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Dilma e Márcio Borges se reencontraram em abril de 2010. Segundo ele, a então candidata a presidente disse que o reconheceu pelos olhos Da sua juventude em Minas, a presidente Dilma Rousseff tem muito mais que a militância para guardar na memória. Os amigos, as festas e a escola são também parte daqueles tempos difíceis POL ÍTICA ESTADO DE MINAS D O M I N G O , 2 4 D E J U N H O D E 2 0 1 2 4 Nada foi SANDRA KIEFER Nem tudo era luta e sofrimento nos anos 1960, período em que Dilma mili- tou na esquerda contra a ditadura. Ami- gos guardam momentos da então jo- vem estudante secundarista, com seus 17, 18 anos, com o uniforme do Colégio Estadual Central, na época em que da- va status estudar em escola pública. “A gente era tão amigo que tinha liberda- de de ir um para a casa do outro ‘assal- tar’ a geladeira”, recorda o compositor Márcio Borges, então estudante com 20, 21 anos, e um dos fundadores do Clube da Esquina. A casa de dona Dilma Jane, mãe de Dilminha, ficava na Rua Major Lopes, no Sion. A turma de amigos se encontrava to- dos os dias depois da aula, para conver- sar. E toda semana tinha festinha na ca- sa de alguém. “Eu e Dilma costumáva- mos ser escalados para recolher um pe- daço de peru na casa de um, o resto da maionese do almoço na do outro e as- sim por diante”, revela o músico. Já a be- bida limitava-se a vodka com refrigeran- te de laranja (hi-fi) e cuba libre, bem fra- cos. “Os drinques eram a bebida da ju- ventude da época. Não existia cerveja em lata, só a garrafa, que vinha no casco escuro, preto ou verde”, completa. Ele morava com a família no Edifício Ingleza Levy, no Centro, antes de se mudar para o Santa Tereza, onde mais tarde iria fun- dar o Clube da Esquina com Bituca e os irmãos Lô e Marilton. Com grandes olhos verdes e cabelos enrolados, Marcinho fazia o melhor que podia tentando conquistar Marisa, gran- de amiga de Dilma na época do colégio. Ele conheceu Dilma na pensão da Ode- te, na Rua Curitiba, quase esquina com a Avenida Amazonas, que servia feijoa- da de graça aos sábados e funcionava como aparelho da Organização Revolu- cionária Marxista-Política Operária (Po- lop). “Passei a frequentar reuniões dos militantes políticos e comecei a sacar que havia algo além dos anos dourados e das festas todos os dias. Havia a turma mais politizada da Dilma e uma outra, de músicos, que me foi apresentada pe- lo Bituca (Milton Nascimento). Enquan- to uma turma estava na clandestinida- de, a outra sonhava com os holofotes. Fi- quei dividido”, admite. Segundo revelou no livro Os sonhos não envelhecem, que fará parte do mu- seu Clube da Esquina até 2014 na Praça da Liberdade, Marcinho passou a bater altos papos com Dilma e o namorado, que mais tarde viria a ser seu primeiro marido (e hoje mora na Nicarágua, de- pois de fugir do país no sequestro de um avião), o jornalista Cláudio Galeno. “Ga- leno era muito bom nas cartas: raciocí- nio rápido e destreza no manuseio. Era um dos tais jovens dispostos a pagar com a vida as chamadas causas revolu- cionárias. (…) eu, na hora, não pensei que houvesse gente disposta a arriscar a pró- pria pele naquilo – o que apenas de- monstra o quanto podia me enganar no julgamento das motivações humanas. Além disso, amava minha família (des- confiava demais de tudo aquilo) para en- carar o claustro da clandestinidade. Con- servava intacta minha capacidade de in- dignação e mantinha afiado o senso de justiça, mas era um individualista”, reco- nhece o autor. “Tenho hoje o maior or- gulho de ver uma pessoa da nossa tur- ma na Presidência. Ela teve a coragem que eu não tive e pagou caro por seus ideais”, completa. Em uma tarde de sábado, Márcio, Dil- ma e Bituca tinham ido visitar um cole- ga do Imaco, no Parque Municipal. De re- pente, ele pediu a Bituca para mostrar a Dilma uma música nova, que os dois ha- viam acabado de compor naquela ma- nhã. Ele ajeitou o violão e cantarolou com voz inconfundível: “Hoje foi que eu a perdi/Mas hoje já nem sei./Em Vera me larguei/E deito nesta dor”, revela Márcio, dando uma “palhinha”. Segun- do a explicação do autor, a canção Vera Cruz representava o amor à mulher e ao mesmo tempo à pátria. A letra era escri- ta por meio de metáforas, para escapar da censura da época. “Lembro-me dessa cena com emoção. Nós nos abraçamos e relembramos os momentos felizes vivi- dos juntos”, explica. REENCONTRO Quase 40 anos mais tar- de, o melhor momento da juventude se- ria reprisado pouco antes do início da campanha de Dilma à Presidência. Ha- via muitos anos que eles não se viam. Dilma mandou a secretária ligar para o amigo e convidá-lo para um café na Mi- neiriana. “Fui sozinho. Ela chegou em um vestido azul, bonito e jovial. Foi ba- tendo o olho no ambiente e se dirigiu à minha mesa. Havia anos que não a via. Ela disse que havia me reconhecido pe- los olhos. Depois, durante a conversa, que se prolongou tarde adentro, Dilma comentou sobre o episódio da música inédita. Confessei que me lembrava da melodia, mas não do nome da canção. Ela pediu para eu cantar, uma a uma, to- das as músicas da época. Reconheceu já o primeiro verso de Vera Cruz. “Passa- mos a tarde inteira tomando café e re- lembrando nossas histórias. Depois, ela foi embora no carro chapa-branca. Eu desci a Rua Paraíba a pé, chorando feito um menino e relembrando trechos de nossa linda juventude”, concluiu. como antes JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS - 7/4/10 ARQUIVO PESSOAL Márcio Borges e Mariza, uma amiga dele e de Dilma, passeiam no Centro de BH no final dos anos 60 V Ve er ra a C Cr ru uz z Hoje foi que a perdi, mas onde já nem sei Em Vera me larguei e deito nesta dor Meu corpo sem lugar Ah, quisera esquecer a moça que se foi De nossa Vera Cruz e o pranto que ficou Do norte que sonhei, das coisas do lugar Dos mimos me larguei, correndo sem parar Buscar Vera Cruz nos campos e no mar Mas ela se soltou, no norte se perdeu Se ela em outra mansidão um dia ancorar E ao vento me esquecer Ao vento me amarrei e nele vou partir Atrás de Vera Cruz Ah, quisera encontrar A moça que se foi do lar de Vera Cruz E o pranto que ficou Do norte que perdi das coisas do lugar A letra de Vera Cruz, música de Márcio Borges e Milton Nascimento, que os dois mostraram a Dilma no dia em que a compuseram. Quase 40 anos mais tarde, Borges a cantarolou para a então candidata a presidente

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  • Dilma eMrcio Borges se reencontraram em abril de 2010. Segundo ele, a ento candidata a presidente disse que o reconheceu pelos olhos

    Da sua juventude emMinas, a presidenteDilmaRousseff temmuitomais que amilitncia paraguardar namemria.Osamigos, as festas eaescola so tambmpartedaqueles temposdifceis

    POLTICA

    E S T A D O D E M I N A S D O M I N G O , 2 4 D E J U N H O D E 2 0 1 2

    4

    Nada foi

    SANDRA KIEFER

    Nem tudo era luta e sofrimento nosanos 1960, perodo emque Dilmamili-touna esquerda contra aditadura. Ami-gos guardam momentos da ento jo-vem estudante secundarista, com seus17, 18 anos, comouniformedoColgioEstadual Central, na poca em que da-va status estudar em escola pblica. Agente era to amigo que tinha liberda-de de ir um para a casa do outro assal-tar a geladeira, recorda o compositorMrcioBorges, ento estudante com20,21 anos, e umdos fundadores do Clubeda Esquina. A casa de dona Dilma Jane,me de Dilminha, ficava na Rua MajorLopes, no Sion.

    A turmade amigos se encontrava to-dos os dias depois da aula, para conver-sar. E toda semana tinha festinha na ca-sa de algum. Eu e Dilma costumva-mos ser escalados para recolher umpe-dao de peru na casa de um, o resto damaionese do almoo na do outro e as-simpordiante, revela omsico. J abe-bida limitava-seavodkacomrefrigeran-te de laranja (hi-fi) e cuba libre, bem fra-cos. Os drinques eram a bebida da ju-ventude da poca. No existia cervejaem lata, s a garrafa, que vinhano cascoescuro, preto ou verde, completa. ElemoravacomafamlianoEdifcio InglezaLevy, noCentro, antes de semudar paraoSantaTereza, ondemais tarde iria fun-dar o Clube da Esquina com Bituca e osirmos L eMarilton.

    Com grandes olhos verdes e cabelosenrolados,Marcinho faziaomelhorquepodia tentandoconquistarMarisa, gran-de amiga deDilma na poca do colgio.Ele conheceu Dilma na penso da Ode-te, na Rua Curitiba, quase esquina coma Avenida Amazonas, que servia feijoa-da de graa aos sbados e funcionavacomo aparelho daOrganizao Revolu-

    cionriaMarxista-PolticaOperria (Po-lop). Passei a frequentar reunies dosmilitantes polticos e comecei a sacarque havia algo almdos anos douradosedas festas todososdias.Havia a turmamais politizada da Dilma e uma outra,demsicos, queme foi apresentadape-loBituca (MiltonNascimento). Enquan-to uma turma estava na clandestinida-de, aoutra sonhavacomosholofotes. Fi-quei dividido, admite.

    Segundo revelou no livro Os sonhosno envelhecem, que far parte domu-seu Clube da Esquina at 2014 na Praada Liberdade, Marcinho passou a bateraltos papos com Dilma e o namorado,que mais tarde viria a ser seu primeiromarido (e hoje mora na Nicargua, de-poisde fugirdopasnosequestrodeumavio), o jornalista Cludio Galeno. Ga-leno era muito bom nas cartas: racioc-nio rpido e destreza nomanuseio. Eraum dos tais jovens dispostos a pagarcom a vida as chamadas causas revolu-cionrias. () eu,nahora,nopenseiquehouvessegentedispostaaarriscar apr-pria pele naquilo o que apenas de-monstraoquantopodiameenganarnojulgamento das motivaes humanas.Alm disso, amavaminha famlia (des-confiavademaisde tudoaquilo)paraen-cararoclaustrodaclandestinidade.Con-servava intactaminhacapacidadede in-dignao emantinha afiado o senso dejustia,maseraumindividualista, reco-nhece o autor. Tenho hoje o maior or-gulho de ver uma pessoa da nossa tur-ma na Presidncia. Ela teve a coragemque eu no tive e pagou caro por seusideais, completa.

    Emumatardedesbado,Mrcio,Dil-ma e Bituca tinham ido visitar um cole-gado Imaco,noParqueMunicipal.Dere-pente, ele pediu a Bituca paramostrar aDilmaumamsicanova,queosdoisha-viam acabado de compor naquela ma-

    nh. Ele ajeitou o violo e cantaroloucomvoz inconfundvel: Hoje foiqueeua perdi/Mas hoje j nem sei./Em Verame larguei/E deito nesta dor, revelaMrcio, dando uma palhinha. Segun-do a explicao do autor, a cano VeraCruz representavaoamormulher eaomesmo tempoptria. A letra era escri-ta por meio demetforas, para escaparda censura da poca. Lembro-medessacenacomemoo.Nsnosabraamoserelembramos osmomentos felizes vivi-dos juntos, explica.

    REENCONTRO Quase 40 anos mais tar-de, omelhormomentoda juventude se-ria reprisado pouco antes do incio dacampanha de Dilma Presidncia. Ha-via muitos anos que eles no se viam.Dilmamandou a secretria ligar para oamigo e convid-lo paraumcaf naMi-neiriana. Fui sozinho. Ela chegou emum vestido azul, bonito e jovial. Foi ba-tendo o olho no ambiente e se dirigiu minhamesa. Havia anos que no a via.Ela disse que haviame reconhecido pe-los olhos. Depois, durante a conversa,

    que se prolongou tarde adentro, Dilmacomentou sobre o episdio da msicaindita. Confessei que me lembrava damelodia, mas no do nome da cano.Elapediupara eucantar, umaauma, to-das asmsicas da poca. Reconheceu jo primeiro verso de Vera Cruz. Passa-mos a tarde inteira tomando caf e re-lembrando nossas histrias. Depois, elafoi embora no carro chapa-branca. Eudesci a Rua Paraba a p, chorando feitoummenino e relembrando trechos denossa linda juventude, concluiu.

    como antes

    JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS - 7/4/10

    ARQUIVO PESSOAL

    MrcioBorges eMariza, umaamiga dele ede Dilma,passeiam noCentro de BHno final dosanos 60

    VVeerraaCCrruuzz

    Hoje foi queaperdi,masonde jnemsei

    EmVerame larguei edeitonestador

    Meu corpo sem lugar

    Ah, quisera esquecer amoaque se foi

    DenossaVeraCruz eoprantoque ficou

    Donorte que sonhei, das coisas do lugar

    Dosmimosme larguei, correndo semparar

    BuscarVeraCruznos campos enomar

    Mas ela se soltou, nonorte se perdeu

    Seelaemoutramansidoumdiaancorar

    E ao ventome esquecer

    Aoventomeamarrei e nele voupartir

    AtrsdeVeraCruz

    Ah, quisera encontrar

    Amoaque se foi do lar deVeraCruz

    Eoprantoque ficou

    Donorte queperdi das coisasdo lugar

    A letra de Vera Cruz,msica de Mrcio Borges e Milton

    Nascimento, que os dois mostraram a Dilma no dia em

    que a compuseram. Quase 40 anos mais tarde, Borges

    a cantarolou para a ento candidata a presidente