Entrevista Levinas

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  • pp. 585-604Revista Filosfica de Coimbra n.o 42 (2012)

    E. LEvinas J. DErriDa: PEnsamEntos Da aLtEriDaDE ab-soLuta1

    Mrcia Junges E Fernanda Bernardo

    Ce qui vient au monde pour ne rien troubler ne mrite ni gard ni patience

    ren Char

    Mrcia Junges: Como Levinas influencia Derrida em sua filosofia da desconstruo?

    Fernanda Bernardo: Pergunta imensa que pressupe e/ou solicita um trabalho de investigao e de reflexo que, no essencial, est ainda por fazer e se apresenta como uma inadivel e formidvel tarefa para o futuro para o futuro e para o futuro da prpria filosofia onde hoje reina um to pesado silncio

    Mas, em relao a estes dois nomes maiores da contemporaneidade filosfica, eu no falaria de influncia antes de singular herana [no sentido em que Derrida no la d a pensar, em Espectros de marx, (1993) nomeadamente] e de proximidade electiva. Ambos os filsofos falam, alis, do seu encontro filosfico como tendo sido da ordem do prazer de um

    1 Entrevista conduzida por mrcia Junges a Fernanda bernardo para um dossier de-dicado a Emmanuel Levinas pela revista iHu (revista do Instituto Humanitas Unisinos, n 277, ano viii, 14.10.2008) nesse dossier, onde colaboraram tambm J-F matti, L.C. susin, m. Cragnolini, P. Pivatto, r. timm, r. Haddock-Lobo, s. Critchley, m. Pelizzoli e r. bernasconi, foi ento apenas publicada a primeira pergunta-resposta, em razo da sua extenso e com a inteno de editar posteriormente toda a entrevista num dos Cadernos Unisinos. Com a amvel autorizao de mrcia Junges, a quem muito agradecemos, publi-camos agora aqui na ntegra, com ligeiras alteraes, essa entrevista.

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    contacto no corao de um quiasma: um contacto tangencial (passe a manifesta tautologia) entre dois idiomas ou entre duas grandes singularidades filosficas que abre no entanto para um sem nmero de diferenas.

    Antes, porm, de muito, de demasiado sucintamente tentar salientar e a proximidade e os diferendos deste contacto tangencial, no deixarei de referir tambm ainda aqui que o prprio Derrida (em Janicaud, Heidegger en France i, p. 106) elege Heidegger, Levinas e Blanchot como os seus prximos eleitos. Prximos com os quais no cessou nunca de dialogar e prximos (ainda assim, e como ele mesmo o disse, mais outros do que todo e qualquer outro) cuja admirvel grandeza (de pensamento, de obra e de escrita), no meu entender, ele excede, excedendo em ousadia, em radicalidade, em finura, em inventividade e em justia o rastro incandescente dos seus pensamentos.

    O que dizer que, abraando o gesto daqueles prximos eleitos no rduo exerccio da sua fidelidade a mais de um, Derrida nos d de novo e diferentemente a repensar o todo da nossa ocidentalidade filosfico cultural, na mirade das suas manifestaes (religiosas, filosficas, potico literrias, ticas, polticas, jurdicas, ), para alm mesmo da sua memria judaico greco europeia o seu prprio para alm (mas ainda) nela fora dela, como o avesso do seu tecido ou a malha cada do seu tecido , detectando nesse todo o indesvendvel e profticomessinico segredo da diffrance. Um segredo sem segredo um segredo ab soluto. No sem justia e no sem pertinncia, de Derrida se poder igualmente tambm dizer que o seu pensamento, dito desconstruo, abalou a paisagem sem paisagem do pensamento desde que no mundo h pensamento e pensamentos do mundo: o prprio Levinas soube alis reconhecer, j no incio da dcada de 70 quer dizer, quando se contavam ainda pelos dedos de uma s mo as obras editadas de Derrida , que, com ele, com Jacques Derrida tudo era tout autrement (cf. Levinas, nom Propres).

    Dito isto, eu diria que a extra ordinria proximidade (de pensamento) entre Derrida e Levinas se marca precisamente ao nvel da hiperradicalidade ou da extra vagncia do seu pensamento e daquilo que os apelou a pensar e/ou lhes deu a pensar: a saber, o outro, o absolutamente outro (tout autre) tido como o limite, como um verdadeiro limite, um limite absoluto da filosofia na sua tessitura determinantemente ontolgica. Tanto a meta tica levinasiana como a desconstruo derridiana so, de facto, pensamentos da alteridade ab soluta: pensamentos ditados, inspirados, magnetizados e afectados pelo absolutamente outro (o separado ou santo, dir Levinas na tradio do kaddoch hebraico, no importa

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    quem (quiconque), qualquer um/a, dir Derrida, no segredo absoluto que o porta e o salvaguarda como outro).

    Uma hiper radicalidade que ambos os filsofos, notemo lo tambm de passagem, herdam singularmente da fenomenologia husserliana mais precisamente, da pok husserliana. Uma pok (reduo) agora ocupada, j no, como acontecia em Husserl, com o delineamento da reduo fenomenolgico transcendental e com os olhos postos na descoberta da apodicidade do ego constituinte aqum do mundo e aqum do ser; mas uma pok agora exercitada naquilo que Emmanuel Levinas designar de reduo inter subjectiva, a qual, para alm de testemunhar o quanto a singular primazia do outro chega demasiado tarde fenomenologia husserliana assim desvelando o seu registo autonmico ou egolgicoegocrtico , d tambm conta do facto de a sua inevitvel chegada ditar pura e simplesmente a impossibilidade da prpria fenomenologia transcendental (cf. Lyotard e Alliez). Com efeito, o outro, que no por acaso Husserl designar de alter ego, vem perturbar e impossibilitar o exerccio do princpio dos princpios (a intuio) sobre o qual a fenomenologia transcendental se alicera.

    No entanto, esta extra ordinria proximidade de pensamento e quanto ao que os apelou e/ou lhes deu a pensar ser tambm aquilo a partir do qual e em nome do qual Levinas e Derrida se separam. O que dizer que esta singular proximidade de pensamento compreende (e singular proximidade porque uma proximidade na diferena ou na separao, de acordo, alis, com o sentido do filosofema proximidade em ambos os filsofos), da parte de Derrida, e a fidelidade e o diferendo. E a fidelidade e a resistncia. A resistncia e o diferendo na prpria fidelidade e proximidade apesar da proximidade e da fidelidade e em nome da proximidade e da fidelidade. Um diferendo ditado mesmo pela extra ordinria fidelidade, na extra ordinria fidelidade e em nome da extra ordinria fidelidade ao pensamento audacioso do absolutamente outro de Levinas que, no dizer confesso de Derrida, o ter incondicionalmente obrigado (cf. En ce moment mme dans cette ouvrage me voici in Psych). Para vislumbrar e compreender neste diferendo a fidelidade da proximidade de Derrida a Levinas, pense se apenas no que, na sua obra, Levinas diz da Obra a saber, da relao ou do movimento para o outro [a prpria tica ou a justia para Levinas de que Obra um outro nome] que no retorna mais ao eu mesmo e que, enquanto tal, exige uma infidelidade absoluta do outro que, justamente, assim se queda outro, separado ou santo, na terminologia reinventada de Levinas. No seu segredo ab soluto, dir Derrida, porque o outro secreto, justamente, porque outro.

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    A fim de muito sumariamente tentar agora explicitar esta proximidade de pensamento entre Derrida e Levinas, lembremos muito sucintamente que, pensamento da diffrance, da vez, do evento ou da singularidade, Derrida tambm define a desconstruo [nomeadamente em Psych. Invention de lautre (in Psych. inventions de lautre, p. 26 27)], como um pensamento ou como uma certa experincia do impossvel: isto , explicitar Derrida, do outro, do absolutamente outro (tout autre), da inveno ou do porvir.

    E lembrarei tambm ainda que todos os incondicionais ou impossveis da desconstruo derridiana [a saber, o pensamento (que Derrida faz questo de singularmente distinguir de filosofia), o dom, a justia, a traduo, o amor, a amizade, a democracia por vir, a deciso, a resposta, a responsabilidade, o testemunho, a hospitalidade, o perdo, o poema, a morte, a literatura, o sim, )] traduzem e testemunham a hiper radicalidade deste pensamento do impossvel [um pensamento que tem implcito, notemo lo tambm, um repensar da tradio do possvel (dynamis, potentia, possibilitas) de Aristteles a Heidegger, inclusive] e, na radicalidade da sua impossibilidade, encontram as irrespirveis paragens da meta tica levinasiana: dando assim conta do Dever absoluto diante do outro e para com o outro que magnetiza a hiprbole e a aporia do pas au del da desconstruo derridiana. Inversamente, este mesmo registo da incondicionalidade ou da impossibilidade no deixa tambm de salientar o registo hiper tico da prpria desconstruo (um registo marcado pelo recorrente e indecidvel il faut) desde o primeiro passo do seu ousado, insistente e todavia vacilante pas au del, assim atestando a inexistncia de qualquer viragem tica ou poltica no pensamento e na obra de Derrida. Dele se poder dizer (e tambm uma diferena em relao a Levinas!) que o seu pensamento irrompeu logo como que inteiro com efeito, dele no se poder dizer que teve uma evoluo, que se foi precisando no decurso do tempo e da obra, como acontece com o pensamento de Levinas. O que no pode deixar de surpreender Com efeito, no h um primeiro e um segundo Derrida! O Derrida pensador da escrita no diferente do Derrida que ousa confessar a sua f num deus por vir Um deus por vir que conjugaria a justia ab soluta com o direito ab soluto com a fora ab soluta Mas h o Emmanuel Levinas de totalit et infini (1961) e o Levinas de autrement qutre ou au -del de lessence (1974)

    Esta proximidade de pensamento entre Derrida e Levinas testemunhase tambm ainda a dois nveis: por um lado, Derrida confessar se capaz de subscrever tudo quanto Levinas disse a respeito da sua tica: em altrits, (1986), nomeadamente, o filsofo admitir que, diante de um pensamento como o de Levinas nunca tem qualquer objeco.

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    Por outro lado, e do lado da tica levinasiana, Derrida (que definir a desconstruo como um pensamento do impossvel) declarar tambm que ela impossvel que ela s , de facto, possvel como impossvel. Logo como im possvel. E isto, no s para a subtrair ao empirismo e ao hegelianismo como, paradoxalmente, para, na pureza da sua incondicionalidade, ela no cair no risco da violncia do egotismo narcisista, incapaz de discernir o bem do mal, o amor do dio, a hospitalidade incondicional do fechamento egosto nacionalista (cf. Derrida, Le mot daccueil, p. 66).

    Uma declarao de impossibilidade que, em vez de lhe decretar o dobre a finados, salientar antes, para alm da sua hiper radicalidade, o seu carcter irremediavelmente contraditrio ou, antes, aportico carcter que lhe afinar a nfase do seu hiperbolismo e da sua exigncia e a distanciar, no s do gesto hegeliano, como de todo e qualquer moralismo, o qual, como o prprio Levinas sublinhou, tem m reputao. E uma declarao que a distanciar tambm ainda de um levinasianismo fcil e encantatrio na litania da sua pregao do outro: da abertura ao outro, do respeito e da responsabilidade fceis pelo outro Fceis, isto , ideolgicos.

    Notemos tambm que esta proximidade de pensamento se revela mesmo numa inaudita proximidade lexical ou terminolgica: com efeito, na sua comum desconstruo do registo determinantemente ontolgico (ou onto teolgico) da filosofia ocidental, ambos os filsofos recorrem, no decurso dos anos 60, ao quase conceito de trace (rastro). Um recurso que, atestando embora a proximidade de pensamento entre os dois filsofos, atestar j tambm o muito que os separar na sua proximidade (uma proximidade enquanto pensamentos da alteridade e, enquanto tal, de desconstrutores da ontologia que tem sempre um alcance poltico de ndole totalitria): que, em Derrida, trace vai muito para alm do registo ainda antropocntrico que ele no deixa ainda de ter no seio do pensamento de Levinas. Com efeito, na sua desconstruo do prprio do homem e da axiomtica metafsica da filosofia ocidental, trace concerne em Derrida diferencialmente todos os viventes e todas as relaes do vivente ao no vivente e no apenas, como acontece em Levinas, as relaes humanas, somente humanas (o prximo, o semelhante, o irmo, o outro homem, ) no rastro da transcendncia.

    E muito sumariamente referida a proximidade de pensamento entre Derrida e Levinas, salientemos muito sumariamente tambm agora os diferendos que nesta proximidade, apesar dela, se manifestam: diferendos que no deixam de marcar os limites e as insuficincias da tica de

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    Levinas, sem dvida uma das mais ousadas, exigentes e justas da nossa contemporaneidade. Diferendos que no deixaro tambm de revelar que, na loucura da sua hiper radicalidade, a desconstruo derridiana vai ainda mais longe na sua viglia e na sua fome de tica, de justia, de responsabilidade e de desejo de inveno do que a tica levinasiana, a quem marcar inauditos e surpreendentes limites: limites que, pelo essencial, revelaro o carno falogocentrismo do humanismo profundo da tica levinasiana uma tica assumidamente sacrificial.

    Diferendos que, no essencial, provm da resposta dada questo: como bem pensar o outro e quem outro? Quem o absolutamente outro da tica levinasiana? Quem o absolutamente outro que dita e locomove o pensamento destes dois filsofos? Questes que, para alm de sublinharem o carcter ab soluto do outro, pem tambm em cena a difcil questo do terceiro (terstis, testis), outro do outro e outro outro. Questes a que, sabido, Levinas responder: o outro o outro homem. O absolutamente outro o outro homem: a saber, o outro como humano e o humano como homem. Derrida, por sua vez, responder assim, assim respondendo radicalidade do pensamento da alteridade de Levinas, que complexifica, ditando lhe a im possibilidade, isto , o seu irremedivel registo contraditrio : Tout autre est tout autre Absolutamente outro absolutamente (todo e qualquer) outro.

    Tout autre est tout autre , de facto, a pedrada que o prprio Derrida diz ter atirado tica levinasiana a quem, a par da inestimvel grandeza, elevao e dificuldade, lembra a impossibilidade da sua pureza, assim problematizando, em primeiro lugar, o modo como Levinas deseja pensar a transcendncia ou a exterioridade a saber, de todo no contaminada pelo ser ou pela imanncia. O sintagma que lana esta pedrada, para alm de concentrar, em toda a sua amplitude e aporeticidade, a melancolia do idioma derridiano (cf. Derrida, Carneiros Palimage), no deixa tambm de nos lembrar a sua intraduzibilidade uma intraduzibilidade que metaforiza a do idioma ou a da prpria alteridade ou singularidade absolutas , e que ns mal traduzimos por absolutamente outro absolutamente (todo e qualquer) outro, a fim de tentarmos deixar quase ouvir a homonmia que, para alm da tautologia, abre esta frmula ao enunciado da heterologia mais irredutvel, lembrando a sua im possibilidade que o mesmo dizer, lembrando o pensamento do absolutamente outro inevitabilidade da contradio, da contaminao, da aporia ou do perjrio quase transcendental (cf. Le mot daccueil). E, ipso facto, lembrando a tica ou a justia (a justia para alm da justia, precisemos, em razo do duplo sentido da justia que atravessa o pensamento e a obra levinasianos) inevit

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    vel injustia da sua justia. Nunca um justo pacfica e suficientemente justo A tranquilidade da boa conscincia do dever cumprido no est nunca ao seu alcance

    Para alm de tambm significar o bem singular ateologismo da desconstruo derridiana ou (num sintomtico dizer do filsofo que o aproxima do lxico e do pensamento levinasiano desejoso de pensar um Deus sem o ser, isto , transcendente at ausncia) o seu atesmo que se lembra de Deus (um atesmo que, note se, a condio para um muito exigente repensar da f de uma f sem dogma nem religio, de uma f pr dogmtica e adogmatizvel e, ipso facto, para um muito srio repensar, tanto da dita guerra das religies, como do dito dilogo inter religioso), este sintagma Tout autre est tout autre pretende lembrar a Levinas que, na sua unicidade de eleito, o absolutamente outro absolutamente todo e qualquer outro: no importa o qu ou quem (quiconque, nimporte qui, enfatizar Derrida, radicalizando a responsabilidade do pensamento diante de tudo e de todos), e no apenas o outro homem, na sua condio de prximo, de semelhante ou de irmo, em cujo rosto Deus, um Deus transcendente at ausncia nos vem ideia, no consagrado dizer levinasiano. Um lembrar que revela o lugar do diferendo entre Derrida e Levinas. Mas, e insistimos, o lugar do diferendo a partir da proximidade e da fidelidade de Derrida ao pensamento de Levinas. Isto , a partir da sua paixo comum pelo absolutamente outro, que , para ambos, aquilo que apela o pensamento a pensar aquilo que d a pensar.

    Um diferendo introduzido com a difcil questo do terceiro (terstis, testis) [ao mesmo tempo prvio, interruptor e posterior ao face a face meta tico] que se marca e se revela atravs de um sem nmero de diferenas entre os dois filsofos. Diferenas de entre as quais, num modo necessariamente telegrfico, lembrarei aqui as seguintes:

    1 A questo da estratgia e da economia discursivas de Levinas: uma questo que se manifesta nomeadamente na frontalidade da oposio de Levinas ao registo privilegiadamente ontolgico da filosofia ocidental, (ora, lembrar Derrida, j em 1963, em Violence et Mtaphysique, quando nos opomos, damos de antemo razo a Hegel!), e ao modo como o filsofo pensa a exterioridade ou o absoluto de uma alteridade que deseja no contaminada pelo ser modo que ocorre sobretudo nos anos 60 e se manifesta muito especificamente em totalit et infini (1961).

    frontalidade e rectido levinasianas, contrapor Derrida a inevitvel figura do oblquo, do vis, do desvio (na rectido (droiture), apesar da rectido e mesmo em nome da rectido), da destinerrncia do envio, do double bind, da contaminao e da aporia: figuras que salvaguardam

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    a tica levinasiana, como um pensamento da alteridade respeitada, da argumentao hegeliana. E, em parte pelo menos, Levinas parece ter escutado as objeces de Derrida porque, em autrement qutre, dir que o sujeito tico (tal como o filsofo e a filosofia!) obrigado a viver na contradio (mas nunca na contaminao!), na traio e na hipocrisia pelo pouco de justia de que, no mundo, tem a fora de ser capaz.

    2 A questo do humanismo (repensado, certo, mas ainda assim um humanismo) da tica levinasiana: humanismo que Derrida grafar humainisme a fim de nele denunciar a aliana do fonocentrismo e do logocentrismo atravs de um certo privilgio da mo, da mo do homem (humain) de uma certa maneira ainda presente no pensamento levinasiano do contacto e da carcia bem como da relao da mo linguagem e ao pensamento. Lembremos de passagem que, embora crtico do velho humanismo que, no seu entender, no soube estar altura do humano, a tica levinasiana se quer, no dizer de um dos ttulos da obra do filsofo, um Humanismo do Outro Homem (do outro como humano no esquecimento da sua responsabilidade pelo vivente animal e do humano como homem no esquecimento e na secundarizao do feminino, no obstante nos anos 40 tido pela figura sem figura do absolutamente outro e pelo xtase do porvir e, nos anos 60, a ambiguidade de totalit et infini o ter tambm pelo acolhedor por excelncia);

    3 Em estrita conexo com a questo anterior, a questo dita do animal eu descrevo a tica, assume Levinas, ela o humano enquanto humano. Ora, se Levinas inverteu de facto a tendncia ontolgica da filosofia e do sujeito, cuja enigmtica e vulnervel humanidade se plasmar e o plasmar como rosto (visage); se Levinas submeteu de facto o sujeito a uma radical heteronomia dissimtrica; se ele fez do sujeito um sujeito sujeito lei da substituio; e se Levinas diz que o sujeito antes de mais um hspede (em totalit et infini) e um refm do absolutamente outro (em autrement qutre), verdade , porm, que este sujeito tico , antes de mais, um rosto humano e fraterno. Jamais o outro , no pensamento de Levinas, um vivente animal. Que para este filsofo no tem rosto. Jamais o animal , para Levinas, um rosto. Nem mesmo um terceiro!

    Nestes termos, se para Levinas s h responsabilidade diante de um rosto, e se a responsabilidade atesta a incondio do sujeito tico ou humano, temos necessariamente de concluir que a humanidade do sujeito tico no se atesta nem se testemunha tambm na sua responsabilidade diante do animal diante do sofrimento e do mal infligidos ao animal.

    Eis a razo pela qual Derrida o primeiro filsofo que se viu visto pelo animal e que no se limitou apenas a v lo, o filsofo para quem

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    o absolutamente outro absolutamente todo e qualquer outro, no importa quem nem o qu , detectar e mostrar como o falogocentrismo do humanismo levinasiano se agrava num inquietante carnofalogocentrismo, isto , numa indiferena ao sacrifcio do vivente animal em manifesta contradio com o princpio de vida (torat ham) defendido pelo judasmo (No matars , para Levinas, o mandamento dos mmandamentos). Um princpio intangvel que, como Derrida refere, nunca impediu o sacrifcio animal no judasmo Pensemos no carneiro que, no Sacrifcio de Abrao, substituiu Isaac

    O dito animal o animal antes de ns, diante de ns e, em ns, fora de ns (cf. J. Derrida, Lanimal que donc je suis), pois um grande esquecido da tica levinasiana. Um estranho esquecimento da parte de uma tica dissimetricamente heteronmica que, ainda por cima, diz dever assumir incondicionalmente a sua obrigao diante do primeiro vindo ora, no dizer do Gnesis, o animal, no qual Derrida v uma figura da alteridade absoluta mais outra do que a do semelhante, do prximo ou do irmo , ter sido criado e ter chegado ao mundo primeiro do que o homem. Que deveria assim tambm responder responsavelmente diante dele e por ele que, como J. Bentham lembrou, no seu imenso impoder tem no entanto, como o humano, o poder de sofrer (can they suffer?).

    4 A questo do feminino e das diferenas sexuais: no sem deixar de saudar a coragem e o mrito insigne de Levinas por este ter assumido a masculinidade da sua assinatura filosfica coisa que (apesar da ambiguidade que consigna, uma vez que implica um posicionamento na prpria diferena sexual, que assim se v rasurada e/ou economizada) , como muito bem sabemos, rarssima em filosofia! bem como pelo seu empenho na temtica fenomenolgica de eros e do feminino [cf. Levinas, De lExistence lExistant; Le temps et lautre, totalit et infini], Derrida denuncia no pensamento e na obra de Levinas a violncia de uma certa dissimetria falocntrica. Um falocentrismo ou um androcentrismo marcados, por exemplo, no privilgio do Il e da Illit na designao do tout autre; no privilgio do Pai e do Filho na sua aluso filiao (cf. totalit et infini); na sua distino entre rosto feminino (equacionado ao Tu de Buber) e rosto magistral (equacionado ao Vs altura, magistralidade, vulnerabilidade, imperatividade e resistncia ticas) (cf. totalit et infini); numa certa aluso Amada, feminilidade da Amada estranhamente associada, em totalit et infini, infncia, irresponsabilidade, coquetterie e animalidade, Um privilgio que, reatando com a poderosssima tradio abramica, indissocivel do privilgio da fraternidade na tica levinasiana. Um privilgio a ser devidamente repensado, dado o seu liame genealogia familiar e ao sangue.

    Por outro lado, numa extraordinria ateno textura do texto

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    levinasiano, Derrida no deixar de saudar tambm (, alis, o nico a faz lo!) a possibilidade de pensar o feminino em Levinas no sentido de um certo femininismo avant la lettre quer dizer, e como Derrida no lo d a pensar, prvio prpria diferena sexual. Uma leitura que o filsofo nos d em Le mot daccueil a partir da sua leitura do feminino em totalit et infini (D. La demeure) pensado como acolhimento por excelncia, como linguagem silenciosa ou como expresso no segredo. Uma leitura no entanto s compreensvel a partir dos pressupostos do pensamento derridiano da arqui escrita.

    5 A questo do perdo: o perdo em Levinas implica sempre arrependimento e, consequentemente, a sua solicitao. Diferentemente, para Derrida o perdo uma loucura do impossvel modo de dizer que um perdo que merece o nome sem condies (cf. Derrida, Le sicle et le pardon);

    6 A questo do judasmo: Apesar do repensar tico (ou categorial) do judasmo por Levinas (para quem Deus, transcendente at ausncia, vem ideia na relao inter humana, ou seja, para quem a relao a Deus inconcebvel fora da relao tica com os homens), as diferenas entre Derrida e Levinas, a este nvel, so mais do que muitas e passam sobretudo pela sua diferente concepo da importante noo de eleio (cf. Derrida, Abraham, lautre): no sendo nenhum privilgio, mais ou menos folclrico, nem nenhum particularismo rcico ou cultural, mas uma eleio pela responsabilidade e para a responsabilidade infinita e universal, um certo exemplarismo judaico no est de todo ausente do pensamento levinasiano da eleio [nem da potica de Celan!] para quem o judeu , por excelncia, a figura do humano verdadeiramente ou justamente humano. Fragilizando e indeterminando a eleio, Derrida desconstri a ideia de pertena, de comunidade, de propriedade, de identidade una, etc.

    Da que, se certo que, ao repensar eticamente o judasmo, foi desejo de Levinas traduzir na linguagem (grega) da filosofia a mensagem (privilegiadamente judaica) de uma espiritualidade ou de uma humanidade rebelde s formas do saber, Derrida ir ainda mais longe na verdade, lembrando que Jewgreek is greekjew. Extremes meet, ele vai mesmo para alm e do judasmo (no sem ironia, diz se alis o ltimo e/ou o primeiro dos judeus ou um marrano universal) e do helenismo, mostrando como eles prprios, na sua pretensa unidade una, se auto desconstriem e se contaminam, e como todos os pensamentos do mundo (como, no fundo, eles mesmos so) so j sempre uma traduo de traduo do intraduzvel. Provimos de mais de uma tradio para dizer esta duplicidade da origem, como a prpria origem, e na origem, Derrida recorre a dois nomes histricos: khra (a do timeu de Plato) e messinico.

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    7 A questo do messianismo e do poltico: do muito que haveria a dizer sobre estas questes imensas, referirei aqui apenas que Derrida repensa o messianismo levinasiano em termos de messianicidade que o filsofo traduzir em spectres de marx, na sua leitura de Marx, no tempo da nova Internacional por vir: uma internacionalidade que ter a sua novidade, o seu motor e o seu porvir no esprito de justia (pensada como acolhimento incondicional do outro na sua singularidade prvia sua cidadania), o imperecvel esprito do marxismo, tanto para Derrida como para Levinas. Uma messianicidade que, para alm de assumir uma total proximidade a Levinas em questes como as da hospitalidade incondicional ou de visitao, das cidade refgio e do poltico depois! [questes que, por si mesmas, so o grmen para um repensar revolucionrio do poltico, da democracia, da prpria ideia de revoluo e do direito (nacional e internacional)], um abismo o separa de facto da cultura e da praxis poltica do filsofo da tica como prima philosophia. No entanto, apesar destas diferenas, importa notar que ambos os filsofos so sem libis em relao a Israel, fazendo Derrida seu o veredicto de Levinas que diz ter como uma verdadeira lio de poltica, em Israel, na Palestina ou seja l onde for: A pessoa mais santa do que uma terra, mesmo quando uma terra santa, porque diante de uma ofensa feita a uma pessoa, esta terra santa aparece, na sua nudez, como um amontoado de pedras e lenha.

    M.J.: Derrida disse que Levinas abalou a paisagem sem paisagem do pensamento. possvel afirmar que a sua filosofia um divisor de guas no pensamento contemporneo? Porqu?

    F.B.: Sim, sem dvida, e no sem justia. E no apenas no pensamento contemporneo. que, inspirado e magnetizado pelo absolutamente outro [tout autre] para alm do ser ou diferentemente do ser, o pensamento de Levinas no apenas um divisor de guas no seio da contemporaneidade filosfica: mais lata, mais justa e mais precisamente, o seu pensamento um divisor de guas no mbito de toda a ocidentalidade filosfica, cuja violncia sibilinamente denuncia [esse est interesse!, proclama autrement qutre, p. 4] ao denunciar a sua reverncia ontologia, o privilgio que outorga ao teoretismo e a sua concepo do prprio psiquismo em termos de saber.

    Lembro que, para alm de Derrida, tambm Maurice Blanchot (in Connaissance de linconnu em LEntretien infini, Gallimard, Paris, 1969, p. 74, nomeadamente) viu e admirativamente saudou no pensamento

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    levinasiano um novo ponto de partida para a filosofia: o da alteridade ab soluta (isto , separada, noto, e no plena ou total) do outro. Esta extraordinria ateno alteridade ab soluta, isto , nunca apropriada nem dialectizada nem sequer mesmo compreendida, mas justa e efectivamente salva guardada e respeitada no absoluto da sua alteridade, a grande originalidade e o grande legado de Levinas: a viragem meta tica da filosofia tem o seu idioma e a sua assinatura. Com ele, a tica no mais uma disciplina do corpus filosfico, nem to pouco um conjunto de regras norteadoras da aco, mas a filosofia primeira: aquela que pensa o humano enquanto humano. Um humano que, na linha de um certo Plato, est sempre acima do homem.

    Com efeito, excepo feita a algumas fulguraes pontuais [assinaladas pelo prprio Levinas: o Bem para alm do ser (epekeina tes ousias) e o Uno sem o ser da 1 hiptese do Parmnides de Plato, o intelecto agente de Aristteles, a ideia de infinito no finito de Descartes, o primado kantiano da razo prtica, a pok husserliana, o super homem de Nietzsche, ], a filosofia ocidental a filosofia que nos transmitida, no reiterado dizer de Levinas revelou se, desde o Poema de Parmnides at Fundamentalontologie ou ontologia hermenutica de Heidegger, uma filosofia determinantemente alrgica ou indiferente ao outro, que sempre apropriou, reduzindo o ao mesmo, atravs de modalidades diversas da mediao. Modalidades que vo da apropriao compreenso. Substituindo a mediao pela interrupo ininterrupta [separao/substituio marcas da singular arqui originariedade do outro como outro ou secreto e do atesmo ou da religiosidade do sujeito tico], Levinas marcou a filosofia, toda a filosofia com o selo da heteronomia. o seu selo a sua marca. A sua assinatura. E, na sua excepcionalidade, no menos que na ambiguidade da sua irredutvel contradio, uma tal marca um repensar exigentemente inventivo da filosofia no mais tida como amor da sabedoria, mas como sabedoria do amor ao servio do amor pelo outro para com o outro (cf. autrement qutre, p. 207). A metatica levinasiana tem um recorte antropocntrico.

    Por outras palavras, uma tal marca um repensar tico (no sentido de meta tico) dos fundamentos tradicionalmente ontolgicos ou mesmo onto teolgicos da filosofia (da moral, da poltica, da justia, da subjectividade, da racionalidade, ). E a este nvel, e para alm do idioma derridiano ele ainda mais desconhecido, maltratado e rejeitado , Levinas continua ainda a ser para alm tambm de um levinasianismo piedosamente dormente na sua litania gasta, desgastante e agastante do outro , uma voz de excepo no panorama filosfico contemporneo. De excepo e de rara exigncia para um muito urgente repensar do crescente deserto de humanidade e de responsabilidade do nosso hoje em

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    to pobre, insuficiente e arriscada mundializao Vivemos sob cus sombrios e... existem poucos seres humanos., Celan dixit.

    M.J.: Levinas definiu a morte como a pacincia do tempo. Que ele-

    mentos esse autor traz para pensarmos a morte do ponto de vista de quem morre e do ponto de vista de quem fica?

    F.B.: Ainda no eco da sua pergunta anterior, e em jeito e de justificao e de exemplificao da minha resposta, direi, para comear, que, contra o todo da filosofia ocidental, de Plato a Heidegger, inclusive, Levinas vai repensar a morte no mais a partir do ser (ou do no ser) to be or not to be no mais a questo ltima, proclamar reiteradamente o filsofo! , mas a partir da morte e do morrer do outro homem como um limite absoluto ao poder de poder da subjectividade e da racionalidade interessadas ou, na terminologia de totalit et infini, onto auto//eco nmicas, quer dizer, soberanas: o evento misterioso e traumtico da morte no pe apenas em questo o direito a ser, pondo a nu o absurdo e o fim da suposta auto suficincia do Mesmo, do conatus essendi, onde determinantemente o logos ocidental viu a figura ltima do livre e do racional (pense se, a ttulo de exemplo, na morte de Scrates no Fdon (117e 118 a) de Plato! Pense se tambm no zoon logon ekhon (animal racional, animal que tem o PODER do logos) de Aristteles). A experincia (traumtica, isto , sofrida, dissimetricamente sofrida) da morte do outro a nica morte de que se morre! revela o destino ou a incondio de sobrevivente meta eticamente enlutado que , no fundo, a de todo o vivente humano. O que dizer que a experincia da morte (que , no fundo, a experincia do luto!) no s a experincia da prpria alteridade absoluta da morte no h saber! A morte um absoluto ponto de interrogao! como a experincia da individuao, da sujeio ou da identificao meta ticas do eu. que para Levinas, tal como para Derrida, a experincia do luto no ocorre apenas aquando da morte de algum. No. A experincia da morte apenas hiperboliza, pondo a nu, o que comea na mais abissal matinalidade da relao ao outro como outro, isto , como mortal, vivo ou morto, e, ipso facto, na relao do prprio eu a si mesmo como outro. E dizemos ipso facto, porque a experincia do luto (impossvel e infinito) pelo outro pe a nu o luto originrio do prprio eu tico que por isso, vivente que , no passa afinal de um sobrevivente. Este um entendimento possvel da morte tida como pacincia do tempo o entendimento de que viver , para um sujeito criado ou mortal, sobreviver: viver a morrer Para o sujeito criado, como para o literato ou escritor escrever postumar: postu(a)mar:

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    amar o pstumo, isto , o que resta do que no resta mais A escrita uma singular actividade de despossesso des apropriao. Porque, para Levinas, como para Blanchot, como para Derrida, as palavras esto no lugar, e de quem escreve, e do que escrevem

    Com efeito, em Levinas, a morte no revela mais o cuidado preocupado consigo de um Dasein ou de um Sein zum Tode, como acontece em Heidegger: ela revela antes aquilo que o filsofo designa de sujeitopara outrem. Um sujeito deposto da sua pseudo soberania e des interessadamente ex posto e pre ocupado com a vulnerabilidade apelativa do outro, testemunhada na experincia limite da sua morte. No seu intenso e intensamente agnico dilogo com Heidegger o mestre muito admirado mas, em razo da sua proximidade ao nacional socialismo, no amado , Levinas vai, de facto, pensar a morte, subtrada ao horizonte do ser, a partir do morrer e da morte do outro e, portanto, a partir do ponto de vista de quem morre pensado em termos de uma alteridade absoluta: a morte, defender o filsofo, no fim e nada, mas um puro enigma. Um absoluto ponto de interrogao. Ela no , como pretendeu Heidegger, a derradeira possibilidade da impossibilidade, mas a impossibilidade da possibilidade. Quer dizer, o fim do poder de poder do sujeito interessado ou autonmico ou egolgico, numa palavra, pretensamente soberano, e a descoberta da sua arqui passividade enlutada e, portanto, incondicionalmente endividada e obrigada ao outro antes mesmo de ser. E em vez de ser. Luto originrio e substituio (ou hetero auto afeco) andam de mos dadas.

    E tal o sentido, digamos que positivo, do sem sentido da morte. No seu absurdo, a morte no deixa ainda assim de ter uma significao para Levinas. Uma significao que se manifesta justamente do ponto de vista de quem fica, ou seja, que se manifesta do lado do sobrevivente enlutado e para o sobrevivente que, na (hetero )afeco provocada pelo morrer do outro, isto , no seu luto pelo outro, descobre, a par do fardo da sua inexorvel mortalidade, a sua incondio de sobrevivente tica ou arqui originariamente (i.e. antes de ser) enlutado e, ipso facto, de incondicionalmente obrigado ou votado ao outro. Obrigado a carregar, obrigado a bem portar o outro como outro isto , em si (mas) fora de si. Razo pela qual Levinas dir que a experincia da morte descobre a vocao humana do des inter essamento.

    M.J.: a culpabilidade do sobrevivente e sua infinita responsabilidade, alm de fundantes de um respeito pela alteridade, no seriam tambm exigncias grandes demais ao ser humano, para as quais no estamos preparados?

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    F.B.: Em jeito de resposta, permito me perguntar: no o prprio Levinas que, na assumida peugada de um certo Plato, diz que o humano est talvez [sempre] acima do homem? E no tambm ainda Levinas que, em vez de falar da essncia, da natureza, do prprio ou mesmo da condio do humano, fala justamente da sua incondio para nos dar a significar a ineliminvel passividade arqui originria do humano, por isso incondicional, infinita e arqui originariamente obrigado ou responsabilizado (antes mesmo de ser e diferentemente de ser) diante da altura, da vulnerabilidade, da enigmaticidade e da resistncia apelativas do rosto do outro homem que, primeiro vindo, detm a primazia? E no esta a condio, quer para a in finita (isto , infinitamente finita) responsabilidade que deveria definir o eu, quer para evitar o moralismo? O moralismo ideolgico ou filosfico normativo o da boa conscincia do dever cumprido Esta culpabilidade originria (nasce se culpado, isto , acusado, isto , a responder isto , sujeito!) , porm, sem falta.

    E no tambm ainda Levinas o filsofo que confessou nunca ter pretendido descrever a realidade humana tal como ela , mas sim aquilo que a prpria depravao humana, no fundo, no capaz nem de ignorar nem de negar? A saber, aquilo que o filsofo designa de vocao humana para a santidade, isto , para o reconhecimento da singular primazia do absolutamente outro. Aquilo a que o filsofo (in altrit et transcendance), na sua impressionada leitura de Vie et Destin de V. Grossman, h de chamar a pequena bondade: uma bondade no entanto alheia a qualquer sistema, a qualquer normatividade, a qualquer religio, a qualquer tica, a qualquer organizao social e mesmo a qualquer generosidade altrusta. Uma bondade no instituda nem instituvel. Uma bondade que o remorso de toda e qualquer bondade pessoal ou instituda em misericrdias. E portanto o apelo sua perfectibilidade. Uma bondade que no passa afinal daquilo a que, muito significativamente, o filsofo h de chamar a extra vagncia da responsabilidade infinita pelo outro e para o outro como a incondio de um humano, se no finalmente altura, pelo menos a caminho do prprio humano. No, nunca se chegar a Crdova (F. GarciaLorca)

    Observo ainda que, na sua desmesura, a hybris desta responsabilidade do sobrevivente (uma desmesura que corresponde, noto o, hiperradicalidade ou hiperbolicidade deste pensamento da alteridade, traduzindo no fundo o registo meta (ou hiper ) da (meta)tica levinasiana: uma tica meta ontolgica e meta gnosiolgica) absolutamente fundamental a fim de a afastar, tanto de uma melopeia moralizante que imporia valores conscincia e razo (conscincia e razo que, repensadas, tm agora a sua origem na extra vagncia desta generosidade do parao outro), como de uma sabedoria humanista fundada num psiquismo

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    altrusta, generoso e tolerante. semelhana de Derrida, tambm Levinas no se cansar de chamar a nossa ateno para a obscenidade egosta e para a intolerncia da tolerncia!

    Importa me tambm ainda sublinhar que esta questo da culpabilidade, da culpabilidade sem falta do sobrevivente (que, de uma certa maneira, tambm ecoa na Schuldigsein de Heidegger como, no fundo, ecoa em todas as filosofias que pensam o sujeito em termos de relao) no se coloca e no ocorre apenas diante da morte de outrem, isto , no momento da sua morte, mas diante da mortalidade irremediavelmente inscrita no seu rosto (e que o seu rosto, como rosto da alteridade, justamente, exprime (kathauto)): o que dizer que uma tal culpabilidade uma experincia originria e originariamente desconstrutiva do humano tico ou des inter essado, isto , que no se pensa mais em termos autonmicos ou ipsocrticos na linha do distante hypokeimenon aristotlico. Ela revela muito simplesmente a cena da experincia da convocao dissimtrica de um sujeito criado, separado ou ateu (em sentido levinasiano) pelo outro, e que portanto no se pensa mais a partir de si, a partir do seu umbigo, em termos de poder, mas antes de singular impoder.

    Nestes termos, saibamo lo ns, ou no, queiramo lo ns, ou no, pratiquemo lo ns, ou no, esta responsabilidade infinita assedia nos a incondio (incondio, quer dizer, no passvel de ser assumida) do vivente humano do sobrevivente enlutado que , no fundo, todo o vivente humano. Uma incondio que significa tambm que nunca estamos, de facto, nem preparados para ela nem sua altura ela uma disponibilidade permanente, uma exigncia de toda a hora, um desejo infinito, um espinho dolorosamente cravado na alma do justo ou do humano responsvel Modo de dizer que ela uma promessa (sem garantia, para merecer o nome de promessa) e uma exigncia sobre humana para um humano finalmente digno de chamar se humano. Derrida que diz que s se faz mesmo alguma coisa quando se faz o impossvel, de contrrio executa se maquinalmente um programa previamente determinado, e nada de novo ou de diferente (nos) acontece lembra nos que, os degraus da escada desta to exigente elevao solicitada pela tica levinasiana ao humano digno do seu nome, se elevam medida em que ele os sobe Mas verdade que h alguns humanos mais vocacionados para esta responsabilidade do que outros como verdade que a crise dos nossos dias passa pela sua trgica ausncia em todas as instncias

    M.J.: Poderia comentar a duplicidade de sentido do a -Deus ao qual se refere Derrida em seu discurso no falecimento de Levinas?

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    F.B.: Pergunta muito difcil. Para tentar um tal comentrio, como me pede, comearei por escutar o ressoar desta palavra de singular saudao ( Dieu) no prprio idioma de Levinas e de Derrida. Uma palavra que, em si mesma, notemo lo, mais de uma mais de uma, mais de uma lngua alis tambm uma outra das definies da desconstruo (cf. Derrida, mmoires pour Paul de man).

    E lembrarei que, vindo do latino ad, o primeiro elemento da palavra ( ) significa, por um lado, intencionalidade, direco, orientao, sentido, movimento para, abertura a, Dieu escutar se ia assim como a Deus ou para Deus. Como abertura ou movimento para Deus ou em direco a Deus. Por outro lado, o mesmo significa igualmente pertena e dativo: Dieu, neste outro sentido, escutar se ia como de Deus.

    E lembrarei tambm ainda que, em Donner la mort (1999), o prprio Derrida nos lembra que a palavra adeus pode significar pelo menos trs coisas: 1) A saudao ou a bno dada a outrem no momento do encontro; 2) A saudao ou a bno dada a outrem no momento da despedida eventualmente uma despedida para sempre, na hora da morte, por exemplo; 3) O A Deus/Para Deus/De Deus, o de Deus, o para Deus ou o diante de Deus antes de qualquer relao ao outro e em cada relao ao outro em cada adeus, portanto. Lembrarei que Levinas diz que o cu est vazio, mas que a misericrdia de um ser humano por outro est cheiinha de Deus ou seja, que Deus no est no cu, mas no sacrifcio e na responsabilidade dos homens uns pelos outros

    E lembrarei finalmente tambm ainda que Derrida faz questo de nos dizer/ensinar que, to ou mais importante do que aquilo que se diz, o modo como se o diz o que est relacionado com o clebre estilo derridiano, onde muitos, enfeudados a uma concepo ontolgico teortica da filosofia, no conseguem vislumbrar mais do que um simples estetismo ou um gosto excessivo pelas nuances retricas, na melhor das hipteses. Uma irritante tendncia para um desbragado narcisismo, na pior das hipteses. E, naqueles que, sua maneira e sua medida, escutam Derrida, esses so, por norma e por no saber, acusados de mimetismo Acontece que um pensamento da (impossvel necessria) singularidade, como o de Derrida, que se pretende singularmente pr linguajeiro, pr performativo e pr terico, tem necessariamente de cultivar um certo estilo e de dar a ouvir um certo tom: o estilo do endereamento singular (numa situao singular e a uma dada singularidade) e o tom da melancolia [correspondente destinerrncia, interrupo ou ao desvio da rectido do endereamento singular a um/a outro a relao sem relao de Blanchot correspondente prpria relao tica de Levinas , uma vez tal endereamento proferido em voz alta, diante de outros, na lngua de outros

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    (paradigma por excelncia da universalidade/da generalidade/da tercialidade) e para outros tambm, portanto]. O que, observe se tambm, tem como contraponto a distino/imbricao do Dizer e do Dito de Levinas. O que se poder traduzir ainda dizendo que um tal pensamento se vive a cada instante: no um mero saber encerrado num livro ou numa biblioteca a debitar no estilo da mera erudio, mas algo que, a cada instante, se vive e se pratica antes do encadear discursivo ou linguajeiro o que tambm dizer que, antes da dicotomia teoria praxis, um pensamento imediata e singularmente praxstico performativo. Faz j o que diz.

    Eis, para comear, o que no meu entender d a significar a admirvel cena final do tocante adieu de Derrida a Emmanuel Levinas que me pede que comente. E que tambm como no o referir igualmente? a cena do testemunho de admirvel fidelidade de Derrida na sua confessada grata condio de discpulo , diante de Levinas morto: o Mestre amado e admirado (cf. Derrida, adieu, p. 26). O testemunho de um discpulo que testemunha tambm, diante do Mestre que j no o ouve nem lhe responde mais e bem a condio da alteridade! , o quo bem aprendeu o seu ensinamento. Quer dizer, no o lembrando apenas, a um tal ensinamento, mas vivendo o e experienciando o diante do Mestre e para o Mestre. Lembrando e experimentando que a experincia da morte ou do luto atesta, e por excelncia, tanto a cena da tica, da prpria relao tico metafsica ao outro como outro, isto , na sua condio de silenciosa e secreta alteridade, passe a manifesta tautologia, como a cena da incondio tica do vivente humano segundo Levinas a sua incondio de sobrevivente infinitamente enlutado e, portanto, infinitamente obrigado a bem portar o outro em si fora de si. Em si fora de si como no fundo se porta sempre o outro como outro, quer dizer, na sua condio de separado. , alis, esta separao que se d a escutar no adeus de Derrida a Levinas. Um adeus de saudao na separao (na separao de todas as separaes, como a ditada pela morte) que sada o outro/Levinas no absoluto da sua singularidade ou da sua silenciosa enigmaticidade (para alm do ser, portanto, e como uma singular excepo ao ser): como Derrida comea por dizer (cf. p. 11), a quem que nos endereamos num tal momento? Eu sublinho.

    E eis ento, muito sumariamente necessariamente, a insinuao do que diz ser a duplicidade de sentido do a Deus ela configura a cena daquilo a que Levinas chamar atesmo. Uma cena que, por um lado, nos lembra que, para Levinas que muito explicitamente assumiu querer pensar um Deus sem o ser transcendente at ausncia ou at sua possvel confuso com o que designa de il y a , Deus sinnimo de separao absoluta: o filsofo design lo tambm o santo dos

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    santos: o separado dos separados. O absolumente outro que, no raro, Levinas grafa com maiscula.

    Com efeito, haver que lembrar aqui de passagem que o Deus de Levinas no o Deus dos filsofos o Deus da onto teologia. Nem o Deus da teologia, das religies positivas ou da mstica: [] outro diferente de outrem, outro diferentemente, outro de alteridade prvia alteridade de outrem no dizer levinasiano de De Dieu qui vient lide, (p. 115), Deus para Levinas o separado ou o santo que, enquanto tal, nos lembra e nos apela prpria santidade do outro homem que est sempre mais prximo de Deus do que o eu: a saber, ao reconhecimento e da sua primazia e da sua separao. Ao reconhecimento da sua primazia espectral ou enigmtica (e o justo sentido da heteronomia levinasiana: o outro dissimetricamente privilegiado no um outro soberano, mas um enigma ou um rosto).

    E tal tambm o atesmo repensado por Levinas: sinnimo de separao [um conceito fundamental da tica levinasiana], o atesmo significa que a relao sem relao a Deus (e uma relao sem relao porque se trata de uma relao com o ab solutamente ausente ou outro sem mediao) tem lugar, no na crena religiosa, no no eu creio [ou no creio] em Deus, mas sim na tica. Na tica entendida, como Levinas a entende, como relao ao outro, ao absolutamente outro ou rosto no rastro (trace) e como rastro da prpria relao sem relao a Deus. Na tica entendida, em suma, como adeus. Um adeus ao outro como outro, em si (mas) fora de si, que tambm um adeus ao prprio de si prprio. E isto porque um tal adeus tambm separa aquele que diz adeus de si prprio: do prprio de si prprio: uma separao que o abismo onde se abre a sua responsabilidade pelo outro e para o outro no menos que o abismo de onde brota a insondabililidade, to irreprimvel quanto desesperada, de uma outra f (sem dogma nem religio) em Deus ou no outro: num como no outro Em suma, somos trs quando somos dois mas esta tercialidade nada tem que ver com a tercialidade do terceiro (testis, terstis), com a qual surge a questo e, portanto, a justia como direito, a comparao, o clculo, etc. Numa palavra, com a qual surge o aparecer ou a fenomenalidade em geral. Mas um aparecer ou uma fenomenalidade ditada ou inspirada e, portanto, interrompida ou heterogeneizada pelo outro, que o primeiro vindo absoluto. Estoutra tercialidade nica e mais originria designa o rastro de Deus a quem originariamente se responde em toda e qualquer resposta. Levinas tambm a designa, em Autrement qutre, por illeit (eleidade). tambm ele que faz partida do outro um Vs nele que Deus vem ideia. Em suma, o cu est vazio mas vivo na relao de aproximao de singularidade a singularidade

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    M.J.: Que obras de Levinas destacaria como fundamentais para com-preender seu pensamento?

    F.B.: Fundamentais, absolutamente fundamentais, no meu entender, so totalit et infini (M. Nijhoff, 1961), Humanisme de lautre Homme (Fata Morgana, 1972), autrement qutre ou au -del de lessence (M. Nijhoff, 1974) obra onde a maturidade do pensamento de Levinas se expe , e De Dieu qui vient lide (1982).

    M.J.: E qual obra poderia ser indicada como uma introduo s suas ideias, devendo ser lida primeiro?

    F.B.: No sem hesitar, inclinar me ia para thique et infini (1982), para Emmanuel Levinas. Qui tes -vous? (1987) (um dilogo com Franois Poiri sobre o percurso da sua vida, do seu pensamento e da sua obra), para Signature (no dizer do prprio filsofo um inventrio avulso que uma biografia) e, finalmente, para Dieu, la mort et le temps, obra que, porque rene os dois ltimos cursos professados por Levinas na Sorbonne durante o ano acadmico de 1975 76, constitui uma exigente e excelente introduo ao pensamento do filsofo, cuja dificuldade este formato (de cursos) ilumina e dissipa um pouco.