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29 • Tempo 139 Ensino Agrícola e Influência Norte-Americana no Brasil (1945-1961) * Sonia Regina de Mendonça ∗∗ O artigo trata das redefinições sofridas pelo Ensino Agrícola no Brasil, a partir da conjuntura marcada pelo fim da II Guerra Mundial/Guerra Fria, quando inúmeros acordos de “cooperação técnica” seriam firmados entre os governos brasileiro e estadunidense, objetivando “recuperar” seu novo público-alvo: o trabalhador rural adulto e analfabeto. Palavras-chave: Estado – Brasil – Estados Unidos – Educação Rural Rural Education and North-American Influence in Brazil (1945-1961) The paper deals with the changes that occurred in Rural Education in Brazil in the context following the World War II/Cold War, when many “technical cooperation” agreements were signed between Brazilian and North-American governments, aiming at “recovering” a new target-public: the adult, illiterate rural workers. Keywords: State – Brazil – United States – Rural Education Artigo recebido em fevereiro de 2009 e aprovado para publicação em julho de 2009. ∗∗ Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Aposenta- da da Universidade Federal Fluminense, contando com credenciamento junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF. E-mail: [email protected]

Ensino AgrÃ-cola e Influência

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Ensino agrícola

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    Ensino Agrcola e Influncia Norte-Americana no Brasil (1945-1961)*

    Sonia Regina de Mendona

    O artigo trata das redefinies sofridas pelo Ensino Agrcola no Brasil, a partir da conjuntura marcada pelo fim da II Guerra Mundial/Guerra Fria, quando inmeros acordos de cooperao tcnica seriam firmados entre os governos brasileiro e estadunidense, objetivando recuperar seu novo pblico-alvo: o trabalhador rural adulto e analfabeto.Palavras-chave: Estado Brasil Estados Unidos Educao Rural

    Rural Education and North-American Influence in Brazil (1945-1961) The paper deals with the changes that occurred in Rural Education in Brazil in the context following the World War II/Cold War, when many technical cooperation agreements were signed between Brazilian and North-American governments, aiming at recovering a new target-public: the adult, illiterate rural workers.Keywords: State Brazil United States Rural Education

    Artigo recebido em fevereiro de 2009 e aprovado para publicao em julho de 2009. Doutora em Histria Econmica pela Universidade de So Paulo. Atualmente Aposenta-da da Universidade Federal Fluminense, contando com credenciamento junto ao Programa de Ps-Graduao em Histria da UFF. E-mail: [email protected]

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    Lenseignement agricole et linfluence Nord-amricaine au Brsil (1945-1961) Larticle aborde la redfinition de lenseignement agricole au Brsil provoque par la conjoncture mondiale de laprs-guerre et de la guerre froide. Pendant cette priode, de nombreux accords de coopration technique ont t signs entre le gouverne-ment brsilien et le gouvernement nord-amricain. Le but de ces ententes tait de rcuprer lenseignement son nouveau public cible: le paysan adulte illettr. Mots Cl: tat Brsil tats-Unis Enseignement agricole

    Introduo

    O trabalho analisa as principais campanhas e prticas decorrentes dos vrios acordos de cooperao tcnica firmados entre os governos estadunidense e brasileiro, entre 1945 e 1961,1 no mbito da Educao Rural. Para tanto, ser enfatizada uma agncia binacional especfica, o Escritrio Tcnico de Agricul-tura Brasileiro-Americano (ETA), que funcionou no Rio de Janeiro entre 1953 e 1964, duplamente subordinado, tanto ao Ministrio da Agricultura, quanto ao Foreign Office dos Estados Unidos da Amrica. O ETA foi responsvel pela consagrao de um processo em curso no pas, desde meados da dcada de 1940, destinado redefinio do prprio significado do ensino tcnico agrcola, que progressivamente se distanciou de sua dimenso escolar, assumindo o cunho de prticas extensionistas.

    Fundado como fruto de novo acordo entre os governos de ambos os pases e dotado com recursos oriundos do Programa Ponto IV,2 os dirigentes do ETA apontavam como seu objetivo contribuir para o avano econmico dos

    1 Ano da promulgao da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educao Brasileira, que unificou todos os ramos do ensino sob a alada do Ministrio da Educao e Cultura. 2 O Programa Ponto IV consistiu no primeiro compromisso norte-americano com a ajuda no militar internacional em larga escala, sendo lanado em 1949, na gesto Truman. Seu pro-psito evidenciou-se no prprio discurso de posse do presidente: Declaro ser poltica dos Estados Unidos ajudar os esforos dos povos das reas economicamente subdesenvolvidas a melhorar suas condies de trabalho e de vida, mediante o encorajamento da troca de conhecimento tcnico e habilidades e o ritmo de investimento de capital em pases que propiciarem condies sob as quais a assistncia tcnica e de capitais possa efetiva e cons-trutivamente contribuir para elevar os padres de vida, criando novas fontes de sade, ampliando a produtividade e expandindo o poder aquisitivo. Apud Maurice Latta, Point Four: a Modest Program, Education, Gilman, n. 71, 1951, pp. 276-281; p. 276, grifos no original.

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    pases subdesenvolvidos,3 atravs do financiamento a projetos especficos junto a reas como a Extenso Rural e o Crdito Supervisionado. Nesse sentido, o Escritrio desenvolveu inmeros deles contratados por entidades pblicas e tambm privadas mediante seu assessoramento e/ou financiamento. Se-melhantes prticas abrangiam um amplo espectro de iniciativas implantadas em todas as unidades da federao brasileira, incidindo sobre os mais distintos mbitos do mundo agrrio, e envolviam desde o fomento produo agrope-curia, a conservao de recursos naturais, at o auxlio tido como educativo a comunidades rurais.

    A criao do ETA paradigmtica da reorientao imprimida a toda a poltica de cooperao internacional estadunidense, destinada, dentre outros objetivos, a ressignificar a prpria noo de educao agrcola, ressignificao esta inaugurada nos anos 1950 quando, segundo alguns autores, descoberto o conceito de desenvolvimento.4 Em funo desse novo construto, a viso sobre as atividades at ento definidas como de ensino agrcola priorizaria no mais a atividade escolar, porm aquela realizada por instituies de assis-tncia tcnica e creditcia, visando qualificao da mo de obra rural adulta e tambm ao seu controle e organizao em comunidades rurais, aptas a consumirem a tecnologia estadunidense, definida como a mais adequada. Essas alteraes se materializaram tanto na multiplicao do tipo de agncias e iniciativas conjuntas brasileiro-estadunidenses, quanto na vitria da vertente que defendia a educao para o campo com base nas prticas, infinitamente menos dispendiosas, do Extensionismo Rural.5 O ETA, todavia, no deve ser encarado como uma inovao propriamente dita, constituindo-se muito mais no coroamento de uma dada modalidade de interveno norte-americana junto s questes-chave latino-americanas e brasileiras, sobretudo aquelas

    3 Esto grafados em itlico todos os termos e citaes extrados da documentao pesqui-sada.4 Arturo Escobar, Encountering Development the Making and Unmaking of the Third World, New Jersey, Princeton University Press, 1995.5 Tal vertente, por suposto, era abraada pelos dirigentes e tcnicos do Ministrio da Agri-cultura, enquanto a corrente que concebia a educao rural enquanto desanalfabetizao correspondia aos quadros do Ministrio da Educao. Ressalte-se que a disputa entre ambas as agncias foi constante, desde a criao da Pasta da Educao e Sade em 1931.

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    atinentes pobreza e sua superao, mediante aes tidas como educativas e pedaggicas.6

    Desde incios dos anos 1940 observa-se a intensificao do interesse, por parte de entidades governamentais e privadas estadunidenses como a Inter-American Affairs Association (AIA) de Nelson Rockefeller7 , pelos problemas do recm-construdo conceito de Terceiro Mundo, nele incluindo-se, por certo, o Brasil. Em 1945, uma entidade privada americana e o Ministrio da Agricultura assinaram o primeiro acordo de cooperao internacional no mbito do ensino agrcola, dando origem Comisso Brasileiro-Americana de Educao das Populaes Rurais (CBAR), cujas atribuies incluam a implantao de Centros de Treinamento para trabalhadores rurais adultos, a proliferao de Clubes Agrcolas destinados infncia e juventude e a inter-veno direta junto formao de tcnicos especializados e lideranas rurais, por intermdio de um programa educativo supostamente capaz de incutir nos trabalhadores adultos e jovens o amor a terra e ao trabalho. Para alm dessas caractersticas gerais, vale refletir sobre o sentido terico mais amplo a ser atribudo ao ETA, tornando-se necessrio, para tanto, contextualizar a discusso acerca da origem e consolidao de um conceito axial a esta inicia-tiva: o desenvolvimento.

    Descobrindo a Pobreza, Inventando o Desenvolvimento

    Em seu discurso inaugural como presidente dos Estados Unidos pro-ferido em 20 de janeiro de 1949,8 Harry Truman anunciou seu projeto de um fair deal para todo o mundo, apelando aos povos do globo para se engajarem

    6 Embora do ponto de vista quantitativo o total dos recursos estadunidenses investidos na Amrica Latina, no contexto inicial da Guerra Fria, tenha sido menor do que aquele dirigido Blgica e ao Luxemburgo juntos, como o destacam Leslie Bethell e Ian Roxborough (Latin America between the Second World War and The Cold War 1944-1948, Cambridge, Cambridge University Press, 1992), isso no significa, da perspectiva aqui assumida, que o interesse/interveno dos USA no subcontinente fossem simblica e culturalmente pouco relevantes, mesmo antes deste perodo, como ser retomado mais adiante. 7 A este respeito ver Martha Darlymple, The AIA story: two decades of international cooperation, New York, AIA, 1968.8 Cabe esclarecer que se tratava do segundo mandato de Truman que, no primeiro deles, assumira a presidncia aps a morte de Roosevelt, em abril de 1945.

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    na soluo dos problemas de suas regies subdesenvolvidas.9 A doutrina Truman dava incio a uma nova era no gerenciamento dos assuntos mundiais, mormente aqueles ligados aos pases economicamente menos dinmicos. Seu ambicioso objetivo era propiciar as condies necessrias para reproduzir, em mbito planetrio, as caractersticas das sociedades avanadas da poca, tais como seus altos nveis de industrializao e urbanizao, a tecnicizao da agricultura, o rpido crescimento material da produo e padres de vida, alm da adoo da Educao e valores culturais ditos modernos. Neste projeto, Capital, Cincia e Tecnologia eram eleitos como os ingredientes indispensveis transformao uma vez que, somente atravs deles, o sonho americano de paz e abundncia poderia estender-se a todos. Por certo, tal sonho no foi criao exclusiva dos dirigentes estadunidenses, mas fruto de uma conjuntura histrica especfica, inaugurada com o final da Segunda Guerra Mundial e incios da Guerra Fria, a qual, em poucos anos, seria universalmente abraada pelos detentores do poder.

    Um dos mais expressivos documentos do perodo, preparado pelo gru-po de especialistas convocado pelas Naes Unidas para desenhar polticas concretas para o desenvolvimento econmico dos pases subdesenvolvidos, su-geria a total reestruturao destes ltimos. Este projeto evidenciava o desejo de transformar, drasticamente, dois teros do mundo, para atingir a meta da prosperidade material e do progresso econmico, tendo se tornado hegemnico junto aos crculos do poder em nvel mundial. Por certo semelhante sonho logo se transformaria em pesadelo para a Amrica Latina, uma vez que no lugar do reino da abundncia anunciado pelos tericos da dcada de 1950, o discurso e as estratgias do desenvolvimento produziram seu oposto: o sub-desenvolvimento, o empobrecimento, a explorao incalculvel e a opresso. Em verdade, poca, pareceria impossvel conceituar a realidade social em outros termos. Para onde quer que se olhasse, encontrava-se, repetitiva e oni-presentemente, a problemtica do desenvolvimento: governos esboando e implementando ambiciosos planos desenvolvimentistas, instituies aplicando programas de desenvolvimento junto a cidades e campos, especialistas de toda espcie estudando o subdesenvolvimento e produzindo teorias a seu respeito. 9 There is a sense in which rapid economic progress is impossible without painful adjust-ments. Ancient philosophies have to be scrapped; old social institutions have to disintegrate; bonds of caste, creed and race have to burst; and large numbers of persons who cannot keep up with progress have to have their expectations of a comfortable life frustrates. Very few communities are willing to pay the full price of economics progress. Apud Escobar, op. cit., p. 4.

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    A rigor, possvel afirmar que, desde fins da II Grande Guerra, a realidade histrica foi colonizada pelo discurso do desenvolvimento e sua intensidade seria tamanha que concordamos com Escobar ao afirmar que as represen-taes tornadas dominantes no apenas moldaram os caminhos nos quais a prpria realidade era imaginada, como tambm atuaram junto a ela.10

    Vale ressalvar que refletir sobre o desenvolvimento como resultado de uma formao discursiva permite no apenas manter o foco da anlise sobre a temtica da dominao, como tambm explorar, mais frutiferamente, suas condies de possibilidade e efeitos mais penetrantes. Entretanto, para entender o desenvolvimento como um discurso historicamente produzido necessrio examinar o porqu de intelectuais/lderes de tantos pases terem comeado a represent-los como subdesenvolvidos justamente no imediato Ps-II Guerra; de como desenvolver-se tornou-se um problema fundamental para eles e, finalmente, de como abraaram a tarefa de no se subdesen-volverem, sujeitando-se crescente interveno externa. A rigor, todo um novo domnio de saberes e experincias estava em gestao, resultante de inovadoras estratgias para lidar com os problemas construdos. Partindo dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, essas estratgias se tornaram uma poderosa fora no Terceiro Mundo, fruto de um conjunto de afirmaes sobre o desenvolvimento/subdesenvolvimento que no s autorizavam vises a seu respeito, como o descreviam e prescreviam.11 O desenvolvimento se tornou um estilo de dominao, reestruturao e apropriao da prpria autoridade sobre o Terceiro Mundo.

    O discurso do desenvolvimento se desdobrou num aparato institucional extremamente eficiente, destinado produo de conhecimentos/prticas de poder sobre o Terceiro Mundo, integrado por vrias agncias e agentes surgidos entre 1945-1955, que no cessaram de produzir novas teorias e estratgias. O desenvolvimento disponibilizou uma forma de gerir o Terceiro Mundo, es-pao prprio para os povos submetidos, que assegurava, simultaneamente, o controle sobre ele. Falar do desenvolvimento como experincia histrica singular remete criao de um domnio de pensamento e ao, passvel de ser analisado a partir da imbricao de trs eixos: a) as formas de conhecimen-to a ele referidas e pelas quais ele ganha existncia, tais como os campos de conhecimento acerca do desenvolvimento rural, do desenvolvimento susten-

    10 Id., ibid., p. 5.11 Pierre Bourdieu, A Economia das Trocas Lingusticas O que Falar quer Dizer, So Paulo, Edusp, 1996.

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    tvel e etc.; b) o sistema de poder que regula suas prticas e, finalmente c) as formas de subjetividade forjadas por tal discurso, atravs das quais as pessoas passariam a se reconhecer como desenvolvidas ou subdesenvolvidas.

    Partindo dessas premissas, vale apontar que uma das muitas mudanas verificadas no imediato Ps-II Guerra consistiu no deslocamento do discur-so da guerra contra o fascismo para um novo domnio social e geogrfico: o Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, outro deslocamento simultaneamente entrava em processo de operao no contexto da guerra fria: aquele relativo ao combate pobreza, tambm percebido como um dos instrumentos de combate possvel expanso da influncia comunista em mbito internacio-nal. Tais nfases decorreriam do reconhecimento das condies crnicas de pobreza e misria vigentes em vrias partes do globo, fazendo com que os pases mais adiantados assumissem como sua a misso de super-las, sob pena do nvel de instabilidade mundial se tornar intolervel. E, rapidamente, a hegemonia internacional estadunidense faria com que a guerra contra a pobreza terceiro-mundista adquirisse lugar proeminente. A reordenao do Imperialismo se baseou numa poltica de combate pobreza cujo objetivo era no apenas criar consumidores, mas transformar os prprios pobres em objeto de conhecimento e gerenciamento, originando intervenes junto a reas como as da educao, sade, higiene, moralidade e emprego. Afirmar-se-ia como verdade universal que o trao principal do Terceiro Mundo era sua pobreza e que sua soluo consistia no desenvolvimento econmico, abraado com sentimento messinico expresso, materializado na ideia de salvao.

    No caso latino-americano, a ascendncia dos Estados Unidos foi senti-da desde incios do sculo XX, tendo as relaes com os EUA assumido um significado de mo dupla. Se, por um lado, aqueles no poder perceberam que as oportunidades para essa grande troca existiam, por outro, os grupos domi-nantes estadunidenses se sentiram justificados a intervir junto aos assuntos da Amrica Latina, numa postura que oscilou do intervencionismo aberto aos princpios da boa vizinhana, j em meados do sculo.12 Foi no decorrer deste perodo que a Fundao Rockefeller se tornou ativa no continente. Em seu conjunto, entretanto, o perodo compreendido entre 1912-1932 seria regido

    12 No demais sinalizar para a diferena existente entre a Poltica da Boa Vizinhana do presidente Roosevelt que restringiu drasticamente o intervencionismo estadunidense na Amrica Latina e o novo tipo de atuao sobredeterminado no imediato ps-Segunda Guerra, pautado pela proposta de interveno cultural e cooperativa do governo dos USA em todo o mundo. A este respeito ver (?!)

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    pelo desejo dos dirigentes estadunidenses de atingir a hegemonia ideolgica e tambm militar sem ter que pagar o preo permanente da conquista.13 Embora este estado de relaes revelasse crescente interesse dos USA na Amrica Latina, ele no chegou a originar estratgias palpveis de atuao, o que seria drasticamente alterado aps a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Somente em incios dos 1950, a ideia da existncia dos trs mundos, de fato, se consolidou.14

    O ano de 1945 marcou uma profunda transformao nas relaes mun-diais, dando aos Estados Unidos uma posio to inquestionvel, econmica e militarmente, que colocaria sob sua tutela todo o capitalismo ocidental. A necessidade de expandir e aprofundar mercados externos para seus produtos, bem como de encontrar novas reas para investimento de seus excedentes de capitais, era premente. Afinal, o crescimento da economia estadunidense dependia de matrias-primas baratas como suporte crescente capacidade de suas indstrias, evidenciando que o Terceiro Mundo, longe de ser perifrico, era central para a rivalidade entre as superpotncias e a possvel confrontao nuclear.15 Se a Cincia e a Tecnologia j eram marcos da civilizao desde o sculo XIX, a partir do ps-guerra retornariam com toda a fora. Assim, em 1949, enquanto o Plano Marshall mostrava sucesso na restaurao europeia, tornou-se famoso o Programa Ponto IV do presidente Truman, acima citado, envolvendo a aplicao, nas reas pobres do mundo, daquilo que se conside-rava como as foras vitais da civilizao do Ocidente: tecnologia e capital. A despeito disso, o programa repousou muito mais em assistncia tcnica do que naquele ltimo.

    Cabe, aqui, tecer algumas consideraes a partir da historiografia espe-cializada na temtica das relaes entre USA e Amrica Latina neste perodo, j que, segundo ela, existiu um escasso interesse do governo estadunidense pelo subcontinente neste perodo, visvel a partir da comparao entre os in-vestimentos por ele realizados em vrios pases do globo. Sem discordar desses dados, que dizem respeito a inverses em atividades econmicas, basicamente, nosso objetivo enfatizar o aspecto qualitativo desta interveno, em particular no caso especfico das verbas destinadas chamada cooperao tcnica, as quais nem sempre so apreendidas a partir de indicadores numricos. Isto

    13 Paul Drake, From Good Men to Good Neighbors (1912-1932), Exporting Democracy: The United States and Latin America, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1991, p. 34.14 Escobar, op. cit., p. 33.15 Id., ibid., p. 35, grifos meus.

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    porque acreditamos que o interesse dos USA em estabelecer as diretrizes de sua ao de cooperao com os governos latino-americanos foi, poltica, simblica e culturalmente relevante para a implantao das sementes de seu projeto hegemnico.16

    Alguns aspectos ilustram nosso ponto de vista, dentre eles: 1) o fato da solidariedade no hemisfrio ter se tornado tema dominante na cooperao interamericana, desde a gesto de Ben Cherrington junto Diviso de Rela-es Culturais do Departamento de Estado (1938-39); 2) a forte interconexo de interesses pblicos e privados no patrocnio de projetos culturais no espao latino-americano, dentre eles a American Association for University Women; American Home Economic Association; American Society of Mechanical Engineers; Pan American Airways; Anaconda Copper Minning Companies e Mine Grand Oil Company; 3) o fato de o Departamento de Estado ter assinado, em fins de 1941, acordos de cooperao cultural com onze ministrios de pases latinos Argentina, Brasil, Colmbia, Chile, Costa Rica, Repblica Dominicana, Guatemala, Honduras, Nicargua, Paraguai e Uruguai; 4) o fato de as razes do programa cooperativo do Institute of Inter-American Affairs (ex-Escritrio para a Coordenao das Relaes Comerciais e Culturais entre as Repblicas Americanas, liderado por Rockefeller) remontarem a meados da dcada de 1930, quando polticos e empresrios norte-americanos estabele-ceram estratgias para angariar o apoio das repblicas latinas, num cenrio de ameaa alem e, finalmente, no que tange especificamente ao Brasil, 5) os quatro acordos firmados entre agncias pblicas estadunidenses e brasileiras em 1942, em funo da II Grande Guerra.

    O primeiro acordo, que originou a Comisso Brasileiro-Americana de leos, foi assinado pelo diretor do IIAA (Nelson Rockefeller) e o ministro da Agricultura em setembro de 1942; o segundo, firmado entre o DASP, o Servio de Informao Agrcola da Pasta da Agricultura e o Foreign Office, destinou-se dotao de verbas para financiar a traduo, impresso e distribuio de publicaes agrcolas estadunidenses, visando vulgarizar mtodos e tcnicas destinados elevao da produtividade agrcola no pas; o terceiro, denomi-nado Food Supply Program in Brazil, visou maximizar a produo brasileira de gneros alimentcios; e, finalmente, tem-se o quarto acordo, que deu origem Comisso Brasileiro-Americana de Produo de Gneros Alimentcios

    16 Sobre algumas dessas questes, ver Gerard Colby & Charlotte Dennett, Seja Feita a Vossa Vontade (a conquista da Amaznia: Nelson Rockefeller e o Evangelismo na Idade do Petrleo), Rio de Janeiro, Record, 1998.

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    (CBA), com atuao nas regies Norte-Nordeste do pas, incumbida de im-plantar o Programa de Treinamento Vocacional para trabalhadores rurais.17

    Ademais, segundo dados publicados em 1954 pelo Subcomit de As-sistncia Tcnica estadunidense, o Programa de Cooperao Tcnica sob o Ponto IV estava em operao, desde 1951, em 38 pases do mundo, incluindo Oriente Mdio, Amrica Latina, Europa e frica, tendo despendido 488 mi-lhes de dlares entre 1950 e 1955, dos quais US$138 milhes se destinaram Amrica Latina.18 Outro documento, tambm datado de 1954, traz dados comparativos sobre o Programa nos anos de 1951 a 1954, demonstrando que, entre os extremos da srie, o maior dispndio por parte dos USA havia se deslocado da Europa para frica/Sudeste asitico.19

    Logo, o interesse pela Amrica Latina se traduziu na busca do conhe-cimento detalhado acerca de sua economia, sociedade, geografia e poltica, integrando um sistema transnacional de pesquisa. Entretanto, muito embora isto tivesse criado capacitaes de conhecimento, tambm implicaria a perda da autonomia e o bloqueio de diferentes modos de conhecimento. O desejo de crescimento econmico parecia estar ligado f, revitalizada, na Cincia e Tecnologia, ambas redentoras da pobreza. Por trs do vis humanitrio e da viso positivada dessa estratgia, novas formas de poder e controle, mais sutis e refinadas, seriam perpetradas, erodindo a capacidade dos povos po-bres definirem suas vidas e desqualificando-se, totalmente, seus prprios saberes. As novas instituies de poder nos EUA e na Europa, o BIRD e a ONU, as fundaes e escritrios ligados ao grande capital, esse era o tipo de desenvolvimento a ser promovido e, em poucos anos, se estenderia a todas essas sociedades.

    17 A este respeito ver UNITED STATES. DEVELOPMENT OF TECHNICAL ASSIS-TANCE PROGRAMS Committee on Foreign Relations, Subcommittee of Technical Assistance, Washington D.C., 1954 e FOOD SUPPLY PROGRAM IN BRAZIL. Report (1943-1945), Washington, 1942, NARA, entry 889, box 13. 18 DEVELOPMENT OF TECHNICAL ASSINTANCE PROGRAMS. Background Infor-mation and Document, Washington, Government Printing Office, 1954, p. 8.19 A distribuio dos recursos apresentados pela fonte, sempre em milhes de dlares, , em 1951: Europa 10,5 milhes; Oriente Mdio 6,7 milhes; Amrica Latina 9,2 milhes; frica e Sudeste Asitico 8,2 milhes de dlares. J em 1954 esses totais foram: Europa 13,4 milhes; Oriente Mdio 25 milhes; Amrica Latina 24,4 milhes e frica e Sudeste Asitico 78 milhes de dlares. FOREIGN OPERATIONS ADMINISTRATION. Pro-gram Obligations by Major Cost Components, Washington, Decimal Files, NNO 882503, 1954, classified, p. 6

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    Estratgias do Desenvolvimento

    Os objetos com os quais o desenvolvimento comeou a lidar no ps-1945 eram numerosos e variados. Alguns estavam claramente postos pobreza, in-suficincia de tecnologia e capital, prticas agrcolas arcaicas, etc. enquanto outros foram introduzidos de forma sub-reptcia, mormente atitudes culturais, valores, alm de fatores religiosos, geogrficos e tnicos associados ao atraso. Tudo era objeto do olhar dos novos especialistas economistas, demgrafos, educadores, agrnomos, etc. Problemas seriam continuamente identificados, originando renovadas categorias de clientes. O desenvolvimento, ademais, procedia atravs da criao de anormalidades o analfabeto, o subdesen-volvido, o pequeno lavrador que assegurassem a necessidade permanente de reformas. Igualmente vulgarizou-se uma representao do Terceiro Mundo como criana a ser guiada, tornando-se a infantilizao da Amrica Latina pea fundamental para a elaborao de uma teoria da salvao. Obviamente outros discursos histricos influram na configurao das representaes do desenvolvimento, como o do comunismo, por exemplo. Num sentido similar, patriarcado e etnocentrismo igualmente influenciaram a forma assumida pelo desenvolvimento. Populaes tinham que ser modernizadas e formas de poder pautadas nos termos de classe, gnero, raa e nacionalidade encontraram lugar na teoria e nas prticas desenvolvimentistas, concebidas que o foram no como processos culturais, mas como um sistema universalmente aplicvel, mediante intervenes tcnicas.

    Falar do desenvolvimento como construo histrica igualmente implica mencionar os mecanismos atravs dos quais ele se tornou ativo, ou seja, como conjunto de prticas que se fizeram acompanhar de tcnicas, estratgias e dis-ciplinas que organizaram a gerao e difuso do prprio conhecimento sobre o desenvolvimento, incluindo desde as acadmicas mtodos de pesquisa e ensino at prticas profissionais. Semelhante profissionalizao se efetuou a partir da proliferao de Cincias do Desenvolvimento e suas subdis-ciplinas, que supostamente permitiriam remover os problemas polticos e culturais, recolocando-os nos termos mais neutros da Cincia, redundando quer na definio de uma srie de programas de estudos em boa parte das universidades do mundo desenvolvido, quer na metamorfose do povo terceiro-mundista em dados de pesquisa, segundo paradigmas capitalistas. A inveno do desenvolvimento incidiu na criao de um campo institucional a partir do qual os discursos eram produzidos, repetidos, estabilizados, modi-

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    ficados e postos em circulao, via profissionalizao. E a institucionalizao do desenvolvimento se verificou em todos os nveis, desde a multiplicao de organizaes internacionais e nacionais de planejamento, at agncias de nvel local, como comits comunitrios de desenvolvimento, rgos de voluntrios privados e agncias no governamentais.

    O conhecimento produzido acerca do Terceiro Mundo, por sua vez, era utilizado por todas essas instituies, atravs de programas aplicados, confern-cias, servios internacionais de consultoria, pareceres de extenso local, etc., cujo corolrio foi a gnese de um verdadeiro negcio do desenvolvimento onde a pobreza, o analfabetismo e a fome se tornaram a base de uma lucrativa indstria de planejadores, especialistas e funcionrios. O desenvolvimento forneceu um caminho para conceber a vida social como problema tcnico a ser executado por pessoas os profissionais do desenvolvimento especia-lizadas num conhecimento supostamente qualificado sobre sua misso. Com isso, reproduzia-se a segmentao entre reformadores e reformados, mantendo viva a premissa de que o Terceiro Mundo era diferente e inferior. Em suma, os especialistas no desenvolvimento concebiam-no como algo a ser atingido mediante a aplicao correta de saberes, investimentos e aumentos de produtividade, de forma mecanicista e fragmentria. A criao do Escritrio Tcnico de Agricultura Brasileiro-Americano (ETA) pode ser tomada como emblemtica das consideraes at aqui tecidas.

    ETA: Educao Rural e Poder no Brasil

    Por volta de 1953, uma srie de agncias pblicas e de grupos privados norte-americanos dividia seus conhecimentos e habilidades com os governos de vrios pases subdesenvolvidos. Muitas delas, entretanto, trabalhavam de forma independente, dando a impresso de que os programas de cooperao tcnica poderiam se tornar elemento crescentemente construtivo no plano internacional. Nenhum efetivo esforo organizado tinha sido feito, at ento, para determinar at que ponto essa diviso de conhecimentos estava, de fato, ajudando os pases no desenvolvidos a se ajudarem ou a ver quais eram os reais benefcios, tangveis ou intangveis, para os Estados Unidos.

    A deciso da National Planning Association (NPA) de patrocinar um estudo de amplo alcance sobre os programas de cooperao tcnica desti-nado a avaliar suas potencialidades e limites na Amrica Latina nasceu nesse contexto. O survey foi intencionalmente centrado nas atividades realizadas

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    Ensino Agrcola e Influncia Norte-Americana no Brasil (1945-1961)

    na Amrica Latina, no porque elas fossem as melhores e mais importantes do mundo, mas justamente porque fora onde os programas de cooperao tcnica contavam com maior durao e escala. Ademais, os programas a desenvolvidos haviam contado com distintas modalidades de auspcios e con-dies, sendo patrocinados por fundaes privadas, pelo governo dos Estados Unidos, por organizaes internacionais, grupos religiosos, universidades e empresas, cada uma delas com seus prprios objetivos. Esperava-se que um estudo intensivo das experincias acumuladas por rgos pblicos e grupos privados pudesse fornecer guias prticos e padronizadores da atividade de cooperao tcnica.

    Os objetivos do Projeto de Cooperao Tcnica para a Amrica Lati-na eram: a) descobrir se os programas haviam prestado ou no contribuio significativa aos interesses de longo prazo dos Estados Unidos e dos pases latinos no tocante prosperidade do crescimento mundial; b) identificar as intervenes dos programas pblicos e privados em curso, julgando seus m-ritos e resultados, de modo a estabelecer parmetros de deciso sobre quais teriam maior valor para o futuro tanto do pblico-alvo, quanto para os Estados Unidos; c) esclarecer o papel dos programas pblicos de cooperao tcnica em relao aos programas privados e, finalmente d) apontar caminhos e meios que efetivassem a cooperao tcnica como meio de atrair e treinar pessoal competente.20 Em incios de 1953, a Ford Foundation forneceu subsdio de US$ 440 mil para financiar o Projeto de Cooperao Tcnica da NPA na Amrica Latina.

    Um Comit Poltico Especial para a Cooperao Tcnica foi criado para arquitetar o Projeto com base nos produtos fornecidos pelas equipes de pesquisa e tecer recomendaes sobre as matrias polticas que contrapunham Estados Unidos e Amrica Latina no campo desta modalidade de coopera-o. O Comit foi composto por lderes da agricultura, comrcio, trabalho, educao, sade, tanto dos Estados Unidos quanto da Amrica Latina, de modo a assegurar que suas sugestes levassem em conta experincias e pontos de vista dos distintos representantes.21 Theodore Schultz, da Universidade de Chicago (e tambm diretor da NPA), organizou plano de estudos, selecionando a equipe de pesquisadores e consultores do Projeto e coordenando o trabalho

    20 Arthur Mosher, Technical Cooperation in Latin America: Case Study of the Agricultural Pro-gram of ACAR in Brazil, Washington D.C., National Planning Association, 1955, p. VI. 21 Laird Bell, scio snior da Bell, Boyd, Marshall & Lloyd de Chicago e trustee da NPA, presidiria o comit poltico especial.

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    de campo efetivado em vinte repblicas da Amrica Latina, onde realizaram investigaes e examinaram variados registros.22 A equipe consultou firmas, grupos religiosos, fundaes, universidades e organizaes privadas, bem como agncias governamentais de ambas as Amricas, alm de representantes da ONU, OEA e suas instituies especializadas, donde resultaram densos rela-trios publicados, a intervalos regulares, pela Chicago University Press.23 Por fim, o Comit consolidou os resultados da pesquisa num s Relatrio sobre a temtica da cooperao tcnica.

    Se acrescermos a esse movimento do governo dos Estados Unidos da Amrica a conjuntura especfica relacionada ao ensino agrcola no Brasil, sobredeterminada pela aprovao da Lei Orgnica do Ensino Agrcola, no ano de 1946, tem-se um quadro bastante aproximado do contexto no qual se verificou a fundao, no pas, da principal e mais duradoura agncia brasileiro-estadunidense de cooperao agrcola: o ETA. O ano de 1946 foi decisivo para a consagrao da educao rural enquanto ramo especial e hierarquizante do Ensino, ou seja, como escola para o trabalho, marcada pela subalternidade de todos aqueles a serem por ela formados. Com a aprovao da LOEA, de iniciativa do Ministrio da Educao e Sade (MES), tal modalidade de ensino foi definitivamente alijada da rede escolar primria regular, mantendo-se sob a alada do Ministrio da Agricultura, responsvel por sua gesto e fiscalizao desde 1910, embora coubesse ao jovem MES a prerrogativa de estabelecer suas diretrizes nacionais. Em certa medida, a Lei de 1946 consistiu num instrumento paliativo aos conflitos intra-estatais imbricados questo da Educao Rural, que se arrastavam desde 1931.24 Somente a partir de ento se abriu a possibilidade de inflexo nas reorientaes e prticas relativas ao Ensino Agrcola, paulatinamente redefinidas atravs da proliferao de instituies

    22 Id., ibid., p. VII.23 Os temas e respectivos autores das monografias foram: Cooperao Tcnica e Administra-tiva (Philip M. Glick); Cooperao Tcnica em Educao (Armando Samper); Cooperao Tcnica em Poltica Externa (George Blankstein); Atividades de Assistncia Tcnica por Agncias Religiosas (Simon Rottenberg); Cooperao Tcnica e Desenvolvimento Agrcola (Arthur Mosher); Contratos Universitrios de Cooperao Tcnica (R. E. Buchanan); Pro-gramas de Treinamento em Cooperao Tcnica (James Maddox); Formas de ampliar a distribuio de tecnologia entre os pases (Theodore Schultz).24 Semelhantes conflitos referiam-se disputa verificada entre os grupos dirigentes junto aos Ministrios da Agricultura (fundado em 1909) e da Educao e Sade (criado em 1931) pelo monoplio da fala e da ao legtima em matria de Educao Rural. Enquanto o primeiro respondeu por tal ramo do ensino desde incios do sculo XX, pautado pela premissa da Educao para o Trabalho, o segundo, bem mais recente, tentava imprimir ao ensino agr-cola um cunho generalizante e humanista, desconectado de finalidades profissionalizantes.

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    e campanhas especficas, dentre elas a Campanha Nacional de Educao Rural (CNER 1953) e a Campanha de Educao de Adolescentes e Adultos (CEAA), ambas originadas de acordos bilaterais Brasil - EUA e destinadas a alfabetizar a populao rural adulta utilizando-se das mesmas cartilhas adota-das nas escolas da rea urbana. Seu objetivo consistia em difundir o princpio de desenvolvimento comunitrio com objetivos polticos evidentes, de modo a combater o marginalismo e educar os adultos, antes de tudo para que o pas possa ser mais coeso e solidrio.25

    A partir de 1948 observa-se a implementao clere de prticas Ex-tensionistas destinadas difuso, em larga escala, de conhecimentos sobre determinadas tcnicas de cultivo, tipos especficos de sementes, etc., em lugar da nfase nas escolas tcnicas agrcolas propriamente ditas, incumbidas de ministrar cursos de nvel mdio e altamente profissionalizantes a crianas e jovens. Dentre as instituies vinculadas Extenso e totalmente descoladas da escola destacaram-se: as Semanas Ruralistas, que contaram com forte apoio da Igreja;26 as Misses Rurais que percorriam o interior dos estados, sobretudo no eixo Rio, So Paulo e Minas Gerais; alm de Cursos Avulsos. Todas essas experincias foram apoiadas pelo Estado atravs do binmio Ministrio da Agricultura-Foreign Office, compartilhando-se da mesma premissa: com uma populao rural mais instruda e melhor esclarecida ser possvel conseguir-se uma produo agrcola eficiente. Outro fator preponderante para a consoli-dao do Extensionismo Rural no Brasil foi a montagem de uma intrincada rede de agncias de divulgao e propaganda, a partir de convnios firmados entre distintos rgos do Ministrio da Agricultura, tais como o Servio de Informao Agrcola (SIA) e o Servio Social Rural (SSR), este ltimo criado em 1955 afeto Pasta e igualmente inspirado na experincia extensionista estadunidense, contando com recursos de novos convnios firmados entre o ETA e organismos governamentais norte-americanos.

    25 Relatrio da Campanha de Educao de Adolescentes e Adultos, Rio de Janeiro, Ministrio da Agricultura/ETA, 1956, p. 2, grifos no original.26 O convnio com o clero foi estabelecido em meados de 1958, sendo visto pelos dirigen-tes do SIA como um passo pioneiro e decisivo para a obra de educao rural, animando o prprio governo a estabelecer cooperao mais ampla com os altos dignitrios da Igreja Ca-tlica, Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, 1958, set., p. 9. Prosseguindo, afirmaria a matria que Imprensa, rdio, cinema, televiso e publicaes devem ser colocados em larga escala a servio do homem do campo, ainda pouco esclarecido e quase sempre esquecido. Urge combater o analfabetismo. No se pode pensar em desenvolvimento econmico sem mobilizar para eliminar este grande mal.

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    As consideraes adquirem maior relevncia quando se constata que o peridico publicado pelo SIA no binio 1957-1959, intitulado Informao Agrcola, dedicou cerca de 50% de suas pginas seo intitulada ETA em Marcha, incumbida de divulgar as realizaes do Escritrio, destacando sobretudo a concesso de bolsas de estudo nos EUA para tcnicos brasileiros aptos a se especializarem em Extensionismo. O expediente os qualificaria como assessores para a fundao de Clubes Agrcolas; a construo de Centros de Treinamento de Trabalhadores Rurais e, ademais, o estabelecimento de parcerias em assistncia tcnico-financeira com rgos pblicos ou privados de crdito rural. Como se percebe, o aparato do desenvolvimento se hipertro-fiava no pas, multiplicando seu corpo de especialistas e produtores de novos conhecimentos. Entre 1957 e 1958, em plena gesto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e do ministro da Agricultura Mrio Meneghetti,27 foi publicado nmero especial contendo a sntese das atividades realizadas pelo ETA, tendo por eixo a consagrao daquilo que passou a se denominar outro tipo de ao educativa, mais ampla e menos dispendiosa do que a Educao Rural escolar: a Extenso Rural. Na ocasio, o ministro enalteceu a partici-pao de sua Pasta no processo de implantao da Associao Brasileira de Crdito e Assistncia Rural (ABCAR), encarregada de fornecer crdito agrcola supervisionado a pequenos produtores, tida como uma das deficincias do subdesenvolvimento, mediante a intermediao de seus tcnicos, sempre em parceria com o ETA.

    Semelhante inovao, segundo o discurso oficial, distinguia-se do cr-dito comercial por sua extrema preocupao com a integrao dos agricultores economia moderna, da ser definida pelos quadros do ETA como uma nova modalidade de atuao educativa. De acordo com esses tcnicos, o crdito agr-cola convencional no havia sido capaz de dotar seus usurios do conhecimento sobre novas tcnicas de plantio, nem tampouco do acesso a novas tecnologias, mantendo-os atrelados a uma agricultura atrasada e a um modo de vida arcaico. Em poucos anos de vigncia no pas, a Extenso Rural, imbricada parceria ABCAR - ETA, passou a contar com uma razovel equipe de tcnicos, cerca de 150, atuando em 212 municpios do pas. Igualmente foram localiza-dos naquele perodo inmeros avisos do ETA, dirigidos tanto ao ministro da

    27 Ministro da Agricultura entre 1956 e 1960, Meneghetti era gacho, mdico e presidente da Sociedade de Medicina, tendo sido catedrtico de bacteriologia da Faculdade de Farmcia e Odontologia. Vereador pelo PSD, tornou-se prefeito de Pelotas em 1952, sendo nomeado por Juscelino, em 1956, como ministro da Agricultura, em lugar de Ernesto Dornelles.

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    Agricultura quanto ao da Educao, solicitando apoio ao Extensionismo Rural, de modo a priorizar a assistncia tcnica aos homens do campo. Para legitimar a redefinio em curso no prprio conceito de Educao Rural ao longo dos anos 1950, a correlao de foras no poder canalizou esforos para preservar a subalternidade do trabalhador rural, propondo uma poltica educativa destinada a qualificar a mo de obra adulta para o trabalho, definitivamente desatrelada da instituio escolar. Impossvel no relacionar tais intervenes ao contexto especfico atravessado pelo campo brasileiro poca, marcado pela multiplicao de inmeros movimentos sociais rurais organizados, como as Ligas Camponesas.28 Com semelhante pano de fundo, a Extenso Rural se destinou ao disciplinamento coletivo, sob a gide de cdigos e vises de mundo transmitidas pelos tcnicos e agncias estadunidenses, visando, dentre outros aspectos, minimizar os conflitos sociais.

    As atividades desenvolvidas pelo ETA no ano de 1958 consolidaram seu programa de trabalho com relao aos acordos assinados antes de 1953. O Escritrio passou a colaborar com onze rgos do Ministrio da Agricultura, metade das Secretarias de Agricultura estaduais e todas as Universidades Rurais do pas, influindo diretamente em atividades supostamente ligadas ao bem-estar das populaes do campo em mais de 220 municpios.29 Atravs de sua diviso de Economia Domstica, o ETA prestaria inmeros servios ao Extensionismo Agrcola, dentre eles o financiamento para multiplicar o nmero de escritrios da ABCAR nos vrios estados da federao, os quais, segundo a publicao oficial, hoje so considerados indispensveis ao desenvolvimento do meio rural.30 Sob o Projeto n. 17, a filial de Santa Catarina firmaria acordos para a realizao de nove servios especficos, trs dos quais com financiamento direto do ETA.31

    O papel desempenhado pelo ETA na promoo do desenvolvimento rural brasileiro pode ser tambm balizado por sua forte imbricao s agn-cias estatais em geral e ao Ministrio da Agricultura em particular, ao qual a Educao Rural se achava subordinada. Assim, a seo ETA em Marcha,

    28 A esse respeito ver Leonilde Srvolo de Medeiros, Histria dos Movimentos Sociais no Campo, Rio de Janeiro, FASE, 1989. 29 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, ago - out., 1959, p. 1.30 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, mar. - abr., 1955, p. 15.31 Eram eles: 1) a Inspetoria de Defesa sanitria vegetal; 2) a usina de beneficiamento de leite, e 3) o Projeto n. 10 destinado a campos de batata-semente certificados em acordo florestal.

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    no volume de Informao Agrcola de julho de 1958, publicaria matria en-comistica sob o significativo ttulo ETA - Trs Letras que Esto Mudando o Panorama Agrcola do Brasil: completou 5 anos de eficiente atividade em prol do desenvolvimento da agricultura de nosso pas o Escritrio Tcnico de Agricultura Brasil-EUA.32

    Esclarecendo a atuao do Escritrio, a matria ponderava ainda que esta se dava

    Atravs da assistncia tcnica e financeira a trabalhos em benefcio da agri-cultura e do agricultor, realizados pelos rgos do governo e outras entidades pblicas ou privadas, nos setores de treinamento e de extenso rural, mediante convnios que recebem o nome do projeto, seguido por seu nmero de ordem. At fins de 1957 o ETA assinara, com 70 rgos diferentes, 46 projetos relativos a trabalhos em educao, pesquisa, conservao de recursos naturais, solo, gua, fomento da produo de leite, cacau, assistncia educativa, etc. Esses trabalhos so orientados por tcnicos brasileiros e americanos sob a superviso de 3 codiretores nomeados pelos governos de cada pas.33

    Vale esclarecer que os recursos do ETA provinham de verbas mistas, oriundas tanto do governo estadunidense quanto do Estado brasileiro, contan-do, todos os projetos por ele gerenciados, com um Fundo Conjunto engrossado, ademais, pelos recursos das instituies que contratassem servios do Escrit-rio. Para aquilatar o mbito da cooperao estipulada, basta mencionar que enquanto as verbas brasileiras, em incios de 1958, montavam proporo de Cr$ 15,00 para cada dlar investido, as dotaes americanas correspondiam a Cr$ 11,00 por dlar. Alm da desproporo entre as contribuies de ambos os governos, ressalve-se que os dlares se destinam a pagar os tcnicos america-nos e importao de veculos e equipamentos para os projetos. J a contribuio

    32 rgo executor do acordo firmado entre os governos do Brasil e dos EUA para um pro-grama de desenvolvimento e agricultura e recursos naturais, sua histria se resume numa palavra: cooperao, cooperao, cooperao (...) Cooperao entre governos de dois pases, cooperao entre o homem do campo e as autoridades, tudo colimando um nico fim: melhorar a produo agrcola e elevar os padres de vida do homem rural, sua famlia e a comunidade, Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jul., 1958, p.1, grifos no original.33 Id., ibid.

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    brasileira cresce de ano para ano, passando de 14 milhes de cruzeiros, em 1952, para 60 milhes em 1958.34

    Em fins da dcada de 1950 o ETA mantinha sob seu controle e geren-ciamento um total de 45 projetos especificamente contratados, destacando-se aquele destinado manuteno de um Centro de Ensaio e Treinamento na Fazenda Ipanema, em So Paulo, destinado a

    Dar a moas e rapazes uma viso nova dos problemas da agricultura, com uma rea de mais de 16 mil hectares em Sorocaba (...) onde so ministrados cursos de Engenharia rural, de aradores-tratoristas, de extenso rural, alm de seminrios, conferncias e reunies de que tm sado resolues da mais alta relevncia para nossa agricultura (Projeto n. 6);?35

    Quanto aos demais projetos, podemos citar: 1) a Fazenda-Escola Prtica de Presidente Prudente, So Paulo, onde os alunos praticam todos os traba-lhos no campo, participando dos lucros da fazenda e recebendo, ao fim de cada curso, glebas para sua prpria administrao (Projeto n. 45); 2) o Centro Regional de Treinamento do Nordeste, instalado em Pernambuco, visando formar pessoal habilitado a trabalhar com as populaes rurais, quer em asso-ciaes de crdito e assistncia, quer em rgos governamentais ou particulares empenhados na recuperao socioeconmica da regio; 3) o Projeto n. 34, en-carregado de planejar a produo vegetal do pas com vistas ao abastecimento da populao da futura nova Capital; 4) o Plano de Reerguimento do Vale do Paraba ao qual o ETA assistia mediante recursos materiais e humanos, enviando seus prprios tcnicos (Projeto n. 4); 5) o Plano de Assistncia ao Cacauicultor que inclua a instalao de escolas para formao de capatazes, o ensino da seleo de ps de cacau e a assistncia no mbito da economia domstica (Projetos 21, 25, 26 e 35); 6) o Fomento avicultura projeto em colaborao com a Comisso Nacional de Avicultura, destinado a promover o melhoramento da produo avcola do pas (Projeto n. 42); 7) o Plano de

    34 Idem, p. 3. Grifos meus. A ttulo de ilustrao, ressalte-se que as verbas estadunidenses atribudas ao Fundo do ETA evoluram de um total de 750 mil cruzeiros, em 1955, para 5 milhes de cruzeiros, em 1958. USOM COMPTROLLER, ETA: Funds not earmarked as 8-31-1956, USOM Comptroller, Washington D.C., Decimal Files, entry 226, box 1, p. 17. Alm disso, Relatrio encaminhado ao Congresso estadunidense, em 1960, aponta que o governo brasileiro recebera, entre 1955 e 1959, US$ 5,8 milhes para atividades de cooperao tcnica, enquanto ele mesmo contribura, em igual perodo, com US$ 75 milhes. REPORT TO THE CONGRESS OF THE UNITED STATES. Examination of Economic and Technical Assistance Program for Brazil (ICA Department of State), Fiscal Years 1955-59, Washington D.C., Comptroller.

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    Incremento da Produo Leiteira de Pernambuco mediante o controle de animais selecionados, o incentivo indstria de lacticnio e uma campanha educativa junto aos produtores (Projeto n. 20).

    Como se percebe, a variedade de projetos geridos pelo ETA era enorme, conquanto um aspecto chame ateno quando os examinamos em conjunto: a nfase e a concentrao, da maior parte deles, na regio Nordeste, o que de todo coerente, no tanto com as representaes construdas sobre sua populao e geografia, mas, sobretudo, com o fato de haver sido o bero das Ligas Camponesas. Alm dos 45 projetos em andamento, o ETA perma-nentemente considerava novos convnios de cooperao com instituies tais como o Banco Nacional de Crdito Cooperativo, a Companhia Nacional de Seguro Agrcola, o Instituto do Acar e do lcool, a ABCAR e o Servio Social Rural do Ministrio da Agricultura.

    Apesar da multiplicao das parcerias pblico-privado, em incios da dcada de 1960, as pginas de Informao Agrcola continuariam enaltecendo o Escritrio atravs de matrias como esta, intitulada A Cooperao do Ponto IV com o Ministrio da Agricultura:

    O ETA um rgo intergovernamental com um programa de melhoria agrcola que h perto de 6 anos vem operando, proveitosamente, como instrumento do Ministrio da Agricultura. Canalizando a ajuda tcnica e financeira, prestada pelo Ponto IV, seu objetivo colaborar com o Ministrio, assim como outros rgos da administrao pblica, no sentido de assistir programas de edu-cao das massas rurais e sua orientao no sentido de uma agricultura racional e produtiva. Desde 1954 o ETA assinou 58 convnios com 80 entidades, sobretudo onze do Ministrio da Agricultura. Somente para os projetos em que participam rgos do MA, j estando incorporados ao patrimnio dessa secretaria de estado as importaes somaram 877 mil dlares viaturas, material agrcola, equipamento audiovisual, material de escritrio, sementes e artigos diversos.

    Tal como enunciado na seo anterior, patente o empenho com a formao de especialistas destinados a gerir o desenvolvimento e a educa-o35, da mesma maneira que a produo de um saber especializado que acabaria por desqualificar os conhecimentos detidos pelos produtores, alvos dos projetos, sendo fortemente marcados por uma preocupao formativa. 35 Nas PALAVRAS (?) do diretor do Servio de Informao Agrcola que assina a matria a fome de tcnicos que hoje defrontamos no setor rural to angustiosa que tudo quanto fizermos para super-la estar ainda aqum das reais necessidades brasileiras, idem, p. 4, grifos no original.

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    Mesmo em se tratando de iniciativas claramente destinadas maximizao da produtividade do trabalho agrcola e da produo de matrias-primas para o consumo norte-americano, todos os projetos eram definidos pela agncia e o Ministrio como educativos, refletindo a inflexo em curso na Educao Rural at ento vigente no pas. Segundo o diretor do SIA,

    O que h de fundamental neste esforo de renovao dos mtodos edu-cacionais a compreenso de que a reforma agrria no Brasil no se pode limitar simples distribuio da terra. Para mudar o panorama agrrio, indispensvel, por igual, alcanar um elevado grau de dinamizao dos mtodos de ensino rural, para preparar tcnicos qualificados e, sobretudo, capazes de influir decisivamente para a racionalizao dos nossos mtodos.36

    A multiplicidade de agncias e agentes imbricados s prticas do de-senvolvimento no mbito da agricultura igualmente envolveram, alm de instituies pblicas, iniciativas particulares, procedentes da esfera do volun-tariado. A seo ETA em Marcha noticiava com frequncia a constituio de novos Grupos de Treinamento de Lderes Voluntrios, voltados difuso do Programa de Extenso e Crdito Rural Supervisionado, como no caso de Divinpolis, Minas Gerais

    Ministrado para moas e senhoras da comunidade rural, foi exclusivamente destinado confeco de vesturio. s mulheres so transmitidos conhecimen-tos sobre trabalhos domsticos e tais lderes, de posse dos conhecimentos e da prtica dos novos processos de trabalho, se incumbem de transmiti-los nos crculos em que vivem, vencendo-se a natural reao existente nos meios rurais contra tudo que venha violentar a rotina... A condio principal exigida para aproveitamento desses lderes a de que eles trabalhem sem visar remunerao.37

    Como se v, o conceito de liderana veiculado pelas agncias de desenvolvimento passou a conotar, no decorrer da dcada de 1950, todos os produtores rurais dotados de alguma qualificao para o trabalho, nos moldes pregados pelas instituies estadunidenses. E no apenas o trabalho do homem adulto e analfabeto, mas tambm o trabalho de mulheres da a emergncia da nova disciplina do desenvolvimento, a Economia Domstica

    36 Idem, p. 6, grifos meus.37 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jun., 1954, p. 4, grifos meus. Observe-se que o termo lderes passava a conotar, neste contexto, aqueles dotados de algum dos conhecimentos fornecidos pelas agncias integrantes da grande rede do apa-rato desenvolvimentista.

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    e, at mesmo, de crianas, muito embora com relao a estas ltimas o ETA fomentasse parcerias destinadas implantao de outro tipo de instituio: os Clubes Agrcolas.

    Entretanto, cabe esclarecer que no se tratava do trabalho como princpio educativo integral, tal como preconizado por Antonio Gramsci,38 porm da Educao como instrumento maximizador da produtividade do trabalho. A partir dessa percepo instrumental de Educao, submetia-se os trabalhadores rurais a uma infinidade de intervenes, bastante distantes de prticas educativas escolares, haja vista a progressiva substituio da escola por prticas extensionistas de assistncia tcnica e financeira. Uma vez mais, ratificavam-se mecanismos capazes de assegurar um mercado de consumo seguro para os bens e servios estadunidenses j que a orientao tcnica dos extensionistas ligados ao crdito construa a necessidade imperiosa de mquinas e insumos produzidos nos Estados Unidos, como pr-condio para o nvel de desenvolvimento pretendido. Nesse sentido, um dos mais duradouros desdobramentos da atuao do ETA no Brasil foi a indissolvel parceria com a Associao Brasileira de Crdito e Assistncia Rural (ABCAR), tida pelos discursos oficiais como imprescindvel superao do atraso no campo.39

    Na construo dessa intrincada rede de agncias de desenvolvimento voltadas ao campo, um nmero crescente de instituies seria criado, como por exemplo a parceria entre a ABCAR e o Servio Social Rural do Ministrio da Agricultura, firmada em junho de 1958, de modo a aproveitar os duzentos escritrios regionais e os mais de quinhentos tcnicos da Associao.40 Na viso dos gestores do desenvolvimento, a redefinio da Educao Rural resultaria em

    Ajudar queles que j esto ajudando as populaes rurais a se erguerem, pelos mtodos mais indicados. No se deve pensar em fazer caridade, em dar esmola. Os mtodos modernos visam organizao comunitria, atravs da assistncia

    38 Antonio Gramsci, Cadernos do Crcere, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2001, volume 2.39 O desenvolvimento da divulgao Agrcola depende, em boa parte, da cobertura de um sistema extensionista (...). No Brasil a extenso est sendo feita pelas associaes de crdito rural super-visionado, hoje filiadas a uma entidade nacional, a ABCAR e fortemente estimulada pelo ETA, Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, 1959, set., p. 5.40 Firmaram o acordo os presidentes do SSR (Napoleo Fontenele) e da ABCAR (Joo Na-poleo de Andrade). Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jun., 1958, p. 7.

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    tcnica, econmica e social (...). Eles ensinam aos rurcolas a ajudarem a si mesmos para resolver seus prprios problemas. Para isso, o homem do campo necessita existir em comunidades organizadas e unidas onde predominem as associaes rurais e educativas, as cooperativas e os clubes agrcolas. O S.S.R. visa ativar a organi-zao das comunidades de nossos ruralistas e desenvolver um sistema educativo chamado Extenso Agrcola, que to extraordinrios resultados alcanou nos EUA e que a ONU recomendou aos paises membros. Essa nova Educao se far atravs da extenso agrcola conjugada ao crdito rural, que comeou h menos de 10 anos em Minas Gerais, com a ACAR e estendeu-se a vrios estados do pas.41

    Outra prtica privilegiada nos projetos perpetrados pelo binmio ETA - Ministrio da Agricultura foi a multiplicao de Misses Rurais Ambulantes, encarregadas de ministrar Cursos de Treinamento para lderes rurais e orga-nizar cooperativas de consumo. Para tanto, contaram com uma nova parceira, a Igreja Catlica. Em incios de 1959, Informao Agrcola noticiava que:

    O arcebispo de Natal D. Eugenio Salles resumiu em onze itens os resulta-dos obtidos com as Semanas Ruralistas realizadas pelo Servio de Assistncia Rural mantido por aquela diocese, comeando pela instalao de uma Misso Rural Ambulante, Cursos de Treinamento de lderes rurais e organizao de uma Cooperativa de consumo. Tambm o XII Curso de Treinamento de Educadores de Base foi implementado, destinando-se a treinar os tcnicos de que a Campanha Nacional de Educao Rural necessita para orientar o desenvolvimento dos trabalhos nas zonas rurais.42

    Na avaliao dos tcnicos do Ministrio, o grande mrito das Semanas consistia em aproximar tcnicos, produtores e lideranas comunitrias, esta-belecendo a camaradagem necessria aos trabalhos de cooperao e criando o clima favorvel ao entendimento e melhoria das atividades no campo.43 Um novo termo evidencia-se no discurso relativo s organizaes coletivas de trabalhadores rurais previstas pelos acordos de cooperao: a noo de comu-nidade. Nela residiu outro elemento importante no processo de inflexo nos rumos da Educao Rural brasileira nos anos 1950: a substituio da noo de

    41 Informao Agrcola, idem, p. 9, grifos meus. 42 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jan. - fev., 1959, p. 10. Vale lembrar que a Campanha Nacional de Educao Rural resultou de mais um Tratado fir-mado entre o governo dos Estados Unidos, o Ministrio da Agricultura e, desta vez, tambm o Ministrio da Educao, no ano de 1953, com a finalidade de erradicar o analfabetismo do homem do campo.43 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jul. - ago., 1960, p. 6.

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    indivduos pela de grupos, como objetos legtimos da ao extensionista, a nova modalidade educativa em vias de consolidao

    Os homens do campo precisam unir-se, fortalecer as associaes rurais e cooperativas, educar-se para melhor solucionar seus problemas. Ao prprio governo muito mais fcil e vivel atender s comunidades do que aos indivduos isoladamente. As comunidades precisam organizar-se e, por in-termdio de seus clubes agrcolas, de suas associaes de economia domstica e de suas entidades de classe reunir o mximo de pessoas sob a orientao esclarecida de autnticos lideres.44

    Para demonstrar a suposta eficcia das Semanas, Informao Agrcola fornecia dados destinados a ilustrar que, enquanto no perodo 1946-1954 haviam sido realizados 56 encontros deste tipo, entre 1955-59 tal nmero as-cendera a 100, em funo de convnio firmado, em 1955, entre o Ministrio e o Episcopado. Isso corresponderia a 2.812 aulas, frequentadas por 54 mil lavradores e criadores, alm de 2.033 demonstraes para um pblico inte-grado por 29.400 donas de casa e professoras rurais, mobilizando um total de 1.500 especialistas, dentre agrnomos, veterinrios, economistas domsticas, jornalistas, mdicos, advogados, alm de sacerdotes.45 Exaltando os novos termos da aliana Estado-Igreja, o peridico divulgaria que a obra social da Igreja Catlica do Brasil digna de louvor. A colaborao desinteressada do clero, entusiasta do movimento ruralista, tem sido das mais eficientes.46

    As verbas administradas pelo ETA igualmente dirigir-se-iam a outra modalidade de ao educativa que, apesar de posta em prtica desde 1946, pela Comisso Brasileiro-Americana de Educao das Populaes Rurais, ganharia novo flego com o suporte da agncia binacional: os Clubes Agr-colas Escolares. Com eles visava-se atingir aos filhos de trabalhadores rurais, ensinando-lhes rudimentos de prticas agrcolas, juntamente com os smbolos vinculados valorizao da terra e sua imbricao Nao e nacionalidade. Atravs dos 426 clubes agrcolas registrados no Ministrio em 1958, professoras e crianas realizavam a formao rurcola do homem do campo.47 O movimento atingira tal amplitude que originou algumas Federaes Estaduais de Clubes, 44 Id., ibid., p. 8.45 Id., ibid., p. 9.46 Id., ibid., p. 10, grifos meus.47 As primeiras iniciativas de criao de Clubes Agrcolas datam de perodo bem anterior, sendo acusada a fundao do primeiro deles no ano de 1936, em So Paulo, conquanto a partir de iniciativas individuais espontneas e esparsas. A esse respeito ver Nomia Saraiva de Matos Cruz, Educao Rural, Rio de Janeiro, Edies Rio Branco, 1936.

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    Ensino Agrcola e Influncia Norte-Americana no Brasil (1945-1961)

    como o ilustram palavras da diretora da Federao dos Clubes Agrcolas de Pernambuco

    Os Clubes Agrcolas ajudam a modificar a mentalidade rural. Foi para combatermos essa mentalidade que extinguimos as chamadas escolas rurais, passando o carter do ruralismo a ser dado pela posio da escola no meio em que vai servir. Os clubes funcionam junto das escolas e sua finalidade modificar a mentalidade de pais que consideram o trabalho no campo servil, no o querendo para seus filhos. Cada clube um elo entre a escola e a comunidade rural. Promove a aquisio de bons hbitos sociais e sanitrios, as prticas rurais, a formao moral e cvica atravs das mais suaves e agradveis prticas; a recreao, os pelotes de sade.48

    O papel do ETA na promoo do desenvolvimento rural, sobretudo em seu mbito educativo, que mais de perto nos interessa, tornou-se essencial difuso dos princpios e do aparato institucional inspirados no paradigma norte-americano. Entretanto, em incios dos anos 1960, essa atuao seria questionada pelo governo brasileiro quanto ao desequilbrio existente entre as verbas fornecidas pelos EUA e pelo Brasil. O ento ministro da Agricul-tura, Barros de Carvalho, solicitou reunio com o Secretrio de Agricultura dos Estados Unidos, o embaixador brasileiro Barbosa Lima e o chanceler Horcio Lafer, para rediscutir o reajustamento da participao financeira do ETA nos Programas de cooperao desenvolvidos sob a gide do Ponto IV. Segundo Carvalho, se a dotao estadunidense de cerca de 300 mil dlares fra razovel no primeiro ano da atividade (1954), hoje no se ajusta s mais necessidades da cooperao. Foi igualmente questionada a rigidez na aplicao das normas dos programas tcnicos, cobrando-se dos tcnicos estadunidenses do Escritrio uma maior plasticidade, de modo a responder s peculiaridades da agricultura brasileira.49 O atendimento ao pleito pode ser percebido a par-tir da prorrogao do prprio acordo que institura o ETA como parceiro do Programa para a Agricultura. Informao Agrcola divulgaria, com presteza, a notcia: Foi prorrogado at 31 de dezembro de 1961, o acordo que deu origem 48 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, jun. - jul., 1958, p. 12, grifos meus. Igualmente o governo de Santa Catarina louvaria a proliferao dos Clubes que preparavam os jovens para as lides do campo mediante o ensino das modernas prticas de agricultura. Existem em Santa Catarina funcionando 43 clubes 4-S, com 112 scios. Supervi-sionados por um agrnomo, e um extensionista domstico, estes jovens vm trabalhando ativamente em projetos de criao de galinhas, coelhos, novilhas de raa, sunos e batata-semente. Na economia domstica so ensinados corte e costura, nutrio e melhoramento do lar. Id., ibid., ago-out., 1959, p. 3.49 Informao Agrcola, Rio de Janeiro, Servio de Informao Agrcola, nov. - dez., 1960, p. 2.

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    Sonia Regina de Mendona Artigos

    ao ETA. O documento foi assinado pelo Ministro Fernando Ramos de Alencar e o Embaixador John Morris Cabot .50

    Concluses

    O discurso e as prticas do desenvolvimento instituram-se como operadores centrais das polticas de representao e identidade na maior parte do Terceiro Mundo no Ps-II Guerra Mundial. A Amrica Latina e o Brasil no escaparam desse processo de dimenses mundiais, vivenciando uma sucesso de regimes de representao, acompanhados de boa dose de violncia simblica. Entretanto, o desenvolvimento no deve ser percebido meramente como depositrio de tradies posto que, muitas delas, eram recm-inventadas. Tratava-se de um construto em processo de afirmao, envolvendo uma intrincada rede de agentes e agncias representando inte-resses poltico-econmicos que, muitas vezes, transcendiam o espao agrrio. Somente o crescente aprofundamento das pesquisas sobre os organismos e entidades imbricados a esse processo poder contribuir para a desconstruo deste conceito, ainda em voga.

    O breve estudo encetado sobre as polticas de educao rural derivadas da parceria entre os governos brasileiro e estadunidense visou apenas levantar o vu para a desnaturalizao deste processo, comumente estudado, mor-mente no mbito da histria da Educao, distante da perspectiva histrica totalizadora.

    Ainda que os investimentos estadunidenses destinados poltica de cooperao tcnica com o Brasil possam ter sido tmidos, se comparados queles realizados em outros pases, cremos que a pesquisa evidenciou sua eficcia qualitativa simblica e cultural na consolidao de noes como desenvolvimento ou elevao do nvel de vida das massas enquanto ins-trumentais na construo de alteridades inferiores e carentes, bem como no fomento s importaes brasileiras de tecnologia e saberes oriundos do novo centro hegemnico do capitalismo no ps-guerra. Mediante o fornecimento de um conhecimento especializado, reproduziram-se no pas paradigmas importados que no apenas tenderam a desqualificar os saberes prprios aos trabalhadores rurais, como os tornaram alvos da disciplinarizao pelo capital encarnado, em particular, na atividade Extensionista, origem das futuras Embrater-Embrapa. Disso resultou tanto o fortalecimento de agncias produ-

    50 Id., ibid., p. 13.

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    Ensino Agrcola e Influncia Norte-Americana no Brasil (1945-1961)

    toras de especialistas, quanto um receiturio de procedimentos impostos aos trabalhadores sob a pecha da modernidade.

    As prticas associadas s novas modalidades educativas, disseminadas e financiadas pelo ETA no campo, difundiram um modelo de desenvol-vimento que, atravs de Misses Rurais, Extensionismo, Clubes Agrcolas Escolares e Associaes de Crdito Agrcola Supervisionado, consolidaram o projeto hegemnico estadunidense junto aos grupos agroempresariais brasileiros, beneficirios do deslocamento por ele promovido dos conflitos de classe da cena real para o plano de uma simblica dicotomizao entre produtores arcaicos versus modernos. Nesse sentido, as polticas edu-cacionais rurais, redefinidas a partir dos acordos de cooperao tcnica brasileiro-estadunidenses, no s ressignificaram a prpria noo de Educao Rural, como tambm consolidaram uma modalidade de atuao pedaggica junto ao homem do campo adulto e analfabeto, que os tornou prisioneiros do novo paradigma.