De igual modo, os nossos maiores xitos conduzem a novos problemas.

*Conferncia proferida em Alpbach, em Agosto de 1982. O subttulo "A Busca de um Mundo Melhor" - foi acrescentado por mim.

Agradeo a Ingeborg e Gerd Fleischmann a sua inestimvel e abnegada colaborao e a Ursula Weichart a sua ajuda prestimosa na redaco tantas vezes valorizada.

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Um exemplo de um importante problema terico no mbito da cosmologia diz respeito posterior reviso da teoria da gravitao e posterior investigao das teorias dos campos uniformes. Um problema de enorme relevncia tanto terica como prtica o da ulterior investigao da imunidade. Falando em termos genricos, dir-se- que constitui um problema terico a tarefa de explicar um fenmeno natural dificilmente explicvel de forma inteligvel e de rever a teoria explicativa atravs de prognsticos.

2. O conhecimento uma procura da verdade - a procura de teorias explicativas, objectivamente verdadeiras.

3. O conhecimento no a procura da certeza. Errar humano - todo o conhecimento humano falvel e, consequentemente, incerto. Da decorre que devemos estabelecer uma distino rigorosa entre a verdade e certeza. Afirmar que errar humano significa que devemos lutar permanentemente contra o erro, e tambm que no podemos nunca ter a certeza de que, mesmo assim, no cometemos nenhum erro.

Uma falha que cometamos - um erro - no domnio da cincia significa, em substncia, que consideramos como verdadeira uma teoria que o no . (Acontece muito mais raramente considerarmos falsa uma teoria que verdadeira). Combater a falha, o erro significa, pois, procurar uma verdade mais objectiva e fazer tudo para detectar e eliminar tudo o que falso. esta a funo da actividade cientfica. Poder-se- dizer igualmente que o nosso objectivo, enquanto cientistas, a verdade objectiva - mais verdade, uma verdade mais interessante, uma verdade mais inteligvel. A certeza no pode constituir a nossa meta, numa perspectiva de razoabilidade. Ao reconhecermos a falibilidade do conhecimento humano, reconhecemos simultaneamente que nunca podemos estar completamente seguros de no termos cometido algum erro. O que pode ser formulado do seguinte modo: existem verdades duvidosas - inclusivamente proposies verdadeiras por ns consideradas falsas - mas no existem certezas duvidosas.

Uma vez que nunca podemos saber com certeza, no devemos procurar as certezas, e sim as verdades, o que fazemos, essencialmente, ao procurar os erros para os corrigir.

O conhecimento cientfico, o saber cientfico , por conseguinte, sempre hipottico: um saber por conjectura. O mtodo do conhecimento cientfico o mtodo crtico - o mtodo da pesquisa e da eliminao do erro ao servio da busca da verdade, ao servio da verdade.

Evidentemente que me podem pr "a velha e famosa questo", como diz Kant, de "O que a verdade?" Na sua obra principal (884 pginas), Kant recusa-se a dar a esta pergunta uma resposta que no seja a de que a verdade "a concordncia do conhecimento com o seu objecto" (Kritik der reinen Vernunft, 2.4 ed., pp. 82/83). Eu diria, de modo semelhante: Uma teoria ou uma proposio verdadeira quando o facto por ela descrito est de acordo com a realidade. Gostaria de acrescentar ainda trs observaes:

1. Toda a assero formulada de forma inequvoca ou verdadeira, ou falsa; e, se for falsa, verdadeira a sua negao.

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2. Assim, h tantas asseres verdadeiras quantas falsas.3. Toda a assero inequvoca (mesmo que no saibamos com segurana se verdadeira) ou verdadeira, ou verdadeira a sua negao. Da decorre que errado equiparar a verdade verdade certa ou segura. A verdade e a

certeza devem ser nitidamente distinguidas uma da outra.

Se algum for convocado como testemunha num julgamento, ser exortado a dizer a verdade. E supe-se, com razo, que entender tal intimao: o seu depoimento dever estar de acordo com os factos; e no ser influenciado pelas suas convices subjectivas (ou pelas de outras pessoas). Quando o seu

testemunho no estiver em conformidade com os factos, isso significa ou que mentiu ou que cometeu um erro. Porm, s um filsofo - daqueles a que chamam relativistas - concordar com ele quando afirma: "No, o meu

testemunho verdadeiro, porque eu entendo por verdade justamente algo de distinto da concordncia com os factos. Eu entendo por verdade, na linha da proposta do grande filsofo americano William James, a utilidade; ou afirmo, segundo a proposta de um grande nmero de filsofos da sociedade alemes e americanos, que a verdade aquilo que a sociedade, a maioria, o meu grupo de interesses ou porventura a televiso aceita ou divulga."

O relativismo filosfico que se esconde por detrs da "velha e famosa questo 'O que a verdade?" abre as portas apetncia pelo falso que prpria dos homens. Mas a maior parte daqueles que defendem o relativismo no viram isto. No entanto, deviam e podiam t-lo visto. Bertrand Russell compreendeu-o, do mesmo modo que o compreendeu Julien Benda, o autor da obra A Traio dos Intelectuais (La trahison des clercks).

O relativismo um dos muitos crimes dos intelectuais. uma traio razo e humanidade. Suponho que o relativismo na concepo da verdade de certos filsofos uma consequncia da confuso volta das ideias de verdade e de certeza; porque em relao certeza, pode dizer-se que existem graduaes de certeza e logo uma maior ou menor preciso. A certeza igualmente relativa no sentido de que est sempre dependente do que se encontra em jogo. Creio, por conseguinte, que tem lugar aqui uma troca entre a verdade e a certeza; e, em muitos casos, mesmo possvel demonstr-lo.

Tudo isto se reveste da maior importncia para a jurisprudncia e a prtica jurdica, como o demonstra a frmula "na dvida pr ru" e a ideia do tribunal de jurados. O que pedido aos jurados que julguem se o caso que lhes apresentado um caso duvidoso ou no. Quem j tiver sido jurado compreender que a verdade algo de objectivo, e a certeza algo de subjectivo. Isto manifesta-se com extrema clareza na situao do tribunal de jurados.

Quando os jurados chegam a acordo - a uma "conveno" -, esta designada por "veredicto". A conveno est muito longe de ser arbitrria. dever de todo o jurado procurar descobrir a verdade objectiva em toda a conscincia. Mas ao mesmo tempo, deve ter conscincia da sua falibilidade, da sua incerteza. E no caso de uma dvida razovel no apuramento da verdade dever pronunciar-se a favor do ru.

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uma tarefa difcil e de grande responsabilidade, e vemos aqui claramente que a passagem da busca da verdade para um veredicto formulado verbalmente constitui o objecto de uma deciso, de uma sentena. E o mesmo se passa com a cincia.

Tudo o que disse at agora acarretar-me- sem dvida uma vez mais o epteto de "positivista" e de "cientista". Isso no me incomoda, mesmo que essas expresses sejam" empregadas pejorativamente. Mas j me incomoda aqueles que, as empregam e no saibam de que esto a falar, ou deturpem os factos.

Apesar do meu respeito pela cincia, no sou um "cientista", porquanto um cientista acredita` dogmaticamente na autoridade da cincia, enquanto eu no acredito em nenhuma espcie de autoridade e sempre combati e continu '** ogmatismo em geral e na cincia em particular. Sou contra a tes ue o cientista deve acreditar na sua teoria. No que me diz respeito, "I do not believe in belicf" (no creio na crena), como diz E. M. Foster, e designadamente na cincia. Acredito fundamentalmente na f na tica, e mesmo aqui apenas nalguns casos. Acredito, por exemplo, que a verdade objectiva um valor, logo um valor tico, talvez mesmo o valor supremo, e que a crueldade constitui o maior no-valor.

E tambm no sou um positivista, na medida em que considero moralmente errado no acreditar na importncia imensa e na realidade do sofrimento humano e animal e na realidade e importncia da esperana humana e da bondade humana. Uma outra acusao que me feita amide deve ser respondida de modo diverso. Trata-se da acusao de que sou um cptico e de que me contradigo a mim prprio ou que digo disparates (segundo o Tractatus 6.51 de Wittgenstein).

certo que posso ser apelidado de cptico (no sentido clssico) na medida em que nego a possibilidade de um critrio universal da verdade (no lgicotautolgica). No entanto, foi o que fizeram todos os pensadores racionalistas, como seja Kant, Wittgenstein ou Tarski. E tal como eles, eu aceito a lgica clssica (que interpreto como Organon da crtica, e portanto no como organon da demonstrao, mas como organon da refutao, do elenchos). No obstante, distingo-me fundamentalmente daquilo que hoje em dia normalmente designado por um cptico. Enquanto filsofo, no estou interessado na

dvida e na incerteza na medida em que representam estados subjectivos e

porque de h muito que renunciei procura de uma certeza subjectiva, por consider-la suprflua. O que me interessa so os argumentos crtico- "'4

- Objectivos que indicam que uma dada teoria prefervel a uma outra na procura da verdade. E isto no houve certamente nenhum cptico moderno que o afirmasse antes de mim.

E assim encerro por agora as minhas observaes sobre o tema do "Conhecimento" para passar de seguida ao da "Realidade", concluindo com a "Formao da realidade atravs do conhecimento".

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2. Realidade

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Partes da realidade em que vivemos constituem uma realidade material. Vivemos sobre a superfcie da Terra, que os homens s h pouco - durante os oitenta anos da minha vida - exploraram. Relativamente ao interior pouco sabemos, e de realar este "pouco". Abstraindo a da Terra, existem o Sol, a Lua e as estrelas. O Sol, a Lua e as estrelas so corpos materiais. A Terra, juntamente com Sol, a Lua e as estrelas, d-nos a primeira ideia de um universo, de um cosmos, cujo estudo constitui a misso da cosmologia. Toda a cincia est ao servio da cosmologia.

Na Terra encontramos duas espcies de corpos: vivos e inanimados. Ambos pertencem ao mundo fsico, ao mundo das coisa materiais. A este mundo dou a designao de "Mundo 1".

Aquilo a que eu chamo "Mundo 2" o mundo das nossas emoes, sobretudo das emoes dos indivduos. A simples distino entre os Mundos 1 e2, entre o mundo fsico e o mundo das emoes, suscitou j muitos protestos, mas quero apenas dizer que este Mundo 1 e este Mundo 2 so, ao menos prima facie, distintos. A anlise das suas relaes, compreendendo a da sua possvel identidade, uma das tarefas que ns procuramos levar a cabo, naturalmente atravs de hipteses. Nada antecipado em virtude da sua distino verbal. Tal distino visa to s possibilitar uma clara formulao dos problemas.

presumvel que tambm os animais tenham emoes, o que muitas vezes posto em causa. No disponho, porm, de tempo para discutir estas dvidas. perfeitamente possvel que todos os seres vivos tenham emoes, inclusivamente as arnibas. Porque como ns sabemos pelos nossos sonhos ou por doentes num estado altamente febril ou em situao semelhante, existem emoes subjectivas com graus de conscincia muito diversos. Em circunstncias de profunda perda de conscincia ou de sono sem sonhos, a conscincia desaparece e com ela as nossas emoes. Podemos, porm, admitir igualmente a existncia de estados inconscientes, que podem ser compreendidos no Mundo 2. possvel que se processem tambm transferncias entre o Mundo2 e o Mundo 1; no devemos excluir dogmaticamente essas possibilidades.

Temos pois o Mundo 1, o Mundo fsico, que dividimos em corpos animados e inanimados e que compreende tambm estados e processos, como sejam tenses, movimentos, energia, campos de foras. E temos o Mundo 2, o mundo de todas as emoes conscientes e, presumivelmente, de emoes inconscientes.

Aquilo que eu designo por Mundo 3 o mundo dos produtos objectivos do esprito humano, logo o mundo dos produtos da parte humana do Mundo 2.O Mundo 3, o mundo dos produtos do esprito humano, contm coisas como livros, sinfonias, esculturas, sapatos, avies, computadores, assim como, certamente, objectos materiais que pertencem simultaneamente ao Mundo 1, tais como panelas e varapaus. Para a compreenso desta terminologia

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importante que todos os produtos voluntrios ou intencionais da actividade intelectual sejam classificados como Mundo 3.

A nossa realidade consiste, pois, de acordo com esta terminologia, em trs mundos ligados entre si e de algum modo interdependentes, e que em parte se interpenetram. (Neste contexto, a palavra "Mundo" no significa evidentemente Universo ou Cosmo, mas sim partes deste). Estes trs mundos so: o Mundo fsico, Mundo 1, dos corpos e dos estados, fenmenos e foras fsicas; o Mundo psquico, Mundo 2, das emoes e dos processos psquicos inconscientes; e o Mundo 3 dos produtos intelectuais.

Houve e h filsofos que apenas consideram real o Mundo 1 - os chamados materialistas ou fisicalistas; e outros que apenas aceitam como real o Mundo 2, os chamados imaterialistas. Entre os imaterialistas houve e continua a haver fsicos. O mais clebre foi Errst Mach, que (do mesmo modo que j antes dele o bispo Berkeley) apenas considerava como reais as nossas sensaes. Foi um fsico notvel, mas resolveu as dificuldades da teoria da matria mediante a suposio de que no existe matria, e logo no existem tomos nem molculas.

Depois h tambm os chamados dualistas, que aceitam como reais tanto o Mundo 1, fsico, como o Mundo 2, psquico. Eu vou ainda mais longe: admito no s a realidade do Mundo fsico 1 e do Mundo psquico 2, e por consequncia tambm, evidentemente, dos produtos fsicos da mente humana, como sejam os automveis, as escovas de dentes ou as esttuas, mas ainda dos produtos intelectuais que no pertencem nem ao Mundo 1 nem ao Mundo 2. Por outras palavras, suponho que existe uma parte imaterial do Mundo 3, que real e muito importante, de que os problemas so um exemplo.

A sequncia dos Mundos 1, 2 e 3 corresponde respectiva idade. De acordo com o estado actual dos nossos conhecimentos por conjectura, a parte inanimada do Mundo 1 de longe a mais antiga; segue-se-lhe a parte animada do Mundo 1 e simultaneamente ou um pouco mais tarde o Mundo 2, o Mundo das emoes; e com o homem surge ento o Mundo 3, o Mundo dos produtos intelectuais, a que os antroplogos chamam "cultura".

li

Passo agora a abordar de mais perto cada um destes trs Mundos, comeando pelo Mundo fsico 1.

Uma vez que o meu tema presente diz respeito Realidade, gostaria de referir em primeiro lugar por que razo o Mundo fsico 1 tem o direito de ser considerado como o mais real dos meus trs mundos. Com isto quero apenas dizer que a palavra "realidade" comea por ter a sua significao no que respeita ao mundo fsico. E apenas isto o que pretendo dizer.

Quando o predecessor de Mach, o bispo anglicano George Berkeley, negou a realidade dos corpos materiais, Samuel Jolinson comentou: "Eu refuto-o deste modo" e desferiu com a toda a fora um pontap numa pedra. a

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resistncia da pedra que deve mostrar a realidade da matria - a pedra oferece oposio. Creio que Johnson sentiu a resistncia, a realidade, como uma reaco, como uma espcie de ricochete. Muito embora Johnson, obviamente, no pudesse demonstrar nem refutar nada deste modo, podia, no obstante, mostrar de que modo a realidade entendida por ns.

Uma criana aprende a identificar o real atravs da reaco, da resistncia. A parede, as grades so reais. O que se pode segurar na mo ou na boca real. So sobretudo reais os objectos slidos que nos oferecem resistncia ou oposio. As coisas materiais - este o conceito fundamental da realidade, e a partir deste ponto fulcral o conceito amplifica-se. real tudo o que pode actuar sobre estes objectos, sobre as coisas materiais. Assim, a gua e o ar so reais, do mesmo modo que a fora magntica, a fora elctrica ou a gravidade; e tambm mo calor e o frio, o movimento e a inrcia.

Real , pois, tudo o que pode repelir ou opor resistncia a ns ou a outras coisas, tais como ondas de radar, e que pode actuar sobre ns ou sobre outras coisas reais. Creio que isto suficientemente claro e que abrange a Terra, o Sol, a Lua e as estrelas - o Cosmos real.

III

No sou materialista, mas respeito os filsofos materialistas, designadamente, os grandes atomistas Demcrito, Epicuro e Lucrcio. Eles foram os grandes racionalistas da Antiguidade, os lutadores contra as crenas nos demnios, os libertadores da humanidade. No entanto, o materialismo autodestruiu-se.

Ns, homens, confiamos numa espcie de reaco: tocamos num objecto, por exemplo num interruptor, e premimo-lo. Ou empurramos ou tropeamos numa cadeira. O materialismo era a teoria segundo a qual a realidade constituda apenas por coisas materiais, que reagem entre si atravs de presses, impulsos ou choques. O materialismo apresentava duas verses: em primeiro lugar, o atomismo que defendia que partculas minsculas se encadeiam entre si e se entrechocam, partculas essas demasiado pequenas para serem visveis. Entre os tomos existia o vazio. A outra verso propunha a inexistncia do espao vazio: - as coisas movem-se no ter universal um pouco como folhas de ch numa chvena de ch, que vamos agitando.

Para ambas as teorias era fundamental que no houvesse qualquer modo de reaco dificilmente inteligvel e desconhecido - apenas presso, impulso e choque. E mesmo que o impulso e a atraco fossem explicados pela presso e o impulso. Quando arrastamos um co pela trela, a reaco na realidade o facto de que a coleira o pressiona ou impele. A trela funciona como uma

corrente, cujos elos se pressionam ou impelem reciprocamente. A traco, a

atraco, devem de qualquer modo reconduzir-se a uma presso.

Este materialismo da presso e do choque, que tambm foi defendido sobretudo por Ren Descartes, foi abalado pela primeira vez com a introduo

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da ideia de fora. A teoria da gravitao de Newton surgiu como uma das foras de atraco de efeito remoto. Em seguida, apareceu Leibniz que mostrou que os tomos deviam ser ncleos de energia que se repelem para que possam ser impenetrveis e entrechocar-se. Veio depois a teoria do electromagnetismo de Maxwe11. E por ltimo, o impulso, a presso e o choque foram explicados mediante a repulsa elctrica das camadas de electres dos tomos. Foi o fim do materialismo.

O lugar do materialismo foi ocupado pelo fisicalismo. No entanto, este foi algo de completamente diferente. Em substituio de uma mundividncia que consistia em explicar todas as reaces e consequentemente toda a realidade atravs das nossas experincias quotidianas depresso e choque, surgiu uma imagem do mundo em que as impresses foram descritas atravs de equaes diferenciais, e finalmente, atravs de frmulas que os mais eminentes fsicos, tais como NieIs Bohr, qualificavam de inexplicveis e, como Bolir insistentemente assinalou, incompreensveis.

A histria da fsica moderna pode ser descrita, em termos simplistas, da seguinte forma: o materialismo morreu, despercebidamente, com Newton, Faraday e Maxwell. Venceu-se a si mesmo, quando Einstein, de Broglie e Schrdinger prosseguiram o programa de investigao no sentido de explicarem a matria; e de facto, explicaram como oscilaes, vibraes, ondas. No como oscilaes de matria, mas como a vibrao de um ter no-material, constitudo por campos de foras. No entanto, tambm este programa foi ultrapassado cedendo o lugar a programas ainda mais abstractos: por exemplo, atravs de um programa que explica a matria como vibraes de campos de probabilidades. Nas diversas fases, as diferentes teorias foram extremamente bem sucedidas. Foram, no entanto superadas por outras teorias ainda melhor sucedidas.

o que eu designo por a renncia do materialismo. E igualmente a razo por que o fisicalismo constitui precisamente algo de completamente distinto do materialismo.

IV

Levar-nos-ia demasiado tempo descrever a situao, cujas transformaes se processam muito rapidamente, que se foi formando entre a fsica e a biologia. Gostaria, porm, de chamar a ateno para o facto de que se pode descrever, numa perspectiva do moderno darwinismo terico-selectivo, uma e a mesma situao de duas formas essencialmente distintas. Uma a forma tradicional, a outra interpretao parece-me ser, no entanto, prefervel.

De um modo geral, o darwinismo foi encarado como uma imagem cruel do mundo: pinta "A Natureza de vermelho, com unhas e dentes" ("Nature, red in tooth and claw"). Trata-se, pois, de uma representao em que a natureza nos faz face a ns e vida de um modo geralmente hostil e ameaador. Creio

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ser esta uma interpretao preconceituosa do darwinismo, influenciada por uma ideologia anterior a Darwin (Malthus, Tennyson, Spencer) e que no tem praticamente nada a ver com o contedo propriamente terico do darwinismo. certo que o darwinismo d grande relevo quilo a que chamamos natural selection, a "seleco natural" ou o "apuramento natural"; mas tambm podemos fazer uma interpretao completamente diferente.

Como sabido, Darwin foi influenciado por Malthus, que procurou demonstrar que a exploso demogrfica, associada escassez de recursos

alimentares conduz a uma competio selvagem, a uma seleco cruel dos mais fortes e ao extermnio dos menos resistentes. Mas segundo Malthus, mesmo os mais fortes so pressionados pela competitividade: so coagidos a uma intensificao de esforos. A competio conduz, deste modo, e de acordo com esta interpretao, a uma restrio da liberdade.

Mas podemos ver isto de uma forma diferente. Os homens procuram expandir a sua liberdade: procuram novas possibilidades. A concorrncia pode ser encarada tambm, como evidente, como um processo que favorece a descoberta de novas aquisies e com elas, de novas possibilidades de vida, e simultaneamente a descoberta e o estabelecimento de novos nichos ecolgicos, inclusivamente de nichos para indivduos isolados - porventura um diminudo fsico.

Estas possibilidades traduzem-se na escolha entre decises alternativas, numa maior liberdade de opo, numa maior liberdade.

Ambas as interpretaes so, por consequncia, fundamentalmente distintas. A primeira pessimista: restrio da liberdade. A segunda optimista: alargamento da liberdade. Ambas so, evidentemente, demasiado simplistas, embora possam considerar-se como abordagens correctas da verdade. Poderemos afirmar que uma delas constitui a melhor interpretao?

Creio que sim. O enorme sucesso da sociedade competitiva e a enorme expanso da liberdade dela decorrente s so explicveis atravs da interpretao optimista. Esta a interpretao prefervel: aproxima-se mais da verdade, esclarece mais.

Se assim for, ento porventura a iniciativa do indivduo, o apelo interior, a busca de novas possibilidades, de novas liberdades, e a actividade que procura concretizar essas novas possibilidades, mais eficaz do que a presso selectiva externa que conduz eliminao dos indivduos mais fracos e limitao da liberdade mesmo dos mais fortes.

Nesta reflexo podemos aceitar como adquirida a presso da exploso demogrfica.

O problema da interpretao da teoria de Darwin da evoluo atravs da seleco natural afigura-se-me ser muito semelhante ao da teoria de Malthus.

A perspectiva antiga, pessimista e ainda hoje perfilhada, a de que o papel dos organismos na adaptao puramente passivo. Representam uma populao com mltiplas variantes, na qual a luta pela vida, a competio, selecciona em suma os indivduos melhor adaptados, atravs da eliminao dos outros. A presso selectiva exercida do exterior.

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De um modo geral atribudo muito pouco valor ao facto de todos os fenmenos da evoluo serem explicados unicamente por esta presso selectiva vinda de fora, e designadamente os fenmenos relativos adaptao o. De dentro apenas vm as mutaes, a amplitude das variaes (gene-pools).

A minha interpretao, inovadora e optimista, pe a tnica ( semelhana de Bergson) na actividade de todos os seres vivos. Todos os organismos funcionam como solucionadores de problemas a tempo inteiro. O seu problema primordial o da sobrevivncia. Existem, no entanto, inmeros problemas concretos, que se suscitam nas situaes mais diversas. E um dos problemas mais importantes diz respeito procura de melhores condies de vida: maior liberdade; um mundo melhor.

Atravs da seleco natural e (admitamos que assim acontece) atravs de uma presso selectiva originariamente exterior surge, de acordo com esta interpretao optimista, j muito cedo uma presso selectiva interior mais forte, uma presso selectiva exercida pelos organismos sobre o mundo exterior. Esta presso selectiva reveste a forma de modos de comportamento, que podem ser interpretados como o procurar nichos ecolgicos novos e favorveis. Muitas vezes trata-se tambm da construo de um nicho ecolgico completamente novo.

Sob esta presso interior chega-se a uma seleco de nichos; ou seja, a formas de comportamento que podem ser interpretadas como escolha de hbitos vitais e de meio circundante. Para tal dever-se- ter em ateno a

escolha de amigos, a simbiose, e sobretudo porventura o mais importante biologicamente: o acasalamento; e a preferncia por determinadas espcies de alimentos, antes do mais a luz solar.

Temos, pois, uma presso selectiva interior, e a interpretao optimista considera esta presso selectiva exercida de dentro pelo menos to importante quanto a presso selectiva exercida de fora: os organismos procuram novos nichos sem que haja a necessidade de se modificarem organicamente. E modificam-se mais tardiamente atravs da presso selectiva exterior, da presso selectiva do nicho escolhido activamente por eles prprios.

Poder-se-ia dizer que h um crculo, ou melhor uma espiral, de reaces entre a presso selectiva exterior e interior. A questo, a que ambas as interpretaes do resposta diferente, a seguinte: qual o grupo deste crculo ou desta espiral que activo e qual o passivo? A teoria tradicional v a actividade da presso selectiva como exercida de fora; a actual, como sendo-o de dentro: o organismo que selecciona, que activo. Podemos dizer que ambas as interpretaes representam ideologias, que constituem representaes ideolgicas do mesmo facto objectivo. No entanto, podemos interrogar-nos: existe um facto que possa ser explicado por uma das duas interpretaes preferencialmente outra?

Naturalmente que existem tambm factos que apontam para a antiga interpretao: so as

catstrofes dos nichos, porventura atravs da introduo de um produto txico como o DI)T ou a penicilina. Nestes casos, que no tm nada a ver com a seleco dos organismos, de facto a

existncia acidental de um mutante que pode decidir da sobrevivncia. Situao idntica a do

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Penso que sim, que esse facto existe. Gostaria de o descrever brevemente como o triunfo da vida sobre o seu meio-ambiente inanimado.

O facto essencial o seguinte: existiu, como a maioria de entre ns o admite - numa base hipottica, como bvio - uma clula original, uma protoclula, a partir da qual nasceu gradualmente toda a vida. De acordo com

a opinio mais correcta da biologia evolucionista darwinista da resultou que a Natureza trabalhou a vida com um cinzel terrivelmente cruel, que esculpiu todas as coisas que representam adaptaes e que ns admiramos.

Face a isto, podemos todavia chamar a ateno para um facto: a clula primordial continua a viver. Todos ns somos essa clula primeira. No se trata de uma imagem, ou de uma metfora, mas literalmente verdadeiro.

Vou explicar em muito poucas palavras. Uma clula tem perante si trs possibilidades: uma a morte, a segunda a diviso celular, a terceira a

fuso: a unio, a juno com uma outra clula, que leva quase sempre a uma diviso. Nem a diviso nem a unio significam a morte: uma multiplicao, a transformao de uma clula viva em duas clulas vivas praticamente iguais- ambas so o prolongamento vivo da clula original. Essa protoclula surgiu h bilies de anos e sobreviveu sob a forma de trilies de clulas. E continua viva em cada uma das clulas em que h vida neste momento. E todo o ser vivo, o que j viveu e o que vive hoje, o resultado das divises da clula primitiva. Ele , por conseguinte, a clula primordial que sobreviveu at hoje. So factos que nenhum bilogo pode ou poder contestar. Todos ns somos

a clula inicial, no mesmo sentido ("identidade de genes") em que eu sou o mesmo que era h 30 anos, conquanto no subsista talvez no meu corpo de agora um nico tomo do meu corpo de ento.

Em lugar de uma imagem do mundo ambiente que se abate sobre ns "com

unhas e dentes" ("tooth and claw"), eu vejo um meio-ambiente em que um nfimo ser vivo aprendeu a sobreviver durante bilies de anos e a conquistar e embelezar o seu mundo. A existir um combate entre a vida e o meio ambiente, a vida que sai triunfante. Creio que esta viso de certo modo diferente do darwinismo conduz a uma perspectiva bastante distinta da da ideologia tradicional, designadamente perspectiva de que vivemos num mundo que, atravs da vida activa e da sua busca de um mundo melhor, se

tornou cada vez mais belo e mais acolhedor.

Mas quem que quer acreditar nisto? Hoje em dia, todos acreditam no mito sugerido da maldade radical do mundo e da "sociedade"; do mesmo modo que em tempos se acreditou em Heidegger e em Hitler, em Krieck e na guerra. No entanto, a falsa f na maldade ela mesma maligna: desencoraja os jovens e

arrasta-os para a dvida e o desespero, ou mesmo violncia. Muito embora esta heresia seja essencialmente de natureza poltica, a interpretao tradicional do darwinismo contribuiu de algum modo para ela.

famoso caso do "melanismo industrial" ocorrido em Inglaterra. Trata-se da evoluo de variantes negras (de borboletas) com adaptao poluio industrial. Estes casos excepcionais e experimentalmente repetveis, ainda que muito especiais, ilustram talvez a razo por que que to popular entre os bilogos a interpretao do darwinismo que apodei de "pessimista".

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A ideologia pessimista contm uma tese muito importante: a de que a

adaptao da vida ao meio ambiente e todos esses inventos (que considero grandiosos) que a vida foi fazendo ao longo de bilies de anos, e que ns ainda hoje no somos capazes de reproduzir em laboratrio, no constituem quaisquer invenes, mas so o resultado do mero acaso. Dir-se- que a vida no fez qualquer inveno, que tudo o mecanismo de mutaes puramente fortuitas e da seleco natural; que a presso interior da vida mais no do que um processo de reproduo. Tudo o resto resulta de combate que travamos uns com os outros e com a Natureza, na realidade um combate s cegas. E o resultado do acaso seriam coisas (no meu entender, coisas grandiosas) como

seja a utilizao da luz solar como alimento.

Eu afirmo que isto uma vez mais apenas uma ideologia, na realidade uma parte da antiga ideologia, a que alis pertence tambm o mito do gene egosta (os genes s podem actuar e sobreviver atravs da cooperao) e o social- darwinismo ressurgido que se apresenta agora, renovada e ingnuo-deterministicamente, como "sociobiologia".

Gostaria ainda de confrontar os aspectos principais de ambas as ideologias. (1) Antiga: a presso selectiva exercida do exterior opera atravs do

aniquilamento: elimina. Assim, o meio ambiente hostil. Nova: A presso selectiva activa exercida do interior a procura de um meio ambiente melhor, de melhores nichos ecolgicos, de um mundo melhor. favorvel vida no mais alto grau. A vida melhora o ambiente para a vida, torna o ambiente mais propcio vida (e ao homem). (2) Antiga: Os organismos so totalmente passivos, embora sejam seleccionados activamente. Nova: Os organismos so activos: esto permanentemente ocupados na resoluo de problemas. Viver resolver problemas. A soluo frequentemente a escolha ou a construo de um novo nicho ecolgico. Os organismos no s so activos como a sua actividade aumenta constantemente. (Querer negar-nos a ns, homens, a actividade - como o fazem os deterministas - um paradoxo, especialmente tendo em ateno o nosso trabalho crtico-espiritual.) Quando a vida animal brotou do mar - como se supe -, o meio ambiente era ento, em muitos domnios, bastante montono. Apesar disso, os animais desenvolveram-se (com excluso dos insectos) at aos vertebrados antes de caminharem na terra. O meio ambiente era uniformemente propcio vida e relativamente indiferenciado, mas a vida diferenciou-se - sob formas ilimitadamente diversas. (3) Antiga: As mutaes constituem uma pura questo acidental. Nova: Os organismos fazem continuamente as descobertas mais grandiosas, no sentido do aperfeioamento da vida. Quer

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a Natureza, quer a evoluo e os organismos, todos eles so inventivos. Trabalham como inventores, tal como ns: com o mtodo do ensaio e da eliminao dos erros. (4) Antiga: Vivemos num ambiente hostil, que sofre alteraes atravs da evoluo e de eliminaes cruis. Nova: A primeira clula continua viva, aps bilies de anos, e em muitos trilies de exemplares. Para onde quer que se

olhe, deparamos com ela. Ela fez do nosso planeta um jardim e com as plantas verdes criou a nossa atmosfera. Criou os nossos olhos e abriu-os para o nosso cu azul e para as estrelas. Ela est bem.

v

E chegamos agora ao Mundo 2.

Os aperfeioamentos no organismo e no meio ambiente esto associados expanso e ao aperfeioamento da conscincia animal. O resolver problemas, o inventar nunca totalmente consciente. sempre consumado atravs de experimentaes: atravs de ensaios e da eliminao de erros. O que significa atravs da aco recproca entre o organismo e o seu mundo, o seu meio ambiente. E nesta interaco que intervm muitas vezes a conscincia. A conscincia, o Mundo 2, foi presumivelmente desde o incio uma conscincia avaliadora e em busca de conhecimentos, uma conscincia solucionadora de problemas. Relativamente parte animada do Mundo fsico 1, afirmei que todos os organismos so solucionadores de problemas. A minha conjectura fundamental quanto ao Mundo 2 a de que esta actividade problematizante da parte animada do Mundo 1 leva emergncia do Mundo 2, do Mundo da conscincia. No pretendo, porm, com isto significar que a conscincia resolve problemas durante todo o tempo como afirmei em relao aos organismos. Pelo contrrio. Os organismos esto continuamente ocupados na soluo de problemas, mas a conscincia no est apenas empenhada em resolver problemas, muito embora essa constitua a funo biolgica mais importante da conscincia. Creio que a funo primordial da conscincia foi a de prever o xito e o fracasso na resoluo de problemas e assinalar ao organismo, sob a forma de prazer e dor, se se encontra no caminho certo ou errado para a

soluo do problema. ("Caminho" originalmente - por exemplo, na amiba- e de forma muito literal como que a direco fsica do encaminhamento do organismo para a compreenso.)

Pela vivncia do prazer e da dor, a conscincia ajuda o organismo na

sua viagem de descoberta, no seu processo de aprendizagem. Intervm, depois, em muitos dos mecanismos da memria, de que nem todos podem ser conscientes - tambm por razes biolgicas. Penso que muito importante no ter dvidas de que no possvel que os mecanismos da memria sejam

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na sua maior parte conscientes. Perturbar-se- iam mutuamente. Precisamente por isso - o que pode ser demonstrado quase aprioristicamente - existem processos conscientes e inconscientes bastante anlogos entre si.

Assim se explica, quase necessariamente, uma esfera do inconsciente que se encontra essencialmente associada aos mecanismos da memria. Ela contm, antes do mais, uma espcie de mapa inconsciente do nosso ambiente circundante, do nosso nicho biolgico local. A elaborao deste mapa e das expectativas que o mesmo contm, e posteriormente as formulaes verbais das expectativas, e portanto de teorias, a funo do aparelho do conhecimento que tem faces conscientes e inconscientes, em interaco com o mundo fsico, o Mundo 1, as clulas; no homem, o crebro.

Portanto, no vejo o Mundo 2 como aquilo a que Mach chamou as sensaes, as sensaes visuais, auditivas, etc. Considero uma tentativa totalmente falhada descrever e classificar sistematicamente as nossas vivncias multifacetadas, e desse modo vir ao encontro de uma teoria do Mundo 2.

Dever-se-ia partir fundamentalmente de quais as funes biolgicas da conscincia e destas funes quais as essenciais. E de que modo ns, na nossa busca activa de informaes sobre o universo, inventamos os nossos sentidos: aprender a arte do tacto; o fototropismo e a vista; e o ouvido. E assim nos vemos confrontados com novos problemas e reagimos com novas antecipaes, com novas teorias sobre o mundo que nos rodeia. Deste modo nasce o Mundo 2 numa interaco com o Mundo 1. (Evidentemente que se pe tambm o problema de descobrir sinais para uma rpida aco; e para tal os nossos sentidos so importantes.)

vi

Remeto de novo muito brevemente para o Mundo 1 e para o Mundo 2. Em primeiro lugar, algumas palavras sobre o princpio do mundo corpreo, do Mundo 1, e sobre a ideia de emergncia, que gostaria de introduzir com oauxlio da **idcia das fases.

Ns no sabemos de que modo surgiu o Mundo 1 e se surgiu. A ser verdadeira a hiptese da exploso inicial -- big-bang -, ento a primeira coisa a surgir foi porventura a luz. "Faa-se luz! " seria o princpio. Mas esta primeira luz seria de ondas curtas, na rea dos ultravioleta, constituindo trevas para o homem. Em seguida, segundo nos dizem os fsicos, vieram os electres e os neutrinos, e depois os primeiros ncleos de tomos - apenas os ncleos do hidrognio e do hlio. O Universo encontrava-se ainda demasiado quente para o aparecimento do tomo.

Podemos, portanto, imaginar a existncia de um Mundo 1 no-material ou pr-material. Poder-se- dizer, se se aceitar a teoria da expanso do Universo a partir da exploso inicial (na minha opinio, extremamente duvidosa), que o Universo, merc da sua expanso, vai arrefecendo lentamente, tornando-se progressivamente mais "material", no sentido do materialismo tradicional.

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Poder-se-o distinguir talvez uma srie de fases neste processo de arrefecimento:

Fase O: Apenas existe luz, e no existem ainda nem electres, nem molculas.

Fase 1: Nesta fase, alm da luz (fotes), existem tambm electres e outras partculas elementares.

Fase 2: Existem tambm ncleos de hidrognio e de hlio, Fase 3: Existem tomos: tomos de hidrognio (mas no molculas) e tomos de hlio.

Fase 4: Alm dos tomos, podem existir tambm molculas de dois tomos, e entre outras molculas de hidrognio de dois tomos.

Fase 5: Nesta fase existe, entre outros, gua no estado lquido, Fase 6: Surgem, entre outros, os primeiros e ainda muito raros cristais de gua, e portanto o gelo nas mltiplas e maravilhosas formas dos cristais de neve, e mais tarde corpos slidos cristalinos, como por exemplo, blocos de gelo e, mais tarde ainda, outros cristais.

Ns vivemos nesta fase 6, ou seja, no nosso mundo existem zonas onde ocorrem corpos slidos, e naturalmente tambm corpos lquidos e gasosos. A uma maior distncia existem igualmente vastas regies, demasiado quentes para os gases moleculares.

Vil

Aquilo que ns conhecemos como vida s pde surgir numa regio bastante arrefecida, mas no demasiado fria do Universo, na fase 6. Podemos considerar a vida como uma fase muito especial dentro da fase 6: a presena simultnea de matria no estado gasoso, lquido e slido essencial para aquilo que designamos por vida, do mesmo modo que um outro estado, o estado coloidal, que se situa algures entre o estado lquido e o estado slido. A matria viva distingue-se de estruturas materiais (superficialmente) muito semelhantes, mas no-animadas, tal como se distinguem em si duas fases da gua, por exemplo na sua forma lquida e gasosa.

O que to caracterstico destas fases dependentes da temperatura que o mais eminente cientista no pode prever pela anlise mais metdica de uma fase dependente da temperatura quais as particularidades das fases seguintes e posteriores. Quando o mais eminente pensador investiga os tomos como tal e no dispe de nada mais para a sua investigao do que da fase 3, em que s h tomos mas ainda no existem molculas, dificilmente poder deduzir a partir da anlise rigorosa dos tomos o universo futuro das molculas. E a anlise mais pormenorizada do vapor de gua na fase 4 dificilmente lhe permitiria predizer as propriedades completamente novas de um lquido como as da gua, ou suspeitar da riqueza de formas dos cristais de neve, dos organismos **alLamentc complexos.

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Propriedades como o estado gasoso, lquido ou slido, designamo-las por "emergentes" (tendo em ateno a sua imprevisibilidade ). evidente que a

qualidade de "vivo" ou "vivente" uma dessas propriedades. Isto no diz muito, mas indciador de uma analogia com as fases da gua.

VIII

A vida pois, assim o supomos, emergente; do mesmo modo que a conscincia; e, do mesmo modo ainda, que aquilo que eu designo por Mundo 3.

O avano emergente mais significativo que a vida e a conscincia fizeram at data , segundo creio, a inveno o da linguagem humana. Ela porventura a prpria gnese do Homem.

A linguagem humana no apenas expresso (1), no apenas comunicao (2): os animais tambm possuem ambas. Tambm no apenas simbolismo. O simblico, e inclusivamente rituais, existem entre os animais.O grande passo, que teve como consequncia uma evoluo no previsvel da conscincia, a inveno de proposies descritivas (3), a funo representativa de Karl BhIcr: de frases que descrevem um estado de coisas objectivo, que pode ou no corresponder aos factos; logo, de proposies que podem ser falsas ou verdadeiras. esta a novidade pioneira da linguagem humana.

aqui que reside a diferena em relao linguagem dos animais. Talvez pudssemos dizer acerca da linguagem das abelhas que as suas informaes so verdadeiras- a menos que um cientista induza uma abelha em erro. Entre os animais existem tambm smbolos iludentes; por exemplo, as borboletas que simulam olhos. Mas o homem foi o nico que deu um passo no sentido de verificar as suas prprias teorias atravs de argumentos crticos quanto sua verdade objectiva. esta a quarta funo da linguagem, a funo argumentativa (4).

IX

A inveno da linguagem humana descritiva (ou, como prefere Bhlcr, representativa) torna possvel um novo passo, uma nova inveno: a inveno da crtica. a inveno de uma seleco consciente, de uma escolha consciente de teorias em lugar da sua seleco natural. Do mesmo modo que o materialismo a si mesmo se supera, assim a seleco natural se supera a si prpria, poder-se- dizer. Ela conduz ao desenvolvimento de uma linguagem que contm proposies verdadeiras e falsas. E esta linguagem leva inveno da crtica, emergncia da crtica, e com ela a uma nova fase da seleco: a seleco natural complementada e em parte ultrapassada pela seleco crtica e cultural, que nos permite perseguir, crtica e conscientemente, os nossos erros. Podemos, de forma consciente, procurar e eliminar os erros, assim como podemos, conscientemente, julgar uma teoria como menos boa do

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que uma outra. Em minha opinio, isto constitui o ponto determinante. aqui que comea aquilo que no ttulo que me foi apresentado, se designa por "conhecimento": o conhecimento humano. No existe conhecimento sem crtica racional, crtica ao servio da busca da verdade. Os animais no possuem conhecimento neste sentido. Naturalmente que conhecem tudo o possvel - o co conhece o dono. No entanto, aquilo a que chamamos conhecimento, e o mais importante, o conhecimento cientfico, prende-se com a crtica racional. aqui que surge, pois, o passo decisivo, que est dependent2 da inveno das proposies verdadeiras ou falsas. E este passo que, segundo suponho, est na base do Mundo 3, da cultura humana.

X

O Mundo 3 e o Mundo 1 interpenetram-se: o Mundo 3 constitudo, por exemplo, por livros; constitudo por actos de fala; constitudo, fundamentalmente, pela linguagem humana. E tudo isto representa igualmente coisas fsicas, coisas, processos que ocorrem no Mundo 1. A linguagem formada, poder-se- dizer, por disposies com um suporte material nervoso; por elementos da memria, por impresses duradouras, por expectativas, por comportamentos apreendidos e descobertos, e por livros. Se ouvem esta minha conferncia graas acstica: eu produzo sons e esses sons pertencem ao Mundo 1.

Que estes sons ultrapassam, qui, de certo modo, a mera acstica o que agora gostaria de mostrar. Aquilo em que ele vai alm do Mundo 1, ao qual eu recorro, precisamente o que eu designei por Mundo 3, e a que poucas referncias foram feitas at ao presente. (Infelizmente no disponho de tempo para falar da histria do Mundo 3; remeto-os, no entanto, para o meu livro Conhecimento Objectivo, 111, 5) Vou tentar explicar o aspecto fundamental, designadamente a parte imaterial, a vertente imaterial do Mundo 3. Ou, dito de outro modo, a face autnoma do Mundo 3: aquilo que extravasa dos Mundos 1 e 2. Ao mesmo tempo gostaria de mostrar que esta face imaterial do Mundo 3 no s desempenha um papel na nossa conscincia - e de facto um papel de relevo - como tambm, fora dos Mundos 1 e 2, real. O lado imaterial (e no consciente) do Mundo 3 pode exercer uma aco sobre a nossa conscincia, como gostaria de mostrar, e atravs desta sobre o mundo fsico, o Mundo 1.

Gostaria, pois, de falar da interaco, ou, digamos, da espiral de reaces e de amplificaes recprocas que se processam nos trs mundos. E gostaria de mostrar que existe aqui algo de imaterial, como seja o contedo das nossas proposies, dos nossos argumentos, em contraste com a formulao acstico-corprea ou mecnico-verbal (fsica) de tais proposies ou argumentos. sempre deste contedo ou desta substncia que se trata quando usamos a linguagem num sentido propriamente humano. antes do mais o contedo de um livro e no a sua forma material que pertence ao Mundo 3.

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Um caso extremamente simples, em que evidente a importncia do contedo, o seguinte: com o desenvolvimento da linguagem humana chegmos aos nomes numerais, contar com o auxlio de palavras: "um, dois, trs", etc. Lnguas h que s conhecem o "um", o "dois" e "muitos"; outras que ~ o "um", o "dois"... at "vinte" e logo a seguir "muitos"; e lnguas, como anossa, que inventaram um mtodo que nos permite, a partir de qualquer nmero, prosseguir a contagem. Portanto, um mtodo que essencialmente no-finito, e sem infinito na medida em que cada termo pode, em princpio, ser transposto sempre que for acrescentado um novo algarismo. Este um dos grandes inventos, que s foi possvel atravs da inveno da linguagem: o

mtodo de construo infinita de nomes numerais. A instruo de construo pode ser formulada verbalmente ou num programa informatizado, pelo que pode ser definida como algo de concreto. Mas a partir do momento que descobrimos que a sequncia dos nmeros naturais (potencialmente) infinita, descobrimos algo de completamente abstracto, porquanto esta sequncia infinita no pode ser concretizada nem no Mundo 1 nem no Mundo 2. A sequncia infinita de nmeros naturais constitui "algo de puramente ideal", como uso dizer-se. Ela representa um puro produto do Mundo 3, na medida em que se insere apenas naquela parte abstracta do Mundo 3, constituda por elementos ou por "habitantes" que, embora concebidos, no so concretizveis nem pelo pensamento, nem por nomes numerais fisicamente concretos, nem num programa de computador. A infinitude (potencial) da sequncia de nmeros naturais no , dir-se-ia, uma inveno, mas antes uma descoberta. Ns descobrimo-la como uma possibilidade; como uma virtualidade no programada da sequncia por ns inventada.

De modo idntico, descobrimos as caractersticas numricas "par" e

"mpar", "divisvel" e "nmero primo". E descobrimos problemas como o problema de Euclides: a sequncia de nmeros primos infinita ou (como o sugere a crescente raridade de nmeros primos medida que vo sendo maiores) finita? Este problema estava por assim dizer perfeitamente encoberto; nem sequer era inconsciente, mas simplesmente no se punha quando inventmos as sequncias numricas. Ou existia? A existir, ento existia num sentido ideal e puramente abstracto, ou seja, no sentido de que se encontrava oculto na sequncia numrica por ns construda, embora estivesse presente sem que o homem dele tivesse conscincia, ou oculto de qualquer modo no

inconsciente de quem quer que fosse sem deixar qualquer vestgio fsico. No existia livro algum que versasse sobre o assunto. Era, pois, fisicamente inexistente. Numa perspectiva do Mundo 2 no existia tambm. Existia, no entanto, como um problema ainda no revelado, mas revelvel: o caso tpico de um problema que se insere unicamente na parte puramente abstracta do Mundo 3. O problema, alis, no s foi identificado por Euclides como por ele resolvido. Euclides encontrou uma demonstrao do teorema, segundo a qual a cada nmero primo se segue sempre outro nmero primo, donde se pode inferir que a sequncia de nmeros primos uma sequncia infinita.

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Esta proposio descreve uma situao que, evidentemente, por sua vez

puramente abstracta: ela tambm um habitante da regio puramente abstracta do Mundo 3.

XI

Existem igualmente muitos problemas por resolver, que se prendem com

os nmeros primos, como seja por exemplo o problema de Goldbach. Qualquer nmero par maior do que 2 constitui a soma de dois nmeros primos? Este problema pode ser resolvido ou positivamente, ou negativamente; ou pode ainda ser insolvel. A sua insolubilidade pode, por seu turno, ser demonstrvel ou indemonstrvel. E assim surgem novos problemas.

Trata-se de problemas puros, que so reais no sentido de que produzem efeitos. Podem agir essencialmente sobre a mente humana. O indivduo pode ver o problema, descobri-lo e depois tentar resolv-lo. A compreenso do problema e a tentativa da sua resoluo constituem uma actividade da conscincia, do esprito humano. E esta actividade desencadeada, obviamente, pelo problema, pela existncia do problema. Uma resoluo do problema pode dar lugar a uma publicao, e deste modo, o problema de natureza abstracta do Mundo 3 pode (atravs do Mundo 2) accionar as mais pesadas mquinas impressoras. Euclides registou por escrito a sua soluo do problema dos nmeros primos, o que constituiu um processo fsico com mltiplas consequncias. A demonstrao euclidiana foi reproduzida em inmeros compndios, e portanto em corpos fsicos. Tudo isto so processos no Mundo 1.

Nas cadeias causais que conduzem do problema abstracto ao Mundo 1, cabe naturalmente um papel importante conscincia, ao Mundo 2. Tanto quanto posso ver, a parte abstracta do Mundo 3, o Mundo dos contedos abstractos, no-fsicos, por conseguinte o Mundo 3, autntico e especfico, no exerce at hoje nenhuma influncia directa sobre o Mundo 1; nem com o auxlio dos computadores. Essa influncia recai sempre sobre o consciente, o Mundo 2. (Talvez um dia no seja assim). Proponho que se fale de "esprito" quando nos referimos funo da conscincia, em interaco com o Mundo 3.

Creio que a interaco entre a mente e os habitantes do Mundo 3 influencia e modela de forma decisiva a nossa vida consciente e inconsciente. aqui, na interaco entre os Mundos 2 e 3, que reside a chave para a compreenso do que h de diferente na conscincia humana e animal.

XII

Em resumo, poder-se- dizer que o Mundo 3, e sobretudo aquela parte do Mundo 3 criada atravs da linguagem humana, um produto da nossa conscincia, do nosso esprito. Ele , semelhana da linguagem humana, uma inveno nossa.

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No entanto esta inveno -nos de algum modo exgena, "exosomtica". algo de objectivo como todos os nossos inventos. Como tudo o que inventado gera os seus problemas autnomos, dependentes de ns. (Pense-se na inveno da manipulao do fogo ou na inveno do automvel.) Estes problemas no so nem desejados, nem esperados. Eles so consequncias tpicas e involuntrias dos nosso actos que, por sua vez, se repercutem em ns.

E assim surge o Mundo 3 - objectivo, abstracto, autnomo, e simultaneamente real e actuante.

A matemtica constitui um exemplo porventura no totalmente caracterstico, mas notrio. Ela , claramente, uma obra nossa, uma inveno nossa. Mas a maior parte da matemtica objectiva e simultaneamente abstracta: todo um universo de problemas e de solues, que ns no inventamos mas descobrimos.

Assim, os que tm reflectido sobre a situao da matemtica chegaram fundamentalmente a duas perspectivas. Existem, pois, essencialmente duas filosofias da matemtica. (1) A matemtica obra do homem. Uma vez que assenta na nossa intuio,ou uma construo nossa ou uma inveno nossa. (Intuicionismo, construtivismo, convencionalismo.) (2) A matemtica um domnio objectivo com existncia prpria. Trata-se de um campo infinitamente rico de verdades objectivas, que no elaboramos mas com que nos confrontamos objectivamente. E no so poucas as verdades que conseguimos revelar. (Esta concepo da matemtica normalmente designada por "platonismo".) Estas duas filosofias da matemtica vm-se defrontando at ao presente de modo inconcilivel. No entanto, a teoria do Mundo 3 mostra que ambas tm razo: a sequncia infinita dos nmeros naturais (por exemplo) uma inveno lingustica nossa; uma conveno nossa; uma construo nossa. Mas no os nmeros primos e problemas conexos: estes so descobertos por ns num mundo objectivo, que na realidade inventmos ou crimos, mas que se objectiviza (como todos os inventos), que se liberta do seu criador e se torna independente da sua vontade. Toma-se "autnomo", "puramente ideal" "platnico".

Assim, na perspectiva da teoria do Mundo 3 no pode existir qualquer conflito entre as duas filosofias da matemtica. Quando muito poder-se-ia discutir se um determinado objecto matemtico - por exemplo, a srie numrica infinita ou a teoria axiomtica dos conjuntos - obra do homem, ou se este domnio, como que oferecido por Deus, se nos apresenta como uma parte do mundo objectivo. Sabemos, porm, pelo menos desde 1963 (Paul Cohcn) que a teoria axiomtica dos conjuntos tambm obra do homem. De que mesmo os matemticos so falveis e que refutamos as nossas teorias, que no podemos demonstrar, h muito que o sabemos.

Tentei explicar o Mundo 3. Eis-me chegado agora terceira e ltima parte da minha conferncia: sobre a formao da realidade.

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3. Sobre a formao da realidade

a interaco entre o Mundo 1, o Mundo 2 e o Mundo 3 que podemos considerar como formao da realidade; a interaco que consiste de mltiplas reaces, dentro da qual trabalhamos com o mtodo do ensaio e do erro. Intervimos, pois, conscientemente nesta espiral de reaces. Ns - a mente humana, os nossos sonhos, as metas que nos impomos. Ns somos o autor da obra, do produto, e simultaneamente somos moldados por ela. Esta criatividade especificamente humana: ao mesmo tempo que criamos, criamo-nos tambm a ns prprios atravs da nossa obra. A formao da realidade assim uma realizao nossa; um processo que no pode ser entendido se no tentarmos compreender todas as suas trs faces, esses trs mundos; e se no tentarmos compreender a forma e o modo como esses trs mundos se interpenetram.

Nesta espiral de reaces e de repercusses integram-se as nossas teorias e os nossos sonhos. Disto exemplo a concepo, a criao, a inveno do pssaro de Leonardo, que todos ns conhecemos hoje como o avio. importante que seja o sonho de voar que leva a que se voe e no, como defendia a concepo materialista da histria de Marx e Engels, o sonho de ganhar dinheiro. Otto Lilienthal (cujo irmo conheci pessoalmente), os irmos Wright e muitos outros sonharam voar e conscientemente arriscaram a vida pelo seu sonho. No foi a expectativa de lucro que os inspirou, e sim o sonho de uma nova liberdade - da expanso dos nossos nichos ecolgicos. Foi na procura de um mundo melhor que Otto Lilienthal perdeu a vida.

Na formao da realidade, na tentativa de realizar o sonho de voar pertencente ao Mundo 2, o Mundo 3 desempenha um papel decisivo. Porque decisivos so os planos e descries, as hipteses, as experincias, os insucessos e as rectificaes. Numa palavra, o mtodo do ensaio e da eliminao dos erros atravs da crtica.

Esta a espiral de reaces, e a desempenha tambm o Mundo 2 do investigador e do inventor um papel significativo, se bem que um papel que, como creio, no to decisivamente importante quanto os problemas emergentes, e, sobretudo, o Mundo 3 que actua permanentemente sobre o Mundo2. Atravs do Mundo 3 os nossos sonhos so permanentemente objecto de correco at que possam finalmente ser concretizados.

Alguns pessimistas chamaram-me a ateno para o facto de Otto Lilienthal, o planador alemo, tal como Leonardo, sonhar com um voo semelhante ao das aves. Eles ficariam perfeitamente maravilhados se tivessem visto os nossos avies.

Neste aspecto, certo que as nossas ideias nunca se realizam exactamente como as imaginmos. No entanto, esta observao , apesar de tudo, falsa. Hoje em dia, quem quiser voar tal como Leonardo e Lilienthal o desejaram, bastar-lhe- fazer-se membro de um clube de asa delta. E, se tiver coragem,

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no muito difcil. Os outros, os que voam num Airbus ou num Boeing 747, apesar da enorme diferena em relao ao planador, tero as suas razes para preferirem viajar deste modo, ou de comboio, de barco ou de automvel.O voo em avies gigantescos e apinhados trouxe para muita gente inmeras possibilidades novas e uma incalculvel liberdade.

li

Os avies gigantescos so, sem dvida, o resultado dos sonhos de Leonardo e de LilienLhal, ainda que porventura resultados imprevisveis. Atravs da nossa linguagem, da nossa cincia e da nossa tcnica podemos antever com maior preciso os resultados futuros dos nossos sonhos, dos nossos desejos e das nossas invenes do que as plantas ou os animais, mas certamente que no com muito maior preciso. importante que tenhamos conscincia de quo pouco sabemos sobre as consequncias imprevisveis dos nossos actos. Os melhores meios de que dispomos continuam a ser o ensaio e o erro: ensaios muitas vezes perigosos e erros ainda mais perigosos - por vezes perigosos para a humanidade.

Particularmente arriscada a crena numa utopia poltica. O que se prende possivelmente com o facto de a busca de um mundo melhor (se eu estiver certo), do mesmo modo que a explorao do meio-ambiente, constituir um dos mais ancestrais e importantes de todos os instintos vitais. Julgamos, com razo, que devemos o podemos contribuir para o aperfeioamento do nosso universo. No devemos, porm, convencer-nos de que podemos antever as consequncias dos nossos planos e dos nossos actos. E sobretudo, no devemos fazer sacrifcios humanos (com excepo, talvez, do nosso prprio sacrifcio em casos extremos). No temos tambm o direito de incentivar ou de algum modo persuadir os outros a auto- sacrificarem-se - nem mesmo por uma ideia, por uma teoria que se nos afigurou perfeita (em virtude da nossa ignorncia, talvez sem razo).

Em todo o caso, uma parte da nossa procura de um mundo melhor deve ser a procura de um mundo em que os outros no necessitem de sacrificar a sua vida, involuntariamente, por uma ideia.

III

Estou a chegar ao fim da minha exposio. Gostaria ainda de acrescentar uma ltima reflexo optimista, que constitui o meu contributo para um livro que escrevi em colaborao com o meu amigo, Sir John EccIes. (Obra que aparecer brevemente em verso alem.)

Como procurei mostrar atrs, a seleco darwiniana, a seleco natural e a presso selectiva, encontra-se geralmente associada a uma luta sangrenta pela sobrevivncia. Esta ideologia s deve ser tomada a srio parcialmente.

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No entanto, com a emergncia da conscincia e da mente humana e a formulao verbal das teorias, tudo se altera. Podemos remeter para a competitividade das nossas teorias a eliminao das teorias inteis. Em pocas mais remotas, o defensor de uma teoria ora segregado. Actualmente podemos deixar que as nossas teorias morram em vez de ns. Numa perspectiva biolgica da seleco natural, a funo primordial da mente e do Mundo 3 consiste em tornar possvel a aplicao da crtica consciente, e, por conseguinte, a seleco de teorias sem o aniquilamento dos seus defensores.

A utilizao do mtodo de crtica racional sem que se verifique a eliminao do respectivo representante tornou-se vivel atravs da evoluo biolgica, na medida em que, ao inventarmos a nossa linguagem, criamos com ela o Mundo 3. Deste modo, a seleco natural sobrepuja, transcende o seu carcter originalmente porventura algo brutal. Com a emergncia do Mundo3 torna-se possvel que a seleco das teorias mais perfeitas, dos ajustamentos mais correctos, se processe igualmente sem violncias. Podemos agora eliminar as teorias falsas mediante uma crtica no-violenta. evidente que esta crtica no-violenta ainda rara; ela ainda normalmente semi- violenta, mesmo quando se tercem armas no papel. J no existem, porm, quaisquer fundamentos biolgicos para uma crtica violenta, mas to s argumentos contra.

Assim, esta crtica semi- violenta hoje generalizada poder constituir um

estdio transitrio no desenvolvimento da razo. A emergncia do Mundo 3 significa que a evoluo cultural no-violenta no uma utopia, mas o resultado biologicamente, possvel da emergncia do Mundo 3 por via da seleco natural.

A formao do nosso enquadramento social norteada por um objectivo de paz e de no-violncia no apenas um sonho, mas um alvo a atingir para a humanidade, um alvo possvel e, numa perspectiva biolgica, claramente necessrio.

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2. SOBRE O SABER E IGNORNCIA*

Senhor Presidente, Senhor Reitor, Minhas Senhoras e Meus Senhores. Antes do mais quero agradecer vivamente ao Departamento de Cincias Econmicas da Universidade Johann Wolfgang Goethe a enorme honra com

que me distinguiu ao conferir-me o grau de Doctor rerum politicarum honoris causa.

"Heisse Magister, heisse Doktor gar" posso ento dizer com o Fausto de Goethe. E tal como o Fausto de Goethe, tambm eu ponho em dvida se terei merecido esta honra.

Da steh ich nun, ich armer Tor! (Aqui estou eu, pobre tolo! Und bin so klug als wie zuvor... To esperto como antes... Und sehe, dass wir nichts wissen knnen! E vejo que nada podemos saber! Das will mir schier das Ilerz verbrennen. Diz-me o corao na sua pureza.)

Eis-me pois chegado ao tema anunciado da minha exposio, "Sobre osaber e o no saber".

Proponho-me abordar este tema historicamente, ainda que muito brevemente, centrando-me na doutrina socrtica. Comeo, pois, com o mais belo texto filosfico que conheo - a Apologia de Scrates de Plato.

A Apologia de Plato contm o discurso de defesa de Scrates e um breve relato sobre a sua condenao. Considero o discurso autntico.1 Scrates conta como ficou surpreendido e atnito quando soube que o Orculo de Delfos,

* Conferncia proferida em 8 de Junho de 1979 no Salo Nobre da Universidade de Frankfurt am Main, por ocasio da atribuio do grau de Doctor honoris causa.

' Naturalmente no existe qualquer prova quanto autenticidade da Apologia de Plato. Alguns estudiosos de nomeada manifestaram-se contra. No entanto, os argumentos a seu favor so importantes. Que Plato quis que fosse considerada autntica, parece-me indubitvel. Pertence s

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pergunta ousada "Existe algum mais sbio do que Scrates?", respondera: "Ningum mais sbio" .2 "Quando tal ouvi", disse Scrates, "interroguei-me: que querer o Deus dizer com isto? Porque eu sei que no sou sbio; nem

muito sbio; nem sequer um pouco." J que Scrates no podia decifrar pela reflexo o que Deus queria dizer atravs do orculo, decidiu tentar refutar oOrculo. Dirigiu-se a um dos estadistas de Atenas, que era tido por sbio, para com ele aprender. O resultado descreve-o Scrates do seguinte modo (Apologia 21 D): "Afinal sou mais sbio do que este homem. Na realidade, nenhum do ns dois sabe nada de certo. Ele, porm, julga que sabe alguma coisa, e no sabe nada. Eu, na realidade tambm no sei; porm no estou convencido de que sei alguma coisa." Depois de ter falado com os polticos, Scrates foi ouvir os poetas. O resultado foi o mesmo. E seguidamente procurou os artfices. Os artfices sabiam de facto coisas de que ele nada entendia. No entanto, eles julgavam saber igualmente muitas outras, e at mais importantes. E a sua petulncia excedia em muito o seu saber genuno.

E ento Scrates chegou por fim seguinte interpretao do desgnio do Orculo de Delfos: o Deus no queria evidentemente dizer nada sobre Scrates; tinha-se servido apenas deste nome para dizer: "Entre vs, homens, o mais sbio aquele que, como Scrates, reconhece no possuir na verdade sabedoria alguma."

O juzo de Scrates sobre a nossa ignorncia - "Eu sei que nada sei, e mal isso sei" - parece-me ser da maior importncia. Este juzo nunca foi formulado de modo mais claro do que na Apologia de Scrates de Plato. Esta viso socrtica nem sempre foi tornada a srio. Sob a influncia de Aristteles, foi considerada como ironia. O prprio Plato acabou por renunciar (no Grgias) doutrina socrtica sobre a nossa ignorncia, e simultaneamente atitude caracteristicamente socrtica: a exigncia de modstia intelectual.

Isto torna-se evidente quando confrontamos a doutrina socrtica do estadista com a doutrina platnica. Trata-se de um aspecto de especial importncia para um docior rerum politicarum.

suas primeiras obras e, consequentemente, muitas testemunhas estavam ainda vivas quando Plato

escreveu a Apologia. Como em todos os dilogos anteriores (pelo menos anteriores ao Grgias), Scrates utiliza na Apologia a refutao, atravs de exemplosprticos (Elenchos: 21 B/C); e insiste na sua prpria ignorncia.

1 Este orculo tambm manifestamente histrico. Cerfone, que interrogou o Orculo, amigo da juventude e admirador de Scrates, uma personagem histrica, um opositor enrgico dos Trinta Tiranos, que morreu em combate no Pireu. O seu irmo foi citado como testemunha por Scrates e esteve presente durante todo o processo. Que Plato era um adversrio da democracia, di-lo o papel decisivo que o partidrio democrtico Cerfone desempenha na Apologia, e que aponta igualmente para a sua autenticidade.

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Tanto Scrates como Plato estabelecem o postulado de que o homem de Estado deve ser sbio. No entanto, este postulado tem para ambos um significado essencialmente distinto. Para Scrates significa que o estadista deve estar perfeitamente consciente da sua imensa ignorncia. Scrates defende, por conseguinte, a humildade intelectual. "Conhece-te a ti mesmo!" significa para ele "Tem conscincia de quo pouco sabes! "

Diversamente, Plato interpreta o postulado da sabedoria do estadista no sentido do domnio dos sbios, no sentido da sofocracia. S o dialctico erudito, o filsofo culto est apto a dominar. este o sentido do clebre postulado platnico de que os filsofos devem ser reis e os reis filsofos eruditos. Os filsofos foram profundamente influenciados por este pressuposto platnico; os reis presumivelmente no tanto.

difcil imaginar uma maior antinomia entre duas interpretaes quanto ao postulado segundo o qual o estadista deve ser sbio. Trata-se da antinomia entre a humildade intelectual e a arrogncia intelectual. ainda a antinomia entre o falibilismo - o reconhecimento da falibilidade de todo o saber humano - e o cientismo ou cienticismo, a tese de que deve ser reconhecida autoridade ao saber e aos sbios, cincia e aos cientistas, sageza e aos sages, erudio e aos eruditos.

Toma-se evidente que uma antinomia na apreciao crtica do saber humano - portanto uma antinomia epistemolgica - pode conduzir a objectivos e exigncias tico-polticas opostas.

III

Neste momento gostaria de formular uma objeco contra o falibilismo. Objeco essa que, segundo creio, pode ser usada directamente como um argumento a favor do falibilismo.

Essa objeco a de que o saber, por oposio suposio ou conjectura, essencialmente impositivo; e tambm de que a linguagem corrente vem aqui em apoio da tese da natureza impositiva do saber. Assim, a expresso "eu sei" s usada correctamente de um ponto de vista lingustico quando tiver implcitos estes trs aspectos: em primeiro lugar, a verdade daquilo que afirmo saber, em segundo lugar, a sua certeza; e em terceiro lugar, a existncia de razes suficientes.

Anlises deste tipo podemos ouvi-las frequentemente em debates filosficos ou teorias em livros de filosofia. (Veja-se de W. T. Krug Fundamental philosophie, 1818, p. 237; de J. F. Fries System der Logik, 1837, p. 421 e ss.). Estas anlises mostram claramente aquilo que na linguagem corrente se entende por saber. Analisam um conceito que gostaria de designar por conceito clssico do saber. Esta noo clssica do saber implica a verdade e a certeza daquilo que se sabe, e bem assim que devemos ter razes suficientes relativamente quilo que aceitamos como verdadeiro.43

certamente este conceito clssico do saber que Scrates tem presente quando afirma "Sei que nada sei, e mal isso sei". deste mesmo conceito clssico do saber que Goethe se serve quando Fausto proclama:

Undsehe,dasswirnichtswisse.iknnen! (E vejo que nada podemos saber! DaswillmirschierdasHerzverbrennen. Diz-me o corao na sua pureza.)

, pois, justamente o conceito clssico de saber, a ideia de saber da linguagem comum, que adoptado pelo falibilismo, pela teoria da falibilidade, ao salientar que podemos Enganar-nos sempre ou quase sempre e que, por conseguinte, no sentido tradicional do "saber", no sabemos nada ou sabemos apenas muito pouco. Ou, como diz Scrates, no sabemos "nada de certo".

Que tinha Scrates em mente ao afirmar que no sabemos "nada de certo", ou, numa traduo mais literal, " nada de belo e de bom" (Apologia 21 D) Scrates referia-se muito especialmente tica. Estava longe de definir o saber tico como irrealizvel, procurando, muito pelo contrrio, fundament-lo. O seu mtodo era, pois, um mtodo crtico. Criticava o que se afigurava certo tanto para si prprio como para os outros. Foi este mtodo crtico que o conduziu ao falibilismo e ao entendimento de que ele e os outros estavam longe do saber nas questes de tica. Nesta medida, Scrates um tico pioneiro. dele e do seu contemporneo Demcrito esta mxima importante: " prefervel sofrer a injustia do que pratic-la".

IV

Mas voltemos Apologia. Quando Scrates a afirma que nem ele nem os outros sabem nada de certo, est talvez a pensar nos filsofos da Natureza, nos grandes pensadores da Grcia que hoje designamos por pr-socrticos e que so os precursores da actual cincia da natureza. provvel que Scrates tivesse especialmente em mente Anaxgoras, o filsofo da natureza, que cita tambm um pouco mais adiante na sua Apologia, alis de um modo no muito respeitoso. Diz nomeadamente que a obra de Anaxgoras, que qualifica de "falhada" (atopos), se encontrava venda nos livreiros de Atenas por um

dracma, quando o preo era alto (Apologia 26 D). Parece concluir-se de uma outra obra de Plato, o Fdon, que Scrates estava fortemente desiludido com a filosofia da natureza de Anaxgoras, e com a filosofia da natureza em geral. Temos, pois. razes para supor que Scrates, ao dizer "eu sei que quase nada sei, e nem mesmo isso", pensava em muitos problemas srios por resolver com os quais se defrontava. Problemas que iam da tica e da poltica filosofia da natureza.

Admitamos que Scrates no tem muito em comum com o personagem do Fausto de Goethe. Podemos, no entanto, supor que o juzo de que no podemos

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saber nada consumiu igualmente o corao de Scrates e que este, tal como Fausto, sofreu profundamente o desejo irrealizvel de todo o verdadeiro cientista, o desejo

Dass ich erkenne, was die Welt (Que eu conhea o que o Mundo Im Innersten zusammenh11. Preserva intacto no seu mago.)

A moderna cincia da natureza aproximou-nos, porm, um pouco mais desta meta inatingvel. Assim, devemos interrogar-nos sobre se a perspectiva do no-saber socrtico ter sido ultrapassada atravs da cincia actual.

v

De facto, a teoria da gravitao de Newton criou uma situao completamente nova. Esta teoria pode ser encarada como a concretizao, decorridos mais de 2000 anos, do programa de investigao original dos filsofos da natureza pr-socrticos. E talvez o prprio Newton tenha visto assim a sua

teoria, quando escolheu o ttulo da sua obra - "Os princpios matemticos da filosofia da natureza". A sua realizao deixou muito aqum os sonhos mais temerrios dos antigos.

Constitui um progresso sem precedentes - a teoria de Descartes que foi lentamente suplantada pela teoria de Newton no pode ser comparada, de um

modo geral, com a teoria newtoniana. A teoria de Descartes limitou-se a

fornecer uma explicao qualitativa muito vaga sobre o movimento dos planetas. No obstante, a teoria de Descartes contradizia factos ento j reconhecidos h tempo. Esta teoria teve entre outras a consequncia fatal de os planetas mais afastados do Sol se moverem mais rapidamente, em contradio no apenas com as observaes feitas, mas tambm e sobretudo com a terceira lei de Kepler.

Em contraposio, a teoria de Newton podia explicar no apenas as leis de Kepler, como rectific-las na medida em que previa pequenos desvios quantitativamente exactos a essas leis.

vi

A teoria de Newton originou, deste modo, uma nova situao intelectual; constituiu uma vitria intelectual sem paralelo. As previses da teoria Newtoniana foram confirmadas com surpreendente preciso. E quando se verificaram pequenos desvios relativamente ao movimento previsto por Newton para o planeta Urano, Adams e Leverrier calcularam, com o auxlio da teoria de Newton (e muita sorte), precisamente a partir desses desvios, a posio de um novo planeta desconhecido, descoberto pouco tempo depois por Galle. Alm disso, a teoria de Newton veio explicar no apenas o movimento dos

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corpos celestes, mas ainda a mecnica terrestre, os movimentos dos mecanismos da Terra.

Estava-se, assim parecia, efectivamente face ao saber: um saber verdadeiro, seguro e suficientemente fundamentado. Quanto a isso no podia subsistir j qualquer dvida.

Foi necessrio muito tempo antes que se compreendesse a novidade da situao intelectual. Poucos compreenderam o que estava a acontecer. David Hume, um dos maiores filsofos, compreendeu que tinha sito feito um enorme

progresso, embora no tenha avaliado quo grande e radical havia sido este avano do conhecimento humano. E receio que ainda hoje no seja totalmente entendido por muitos.

vil

O primeiro pensador a entend-lo completamente foi Imirianuel Kant. Convertido por Hume ao cepticismo, viu o paradoxo, o quase absurdo deste novo saber. Interrogou-se como era possvel algo como a Cincia Newtoniana.

Esta interrogao e a resposta de Kant converteram-se na questo fulcral da sua Crtica da Razo Pura. Nesta obra, Kant lanou as perguntas:

"Como possvel a matemtica pura?" e

"Como possvel uma cincia pura da Natureza?"

E escreveu: "Sobre estas cincias, que so realmente dadas, convir porventura pr a

questo apropriada: como so elas possveis; pois que devem ser possveis demonstrado pela sua realidade." Percebe-se o espanto de Kant, o seu legtimo espanto face existncia da teoria de Newton, que qualificou de "cincia pura da natureza".

Contrariamente a todos os outros que tinham uma opinio sobre o assunto, Kant compreendeu que a teoria de Newton no era o resultado de um mtodo experimental ou indutivo, mas sim o resultado do pensamento humano, do entendimento humano.

A resposta de Kant pergunta "como possvel uma cincia pura da natureza?" foi a seguinte:

"O entendimento cria as suas leis (as leis da natureza) no a partir da natureza, mas impe-lhas."

Por outras palavras, as leis de Newton no so extradas da Natureza, so antes criao de Newton, so o produto do seu entendimento, uma inveno sua: o entendimento humano que inventa as leis da Natureza.

Kant, Kritik der reinen Vernmnfi, 2.' ed., p. 20.

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Esta posio de Kant, extremamente original em termos de teoria do conhecimento, foi designada pelo prprio Kant como a Viragem Copernicana na teoria do conhecimento. A cincia de Newton era, segundo Kant, saber no

sentido clssico: um saber autntico, seguro e suficientemente fundamentado. E este saber era possvel, porque o prprio empirismo humano era o produto da assimilao activa e da interpretao dos dados dos nossos sentidos atravs do mecanismo do conhecimento, em particular atravs do nosso entendimento.

Esta teoria do conhecimento kantiana importante e, em grande parte, correcta. No entanto, Kant cometeu um erro ao pensar que a sua teoria respondia questo sobre como possvel o saber, o saber entendido no sentido clssico.

A concepo clssica de cincia como um saber autntico, seguro e suficientemente fundamentado subsiste ainda hoje. Foi, porm, ultrapassada h sessenta anos por via da Revoluo Einsteiniana, por via da teoria da gravitao de Einstein.

O resultado desta revoluo o seguinte: seja a teoria de Einstein verdadeira ou falsa, vem mostrar que o saber no sentido clssico, o saber certo, a certeza, no possvel. Kant tinha razo - as nossas teorias so criaes livres do nosso entendimento. Que ns tentamos impor Natureza. Todavia s raramente conseguimos adivinhar a verdade, e nunca podemos estar seguros de o termos conseguido. Temos de nos conformar com o saber conjectural.

VIII

Convm debruarmo-nos aqui sucintamente sobre as relaes lgicas existentes entre a teoria da gravitao de Newton e a de Einstein.

As teorias de Newton e de Einstein esto logicamente em contradio entre si - as concluses de ambas as teorias so inconciliveis. Logo, impossvel que as duas sejam verdadeiras.

No entanto, ambas as teorias se situam numa relao de convergncia: as divergncias entre as respectivas consequncias empiricamente verificveis so to pequenas que todos os inmeros casos observados confirmam e apoiam a teoria de Newton e simultaneamente confirmam e apoiam a teoria de Einstein.

A teoria de Newton, como j referi, foi empiricamente comprovada de forma admirvel, se no mesmo, poder-se- dizer, perfeita. Porm, a descoberta ou a inveno da teoria de Einstein faz com que seja impossvel que consideremos estas provas extraordinrias como fundamentos para a aceitao de qualquer uma destas duas teorias como verdadeira e segura. Isto porque os mesmos fundamentos justificariam que se considerasse a outra teoria verdadeira e segura. No entanto no logicamente possvel que de duas teorias inconciliveis ambas sejam verdadeiras.

Constatamos ento que impossvel tambm interpretar as teorias das cincias naturais, por melhor comprovadas, como saber no sentido clssico.

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As nossas teorias cientficas, por melhor comprovadas e fundamentadas que sejam, no passam de conjecturas, de hipteses bem sucedidas, e esto condenadas a permanecerem para sempre conjecturas ou hipteses.

IX

A cincia a busca da verdade, pelo que perfeitamente possvel que muitas das nossas teorias sejam de facto verdadeiras. Mas ainda que sejam verdadeiras, nunca o poderemos s