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H U MANIDAD ES MARILUCE MOURA EPISTEMOLOGIA Dilemas da comunicação o campo de estudos amplia debate sobre seu objeto e status científico S er ou não ser ciência parece ser, senão a questão, pelo me- nos uma questão crucial pa- ra o campo de estudos da co- municação no Brasil, hoje. Em torno dela, novos problemas teóri- cos e institucionais estão sendo criados, formam-se grupos de interesse, conso- lidam-se posições divergentes e, se falar em cisão da pequena e aguerrida comu- nidade científica vinculada a esse campo pode soar como hipérbole inadequada, há claramente uma disputa em curso entre os pesquisadores quanto ao status da comunicação, cujo resultado pode ser até uma redefinição de seu espaço dentro das ciências humanas e sociais no país- com todas as conseqüências previsíveis, nesses casos, em termos acadêmicos, po- lítico- institucionais e, é claro, de dispo- nibilidade de verbas para pesquisa. Foi, aliás, uma amostra muito escla- recedora nesse sentido que os pesquisa- dores ofereceram no seminário Episte- mologia da Comunicação, promovido conjuntamente pela Associação Nacio- nal dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), nos dias 7 e 8 de novembro. Ali se posicionaram, de um lado, os que querem conduzir a co- municação a um status estrito de ciência, com seu objeto rigorosamente definido e metodologias de pesquisa explicita- 78 • DEZEMBRO DE 2002 PESQUISA FAPESP 82 das, a ponto de permitir que se confir- mem ou refutem as experiências rea- lizadas - ou até mesmo descobertas anunciadas. No outro, perfilaram-se os estudiosos que preferem manter a co- municação como um campo de estudos aberto, multidisci- plinar , dentro do qual a mídia é o objeto mais aparente a ser trata- do, mas estaria muito longe de ser um tema exclusivo. E que en- tendem, ainda, que a pressa, a ansiedade pelo enquadramen- to da comunicação como ciên- cia strícto sensu, por razões mais institucionais que por outras, atropelam um debate científico fecundo, aliás internacional, que ainda se encontra no estágio da exposição de diferenças, sem a maturidade indispensável ao consenso. Entre um extremo e outro - pôde-se confir- mar também no Seminá- rio de Epistemologia -, há lugar para visões mais sutis, como a de Muniz So- dré, coordenador da pós-gra- duação em comunicação da Universi- dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que propõe tomar a comunicação co- mo uma ciência, sim, não à maneira das exatas ou biológicas, como conhecimen- to exato e universal, "mas no sentido de

EPISTEMOLOGIA Dilemas da comunicação€¦ · Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) obtiveram 4. Enquanto isso, conseguiram 5, a nota mais alta atri-buída à área, programas

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Page 1: EPISTEMOLOGIA Dilemas da comunicação€¦ · Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) obtiveram 4. Enquanto isso, conseguiram 5, a nota mais alta atri-buída à área, programas

HU MANIDAD ES

MARILUCE MOURA

EPISTEMOLOGIA

Dilemasda comunicaçãoo campo de estudos ampliadebate sobre seuobjeto e status científico

Ser ou não ser ciência pareceser, senão a questão, pelo me-nos uma questão crucial pa-ra o campo de estudos da co-municação no Brasil, hoje.

Em torno dela, novos problemas teóri-cos e institucionais estão sendo criados,formam-se grupos de interesse, conso-lidam-se posições divergentes e, se falarem cisão da pequena e aguerrida comu-nidade científica vinculada a esse campopode soar como hipérbole inadequada,há claramente uma disputa em cursoentre os pesquisadores quanto ao statusda comunicação, cujo resultado pode seraté uma redefinição de seu espaço dentrodas ciências humanas e sociais no país-com todas as conseqüências previsíveis,nesses casos, em termos acadêmicos, po-lítico- institucionais e, é claro, de dispo-nibilidade de verbas para pesquisa.

Foi, aliás, uma amostra muito escla-recedora nesse sentido que os pesquisa-dores ofereceram no seminário Episte-mologia da Comunicação, promovidoconjuntamente pela Associação Nacio-nal dos Programas de Pós-Graduaçãoem Comunicação (Compós) e Escola deComunicações e Artes da Universidadede São Paulo (ECA-USP), nos dias 7 e8 de novembro. Ali se posicionaram, deum lado, os que querem conduzir a co-municação a um status estrito de ciência,com seu objeto rigorosamente definidoe metodologias de pesquisa explicita-

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das, a ponto de permitir que se confir-mem ou refutem as experiências rea-lizadas - ou até mesmo descobertasanunciadas. No outro, perfilaram-se osestudiosos que preferem manter a co-municação como um campode estudos aberto, multidisci-plinar , dentro do qual a mídia éo objeto mais aparente a ser trata-do, mas estaria muito longe de serum tema exclusivo. E que en-tendem, ainda, que a pressa, aansiedade pelo enquadramen-to da comunicação como ciên-cia strícto sensu, por razões maisinstitucionais que por outras,atropelam um debate científicofecundo, aliás internacional, queainda se encontra no estágio daexposição de diferenças, sem amaturidade indispensávelao consenso.

Entre um extremo eoutro - pôde-se confir-mar também no Seminá-rio de Epistemologia -,há lugar para visões maissutis, como a de Muniz So-dré, coordenador da pós-gra-duação em comunicação da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),que propõe tomar a comunicação co-mo uma ciência, sim, não à maneira dasexatas ou biológicas, como conhecimen-to exato e universal, "mas no sentido de

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discurso bem estruturado, de línguabem-feita, e capaz de ser assim reco-nhecida pela comunidade, resgatado deKant e dos filósofos sensualistas doséculo 18."

Intelectuais coletivos - As divergên-cias, de qualquer sorte, não se esgotamna versão própria do dilema hamletia-no que os comunicólogos criaram parasi. Elas passam também, como destacaa coordenadora na pós-graduação daECA- USP, Maria Immacolata Lopes,por uma outra indagação crucial, ouseja, qual é, afinal, o objeto dos estudosda comunicação, conformem eles, ounão, uma ciência? A pergunta, que pa-rece rearranjar os grupos de forma dis-tinta da que o fazem as disputas em tor-no do status científico da comunicação,recebe respostas diversas em conteúdoe no tom, que varia de uma visível he-sitação à convicção mais profunda: se-ria a mídia, seria a vinculação social,seriam todas as relações de comunica-ção humana, inclusive as interpessoais,o sentido de atualidade, de presentecontínuo, que os meios de co-municação de massa carre-gam e difundem, etc., etc.

Nesse emaranhado de visõese discursos, o professor OctavioIanni, 76 anos, respeitado decanoda sociologia nacional e hoje vin-culado à pós-graduação em comu-nicação da ECA-USP, sentiu-se à von-tade para reclamar da ausência quesentira no seminário de um persona-gem fundamental àquele debate: ''Ascorporacões e conglomerados da mí-

dia, poderosos e sofisticadíssimos inte-lectuais coletivos': Fez a queixa na mesaredonda especial sobre "o futuro docampo da comunicação", que encerrouo seminário, depois de questionar aplatéia sobre o que realmente se falavaali quando se dizia comunicação, eapós lembrar, didaticamente, que "emsua acepção mais geral, a comunicaçãoé constitutiva e constituinte da socieda-de e todas as relações sociais envolvemou estão envolvidas em comunicação':Estabelecido isso, observou que há for-mas particulares nesse fenômeno uni-versal da comunicação, que ganham re-levância na política, na economia, nacultura, etc. "E há uma forma especial,a da mídia, que diz respeito aos meiose às empresas, às corporações e con-glomerados, que fazem parte intrín-seca do processo de globalização. Ela

envolve intelectuais, artistas e técnicos,compondo um vasto intelectual cole-tivo que forma a consciência social daspessoas."

Na verdade, Immacolata já destaca-ra a preocupação com as práticas damídia que atravessam, "queira-se ounão", o campo da comunicação. "Mas ea teoria?", interrogou ela. Nessa área emque as reflexões continuam se valendobasicamente das atualizações de Ador-no e outros pensadores da Escola deFrankfurt, dos estruturalistas e dos es-tudos culturais, faltam ainda referen-ciais teóricos consistentes produzidosno próprio país. "Não temos no Brasil,ainda, uma crítica séria, acadêmica, damídia, da televisão, da imprensa."

Crise de crescimento - Uma sensaçãopossível para quem observa das bordaso debate em curso da comunicação, de-pois de atravessar um fechado cipoalretórico, é que se está, antes de mais na-da, ante uma crise de crescimento ace-lerado, com seus típicos conflitos deidentidade. Não é gratuita, assim, a fre-qüência com que as palavras legitima-ção e autonomia aparecem nas discus-sões dos pesquisadores da área, comoexpressão clara do desejo de fazer a co-municação transitar da condição decampo menor no âmbito das Humani-dades, abrigado em certa medida sob asasas largas da sociologia, da lingüísticaou da filosofia, para a situação de umrespeitado campo científico autônomo.

Que há crescimento rápido, é in-discutível. É o que se verifica quando

se examinam, por exemplo, nú-meros relativos aos programas

de pós-graduação em comu-nicação existentes no país,registrados na Coordena-

ção de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior

(Capes). Até 1997, eram sete osprogramas com produção dis-

cente em andamento, e já em 1999eles haviam subido para 13, segun-do o volume Teses e Dissertações emComunicação no Brasil (1997-1999):Resumos, organizado por Ida ReginaStumpf e Sérgio Capparelli, ambos

da Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul (UFRGS), e publicado em2001 pelo Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq) com apoio da Capes. Hoje, jásão 18 programas e a criação de alguns

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outros está sendo propostaà Capes.

É claro que em relaçãoàs ciências sociais, com umatradição muito maior e maisconsolidada no panoramacientífico nacional, esse éum número ainda modes-to. A Associação Nacionalde Pós-Graduação e Pes-quisa em Ciências Sociais(Anpocs) registra nada me-nos que 65 programas depós nessa área científica.

Doutores suficientes - Emnúmero de trabalhos, ouseja, dissertações de mes-trado e teses de doutoradoem comunicação, os pesqui-sadores gaúchos já citadosmostram que de 1992 a1996, em cinco anos, por-tanto, foram produzidos 754trabalhos, enquanto nos trêsanos seguintes foram pro-duzidos 835. Em termosmédios verifica-se, assim, a elevação daprodução anual de 151 para 278 traba-lhos, ou seja, um considerável aumentopercentual de pouco mais de 84%. E sepor curiosidade tomarmos a totalidadedas dissertações e teses produzidas de1972 a 1996-1.895 trabalhos, conformetabela publicada na Produção CientíficaBrasileira em Comunicação na Décadade 1980: Análise, Tendências, Perspec-tivas, coordenada por Margarida MariaKrohling Kunsch e Ada de Freitas Ma-neti Dencker, ambas da ECA-USP -,chegamos a uma produção médiaanual de 79 trabalhos para esse longoperíodo, contra os 278 do período de1997 a 1999.

O campo de estudos da comunica-ção no país produziu, assim, desde suasorigens até o ano de 1999, cerca de2.730 trabalhos, dos quais perto de 640teses de doutorado (há algumas impre-cisões na tabela apresentada no traba-lho de Margarida Kunsch e Ada Denckerque impedem que se tome os númeroscom uma certeza absoluta). Em outrostermos, mais de 600 doutores em co-municação foram formados ao longodo tempo de institucionalização dessecampo e, mesmo que boa parte delesesteja fora da área acadêmica, a produ-ção resultante desse processo de forma-ção certamente está longe de ser des-

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Willian Bonner e Fátima Bernardes,apresentadores do Jornal Nacional: a mídia cria,de modo consciente, uma forma de vida virtual

prezível. Parece natural, assim, a batalhaatual por legitimação e espaço dos pes-quisadores de comunicação na comu-nidade científica nacional.

Excelência em discussão - Resta saberse há qualidade crescente na produçãocientífica, correspondente à expansãoquantitativa. Caso se considere' as no-tas mais recentes atribuídas pela Capesaos programas de pós-graduação emcomunicação, as coisas não são muitosimples. O programa da ECA-USP, porexemplo, caiu de 5 para um modesto 3.Registre-se que ele teve início em 1972com o mestra do e, em 1980, implantouo doutorado, que já formou, a essa al-tura, cerca de 400 doutores. O progra-ma tem, no momento, 670 alunos napós e 110 professores doutores em seucorpo docente. Outros programas commuita tradição, como o da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),o da Pontifícia Universidade Cató-lica de São Paulo (PUC-SP) e o daUniversidade Metodista de São Paulo(UMESP) obtiveram 4. Enquanto isso,conseguiram 5, a nota mais alta atri-buída à área, programas bem maisnovos, ou seja, o da Universidade Fe-deral da Bahia (UFBA), o da Universi-dade Federal de Minas Gerais (UFMG),o da Federal Fluminense (UFF), o da

UFRGS e o da Universidade do Vale doRio dos Sinos (Unisinos). Seis e 7, valeregistrar, são notas atribuídas só a pro-gramas com excelência em inserção in-ternacional, o que não é o caso de ne-nhum em comunicação.

A classificação, claro, rendeu pesadapolêmica em torno dos critérios deatribuição das notas, que passam pelaprodutividade dos professores, produ-tividade dos alunos, tempo despendidona formação e proporção de professo-res de referência com regime de dedica-ção integral no programa. Na ECA-USP,por exemplo, que se considerou franca-mente injustiçada, muitos pesquisado-res se viram compelidos a concluir quea instituição estava sendo prejudicadapor seu estoque de professores aposen-tados, de altíssima qualidade, em ativida-de no programa (como Octavio lanni).Evidentemente, eles não têm a mesmaprodutividade, do ponto de vista mera-mente quantitativo, que um jovem dou-tor. "Os aposentados constituem umgrupo de excelência que o programa in-corpora de graça, sem custo algum. Por-tanto, qualquer contribuição deles, uma,duas teses que orientem por vez, algu-mas aulas que ministrem, é lucro. Mas,na atual lógica do sistema, é melhor terapenas cinco jovens doutores do queesses e mais cinco grandes professores

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Universidade local

São Paulo

A Pós-graduação em Comunicação

Fonte: Núcleo de Pesquisa do Mercado de Trabalho em Comunicações e Artes - ECAlUSP

que formalmente já estãoaposentados': reclama, porexemplo, o professor Is-mail Xavier, 55 anos, titu-lar de Teoria e História doCinema e coordenador daárea de concentração decinema do programa daECA-USP.

De certa maneira, essapolêmica que parece bu-rocrática, é apenas umadas faces com que se apre-senta o debate muito maisamplo, que vai até as in-dagações radicais sobre ostatus da comunicação esobre seu objeto. Porquenele, quem lidera a posi-ção em defesa da comuni-cação como ciência strictosensu, geralmente tam-bém se bate por seu en-quadramento rigoroso nasnormas das agências defomento à pesquisa.

"O meu esforço é pelaeliminação da autocom-placência que até poucotempo regia as relações dacomunidade científica naárea de comunicação. Precisamos dequalificação dos docentes, precisamosde consistência das linhas de pesquisa,que têm que ser entendidas como luga-res da formação de especialidades e nãoapenas como nomes de fantasia", dizWilson Gomes, 39 anos, professor titu-lar de Teoria da Comunicação na UFBA.Na função de representante dos progra-mas de pós-graduação da área de infor- .mação e ciências da comunicação e daárea de ciências sociais aplicadas noComitê Técnico-Científico (CTC) daCapes, Gomes insiste que "a área de co-municação precisa trabalhar, precisaresolver a mania de colocar sua produ-ção fora de sua própria área. A socieda-de sabe que é de comunicação de massaque estamos falando e, portanto, quemquer produzir uma tese sobre dança,sobre ergonomia ou sobre comunica-ção interpessoal deve buscar outrosprogramas".

Ele vê na formação da Compós, em1992,um fator fundamental de estímu-lo ao crescimento da área de comunica-ção e acredita que, de fato, ela está seexpandindo rapidamente em volume econsistência. Explica que seu discurso

USP

Natureza Mestr. Dout.Publ.lEst. 1972 1980Publ./Fed. 1973 1983Publ./Fed 1974 2002Priv.lConf. 1978 1981Priv.lConf 1978 1995Publ./Est. 1986 2000Publ./Fed 1990 1995Priv.lConf. 1994 1999Priv./Conf. 1994 1999Publ./Fed 1995 2001Publ./Fed. 1995Publ./Fed 1997Privada 2000Privada 2000Publ./Fed. 2001Privada 2001Publ./Est. 2001Publ./Est. 2002 Bauru

o Programa Multidisci-plinar de Cultura e Socie-dade': relata Albino Ru-bim, 50 anos, diretor daFacom e ex-coordenadordo primeiro programa depós da faculdade. O novoprograma está na Capespara ser aprovado peloComitê Multidisciplinar.

Rubim - que, emboradoutor em sociologia pelaUSP, é um respeitado pes-quisador da área de co-municação, vinculado àFacom-UFBA, onde segraduou, desde os anos70 - assegura que ne-nhum grupo tem interes-se em manter uma atitu-de beligerante e expõe comtranqüilidade suas diver-gências conceituais comGomes. "Pessoalmente nãoacredito que haja ciênciada comunicação, que vejocomo área interdisciplinarda qual se dá conta acio-nando simultaneamentea economia, a sociologia,a antropologia, as teorias

da comunicação." Ele concorda quedentro da área de comunicação não de-ve caber tudo, que deve se proceder umalimpeza "do lixão', como diz Gomes, mas"fechar a área e definir que tudo quenão seja estudo da mídia tem que estarfora é estreitar por demais o campo': emsua avaliação. Ele dá um exemplo práti-co: "Em que área estudar, buscar enten-der um fenômeno como o que acontecena Bahia, de uma música que não foigravada, não estar tocando em qualquermeio de comunicação de massa, de re-pente ser cantada por uma populaçãointeira?" Há, portanto, em seu entendi-mento, outras formas de comunicaçãoque não passam pela mídia e que seriamobjetos legítimos do campo de estudosda comunicação. Rubim destaca, inclu-sive, que o enlace entre comunicação ecultura poderia representar um grandeimpulso para o alcance científico da áreade comunicação. "Tradicionalmente, acultura não tem dono na universidadebrasileira. Esteve ligada às faculdadesde Direito, às ciências sociais e, mais re-centemente à comunicação, e do pontode vista da produção de conhecimentoisso pode ser muito fecundo': diz.

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UFRJ Rio de Janeiro

UnB Brasília

São PauloPUC-SP

Umesp S. B. Campo

Unicamp Campinas

SalvadorUFBA

PUC-RS P.Alegre

S. leopoldo

P. Alegre

Unisinos

UFRGS

UFMG B. Horizonte

UFF Niterói

Cásper Líbero São Paulo

Curitiba

Recife

São Paulo

Tuiuti

UFPE

Unip

UERJ Rio de Janeiro

Unesp

para dentro da comunidade de comu-nicólogos tem sido muito duro, "por-que há defeitos históricos de constitui-ção do campo de comunicação que têmque ser vencidos': Mas na Capes, asse-gura, sua posição é de defesa intransi-gente da virtude do campo, que "nãopode ser liderado por quem não gostade ciência e de suas exigências metodo-lógicas". Sem se aproximar cada vezmais de uma mentalidade propriamen-te científica, completa, o risco da comu-nicação é ser varrida para fora do sis-tema de fomento à pesquisa.

A briga em casa - O toque irônico, cu-rioso, do debate é que ele ganhou umaexpressão muito concreta na UFBA, auniversidade onde Gomes trabalha."Propusemos a criação de um grupomultidisciplinar dentro do programade Comunicação e Culturas Contem-porâneas para pesquisar espetáculoscontemporâneos. O grupo não foi acei-to, por força desse novo entendimentoestreito da comunicação que vem se di-fundindo, e então montamos um novoprograma de pós-graduação vinculadoà Faculdade de Comunicação (Facom),

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A voz de Muniz Sodré, 60 anos, umdos mais respeitados pensadores de co-municação no país, com teorias origi-nais, como a que estabelece que vive-mos hoje num bios, ou numa forma devida midiática, dá novas dimensõespara o debate. "Vejo a ciência da comu-nicação como um discurso reflexivoque deve incorporar o senso do profis-sional da mídia, das elites logotécnicas."Seria assim o discurso de uma práxis,simultaneamente reflexivo e técnico,que teria a ambição da reorientação éti-ca e política da própria mídia e dosusuários da mídia. Muniz lembra queos profissionais da mídia é que criamcontinuamente um universo imaginá-rio e real onde as pessoas vão viver.Lembra que há uma forma de vida vir-tual fabricada continuamente por pes-soas conscientes desse ato. "E é por issoque esse discurso da mídia tem que serreconhecido pela comunidade cientí-fica não como o seu próprio discurso,mas como aquele ao qual ela precisa ir,voltar à academia para construir o dis-curso da ciência, que é reflexivo, e entãoir de novo ao discurso técnico da mídiacom a ambição de reorientação ética",diz. E nisso a comunicação não estaria,em sua visão, agindo diferente deoutras ciências sociais, que histori-camente crescem atendendo a de-mandas.para potenciar determi-nados sujeitos sociais, como oEstado, os sindicatos, etc.

E se mais elementosainda podem ser acres-centados para a discus-são da epistemologiada comunicação, valeobservar que pesqui-sadores de um campotradicionalmente com-preendido na comuni-cação, como o cinema,não pretendem renun-ciar, entre outras coisas, auma dimensão que con-sideram essencial parasuas reflexões: o da esté-tica. "Quem está voltadopara a análise crítica docinema não pode dis-pensar o instrumentaloferecido pela teoria li-terária, pela ' história daarte e pelo teatro. O fenô-meno de massa do cinemaestá fortemente ancorado na

narrativa dramática e as teorias da co-municação não dão conta disso. As teo-rias originárias da escola de Frankfurt,ou dos Cultural Studies, de Birming-ham, matam a estética, um valor quepara nós está no centro de nossas re-flexões", diz Ismail Xavier. Daí porqueele vê problemas à frente com os en-quadramentos a que vêm sendo sub-metidos os programas de pós-gradua-ção em comunicação.

Problemas de identidade - Enquadra-mento que seria desnecessário se a novageração de pesquisadores de comuni-cação não tivesse problemas de identi-dade com o campo em que atuam, navisão do professor José Marques deMello, um dos primeiros pesquisadoresde comunicação do país, professor ti-tular aposentado da ECA-USP e atualcoordenador do programa de pós-gra-duação da Metodista. "Falamos em umahistória da área de comunicação noBrasil e da pós-graduação, a partir de1972, mas para sermos rigorosos é pre-

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ciso lembrar que esse campo começa noinício dos anos 60 com Darcy Ribeiro,na Universidade de Brasília", diz Mar-ques. "Darcy chamou Pompeu de Souza,que ele considerava o mais competentejornalista brasileiro", e o encarregou demontar a área de comunicação da novauniversidade. Baseado no modelo daUniversidade de Stanford, montou-se afaculdade de comunicação, com umaescola de jornalismo, uma escola de ci-nema, uma escola de rádio e TV e umaescola de publicidade e propaganda, tu-do muito relacionado ao universo realda comunicação. No mesmo momentose iniciou uma pós-graduação na UnB,cujos alunos eram os professores dagraduação, contratados em regime de40 horas semanais "E tanto era gentemuito experiente, como Luís Beltrão ePaulo Emílio Salles Gomes, quanto jo-vens talentosos, como Iean Claude Ber-nardet", diz Marques.

A ditadura militar instalada no paísa partir de 1964 desmantelou a expe-riência de Brasília, mas ainda assim ser-viu de base à formação da ECA- USPem 1966, com a organização da gra-duação e de um programa de doutora-do que aproveitava a experiência que

alguns traziam da UnB. "O primeirogrupo de doutores entregou suas te-ses em 1972 e fez as defesas no iní-cio de 1973", diz Marques. Ocorreque a reforma do ensino superiorlevada a efeito no país, entre 1967e 1969, acabou com o doutoradodireto, e a ECA-USP teve que or-ganizar uma pós-graduação sobreas novas bases, com a instalação

do mestrado em 1972. O douto-rado em conformidade com onovo modelo só viria oito anosdepois.

Há assim "o interregno da di-tadura", uma descontinuidadepolítica que perturba desde ocomeço o desdobramento dessecampo novíssimo que era acomunicação e, mais adian-te, um fenômeno de aposen-tadorias precoces na univer-sidade, a partir do final dosanos 80, que também atuacomo um elemento pertur-bador do sistema. Que ago-ra, muitos anos depois, se vêa braços com a exigência deuma profunda reflexão a seu

próprio respeito. •