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36 n° 16 - décembre 2002 LATITUDES O Brasil é geralmente conhecido pela sua ale- gria, pela sua música, pelo carnaval, pelo samba, pela bossa-nova e a excelência dos seus compositores e intérpretes, nomes famosos como Tom Jobim e Vinícius de Moraes, João e Astrud Gilberto, Toquinho, Maria Creusa, Baden Powel, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethania, Chico Buarque, Alceu Valença e, mais recentemente, os novos que chegam aos palcos nacionais e internacionais como Lenine, Carlinhos Brown ou Zeca Baleiro. Menos conhecida pelo grande público, sobrevive uma tradição muita viva que é a dos repentistas e cantadores do Nordeste do Brasil. Entre os moder- nos cantadores, são popu- larmente famosos canta- dores como Geraldo Amâncio, Ivanildo Vilanova, Oliveira de Panelas, Bule-Bule, Moacir Laurentino, Louro Branco, Zé Viola, Sebastião Dias, Maria, Severino Feitosa, Valdir Teles, Sebastião de Silva, Pedro Bandeira, Benone Conrado, Nonato Costa e João Paraibano, entre dezenas de outros. São mais de mil cantadores em atividade em todo o Nordeste, o que por si só representa um fenômeno consi- derável de persistência de uma antiga tradição na modernidade. Cantoria é a palavra-síntese para designar vários gêneros da poética popular do Nordeste cantados ao som da viola que têm em comum a herança multissecular dos antigos trovadores ibéricos e provençais. Os cantadores nordestinos são artistas indispensáveis na preservação da tradição cultural, cantando por vilas e cidades do sertão, e também nas modernas metrópoles, acontecimen- tos extraordinários, romances, can- torias e opiniões de saberes e de políticas. Os modernos cantadores do Nordeste do Brasil, do qual Geraldo Amâncio é um típico repre- sente, deitam suas antigas raízes nos cantadores sertanejos do final do século XVIII e de meados do século XIX. Hoje os cantadores são profis- sionais que têm o costume de encontrar-se nos festivais em embates sonoros e desafios na dis- puta de prêmios. Eles improvisam diante o público a partir de motes e modalidades rítmicas que são indi- cados pelo júri. A rapidez, o senso da oportunidade, a inteligência e a destreza na elaboração dos versos são absolutamente surpreendentes. Impressionada com essa tradição tão viva que vem se adaptando tão bem aos modernos meios de comu- nicação de massa, resolvi entrevistar o cantor Geraldo Amâncio e lhe pedi que nos contasse alguns dos seus segredos. A cantoria, que tem uma tradi- ção oral, através dos repentes impro- visados por cantadores do mais diversos estilos, é difundida através de CDs, fitas K-7, fitas de vídeo e também através de um veículo mais tradicional chamado de literatura de cordel - denominação que se deve ao fato dos folhetos ficarem expos- tos, para venda, dependurados em barbantes ou cordéis na feiras livres. A origem do cordel remonta à cha- mada baixa idade média, quando se dava o início da revolução comercial, mas tem suas raízes no encontro das civilizações européias e orientais, principalmente com a conquista árabe da Península ibéri- ca, quando elementos culturais, outrora díspares, se encontraram para gerar um novo paradigma cultural. Resultado de todo esse processo de intercâmbio que envolve cultu- ras de todo o mundo, principalmen- te das culturas íbero-mediterrâneas e do norte da África - a can- toria sertaneja do Nordeste do Brasil é uma manifesta- ção universal que hoje tem servido de fonte de renova- ção para os novos movimen- tos musicais brasileiros, já tendo mesmo alcançado fama internacional. Prova disso está nos Fabulosos Trovadores , uma dupla de cantadores da cidade de Toulouse, capital da Occitânia, na região de Provence, no sul da França, que fazem músicas inspira- das nas cantorias nordesti- nas. A criatura reencontra o criador. Foi em Provence que nasceram e se desenvolveram, no medievo euro- peu, as raízes da poesia dos trova- dores. O trovador, neste período, tinha três funções importantes: arau- to das boas e más novas (guerra, nascimentos, casamentos, mortes), mensageiro de romances entre cava- leiros e as damas, contando lendas e fatos extraordinários. Existem fatos históricos que ligam a Ocitânia ao Nordeste brasi- leiro, passando, é claro pela conquista portuguesa do Brasil e pela nossa herança cultural ibérica. A influência da poesia trovadoresca sobre o lirismo luso é incontestável, como assim pode ser constatado nas Geraldo Amâncio, profissão: repentista Sylvie Debs* Geraldo Amâncio

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36 n° 16 - décembre 2002LLAATTIITTUUDDEESS

O Brasil é geralmenteconhecido pela sua ale-gria, pela sua música,

pelo carnaval, pelo samba, pelabossa-nova e a excelência dos seuscompositores e intérpretes, nomesfamosos como Tom Jobim eVinícius de Moraes, João e AstrudGilberto, Toquinho, Maria Creusa,Baden Powel, Gilberto Gil,Caetano Veloso, Maria Bethania,Chico Buarque, Alceu Valença e,mais recentemente, os novos quechegam aos palcos nacionais einternacionais como Lenine,Carlinhos Brown ou Zeca Baleiro.Menos conhecida pelogrande público, sobreviveuma tradição muita vivaque é a dos repentistas ecantadores do Nordestedo Brasil. Entre os moder-nos cantadores, são popu-larmente famosos canta-dores como GeraldoAmâncio, IvanildoVilanova, Oliveira dePanelas, Bule-Bule, MoacirLaurentino, Louro Branco,Zé Viola, Sebastião Dias,Zé Maria, SeverinoFeitosa, Valdir Teles,Sebastião de Silva, PedroBandeira, Benone Conrado,Nonato Costa e João Paraibano,entre dezenas de outros. São maisde mil cantadores em atividade emtodo o Nordeste, o que por si sórepresenta um fenômeno consi-derável de persistência de umaantiga tradição na modernidade.

Cantoria é a palavra-síntese paradesignar vários gêneros da poéticapopular do Nordeste cantados aosom da viola que têm em comum aherança multissecular dos antigostrovadores ibéricos e provençais. Oscantadores nordestinos são artistasindispensáveis na preservação datradição cultural, cantando por vilase cidades do sertão, e também nasmodernas metrópoles, acontecimen-

tos extraordinários, romances, can-torias e opiniões de saberes e depolíticas. Os modernos cantadoresdo Nordeste do Brasil, do qualGeraldo Amâncio é um típico repre-sente, deitam suas antigas raízes noscantadores sertanejos do final doséculo XVIII e de meados do séculoXIX. Hoje os cantadores são profis-sionais que têm o costume deencontrar-se nos festivais emembates sonoros e desafios na dis-puta de prêmios. Eles improvisamdiante o público a partir de motes emodalidades rítmicas que são indi-cados pelo júri. A rapidez, o senso

da oportunidade, a inteligência e adestreza na elaboração dos versossão absolutamente surpreendentes.Impressionada com essa tradiçãotão viva que vem se adaptando tãobem aos modernos meios de comu-nicação de massa, resolvi entrevistaro cantor Geraldo Amâncio e lhe pedique nos contasse alguns dos seussegredos.

A cantoria, que tem uma tradi-ção oral, através dos repentes impro-visados por cantadores do maisdiversos estilos, é difundida atravésde CDs, fitas K-7, fitas de vídeo etambém através de um veículo maistradicional chamado de literatura decordel - denominação que se deveao fato dos folhetos ficarem expos-

tos, para venda, dependurados embarbantes ou cordéis na feiras livres.A origem do cordel remonta à cha-mada baixa idade média, quandose dava o início da revoluçãocomercial, mas tem suas raízes noencontro das civilizações européiase orientais, principalmente com aconquista árabe da Península ibéri-ca, quando elementos culturais,outrora díspares, se encontraram paragerar um novo paradigma cultural.

Resultado de todo esse processode intercâmbio que envolve cultu-ras de todo o mundo, principalmen-te das culturas íbero-mediterrâneas

e do norte da África - a can-toria sertaneja do Nordestedo Brasil é uma manifesta-ção universal que hoje temservido de fonte de renova-ção para os novos movimen-tos musicais brasileiros, játendo mesmo alcançadofama internacional. Provadisso está nos FabulososTrovadores, uma dupla decantadores da cidade deToulouse, capital daOccitânia, na região deProvence, no sul da França,que fazem músicas inspira-das nas cantorias nordesti-

nas. A criatura reencontra o criador.Foi em Provence que nasceram e sedesenvolveram, no medievo euro-peu, as raízes da poesia dos trova-dores. O trovador, neste período,tinha três funções importantes: arau-to das boas e más novas (guerra,nascimentos, casamentos, mortes),mensageiro de romances entre cava-leiros e as damas, contando lendase fatos extraordinários.

Existem fatos históricos queligam a Ocitânia ao Nordeste brasi-leiro, passando, é claro pelaconquista portuguesa do Brasil epela nossa herança cultural ibérica.A influência da poesia trovadorescasobre o lirismo luso é incontestável,como assim pode ser constatado nas

Geraldo Amâncio, profissão: repentista

Sylvie Debs*

Geraldo Amâncio

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obras dos poetas portugueses doséculo XIV. Dessa leva de poetassurgiu a poesia que Portugal trouxepara o Brasil na época da conquis-ta, em 1500.

Este elo, que une épocas e locaisaparentemente tão distantes, trazconsigo inúmeras possibilidades deintegração cultural e artística. O

contribui com a historia da cantoria.O livro é tido pela crítica como umdos três livros que servem de camin-ho para maior compreensão dahistória da cantoria. Temos tambémum trabalho mais lírico chamadoCantigas que vêm da Terra, que sãoparcerias minhas com o poeta e jor-nalista Wanderley Pereira. E nãotenho outras atividades, vivo exclu-sivamente de cantar.

S. D. — Por que você chama a rádioe a televisão espaços nobres para acantoria?G. A. — Quando eu falo de espaçonobre, é porque a cantoria na praia,cantando versos de louvações paraos turistas, por exemplo, é umaforma humilhante de trabalhar. Ocantador tem uma aparência e oaspecto de pedinte. A cantoria numcasamento, numa festa religiosa,num barraco, não deixa de ser espa-ço nobre. Por exemplo, a cantoriana feira, ela é meio irmã da cantoriada praia. Então ela tem aspecto meiode pedinte. Falo de espaço nobrequando a cantoria tem espaço parase apresentar mais como arte. Nãoé discriminante essa distinção.

S. D. — Voltando ao passado, podeexplicar melhor como o seu avô e oseu tio trabalhavam naquela época?G. A. — Veja bem, meu avô sendocantador amador, era aquele canta-dor que só saia de casa para cantarnuma renovação, numa festa de san-tos, numa novena, num batizado e,principalmente, num casamento. Elefazia essa viagem de cavalo. O meutio, anos depois, começou a cantar,e o meu avó nem quis que ele can-tasse ; porque naquela época acha-

vam que o cantador era uma pes-soa desocupada, uma pessoa quenão tinha o que fazer.

S. D.— Falando de cantador ama-dor, quer dizer que naquela época,as pessoas não poderiam viver como dinheiro que eles poderiam ga-nhar na cantoria ?G. A. : Dificilmente os cantadoresnessa época viviam exclusivamenteda cantoria ; não sei se porque omercado era menor, não sei bem omotivo. Naquela época, os canta-dores habitavam mais na regiãorural. Hoje houve uma inversãodessa ordem, a maioria absoluta doscantadores reside hoje na regiãourbana. A cantoria teve um impulsobem maior no meu tempo, porqueo cantador já tinha programa darádio ; a rádio na época ocupava oespaço que ocupa hoje a televisão,quer dizer, é a mídia já dando umpouco da sua mão aos cantadores.

S. D. — Em relação à sua família,você é o primeiro cantador profissio-nal?G. A. — Sou o terceiro cantador dafamília, mas como cantador profis-sional eu sou o primeiro.

S. D. — Como você, trabalhando naTV e na rádio, consegue organizara sua vida profissional e atender aosconvites de cantorias? G. A. — A minha vida profissional?Eu fiz programas de rádio durantemais de vinte cinco anos, depoisapareceu o espaço na televisão edeixamos a rádio. Esse programa detelevisão que nós temos, somos nósmesmos que produzimos, que apre-sentamos. Nós temos que ir atrás deapoios culturais e patrocínios. Tudo

Sylvie Debs — Geraldo Amâncio, opúblico francês não o conhece...Como a gente poderia apresentá-lo.Geraldo Amâncio — Meu nome éGeraldo Amâncio ; sou repentista há37 anos ; vivo exclusivamente daminha viola e do improviso e, comoa maioria dos cantadores contempo-râneos, eu venho de uma família decantadores. Acho que era mais oumenos cinqüenta por cento de can-tadores, têm o dom da hereditarie-dade... ou o pai, ou o avó, ou umtio, ou alguém da família tinha sidocantador ou era cantador.

S. D. — Você nasceu em Fortaleza ?G. A. — Não, eu nasci no interior,no sítio Malhada de Areia, municí-pio do Cedro, quase fronteira com aParaíba. Acho que por isso vem ainfluência da cantoria porque a can-toria nossa vem daí. Começamos acantar em 1964; meu avó paterno foicantador amador, um tio paterno, aquem devo muito como cantador,também era repentista amador e meincentivou muito. Eu acho que o queele não pode ser lutou para que eufosse. Acho que o sonho dele se rea-lizou em mim. Sou acima de tudomuito feliz, porque hoje ocupamosespaços que antes não eram preen-chidos com a viola ou com a canto-ria. Tivemos sempre acesso ao rádio;acho que temos inclusive o primeiroprograma conhecido de viola na tele-visão, já tem oito anos aqui na TVjangadeiro, nós fazemos o programaaos domingos pela manhã, onde oscantadores têm um espaço que elesnão tinham antes, um espaço nobre,muito nobre para a cantoria. E temostambém um livro, chamado Derepente Cantoria, que é uma espé-cie de antologia, que acho que

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Nordeste do Brasil e, em particular oCeará, é um berço rico e diversifica-do de cantadores e repentistas, quecontinuam na modernidade a tradi-ção dos antigos trovadores da cha-mada idade de ouro da Penínsulaibérica, quando floresciam em paz,sem a chama do ódio e da exclusão,as culturas cristãs, árabes e judáicas.

A entrevista com GeraldoAmâncio demonstra a dinâmica dacantoria nos dias de hoje, mostran-do que, mesmo guardando a tradi-ção, foi capaz de adaptar-se aosmodernos meios de comunicação demassa e se inserir em um contextomercadológico e cultural dos maiscomplexos.

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isso toma muito tempo, mas é umtrabalho superagradável ; eu mesinto acima de tudo um trabalhadorda cantoria. Mais do que cantador,eu sempre digo: sou um trabalhadorda cantoria. Pensando assim, a genteage mais num sentido coletivo, euacho que é bem mais construtivo.

S. D. — Como você conhece os novoscantadores que você vai apresentar?G. A. — Nós somos, é o que indicauma pesquisa de Zé Alves Sobrinho,somos seis ou sete mil cantadoresem todo esse universo do Nordeste(Paraíba, Ceará, Piauí, Rio Grandedo Norte, Maranhão, Pernambuco,Bahia, Sergipe). É uma contagemaproximada. Infelizmente dessesseis ou sete mil só trinta ou quaren-ta cantadores são mais conhecidos,são o que nós chamamos em lin-guagem popular de “cantador deproa”; os que dão bem o recado,que não decepcionam quando seapresentam. Então, é desse universoque nós trazemos para o nosso pro-grama os novos cantadores.

S. D. — Você poderia falar um poucomais sobre a passagem da cantoriatradicional nas feiras e nas festaspara a cantoria na rádio e a tele-visão? E agora pela Internet? Comose faz essa relação com a nova tec-nologia?G. A. — Essa história da cantoria emfeira é interessante. Eu mesmo aindacantei nas feiras, mesmo já havendoa cantoria da rádio. Havia a feira doDomingo no Ouro Branco, uma vilado distrito de Lavras daManguabeira, no Ceará, onde eu vias primeiras cantorias com o canta-dor Chaga Moisés. A gente cantavana região, no Sábado, cantava numadistância de dez, doze kms, já ima-ginando que no Domingo estaría-mos naquela feira. Então a genteencontrava um bar, pedia permissãoao dono e cantava, as pessoasdavam o dinheiro que quisesse.Naquela época já havia programade rádio, porque a rádio foi o gran-de salto para cantoria. A televisãofoi outra bênção; infelizmente, hápoucos espaços na televisão. Pelo

que nós sabemos,existe o nosso progra-ma na TV jangadeiro,existia um outro pro-grama em Caruaru,que terminou. Issosignifica que o canta-dor assim comoacompanha o povo,tem a necessidademuito grande deacompanhar essesalto de desenvolvi-mento e ter acesso àsnovas tecnologias.

S. D. — Voltandomais para história dacantoria; se fala emcantadores, em re-pentistas... Trata-seda mesma coisa ?Quais as diferenças?G. A. — Trata-se damesma coisa: o can-tador, o repentista, ovioleiro, no nossocaso, eles são umamesma pessoa. Vejabem: existe um can-tador que é maisrepentista: quero

dizer que ele improvisa versos maisrápido, mais fácil e é capaz de can-tar o que acontece no momento, eleé capaz de dizer com uma graciosi-dade impressionante. O cantadormesmo trabalha mais a diversidade,o conhecimento, ele sabe de muitascoisas, aplica métodos, não se preo-cupa com o momento, com queacontece. Ele se preocupa com otodo e menos com o momento.Violeiro é o nome que se dá aorepentista e ao cantador que seacompanham tocando uma viola.

S. D. — Então que diferença se fazentre cantador e cordelista?G. A. — O cantador pode escrevereventualmente um cordel, mas exis-tem poetas ditos de bancada queescrevem único e exclusivamentepara o cordel. Há também poeta cor-delista-cantador, assim como existeo cantador-cordelista, assim comoexiste o poeta cordelista que pro-duz o seu trabalho e que cantavanas feiras. Hoje é uma coisa rara,desconheço se existe ainda esse tipode cordelista. Há um fato gratifican-te ; é que se apregoava muito poraí que o cordel estava morrendo porfalta de quem o fizesse e tambémpor falta de leitores. De repente,aparece uma safra nova de jovens,de Klévisson, do Arievaldo, Rinaré ede tantos outros cordelistas; isso ésupergratificante.

S. D. — Como a cantoria chegouaqui no Nordeste?G. A. — Há pesquisas e pesquisas.Alguns acham, e eu também, que acantoria veio através dos lusitanos.No Brasil, nós temos notícias do pri-meiro grande improvisador, o poetaBoca de Inferno, Gregório de MatosGuerra. Agora uma coisa bem próxi-ma de nós, é que a cantoria nasceurealmente na Serra do Teixeira. Ospesquisadores acham que o baião éuma coisa de Luiz Gonzaga, que éuma coisa que antecede e que vemda Bahia, mas é coisa bem do sécu-lo dezenove. Só quero confirmarque o baião é da viola, não é daBahia, não é de Luiz Gonzaga, é daviola mesmo. E ele disse mais deuma vez : “Eu tirei esse baião queeu toco do cantador de viola, devocês”. Eu fiquei surpreso. Então aGeraldo Amâncio e Ariano Suassuna

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nossa cantoria não vem de longe(certo ela tem raízes lusitanas), masela nasceu aqui na Serra de Teixeira,na Paraíba.

S. D. — Como você explica a sobre-vivência dessa tradição aqui noBrasil?G. A. — Explica-se muito bem. Eporque a cantoria, tem o que dizer,pelo menos com muito amor, a can-toria tem história, tem raízes, ela nãoé apenas um modismo. E como sefosse acompanhando a história deuma raça que sofre, que chora. Tudoisso acompanhado como se fosseum ato de fé. A cantoria não morrenunca, ela tem mais de um século,e não é modismo como a “lamba-da”. A cantoria não vai morrernunca, porque os cantadores sãopoetas. Se por acaso, algum dia nãohouvesse nem mais um ouvinte decantoria, a cantoria mesmo assimainda não se acabaria porque oscantadores iriam cantar uns para osoutros.

S. D. — Qual é o público dos canta-dores hoje?G. A. — Já foi um público totalmen-te rural. Hoje já é um público 90 %urbano. Isso se explica muito bem.Por exemplo, no meu caso, eucomecei a cantar em 1964, na época,70 % dos habitantes no Nordesteeram de região rural. Hoje temosuma inversão de ordens: acho quehoje só 30 % residem na zona rural.A viola acompanhou o povo, o povotambém acompanhou a viola comodizemos. Os cantadores todos eramresidentes em fazendas, em sítios.Hoje a maioria mora em cidades demédio porte ou nas capitais. Hoje éum público urbano, talvez até maisexigente, mas esclarecido, que gostade coisas do atual. O cantador dopassado, eu não ponho nem a culpa,podia levar até o nome de subser-viente, de cantar para o coronel, dedefender o coronel, mas tambémera capaz de defender Lampião, eleia por onde botasse. O cantador dehoje é bem mais esclarecido, ele nãoé mais subserviente, ele canta o queacha que deve cantar.S. D. — Como acontece a moderni-dade e a renovação da cantoria?G. A. — Há cantadores que não

admitem que a cantoria seja folclo-re, porque o folclore é uma tradiçãoestática e já a cantoria se renova.Quando eu comecei a cantar há trin-ta e sete anos, havia talvez quinzemodalidades de cantoria: o galope abeira-mar, a sextilha, o martelo, oBrasil-caboclo, etc. Da nossa gera-ção para cá surgiram muitas outrasmodalidades de cantoria novas,muitíssimas... Por exemplo, “O queé que me falta fazer mais, Se o quefiz até hoje ninguém faz ?”,. Essamodalidade foi nós que criamos.Temos cinco ou seis estilos novos ;é a nossa contribuição, mas só comoregistro. A cantoria é viva, se eucomeçasse a cantar hoje, eu canta-ria acompanhado por outros instru-mentos, eu vestiria a cantoria,porque ela é muito nua, a musicali-dade da cantoria é muito pobre.

S. D. — E a temática mudou muito?Você falou que a cantoria acompan-hava a história do povo...G. A. — Veja bem, os cantadoresque me antecederam cantavammuito a mitologia, coisas da Grécia,cantavam muito Carlos Magno, can-tavam o descobrimento do Brasil, ahistória sagrada, José do Egito,Moisés e assim por diante. Os can-tadores de hoje, ouvem falar degenoma, das clonagens, da ciência,do dia a dia, da política. Mudou,acho que radicalmente. Até porquenão é uma mudança só do canta-dor, é do próprio público que exigenovos assuntos: “quero isso, queroaquilo...”. O público não vai maispedir Carlos Magno.

S. D. — Não tem uma sobrevivênciado público mais tradicional?G. A. — O cordel tem essa diferen-ça. O público tradicional do cordelcontinua a ler clássicos como o “OPavão Misterioso” e existe o públiconovo, um público moderno quegosta da história do seu “Lunga”,essa coisa muito bem criada peloKlévisson, pelo Rinaré. O nossopúblico de cantoria é 90 % urbano,5 ou 6 % do público tradicional ficoulá no sertão, no interior.S. D. — Então você tem mais liber-dade para inventar, para criarporque o público mudou?G. A. — Com certeza. Você já teve a

oportunidade a assistir a um festivalde cantadores num teatro?

S. D. — Sim, uma vez em Fortaleza.G. A. — Então, até pelos temas quesão apresentados, não há mais nadado tradicional. Falamos do amor, dapolítica, do dia-a-dia, do carnaval,da praia, da Mulher, da saudade, falado sertão, mas talvez com uma novaroupagem, não é mais só assuntode cangaço. Mudou.

S. D. — Quais são os grandes can-tadores aqui?G. A. — Olhe, pelos que nos ante-cederam, temos umas safras extra-ordinárias aí : os próprios irmãosBatista, o Dimas que foi para nósuma espécie de mestre, ainda otenho hoje, na minha métrica, comoo cantador mais perfeito que ouvi;tinha uma arte professoral, ele eraum filósofo, era um papa, era tudona cantoria. O irmão dele, LourivalBatista, o Pinto do Monteiro, queconsideramos o maior repentista detodos os tempos. Não sei se vocêconhece a história desse homem,foi fantástica. Falo dele no meu livroDe repente cantoria. O RogacianoLeite, Zé Alves Sobrinho, que nãohouve até hoje cinco cantadoresmaiores do que Zé Alves Sobrinho,que viveu muito esquecido lá emCampina Grande e tantos outros. Oscantadores hoje que têm maisconvites, que estão sempre na linhade frente, é Vilanova, Oliveira dePanelas, João Lourenço, Cardosa,Sebastião da Silva, MoacyrLaurentino, Louro Branco. Tem unsnovos aí chamados Nonato Costa,Raimundo Nonato, Edimilson,Ferreira, Antonio Lisboa... Tem umanova geração que está nos suceden-do, porque tem que haver a reno-vação, a própria vida exige isso,senão, todo ciclo termina.

S. D. — Qual é a sua formação? Vocêestudou? Você leu? Como você criouo seu imaginário?G. A. : Veja bem. Eu não tive muitaoportunidade de freqüentar colé-gios, durante a minha vida estudeiapenas dois anos. Então foi ler, pes-quisar, perguntar, ir atrás, tirar dúvi-das, e com isso terminei o segundograu, um espécie de supletivo. Fiz

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até o certificado, mas sempre quealguém me pergunta, digo: olhe sófreqüentei escola dois anos, foi real-mente só isso, aquele escola do sítiodo primeiro livro, do segundo livro.Eu sempre disse que a minha uni-versidade maior foi o dia a dia, foio mundo, a vida me ensinou fantas-ticamente.

S. D. — Se os temas são mais ligadosà atualidade, como você se preparapara os festivais e para os improvi-sos?G. A. — Ler para mim é uma espé-cie de mania, eu leio no mínimo umjornal por dia. Habitualmente sãodois jornais que eu leio. Todo espa-ço afora desse trabalho da cantoria,

eu ocupo lendo, pesquisando, escre-vendo, passando o que eu achointeressante para uma fita de grava-dor. Estamos já elaborando um ter-ceiro livro com poesias de canto-rias. Então o cantador ou se atualiza,ou fica à margem. Ele tem que pes-quisar, trabalhar, aprimorar, apren-der para tocar o barco.

S. D. — Escutando cantoria, ficosempre muito impressionada com arapidez do improviso. Tem uma téc-nica especial para isso?G. A. — A primeira coisa é o dom.A segunda coisa é a prática. O quetambém ajuda muito, para que ocantador produza cada vez mais emelhor, é a reação do público. Se a

recepção é quase nada, a inspiraçãovai acabando. Se eu digo uma coisaboa, vai chegar aquela luz, vem acapacidade da velocidade, doraciocínio rápido. Eu sou totalmentedependente da recepção do públi-co.

S. D. — Você já cantou fora doBrasil?G. A. — Estivemos em Portugal em1994, fomos fazer uma apresenta-ção no Museu de Etnologia. Foi umencontro super agradável; lá encon-tramos repentistas dos Açores, doMinho, uma poetisa do nome MariaCeleste, muito repentista e para sur-presa maior ainda, (as poetisas, ascantadoras nossas daqui nunca tive-ram boa voz, pelo menos desco-nheço, eu diria voz de cantora, vozde Clara Nunes), essa além de serrepentista excelente tinha uma vozbelíssima e deve ter ainda, então foia única vez que tivemos a oportuni-dade de fazer apresentação fora doBrasil, foi uma maravilha. Tenho aimpressão que os melhores momen-tos pelo menos em termos de aplau-sos que nós tivemos nessa vida decantadores de trinta e sete anos foirealmente em Portugal; nós íamosfazer uma apresentação, fizemosoito �

Fortaleza, abril-junho de 2001.

* Université Robert Schuman -Strasbourg

Geraldo Amâncio e Sylvie Debs

L. M. Salles, “O flautista de Hamelin”, 2002