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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito A LEGITIMIDADE NORMATIVA DOS ORGÃOS AMBIENTAIS ESTADUAIS NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Erik Rodrigues da Silva Belo Horizonte 2011

ERIK DISSERTACAO - A legitimidade Normativa dos Orgaos ... · pensadores como Rosemiro Pereira Leal e Norberto Bobbio, para, por fim a essa abordagem, trabalhamos com a teoria de

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

A LEGITIMIDADE NORMATIVA DOS ORGÃOS AMBIENTAIS

ESTADUAIS NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO

Erik Rodrigues da Silva

Belo Horizonte

2011

Erik Rodrigues da Silva

A LEGITIMIDADE NORMATIVA DOS ORGÃOS AMBIENTAIS

ESTADUAIS NA PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito, nível de Mestrado da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior

Belo Horizonte

2011

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Erik Rodrigues da S586l A legitimidade normativa dos órgãos ambientais estaduais na perspectiva do

Estado democrático de direito. / Erik Rodrigues da Silva. Belo Horizonte, 2011. 138f. Orientador: José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Estado de Direito. 2. Legitimidade. 3. Justiça Ambiental. 4. Direito

Ambiental. I. Baracho Júnior, José Alfredo de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 351.777.6(81)

Erik Rodrigues da Silva

A Legitimidade Normativa dos Órgãos Ambientais Estaduais na Perspectiva do

Estado Democrático de Direito

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito, nível de Mestrado da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

_________________________________________

Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior

________________________________________

Prof. Dr. Mário Lúcio Quintão Soares

_________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Machado Tupinambá

Belo Horizonte, 11/2.011

A Deus que sempre me protege

AGRADECIMENTOS

Agradeço todas as dificuldades que enfrentei; não fosse por

elas, eu não teria saído do lugar. As facilidades nos impedem

de caminhar. Mesmo as críticas nos auxiliam muito.

Chico Xavier

A Universidade Estadual de Montes Claros e em especial aos colegas e amigos

Eduardo Machado Tupinambá, Lúcia Teixeira de Souza, Luiz Alberto Mendes Dias,

Paulo Cezar Mendes Barbosa, Reinaldo Marcos Batista Teixeira e Sebastião José

Vieira Filho.

A minha família pelo incentivo constante e pela incondicional torcida com a qual

sempre contei em todas as etapas da minha vida.

Ao estimado prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, pelas pacientes e

criteriosas reflexões e sugestões efetuadas durante o desenvolvimento deste

trabalho e, sobretudo, pela honra de ter sido seu orientado.

A Puc-Minas e ao seu corpo docente que deu oportunidade de “Mostrar às pessoas

que elas são mais livres do que pensam ser; que elas têm por verdadeiros, por

evidentes, alguns temas que foram fabricados num momento particular da História, e

que esta evidência pode ser criticada e destruída. Mudar alguma coisa no espírito

das pessoas, é este o papel do intelectual” (Michel Foucault).

RESUMO

No Estado Democrático de Direito, a norma somente é legitima quando há a

coexistência de um discurso racional promovido pela soberania popular. Nessas

condições, os destinatários das decisões poderão ser também co-autores e a força

do direito poderá não estar na coação do Estado, mas na participação dos

destinatários na criação, aplicação e fiscalização dos provimentos estatais. A

complexa instrumentalização legislativa do Direito Penal do meio ambiente

recomenda um entrosamento entre complementos legislativos e/ou disposições

administrativas de outras esferas estatais, exigindo o exercício de verdadeiras

fusões interpretativas de diversos enunciados. Com as fusões das normas

administrativas e penal incriminadora se têm uma única norma apta à aplicação, pois

pronta e acaba, repelido o caráter incompleto tipicamente da norma penal em

branco, descrita no artigo 46 da lei de crimes ambientais. Tendo em vista seu

escopo incriminador, deve, portanto, respeito aos primados do Princípio da

Legalidade, especial quanto a impessoalidade e generalidade.

Palavras Chave: Legitimidade Normativa. Órgãos Ambientais.

ABSTRACT

In Democratic State of Law, the rule is only legitimate when there is coexistence

between the rational discourse, promoted by popular sovereignty. In this conditions,

the recipients of the decisions are able to be coauthors as well, and force of law

could not be in the State enforcement, but in the participation of recipients in the

creation, implementation and monitoring State appointments. The complex legislate

instrumentation of Environmental Criminal Law recommends an integration of the

legislative complement and/or other State administrative arrangements sectors,

demanding true interpretative fusions of many statements. With the fusion of

administrative and criminal law, there is only one rule capable to be applied, because

it is ready and finished, repelling the typical incomplete feature of “white criminal

rule”, described in 46° article of environmental cr iminal law. Due to this incriminating

scope, there must be, respect to the primacy of the Legality Principle, especially

regarding to impersonality and generality, putting away the normative legitimacy of

the state environmental agencies.

Key Words: Normative Legitimacy. Environmental Bodies.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................8

2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E ESTADO DE DIREITO ......................13

3 PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA ..... .....................39

3.1 Construções da soberania popular no Direito Con stitucional......................39

3.2 Entre facticidade e validade racional essencial ao direito ............................51

3.3 O direito como integridade..................... ..........................................................59

4 O ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL E O SISTEMA NORMATI VO BRASILEIRO

..................................................................................................................................68

4.1. Estado de Direito Ambiental................... .........................................................68

4.2 Competência concorrente na esfera ambiental.... ..........................................76

4.3 Competência normativa dos órgãos ambientais.... ........................................93

4.4 Banalização normativa do crime ambiental atravé s das portarias emanadas

pelos órgãos ambientais. ........................... ..........................................................108

4.5 A relação da ilicitude penal e administrativa n o âmbito do Direito Ambiental

................................................................................................................................123

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................. ....................................................130

REFERÊNCIAS.......................................................................................................133

8

1 INTRODUÇÃO

O desiderato da presente dissertação destina-se à pesquisa da

compatibilidade e da coerência da portaria 17/09 do Instituto Estadual de Floresta do

Estado de Minas Gerais, quanto norma complementadora do artigo 46 da lei dos

crimes ambientais (lei n.º 9.605/98), com os princípios orientadores do Estado

Democrático de Direito, valendo-se do pensamento lógico e racional do ponto de

vista da efetividade e da positivação constitucional dos direitos fundamentais e idéias

democráticas oriundas de lutas e conquistas históricas.

É importante dizer que o trabalho busca nesses elementos verificar o sentido

da norma, analisando a sua estrutura, sua colocação no ordenamento jurídico, bem

como seu raio de atuação quanto à impessoalidade e generalidade, desdobramento

do Princípio da legalidade. E a partir desses caminhos, possa-se refletir e

desenvolver um alinhamento possível das garantias fundamentais, especialmente

voltadas para o Direito Penal com “uma nova forma de desenvolvimento econômico

e social, que tenha como referência a racionalização dos processos de utilização

dos recursos naturais” (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 13).

Ancorado em uma perspectiva interdisciplinar, o foco central é marcado,

portanto, por caracteriza-se em valorizar o ordenamento jurídico como um grande

sistema, ou seja, um todo unitário e não apenas uma análise isolada, tendo somente

um significado coerente se levado em conta toda a estrutura jurídica.

Aplicando-se esse método lógico-sistemático – fundamentalmente dogmático

-, sem, contudo, deixar totalmente de lado seus aspectos políticos-criminais em

defesa do meio ambiente, vem a presente dissertação tentar promover a abordagem

da temática ambiental, como o desafio de buscar uma visão multidimensional,

abrangente e com o fecundo diálogo entre os diversos campos do conhecimento

científico para equacionar o princípio da legalidade em sentido amplo e o

poder/dever do Estado em assegurar para esta e as futuras gerações a defesa e a

conservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado por tratar-se de bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida ao povo brasileiro.

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Tal proposta científica nasceu do labor na Advocacia na defesa de pessoas

envolvidas na atividade de transporte de sub-produto florestal para abastecer os

fornos siderúrgicos.

Dessa captação sensitiva, acumulada pelo dia a dia no trato com a questão

criminal-ambiental, aliadas ao conhecimento técnico do Direito, percebe-se que a

norma incriminadora quanto incompetente de efeitos gerais e impessoais não

consagra os direitos fundamentais, bem como traz sérios embaraços para os

destinatários da norma.

Nesta empreitada, o segundo capítulo vai tratar das nuanças do Estado

Democrático de Direito.

Nas sociedades democráticas, o princípio da democracia tem função

preponderante, na medida em que impõe aos destinatários a necessidade de sua

participação na elaboração das normas com a adoção indissociável de um discurso

racional, não podemos perder de vista que o objetivo da democracia é o de construir

substancialmente uma norma que seja adequada a legitimar o Direito em sociedades

abertas e complexas, eis que, não basta a validade da norma; imperioso se

apresenta que a mesma possa ser legitimada pelos seus criadores e destinatários (o

povo), convencidos racionalmente de questões práticas a serem arquitetadas

através do discurso, do qual depende a legitimidade das leis.

Na construção dessa compreensão do Estado Democrático de Direito,

remete-se-a inicialmente à Grécia e sua concepção primeira de Democracia,

questionada e amadurecidamente repensada por autores como Karl Popper, Paulo

Bonavides, passando por clássicos como Platão e Rousseau. Cronologicamente

desenvolveremos o conceito de Estado de Direito, passando o Estado a uma nova

visão, indubitavelmente mais racionalista. John Locke, precursor do Estado Liberal,

apresenta as principais vertentes dessa nova perspectiva de Estado. Aqui, ademais,

apoiando-se nas ideias de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, José Afonso da

Silva, Mário Lúcio Quintão Soares e Ronaldo Bretas de Carvalho Dias. Ainda no

primeiro capítulo, abordamos o Estado Democrático de Direito na visão de

pensadores como Rosemiro Pereira Leal e Norberto Bobbio, para, por fim a essa

abordagem, trabalhamos com a teoria de Jürgen Habermas, que capta de maneira

extremamente lúcida e inovadora todo o estudo do Estado Democrático de Direito na

sua Teoria do Discurso, condensando as demais teorias e assimilando a elas novos

elementos, ora criticando-as, ora reanalisando-as.

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No segundo capítulo, inicia-se tratando da imprescindível participação popular

na construção da norma, quando exercida concretamente tem o condão de legitimar.

A participação popular é um importante instrumento para o aprofundamento

da democracia. Como o Estado brasileiro é caracterizado por ser um Estado

Democrático de Direito, é indubitável que haja a efetiva participação popular para

que se dê legitimidade às suas normas. Essa parceira estabelecida entre Estado e

sociedade civil, para que, juntos, possam atingir o objetivo desejado por todos, que é

a melhoria das condições de vida de toda a população.

Para Habemas “somente são validas as normas de ação que possam

merecer a aceitação de todos os possíveis implicados como participantes nos

discursos racionais” (1992, p. 138). Portanto, a vontade geral é a única fonte da lei,

que não traduz interesses particulares.

Baracho Júnior na sua obra Responsabilidade Civil por Dano ao Meio

Ambiente cita Léon Duguit e “afirma que se a soberania existe como um direito

subjetivo, ela é um direito originário, não concedido por um poder superior, visto que

não existe poder superior ao poder soberano” (1999, p. 66).

Já no tópico subseqüente do segundo capítulo, cuida da facticidade e

validade da norma, onde Habermas, “desenvolve a ideia fundamental de sua teoria

da ordem política constituída como Estado de Direito” (RAINER FORST, 2009, p.

179).

O autor do livro Direito e Democracia entre facticidade e validade teoriza

sobre o modo como o direito é percebido pelos sujeitos, enquanto fato e como

norma, podendo ser descrito como sistema social de normas consideradas como

restrições fáticas de sua arbitrariedade, mas pode ser descrito como sistema de

normas que reivindica uma legitimidade normativa, associada ao consentimento.

Baracho Júnior se referido a Habermas afirma que:

a possibilidade de consenso como base da argumentação jurídica. A argumentação voltada para o consenso, entretanto, não importa em eliminação da coerção no discurso jurídico. Ao contrário, consenso e coerção constituem-se reciprocamente no discurso jurídico, expressando a tensão entre faticidade e validade (HABERMAS, 1999, p. 129).

O terceiro capítulo é finalizado pela integridade do Direito, para Dworkin, a

interpretação do Direito se dá pela reconstrução deste a partir das próprias práticas

da sociedade personificadas.

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Para Baracho Júnior:

A integridade é dividida por Dworkin em integridade na legislação e integridade na aplicação. No primeiro caso, aqueles que criam a lei devem mantê-la coerente com seus princípios; no segundo, requer-se que aqueles responsáveis por decidir o sentido da lei busquem coerência com a integridade (BARACHO JÚNIOR, 1999, p. 121).

Dworkin (2003)busca na sua teoria os ideais da estrutura imparcial da política,

uma justa distribuição de recursos e conveniência e um processo equitativo de fazer

valer as regras e os regulamentos que os estabelecem. Agrupados a estes ideais

Dworkin intitula-os como integridade.

No terceiro e último capítulo inicia-se com o Estado de Direito ambiental e o

sistema normativo brasileiro, onde apresenta as profundas transformações da

legislação ambiental na Constituição, despertando a consciência ambientalista para

com o Direito Ambiental e sua importância para a humanidade.

A seguir, trata-se da competência concorrente na esfera ambiental, tema

bastante complexo. A atual Constituição estabeleceu área comum de atual paralela,

promovendo o equilíbrio federativo por meio de uma repartição de competências que

se fundamenta na técnica da enumeração dos Poderes da União, com poderes

remanescentes para os Estados e poderes definidos indicativamente para os

Municípios.

Na sequência, aborda-se a competência normativa dos órgãos ambientais. A

Carta Magna estabelece competências administrativas comuns a todos os entes

federados, em seu artigo 23; e competências legislativas concorrentes à União, aos

Estados e ao Distrito Federal (art. 24, CF/88), de modo geral, dispuseram

amplamente sobre a tutela do meio ambiente, utilizando a competência que a

Constituição Federal reconheceu aos Estados nessa matéria. Desta feira, a

abordagem dessa competência tem como escopo fundamentar a ideia central da

pesquisa.

Posteriormente, apresenta-se, a banalização normativa do crime ambiental

através das Portarias emanadas pelos órgãos ambientais, emergindo o ponto

nefrálgico da proposta cientifica, onde se apura os limites da legitimidade normativa

dos órgãos estaduais ambientais, quanto à esfera do Direito Penal Ambiental e sua

ofensa ao Princípio Legalidade.

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Restou, selecionado apenas o artigo 46 da lei dos crimes ambientais (lei n.

9.605 de 12 de fevereiro de 1.998, para desenvolver a proposta cientifica, apesar de

vários dispositivos da lei dos crimes ambientais enquadrarem exatamente na mesma

hipótese, ou seja, norma penal em branco, pendente de complementação.

Por último, demonstra-se, a relação do ilícito penal com o administrativo e

suas identidades, quanto o Direito Ambiental.

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2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E ESTADO DE DIREITO

Um estudo que pretenda analisar as vertentes do Direito Público não pode

furtar-se de adentrar em determinados temas que, devido à complexidade e mesmo

à dificuldade de delimitação, são constantemente distorcidos. Democracia, Estado

de Direito e Estado Democrático de Direito , por exemplo, permeiam qualquer

narrativa que almeje tratar de legalidade e legitimidade, mas muitas vezes esses

vocábulos vêm revestidos de definições dogmáticas, desconsiderando-se a carga

polifônica1 que carregam, e, por isso mesmo, que os permite estar em constante

construção, já que “manifestam” variadas vozes.

Uma breve digressão histórica acerca da delimitação e conceituação dos

termos em epígrafe dá-nos uma noção das alterações ao longo dos tempos,

forçando-os a adaptações, já que as novas realidades, até então não concebidas,

não eram mais abarcadas pelas consagradas expressões. Não se pretende, no

entanto, desconstruir ou mesmo fazer juízo de valor sobre a validade ou não dessas

conceituações, já que, como dito, refletem a consciência de um povo em dado

momento.

A palavra Democracia surgiu em Atenas, na Grécia Antiga de Péricles, e foi

utilizada pela primeira vez por Heródoto, por volta do século V a.C.. Significa,

literalmente, “poder do povo”, mas sempre foi entendida como “poder exercido pelo

povo”. Para Azambuja, “é exatamente aí que começam as distinções necessárias e

as dificuldades inevitáveis, que concorrem desde logo para distanciar o conceito do

fato distanciado” (1990, p. 216), já que mesmo na cidade grega o poder nunca foi

exercido direta e exclusivamente pelo povo, com total identificação entre

governantes e governados. Mesmo assim, foi até hoje a experiência mais próxima

de Democracia direta, porém não pura e estritamente direta.

Mesmo em Atenas o poder de decisão não era irrestrito, já que havia alguns

requisitos: somente aos cidadãos (homens adultos e livres) cabia o poder de

1 O termo “polifonia”, aplicado na música e posteriormente utilizado pelo filósofo e lingüista russo Mikhail Bakhtin, é empregado no presente trabalho para retratar o arcabouço de conteúdo semântico que erradia do termo Democracia, já que este reflete uma conjugação de discursos, condensados em uma única expressão. Em sua gênese, toda palavra é neutra, isenta de carga discursiva, mas adquire expressividade no interior do discurso, materializando-se no enunciado, que por sua vez ecoa outros enunciados.

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deliberação. A esmagadora parcela social composta de homens, escravos era

alijada das resoluções ali em debate. Mesmo as leis a serem apreciadas eram,

anteriormente, elaboradas por um grupo definido de juristas. “O governo do povo,

para o povo”, como comumente é retratado, sofre, portanto, algumas limitações, que

nos levam a repensar a democracia direta na acepção completa do termo.

Para Bonavides, as bases da democracia grega estavam assentadas sobre a

isonomia, a isotimia e a isogoria. Pela isonomia, garantia-se “a igualdade de todos

perante a lei, sem distinção de grau, classe ou riqueza” (BONAVIDES apud NITTI,

2000, p. 270). A ordem jurídica conferia a todos o mesmo tratamento, conferindo-

lhes direitos iguais, punindo-os sem foro privilegiado.

Já a isotimia,

abolia a organização democrática da Grécia os títulos ou funções hereditárias, abrindo a todos os cidadãos o livre acesso aos exercícios das funções públicas, sem mais distinção ou requisito que o merecimento, a honradez e a confiança depositada no administrador pelo cidadão”. (BONAVIDES apud NITTI, 2000, p. 271)

A isogaria, por sua vez, “trata-se do direito de palavra, da igualdade

reconhecida a todos de falar nas assembléias populares” (BONAVIDES apud NITTI,

2000, p. 271). A democracia antiga, como comumente é chamada, foi, aos poucos,

sucumbindo. Um governo que deveria ser justo e igualitário cede lugar à anarquia.

Karl Popper, por sua vez, adverte que a tentativa de traduzir democracia

como o governo do povo não tem importância: apesar de poder influenciar as ações

de seus governantes através da tentativa de expeli-los do governo, o povo não se

governa de modo prático ou concreto (1994, p. 27). O desenvolvimento e proteção

das instituições políticas é que estão efetivamente no princípio da política

democrática.

Valiosa é a contribuição de José Afonso da Silva em sua análise do conceito

de democracia:

Democracia é conceito histórico. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do evolver social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um regime político em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai

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conquistando no correr da história. (...) Podemos, assim, admitir que a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes. (SILVA, 1997, p.126-127) (grifos do autor)

O modelo de democracia, tal como apresentado na Grécia, foi, aos poucos,

cedendo espaço à Democracia indireta, já que o próprio crescimento das cidades,

aliado ao crescimento demográfico, não possibilitava mais uma interação direta com

todos os cidadãos, sendo impossível concentrar todo o eleitorado, ouvi-lo e

posteriormente fazer suas vontades através das leis. Os assuntos, antes restritos à

paz, à guerra e ao julgamento de crimes, ampliam-se a temas também econômicos,

e cada vez mais complexos. A nova realidade que se impunha – O Estado Moderno

- ansiava por um governo mais condizente inclusive com o indivíduo, já que se exige

dele uma integração não só política, mas também econômica. Sua profissão não

mais podia restringir-se à de cidadão, como antes. A solução que se impunha não

era outra senão sucumbir à democracia indireta, cedendo o lugar de partícipe direto

ao de representado. As decisões são agora tomadas por meio de representantes

eleitos pelo povo.

Ainda segundo Bonavides citado por Nitti (2000), a democracia indireta, ou

também chamada moderna democracia ocidental, tem em seus princípios basilares

a soberania popular, de onde emana todo poder legítimo, o sufrágio universal, com

pluralidade de candidatos e partidos, o princípio da separação de poderes, igualdade

de todos perante a lei, dentre outras. Assim, a democracia indireta ou representativa

pressupõe a chancela do povo para que os representantes eleitos tomem em seu

nome e no seu interesse as decisões políticas.

A terceira forma de democracia, chamada de semidireta, é uma tentativa de

reaproximação ao modelo grego. Já que a democracia direta, como mencionado,

tornava-se insustentável, esse modelo figura como uma “zona de transição”, um

intermediário, assimilando aspectos tanto da democracia direta quanto da

representativa. Nesse modelo, a participação política alia-se a certa participação

jurídica, podendo, em certas matérias, interferir diretamente, como é o caso do

referendum (obrigatório ou facultativo), a iniciativa popular e o veto popular. Nesses

institutos, o povo tem o condão de intervir diretamente na elaboração das leis. A

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democracia, portanto, em qualquer uma de suas formas, é o único regime que

assegura a liberdade senão a todas, ao do maior número possível de pessoas.

Segundo Philip Petit, a democracia refere-se ao autogoverno de um povo, e

comumente está vinculada ao consentimento. Mas, para esse autor,

o que os faz autogovernados ou democráticos é não estarem expostos, forçosamente a esse modelo de decisão: através da autonomia são capazes de contestar decisões e, se a contestação colidir com seus interesses ou opiniões relevantes, serão capazes de forçar uma alteração. (PETIT, 2003, p. 372)

Assim, autonomia e possibilidade de contestação são apresentadas como

requisitos imprescindíveis a um governo que se intitula democrático. A manifestação

através da contestação, diferentemente da idéia de consentimento, revela uma

participação popular mais efetiva. Significa situar o povo, efetivamente, como sujeito

ativo das decisões.

O impasse a que se chega quando se pretende permitir uma base de

contestação às pessoas, é que forma deverá assumir a decisão pública, já que dois

são os caminhos possíveis: através da barganha, ou através do debate. Na decisão

através de barganha, os interesses já estão predefinidos e buscam-se acordos

reciprocamente benéficos, em que o mínimo de concessões sejam necessárias. Há,

portanto, o imperativo de um lobby que tenha considerável peso, capaz de

convencer e forçar mudanças nas negociações. Por outro lado, nas decisões através

do debate, conforme Pettit, os diferentes parceiros reconhecem qual dispositivo

encerra a melhor resposta nas deliberações tida por todos como relevantes,

chegando-se a um acordo.

Para Pettit,

O debate de contestações exerce uma grande atração sobre as pessoas, por ser aberto a qualquer indivíduo capaz de preparar uma argumentação plausível contra uma determinada linha de decisão política. Não é necessário ter importância ou poder especial, pelo menos, não em princípio para se poder fazer uma contestação racional chegar a uma decisão arrazoada. O que poderia significar para a decisão pública, em particular para a republicana, ter como base o debate e admitir o debate em torno de contestações? Significa que, em qualquer esfera decisória, seja o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário, são postos em ação procedimentos que identificam as deliberações relevantes para a decisão, possibilitando, aos cidadãos, questionar até que ponto se trata de deliberações aptas a desempenhar este papel. Além disso, significaria que há determinados procedimentos em ação, possibilitando aos cidadãos julgarem, se as deliberações relevantes foram decisivas para o resultado alcançado. Em

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resumo, as decisões precisam ser feitas com transparência, sob a ameaça de investigação, com base na liberdade de informações, e assim por diante. Em uma república em que ninguém deva sofrer dominação e em que a decisão pública deva perscrutar os interesses e as idéias relevantes de todos os cidadãos, será imperativo que as deliberações relevantes assumam uma forma caracteristicamente neutra, sendo-lhes vedado favorecer a este ou àquele setor de opinião ou interesse em detrimento de outros. Em decisões no âmbito legislativo, poderão ser relevantes quaisquer deliberações passíveis de serem apresentadas como razões que todos, segundo as normas de argumentação acordadas, deverão aprovar como pertinentes. (PETIT, 2003, p. 373-374)

O pensamento de Philip Pettit expõe, com muita lucidez, a importância da

decisão pública. Uma população engajada, participativa, define e impõe as medidas

a serem tomadas, direcionando os rumos e as decisões a serem assumidas pelos

agentes públicos. O posicionamento atuante de um povo faz realmente acesso a

definição democrática de “governo do povo, para o povo”.

Os sofistas, por sua vez, ponderavam que era através do uso da palavra que

se conseguia a cidadania, já que esta implica no direito de participar na política na

esfera pública2.

A idéia de democracia prendia-se, desse modo, à deliberação e abria

margens a um regime instável, gradualmente construído por meio do discurso e

mesmo da deliberação.

Platão, na tentativa de elaborar uma forma de governo perfeita, em combate

aos ideais dos sofistas, esbarra-se no problema do governo do Estado. A quem

caberia o dever de governar? Considerando que democracia quer dizer “governo

pelo demos”, o demos em grego clássico tanto pode ser entendido como “o povo” ou

“a populaça”. Nesse sentido, então, a democracia é o governo pela populaça: o

governo da ralé, do vulgo, dos sujos, dos inaptos. Poder-se-ia participar da vida

política sem qualquer preparação específica, bastando para tanto proclamar-se

amigo do povo. Para esse impasse, Platão sugere a analogia das profissões, em

que a formação filosófica é uma qualificação necessária para governar. Uma

formação sem o preparo necessário conduziria, inequivocamente, a uma sede de

liberdade que levaria as pessoas a passarem das medidas, deturpando a

democracia em tirania. Porém, mesmo o mais preparado dos filósofos poderia se

2 Para Habermas “esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomados de posição e opiniões; nela os fluxos comunicação de conteúdos, tomadas de posição a ponto de se condenasarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.

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render à corrupção e assim, atenderia não aos interesses gerais, mas apenas de

uma minoria.

A cidade perfeita, com os cidadãos perfeitos e devidamente estratificados em

suas classes não passa de uma utopia platônica, um retrocesso ao tribalismo. A

submissão dos indivíduos não pode coadunar em qualquer regime que se proclame

democrático.

Em contrapartida, Rousseau entende que a vontade geral é a manifestação

da soberania, recomendando, para tanto, a democracia direta. Segundo seu

pensamento, os eleitos do povo para governar, não são representantes, mas apenas

instrumentos para executar a vontade geral. Assim, as leis são obrigatórias depois

de aprovadas e consentidas pelo povo. A idéia de democracia em Rousseau situa-

se numa ação efetiva que conduza à sua concretização, onde os interesses

arbitrários do indivíduo devem dar lugar à construção coletiva daquilo que permite

que todos possam ser iguais. Somente através da participação direta do povo no

poder seria possível construir a vontade geral, que é o fundamento do corpo político

rousseauniano. A liberdade, nesse diapasão, é lançada como própria condição à

humanidade, e como a liberdade só existe quando há igualdade, deparamo-nos com

o ponto crucial do pensamento de Rousseau diante da sociedade de sua época: a

desigualdade. E, para construir uma sociedade de liberdade e igualdade, é

imprescindível a democracia direta, já que somente ela é capaz de refletir os anseios

populares: a minoria definitivamente sucumbe às reivindicações da maioria. Dessa

forma,

um povo só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos. (NASCIMENTO, 2008, p. 196)

Em uma visão contemporânea, verifica-se que a democracia é comumente

concebida como um regime político, “pois sendo o governo do povo, pelo povo e

para o povo, que o exerce direta e indiretamente, expressa um estilo de vida política

e se converte numa filosofia de vida que se institucionaliza politicamente no Estado,

como forma de convivência social” (CARVALHO, 2009, p. 208).

Carvalho citado por William Kerby ainda acrescenta:

19

A democracia é primariamente social, moral e espiritual e secundariamente política. É uma filosofia de vida, tanto como uma teoria de governo. É inspirada por um duplo conceito do indivíduo, da dignidade de sua pessoa, da santidade de seus direitos, da exigência de suas potencialidades em direção a um desenvolvimento normal. (CARVALHO apud WILLIAM KERBY, 2009, p. 208)

A democracia permite e até mesmo legitima os conflitos, instituindo-os como

direitos, já que vistos como uma limitação ao poder estatal. As associações e

sindicatos representam essa força popular, restringindo o poder governamental

irrestrito.

Porém, a democracia para ser concebida em sua efetividade, não se limita à

instituição de um governo, mas pressupõe requisitos que validem esse mesmo

governo, possibilitando de fato a existência de normas legais que embasem e

positivem o regime democrático. Ademais, outro ponto crucial para qualquer regime

político diz respeito à validade de suas normas, ou seja, o imperativo que delas se

extrai, a força que delas é reconhecida para ordenar as relações sociais, sendo,

para tanto, reconhecida sua utilidade.

Essa necessidade de positivação das leis, associada à limitação do poder do

Estado frente aos indivíduos fez crescer a necessidade de um Estado de Direito, não

somente com a prevalência de direitos negativos cerceadores da ação estatal, mas

também que garantisse certa previsibilidade das condutas em respeito à segurança

jurídica.

A expressão Estado de Direito, conhecida na vertente contemporânea, surge

a partir da doutrina liberal, na segunda metade do século XVIII e início do XIX, com

as duas Revoluções liberais que consolidaram os ideais burgueses: a Americana, de

1776 e a Francesa de 1789. O Estado passa a ter seu arbítrio cerceado por

princípios como o da legalidade, da liberdade e da igualdade dos indivíduos. Há a

necessidade de uma Constituição rígida e formal como garantia dos cidadãos contra

o Estado e a concepção de justiça passa a ser a de uma igual distribuição de

direitos. A ideia de um ordenamento único, composto por leis gerais e abstratas,

válidas para a sociedade como um todo, fazia crescer a expectativa de uma maior

igualdade formal. Mesmo que essa liberdade apenas diante da lei e da sociedade

depois se mostrasse também aquém das necessidades sociais, naquele momento

era vista como a possibilidade de felicidade e bem-estar para todos, desde que

20

dadas condições iguais de partida. Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias na sua obra:

responsabilidade do estado pela função jurisdicional aduz, “a teoria do Estado de

Direito surgiu em oposição à ideia do que, comumente, de forma aproximada,

traduz-se por Estado de Polícia (...)”(2004, p. 93)

O Estado de Direito, como já mencionado, sujeita-se ao império da lei e mais

especificamente a uma Constituição. Sendo assim, a criação das leis deve seguir

critérios previamente definidos para que possa integrar o ordenamento e fazer-se

exigível em seu cumprimento. Além disso, tal Estado deve reconhecer e proteger os

direitos fundamentais, amparando-os no princípio da proporcionalidade.

No entanto, como a legalidade passou comumente a ser o princípio basilar do

Estado de Direito, bastando estrito cumprimento às normas, independente da forma

como foram elaboradas e independentemente de atenderem ou não aos anseios e

reclames da sociedade, a deformação de tal conceito foi inevitável, e mesmo um

Estado Ditatorial pode, porquanto, ser considerado Estado de Direito.

É cediço que o Estado de Direito está moldado no pensamento do Estado

Liberal. Assim, sua concepção, inclusive de direitos fundamentais prende-se ao

pensamento filosófico-político vigente, qual seja, o liberalismo. Em um primeiro

momento, os direitos civis e políticos são almejados, mas vistos como liberdades

negativas, a partir da não-ingerência abusiva do Estado na esfera privada do

indivíduo. Segundo Flaviane de Magalhães Barros Pellegrini,

Assim, no Estado Liberal o entendimento era de que o Estado deveria atuar de modo a intervir o menos possível na esfera privada do indivíduo, compreendida como o espaço do direito privado e das relações familiares,contratuais e negociais. Dessa forma, o espectro de liberdades do cidadão poderia ser compreendido como toda atuação que não fosse contrária ao direito; ou seja, o que não é proibido por lei é permitido. (PELLEGRINI, 2004)

Florescia a explicação racional do Estado, resultante de um pacto entre os

homens. Essa visão contratualista consiste exatamente em um acordo: os indivíduos

abdicam de sua liberdade, atribuindo o poder ao Estado em troca da realização do

bem geral. Porém, mesmo enquanto corpo de qualquer comunidade, seus direitos

naturais são invioláveis. Em contraponto ao estado de natureza, os pensadores do

liberalismo acreditam na inauguração de um estado de sociedade, através do

consentimento entre os homens.

21

Busca-se, nesse período, os chamados direitos de primeira geração,

abarcando as liberdades negativas. No entendimento de Vicente Paulo e Marcelo

Alexandrino,

Os direitos de primeira geração compreendem as liberdades negativas clássicas, que realçam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos. Surgiram no final do século VXIII, e representam uma resposta do Estado liberal ao Estado absoluto. Dominaram todo o século XIX, haja vista que os direitos de segunda geração dimensão só floresceram no século XX. Representam os meios de defesa das liberdades do indivíduo, a partir da exigência da não-ingerência abusiva dos Poderes Públicos na esfera privada do indivíduo. Limitam-se a impor restrições à atuação do Estado, em favor da esfera de liberdade do indivíduo. Por esse motivo são referidos como direitos negativos, liberdades negativas ou direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado. São exemplos de direitos fundamentais de primeira dimensão o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e religiosa, entre outros. (PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p. 93)

Nessa linha, o pensamento do filósofo John Locke é um paradigma do Estado

Liberal. Em oposição ao regime monárquico experimentado anteriormente, defende

os direitos individuais dos homens como inalienáveis, posto que direitos naturais. O

homem passa a ser valorizado individualmente, não apenas como membro de uma

coletividade. Para esse autor, a existência do indivíduo é anterior ao surgimento da

sociedade e do Estado. Vivendo em um estágio originalmente pré-social e pré-

político, em uma situação de relativa paz, liberdade e igualdade, denominado estado

de natureza, os homens possuíam direitos naturais, ou seja, a vida, a liberdade e a

propriedade. No entanto, no intuito de alcançar uma maior segurança, os homens

deixam o estado de natureza, instituindo a sociedade civil.

Ronaldo Bretas de Carvalho transcreve o entendimento de José Alfredo de

Baracho, “o termo Estado de Direito expressa a realidade do Estado moderno,

modelada por um ideal de racionalização jurídica da vida, e representa um sistema

consistente de legalidade normativa, inspirada ideologicamente nos pressupostos

filosófico-políticos da democracia liberal” (CARVALHO apud BARACHO, 2004, p.

93).

O poder contido na lei representava a única autoridade, e todos os demais

poderes estavam subordinados ao Legislativo. Assim, o princípio da legalidade era

hierarquicamente superior aos demais, e de maneira consecutiva, o Estado passa a

ser vigilante na aplicação das leis e igualdades formais já positivadas.

22

Em seu “Segundo tratado sobre o governo”, Locke posiciona-se acerca do

poder legislativo e da elaboração das leis:

Uma vez que o grande objetivo do ingresso dos homens em sociedade é a fruição da propriedade em paz e segurança, e que o grande instrumento e meio disto são as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental enquanto primeira lei natural fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo enquanto primeira lei natural fundamental, que deve reger até mesmo o poder legislativo. Ela é, em si mesma, a preservação da sociedade e – até o ponto em que seja compatível com o bem público – de qualquer pessoa que faça parte dela. Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade, mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o tenha colocado; nem pode qualquer edito de quem quer que seja, concebido por qualquer maneira ou apoiado por qualquer poder que seja, ter a força e a obrigação de uma lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pelo público; porque, sem isto, a lei não teria o que é absolutamente necessário á sua natureza de lei: o consentimento da sociedade, sobre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão pelo próprio consentimento daquela e pela autoridade dela recebida. (LOCKE, 2002, p.100-101)

Assim, os detentores do poder legislativo devem sujeitar-se a alguns

encargos advindos deste mesmo poder: governar por meio de leis estabelecidas e

promulgadas, que não podem variar em casos particulares; as leis devem ter como

única finalidade o bem do povo; o legislativo não deve nem pode transferir o poder

de elaboração das leis a ninguém mais, ou colocá-lo em qualquer outro lugar que

não o indicado pelo povo, dentre outros.

Rousseau, por seu turno, fundamenta sua teoria no “Contrato Social”: fruto de

uma vontade geral que não corresponde ao somatório das vontades individuais.

Dessa forma, o governo é visto como uma instituição que promove o bem comum e

só é suportável enquanto justo. Não havendo correspondência com os anseios

populares do povo, este tem direito de substituí-lo.

Nos dizeres de Nascimento, baseado no entendimento rousseauniano,

(...) um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de um grupo de indivíduos.

Tal é a condição primeira de legitimidade da vida política, ou seja, aquela que marca a sua fundação através de um pacto legítimo, onde a alienação é total e onde a condição de todos é a de igualdade. Este processo de legitimação, da fundação do corpo político, deverá estender-se também para a máquina política em funcionamento. Não basta que tenha havido um momento inicial de legitimidade. É necessário que ela

23

permaneça ou então se refaça a cada instante. (NASCIMENTO, 2008, p.196-197)

Percebido como uma instituição humana, destituindo-se o caráter divino do

monarca, o Estado passa a ser dependente da legitimidade da vontade popular, ou

seja, sua própria legitimidade condiciona-se aos cidadãos, e o soberano é apenas

um mandatário do povo para executar a vontade geral.

As leis, após consentimento e a aprovação popular, tornam-se obrigatórias, já

que significam ato da vontade geral e mesmo expressão da soberania. Os

legisladores, assim, têm o importante papel de atender e satisfazer os principais

anseios do povo.

José Afonso da Silva ao analisar o Estado de Direito afirma:

Por outro lado, se se concebe o Direito apena como um conjunto de normas estabelecidas pelo Legislativo, o Estado de Direito passa a ser Estado de Legalidade, ou Estado legislativo, o que constitui uma redução deformante. Se o princípio da legalidade é um elemento importante do conceito de Estado de Direito, nele não se realiza completamente. A concepção jurídica de Kelsen também contribui para deformar o conceito de Estado de Direito. Para ele estado e Direito são conceitos idênticos. Na medida em que se confunde Estado e ordem jurídica, todo estado, para ele, há de ser Estado de Direito. Por isso, vota significativo desprezo a esse conceito. Como, na sua acepção, só é Direito o direito positivo, como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo, chega-se sem dificuldade, a uma idéia formalista do Estado de Direito ou Estado Formal de Direito, que serve também a interesses ditatoriais. Pois, se o direito acaba se confundindo com mero enunciado formal da lei, destituído de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade política, social, econômica, ideologia enfim (o que, no fundo, esconde uma ideologia reacionária), todo Estado acaba sendo Estado de Direito, ainda que seja ditatorial. Essa doutrina converte o Estado de Direito em mero Estado Legal. Em verdade, destrói qualquer idéia de Estado de Direito. (SILVA, 1997, p. 115)

Apesar do “império da lei”, efetivamente foram poucos os avanços para a

população, já que a aplicação do texto normativo era condicionada a um juiz que

num processo mecânico apenas sobrepunha a lei, após a leitura dos textos, os quais

deveriam ser claros. Na realidade, a classe dos proprietários era a grande ditadora

dos rumos do Estado.

As péssimas condições a que se sujeitava a grande massa dos trabalhadores

tornaram latente a necessidade de um Estado que garantisse os direitos sociais dos

indivíduos, substituindo o estado de direito por um Estado de Bem-Estar Social ou

Estado Social, mesmo que isso significasse abrir mão de parte da liberdade por um

Estado intervencionista. De acordo com Mário Lúcio Quintão Soares,

24

O nascimento do conceito de justiça social e a necessidade de intervencionismo estatal resultam no reconhecimento constitucional e na otimização de formulação dos limites no exercício dos direitos fundamentais. As formulações abstratas e vagas do Estado liberal de direito cedem lugar ao reconhecimento de direitos concretos do indivíduo e à ampliação dos direitos civis clássicos: direitos coletivos, sociais, econômicos, ao trabalho, à seguridade social, á greve, à educação, à cultura, à saúde, ao lazer etc. (SOARES, 2000, p.88)

Nesse mesmo sentido, Pellegrini afirma:

O paradigma do Estado Social surge da superação do Estado de Direito, principalmente em virtude da acumulação de capitais e de propriedade em mãos de poucos, em decorrência do modelo antecedente, criticado pelos teóricos do comunismo, do socialismo e do anarquismo. Ademais, o excessivo formalismo do Estado Liberal e a incapacidade de responder a demandas sociais são causas justificadoras da ruptura que gerou a construção do paradigma do Estado Social.(PELLEGRINI,2004)

Em resposta às reivindicações de materialização dos direitos, surgem os

chamados direitos de segunda geração, de cunho essencialmente social. Esse

acréscimo de garantias visava também assegurar em seu aspecto material direitos

individuais surgidos no Estado de Direito – igualdade, liberdade e propriedade.

Exige-se do Estado uma nova postura, não meramente formal, como no Liberalismo.

Para Paulo e Alexandrino,

Os direitos de segunda geração identificam-se com as liberdades positivas, reais ou concretas, e acentuam o princípio da igualdade entre os homens (igualdade material). São os direitos econômicos, sociais e culturais. Foram os movimentos sociais do século XIX que ocasionaram, no início do século XX, o surgimento da segunda geração de direitos fundamentais, responsável pela gradual passagem do Estado liberal, de cunho individualista, para o Estado social, centrado na proteção dos hipossuficientes e na busca da igualdade material entre os homens (não meramente formal, como se assegurava no Liberalismo). OS direitos fundamentais de segunda geração correspondem aos direitos de participação, sendo realizados por intermédio da implementação de políticas e serviços públicos, exigindo do Estado prestações sociais. (PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p.93)

Percebe-se, assim, a ampliação dos direitos fundamentais e uma nova

articulação do Estado, não representando apenas um mero somatório do Estado

Liberal, com seus direitos de caráter individual, ao Estado Social. Corresponde,

antes, à articulação da legalidade do Estado de Direito à legitimidade da

democracia.

25

Segundo Dias, o Estado de Direito possui alguns elementos configuradores,

já sedimentados no século XX, e assentados, em resumo, nas seguintes bases:

a) no império da lei, esta compreendida como expressão da vontade geral, ato formalmente emanado da função legislativa, exercida com a participação indispensável de representantes do povo;

b) na divisão dos poderes do Estado, entendida essa divisão, todavia, como separação das funções do Estado (legislativa, administrativa e jurisdicional);

c) na legalidade da administração pública, isto significando atuação do Estado segundo a ei e sob suficiente controle jurisdicional;

d) no enunciado dos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, reconhecidos sob garantia jurídico-formal e efetiva realização material. (DIAS, 2004, p. 96)

O Estado de Direito passa a expressar, então, não só estrito cumprimento às

leis, mas o Estado que satisfaça os requisitos da segurança jurídica e da democracia.

Dessa forma, o Estado de Direito é também um Estado constitucional, devido ao

decisivo constitucionalismo, consagrando o princípio de constitucionalidade da ordem

jurídica, justificando o surgimento de um Estado vinculado ao direito. (Dias, p.98).

Seguindo o pensamento desse autor, não há de se falar de Estado, independente de

nomenclatura, sem as modernas e fundamentais qualidades identificadas pelo

constitucionalismo, que são o Estado de Direito e o Estado Democrático.

Tem-se, portanto, um Estado submetido às normas do direito e estruturado por leis, sobretudo a lei constitucional, um Estado no qual se estabeleça estreita conexão interna entre dois grandes princípios jurídicos, democracia e Estado de Direito, ou seja, um Estado Constitucional Democrático de Direito. (DIAS, 2004, p.99) (grifos do autor).

Segundo Rosemiro Pereira Leal, no contexto da pós-modernidade, o estado

que se deve estudar é o Estado democrático de direito constitucionalizado,

conceituado como um espaço juridicamente constitucionalizado em que os

destinatários das normas também se consideram autores das normas vigentes:

O Estado democrático de direito, em sua acepção pós-metafísica e pós-convencional, é um espaço juridicamente institucionalizado a uma constante aprendizagem processual de exercício testificador dos direitos fundamentais (criados e garantidos pelo devido processo constitucional) em que os destinatários da normatividade legislada legitimam a validade e eficácia do ordenamento jurídico pela via procedimental do devido processo legal irrestrito (aberto a todos como fundamento da soberania popular), mediante o qual se reconhecem autores das normas vigentes e aplicáveis por um controle confirmativo ou recriativo de constitucionalidade do direito posto

26

(plebiscitarização da fiscalidade jurídica). (LEAL, 2002, p.45) (grifos do autor)

Essa visão posta por Leal afasta a concepção apresentada por republicanos e

liberais, uma vez que estes analisam a sociedade centrada no Estado, e o referido

autor adota a concepção descentrada de Estado, afastando o monopólio da decisão

e do direito, e dando paridade ao Estado e ao cidadão, através do processo.

É inegável, entretanto, que o Estado Social foi condição basilar para o acesso

ao Estado Democrático de Direito, tal como hoje é concebido. Para Dias,

Sendo assim, consideramos que a dimensão atual e marcante do Estado Constitucional Democrático de Direito resulta da articulação dos princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas normas constitucionais. Para se chegar a essa conclusão, impõe-se perceber que a democracia, atualmente, mais do que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo o poder emana do povo. (DIAS, 2004,102)

Pelo prisma do Estado Democrático de Direito, percebe-se a introdução dos

“direitos de terceira geração” e uma remodelagem dos direitos de primeira e

segunda geração. Assim, o direito “amadurece” e abarca interesses até então não

protegidos legalmente, como o direito do consumidor, da criança e do adolescente,

do patrimônio histórico, direito a um meio ambiente saudável, dentre outros.

Não se pode perder de vista, no entanto, é que assim como o próprio conceito

de Estado Democrático de Direito passou por mudanças conceituais até ser

entendido como essa real e efetiva participação popular no Estado, os direitos a

serem compreendidos e tutelados também passaram por graduais e significativas

remodelações. Nesse sentido, segundo entendimento de Norberto Bobbio,

(...) os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do home se modificou, e continua a ser modificado, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. (BOBBIO, 2004, p. 38)

Mário Lúcio Quintão Soares aponta, por sua vez, alguns princípios

caracterizadores do Estado Democrático de Direito:

27

• princípio da constitucionalidade – respaldo na supremacia da constituição, a ela vincula o legislador e todos os atos estatais, estabelecendo o princípio da reserva da constituição e revigorando sua força normativa;

• sistema dos direitos fundamentais – a inserção dos direitos humanos no texto constitucional exige medidas para sua implementação. Este sistema exerce funções democráticas, sociais e de garantia do Estado democrático de direito;

• princípio da legalidade da administração (cerne da teoria do Estado de direito) – postula dois princípios fundamentais: o da supremacia da prevalência da lei e o da reserva da lei;

• princípio da segurança jurídica – conduz à consecução do princípio de determinabilidade das leis, caracterizando-se como princípio de proteção da confiança dos cidadãos;

• princípio da proteção jurídica e das garantias processuais (proteção jurídica individual sem lacunas) – exige procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de concretização do direito. São garantias gerais de procedimento e de processo: a) garantias de processo judicial, de processo penal e de

procedimento administrativo; b) independência dos tribunais e vinculação do juiz à lei;

• princípio de garantia de acesso ao judiciário, assegurando-se ao cidadão pleno direito de defesa;

• princípio da divisão de poderes – a separação dos órgãos de soberania permanece inatacável como garantia de liberdade, contudo, hoje, a ordenação funcional separada da ordem constitucional estabelece ordenação controlante-cooperante de funções. (SOARES, 2000, p.112).

Augusto Zimmermann, analisando a correlação entre os ideais de democracia

e a limitação do poder estatal acrescenta ainda algumas características básicas do

Estado Democrático de Direito:

a) soberania popular, manifestada por meio de representantes políticos; b) preocupação com o respeito aos direitos das minorias; c) igualdade de todos perante a lei, no que implica completa ausência de

privilégio de qualquer espécie, d) responsabilidade dos governantes, bem como temporalidade e

eletividade desse cargo público; e) garantia da pluralidade partidária. (ZIMMERMANN, 2002, p.64-65)

No Estado Democrático de Direito, a participação da sociedade é percebida

efetivamente, quer questionando e fiscalizando a atuação estatal quer controlando a

aplicabilidade dos direitos e garantias, vistos sob um único prisma, ou seja, um

conjunto de prerrogativas que não podem ser aplicados em separado.

Para José Afonso da Silva,

28

(...) a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalização das leis. Não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, como vimos, foi a construção do Estado Social de Direito, que, no entanto, não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democrática do povo no processo político, de onde a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (ou Estado de justiça material), fundante de uma sociedade democrática, qual seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção. (SILVA, 1997, p. 119).

Dessa forma, a partir do pensamento desse autor, fica nítido o novo conceito

que o Estado Democrático de Direito revela, não apenas reunindo elementos do

Estado Democrático e do Estado de Direito, muito antes incorporando novo e

revolucionário componente de transformação do status quo. (1997, p. 113). (grifos

do autor).

Norberto Bobbio, analisando a democracia moderna, salienta a importância

da inversão da concepção tradicional da relação de todo e partes. Na visão dos

individualistas, afirmando que primeiro vem o indivíduo, afirmado e valorizado

exatamente por essa individualidade, e não mais o todo social, há uma ruptura com

o pensamento até então dominante e a partir daí pôde-se mudar a própria estrutura

da sociedade:

Nunca será suficientemente sublinhada a importância histórica dessa inversão. Da concepção individualista da sociedade, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra), que deve ser corretamente definida não como o faziam os gregos antigos, isto é, como o “poder do povo”, e sim como o poder dos indivíduos tomados um a um, de todos os indivíduos que compõem uma sociedade regida por algumas regras essenciais, entre as quais uma fundamental, a que atribui a cada um, do mesmo modo como a todos os outros, o direito de participar livremente na tomada das decisões coletivas, ou seja, das decisões que obrigam toda a coletividade. A democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos. O povo é uma abstração, que foi freqüentemente utilizada para encobrir realidades muito diversas. (BOBBIO, 2004, p. 129)

O crítico pensamento de Bobbio reflete a importância da passagem de povo

para o status de cidadãos, operante e dotado da capacidade de decisões. Para esse

autor, o Direito, representado pela norma jurídica, calcada na justiça e validade, está

umbilicalmente ligado ao Poder, este embasado na legitimidade e na legalidade.

A legalidade e a legitimidade são exatamente o ponto crucial deste trabalho. E

para analisar ou simplesmente discorrer, mesmo que de forma sintetizada, sobre tão

29

conturbados, amplo e polêmicos temas, recorrer-se-á aos ensinamentos do filósofo

e humanista Jürgen Habermas, que tão bem sintetiza e reflexiona sobre a Teoria do

Direito.

Em seu livro Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II,

Habermas inicia sua análise nas condições da gênese e da legitimação do direito.

As bases de sua teoria, diferentemente de outras já apresentadas, centra-se na

Teoria do Discurso. Assim, abandonando uma visão ingênua, calca a política como

um processo que envolve negociações e formas de argumentação. Condiciona,

ademais, a criação legítima do direito a condições exigentes, derivadas dos

processos e pressupostos da comunicação, onde a razão, que instaura e examina,

assume uma figura procedimental (HABERMAS, 2003, p. 9).

A teoria habermasiana coloca o processo da política deliberativa no cerne do

processo democrático. Dessa forma, sua teoria do discurso é capaz de assimilar

elementos dos modelos de democracia tradicionais – o liberal e o republicano – mas

unificando-os “no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e tomada

de decisões”. (HABERMAS, 2003, p.19).

Para esse autor, “na visão republicana, a formação política da opinião e da

vontade das pessoas privadas constitui o medium, através do qual a sociedade se

constitui com um todo estruturado politicamente” (Habermas, 2003, p. 20). Assim, a

democracia é vista como auto-organização política da sociedade. Há a consciência

de que os indivíduos, como integrantes de uma mesma comunidade, são

dependentes uns dos outros, e que a política é o elemento de composição. A

soberania, aqui, também possui um caráter peculiar, já que não comporta

representantes, não podendo, portanto ser delegada.

O conceito de direito também é outro ponto apontado por Habermas como

controvertido entre republicanos e liberais, principalmente no que concerne à

dimensão objetiva ou subjetiva:

Enquanto na visão liberal a finalidade de uma ordem jurídica é tornar possível determinar em cada caso a quais indivíduos pertencem quais direitos, na visão republicana esse direitos “subjetivos” devem sua existência a uma ordem jurídica “objetiva”, que tanto possibilita como garante a integridade de uma vida autônoma em comum, baseada em mútuo respeito. (HABERMAS, 1995, p. 105-125)

Por outro lado, na visão liberal, “a separação polêmica entre aparelho do

Estado e sociedade, que aparentemente não pode ser eliminada, tem que ser

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superada pelo processo democrático” (HABERMAS, 2003 p. 20). Aqui, os

compromissos de interesses direcionam o processo democrático. Ao Estado de

direito caberia equilibrar o poder e os interesses. Percebe-se, no entanto, que

O nervo do modelo liberal não consiste na autodeterminação democrática das pessoas que deliberam, e sim, na normatização constitucional e democrática de uma sociedade econômica, a qual deve garantir um bem comum apolítico, através da satisfação das expectativas de felicidade de pessoas privadas em condições de produzir. (HABERMAS, 2003, p.21)

A política aqui nesse modelo já possui uma visão mediadora, ou seja, ela

canaliza os interesses privados e encaminha-os ao Estado, que, por sua vez, cuida

de administrar o uso do poder. Há, em oposição aos republicanos, a nítida

possibilidade de representação, mas por seu turno, a concepção de democracia é

reduzida ao processo de eleição e o governo é legitimado pela maioria. Assim,

O modelo republicano, quando comparado ao liberal, tem a vantagem de preservar o significado original de democracia em termos de institucionalização de uma utilização pública da razão comunicativa exercida por cidadãos autônomos. Esse modelo leva em conta aquelas condições comunicativas que conferem força legitimadora à formação política da opinião e da vontade. Essas são precisamente as condições sob as quais se pode esperar que o processo político produza razoáveis resultados. (HABERMAS, 1995, p.111)

No entanto, o autor critica o fato de que republicanos contemporâneos dão

uma interpretação comunitária a essa comunicação pública, ligando o conceito

deliberativo de democracia à referência a uma comunidade ética concreta e

firmemente integrada, reduzindo-se questões políticas a questões éticas, e

esvaziando-se em uma visão extremamente idealista.

Rompendo com uma concepção puramente ética de autonomia cívica, a

teoria do discurso habermasiana

(...) insiste no fato de que a formação democrática da vontade não retira sua força legitimadora de uma convergência prévia de convicções éticas consolidadas, mas dos pressupostos comunicativos que permitem aos melhores argumentos entrarem em ação em várias formas de deliberação, bem como dos procedimentos que asseguram processos justos de negociação. (HABERMAS, 1995, p. 111-112)

Habermas almeja superar os modelos normativos de política deliberativa

propostos pelos modelos anteriores, possibilitando, através do marco teorético-

discursivo, uma nova relação entre autonomia pública e privada, e entre

31

constitucionalismo e democracia, que seja mais apropriada a uma concepção

democrática de direito e do Estado democrático de direito.

A democracia, por sua vez, explicitada em uma idéia de política deliberativa,

assimila e ao mesmo tempo extrapola a vontade comum dos exemplos anteriores,

traçando uma fundamentação moral que liga a compreensão de caráter ético a um

equilíbrio entre aspirações contrárias. Para o autor, a democracia é concebida como

institucionalização jurídica do princípio do discurso.

A compreensão da legitimação e da soberania popular também sofre

consideráveis modificações com a concepção da teoria do discurso: a formação

democrática da vontade, para os liberais, tem como único objetivo a legitimação do

exercício do poder político. Já para a corrente republicana, a formação democrática

da vontade tem objetivo mais importante, que é “constituir a sociedade como uma

comunidade política e manter viva, em cada eleição, a recordação desse ato

fundador” (HABERMAS, 2003, p. 23).

Por sua vez, a teoria do discurso fundamenta-se na concepção de que

“processos e pressupostos comunicativos da vontade funcionam como a comporta

mais importante para a racionalização discursiva das decisões de um governo e de

uma administração vinculados ao direito e à lei” (HABERMAS, 2003, p. 23).

Assim, em sua teoria do discurso, a institucionalização dos processos e

pressupostos comunicacionais, bem como a deliberação institucionalizada e

opiniões públicas, substituem a cidadania capaz de agir coletivamente. Também a

sociedade é descentrada, não opera com uma totalidade centrada no Estado. Nessa

teoria, ocorre a valorização da “intersubjetividade de processos de entendimento,

situada num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos

democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas”

(HABERMAS, 2003, p. 22).

A relação comunicacional perpassa a formação pública da vontade, as

decisões institucionalizadas e as deliberações legislativas, e converte o poder

produzido comunicativamente e a influência conseguida através da publicidade, em

poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação.

O sistema político, considerado na teoria do discurso é

um sistema de ação ao lado de outros, não o centro, nem o ápice, muito menos o modelo estrutural da sociedade. De outro lado, a política, por assumir uma espécie de garantia por perdas em termos de integração da

32

sociedade, tem que poder comunicar, através do medium do direito, com todos os demais domínios de ação legitimamente ordenados, independentemente do modo como eles se estruturam ou são regulados. (HABERMAS, 2003, p. 25)(grifos do autor).

A teoria discursiva habermasiana não subordina o processo político de

formação da vontade à conduta ética dos cidadãos, uma vez que a participação

nesse mesmo processo é regulada pela manifestação de direitos subjetivos.

Também não permite que o processo democrático se esvazie na luta pelo poder

estatal ou em uma negociata de interesses. Dessa forma, os direitos subjetivos

devem ser exercidos para ir ao encontro da vontade política, e não contrariamente a

ela.

O Estado, por sua vez, não possui o monopólio da decisão e do direito. Ao

contrário dos modelos liberal e republicano, que centram a sociedade no Estado,

Habermas parte de uma visão descentrada. Segundo esse autor,

Em consonância com o republicanismo, a teoria do discurso dá destaque ao processo de formação política da vontade e da opinião, sem, no entanto, considerar a Constituição como elemento secundário. Ao contrário, concebe os princípios do Estado constitucional como resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e da opinião. A teoria do discurso sustenta que o êxito da política deliberativa depende não da ação coletiva dos cidadãos, mas da institucionalização dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes. Uma soberania popular procedimentalizada e um sistema político ligado às redes periféricas da esfera público-política andam de mãos dadas com a imagem de uma sociedade descentrada. Esse conceito de democracia não mais necessita trabalhar com a noção de um todo social centrado no Estado e imaginado como um sujeito teleologicamente orientado, numa escala mais ampla. Tampouco representa a totalidade num sistema de normas constitucionais que regulam mecanicamente a disputa de poderes e interesses em conformidade com o modelo de mercado. (HABERMAS, 1995, p.117)

Concebe-se um Estado descentrado quando há engajamento dos cidadãos

com as normas constitucionais: a partir de uma construção feita pelos próprios

cidadãos, abarcando seus anseios e suas necessidades, e por isso mesmo

constituída de suas vontades, não havendo necessidade da imposição. A

espontânea adesão a essa Constituição, constituída pelo comprometimento de cada

indivíduo, possibilita a mudança de foco do Estado para a sociedade.

Ademais, a constituição não limita a democracia, antes bem, implica em

juridicização do exercício do uso público das liberdades políticas dos cidadãos,

33

efetivando as decisões que foram elevadas a um plano constitucional, aptas a

produzirem a finalidade para qual foram criadas. Seria, assim, o laço capaz de

regular as condições de convivência democrática. Para Habermas,

(...) o processo democrático é dominado por princípios gerais da justiça, constitutivos para qualquer forma de associação de pessoas. Em síntese, o procedimento ideal da deliberação e da tomada de decisão pressupõe sempre uma associação titular que se julga capaz de regular de modo imparcial as condições de sua convivência. O que associa os parceiros do direito é, em última instância, o laço lingüístico que mantém a coesão de qualquer comunidade comunicacional. (HABERMAS, 2004, p.31).

A concepção de democracia, para Habermas, fundamenta-se no chamado

Princípio do Discurso. Essa teoria discursiva conseguirá fundamentar a

normatividade jurídica, em que se assenta o próprio discurso democrático. Tal teoria

combina elementos tanto do modelo liberal, quanto do republicano: do

republicanismo absorve o processo de formação política da vontade e da opinião,

mas não relegando a Constituição a um elemento secundário, antes bem, “concebe

os princípios do Estado constitucional como resposta consistente à questão de como

podem ser institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de uma formação

democrática da vontade e de opinião” (HABERMAS, 1995, p.123). Assim, a

institucionalização dos procedimentos e das condições de comunicação

correspondentes são fundamentais para o sucesso da política deliberativa. O modelo

de democracia habermasiano deve, dessa forma, abarcar as formas comunicativas

definidas tanto pelo modelo liberal quanto pelo republicano, constituindo uma

vontade comum.

Torna-se, assim, nítida a inovação da teoria discursiva do direito: fundada pela

razão comunicativa, supera a razão prática, já que ultrapassa a normatividade

mediata ou comunicativa, e avança para a própria razão. Nesse diapasão, através

da razão comunicativa, que não é imediatamente prática, o Direito apresenta-se em

sua verdade falível, propiciando ao processo legislativo superar a tensão entre

soberania popular e direitos humanos.

Para Luiz Moreira,

(...) ao contrário da razão prática, a razão comunicativa não oferece modelos para a ação. Não sendo uma norma de ação, a razão comunicativa constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do entendimento. A razão comunicativa dispõe de uma contrafactualidade

34

precisamente por assentar-se em uma base de validade pragmática, pois quem age comunicativamente “é obrigado a empreender idealizações, por exemplo, a atribuir significado idêntico a enunciados, a levantar uma pretensão de validade em relação aos proferimentos e a considerar os destinatários imputáveis, isto é, autônomos e verazes consigo mesmos e com os outros”, A partir desse entendimento, surgem idealizações que, a partir do factual, apontam para o contrafactual, ou seja, ao entender-se sobre algo no mundo a partir do medium lingüístico, surge uma tensão entre realidade e idéia, pois ao adotarmos a linguagem fazemos idealizações inevitáveis que podem opor-se ao acordo fático. Com as pretensões de validade, a razão comunicativa exerce uma orientação sobre as pretensões de validade, uma vez que essas são inelimináveis, mas de modo algum serve para informar sobre que tarefas devemos cumprir uma vez que “não é informativa, nem imediatamente prática”. Ao ligar-se às referidas pretensões de validade, a saber, `inteligibilidade, à verdade, è veracidade e à retidão, a razão comunicativa alcança uma amplitude que aponta para além do moral e do prático. (MOREIRA, 2002, p.101). (grifos do autor).

Dessa forma, a racionalidade intersubjetiva direciona para uma

correspondência entre Direito e moral, alijando qualquer aspecto de subordinação

entre eles. Ademais, somente com a adoção do paradigma da intersubjetividade, que

cria o próprio princípio do discurso, ultrapassando o antigo paradigma liberal e social

de Estado é que se torna possível explicar o surgimento da legitimidade a partir da

legalidade, em um discurso deontologicamente neutro. Nesse sentido, recorre-se ao

entendimento de Moreira:

(...) a razão comunicativa afasta-se da tradição prescritiva da razão prática. E qual é a importância para uma teoria discursiva do direito? Em nossa opinião é de fundamental importância. Primeiro, porque a normatividade da razão comunicativa só se dará mediatamente, isto é, só se torna prescritiva após ser estabelecida por um consenso discursivamente estabelecido.(...) Segundo, porque, ao distanciar-se da normatividade de um mandamento moral, a razão comunicativa vai poder estabelecer-se a partir de um princípio do discurso neutro do ponto de vista de uma validade deontológica, ou seja, o princípio do discurso é deontologicamente neutro. (MOREIRA, 2002, p. 141).

Percebe-se, assim, que “a teoria do discurso sustenta que o êxito da política

deliberativa depende não da ação coletiva dos cidadãos, mas da institucionalização

dos procedimentos e das condições de comunicação correspondentes”.

(HABERMAS, 1995, p. 130). O paradigma da intersubjetividade, na teoria

habermasiana, explica o surgimento da legitimidade interligada à legalidade,

35

elevando o direito à fonte primária de integração social, já que são conferidos iguais

direitos de participação e comunicação.

Assim, no entendimento de Habermas,

A teoria do discurso põe em cena uma terceira idéia: os procedimentos e pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como as comportas mais importantes para a racionalização discursiva das decisões de uma administração limitada pela lei e pelo estatuto (HABERMAS, 1995, p.145.).

Nesse diapasão, a questão apresentada por Habermas é exatamente o

entrecruzamento entre entendimento mútuo e negociação, através das deliberações,

que só são possíveis se institucionalizadas. As condições de comunicação são

decisivas à efetiva legitimidade. Deve-se compreender, ademais, que “a opinião

pública, transformada por meio de procedimentos democráticos em poder

comunicativo, não pode “regular” a si mesma; pode somente apontar o uso do poder

administrativo em direções específicas” (Habermas, 1995, p.146).

Assim, por meio da comunicação, a teoria do discurso não condiciona o

processo político à simples conduta ética dos cidadãos, já que a participação se dá

mediante o exercício de direitos subjetivos capazes de regulamentar esse mesmo

processo. Por outro lado, também não restringe o processo democrático a uma mera

negociação de interesses ou luta pelo poder estatal, propondo que os direitos

políticos são exercidos para a formação política e não contra ela.

Ainda nos dizeres de Habermas,

(...) a leitura de democracia feita pela teoria do discurso guarda um ponto de contato com uma abordagem sociológica objetiva, que não considera o sistema político nem o ápice nem o centro, nem mesmo o modelo formativo da sociedade em geral, mas apenas um sistema de ação entre outros. Por outro lado, a política deve ainda ser capaz de se comunicar, por meio da lei, com as outras esferas de ação legitimamente ordenadas, que, todavia, costumam ser estruturadas e dirigidas. (HABERMAS, 1995, p. 147)

A preocupação central de Habermas é com uma política emancipatória e

conforme Jusefovicz apud Valls, “sempre perseguindo uma reflexão sobre as

condições de um diálogo livre de dominação, isto é, as condições, inclusive sociais,

de uma comunicação isenta de coação e violência, onde só pese a força do melhor

argumento” (JUSEFOVICZ apud LOIS, 2005, p. 166).

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Nesse contexto de normatização do direito através do processo legislativo,

Moreira é incisivo ao afirmar:

Os membros de uma dada comunidade jurídica têm de se atribuir direitos para que possam se constituir membros de uma comunidade jurídica autônoma. Assim, a idéia de que o ordenamento jurídico jurídico se constitui enquanto uma instância externa aos cidadãos, heterônoma,cede lugar á idéias de uma produção efetiva de seres livres que têm, no ordenamentos jurídico, a manifestação de sua vontade livre, ou seja, o Direito é, ao mesmo tempo, criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos membros de uma dada comunidade jurídica. O processo legislativo vem a ser a instância que se constitui como sínteses entre os direitos que cada cidadão tem de atribuir e à sua autonomia política. Em uma palavra, através desse princípio do discurso, neutro do ponto de vista normativo, Habermas poderá fundamentar o Direito de modo a estabilizar a tensão entre autonomia privada e pública através do procedimento legislativo. (MOREIRA, 2002, p. 138-139)

Contudo, o modelo habermasiano de Estado Democrático de Direito, firma-se

não apenas na concepção da fundamentação moral, mas também através de um

procedimento de produção jurídica que provoque a legitimidade.

Habermas sustenta sua teoria em uma junção entre moral, política e direito. O

aspecto moral impõe-se, pela importância do dever-ser jurídico que não ofenda

princípios de justiça universal. Lado outro, o pluralismo da esfera pública exige a

consideração da diversidade de valores no âmbito dos procedimentos políticos.

Segundo Habermas o Estado Democrático de Direito estende-se ao âmbito

do poder, apoiando-se em um potencial de ameaça que é provido pelos meios de

força, que por sua vez é autorizado por direito legitimo.

Pode-se afirma de maneira mais abrangente, Habermas, aponta vinculação

integrante e problemática de “poder comunicativo” e “poder administrativo”. O poder

comunicativo apresenta-se nos procedimentos democráticos de formação da

vontade estatal, que, além de incluir o processo eleitoral e o legislativo, abarca o

discurso em vários níveis da esfera pública. Cuida-se da tomada de decisões

vinculadas e produção de normas jurídicas entre sujeitos orientados na busca do

entendimento. “O poder administrativo corresponde à dominação legal racional no

sentido weberiano” (NEVES, 2008 p. 119). Habermas propõe que o direito seja

interpretado como meio de conversão do poder comunicativo em poder

administrativo.

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Essa concepção do direito em que o poder conduz “Habermas á análise das

formas discursivas que integram o processo de formação racional da vontade

política” (NEVES, 2008, p. 119). Traduzido neste diapasão, apresenta-se várias

aplicações ou mecanismos de manifestação do princípio do discurso: “Válidas são

precisamente aquelas normas de ação com as quais todos os possíveis atingidos

poderiam concordar como participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 1992,

p. 138).

O discurso moral retrata o dever-ser universal, ou seja, caracteriza-se pela

aceitação da norma por qualquer individuo que se encontra em situação similar ou

equivalente. Habermas utiliza o termo “mandamentos morais”, empregado por Kant,

para compilar a definição do chamado imperativo categórico ou incondicionais. “O

discurso pragmático destina-se a justificar os fins e os meios adequados à sua

consecução” (HABERMAS, 1992, p.197). Nesse caso, as recomendações de ação

apresentam “a forma semântica de imperativos condicionais” (HABERMAS, 1992, p.

198). Tangente ao discurso ético-político este diz respeito à justificação do modo de

vida que é “bom” para uma determinada comunidade. “A questão ético-política

refere-se a uma forma particular de vida; os participantes não têm, portanto,

pretensão de universalidade, tal como ocorre no discurso moral” (NEVES, 2008, p.

119).

Portanto, pode-se afirma pela teoria habermasiana que o princípio

democrático relaciona-se com essas três formas discursivas, ou seja, fundamentos

morais, ético-políticos e pragmáticos. Acrescentando no Estado de Direito o discurso

jurídico, que se refere ao controle da coerência normativa do sistema jurídico.

Habermas reconhece o “papel do jogo de interesse no processo formação da

vontade estatal” (NEVES, 2008, p. 120). Caracterizado pela negociação que buscam

a satisfação de interesse e não na busca de consenso, que por sua vez se sustenta

no processo discursivo do Estado Democrático de Direito, passiveis de

regulamentação procedimental. De forma, reserva oportunidades iguais de

participação, de influencias mútuas e de cominação dos interesses divergentes nas

negociações. Neste formato, o procedimento torna-se racional.

O processo de formação racional da vontade política traduz na implicação de

uma conexão complexa entre o discurso ético-político, moral, pragmático, jurídico e

as negociações reguladas procedimentalmente. Esse processo complexo explica “a

aceitabilidade racional dos resultados alcançados conforme o procedimento”

38

(HABERMAS, 1992, p. 210). Todavia, “a idéia de aceitabilidade dos resultados não

responde consequentemente ao problema do dissenso estrutural da esfera pública

nas condições supercomplexas da sociedade mundial do presente” (NEVES, 2008,

p. 121).

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3 PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTRUÇÃO NORMATIVA

3.1 Construções da soberania popular no Direito Con stitucional

No primeiro capítulo abordamos o Estado Democrático de Direito e Estado de

Direito e podemos perceber que todo domínio político é exercido sob forma de

direito, apesar de existir poder político ainda não cunhado na forma do Estado de

Direito, assim como há configuração de Estado de Direito em que o ente

governamental ainda não segue o paradigma democrático.

A democracia tem como mandamento básico a soberania popular, na qual

teoricamente se baseia a maioria das repúblicas e muitas monarquias

Constitucionais.

Porém, uma nação legalista de soberania popular não necessariamente

implica uma efetiva democracia: um partido político ou mesmo um ditador pode

reivindicar ser o representante dos anseios das pessoas, e governar em nome delas,

alegando possuir autoridade para tal. Não basta apenas uma concepção de Estado

de Direito, pois existem Estados de direitos autocráticos, que não viabiliza o

exercício da cidadania na construção do ordenamento jurídico.

Os direitos que devem proteger a liberdade subjetiva e individual dos indivíduos e os direitos à participação, em igualdade de direitos, no processo de formação de vontade democrática devem ser explicados a partir de uma só raiz, devendo ser indicado sua relação de interdependência (RAINER FORST, 2009, p. 182).

De qualquer forma, a doutrina da soberania popular, manifestamente a mais

democrática das doutrinas e compatível com todas as formas de governo, ainda que

possa ser precária em alguns casos.

Não se pretende aqui, apresentar exposição abrangente sobre as concepções

de soberania. Interessa-se abordar apenas a soberania popular.

Kildare Gonçalves Carvalho, no seu livro: Direito Constitucional Teoria do

Estado e da Constituição Direito Constitucional Positivo, elucida a origem da palavra

soberania:

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Soberania, palavra que te sua origem em super omnia, superanus ou supremitas, indica o poder de mando de última instância numa sociedade politicamente organizada. No plano interno, consiste na supremacia ou superioridade do Estado sobre as demais organizações, e, no externo, quer dizer independência do Estado em relação aos demais Estados. A concepção de soberania surgiu no século XVI para justificar o Estado absolutismo, então emergente, com a eliminação dos poderes intermediários dos senhores feudais. O Estado moderno nasceu soberano, chegando-se até mesmo a falar que a soberania constituía traço essencial do Estado. O surgimento do Estado Federal criou, no entanto, o Estado não soberano dotado apenas de autonomia. Além do Estado Federal, o aprimoramento da teoria da separação de Poderes e a consolidação dos direitos fundamentais do homem, que provocaram a ruptura do Estado absoluto, empolgaram o conceito de soberania com o fracionamento do poder absoluto, que passou assim o sofrer limitações. A crise da noção de soberania tem-se agravado no mundo contemporâneo, havendo, inclusive, quem sustente que vivemos o ocaso da soberania, em razão, sobretudo, da superação do Estado nacional por outras formas de convivência social. Por isso mesmo é que Pablo Lucas Verdú, examinando a questão, acentuar que “a crise do Estado nacional soberano exige a criação e consolidação de estruturas e instituições supranacionais de diversos tipos: econômico, militar, cultural (...), de modo que a questão da soberania se redimensione principalmente no plano das relações exteriores (CARVALHO, 2009, p. 127)

A soberania é concebida inicialmente como poder pessoal e supremo de um

monarca. O soberano não estaria submisso a lei, ao contrário de “seus” súditos

sempre subordinados, da mesma forma, não é vinculada a uma ordem jurídica

estatal, assim, o poder supremo do soberano não estaria sujeito a qualquer limitação

jurídico-positiva.

O soberano reunia em si, o poder de modificar, conforme o arbítrio pessoal o

direito estatal, atribuindo-lhe poderes, competência, direitos e, em resumo,

prerrogativas, não lhe impondo deveres e responsabilidades perante seus súditos.

Estes, no pólo inferior da relação político-jurídica, restando apenas deveres, ônus e

responsabilidades perante o soberano.

Com a evolução da civilização, o poder foi institucionalizado e controlado

através da dominação legal-racional, a soberania passa a ser atribuição da própria

organização estatal orientada por portador impessoal, observado do ponto de vista

externo da esfera pública pluralista, distinguindo do conceito procedimental de

soberania do povo, este último que se pretende tratar neste tópico.

Marcelo Neves apresenta o sentido da expressão soberania,

“soberania” pode adquirir relativamente à caracterização do Estado Democrático de Direito, seja a partir do ponto de vista externo da esfera pública pluralista ou das esferas sociais autônomas. Nesse sentido, cabe distinguir o conceito sistêmico de soberania do Estado e o conceito

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procedimental de soberania do povo, que, antes de se excluírem, complementam-se. (NEVES, 2008, p.159)

Evidentemente, essa concepção absolutista de soberania como poder

pessoal jurídico-positivamente ilimitado não é compatível com a noção de Estado

Democrático de Direito.

A idéia clássica de soberania popular preconizada pela Escola contratualista,

tendo como expoente Jean-Jacques Rousseau que afirmava: “uma vontade geral

que se manifesta homogênea e unitariamente”. (ROUSSEAU apud NEVES, 2009, p.

437).

Através dessa concepção clássica entende-se que o povo é o detentor da

soberania refletida na sua vontade coesa e inalienável.

A soberania popular, segundo o autor do contrato social e seus discípulos, é

tão-somente a soma das distintas frações de soberania, que pertencem como

atributo a cada indivíduo, o qual, membro da comunidade estatal e detentor dessa

parcela do poder soberano fragmentado, participa ativamente na escolha dos

governantes (ROUSSEAU, 2008, p 47).

Entre o século XVI e o XVIII, Thomas Hobbes afirmou que a origem do Estado

e/ou da sociedade está num contrato: os homens viveriam, naturalmente depois de

um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras de convívio social e de

subordinação política em que o poder de Estado teria que ser pleno (RIBEIRO,

2008, p. 53)

Jean Bodin, no século XVI, é o primeiro teóricoa afirmar que no Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes desenvolve essa idéia, monta um Estado que é condição para existir a própria sociedade. A sociedade nasce o Estado (Os clássicos da política, v. I). A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estangeiros e das injurias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos,é conferir toda sua força e poder a um homem ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como redá um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a

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condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos, mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada individuo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda mutua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos (RIBEIRO, 2008, p. 54).

Já para John Locke, este entendia que:

...através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil. Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo. Na escolha do governo a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princípio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos das minorias (MELLO, 2008, p. 87).

Por sua vez, Jean-Jacques Rousseau se destaca entre os que inovaram a

forma de pensar a política, principalmente ao propor o exercício da soberania pelo

povo, como condição primeira para sua libertação.

Unamo-nos para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence, instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Numa palavra, em lugar de volta nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação , expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna (NASCIMENTO apud ROUSSEAU, 2008, p. 195)

Ponto de relevo que merece destaque de Rousseau e que segue trilha

diversa dos filósofos que o antecederam na abordagem filosófica do contrato social

é a de que o contrato social na verdade se apresenta como um acordo entre

indivíduos para se criar uma sociedade, e só então um Estado, isto é, contrato é um

pacto de associação, não de submissão como pensavam seus contemporâneos

43

filósofos. Rousseau toma como base a união prática e a vontade soberana no

conceito de autonomia.

No entanto, Rousseau apesar de evoluir e refugar o aspecto de submissão do

contrato social, concebendo na verdade, um acordo entre individuo e estado, bem

como entende que soberania é a constituição da autonomia do cidadão e a

participação de todos na prática da autolegislação, é rejeitado por Habermas em

função de seu modelo homogêneo, unitário. Habermas com uma visão mais

“sensível à heterogeneidade de valores e interesses que caracterizam a sociedade

moderna, propôs a dessubstancialização do conceito de soberania” (Neves, 2008, p.

163), cuida do tema soberania em uma perspectiva, sobretudo procedimental. “O

povo não é concebido como sujeito que, com vontade e consciência, é portador do

poder soberano. Ele apresenta-se no plural, não sendo capaz, enquanto povo como

um todo, nem de decisão nem de ação” (NEVES, 2008, p. 163).

A soberania do povo forma a idéia em cuja luz ainda é possível justificar o

direito moderno, calcando-se no caráter subjetivo, estipulando parcelas equânimes

de liberdade de direito a cada individuo fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão

em virtude de lei, ou seja, permite-lhe orbitar livremente em um espaço delineado

pela lei.

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira afirma no livro o Brasil que queremos,

reflexões sobre o Estado Democrático de Direito:

A soberania popular, assim, se entrelaça, mais uma vez, com o poder político organizado no Estado e o princípio segundo o qual o poder emana do povo e se realiza mediante pressupostos e condições de comunicação e de procedimentos institucionalmente diferenciados de formação da opinião e da vontade comuns. A soberania popular, nesses termos, não se deixa encarnar em uma assembléia de cidadãos autônomos; ela se remete novamente às formas de comunicação desprovidas de sujeito que circulam através dos fóruns e organismos deliberativos. Somente nesta forma anônima um poder comunicativo pode vincular o poder administrativo do aparato estatal à vontade dos cidadãos. (OLIVEIRA, 2006, p. 506).

Na obra Fundamentação do Direito em Habermas, Luiz Moreira define direito

subjetivo como:

Os direitos subjetivos constituem a garantia para o exercício igual das mesmas medidas de liberdade, em uma comunidade de sujeitos de direito. Como faculdade de fazer ou deixar de fazer algo em virtude da lei, temos a explicitação, em forma jurídica, dos espaços de ação em que cada sujeito

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pode exercer livremente sua vontade. Esse espaço de ação é expresso em termos aritméticos, uma vez que é através desse espaço que se explicita o igual gozo dos direitos. Como medida aritmética, os direitos subjetivos definem as liberdades de ação, composta de modo simétrico, para todos os indivíduos (MOREIRA, 2002, p. 158)

O chamado direito subjetivo deve ser fundado em um discurso racional, tendo

como expressão a auto-realização ética.

Gisele Cittadino aduz,

A subjetividade que caracteriza as identidades individuais e a interssubjetividade que conforma as identidades sociais vão se constituindo através da internalização e da adoção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valores e tradições concretas. Neste sentido, as identidades individuais e sociais se constituem a partir da sua inserção em uma forma de vida compartilhada, na medida em que aprendemos a nos relacionar com os outros e com nós mesmos através de uma rede de reconhecimento recíproco, que se estrutura através da linguagem cessa através de estruturas lingüísticas, formando aquilo que Habermas designa por intersubjetividade (CITTADINO, 2009, p. 91).

A legalidade tem seu oxigênio na ética, que a legitima. O poder que emana a

legalidade deve ser um poder fundado na legitimidade. Hodiernamente não se tolera

a legalidade ilhada apenas no conceito meramente formal, impondo-se sua validade

na esfera individual do poder legitimo.

Atribui-se legalidade do exercício e forma de obtenção do poder para que haja

legitimidade do poder em si, deixando de ser apenas de ordem jurídica para ostentar

contorno eminentemente ético.

Wolkmer, ao analisar a distinção entre legitimidade e legalidade, enfatiza a

necessidade de superar a tradição jurídico-formalista que reduz a legitimidade à

legalidade e aponta a necessidade da construção de uma legitimidade democrática:

[...] Trata-se de romper com a lógica dominante de que o processo de legitimação do poder estatal se identifica necessariamente com o processo de legalização do exercício do poder. É uma nova legitimidade enquanto expressão de vontade e do justo reconhecimento da comunidade que determina e fundamenta em definitivo os horizontes de uma nova legalidade institucionalizada. Enfim, a construção crítica de uma legitimidade democrática que venha fundamentar o Poder político e o Direito justo tem seu ponto de referência deslocado da antiga lógica de legitimação, calcada na legalidade técnico-formal para uma legitimidade “instituinte”, formada no justo consenso da comunidade e num sistema de valores aceitos e compartilhados por todos. Não se trata mais de reduzir o conceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurídico, ou seja, a estrita vinculação com a validade e a eficácia enquanto produção de efeitos normativos. Numa cultura jurídica pluralista, democrática e participativa, a legitimidade não se funda na

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legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das necessidades reconhecidas como “reais”, “justas” e “éticas. (WOLKMER, 1994. )

O Direito brasileiro firmado no sistema romanistico em que vigora a forma

escrita, tem como fonte primordial a lei, que teve ser produzida atendendo um

devido processo legislativo, ou seja, uma ritualística formal e material, em que

figuram no seu inicio e fim, autores e destinatários confundindo-nos mesmos

indivíduos e nesta qualidade de destinatários, devem entender que também são

autores.

Na legislação brasileira a lei escrita e submetida ao regular processo

legislativo é a mais importante fonte formal, inclusive tem força estipulada no artigo

5.da Constituição Federal: in verbis:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (BRASIL, 2010).

A legislação brasileira coaduna com o direito moderno, na medida em que o

direito forjado nos costume e na tradição, não tem amparo com a proposta do devido

processo legislativo garantidor da eficácia legitimadora da norma jurídica, que

inicialmente também não resiste uma reflexão política e filosófica, evidenciando o

relevo determinante na inafastável participação popular nos juízos de justificação

desta mesma norma jurídica.

Para Habermas, num mundo pós-metafísico, pós-religioso, em que o direito

natural, a religião ou o costume não podem mais explicar a validade do direito, é

necessário desenvolver um conceito procedimental de legitimidade. Habermas

constata ainda que Weber limita a legitimidade do direito à sua legalidade, por

entender que a atribuição de um fundamento moral ao direito implicaria a retirada de

sua objetividade própria. Legitima é, na modernidade, o direito que emana do

legislador (HABERMAS, 2003, p. 94-111).

A legitimidade para Habermas não assenta apenas no viés político legislativo

ou na jurisdição, tem a imperiosa necessidade de carregar o conteúdo moral das

46

qualidades formais, o que só pode existir instrumentalizado através da

argumentação moral.

Luiz Moreira afirmar que,

Habermas entende que a argumentação moral deve ser o modelo processual para a averiguação da formação da vontade, através do exame das pretensões de validade hipotéticas, pois “quem se envolve numa prática de argumentação tem de pressupor que todos os possíveis afetados poderiam participar na busca cooperativa da verdade isenta de coerção (MOREIRA, 2002, p. 160).

O ponto fundamental em que se sustenta toda a concepção de soberania

popular é o exercício ativo das massas na participação da construção do processo

político, de maneira que a norma como resultado de produção de sua vontade, reflita

a personalidade jurídica dos cidadãos, frutificando seus anseios e sobre tudo, suas

expectativas, devendo ser um princípio de universalização3

As expectativas são projeções de evolução e crescimento quanto cidadão e

quanta civilização, devendo construir diuturnamente os objetivos democráticos,

pensando e agindo sobre o que pode ser melhorado na construção e reconstrução

de seus valores.

Quanto à idéia de anseio (que uma vez concretizada através da norma, deve

deixar de ser aspiração para ser palpável, fluente e disponível para o uso e gozo),

esta deve carregar a consciência de que todos nos nascemos iguais em direitos e

obrigações; as nossas desigualdades respeitadas e ajustadas na medida da

necessidade de igualá-las, no mesmo modelo aristotélico. Preservar o entendimento

consensual: amar o próximo, ser útil e consciente para com a sociedade, respeitar

opinião e manifestações dos demais, aceitar suas preferências e conceder-lhes a

liberdade máxima de maneira que não impeça igual gozo pelos demais. Só devemos

tolerar qualquer restrição a liberdade quando decorrer de comando legal

democraticamente posto, desde que não suprima a liberdade essencial das

minorias.

O respeito à vontade soberana popular, assegura o uso da razão, esta define

as condições mais importantes da racionalidade do discurso, censurando as

manifestações por meio de dogmas, promessas ou recompensas em outras vidas,

3 Para Kant, o princípio universal do Direito é: “ qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (2003, p. 76-77).

47

bem como deve assegura a liberdade consciente positiva, com igualdade,

fraternidade e solidariedade, incutindo na produção o resultado concreto da norma

jurídica de forma e maneira valida na fundamentação do imperativo categórico, pois

este é o princípio supremo da moralidade fundado na questão da relação entre

direito e moral, na perspectiva kantiana.

A fundamentação da validade das leis jurídicas no chamado imperativo

categórico, sendo este o princípio supremo da moralidade, acerca deste princípio

Alexandre Travessoni Gomes traz alguns esclarecimentos extraídos da

Fundamentação da Metafísica dos Costumes

Na fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant afirma que o princípio da moralidade, o imperativo categórico, é um só: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”(FMC:421). “Antes disso, ao diferenciar os imperativos hipotéticos do imperativo categórico, Kant já havia afirmado que ambos são comandos da razão, os primeiros condicionados, o segundo incondicionado (FMC 414). A razão pode ordenar algo de forma condicionada, isto é, pode ordenar algo que é um bom meio para se alcançar determinado fim (FMC 416), ou pode ordenar um conduta incondicionamente, isto é, uma conduta que nap é meio para se alcançar determinado fim, mas que é um fim em si mesmo, porque é boa em si mesmo (FMC 416). O primeiro tipo de comandos da razão, os imperativos hipotéticos, são regras de destreza (FMC 415), enquanto o segundo tipo, o imperativo categórico, é o imperativo da moralidade (FMC 416) (GOMES, 2009, p. 196-197). .

O princípio supremo da moralidade criado por Kant remonta a máxima de só

pode ser transformado em lei se for apta a ser universalização sem contradição, é o

imperativo categórico, inclusive Alexandre Travessoni Gomes esclarece o sentido

moral deste princípio fundamental:

Esse princípio fundamental é um princípio moral em que sentido? Para responder essa pergunta precisamente entrar na diferença da Metafísica dos Costumes Kant faz algumas importantes diferenciações. Ele começa afirmando que a velha filosofia grega se dividia em física, ética e lógica. Após isso afirma que todos conhecimento racional é ou material, considerando qualquer objeto, ou formal, considerando apenas a forma do entendimento e as regras do pensar em geral. A filosófica formal é a lógica; a filosofia material que se ocupa das leis da natureza é a física , enquanto a que se ocupa das leis da liberdade é a ética (FMC 387). Mas no parágrafo seguinte, e depois novamente outras vezes ainda na Introdução, Kant se refere a essa filosofia das leis da liberdade não como ética têm uma parte pura (racional) e uma parte empírica. A parte empírica da ética se chama antropologia, enquanto a parte racional se chama moral (FMC 388). Ainda na Introdução Kant afirma que o objetivo da Fundamentação é a busca e fixação do princípio supremo da moralidade (FMC 392) (GOMES, 2009, p. 197).

48

Para Kant as ações quando dirigidas externamente e em consonância com a

lei, são denominadas de leis jurídicas, mas, se, todavia exigem que elas sejam o

motivo determinante da ação, aí são chamadas leis éticas. Quando em

conformidade com as leis jurídicas é denominada legalidade e com conformidade

com as leis éticas é denominadas moralidade. (KANT, 2003, p. 76)

Já para Habermas a ética passa a ser neutro, a moral não pode mais ser

fundamento do direito, que passa a ser basear diretamente no discurso, ou seja,

passa a ter uma fundamentação autônoma. Isso não quer dizer que moral e direito

não tenham relação; há uma relação que é, contudo, apenas funcional, como se

constata em Direito e Democracia entre facticidade e validade:

Eu penso que no nível de fundamentação pós-metafísico, tanto as regras morais como as jurídicas diferenciam-se da eticidade tradicional, colocando-se como dois tipos diferentes de normas de ação, que surgem lado a lado, completando-se. Em conformidade com isso, o conceito de autonomia precisa ser delineado abstratamente para que possa assumir, não somente a figura do princípio moral, mas também a do princípio da democracia. (HABERMAS, 2003, p. 139).

Assim, para Habermas, o princípio do discurso fundamental a moral e o

direito. O discurso é a forma reflexivamente intransponível de todo pensar, estando

presente até mesmo no ato de pensar solitário com pretensões de validade. Para,

ele (Habermas), as questões práticas em geral, isto é, as questões que dizem

respeito ao agir humano, podem ser decididas racionalmente e imparcialmente:

...a autonomia moral e política são co-originárias, podendo ser analisadas com o auxilio de um parcimonioso princípio do discurso, o qual simplesmente coloca em relevo o sentido das exigências de uma fundametação pós-convencional. Esse princípio – como o próprio nível pós-convencional de fundamentação no qual a eticidade substancial se dissolve em seus componentes – tem, certamente, um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos. Porém ele se encontra num nível de abstração, o qual apesar desse conteúdo moral, ainda é neutro em relação ao direito e à moral; pois ele refere-se a normas de ação em geral. (HABERMAS, 2003, p. 142).

Contudo, princípio do discurso fundamenta a moral e o direito. A distinção

entre princípio moral e princípio da democracia, ambos como especificação do

princípio do discurso, visa a uma fundamentação jurídica autônoma do direito, a

partir da teoria do discurso. Habermas entende que as pessoas querem regular

legitimamente suas vidas em comum como cidadãos. Para poderem fazê-lo, os

49

cidadãos precisam do médium direito, que passa a ser constituído por eles próprios,

enquanto sujeitos de direito, pressupondo, portanto sua autonomia. A constituição

do direito pressupõe então a personalidade jurídica dos cidadãos.

A idéia kantiana é remontada por Habermas, que não admite tão somente a

fundamentação moral do direito, eis faltava autonomia jurídica se o legislador se

encontrasse vinculado a “fatos morais”. Nesse caso, o legislador se limitaria a

positivar normas morais, assim sendo, o individuo participam no processo legislativo

como sujeitos de direito, e não sujeitos morais, isso é claro não quer dizer que

argumentos de ordem moral não possa ser utilizados no processo legislativo. Não

obstante moral e direito sejam co-originários, continua existindo uma relação entre

moral e direito, que não é, porém, de fundamentação.

Para Habermas,

O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo legislativo que, por sua vez, se apóia no princípio da soberania do povo. Com o auxilio dos direitos que garantem aos cidadãos o exercício de sua autonomia política, deve ser possível explicar o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade. (HABERMAS, 2003, p. 114).

A teoria discursiva do direito, como vimos em algumas passagens, promove

um nexo interno entre os anseios subjetivos morais racionais e a autonomia pública,

modelando um sistema de direitos que está na origem da associação voluntária de

cidadãos que legitimamente elaboram e recebem o seu direito positivo, ou seja, são

fonte e destino. Com a teoria discursiva do Estado Democrática de Direito,

Habermas pretende remontar o liame interno entre direito e poder político. Destarte,

uma associação consensual pelos cidadãos livres e iguais, ao instituir um Estado

constitucional, transforma-se em uma comunidade jurídica dotada de uma instância

central com autoridade para atuar em nome de todos.

Vale frisar, no entanto, que o poder estatal, necessário na medida em que

organiza, executa e sanciona os direitos constitucionalmente assegurados, não é,

segundo Habermas, umas espécie de suplemento, mas, ao contrario, uma

decorrência do próprio sistema de direitos. “o poder político não é extremamente

justaposto ao direito, mas é pressuposto e se estabelece na forma do direito”.

50

Pode-se ir além do que foi posto, o Estado Democrático de Direito assenta

não apenas no poder político, revestido de uma forma meramente jurídica, mas

alinhada a um direito legitimamente promulgado.

Os estados de regimes políticos autoritários possuem uma esfera de poder

hipertrofiada em relação ao direito. Com isto, a legitimidade do poder torna-se

questionável. As limitações impostas à liberdade, por conseguinte, não seriam

éticas, legítimas, e, portanto, o direito fundamental estaria sendo desrespeitado. O

legalismo cego e formal pode tornar-se arma para referendar abuso de poder e

restrição ilegítima às liberdades individuais. Percebe-se, então, que a despeito de

ser atualmente o direito fundamental de liberdade assegurado em documentos

legais ao redor do mundo, existe uma conotação ética que lhe serve de razão última

e principal. Seria característica metajurídica, para alguns, mas inegavelmente não

pode ser questionada.

A restrição à liberdade pela legalidade deve ser formalmente e materialmente

válida. Formalmente quanto às regras preestabelecidas de formação, limites e

conteúdo da lei. Materialmente quanto à legitimidade tanto das regras

preestabelecidas quanto do poder que impõe as leis e que se encarrega de garantir

o seu cumprimento.

Para Marcelo Neves, “O direito vale não apenas porque é posto, mas sim

enquanto é posto de acordo com um procedimento democrático, no qual se

expressa intersubjetivamente à autonomia dos cidadãos” (2008, p. 114).

O conteúdo das leis é também fonte de considerações éticas. Pode uma lei

ser formalmente válida e emanada de poder legítimo, e mesmo assim ser

moralmente considerada inválida, enquanto limitadora do conteúdo das liberdades.

Neves afirma que,

O que se pressupõe necessariamente é que as regras do jogo democrático do Estado de Direito sejam respeitadas por todas as partes, ou seja, imprescindível é o consenso procedimental. A quebra das regras do jogo importa a destruição da soberania ou, mais radicalmente, a ausência dos procedimentos democráticos implica a própria inexistência do povo. Este, enquanto pluralista, manifesta-se soberanamente na dissensualidade dos procedimentos. Os grupos, valores, interesses e exigências vitoriosos em uma eventualidade procedimental não podem ser absolutizados como expressão da “vontade geral” ou do “bem comum”, mas apenas como governantes ou parlamentares periódicos, normas jurídicas vigentes ou decisões coletivamente vinculadas (políticas), sempre suscetíveis de substituição, alteração ou revogação em outras eventualidades procedimentais. (NEVES, 2008, p. 165)

51

Daí concluir-se que a soberania não é suscetível de ser atribuída ao Estado

como organização dos sistemas jurídico e política, mas sim à pessoa, à corporação

ou ao grupo que detém o poder, assim como a legitimidade do poder não é

suficiente para que a legalidade seja legítima, é necessário também que o conteúdo

das leis seja expressão da soberania popular fundada em um discurso racional.

3.2 Entre facticidade e validade racional essencial ao direito

No item anterior seguimos a trilha do direito pós-moderno ao alinhavar o

entendimento de que a soberania popular efetiva-se através da participação livre e

voluntária em instancias deliberativas ou consultivas, fundada em um discurso

racional e em nome de bases meramente estratégicas de preservação de uma paz

sistêmica se transforma no “verdadeiro lugar da integração social (HABERMAS,

2003, p.50).

Os indivíduos não podem ser destinatários inertes da legalidade produzida,

uma vez que estes comandos normativos devem ser submetidos ao devido processo

legislativo e ao devido processo legal, que concebido por uma vontade ativamente

soberana, e que somente assim, pode carrega a salutar legitimidade da lei,

constituindo em um dos pilares da consolidação do Estado Democrático de Direito.

Pode-se afirmar ainda que a soberania popular é a espinha dorsal de

qualquer democracia, pois somente através da participação soberana popular

externada por um discurso racional, podemos legitimar o direito.

No presente item, repousaremos o tema legitimidade da norma, no aspecto

da formação de vontade democrática, para tratar da permanente tensão entre

facticidade e validade inseparável ao Direito. A validade social que carrega força

impositiva a norma jurídica no mundo fático concreto e, a seu assentimento racional

ou legitimador, neste contexto seguiremos ao influxo de Habermas.

Em linhas de uma tensão estável entre facticidade e validade, a constituição

de uma comunidade jurídica autônoma determina a desatenção, em termos pós-

metafísicos, de uma razão prática e a ascensão de uma razão comunicativa,

norteadora da legitimidade do Direito não no plano metafísico, mas no plano

discursivo e procedimental.

52

Kant já discorria acerca desta relação essencial ao Direito ao entender que

era possível uma tensão posicionada entre coerção e liberdade, firmada na validade

jurídica. A liberdade de ação ou a de condição pode geralmente coexistir com a

liberdade de todos de acordo com uma lei universal, qualquer individuo que impede

a ação de outrem ou a sua condição produz injustiça, uma vez que este obstáculo

(resistência) não pode coexistir com a liberdade na forma recomendada pela lei

universal.

Para Kant,

Disso também resulta que não se pode requerer que esse princípio de todas as máximas seja ele próprio, por sua vez, minha máxima, isto é, não pode ser exigido que eu dele faça a máxima de minha ação, pois qualquer um pode ser livre enquanto eu não prejudicar sua liberdade mediante minha ação externa, ainda que eu seja inteiramente indiferente à sua liberdade ou quisesse de coração violá-la. Que eu constitua como minha máxima agir justamente é uma exigência que a ética me impõe (KANT, 2003, p. 77).

Por outro lado, ainda que pretensões jurídicas estivessem já desde sempre

atreladas à autorização para a coerção poderiam também, a qualquer momento, ser

seguidas pelo respeito à lei. Haveria mesmo uma só interpretação entre o dever e o

moral, ao passo que a diferença estaria na motivação da ação. Destarte, não

impedia uma ação conforme o dever, o que demonstrava que as normas do Direito

seriam ao mesmo tempo, normas de coerção e de liberdade.

Habermas faz uma releitura ao inovar, inaugurando o tratamento da questão

sob uma ótica que chamou de teoria da ação comunicativa, indo além dos

elementos conceituais kantiano, ao apontar para os limites dessa concepção ao se

referir ao problema da legitimidade. O atendimento a lei não posiciona tão somente a

partir da postura de sujeitos que buscam manter um linear privado de liberdade.

Marcelo Neve pontifica os limites kantianos na tensão entre facticidade e

validade,

Na análise da tensão entre facticidade e validade, Habermas recorre reconstrutivamente a Kant. No modelo Kantiano, a validade do direito relaciona-se com a conexão entre coação e liberdade. A coerção só se justifica com impedimento de um obstáculo à liberdade. Nesse sentido, associa-se necessariamente ao direito – definido como o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode conciliar-se com o arbítrio do outro, conforme uma lei geral da liberdade – a faculdade de coagir (NEVES, 2008, p. 111).

53

Sob a perspectiva da teoria da ação comunicativa, Habermas constrói uma

nova leitura sob a tensão entre facticidade e validade adequada ao direito moderno

e a realidade social, encetando a fragmentação redundante em um Direito e uma

Moral que detêm uma gênese comum.

Luiz Moreira explicita a estratégia de Habermas,

A vida em uma sociedade complexa e altamente especializada e invocada como justificativa para a descrição habermasiana de uma fundamentação da moral e do direito pelo princípio do discurso moralmente neutro. Esta estratégia de diferenciação resulta no exercício de uma coordenação normativa do direito e da moral que encontraria abrigo no princípio do discurso. Este, ao desdobrar-se, ao especificar-se, implicaria normas jurídicas e normas morais (HABERMAS, 2002, P. 161).

Luiz Moreira na obra Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e

democracia,

O projeto de Direito e democracia: entre facticidade e validade consagra-se ao estabelecimento de uma posição entre a facticidade do Direito positivo e a abstração da teoria metafísica do Direito Natural. Sua estrutura consiste na distinção entre princípio do discurso, princípio moral e princípio jurídico. A justificativa para tal projeto decorre, como quase tudo em Habermas, de uma explicitação funcional da transição a totalidade própria ao mundo ingênuo esfacela-se, resultando em uma complexidade e multiplicidade especificamente modernas. É na transição da “bela totalidade” para a fragmentação da era Moderna que surgirão o Direito e a Moral próprios de um tempo pós-metafísico (MOREIRA, 2004, p 196-197).

Habermas (2003) entende que o direito surge como um sistema social que

utiliza a racionalidade estratégica para consolidar anseios de comportamento

mediante uma racionalidade processual formal que serve para legitimar e gerar

confiança nos cidadãos quanto à subordinação legal, o que também invade o mundo

da vida, aumentando a juridificação das relações sociais. Para viabilizar uma

explicação da possibilidade da integração social e não apenas funcional, na

sociedade moderna, Habermas altera, em Direito e Democracia: entre a Facticidade

e Validade, pelo lado da teoria da ação comunicativa, o papel desempenhado pelo

sistema jurídico.

A Ação comunicativa revela-se factível na medida em que “as interações se

interligam e as formas de vida se estruturam” (HABERMAS, 2003, p. 20),

construindo uma unidade ou integração que se complementam para buscar efeitos

que se difundem na forma possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras,

54

divorciada da razão prática por não estar cingida a nenhum “ator singular nem a um

macrossujeito sociopolítico” (HABERMAS, 2003). Para Habemas,

Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com um destinatário sobre algo mundo, vê-se forçado a adotar um enfoque performativo e a aceitar determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as conseqüências da interação e que resultam de um consenso. E o que está embutido na base de validade da fala também se comunica às formas de vida reproduzidas pela agir comunicativo. A racionalidade comunicativa manifesta-se num contexto descentrado de condições que impregnam e formam estruturas, transcendentalmente possibilitadoras; porém, ela própria não pode ser vista como uma capacidade subjetiva, capaz de dizer aos atores o que devem fazer (HABERMAS, 2003, p. 20).

Surgindo a partir dai o direito como responsável pela integração social entre o

mundo da vida e os sistemas sociais, uma vez que permite aos cidadãos tanto o uso

da racionalidade estratégica, ou seja, ação orientada para o êxito, quando o agente

obedece à lei pelo temor da coerção ao avaliar se o benefício auferido pela

transgressão da lei vale o custo que pode advir das sanções previstas na lei, por um

lado, quanto pela racionalidade comunicativa, ou seja, ação é orientada para o

entendimento recíproco, quando o agente age motivado pelo respeito à lei,

convencido de sua legitimidade.

Habermas (2003) explica que, para realizar a função de integração social na

sociedade complexa, o direito moderno desenvolveu uma tensão entre facticidade e

validade, porque permite aos sujeitos, usando a racionalidade estratégica,

considerarem o direito como um fato social dotado de vigência quando agem

orientados pelo êxito na medida em que comparam os custos e benefícios da ação a

partir da coação das sanções previstas na lei, bem como possibilita àqueles que

agem orientados para o entendimento recíproco segundo a racionalidade

comunicativa, buscarem um consenso racionalmente motivado através do

reconhecimento da validade da lei.

O possível assentimento fático estar sujeito ao enfoque performativo dos

partícipes de discursos racionais, enquanto a facticidade ou validade social das

normas jurídicas determinar-se-ia pelo seu grau de impositividade no círculo de seus

destinatários, a validade dessas normas, no sentido de legitimidade, medir-se-ia não

pelo fato de ela conseguir impor-se, mas pela possibilidade de resgate discursivo da

55

pretensão de correção normativa dela advinda. “A validade social de normas do

direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou seja, pela sua

possível aceitação fática no círculo dos membros do direito” (HABERMAS, 2003, p.

50).

Quanto à validade convencional dos usos e costumes firma em uma

facticidade meramente artificial da ameaça de sanções definidas consoante o direito

e que podem ser determinas pelo tribunal. Todavia, o que se apura, por derradeiro,

“é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional – ou o fato de que

elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista pragmáticos, éticos e morais”

(2003, p 50), portanto a legitimidade de regras se subsume através da

resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa.

A força que asseguraria a legitimidade das normas vai de encontro com o fato

em que a mesma é fruto de um processo legislativo racional, passado pelo crivo

participativo ativo, ainda que na forma indireta de participação da sociedade civil, no

interior de uma esfera pública4 intersubjetivamente conformada. A blindagem das

normas jurídicas é assegurada pelos argumentos pragmáticos, éticos e morais

viabilizados pelos discursos racionais ou instrumentalizada pelas negociações

depuradas pelo procedimento legislativo.

Como essa aceitabilidade poderia decorrer de uma política crítico-deliberativa,

consolidada em uma compreensão de democracia radical que subentenderia a co-

originalidade entre Direitos Humanos e soberania popular, e, assim, a

complementaridade entre constitucionalismo e democracia, é ainda uma questão

que carece de explicação.

A positividade do direito, segundo Habermas, viria já

acompanhada da expectativa de que o processo democrático da legislação fundamentasse a suposição da aceitabilidade racional das normas estatuídas. Na positividade do direito não chega a ser manifestar a facticidade de qualquer tipo contingente ou arbitrário da vontade e, sim, a

4 Habermas conceitua esfera pública como “fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação,

o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social”. Entende Habermas que: “A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicos enfeixadas em terras específicos”. ou, ainda, “em sindicatos e partidos políticos, Igrejas, instituições pias e assistenciais, “public interest groups” formadoras do chamado terceiro setor, tais como as organizações não governamentais, no trabalho da imprensa livre, nas diversas formas de expressão literária, artística ou estética difundidas pelos diversos mecanismos de comunicação de massa e até mesmo na comunicação difusa propiciada pela internet” (CRUZ, 2008, p. 119-120)

56

vontade legítima, que resulta de uma autolegislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente autônomos (HABERMAS, 2003, p.30).

Na positividade do direito, deve ser caracterizada em uma vontade legítima,

que se deve à autolegislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente

autônomos. Isso tem relevo, pois a liberdade não é interpretada negativa e

instrumentalmente. Os atores não são concebidos de um ponto de vista partidário,

como se buscasse apenas a manutenção dos seus respectivos espaços de

liberdade.

Gisele Cittadino afirma em seu livro Pluralismo Direito e Justiça Distributiva

Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea,

A formação racional da vontade – ou formação discursiva da vontade – não significa simplesmente a aceitação de uma negociação ou equilíbrio entre interesses particulares concorrentes, pois, nesta hipótese, a racionalidade comunicativa estaria ainda vinculada à eticidade de um mundo concreto. A formação racional da vontade pressupõe um exercício público de discussão comunicativa, em que todos os participantes fixam a moralidade de uma norma a partir de um acordo racionalmente motivado (CITTADINO, 2009, p. 93).

Desta feita, a tensão interna entre facticidade e validade não se apresenta

singelamente nos termos kantianos na co-relação entre a coação e liberdade. Em

Habermas, essa tensão frutifica em múltiplos níveis.

Marcelo Neves apresenta a distinção entre a tensão interna e a externa,

A externa refere-se à situação do direito perante os imperativos funcionais de uma sociedade supercomplexa. Habermas enfrenta essa questão, discutindo-se os conceitos sociológicos de direito e o conceito filosófico de justiça. De um lado, critica tanto o modelo ideológico-crítico de origem marxista, segundo o qual o direito pertence à “superestrutura”e é reduzido a um epifenômeno, quanto o paradigma sistêmico da autopoiese. Em ambas as perspectivas não seria considerada a dimensão da fundamentação jurídica (NEVES, 2008, p. 112).

Em função de toda estrutura teórica, exatamente por estar voltado

empiricamente, não impossibilitava a leitura das normas jurídicas como completos

limitadores externos do espaço de alternativas, por parte principalmente daqueles

que pautassem sua conduta, única e exclusivamente, na procura pelo êxito pessoal.

Para aquele que elegesse por agir comunicativamente, contudo essas normas

jurídicas situar-se-iam “no nível de expectativas obrigatórias de comportamento, em

57

relação às quais se supõe um acordo racionalmente motivado entre parceiros

jurídicos” (HABERMAS, 2003, p. 52), Desta forma, segundo Marcelo Neves, sua

aceitabilidade importa que, na situação ideal do discurso, pressupondo igualdade e liberdade dos participantes, a norma seria observada por qualquer sujeito que se orientasse na busca do consenso racional. No direito de uma sociedade supercomplexa, a tensão entre aceitabilidade e aceitação complica-se quando é enfrentada em termos de princípios morais universalistas (NEVES, 2008, p. 114-115)

Contudo, entende Habermas (2003), que não haveria como se furtar

completamente dessa perspectiva comunicativa, eis que mesmo aqueles que

agissem habitualmente com vistas ao êxito singular, não poderiam, por vezes, abrir

mão do agir comunicativamente. Em alguns ambientes onde a ação comunicativa

revelasse manifesta apenas em alguns momentos, comprometida estaria a

possibilidade de integração social entre os co-cidadãos. Esta última ponderação,

irremediavelmente, torna claras as dificuldades enfrentadas pela pretensão de

legitimidade do Direito com espeque na teoria da ação comunicativa, sobretudo por

desvelar o peso da solidariedade social que sopesaria, sob essa perspectiva, sobre

os ombros dos cidadãos.

Habermas (2003) reconhecia essa limitação, tanto que chegou a pontificar

que essa circunstância sobrecarregaria a tensão entre facticidade e validade

inerente ao Direito, impondo-lhe, desta feita a partir de fora, uma sobrecarga de

facticidade social:

Nos imperativos funcionais de sociedades extremamente complexas, entra em jogo uma facticidade social que não mantém mais uma relação interna com a pretendida legitimidade da ordem jurídica. A autocompreensão normativa pode ser desmentida através de fatos sociais que intervêm no sistema jurídico a partir de fora. Aqui a facticidade e validade encontram-se numa relação externa, pois ambos os momentos, o das implicações de sentido do direito vigente e o das limitações sociais, às quais as decisões jurídicas estão submetidas de fato, podem ser descritos isoladamente (HABERMAS, 2003, p. 55)

Habermas intencionalmente buscou unir perspectiva sociológico-científica a

uma abordagem normativa-filosófica, tornando-as imanentes à relação entre Direito,

democracia e Estado social. Para isso, ele criticou tanto as abordagens ideológicas-

critico de origem marxista, segundo o qual o direito pertence à “superestrutura” e é

reduzido a um epifenômeno, incapaz de promover inclusão social, quanto o

paradigma sistêmico da autopoiese. Em ambas as perspectivas não seriam levadas

58

a dimensão da fundamentação jurídica. De outro lado, crítica a teoria da justiça de

Rawls. Este, ao enfatizar a questão da justiça, desconsideraria a dimensão fáctico-

social do direito. “Sem a visão do direito como sistema empírico de ação”- afirma

Habermas – “os conceitos filosóficos permanecem vazios”. (2003, p. 90).

Para Habermas (2003) o Direito seria um sistema empírico de ação capaz

promover, para além da simples segurança jurídica, a integração social no interior de

uma sociedade complexa como a nossa. Ele teria capacidade de promover a

mediação entre um mundo da vida, reproduzido através do agir comunicativo, e os

sistemas sociais funcionais, estranhos e circundantes uns aos outros. Nesse

sentido, o Direito poderia cumprir a função variante entre mundo da vida e sistemas

sociais funcionais (como a econômica e a burocracia administrativa), uma vez em

que tornasse compreensíveis, para os últimos, os influxos provenientes da esfera

pública, ou que exigisse a manutenção interna de um código binário, como nos

sistemas sociais funcionais, no trato das matérias regulares juridicamente, após a

sua fundamentação discursiva:

O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral de comunicação, socialmente integradora, se rompa. Mensagens normativas só conseguem circular em toda a amplidão da sociedade através da linguagem do direito; sem a tradução para o direito, que é complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, esses não encontrariam eco nos universos de ação dirigidos por meios (HABERMAS, 2003, p. 82)

A aptidão de o Direito cumprir a função de agente causador da integração

social, além da simples função gerar segurança jurídica, através da previsibilidade

das expectativas de conduta, é ponto que se destaca Habermas em relação a

abordagem de Luhmann.

Por fim, todas as vezes em que Direito levasse em conta os influxos

provenientes da sociedade civil, produzidos de forma mais ou menos organizada na

esfera pública, formando um sistema de direitos que coloca a autonomia pública

numa relação de pressuposição recíproca. E vice-versa, – a tal ponto que os

afetados pelas normas jurídicas pudessem assentir com seus conteúdos, por terem

participado ainda que indiretamente, da sua configuração –afloraria um sistema

legítimo, capaz de promover a integração social.

Lado outro, se todas as vezes que os influxos provenientes do mundo da vida

fossem colonizados pelos sistemas econômicos e político, seja a partir da lógica do

59

dinheiro ou do poder, perceber-se-ia uma tradução ilegítima para a forma do Direito.

Nesse caso, ao invés de o Direito tornar compreensível para os sistemas os influxos

comunicativos provenientes do mundo da vida, seriam os sistemas que, colonizando

o mundo da vida, forjaria o modelo do sistema jurídico que eles “gostariam” que

fosse cunhado e definido o formato jurídico. Assim, ao invés de manifestar-se como

sistema empírico de ação capaz de contribuir para a integração social, o Direito

manifestar-se-ia como um sistema integrante da superestrutura de poder, que

contribuiria, entre outras coisas, para a dominação social de uma classe por outra.

Nas palavras de Habermas, isso escancararia a tensão externa ao Direito entre

Facticidade e validade:

A tensão entre o idealismo do direito constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica, especialmente de um direito econômico, que simplesmente reflete a distribuição desigual do poder social, encontra o seu eco entre as abordagens filosóficas e empíricas do Direito. [...] [...] o código do direito não mantém contato apenas com o médium da linguagem coloquial ordinária pelo qual passam as realizações de entendimento, socialmente integradora, do mundo da vida; ele também traz mensagens dessa procedência para uma forma na qual o mundo da vida se torna compreensível para os códigos especiais da administração, dirigida pelo poder, e da economia, dirigida pelo dinheiro. Nesta medida, a linguagem do dinheiro pode funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida (HABERMAS, 2003, p. 63/112).

3.3 O direito como integridade

Do item anterior, pode-se extrair alguns desdobramentos conclusivos, com

especial pertinência ao presente trabalho: colhemos a teoria sobre o modo como o

direito é percebido pelos sujeitos. O direito é percebido ao mesmo tempo como fato,

ou seja, algo que está posto como ato de poder e que deve ser obedecido sob a

ameaça de sanção e como norma, ou seja, algo que pode ser reconhecido e

obedecido voluntariamente por um agente racional. Essa concepção se baseia na

idéia de que o direito moderno é produzido democraticamente, motivo por que as

normas que se tornam obrigatórias ao fim do procedimento legislativo carregam

consigo a presunção de serem esclarecidas e corretas.

60

As características de normas jurídicas bem sucedidas são outro ponto de

relevo extraído do item anterior. As normas devem poder ser obedecidas tanto em

vista dos interesses do agente, quanto em vista da correção de seu conteúdo.

No presente item, vamos cuidar do direito na forma de aplicação e para tanto

traçaremos um caminho aberto para aperfeiçoar o Direito. Empenhado nesta busca,

o filósofo norte-americano Ronald Dworkin em seu livro Império do Direito (2003)

apresenta uma concepção interpretativa que se diferencia das concepções do

convencionalismo e do pragmatismo por basear-se no princípio da integridade, que

por sua vez deve expressar uma concepção coerente de justiça e equidade.

Na teoria Dworkiana do direito como integridade pressupõe que o direito brota

de uma interpretação reflexiva e construtiva do sistema jurídico como um todo,

discute-se, do ponto de vista teórica, os fundamentos dessa teoria do direito,

apontado, inicialmente, as críticas ao convencionalismo e ao pragmatismo e, assim,

revelando uma terceira vertente teórica, a integridade no direito, exeqüível na viés

dos princípios legislativo e o jurisdicional.

Para Dworkin, a integridade política consubstancia em dois princípios: sendo

um legislativo, exerce a função de exigir dos legisladores que estabeleçam um

ordenamento coerente, ou melhor, “que pede aos legislativos que tentem tornar o

conjunto de leis moralmente coerente” (2003, p. 213), e o segundo intitulado por

Dworkin como princípio jurisdicional, “que demanda que a lei, tanto quanto possível,

seja vista como coerente nesse sentido” (2003, p. 213).

Na teoria direito como integridade, Dworkin entende que existem certos ideais

que padecem de busca, quais sejam:

os ideais de uma estrutura política imparcial, uma justa distribuição de recursos e oportunidades e um processo equitativo de fazer vigorar as regras e os regulamentos que estabelecem. Para ser breve, vou chamá-los de virtudes da equidade, justiça e devido processo legal adjetivo (DOWRKIN, 2003, p. 202).

Dworkin (2003) afirma através da teoria do direito como integridade, que a

teoria política busca os ideais da estrutura imparcial da política, uma justa

distribuição de recursos e oportunidade e um processo equitativo de fazer valer as

regras e os regulamentos que os estabelecem. Agrupados a estes ideais, Dworkin

intitula-os como integridade. Essa exigência singular de moralidade política pode ser

61

entendida tomando por base o princípio da igualdade, no qual devemos tratar os

casos iguais de forma semelhante.

Acrescenta Dworkin nas distinções entre dois formatos de integridade: a

integridade na deliberação judicial e na legislativa.

A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação de direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas públicas. A segunda requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas (DWORKIN, 2003, p. 210)

O convencionalismo apresenta-se como sendo uma forma de interpretação do

direito, abalizada exclusivamente em normas e precedentes, que se divide em

“convencionalismo “estrito”, restringe a lei de uma comunidade à extensão explícita

de suas convenções jurídicas, como a legislação e o precedente” (DWORKIN, 2003,

p. 152) e a “segunda, que vamos aqui chamar de convencionalismo “moderado”,

persiste em que o direito de uma comunidade inclui tudo que estiver dentro da

extensão implícita dessas convenções” (DWORKIN, 2003, p. 152). O pragmatismo

por sua vez, almeja sempre o melhor para o futuro da comunidade, de maneira

menos rigorosa do que se apresenta inicialmente, eis que reconhece argumentos

estratégicos pelas quais as leis devem ser geralmente aplicadas de acordo com seu

sentido pretendido e manifesto.

Dworkin apresenta diferenças práticas entre as duas teorias:

A diferença prática entre as duas teorias da jurisdição é, portanto, a seguinte: em um regime convencionalista, os juízes não se considerariam livres para alterar regras adotadas conforme as convenções jurídicas correntes, exatamente porque, após o exame de todos os aspectos da questão, uma regra diferente seria mais justa ou eficiente. Em um regime pragmático, nenhuma convenção desse tipo seria reconhecida, e ainda que os juízes normalmente ordenassem o cumprimento de decisões tomadas por outras instituições políticas no passado, eles não reconheceriam nenhum dever geral da fazê-lo (DWORKIN, 2003, p. 158)

O Direito como integridade renuncia que as manifestações do Direito

consistam apenas em relatos factuais do convencionalismo, remetendo para o

passado, ou mesmo sejam propostas instrumentais do pragmatismo jurídico,

lançadas para o futuro. Reforçam em que as afirmações jurídicas são manifestações

interpretativas que, pelo motivo que se apresentam, alinham elementos que se

retroagem tanto para o pretérito quando para o futuro. Interpretam a prática jurídica

62

contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento contínuo e

permanente.

O raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva. O nosso

direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas que

brotam a cada dia. “O Direito como integridade é, portanto, mais inflexivelmente

interpretativo do que o convencionalismo ou o pragmatismo” (DWORKIN, 2003, p.

272).

O convencionalismo alude que os juízes analisem os repertórios jurídicos e

os registros parlamentares para prolatar suas decisões na ocorrência de assuntos

tidos como difíceis, de forma que serão adotadas pelas instituições às quais

convencionalmente se atribui poder legislativo, lado outro, o pragmatismo exige que

os juízes pensem de modo instrumental sobre as melhores regras que repercutiram

no futuro.

Já a teoria da integridade recomenda que os juízes, no linear do possível,

considerem ser o Direito estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a

justiça, a eqüidade e o devido processo legal, e pede-lhes que os apliquem aos

novos casos que se lhes apresentem, de tal maneira em que a situação seja sempre

justa e eqüitativa.

Dworkin apresenta a melhor interpretação construtiva da prática jurídica:

Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. (DWORKIN, 2003, p. 272)

O direito como integridade tem características mais complexas com relação à

ramificação do Direito, pois o princípio de integridade pede para que os juízes

tornem o Direito coerente como um todo, nos limites de suas possibilidades.

Dworkin não hierarquiza a integridade em grau superior ao da justiça,

equidade e devido processo legal:

Para nós, a integridade é uma virtude ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal, mas isso não significa que, em alguma das duas formas assinaladas, a integridade seja necessariamente, ou sempre, superior às outras virtudes. (DWORKIN, 2003, p. 261-262)

Assim, o Direito poderia ser mais bem sucedido, se fosse além dos limites

impostos pelos resistentes acadêmicos e submetesse alguns de seus segmentos a

63

um aperfeiçoamento radical, tornando-os mais compatíveis uns com os outros. A

compartimentalização do Direito seria algo meramente pedagógico, pois o Direito é

um todo que se completa moldado sob a ótica constitucional.

Dworkin menciona no primeiro capítulo de sua obra império do direito,

advogados acadêmicos que se auto intitulam realistas para dar uma conotação mais

severa ao pragmático jurídico, alguns foram além, ao realizar declarações

provocativas carregadas de grande satisfação a respeito de sua posição:

Os advogados acadêmicos que mencionei no primeiro capítulo, que se autodenominavam “realistas”, fizeram o pragmatismo parecer muito radical. Alguns deles encontravam grande satisfação nas declarações provocativas que faziam a respeito de sua posição: o direito não existe, diziam, ou o direito não passa da previsão do que farão os tribunais, ou é apenas uma questão daquilo que os juízes tomaram no café da manhã. As vezes fazem essas afirmações radicais na forma de teorias semânticas: alguns afirmavam que as proposições jurídicas são sinônimo de predições daquilo que os juízes farão, ou que não passam de expressões da emoção, não sendo portanto, de maneira algumas, proposições de fato. (DWORKIN, 2003, p. 187)

Os casos denominados de difícil resolução apresentam-se diante de qualquer

magistrado, e quando sua análise preliminar não fizer prevalecer uma entre duas ou

mais interpretações de acordo com as leis aplicáveis, deve este fazer uma escolha

racional perguntando-se qual delas é a mais adequada do ponto de vista da moral

política, da estrutura das instituições e decisões aceitáveis pela comunidade.

Diferentes juízes vão divergir sobre cada uma dessas questões e

conseqüentemente, adotarão pontos de vista diferentes sobre aquilo que deveria ser

aplicado a determinado caso utilizando sempre as normas aplicáveis à comunidade.

Os diferentes aspectos da abordagem de trabalho de um juiz são sensíveis ao

seu juízo político, expressam obrigatoriamente seu compromisso com a integridade.

O magistrado ao assegurar um interpretação que esteja abaixo de seu limiar de

adequação revela o histórico da comunidade sob uma ótica negativa, pois propor

este modo interpretativo sugere que a comunidade tenha por atributo desonrar

princípios.

Pelo fato de não aceitar a opinião popular, a visão integralista fica dentro do

Direito seriamente mal compreendida e aceita, dizendo que não existem respostas

exclusivamente certas nos casos conturbados dentro da esfera do próprio Direito.

Nestes casos, o juiz vai valer-se de suas escolhas pessoais, já que não possui

embasamentos para amparar sua opinião, sendo um cidadão comum, mero portador

64

de um cargo público com capacidade decisória. Desta forma, não há como provar se

a opinião do magistrado, seguindo determinada linha de raciocínio, na omissão da

lei, é mais justa que a maneira pensada por um do povo.

Admite-se, no entanto, que é possível encontrar um conjunto de princípios

coerentes, vigoráveis em cada área do Direito, de modo que se ajustem de maneira

plausível dando razoabilidade às decisões judiciais. Os juízes podem divergir em

suas decisões sobre o Direito, sob seu ponto de vista teórico. Divergências

interpretativas-teóricas são constitutivas e responsáveis pela construção dinâmica

do Direito.

Conclui-se, portanto, que o convencionalismo se ajusta mal às práticas

jurídicas. Todavia, o convencionalismo é ainda mais desejável que o pragmatismo,

apesar de se afirmar o caráter renovatório na legislação e no processo decisório no

caso do pragmatismo. Afinal, o convencionalismo cria limites necessários ao poder

institucional conferido aos juízes e aos legisladores ordinários.

O convencionalismo, bem como o pragmatismo e a integridade, é nada mais

do que uma concepção interpretativa do direito. No entanto, adota uma postura

descrente ao negar que as decisões políticas do passado apresentem justificativa

para o uso ou não do poder coercitivo do Estado. O poder do Estado justifica-se na

eficiência da própria decisão.

Dworikn recomenda como eleger o melhor método:

Para decidir os casos, os juízes devem seguir qualquer método que produza aquilo que acreditam ser o melhor para o futuro da comunidade. Os juristas pragmáticos fundamentam suas decisões tendo em vista, por exemplo, uma comunidade mais rica, mais feliz, mais poderosa, menos injusta, com uma melhor tradição cultural ou ainda com uma melhor qualidade de vida. (DWORKIN, 2003, p.273)

Rejeita o pragmatismo aquilo que outras concepções do direito aceitam, que

as pessoas podem claramente ter direitos e que, estes direitos, prevalecem sobre o

que asseguraria um melhor futuro à sociedade.

Tal concepção é rejeitada por Dworkin porque, agindo “como se” as pessoas

tivessem direitos, os juízes estariam atuando, como no convencionalismo, por meio

de uma coerência estratégica, negando qualquer necessidade de respeitar ou

assegurar a coerência de princípios. Ademais, a proposta pragmatista sustenta,

teoricamente, os fundamentos de uma análise econômica do Direito, acreditando

estar veiculando a decisão que reverterá um beneficio social maior para a sociedade

65

como um todo. Nesse contexto, a idéia de direito torna-se instrumental e se

apequena diante de decisões políticas desconectadas de uma moralidade

substancial e crítica.

Para Dworkin (2003), o direito como integridade, todavia, oferece uma

interpretação mais adequada da prática jurídica e do modo como os juízes decidem

os casos difíceis do que as outras duas concepções consideradas acima. A

integridade é um ideal político autônomo, uma virtude como equidade, a justiça e o

devido processo legal adjetivo. A equidade significa a estrutura correta para o

sistema político, àquele que distribui de maneira adequada entre os cidadãos a

influência sobre as decisões políticas. A justiça representa o resultado correto dos

sistemas político, a distribuição correta de bens e oportunidades. O devido processo

legal adjetivo refere-se à aplicação de regras através de procedimentos corretos.

Há filósofos que rejeitam a idéia de fragmentar justiça, equidade e devido

processo legal, entendendo que uma deriva da outra. John Rawls, na clássica obra

Teoria da Justiça, apresenta o extremo da idéia denominada justiça como equidade,

“Alguns afirmam que, separada da equidade, a justiça não tem sentido, e que em

política, como na roleta dos jogos de azar, tudo aquilo que provenha de

procedimento baseados na equidade é justo”. (DWORKIN apud RAWLS, 2003 p.

214).

Dworkin apresenta outros pensamentos em relação à fragmentação de justiça

e equidade:

Outros pensam que, em política, a única maneira de pôr à prova a equidade é o teste do resultado, que nenhum procedimento é justo a menos que tenda a produzir decisões políticas que sejam aprovadas num teste de justiça independente. Esse é o extremo oposto, o da equidade como justiça. A maioria dos filósofos políticos – e, creio, a maioria das pessoas – adota o ponto de vista intermediário de que a equidade e a justiça são, até certo ponto, independentes uma da outra, de tal modo que as instituições imparciais às vezes tomam decisões injustas, e as que não são imparciais às vezes tomam decisões justas. (DWORKIN, 2003, p. 214).

Estas virtudes são independentes e algumas vezes podem se confrontar. Nos

casos de conflito, a integridade deve funcionar como o elemento de coesão e de

sustentação da harmonia entre justiça, equidade e devido processo. Tanto que o

legislativo não deve promulgar leis conciliatórias apenas preocupando-se com a

equidade.

66

A integridade impõe que o Estado e a comunidade ajam de acordo com um

conjunto único e coerente de princípio, tanto no momento de legislar quanto no

momento de proferir decisões judiciais. Para se defender o princípio da integridade,

deve-se também orientar a argumentação no sentido de atribuir à comunidade um

status de agente moral, a saber, de repositório de valores morais compartilhados

pelos seus integrantes.

A comunidade personificada, conceito indispensável para compreender o

direito como integridade, é um ente distinto e autônomo em relação a seus cidadãos.

A vontade da comunidade não é a simples soma das vontades de seus cidadãos

nem uma média dessas vontades. Representa os princípios morais e políticos

subjacentes àquela comunidade.

Dworkin reconhece que há diferentes opiniões sobre problemas de moral que

considera da maior importância:

Pareceria decorrer de nossas convicções sobre a equidade que a legislação sobre essas questões morais não deveria restringir-se à aplicação da vontade da maioria numérica, como se seus pontos de vista fossem unânimes, mas que deveria ser também uma questão de negociações e acordos que permitissem uma representação proporcional de cada conjunto de opiniões no resultado final. (DWORKIN, 2003, p. 293).

Para que possa existir uma comunidade verdadeira, segundo Dworkin (2003),

as obrigações devem ser especiais, pessoais, gerais e igualitárias. As obrigações de

um membro com relação a outros membros do mesmo grupo são especiais porque o

colocam numa posição de pertença ao grupo. Essas obrigações vão se

especificando à medida que se tornam pessoais. A relação entre os membros não

decorre de uma razão coletiva, mas antes de uma razão individual. O respeito se dá

tanto pelo sentimento de pertença ao grupo quanto pelo reconhecimento do

indivíduo em si. Ainda, as obrigações serão gerais, embora referidas ao indivíduo,

pois a cada um dos indivíduos são atribuíveis direitos e deveres que, estes, sim,

devem decorrer de uma noção de coletividade.

Por fim, há de haver igualdade na concessão desses direitos e deveres a

cada um dos indivíduos, evitando-se, pois, diferenciações e discriminações não

justificáveis no momento da atribuição.

Verifique que o todo indivisível derivado dessas obrigações constitui a idéia

de comunidade personificada. Melhor ainda, esse todo se legitima de acordo com o

67

ideal da fraternidade. Essa atitude fraterna requer, em síntese, que todos sejam

tratados com igual consideração e respeito. Embora divididos em projetos,

convicções e interesses, os indivíduos estão unidos numa comunidade, com faz ver

Dworkin (2003). Nesse ponto, destaca-se o elemento íntegro de todo o repositório

teórico estrutural proposto por Dworkin, a fraternidade. A integridade se cria e se

recria a partir dessa moralidade substancial advinda da comunidade. Ao se legislar e

ao se adjudicar, veicular-se a partir de pontos de partida dogmáticos e de

precedentes o fator moral como estruturante de todo esse processo jurídico.

Podemos afirmar que os objetivos do direito como integridade são aqueles

que trabalham para descobrir até que ponto os juízes têm, diante de si, caminhos

abertos para aperfeiçoar o Direito ao mesmo tempo em que respeitam as virtudes da

fraternidade que a integridade serve.

68

4 O ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL E O SISTEMA NORMATI VO BRASILEIRO

4.1. Estado de Direito Ambiental

Dentre as múltiplas ações do homem em sua trajetória desenvolvimentista,

inclui-se a de ter tomado para si os recursos naturais e, de posse deles, ter passado

a investir irracionalmente contra o meio ambiente.

Numa outra iniciativa, agrupou-se em sociedade, a princípio sem poder e sem

organização – requisitos que somente foram elaborados com o estabelecimento de

um pacto entre os autores sociais. A partir daí, o individuo, de forma consciente e

deliberada, abre mão – parcial ou totalmente – de seu arbítrio, a fim de outrem o

exerça e implemente as regras de convívio social e de subordinação política.

Configurou-se, assim, o que os filósofos do século das luzes5 nomearam de contrato

social: estava, pois, constituído o corpo social e político a que se denominou Estado.

A essência da criação do Estado visa garantir uma relação harmônica entre

os indivíduos, que, vivem em permanente e pujante necessidade de afiançar e

manter satisfeitos os anseios que justificam a própria existência desse mesmo

Estado. No entanto, tais anseios são precisamente a soma dos desejos pessoais,

ilimitados e subjetivos de cada indivíduo, que, coligados, formam a sociedade, sendo

sempre uma especificidade das necessidades, uma opção particular do indivíduo.

Isso acaba por gerar a insaciabilidade do consumo, causando a imperiosa

necessidade de produção em grande escala. E, para aplacar a insaciável produção,

a sociedade, de caráter dinâmico, mutável, competitivo e sempre a expandir, valeu-

5 O Iluminismo caracteriza-se como movimento que brotou na França do século XVII e defendia o

domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo os filósofos iluministas, as trevas em que se encontrava a sociedade, os pensadores que defendiam estes ideais acreditavam que o pensamento racional deveria ser levado adiante substituindo as crenças religiosas e o misticismo, que, segundo eles, bloqueavam a evolução do homem. O homem deveria ser o centro e passar a buscar respostas para as questões que, até então, eram justificadas somente pela fé. O apogeu desse movimento foi atingido no século XVIII, que, passou a ser conhecido como o Século das Luzes . O Iluminismo foi mais intenso na França, influenciou a Revolução Francesa através de seu lema: Liberdade, igualdade e fraternidade. Também teve influência em outros movimentos sociais, como na independência das colônias inglesas na América do Norte e na Inconfidência Mineira, ocorrida no Brasil. Os Principais expoentes que criticavam o absolutismo, chamados de pensadores iluministas foram: Rousseau, Montesquieu, Voltaire, Locke, Diderot e D’Alembert.

69

se da exploração ilimitada e desordenada da matéria prima, tornando o meio

ambiente cada dia mais vulnerável.

Com o discurso contraditório e imediatista da extração da matéria-prima para

o conforto da sociedade, deu-se início à degradação do meio ambiente, intensificada

a partir da revolução industrial iniciada na Inglaterra,- marco indelével do século XX,

que inculcou na humanidade a necessidade vertiginosa do consumo. Por

consequência, impôs o aumento da produção e, obviamente, o aumento da extração

desordenada dos recursos naturais, aumentando a exploração e a destruição do

meio ambiente.

A revolução industrial marcou paradoxalmente a humanidade. Por um lado,

positivamente, considerando-se o avanço social e político na América do Norte e na

Europa nos países chamados industrializados, além do progresso tecnológico. Por

outro, marcou negativamente pela ameaça permanente ao meio ambiente,

desencadeada pela necessidade contínua e crescente da extração de matéria-

prima.

Os países chamados industrializados, no intuito de captar matéria-prima mais

barata e ampliar o mercado consumidor de seus produtos, lançaram-se na

dominação de terras na África e na Ásia. Essa dominação deu-se por meio de

guerras entre colonizados e colonizadores, e até mesmo entre os próprios

colonizadores. Acirrou-se a rixa entre países que queriam mais domínios,

especialmente a Itália e a Alemanha, extremamente descontentes com a partilha da

Ásia e da África, ocorrida no final do século XIX, pois haviam ficado de fora no

processo neocolonial. Enquanto a França e a Inglaterra podiam explorar diversas

colônias, ricas em matérias primas e com grande mercado consumidor.

Nesse contexto, a eclosão da 1. Guerra mundial, historicamente atribuída à

serie de acontecimentos que se seguiram à morte do Arquiduque Francisco

Ferdinando, sobrinho do Imperador Francisco José e herdeiro do trono austro-

húngaro e sua esposa Sofia, assinados em Sarajevo. Hoje se sabe que a morte do

herdeiro do trono imperial não passou de um mero estopim para o início das

batalhas, e não causa direta, com se falou ao longo dos tempos. A origem é mais

profunda, envolvendo uma multiplicidade de fatores, da ordem de política nacional,

cultura, economia e, sobretudo imperialismo, que buscava mercado consumidor e

matéria-prima para abastecer o consumo próprio e do mercado conquistado. E,

70

numa relação direta, é atingida o meio ambiente, que, por sua vez, após o início da 1

Grande Guerra, experimenta novas formas de agressão.

Segundo Baracho Júnior,

A catástrofe da Primeira Guerra Mundial, consequência do uso inédito de armamentos resultantes daqueles mesmos avanços tecnológicos (explosivos, couraçados, metralhadoras, gases letais, aviões, blindados), deslocou os países nela envolvidos de uma situação de otimismo e despreocupação em relação à engenhosidade técnica, registrada em anos recentes, para um quadro de preocupações crescentes (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 11).

Vencida a fase do conflito mundial armado, manteve-se uma forte

concorrência comercial entre os países industrializados. Principalmente na disputa

pelos mercados consumidores e matérias-primas, geraram-se vários conflitos de

interesses entre as nações; e nessa atmosfera hostil, os países estavam

empenhados em uma rápida corrida armamentista, precavendo-se ante a

possibilidade de atacar ou ser atacados pelos países concorrentes.

A segunda Grande Guerra, mais uma vez, é marcada pela desordem

econômica na maior parte da Europa ocidental, situação que se acrescem a queda

da Bolsa de Nova York, para propagar-se a todos os setores da economia, atingindo

a produção tanto de alimentos quanto de matéria-prima. O Estado, diante do caos

produzido pela guerra e letárgico em adotar ações efetivas e a premente

necessidade de retomar o desenvolvimento, não somente de forma relativa e voltada

para o plano econômico, como também abarcando todos os setores, viu-se

impotente para solucionar o problema dentro de uma perspectiva liberal. Desse

modo, teve que repaginar o liberalismo para dar respostas efetivas à caótica e

devastadora condição sociais pós-guerra.

José Rubens Morato Leite, na obra Direito à Democracia: ensaios

transdisciplinares expressa o seguinte entendimento:

Importante lembrar que houve uma evolução do Estado Liberal, passando pelo Social até o atual modelo Ambiental, razão pela qual Canotilho adverte os dois extremos pelos quais não se deve compreender nem conduzir o Estado de Direito Ambiental, pois do lado do Estado Liberal seria um minimalismo ambiental, já na perspectiva do Estado Social seria um Estado de Providência Ambiental. De fato, o Estado Ecológico necessita de uma perspectiva mais ampla do que a Liberal e Social, podendo se falar na dimensão jurídica irradiante, que tem como elemento não só o poder/dever do Poder Público, mas de toda a coletividade em função de bem difuso e coletivo, não pertencente exclusivamente a ninguém e sim as gerações presentes e futuras de forma solidárias. (LEITE, 2011, p. 220-221).

71

A dificuldade imposta pela economia liberal na solução do problema foi dando

espaço à construção de ideias fundamentais para que o Estado liberal se fosse

transformando e intervindo silenciosa e progressivamente na economia, até que se

convertessem em Estado Social. Essa intervenção foi gerando mecanismos

institucionais destinados especialmente à proteção dos menos abastados. “As

formulações abstratas e vagas do Estado liberal de direito cedem lugar ao

reconhecimento de direitos concretos do indíviduo e à ampliação dos direitos civis

clássicos” (SOARES, 2000, p. 101).

Baracho Júnior afirma:

No Estado liberal os processos de disputa política e econômica se travaram no cenário da sociedade civil, sem que ocorressem intervenções significativas. A teoria crítica aponta para um substituição de tais processos por uma atuação interventiva do Estado e suas análises são bastante úteis quando procuramos as razoes que levaram o Estado contemporâneo a definir normas que intervêm nos processos que alteram as condições do meio ambiente (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 29).

Na transição do Estado liberal para o Estado social de direito, sobreveio

expressiva mutação na normativa constitucional, que ecoou em sua interpretação.

Perquiriu-se a superação dos direitos públicos subjetivos, de índole individualista,

através dos direitos fundamentais, abrangendo, além das liberdades tradicionais

(pessoais, civis e políticas), os direitos econômicos, sociais e culturais, ampliando-se

a proteção aos interesses sociais e coletivos devidamente fundamentado nos

direitos constitucionais.

Com o fim do Estado Liberal, ficou também remota a perspectiva meramente

abstrata da realização da igualdade, que preteria as ideias de diversidades, não

permitindo um agir mais efetivo para um lado e menos para o outro, acarretando o

nivelamento dos mais fracos com os mais fortes, para pôr fim a latente

incongruência sob determinado ponto de vista, entre dois ou mais elementos

comparados. “Neste sentido, a igualdade liberal o era apenas no sentido formal, pois

os fatores que circunstanciam a vida dos homens impediam a sua efetivação”

(BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 31).

O manto da igualdade aplicada tão somente pela perspectiva formal, na qual

se pretendia buscar a submissão de todos perante a lei, afastando-se o risco de

qualquer discriminação, por entender que tratamento uniforme de todas as classes

sociais seria justo em função da característica geral e abstrata da lei-, destarte não

72

favorecia ou prejudicava nenhum grupo-, revelou-se inócuo na prática, pelo

desequilíbrio das necessidades das classes sociais, recomendado um busca de

realização de justiça social efetiva.

Segundo Baracho Júnior,

Sob esta perspectiva, o tipo de democracia que se afirmou ao longo de século XX buscou caminhos para minimizar as diferenças reais (materiais), através de mecanismos normativos que interferiam nas estruturas existentes na sociedade civil. Nestas transformações, começa a se configurar o Estado social (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 31).

A derrocada do Estado liberal passou pelo projeto político e industrial que

violou os direitos humanos e o meio ambiente, tornando-os supérfluos e

descartáveis, vigorando a lógica da destruição, em que cruelmente suprimiu o valor

do ser e da natureza. Marcou a história como um estágio que despertou na

humanidade a necessidade da socialização dos direitos fundamentais, deslocando o

foco da preocupação centrada no individuo e nos ideais da esfera individual negativa

dos cidadãos e a não intromissão estatal em certas matérias para focalizar com mais

intensidade na própria coletividade, reservada a livre manifestação dos agentes

políticos, atuantes na sociedade civil, para inaugurar o inicio do Estado Social

intervencionista que determina a atenção às garantias coletivas sociais.

Baracho Júnior afirma,

Do ponto de vista social, os conflitos surgem em razão da deterioração da qualidade de vida. Assim, os conflitos situam-se não apenas no plano interno dos fatores econômicos, mas são agravados pela autuação dos agentes sociais. Novamente o Estado intervencionista busca agir no sentido de minimizar os conflitos e, via de regra, temos os conflitos de natureza ambiental, que neste particular são de natureza política, transportados para plano normativo (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 29-30).

O Estado social, por sua vez, não foi capaz de abarcar os ideais do bem-estar

social em todos os seus setores e também em se manter assistencialista. A falta de

ações efetivas revelou para a sociedade o quão é prejudicial o ostracismo. Nesse

cenário de insatisfação, o Estado social entra em colapso. Diante do não

cumprimento das promessas neoliberais, o cidadão sai da inércia para

discursivamente ser partícipe do projeto, construção e aplicação das soluções da

sociedade. Surge, então, essa racional formação da opinião e vontade pública,

permitindo dar inicio a formação do Estado Democrático de Direito.

73

Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, nasce uma nova

concepção de ecologia, passando a ter tratamento explícito nos textos

constitucionais. Evidencia, desse modo, a necessidade de uma tutela efetivamente

adequada, que coloque o meio ambiente na escala de valores essenciais de uma

determinada sociedade, sendo “critério reitor da vida social” (PRADO, 2009, p. 67).

“A Constituição Federal brasileira de 1988 não ficou indiferente a esse

processo de constitucionalização” (PRADO, 2009, p. 69); buscou o legislador

constituinte consignar obrigações preventivas e repressivas, com foco na tutela do

meio ambiente natural e cultural, ao destacar formas de conter os problemas

advindos da atual sociedade vulnerável e de risco, convertendo-se em uma

preocupação de todos. Dessa forma, criou mecanismos para assegurar as

operações básicas das esferas jurídicas e políticas na preservação da natureza em

todos os seus elementos essenciais à vida humana e à manutenção do equilíbrio

ecológico. Moldou-se a estrutura das instituições, tendo como metas o

gerenciamento de riscos ambientais e atraindo novas finalidades, bem como

reconhecendo direitos até então ignorados pelas tradicionais formas de Estado

(Liberal e Social). O atual modelo optou, de forma inquestionável, por um direito

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado em conformidade como o

que dispõe o artigo 225 da Constituição Federal: “Todos têm direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à

sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de

defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”. Isso desencadeou

uma passagem para o Estado de Direito Ambiental, atento a uma perspectiva ligada

à pós-modernidade.

Nesse contexto, José Afonso da Silva afirma, em seu livro Direito Ambiental

Constitucional:

As Constituições Brasileiras anteriores à de 1988 nada traziam especificamente sobre a proteção do meio ambiente natural. Das mais recentes, desde 1946, apenas se extraía orientação protecionista do preceito sobre a proteção da saúde e sobre a competência da União para legislar sobre água, florestas, caça e pesca, que possibilitavam a elaboração de leis protetoras como o Código Florestal e os Códigos de Saúde Pública, de Águas e de Pesca. A Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se dizer que ela é uma Constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da “Ordem Social” (Capítulo VI do Título VIII). Mas a

74

questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional. (SILVA, 2010, p. 46).

A consciência ambientalista constitucional somente tomou corpo nas

constituições contemporâneas mais recentes, abandonando o trato legal meramente

de “atribuições de órgãos ou de entidades públicas, como ocorria em Constituições

mais antigas” (SILVA, 2010, p 43). É sinal de preocupação ecológica, que suscitou a

luta universal pela defesa do patrimônio comum ecológico, que, por sua vez,

consignou regras de reação contra as formas de degradação ao meio ambiente,

traço seguido pela Constituição Brasileira, que a exemplo de Constituições

estrangeiras que a antecederam

Constituição da República Federal da Alemanha, de 1949, ao declarar que a legislação concorrente entre a União (Bund) e os Estados (Lander) abrange “a proteção do comércio de produtos alimentares e estimulantes, assim como de artigos de consumo, forragens, sementes e plantas agrícolas e florestais, a proteção de plantas contra enfermidades e pragas, assim como a proteção de animais” e, também, a “eliminação do lixo, combate à poluição e luta contra ruído” (art. 74, 20 e 24), e que a União tem o direito de determinar normas gerais sobre caça, a proteção da Natureza e a estética da paisagem (art. 75, 3). A Suíça desde 1957 vem emendando sua Constituição (que é de 1874), visando a estabelecer normas de proteção ambiental, sem embargo de que o seu art. 24 já dispusesse sobre a proteção das florestas, especialmente nas regiões em que cursos d’águas tenham nascentes. Mas foi uma Emenda Constitucional de 1957 que iniciou a série de dispositivos voltados, deliberadamente, para a proteção de recursos ambientais.” “confere competência à Confederação para emanar disposições legislativas para proteger o Homem e seu ambienta natural contra os agentes danosos e molestos. Ela, assinaladamente, combate a poluição atmosférica e sonora. Em geral, a execução dessas disposições cabe aos Cantões, a não ser onde a lei a atribua à Confederação. No sentido mais caracteristicamente ambientalista a primazia cabe à Constituição da Bulgária, de 1971, que, em seu art. 31, declara que “a proteção, a salvaguarda da Natureza e das riquezas naturais, da água, ar e solo (...) incumbe aos órgãos do Estado e é dever também de cada cidadão”. Seguiu-se a de Cuba, de 1976, cujo art. 27 dispõe que ao Estado e à Sociedade incumbe proteger a Natureza, para assegurar o bem-estar dos cidadãos, assim como velar por que sejam mantidas limpas as águas e a atmosfera e protegidos o solo, a flora e a fauna. No sentido mais caracteristicamente ambientalista a primazia cabe à Constituição da Bulgária, de 1971, que, em seu art. 31, declara que “a proteção, a salvaguarda da Natureza e das riquezas naturais, da água, ar e solo (...) incumbe aos órgãos do Estado e é dever para assegurar o bem-estar dos cidadãos, assim como velar por que sejam mantidas limpas as águas e a atmosfera e protegidas o solo, a flora e a fauna. A Constituição da União Soviética, de 1977 (hoje revogada), mais especificamente ambientalista, estabeleceu, no seu art. 18: No interesse da presente e das futuras gerações se adotam na URSS as medidas necessárias para a proteção e o uso racional, cientificamente fundamentado, da terra e do solo, dos recursos hídricos, da flora, da fauna,

75

para conservar limpos o ar e a água, assegurar a reprodução das riquezas naturais e o melhoramento do meio ambiente. Contudo, foi a Constituição Portuguesa, de 1976 – anterior, portanto, à da União Soviética -, que deu formulação moderna ao tema, correlacionado-o com o direito à vida,quando, no seu art. 66 (mantido nas revisões posteriores). A Constituição do Chile, de 1981, também prescreve o direito de viver em um meio ambiente livre de contaminação e que é dever do Estado velar para que este direito não seja afetado, assim, como é também seu dever tutelar a preservação da Natureza. Prevê, mesmo que a lei poderá estabelecer restrições específicas ao exercício de determinados direitos ou liberdades, para proteger o meio ambiente. (SOUZA, 2010, p. 43-44).

Séculos de exploração indiscriminada do meio ambiente, aliados à

urbanização desenfreada, à explosão demográfica e à sociedade de consumo, criou

no contexto da sociedade contemporânea, uma situação de alto risco e de

incertezas do futuro. Além disso, impôs ao Estado tomar medidas para garantir o

direito de um meio ambiente equilibrado, bem como o uso sustentável dos recursos

naturais em beneficio das gerações presentes e futuras. Exigiu respostas científicas

e jurídicas para as indagações da real dimensão do dano ambiental e sua

consequência para o futuro, que também necessitará dos recursos naturais não

apenas para energia e materiais, mas, sobretudo, para os processos vitais para a

manutenção da vida, tais como os ciclos do ar e da água.

“A pressão dos organismos internacionais conduziu a uma universalização da

luta pelo ambiente, colocando em questão uma nova forma de solidariedade entre

os povos” (PRADO, 2009, p. 63). Firme na imprescindibilidade de solução efetiva

que pudesse garantir um meio ambiente equilibrado para as futuras gerações, a

Carta Magna de 1988 não ficou alheia a esta luta universal e elegeu o capítulo VI do

Título VIII, sobre a “Ordem Social”, o núcleo jurídico da questão ambiental, que,

interligado com outros dispositivos que a ela se sustentam, dão azo à utilização de

mecanismos para a tutela do meio ambiente.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em sua concepção

moderna, integra os direitos fundamentais da pessoa humana, o que, por si só,

justifica a imposição de proteção e a aplicação de sanções na esfera cível e

administrativa. Outro aspecto de grande importância não olvidado pelo constituinte

brasileiro foi o da resposta jurídica às agressões ao ambiente. Também na esfera

penal, que por sua própria peculiariedade de somente intervir em situações de

extrema ratio, ganhou passaporte para atuar em defesa do meio ambiente. Significa

dizer que o legislador constitucional reconheceu que a agressão ao meio ambiente

76

vulnera valores fundamentais da sociedade, implicando a necessidade de proteção

de bens jurídico-penais, de ordem supraindividual (coletivos, difusos ou

institucionais), alçando linhas intoleráveis que se traduzem em objeto de intensa

reprovação do corpo social.

Não restam dúvidas de que o legislador constituinte de 1988 seguiu a trilha de

todas as legislações civilizadas ao reconhecer que o meio ambiente equilibrado é

essencial e elementar à vida humana, considerado como um bem de uso comum do

povo. Assim impõe profundas mudanças nas estruturas da sociedade organizada, de

modo a apontar caminhos e oferecer alternativas para superação da atual feição de

crime ambiental, preservando os valores que ainda existem e recuperando os

valores que deixaram de existir.

Nessa perspectiva, o legislador constituinte acolheu e consagrou os valores a

serem tutelados em todas as arenas do Direito, efetivando a defesa e a promoção

da qualidade da vida humana e a ética ambiental em sentido amplo.

Na trilha da reconhecida natureza de direito fundamental difuso do meio

ambiente ecologicamente equilibrado, age o Estado Democrático de Direito, na

promoção da realização da justiça social através da garantia da vigência e eficácia

dos direitos fundamentais e superação das desigualdades.

Assim, a concretização do Estado de Direito Ambiental é reflexo das

tendências pós-modernas mais atuantes, e descentralizado no trato das questões

ambientais, tais como normas que, privilegiam as medidas preventivas - e não

somente as reparatórias à degradação do meio ambiente. Prioriza políticas

antecipatórias ao dano ambiental, bem como age na imposição da cooperação entre

o Estado e a sociedade para a resolução das questões afetas a degradação

ambiental. Ressalta, enfim, a fundamental importância da participação dos diversos

setores sociais na formulação e na execução da política ambiental.

4.2 Competência concorrente na esfera ambiental

A Constituição Federal vigente no Brasil, promanada na ideia de evitar

concentração absoluta de poder do Estado, valeu-se de mecanismos que pudessem

conter e moderar esse poder. Assim, fragmentou-lhes funções, partilhando-o entre

77

três poderes, e estabeleceu que eles fossem independentes, harmônicos e com

competência distinta para cada órgão Estatal. Diversificou suas funções, afiançou

prerrogativas e imunidades para a consecução de suas atividades, criou

mecanismos de controles recíprocos, garantindo, por conseguinte, a perpetuidade

indissociável ao Estado Democrático de Direito.

Fundado em tais razões, além do historicismo e em verdades pressupostas

neste particular, o legislador constituinte brasileiro, originariamente, criou as

cláusulas pétreas, previstas expressamente no art. 60, parágrafo 4, da Constituição

Federal: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I

– a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III –

a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”.

As cláusulas denominadas pétreas são caracterizadas pela limitação material

ao poder de reforma da Constituição pelo Estado; são disposições que vedam a

alteração, por meio de emendas, tendentes a abolir normas constitucionais relativas

às matérias por elas definidas.

Segundo Habermas,

“normas constitucionais também são mutáveis, e mesmo as normas básicas que uma Constituição declarou não sujeitas a emendas partilham,juntamente com todo o Direito Positivo, do fato que elas podem ser ab-rogadas, digamos, após a mudança de regime” (HABERMAS, p. 122).

A sistematização da divisão material das funções do Estado, bem como sua

separação orgânica fundada na distinção material, refere-se à célebre teoria da

“separação de poderes”, concebida na antiguidade e aperfeiçoada na evolução

histórica.

As primeiras bases teóricas foram lançadas por Aristóteles, em sua obra

“Política”, na qual vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo

poder soberano ao distinguir a assembleia geral, o corpo de magistrados e o corpo

judiciário (deliberação, mando e julgamento).

Todavia, decorrente do contexto histórico, o filósofo descrevia a concentração

do exercício de tais funções na figura de uma única pessoa, o soberano, haja vista

ser ele quem editava o ato geral e resolvia os litígios decorrentes da aplicação da lei.

78

Este momento histórico se reflete na conhecida frase do Rei Luiz XIV, que rompeu a

barreira do tempo e perpetuou-se na história da humanidade: “L’État c’est moi.”6

A teoria foi, em momento posterior, dentro da realidade inglesa, detalhada

pelo filósofo John Locke, no Segundo tratado do governo civil, que também

reconhece a existência de três funções distintas e, dentre elas a executiva,

consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito,

e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente

por meio de alianças.

A doutrina de Aristóteles e Locke trouxe significativa contribuição no que

tange à identificação do exercício das funções estatais, mas o princípio lançado por

eles, ainda que implicitamente, somente ganhou consistência no século XVIII, uma

vez que havia a necessidade de enfraquecer o poder absoluto dos monarcas que

deram unidade política ao Estado Soberano do século XVII. Diante disso,

Montequieu movido pela visão precursora do Estado Liberal Burguês, aperfeiçoou a

teoria da divisão dos poderes em sua obra O espírito das Leis.

Para o pensador, há três poderes: o poder Legislativo, que é o de fazer leis,

por um certo tempo ou para sempre, de corrigir ou ab-rogar as existentes; O poder

Executivo, das coisas que dependam do direito das gentes, isto é, de fazer a paz ou

a guerra, de enviar ou receber as embaixadas, de manter a segurança e de prevenir

as invasões; o poder de julgar ou o poder Judiciário das coisas que dependem do

Direito Civil, que se traduz no poder de punir os crimes ou de julgar os litígios entre

os particulares.

O filósofo formula ainda a técnica do equilíbrio dos três poderes, distinguindo

a faculdade de estatuir da faculdade de impedir, em razão da dinâmica dos poderes,

sendo precursor da noção do método dos freios e contrapesos (checks and

balances).

Na obra O Espírito das Leis, Montesquieu ressalta a divisão dos Poderes,

A divisão no sentido de terem eles funções próprias, não exercitáveis por outro Poder. Funções que se interlaçam muitas vezes, cada Poder concorrendo, dentro da sua esfera, para um desiderato comum, único. Mas, mesmo nessa colaboração, afirma-se a divisão entre eles. Ao atuarem juntos, cada qual intransigente nas suas funções, resultará politicamente, não por expressa disciplina legal, a harmonia entre eles. É assim que se

6 O Estado sou eu.

79

compreende não agirem os Poderes isolados, em áreas estanques, mas agirem concorrentemente, e no entanto, independentes, dentro da realidade política, naturalmente dinâmica (MONTESQUIEU, 2010, p. 28).

Nessa célebre obra, apenas em uma breve passagem, Montesquieu

menciona acerca da sua harmonização, “Esses três poderes deveriam originar um

impasse, uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são

compelidos a caminhar, eles haverão de caminhar em concerto” (2010, p. 29).

O abrandamento da teoria da separação dos poderes, permitindo a

interpenetração entre eles, só foi possível em virtude das realidades sociais e

históricas dos Estados modernos. Diante disso, cada poder, além de exercer suas

funções típicas, imanentes à sua natureza, também passaria a praticar outras duas

funções atípicas.

Assim, tomando como ponto ilustrativo o poder Legislativo, este além de

legislar e fiscalizar, também passaria a julgar e administrar.

Preleciona Canotilho e Moreira que

um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado. (statesmanship). (MOREIRA, 1991, p. 71).

A repartição dos poderes tornou-se princípio fundamental da organização

política liberal e transformou-se em dogma pelo art. 16 da Declaração Francesa dos

Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sendo prevista no art. 2º de nossa

Constituição Federal.

A teoria da divisão dos poderes é falha em sua nomenclatura, eis que o poder

é uno e indivisível, no entanto, o que ocorre é a divisão de suas funções executivas,

legislativas e judiciárias. Assim, o fenômeno gerado é a divisão das funções do

80

poder uno, exercido por seus agentes políticos, que têm a missão precípua de

exercerem atos de soberania.

Para a presente proposta de trabalho, cumpre-nos discorrer somente sobre a

função tipicamente legislativa, que possui como atividade predominante a criação e

modificação do ordenamento jurídico, mediante a edição de normas gerais,

abstratas. e que inovam esse ordenamento, bem como a fiscalização e o controle

dos atos do poder executivo.

A função estatal do legislativo, é limitado e limitador dos demais poderes.

Limitado pela Constituição porque só pode elaborar leis constitucionais; limitador,

porque no Estado de Direito não há um poder que possa decidir, a não ser de

conformidade com o dispositivo de uma lei anterior.

Dessa forma, evidencia-se que o poder legislativo é indissociável do regime

democrático, e que “por natureza, corresponde à sociedade; e, como representantes

delas, às câmaras, cuja missão é formular regras públicas em harmonia com as

necessidades de cada época” (Martinez, 2005, p. 918). O poder legislativo pauta-se

pelo controle e fiscalização dos atos do executivo, impedindo-lhes os abusos

ofensivos à liberdades democráticas

A Constituição vigente consagra a organização bicameral do Poder

Legislativo, e, em seu artigo 44, dispõe que o Poder legislativo é exercido pelo

Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e do Senado Federal,

diferentemente dos estaduais, distritais e municipais, onde é consagrado o

unicameralismo.

O bicameralismo do Legislativo Federal está irremediavelmente interligada à

forma federativa de Estado, pois o Senado Federal é composto de representantes

de todos os Estados-membros e do Distrito Federal, consagrando o equilíbrio entre

as partes contratantes da Federação.

A forma de Estado adotada por nosso ordenamento jurídico, qual seja, Estado

Federado, surgiu com a Constituição norte-americana de 1787, resultado da

necessidade de as ex-treze colônias inglesas não regredirem ao Estado Colonial,

pois acabara de conquistar sua independência, objetivando, assim, uma unidade

política suficientemente forte para garantir a independência conquistada. Desse

modo, os Estados passaram a se sujeitar a uma série de princípios e diretrizes

emanadas da Constituição comum.

81

No Estado Federado, na concepção de Kelsen, há uma ordem jurídica central

e ordem jurídica parcial, sendo que a primeira abrange todos os indivíduos que se

encontram no território do Estado, e as outras, os que se acham no âmbito territorial

dos entes federados. A reunião dessas duas ordens jurídicas forma a terceira ordem

jurídica, que é o Estado Federal, comunidade jurídica total.

Como ressaltado por Geraldo Ataliba,

exsurge a Federação como associação de Estados (foedus, foederis) para formação de novo Estado (o federal) com repartição rígida de atributos da soberania entre eles. Informa-se seu relacionamento pela ‘autonomia recíproca da União e dos Estados, sob a égide da Constituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes) (ATALIBA, 1985, p. 10).

Outro ponto atinente ao Estado Federado refere-se à descentralização

político-normativa. No federalismo coexistem dois ou mais entes políticos e

autônomos, com capacidade de auto-organização, unidos por um pacto de

cooperação que se expressa na repartição de competências.

Ao discorrer acerca da autonomia dos Estados-membros, Fernanda Dias

Menezes de Almeida ensina,

Desfrutam os Estados-membros, isto sim, de autonomia, ou seja, de capacidade de autodeterminação dentro do círculo de competências traçadas pelo poder soberano, que lhes garante auto-organização, autogoverno, auto legislação e auto-administração, exercitáveis sem subordinação hierárquica dos Poderes estaduais aos Poderes da União. (ALMEIDA, 2000, p. 24)

A autonomia federativa é sustentada em dois pilares básicos, quais sejam: a

existência de órgãos governamentais próprios que atuam nos seus limites de

abrangência e posse de competências exclusivas. A Constituição reconhece como

elementos inerentes às entidades federativas brasileiras: União, Estados, Distrito

Federal e Municípios.

Afirma o artigo 18 da Constituição da República que a organização política

administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos. O artigo 1º da Constituição afirma

82

que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados

e Municípios, constituindo-se em Estado Democrático de Direito.

O modelo federado, adotado pelo Brasil, tem “estrutura estatal complexa, em

que se manifestam diversas esferas governamentais sobre a mesma população e o

mesmo território” (SILVA, 2010, p. 71), onde as atribuições são exercidas de modo

comum ou concorrente pela esfera da União, a de cada Estado ou do Distrito

Federal e a de cada Município, característica peculiar do Estado Federado

Cooperativo, que teve surgimento durante o século XX, junto com o Estado do Bem-

Estar social, flexibilizando a rigidez do modelo dual (clássico).

Naquele modelo, existe uma aproximação entre os entes federativos, os quais

passarão a atuar juntos, de forma cooperada e autônoma, afinando como a ideia do

conceito do Estado Federal.

Assim, como afirma Raul Machado Horta, nessa Constituição que adota o

modelo cooperativo,

não há exclusivismo em matéria federal e se estabelece um sistema de comunicação entre legislação da União e execução dos Estados, embora ainda se verifiquem pontos de centralização como a submissão das leis estaduais ao governo federal, controladas pelo veto se ferissem interesses federais. (HORTA, 1964)

José Alfredo de Oliveira Baracho, ao analisar as estruturas do Estado

Federado, traz-nos alguns pontos relevantes. Segundo ele,

apesar das diferenças concretas que ocorrem através dos diversos modelos que surgem, apresenta alguns pontos relevantes:

(...)

- a Constituição Federal ordena uma distribuição de competências que determinam as relações entre a federação e os Estados (BARACHO, 1986 p. 24);

O federalismo inovou ao prever dois níveis de poder, um poder central e

poderes periféricos, que devem funcionar autônoma e simultaneamente, diante

disso, vislumbra-se a premente necessidade da partilha de competências entre os

entes federados.

83

A Federação, em sua essência, é um grande sistema de repartição de

competências. E essa distribuição de competências é que dá substância à

descentralização em unidades autônomas.

Essa autonomia, em sua característica principal, qual seja, a edição de

normas próprias, corresponde, no caso dos Estados-membros, à capacidade de se

darem as respectivas Constituições e leis. Sendo assim, não faria sentido

reconhecer a capacidade de auto-organização e auto legislação, sem que existisse

uma definição do objeto passível de normatização pelos Estados. Este é o raciocínio

feito por Raul Machado Horta.

A autonomia do Estado-membro pressupõe a repartição constitucional de competência para o exercício e o desenvolvimento de sua atividade normativa.

O Estado Federal não autoriza que se desvinculem esses dois aspectos fundamentais de sua fisionomia.

A técnica de repartição é elemento específico e essencial ao sistema federal.

E, sob o ângulo da autonomia, a distribuição constitucional de competência entre o governo central e os governos estaduais irá conduzir ao conteúdo da atividade autonômica. (HORTA, 1964, p.49)

A partilha de competências afigura-se um imperativo do federalismo para a

preservação de um relacionamento harmônico entre União e Estados-membros,

assim, a não delimitação das atribuições dos entes, os quais devem coexistir e atuar

concomitantemente, conforme explana Fernanda Dias Menezes de Almeida (2000,

p.29) “tornaria inevitável conflituosa sua convivência, pondo em risco o equilíbrio

mútuo que há de presidir a delicada parceria a que corresponde, em última análise,

a Federação.”

Logo, a repartição de competência é compreendida com a essência do

Estado Federal, em uma estrutura que se propõe a atuação diversa por diferentes

esferas recaindo na mesma população e território.

Nesse sentido, José Alfonso da Silva preleciona:

A teoria do federalismo costuma dizer que a repartição de poderes autônomos constitui o núcleo do Estado Federal. Poder, neste caso, denota a porção de matéria que a constituição distribui entre as entidades

84

autônomas e que passa a compor seu campo de autuação governamental, sua área de competência (SILVA, 2010, p. 71-72).

Competência, assim, conforme ensinamentos do referido autor, “são as

diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais

para realizar suas funções”. (2010, p. 72)”.

Luís Pinto Ferreira define competência como a “capacidade jurídica de agir

em uma esfera determinada”(1989, p. 491).

O princípio que norteia a repartição de competência é o

da amplitude do interesse em jogo. À União dirá respeito tudo quanto concernir ao país em sua totalidade, abrangendo-se, sob este prisma genérico, o âmbito de suas relações internas, e o domínio de suas relações externas. Aos Estados-Membros dirá respeito tudo quanto se vincular a seu próprio território e aos interesses preponderantemente regionais (FERREIRA, 1989, p. 58)

Nesse sentido, caberá à União tratar em matéria ambiental as questões de

predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados competem as matérias

de predominante interesse regional; e aos municípios concernem os assuntos de

interesse local. Em relação ao Distrito Federal, acumulam-se, em regra, a

competências estaduais e municipais.

José Afonso da Silva afirma:

A Constituição de 1988 busca realizar o equilíbrio federativo por meio de uma repartição de competências que se fundamenta na técnica de enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22) com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1º) e poderes definidos indicativamente para os municípios (arts. 29 e 30), mas combina, com esta reserva de campos específicos, áreas comuns em que se prevêem atuações paralelas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23) e setores concorrentes entre União e Estados, em que a competência para estabelecer políticas gerais, diretrizes gerais e normas gerais cabe à União, enquanto se defere aos Estados e até aos municípios a competência suplementar (arts. 24 e 30) (SILVA, 2010, p. 72).

Na concepção de Kildare Gonçalves Carvalho, na “Constituição existem os

seguintes tipos de competência: competência exclusiva, competência legislativa

85

concorrente, competência material comum, competência legislativa supletiva e

competência legislativa complementar” (2009, p. 1002).

Sendo que a competência legislativa se refere à elaboração de leis pelos

entes políticos, enquanto a competência material diz respeito à realização de

diferentes tarefas ou serviços.

Raul Machado Horta concebe que, conforme a Constituição de 1988, a

competência abrange cinco planos distintos,

I – competência geral da União (art. 21, I até XXV; II – Competência de legislação privativa da União (art. 22, I a XXIX, parágrafo XXIX, parágrafo único); III - comum da União, dos Estados, do Distrito Federal dos Municípios (art. 23, I a XII, parágrafo único); IV – competência de Legislação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, I a XVI, § § 1º, 2º, 3º e 4º); V – competência dos poderes reservados ao Estados (art. 25, §1º, e 125, § § 1º, 2º,3º e 4º) (HORTA, 1999, p. 348).

Para o presente trabalho, cumpre explanar acerca da competência de

legislação concorrente, decorrente do artigo 24 da Constituição Federal, que atribui

a concorrência entre a União, os Estados e Distrito Federal para legislar sobre

determinadas matérias.

A competência legislativa concorrente é a exercida por duas ou várias

entidades políticas, desaparecendo a exclusividade, mas mantendo incólume a

hierarquia das normas, segundo a qual a legislação federal tem primazia sobre a

estadual e municipal. É a que “cria outro ordenamento jurídico dentro do Estado

Federal, o ordenamento misto, formado pela participação do titular do ordenamento

central e dos titulares de ordenamentos parciais” (1999, p 356).

A competência concorrente pode ainda ser cumulativa, quando não há

limitação prévia à atuação dos entes políticos, que podem, assim, legislar

ilimitadamente sobre as mesmas matérias; e não cumulativa, quando a união fixa

princípios, diretrizes e normas gerais, e os Estados estabelecem normas de

aplicação, ou específicas às mesmas matérias.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho leciona acerca dos contornos destas

espécies de competência concorrente,

A cumulativa existe sempre que não há limites prévios para o exercício da competência, por parte de um ente, seja a União, seja o Estado-membro. Claro está que, por um princípio lógico, havendo choque entre norma

86

Estadual e norma Federal num campo de compet6encia cumulativa, prevalece a regra da União. É o que exprime brocardo alemão: Bundesrecht bricht landesrecht.

A não-cumulativa é que propriamente estabelece a chamada repartição “vertical”. Com efeito, dentro de um mesmo campo material (concorrência “material” de competência), reserva-se um nível superior ao nível federativo mais alto – a União – que fixa os princípios e normas gerais, deixando-se ao ente federativo, que é o Estado membro a complementação. Diz-se, por isso, que cabe ao Estado membro uma competência “complementar. Admite-se até que, à falta dessas normas gerais, o Estado-membro possa suprir essa ausência (competência “supletiva”). (FERREIRA FILHO, 1990, p. 189)

Diogo de Figueiredo Moreira Neto distingue ainda duas modalidades de

competência concorrente, a clássica e a limitada, segundo o autor, aquela,

é caracterizada pela disponibilidade limitada do ente central de legislar sobre a matéria, até mesmo podendo esgotá-la, remanescendo aos Estados o poder de suplementação, em caso de ausência de norma Federal, ou de complementação acaso por ela deixada. (MOREIRA NETO, 1988, p. 131)

Já a competência concorrente limitada, existe, segundo Diogo de Figueiredo

(1988, p. 133), quando “a União e os Estados legislam limitadamente: a União

devendo limitar-se a baixar ‘diretrizes’, ‘normas fundamentais’ ou ‘normas gerais e os

Estados, as ‘normas específicas’ e de ‘aplicação’.”

Segundo Alexandre de Moraes, “A constituição brasileira adotou a

competência não cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está

adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e Distrito Federal

especificá-las, através de suas respectivas leis (2001, p 293)”.

Em decorrência da atribuição de competência a mais de um ente político, nos

casos de condomínio entre os entes federativos para a sua realização, é possível

vislumbrar um modelo de competência horizontal ou vertical.

No modelo horizontal, não se verifica concorrência entre os entes federativos.

Cada qual exerce sua atribuição nos limites estabelecidos pela Constituição Federal,

sem relação de submissão nem hierarquização.

Segundo Paulo Branco,

87

esse modelo apresenta três soluções possíveis para o desafio da distribuição de poderes entre órbitas do Estado Federal. Uma delas efetua a enumeração exaustiva da competência de cada esfera da Federação; outra, discrimina a competência da União deixando aos Estados-membros os poderes reservados (ou não enumerados); a última discrimina os poderes dos Estados-membros, deixando o que restar para a União” (BRANCO, 2009, p. 850).

No mesmo sentido, Manoel Gonçalves Ferreira filho, explica que a índole da

repartição horizontal, típica do federalismo dual é,

Separar, radicalmente, a competência dos entes federativos, por meio da atribuição a cada um deles de uma “área” própria, consistente em toda uma matéria (do geral a particular ou específico), a ele privativa, a ele reservada, com exclusão absoluta da participação, no seu exercício, por parte de outro ente. (FERREIRA FILHO, 1990, p. 155)

No modelo vertical, a matéria é distribuída entre todos os entes federados,

todavia existe uma relação de subordinação no que se refere à atuação deles.

Desse modo, a União legisla sobre normas gerais e princípios, enquanto caberá aos

Estados legislar completando as normas, com o intuito de tender às peculiaridades

regionais.

O modelo, nas palavras de Paulo Branco, caracteriza-se por estabelecer “um

verdadeiro condomínio legislativo entre a União e os Estados-membros” (2009, p,

850).

A previsão de competência concorrente limitada, que na Constituição de 1946

abarcava somente seis casos, foi ampliada para sete na primeira versão da

Constituição de 1967, passando para nove depois da Emenda n. 1/69. Essa

tendência agora se acentua enormemente: na órbita dessa competência se incluem

mais de trinta temas discriminados nos dezesseis incisos do artigo 24, sem contar os

que se encontram deslocados em outros dispositivos da Constituição

A Constituição vigente através artigo 24, estabelece rol taxativo das matérias

suscetíveis de legislação concorrente, quais sejam: Direito Tributário; Direito

Financeiro; Direito Penitenciário; Direito Econômico; Direito Urbanístico; Orçamento;

Juntas Comerciais; Custas dos Serviços Forenses; Produção e consumo; Florestas,

caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos

naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; Proteção ao patrimônio

88

histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; Responsabilidade por dano ao

meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,

turístico e paisagístico; Educação, cultura, ensino e desporto; Criação,

funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; procedimentos em

matéria processual; Previdência social, proteção e defesa da saúde; Assistência

jurídica e Defensoria pública; Proteção e integração social das pessoas portadoras

de deficiência; Proteção à infância e à juventude; Organização, garantias, direitos e

deveres dos policiais civis.

No âmbito de competência legislativa ambiental, a Carta Magna, em seu

artigo 225, impõe ao poder público a obrigação de defender e preservar o meio

ambiente para as presentes e futuras gerações. A ele foi dada a incumbência de

tomar todas as medidas indicativas nos incisos do § 1º do mesmo artigo 225, para

assegurar a efetividade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado.

Poder público é a expressão que se refere a todos as entidades públicas,

visto que o Estado Federal possui, como uma das principais características, a

distribuição desse poder a cada uma das entidades autônomas que a compõem, e

cada qual a exercerá nos limites estabelecidos pela Constituição Federal.

São palavras de José Afonso da Silva:

A Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se até dizer que ela é uma constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre o meio ambiente, inserido no título da ordem social. Mas a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional (SILVA, 2010, p. 46).

Atinente à repartição de competência em matéria ambiental, no entanto,

constata-se um sistema deveras complexo e intricado, posto existir previsão de

competências privativas, comuns e concorrentes para os três níveis de poder das

entidades que compõem a federação brasileira.

José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior adverte:

O federalismo de cooperação, consagrado a partir da Constituição de 1934, tornou mais complexa a repartição de competências, na medida em que a

89

forma horizontal cedeu espaço para a forma vertical, com previsão de competências comuns e concorrentes. (BARACHO JÚNIOR, 2006, p. 272).

Nossa Constituição reservou à União supremacia no que tange à proteção

ambiental. A ela incumbe à política geral do Meio Ambiente, o que já foi

materializado pela lei 6.938, de 1981. Cabe-lhe, ainda, elaborar e executar planos

nacionais e regionais de ordenação do território. É de sua competência exclusiva a

organização do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (art. 21,

IX), bem como a competência privativa para legislar sobre águas e energia (art. 22,

IV).

No que se refere às matérias de cunho ambiental contidas no rol do artigo 24

da Constituição Federal, conferiu-se à União, Estados e Distrito Federal a

competência concorrente para legislar sobre elas, quais sejam: florestas, caça,

pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais,

proteção do meio ambiente e controle da poluição (inciso VI); sobre proteção ao

patrimônio histórico, cultural, artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico

(inciso VII), assim como sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente, a bens

e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (inciso VIII).

Nesse sentido, conforme preconiza o modelo de competência legislativa

concorrente, no âmbito da legislação ambiental, caberá à União a primazia de

legislar sobre normas gerais e, à míngua de tais normas, os Estados e o Distrito

Federal poderão editá-las.

Os Municípios poderão legislar sobre temas de direito ambiental, desde que

respeite as normas editadas pela União ou pelo Estado.

Álvaro Luiz Valery Mirra explana que

norma geral é aquela vinculada ao interesse geral e cuja regulamentação seja necessária em face de uma determinada região ou em face de todo o território nacional. (...) tendo em vista a relação de interdependência entre os inúmeros elementos que compõem o meio ambiente, em virtude da qual uma ruptura localizada de um determinado sistema ambiental pode levar à desorganização de outros sistemas ambientais muito além dos limites territoriais do Município, Estado ou região onde se verificou a ocorrência inicial (MIRRA, 2002, p. 61-63).

90

A norma geral de competência da União deverá deixar espaço para que os

Estados e os Municípios exerçam sua competência suplementar.

A competência suplementar, com previsão no parágrafo 2.º do artigo 24 da

Constituição, por sua vez, possui como escopo a edição de normas que visem

adicionar, ampliar, esclarecer e aperfeiçoar as regras de caráter geral.

Suplemento, para Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1999), é a parte que

se ajunta a um todo para ampliá-lo ou para aperfeiçoá-lo. O que serve para suprir

qualquer falta.

Dessa forma caberá aos Estados e ao Distrito Federal aperfeiçoar as normas

de caráter geral, por meio de sua competência suplementar.

Nesse sentido Paulo Affonso Leme Machado afirma,

Não se suplementa uma regra jurídica simplesmente pela vontade de os Estados inovarem diante da legislação federal. A capacidade suplementária está condicionada à necessidade de aperfeiçoar a legislação federal ou diante da constatação de lacunas ou de imperfeições da norma geral federal. (MACHADO, 2011, p.123)

Cumpre transcrever ainda os ensinamentos de Leonardo Greco que leciona

acerca das peculiaridades das normas gerais, afirmando que,

normas gerais não são apenas linhas gerais, princípios ou critérios básicos a serem observados pela legislação suplementar dos Estados. Normas gerais contrapõem-se a normas particulares. A União, nessas matérias, pode legislar com maior ou menor amplitude, conforme queira impor a todo o País uma legislação mais ou menos uniforme. O que a União não pode é legislar sobre assuntos particulares da esfera de interesses ou de peculiaridades dos Estados. Normas gerais são normas uniformes, isonômicas, aplicáveis a todos os cidadãos e a todos os Estados (GRECO, 2003, p. 23-29).

Em razão do sentido teleológico da norma ambiental, qual seja, a defesa do

meio ambiente, a competência da união para legislar somente sobre diretrizes e

normas gerais é flexibilizada, permitindo a ela legiferar de forma pormenorizada

acerca de determinada matéria, desde que esteja buscando salvaguardar o

interesse geral.

Dessa forma, assevera Álvaro Luiz Valery Mirra que “a proteção ao meio

ambiente recomenda a elaboração de normas específicas e detalhadas, destinadas

a regulamentar o assunto em âmbito nacional (2002, p. 62)”.

91

Diante de tais circunstâncias, a norma ambiental editada pela União, no

exercício de sua competência legislativa concorrente, ultrapassa a esfera de edição

de apenas diretrizes para detalhar, de forma pormenorizada, matéria de cunho

ambiental.

Assim, a dificuldade na delimitação do conceito de normas gerais ambientais

gera conflitos entre a legislação federal e a legislação estadual e distrital, uma vez

que possibilita a diferentes entes políticos a edição de normas ambientais

divergentes entre si.

A problemática, porém, nasce na oportunidade da aplicação dos

mandamentos constitucionais, que, associados à legislação suplementar,

notadamente em caso de competência concorrente, geram invariavelmente a

duplicidade, e às vezes triplicidade de fiscalização pelos órgãos ambientais

responsáveis pela fiscalização no Brasil.

Apenas para ilustrar, podemos citar, subsidiariamente, a lei 6.938, que

dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (parágrafo 1. do art. 11),

taxativamente determina que “a fiscalização e o controle da aplicação de critérios,

normas e padrões de qualidade ambiental serão exercidos pelo Ibama, em caráter

supletivo da autuação do órgão estadual ou municipal.

Surgindo a questão da aplicação da penalidade, o art. 14 da citada lei

preceitua que é “vedada sua cobrança pela União, se já tiver sido aplicada pelo

Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios”.

Laudo outro, suplementarmente, o art. 41 do Decreto 122/91 define que “a

imposição de penalidades pecuniárias, por infração à legislação ambiental, pelos

Estados, pelos Municípios, excluirá a exigência de multas federais, na mesma

hipótese de incidência”.

Dessa forma, a legislação ambiental parece simples quanto à esfera de

competência, contudo, no estrito cumprimento da norma legal vigente, é comum

verificar-se que, além de poder agir apenas supletivamente, os órgãos federais

responsáveis pela fiscalização não podem aplicar multas por infração à legislação de

controle ambiental, quando Estados e Municípios já as houverem aplicado, não

importando, no caso, se as penalidades sejam as constantes de legislação federal

ou particular de Estados ou Municípios.

Mesmo de singela interpretação, ocorre, porém, que tais mandamentos são

pouco atendidos pelos executores da norma. Nas situações de materialização dos

92

comandos legais constata-se o nefasto efeito da competência concorrente, uma vez

que habitualmente os órgãos ambientais dos três níveis praticam atuação tripla a um

único agente causador de um mesmo dano ambiental.

Ainda no campo da teoria, fica fácil a solução. Basta promover a defesa junto

aos três órgãos, pugnando para a anulação da autuação indevida. Ademais, na vida

prática, isso é apenas um início de um longo e árduo caminho a ser percorrido em

fase administrativa, e muitas vezes vão desaguar na esfera judicial, que também dá

inicio a outro longo e árduo caminho.

Podemos ilustrar a falta de interação dos órgãos responsáveis pela

fiscalização ambiental, onde faltam planos de ações coordenadas e conjuntas, a fim

de promover sua função maior de zelar por um meio ambiente sadio. Cite-se o caso

recente do acidente ocorrido na Baía de Guanabara, em que a Petrobrás foi atuada

triplamente pelo mesmo dano ambienta.

Verifica-se que a solução para as dificuldades de aplicação das normas

hauridas da competência concorrente situa-se na interação dos órgãos, ações

coordenadas e conjuntas. Quando ocorrerem conflitos de normas, decorrente do

modelo vertical de atribuição de competência, aplica-se a norma mais benéfica em

relação à natureza, uma vez que no Direito Ambiental vigora o princípio de que in

dubio pro nature.

Nos conflitos entre União e Estados, Paulo José de Farias Leite sustenta que

deve primar pela norma que melhor garanta a efetividade do direito fundamental chancelado, dessa forma, deve-se, fortiori ratione, fixar como diretriz exegética que os eventuais conflitos, nos quais a noção de norma geral e especial não seja suficiente, devem ser resolvidos pela prevalência da norma que melhor defenda o direito fundamental tutelado, por tratar-se de preceito constitucional (lei nacional) que se impõe à ordem jurídica central ou regional (in dubio pro natura) (...). Assim, teleologicamente, assegura-se a possibilidade de norma estadual estabelecer proibições, onde a lei federal permita, bem como que a lei federal estabeleça patamares mínimos de proteção ambiental a serem observados em todo o País, dando-se efetividade à proteção ambiental e ao desenvolvimento autossustentável (LEITE, 1999, p. 356).

Podemos concluir que a consciência ambiental propiciou o surgimento,

evolução e execução das normas ambientais em todo o país, valendo-se da

competência concorrente, exercida simultaneamente sobre a mesma matéria, por

mais de uma autoridade ou órgão, sempre observando o princípio da supremacia da

93

hierarquia das normas, segundo a qual a legislação federal tem primazia sobre a

estadual e municipal e, por via de consequência, a estadual sobre a municipal,

facilitando a proteção do meio ambiente, reconhecido avanço da Constituição de

1988, pródiga no trato da questão que permeiam o meio ambiente.

4.3 Competência normativa dos órgãos ambientais

Consoante o artigo 76 da Constituição Federal, o Poder Executivo é exercido

pelo Presidente da República e auxiliado pelos Ministros de Estado. Edward S.

Corwin (1950, p. 1) assinala que a expressão “Poder Executivo” é de conteúdo

incerto, sendo o artigo II o mais indefinido da Constituição norte-americana.

Essa incerteza acerca das funções do Executivo decorre da fato de as tarefas

do Estado estarem sendo exercidas em demasia pelo Executivo, nos mais variados

setores, tais como o econômico, o financeiro, o social e, inclusive, o ambiental.

Josaphat Marinho (1987, p. 145) diz que, no Brasil, agravam as dificuldades

naturais da estrutura do Poder Executivo “as deformações introduzidas na

engrenagem do regime republicano do governo presidencialista entre nós, desde a

Constituição de 1891”.

Sobre o aumento das atividades do Poder Executivo, de maneira a dificultar-

lhe o delineamento Constitucional, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1988, pag. 152)

observa que esse crescimento físico é tradução de um fenômeno psico-social muito

mais importante, pois é do Executivo que o povo passa a esperar a melhoria de vida

e, portanto, é no Executivo que são postas as esperanças do eleitorado.

O poder executivo constitui órgão constitucional cuja função precípua é a

prática dos atos de chefia de estado, de governo e de administração. Além de

administrar a “coisa pública” – res pública – através de sua função típica, também

legisla e julga, no exercício de suas funções atípicas.

O executivo exerce sua atividade de administração nas esferas federal,

Estadual e Municipal Esse exercício da atividade de gestão estruturada com suas

funções distribuídas de maneira pormenorizada constitui a administração pública.

Afirma Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

94

A palavra administração, etimologicamente, vem do latim, segundo uns, da proposição ad e do ver verbo ministro-as-are, que significa servir, executar, e, segundo outros, ad manus trahere, que envolve ideia de direção e gestão. Daí a possibilidade de lhe emprestar sentido amplo, sem restringi-lo a uma compreensão tão somente de execução subordinada. Lícito, também, se afigura incluir nela a compreensão de deliberação, de comando”. (MELLO, 1979, p. 34)

A Administração Pública é compreendida, numa concepção objetiva, como a

atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve para consecução dos

interesses coletivos; e, subjetivamente, como o conjunto de órgãos e de pessoas

jurídicas, aos quais a lei atribui o exercício da função administrativa do Estado.

José Tavares (1992, p. 21) ensina que administração pública é “o conjunto

das pessoas colectivas públicas, seus órgãos e serviços que desenvolvem a

atividade ou função administrativa”.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro elucida sobre os dois sentidos mais comumente

usados sobre a administração pública.

a) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa os entes que

exercem a atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgão e agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções em que triparte a atividade estatal; a função administrativa;

b) em sentido objetivo, materiais ou funcional, ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo. (DI PIETRO, 2008, p. 49)

Administração pública, em sentido subjetivo, é o conjunto de órgãos, pessoas

jurídicas e agentes que o nosso ordenamento jurídico identifica como tal, não

importando a atividade que exerçam. No Brasil é adotado esse critério, uma vez que

somente é atribuído o caráter de administração pública aquilo que a lei assim define,

sendo composta pelos órgãos integrantes da administração direta e das entidades

da administração indireta.

Por sua vez, administração pública, em sentido objetivo, representa o

conjunto de atividades que costumam ser consideradas próprias da administração

pública, tomando como referência a atividade realizada.

São atividades características da administração pública, em sentido material,

a de serviço público, polícia administrativa, fomento e intervenção.

95

Hely Lopes Meirelles (1995) afirma que administrar, como atividade ou função

administrativa, é gerir bens, interesses e serviços, segundo a lei; a moralidade e a

finalidade de certo patrimônio entregue à guarda, conservação e aprimoramento.

O fim da administração pública é o interesse público ou o bem da

coletividade. Assim deve ser toda atividade administrativa. O fim, e não a vontade do

administrador, domina todas as formas de administração - observa Ruy Cirne Lima

(1982).

A crescente demanda de comodidades e utilidades públicas por parte dos

administrados e a constante assunção, pelo Estado, de atividades antes de

responsabilidade dos particulares, aliada à falta de recursos públicos, têm tornado

menos operante os esforços diretos da administração pública para propiciar à

coletividade bons serviços.

Visando descongestionar, tirar do centro um volume grande de atribuições,

para permitir seu mais adequado e racional desempenho, distribui sua competência

a órgãos ou entidades.

Quando a administração distribui internamente a competência dentro da

mesma pessoa jurídica, está-se referindo ao fenômeno da desconcentração

administrativa. Por outro lado, quando reparte sua competência a uma outra pessoa

jurídica, há a descentralização administrativa, que se constitui na administração

indireta.

Compõem a administração indireta, no direito positivo brasileiro, as

autarquias, as fundações instituídas pelo poder público, as sociedades de economia

mista, as empresas públicas e os consórcios públicos.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona acerca das principais características

dessas entidades:

1. a autarquia é pessoa jurídica de direito público, o que significa

praticamente as mesmas prerrogativas e sujeições da Administração Direta; o seu regime pouco difere do estabelecido para esta, aparecendo, perante terceiros, como a própria Administração Pública; difere da União, Estados e Municípios – pessoas públicas políticas – por não ter capacidade política, ou seja, o poder de criar o próprio direito; é pessoa pública administrativa, porque tem apenas o poder de auto-administração, nos limites estabelecidos em lei;

2. a fundação instituída pelo poder público caracteriza-se por ser um patrimônio, total ou parcialmente público, aqui a lei atribui personalidade jurídica de direito público ou privado, para consecução de fins públicos; quando tem personalidade pública, o seu regime jurídico e idêntico aos da autarquias, sendo, por isso mesmo, chamada de autarquia, fundacional, em oposição à autarquia corporativa; outros preferem falar

96

em fundações públicas ou de direito público; as fundações de direito privado regem-se pelo Direito Civil em tudo o que não for derrogado pelo direito público;

3. o consórcio público é pessoa público é a pessoa jurídica de direito público ou privado criada por dois ou mais entes federativos (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) para a gestão associada de serviços públicos prevista no artigo 241 da Constituição; se tiver personalidade de direito público, é denominada de associação pública, inserindo-se na categoria de autarquia; se tiver personalidade de direito privado, rege-se pela legislação civil, em tudo o que não for derrogado pelo direito público, em especial pela lei n. 11.107, de 6-4-2005;

4. a sociedade de economia mista é pessoa jurídica de direito privado, em que há conjugação de capital público e privado, participação do poder público na gestão e organização sob forma de sociedade anônima, com as derrogações estabelecidas pelo direito público e pela própria lei das S.A. (lei n. 6.404, de 15-12-76; executa atividades econômicas, algumas delas próprias da iniciativa privada (com sujeições ao art. 173 da Constituição) e outras assumidas pelo Estado como serviços públicos (com sujeição ao art. 175 da Constituição).

5. a empresa pública é pessoa jurídica de direito privado com capital inteiramente público (com possibilidade de participação das entidades da Administração Indireta) e organização sob qualquer das formas admitidas em direito. (DI PIETRO, 2008, p. 405-406)

Dessa forma, a administração pública, por meio de seus órgãos e entidades,

visando consolidar suas funções administrativas para colocar em prática a pretensão

da lei, edita distintos atos, cada um com um intento específico, sendo possível citar,

como exemplos, uma portaria, um decreto de nomeação de servidor, uma ordem de

serviço, uma instrução normativa, uma circular, entre outros.

Concebendo-se a divisão das funções dos poderes Legislativo, Executivo e

Judiciário, pode-se expor, em sentido amplo, que todo ato praticado no exercício da

função administrativa é ato da administração, para atingimento dos fins a que se

propõe, decorrentes da lei ou de seu império.

Todo ato versado no exercício da função administrativa denomina-se ato da

Administração, correspondendo, portanto a figura bem mais ampla do que o conceito

de ato administrativo. Ato administrativo “abrange apenas determinada categoria de

atos praticados no exercício da função administrativa”, conforme observação de

Maria Sylvia Di Pietro (2008, p. 179).

Dentre os atos da administração, incluem-se os atos de Direito Privado que

são as doações, a permuta, a compra e venda, a locação, entre outros atos; os atos

materiais da administração, que são atos que envolvem apenas execução; os atos

de conhecimento, opinião, juízo ou valor; os atos políticos, que são os que estão

sujeitos a regime constitucional; os contratos; e os atos administrativos propriamente

ditos.

97

Os atos administrativos enquadram-se na categoria dos atos jurídicos, logo

são sempre manifestações humanas e não meros fenômenos da natureza,

exteriorizando a pretensão de um sujeito dirigida a algum fim.

O que distingue os atos administrativos é o fato de serem manifestações ou

declarações da administração pública, atuando nessa condição ou de particulares

que se encontram exercendo prerrogativas públicas, por terem sido investidos em

funções administrativas. Por serem exercitados no domínio das atribuições públicas,

os atos administrativos estão sujeitos ao regime de direito público.

Maria Sylvia Di Pietro (2008, pag. 185) define o ato administrativo como “a

declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos

imediatos, com a observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a

controle pelo Poder Judiciário”.

Conforme conceitua Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:

Então se pode defini-lo (ato administrativo), no sentido material, ou objetivo, como manifestação da vontade do Estado, enquanto poder público, individual, concreta, pessoal, na consecução de seu fim de criação da unidade pública, de modo direto e imediato, para produzir efeitos de direito. Já no sentido orgânico-formal ou subjetivo, se pode conceituá-lo como ato emanado de órgão encarregados da Administração Pública, compreendendo os integrantes do Poder Executivo, ou mesmo dos outros poderes, desde que tenham a mesma estrutura orgânica-formal daquele como sejam a Secretaria do Legislativo e do Judiciário. (MELLO, 1979, p. 413-414)

No mesmo sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo leciona que o ato

administrativo é:

declaração do Estado (ou de quem lhe faça às vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional. (MELO, 2009, p. 380)

Edimur Ferreira de Faria conceitua ato administrativo como

declaração unilateral da Administração Pública, incluindo o Legislativo e o Judiciário no exercício da atividade administrativa, ou de quem lhe faça as vezes, manifestada por agente competente, comvista ao interesse público, criando, mantendo, modificando, ou extinguindo relações jurídicas ou, ainda, impondo deveres ao cidadão e aos agentes públicos e a si própria, com força de imperatividade. (FARIA, 2011, p. 102)

Os elementos ou requisitos do ato administrativo são os artefatos necessários

para que o ato seja considerado válido, editado em consonância com a lei. O ato

que desatenda a um deles será, em regra, um ato nulo.

98

Cretella Júnior define a anatomia do ato administrativo como “o conjunto dos

cincos elementos básicos constitutivos da manifestação da vontade da

Administração, ou seja, o agente, o objeto, a forma, o motivo e o fim” (1977, p. 22).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2008, p. 192) afirma que “sujeito é aquele a

quem a lei atribui competência para a prática do ato”. Competência define-se pelo

poder legal aferido ao agente público para o desempenho específico das atribuições

de seu cargo; o fim é a finalidade pretendida pela administração; a forma é a

maneira de exteriorização do ato administrativo; o motivo, conforme Edimur Ferreira

de Faria (2011, pag. 119), “é a situação de direito ou de fato objetivo que serve de

causa para edição de ato administrativo; o objeto ou conteúdo é o próprio conteúdo

material do ato. Régis Fernandes de Oliveira (1978, p. 54), fundamentado na lição

de Zanobini, diz que “o objeto é a coisa, a atividade, a relação de que o ato se ocupa

e sobre a qual recai o conteúdo do ato.”

Os atos administrativos exteriorizam-se por fórmulas, ou seja, por decreto,

portaria, alvará, aviso, circular ordem de serviço, resolução, ofício, instrução,

despacho e parecer. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Melo (2009, p. 403),

“não são, em si mesmos, substâncias, conteúdos, mas continentes”.

A portaria, conforme Diogenes Gasparine,

“é a fórmula pela qual a autoridade de qualquer escalão de comando, desde que inferiores ao chefe do pode executivo, expedem orientações gerais ou especiais aos respectivos subordinados ou designam servidores para o desempenho de certas funções ou, ainda, determinam a abertura de sindicância e inquérito administrativo”.(GASPARINE, 2008, p. 90)

A resolução é o meio de que se valem os órgãos colegiados para manifestar

suas decisões em assuntos de sua competência ou para transplantar sobre seu

próprio funcionamento. De forma constante, é empregada em lugar da deliberação,

que é a via própria das decisões dos órgãos colegiados.

A instrução é o procedimento por meio do qual os superiores espedem

normas gerais, de cunho interno, que preceituam a forma de ação dos subordinados

em relação a determinado serviço.

O decreto é utilizado pelos chefes dos poderes executivos para veicular atos

administrativos de sua competência. Pode conter regras gerais e abstratas (decreto

geral), voltada a todas as pessoas indiscriminadamente, da mesma forma que a lei;

99

ou pode referir-se a pessoas determinadas, sendo, nesse caso, decreto de efeito

concreto (decreto individual).

Quando o decreto possui efeitos gerais, conforme Maria Sylvia Zanella Di

Pietro, ele pode ser

1. regulamentar ou de execução, quando expedido com base no artigo 84, IV, da Constituição, para fiel execução da lei;

2. independente ou autônomo, quando disciplina matéria não regulada em lei. A partir da Constituição de 1988, não há fundamento para esse tipo de decreto no direito brasileiro, salvo nas hipóteses previstas no artigo 84, VI, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 32/01. (DI PIETRO, 2008, p. 220)

O decreto geral é ato normativo semelhante à lei, se analisado sob o aspecto

do conteúdo e efeitos, no entanto se difere da lei (ato normativo originário), pois o

decreto regulamentar (ato normativo derivado) não cria direito novo, somente

constitui normas que permitam explicitar a maneira de execução da lei.

O decreto regulamentar é o principal meio pelo qual a administração pública

expressa seu poder normativo.

Os poderes administrativos são o conjunto de privilégios de direito público que

são assegurados aos agentes públicos, com a finalidade de se garantir o

contentamento dos interesses coletivos, fim último do Estado. Representam

instrumentos que permitem à administração cumprir suas finalidades através de

prerrogativas decorrentes do denominado regime jurídico administrativo, garantindo

aos agentes públicos uma posição de superioridade nas relações jurídicas

envolvendo particulares, condição necessária para que possam ser superados os

obstáculos encontrados no exercício das atividades finalísticas.

O Prof. José dos Santos Carvalho Filho descreve poderes administrativos

como “o conjunto de prerrogativas de direito público que a ordem jurídica confere

aos agentes administrativos para o fim de permitir que o Estado alcance seus fins”.

(2009, p. 42)

Em correspondência, de modo geral, por tutelarem interesses coletivos,

impõe-se aos agentes públicos uma série de deveres. Em determinadas hipóteses,

pode-se mesmo assegurar que os poderes administrativos convertem-se em

verdadeiros deveres administrativos.

Enquanto no campo privado o poder é faculdade daquele que o detém, no

domínio público importa um dever do administrador para com a comunidade que

100

representa. Trata-se, dessa forma, de poder-dever, visto que é reconhecido ao

poder público para que o exerça em benefício da coletividade.

Destacam-se, entre os poderes administrativos, o poder vinculado, o poder

discricionário, o poder hierárquico, o poder disciplinar, o poder de polícia e o poder

normativo (regulamentar).

Para o presente trabalho, mister se faz analisarmos apenas o poder normativo

da administração pública, que se vale desse poder para emanar suas normas, ou

seja, atos de efeitos gerais e abstratos.

Não há como o legislador prever todas as soluções a serem seguidas, em

face das situações reais abarbadas pela administração pública. Não compete a ele

tornar exequível todas as cláusulas que edite.

A empreitada seria demasiadamente onerosa, e ainda aludiria desvirtuamento

do sentido de abstração e de generalidade inerente das leis. É inexequível prever,

em minucias, tudo o que é imperioso, para vincular, a partir de normas originárias

(leis) as condutas a serem adotadas pela administração (e pelos administradores

públicos).

Compete, pois, à administração complementar as leis, através de decretos e

regulamentos, instituindo os mecanismos para eficaz alcance dos interesses

públicos, destinados a dar fiel execução às normas. Essa é a basilar propriedade do

poder normativo.

Os atos administrativos normativos contêm determinações gerais e abstratas.

Tais atos não têm destinatários determinados, incidem sobre todos os fatos ou

situações que se enquadrem nas hipóteses que abstratamente preveem. Os atos

administrativos normativos editados pelo Chefe do Poder Executivo assumem a

forma de decreto.

Tais atos se dividem em originários e derivados. Miguel Reale (1980 p. 12-14)

leciona que “Originários se dizem os emanados de um órgão estatal em virtude de

competência própria, outorgada imediata e diretamente pela Constituição, para

instituidoras de direito novo”; têm por objetivo a “explicitação ou especificação de um

conteúdo normativo pré-existente, visando à sua execução no plano praxis”.

O mesmo autor acrescenta ainda que:

“os atos legislativos não diferem dos regulamentos ou de certas sentenças por sua natureza normativa, mas sim pela originariedade com que instauram situações jurídicas novas, pondo o direito e, ao mesmo tempo, os

101

limites de sua vigência e eficácia, ao passo que os demais atos normativos explicitam ou complementam as leis, sem ultrapassa os horizontes”(REALE, 1980, p. 12-14)

Dessa forma, Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2008, p. 82), insere-se

o poder regulamentar como uma das “normas pelas quais se expressa a função

normativa do poder Executivo. Pode ser definido como o que cabe ao Chefe do

Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios de editar normas

complementar à lei para sua fiel execução”

Concebem-se dois tipos de regulamentos: o regulamento executivo e o

regulamento independente ou autônomo.

Os denominados regulamentos executivos, também denominados de

decretos regulamentares ou decretos de execução, encontram amparo no inciso IV

do artigo 84 da CF/88, que dispõe ser da competência do Presidente da República

“sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e

regulamentos para sua fiel execução”.

Essa competência, prevista no art. 84 inciso, IV, da Constituição Federal, é do

Presidente da República, sendo atribuída, por simetria, aos Chefes do Poder

Executivo dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, pelas respectivas

Constituições e Leis Orgânicas.

O referido decreto não pode inovar na ordem jurídica, limitando-se a

estabelecer normas acerca de como a lei vai ser cumprida pela administração.

O regulamento autônomo ou independente, por sua vez, inova no

ordenamento jurídico, uma vez que edita normas acerca de matérias não

disciplinadas em lei.

No direito brasileiro, o regulamento autônomo é estabelecido de forma

limitada. Com a Emenda Constitucional n. 32, alterou-se o artigo 84, VI, da

Constituição Federal (BRASIL, 1988), para outorgar ao Presidente da República

competência para “dispor, mediante decreto, sobre a) organização e funcionamento

da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou

extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando

vagos”.

Desse modo, no direito pátrio, com exceção da hipótese do artigo 84, VI, só

existe o regulamento de execução, hierarquicamente subordinado a uma lei prévia,

sendo ato de competência privativa do Chefe do Poder Executivo.

102

Além do decreto regulamentar, o poder normativo da administração ainda se

expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, editadas por autoridades

que não o Chefe do Poder Executivo. Em todas essas hipóteses, o ato normativo

não poder contrariar a lei nem criar direitos, impor obrigações, proibições,

penalidades que nela não estejam previstos, sob pena de ofensa ao princípio da

legalidade.

A produção de atos administrativos normativos também pode ser feita por

outras autoridades, órgãos ou entidades. Diversos órgãos e autoridades

administrativas, e até entidades da administração indireta têm competência para

editá-los.

Aos órgãos ambientais também foram conferidos o poder de elaborar atos

administrativos normativos. Sua competência é limitada à edição de normas

derivadas, vinculando os órgãos, outrossim, às matérias que lhes foram outorgadas.

A lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981 dispôs sobre a Política Nacional do

Meio Ambiente, bem como seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. Essa

lei incorporou e aperfeiçoou normas estaduais vigentes e instituiu o Sistema

Nacional do Meio Ambiente, integrado pela União, Estados e Municípios, e atribuiu

aos Estados responsabilidade maior das normas protetoras do meio ambiente.

A referida legislação foi concebida em um contexto histórico, onde se

procurou conciliar o crescimento econômico com proteção ambiental, a síntese

desses dois objetivos se coaduna com as propostas de políticas públicas que vêm

sendo formulada em todo o mundo, qual seja, o crescimento sustentável. Sendo

esse o objetivo da legislação ambiental.

A lei concebida num período declarado autoritarismo político-administrativo

sofreu delimitações impostas por fatores políticos e geopolíticos que vigoravam à

época, bem como de anomalias econômicas e sociais que afetavam a sociedade

brasileira. Nesse ponto a lei 6.938/81 revelou-se como valioso instrumento legal para

ditar os rumos e balizar as intervenções sobre o meio ambiente, promanadas da

ação dos governos e da iniciativa privada.

Acerca do pioneirismo da lei, Édis Milaré assevera,

É de justiça reconhecer o caráter inovador para o país – e até mesmo pioneiro em relação a outros países – de um tal diploma legal. A partir de sua vigência, enriquecida por posteriores regulamentações, são incontáveis os benefícios ambientais auferidos, como incalculável tem sido sua

103

influência na definição de políticas públicas e na estruturação de Sistema de Gestão Ambiental. (MILARÉ, 2001, p.291)

Antes de aprofundarmos na referida norma, insta mencionar a advertência de

José Afonso da Silva, que aduz:

A questão mais delicada da Política Nacional do Meio ambiente reside na qualidade dos meios normativos de sua execução. Habituou-se, desde o regime militar, a atuar nessa matéria por meio de portarias e resoluções de órgãos do sistema Nacional do Meio Ambiente, o que facilita a sua criação e alteração. Essa Flexibilização, se por um lado é conveniente, em face de situações de emergência, por outro importa insegurança jurídica para os destinatários desses instrumentos infralegais, cumprindo, mesmo, verificar, em cada caso, até que ponto a situação regulada não exigiria lei, a fim de resguardar o princípio da legalidade, que se acha inscrito no art. 5º, II, da Constituição Federal.”(SILVA, 2010, p. 213)

O objetivo geral da lei 6.938/81 que dispõe acerca da Política Nacional do

Meio Ambiente está expresso no caput do art. 2º, o qual prevê como finalidade a

preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida,

visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos

interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.

Por sua vez, os objetivos específicos estão elencados no art. 4º, em seus

incisos, I a VII.

O objetivo geral, em razão de sua amplitude, somente é atingido com a

realização dos objetivos específicos que são suas partes integrantes; o não

cumprimento de alguns destes, aquele não se perfaz. Já os objetivos específicos

são efetivados quando as políticas respectivas são postas em prática, com seus

planos, programas e projetos. Por isso, é notório que os objetivos não quantificáveis

são realizados por meio de uma ação sistemática e continuada. Dessa forma, a

Política Nacional do Meio Ambiente consagra-se como um objetivo permanente e

estável para a sociedade brasileira.

Tangente as diretrizes da Política Nacional, O artigo 5º da mencionada lei

declara,

As diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente serão formuladas em normas e planos, destinados a orientar a ação dos Governos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios no que se relaciona com a preservação da qualidade ambiental e manutenção do equilíbrio ecológico. (BRASIL, 1981)

104

Ressalta-se a importância da lei em exigir que as diretrizes da Política

Ambiental sejam formuladas em planos, pois, conforme José Afonso da Silva (2010,

p. 214), “vincula a orientação preservacionista do meio ambiente aos planos de

ordenação territorial e de desenvolvimento econômico e social, que cabe à União

elaborar e executar, por força do art. 21, IX, e 174 § 1º, da Constituição.”

A lei nº 6.938/81 inova ainda ao conceber a criação do Sistema Nacional do

Meio Ambiente - SISNAMA, composto pelos órgãos, fundações e entidades de todos

os entes Federados responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental.

O propósito é criar uma rede de agências governamentais, nos diversos níveis da

federação, objetivando assegurar os mecanismos capazes de, eficientemente,

implementar a política nacional ambiental.

O sistema Nacional do Meio Ambiente é, de direito e de fato, uma estrutura

política–administrativa oficial, governamental, ainda que aberta à participação de

instituições não governamentais, através dos canais competentes.

Constituído pelos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito

Federal, dos Municípios e pelas Fundações instituídas pelo poder público,

responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental.

O SISNAMA possui em sua estrutura o Conselho Nacional do Meio Ambiente

– CONAMA, o qual exerce a direção daquele.

O CONAMA é o órgão maior do sistema e opera como órgão consultivo e

deliberativo e tem como finalidade, conforme art. 6º, II, da lei nº 6.938/81,

assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. (BRASIL, 1981)

Vislumbra-se que, além de possuir atribuição de consultoria e

assessoramento junto ao órgão superior do SISNAMA (Conselho de Governo), o

CONAMA detém ainda o poder regulamentar de deliberar e estabelecer, dentro de

sua competência, diretrizes e padrões necessários à preservação de um meio

ambiente sadio.

Suas competências foram estabelecidas pelo Decreto Presidencial de nº

99.274/90, em seu artigo 7º e incisos. Dentre as várias atribuições outorgadas a

105

esse Conselho Deliberativo, vamo-nos ater àquelas em que prepondera natureza

normativa.

Destacam-se os incisos I, V, VI, VII, VIII e IX do referido dispositivo, também

reproduzidos no art. 8º da lei 6.938/81, os quais atribuem poder regulamentar ao

CONAMA nas mais variadas temáticas relacionadas à preservação do meio

ambiente, tais como normas e critérios para licenciamento ambiental, controle e

combate à poluição de embarcações e deliberação de padrões para manutenção da

qualidade de vida em um ambiente ecologicamente equilibrado.

É na atribuição do CONAMA, estabelecida no inciso VI, art. 8º da lei 6.938/81,

que vislumbramos de maneira mais evidente a função legiferante do órgão. Prevê o

dispositivo a competência do CONAMA para estabelecer privativamente “normas e

padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e

embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes;” (BRASIL, 1981)

Cumpre averiguar a constitucionalidade da norma supra, eis que nossa

Constituição Federal atribui ao Congresso Nacional atividade típica de legislar, ou

seja, de criar normas gerais e abstratas.

Verificamos, a princípio, que o CONAMA não tem competência privativa

dessas normas e padrões de forma privativa, pois, conforme art. 24, § 1º, da CF, sua

competência se limita a estabelecer normas e padrões gerais, todavia, poderão se

suplementadas pelos Estados, consoante o art. 24, § 2º, da CF.

Conforme apontou o Juiz Anthony Kennedy, da Suprema Corte dos EUA:

“Respeitar a Constituição tem um preço. Nós pagamos o preço, alguma frustração,

alguma irritação quando vemos os direitos constitucionais terem força.”7

A competência do CONAMA não foi afetada pelos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias, no qual o caput do artigo 25 prevê: “Ficam revogados, a

partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a

prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão

do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso

Nacional, especialmente no que tange a: I - ação normativa; II - alocação ou

transferência de recursos de qualquer espécie.

Para isso, mister se faz verificar as competências que a Constituição Federal

atribuiu ao Congresso Nacional, bem como as competências atribuídas ao CONAMA

7 Folha de S. Paulo, ed. 21.8.1990, p. 4-9

106

pela Lei 6.938/81, porque somente foram alcançado com a referida regra os órgãos

do Poder executivo que estivessem exercendo funções que a Constituição reservou

para o Congresso Nacional.

As atribuições do Congresso Nacional estão contidas no tit. IV, Cap. – Do

Poder Legislativo, Seção II, arts. 48 e 49. Verifica-se que nenhuma das atribuições

conferidas ao Congresso Nacional são exercidas pelo CONAMA. O que, portanto,

confere legitimidade constitucional ao Conselho Nacional do Meio Ambiente para

estabelecer normas.

O caráter normativo das determinações do CONAMA também se evidencia

pela análise do disposto nos §§ 1º e 2º, artigo 6º da Lei 6.938/81 (BRASIL, 1981), o

qual estipula que os Estados e os Municípios, “na esfera de suas competências e

nas áreas de sua jurisdição, elaborarão normas supletivas e complementares e

padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que forem estabelecidos

pelo CONAMA.”

Por ser órgão deliberativo nacional, o CONAMA, no exercício de suas

atribuições, deve regulamentar matérias de eminente caráter nacional ou que

tenham implicação de interesse nacional, devendo essa ressalva ser feita a fim de

que este órgão não ultrapasse os limites jurídicos normativos além dos que lhe

foram legitimamente outorgados.

Assim, ao CONAMA, órgão federal que preza pela defesa do meio ambiente,

se atribuiu competência normativa para editar normas de cunho ambiental, valendo-

se do poder regulamentar para estabelecê-las.

A lei n. 6.938/81, em seu artigo 6º, inciso V, estabelece em âmbito estadual,

como órgãos integrantes, SISNAMA, os Órgãos Seccionais, que são “os órgãos ou

entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo

controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental”.

São eles os meios pelos quais a Administração Pública Estadual executa os

mandamentos constitucionais respaldados na prevenção e precaução.

Atribui o § 1º do mencionado artigo aos Estados, na esfera de suas

competências e nas áreas de sua jurisdição, a elaboração de normas supletivas e

complementares e padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que

forem estabelecidos pelo CONAMA.

A mesma norma legal define, ainda, em seu artigo 10, que cabe aos órgãos

estaduais concederem o licenciamento prévio para construção, instalação,

107

ampliação e funcionamento de atividades e estabelecimentos utilizadores de

recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como

os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental.

Evidencia-se que os órgãos ambientais estaduais também detêm poder

normativo, não obstante sua parcela de competência seja limitada a poucos atos.

A Constituição Federal, em seu artigo 30, incisos I e II, delimitou a esfera de

competência legislativa dos municípios. Esse dispositivo torna a competência

municipal concorrente se a matéria for exclusivamente de interesse local, ampliando

sua área de abrangência legislativa.

A autonomia municipal deriva das várias capacidades do Município, tais como

a capacidade normativa própria (auto legislação), por meio da criação de leis

próprias sobre matérias reservadas à sua competência exclusiva, quando presente o

interesse local, e suplementar à legislação federal e estadual, no que couber.

Interesse local, segundo o Prof. Hely Lopes Meirelles,

se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau e não de substância.(MEIRELLES, 1995, p. 120)

Assim, caberá ao Município regulamentar as matérias ambientais, ressalvada

a competência da União ou do Estado para disciplinar a matéria em âmbito federal

ou regional, desde que corroborada a necessidade de se atender às peculiaridades

intrínsecas à municipalidade.

Nesse sentido, é pertinente a lição de Paulo Affonso Leme Machado ao

afirmar que:

a autonomia não significa desunião dos entes federados. Também não deve produzir conflito e dispersão de esforços. Mas a autonomia deve ensejar que o município tenha ou possa ter sistemas de atuação administrativa não semelhante ou desiguais aos vigentes nos Estados. Os Estados, por sua vez, poderão ter, também, sua organização administrativa ambiental diferente do governo federal. Assim, as normas gerais federais ambientais não podem ferir a autonomia dos Estados e dos Municípios, exigindo dos mesmos uma estrutura administrativa ambiental idêntica à praticada no âmbito federal. (MACHADO, 1998, p. 49)

O princípio geral norteador da repartição das competências, qual seja o da

predominância do interesse, traduzido, no âmbito do Município, pelo interesse local,

fundamenta o entendimento de que o ente, não mitigando as disposições legais

108

federais e estaduais, pode valer-se do poder normativo para editar normas no limite

de sua competência constitucionalmente atribuída.

4.4 Banalização normativa do crime ambiental atravé s das portarias emanadas

pelos órgãos ambientais.

O Estado Democrático de Direito tem como pilar os fundamentos da

soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do

trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político. Todos esses elementos refletem a

importância inerente à própria manutenção da Democracia, expressamente

consignada no artigo 1.º da Constituição Federal e a dignidade da pessoa humana

que tem sua interpretaçao e aplicação inafastável no campo da tutela da proteção

dos bens jurídicos fundamentais, mesmo porque todos os princípios que regem o

Estado Democrático de Direito devem respeito à pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana traduz a criação de uma concepção mais

propriamente axiológica do direito, “expressão de uma autodeterminação moral”

(HABERMAS, 2003, p. 133), é o eixo em torno do qual toda a ordem jurídica deve

girar e está intimamente relacionada com os conceitos de justiça, igualdade e

democracia, incultido nos membros de uma sociedade e entre indivíduos e

externado pela soberania popular em termos da objetivação de certos valores sócio-

políticos subsistentes na “auto-realização ética” (HABERMAS, 2003, p 133), quando

da sua concretização jurídica na formação da norma. “No primeiro caso, prevalece o

momento moral-cognitivo, no segundo o ético-voluntário” (HABERMAS, 2003, p.

134). “A substância dos direitos humanos insere-se, então, nas condiçoes formais

para a institucionalização jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da

vontade, na qual a soberania do povo assume figura jurídica’.

Neste destacado mister, cumpre a dignidade da pessoa humana o papel de

representar o arcabouço político fundamental constitutivo do Estado e sobre o qual

se assenta todo o ordenamento jurídico. Por isso, é considerado como princípio

maior na interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no

Texto Constitucional (NUNES, 2002, p. 46).

109

José Afonso da Silva, na sua obra curso de Direito Constitucional, leciona, "a

dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os

direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida" (2002, p. 105). E, citando

Gomes Canotilho e Vital Moréia, mostra que a dignidade humana por ser um valor

supremo obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo

sentido normativo-constitucional e não qualquer idéia apriorística do homem, não

podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais

tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir

a teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de

garantir as bases da existência humana.

Remontando à idéia de proteção e desenvolvimento da pessoa humana,

circundante todos os anseios sociais, é através do império da lei o instrumento por

excelência que externa o respeito e os ditames da reserva da dignidade da pessoa

humana promovida em um processo discursivo racional realizado pela vontade da

soberania popular, em queestabelece clareza e limite na formulação normativa que

viabiliza as formas de intervenção do Estado e na vida do cidadão, incubindo nas

mãos da representação popular o papel determinante da formalização do devido

processo legislativo.

O processo legislativo é de suma importância para o ordenamento jurídico, no

rigor ritualistico de que ele se reveste, se tem uma garantia de qualidade no seu

resultado final, que é a lei.

A lei emana seu “mandamento de otimização” (ALEXY, 2002, p. 82-87)

através do princípio da legalidade, que por sua vez, tem seu predominante sentido

na certeza jurídica própria do Estado Democrático de Direito, cuidando da garantia

da segurança política-jurídica do cidadão. O princípio da legalidade é a

materialização formal da expressão do Estado Democrático de Direito, a garantia

vital de que a sociedade não está presa às vontades particulares, pessoais, daquele

que governa.

O princípio da legalidade é o único meio de impedir que o poder punitivo seja

exercido arbitrária e ilimitadamente, para tanto, para ser legal, a intervenção carece

restringir-se ao direito positivo, inserindo numa lógica em que o poder estatal é

restringido, tendo como principal papel garantir direitos mínimos para os indivíduos,

aos quais pode ser imputada a prática de crimes somente se lei prévia estabeleceu

determinada conduta como tal, nem lhes cominar pena sem prévia definição.

110

O princípio da legalidade tem acento em todos os ramos do direito. No Direito

Penal tem feição peculiar que se desdobra em outros dois: princípio da anterioridade

da lei penal e princípio da reserva legal. Por anterioridade da lei penal, compreende-

se que não se pode impor uma pena a um fato praticado antes da edição desta lei,

exceto se for em beneficio do réu. Já a reserva legal estabelece não existir delito

fora da definição da norma em sentido formal, proveniente da manifestação da

vontade do Poder Legislativo.

O princípio da reserva legal em matéria penal é considerado a principal

conquista da Revolução Francesa (FRANÇA, 1789) e expressa à necessidade da

positividade e da publicização prévia da reação penal. É, na verdade, uma resposta

contra os abusos do absolutismo e, por outro lado, a afirmação de uma nova ordem,

qual seja: "nullum crimen nulla poena sine lege". Significa uma garantia de que

ninguém será punido pelo Estado, enquanto não estiver devidamente previsto em lei,

e que a lei deverá ser anterior ao fato.

Preleciona Damásio Evangelista de Jesus:

O Princípio da Legalidade (ou de reserva legal) tem significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que se quer, mas somente aquilo que a lei permite. À lei e somente a ela compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. Não haveria, com efeito, segurança ou liberdade se a lei atingisse, para os punir, condutas lícitas quando praticadas, e se os juízes pudessem punir os fatos ainda não incriminados pelo legislador (JESUS, 1991, p. 51)

O Direito Penal além de ser indissociavelmente atrelado ao princípio da

legalidade, versa sobre determinados objetos jurídicos de perfil próprio, justificando

sua forma seletiva, tecnicamente correta e limitada-, de natureza relativamente

sancionadora, como verdadeira ultima ratio do ordenamento jurídico, dividido na

legislação penal comum – Código Penal – e legislação penal especial, também

chamada pela doutrina de legislaçao extravagante, que é constituída pelos demais

diplomas legais que não se encontram no Código Penal.

A função do Direito Penal visa amparar os bens jurídicos fundamentais que

podem ser conceituados como: “bens vitais da sociedade e do indivíduo, que

merecem proteção legal exatamente em razão de sua significação social. O Direito

Penal objetiva, assim, assegurar a validade dos valores ético-sociais positivos.”

(BITENCOURT, 2008, p. 7). A legislação penal garante a manutenção da segurança

111

e a estabilidade do juízo ético-social da comunidade, valendo-se de sentido social

próprio, anterior à norma penal positivada. A contrário senso, “não seria capaz de

servir a sua função sistemática, de parâmetro e limite de preceito penal e de

contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de

valoração”(BITENCOURT, 2008, p. 8).

A estrutura do Estado Democrático de Direito tem sua plataforma haurida na

Constituição Federal, suas normas fundamentais que cuidam das relações sociais e

embasam as disposições de ordem penal são sujeitas a meticuloso processo de

elaboração, que jamais pode deixar de contemplar os direitos e garantias inscritos

na própria Constituição, para não criar para o cidadão qualquer obrigação indevida

ou, mais grave, impondo-lhe qualquer restrição, sob pena de ser violado o artigo 5.,

II da Magna Carta, que diz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei;”, dado seu conteúdo de caráter limitador das

liberdades jurídicas.

Os princípios orientadores na norma penal incriminadora não podem, em

nenhuma hipótese, ser desprezados por uma nação desenvolvida, pois o atual

estágio democrático alcançado pelo país consagrado em nossa Constituição Federal

impõe ao legislador a obrigação de editar normas que estejam revestidas de

legitimidade, ou seja, propor leis que sejam fruto de um amplo debate, refletidas na

discursividade racional, com a participação de maneira mais vasta possível daqueles

que sofrerão os efeitos das normas que farão parte do ordenamento jurídico, pois de

nada vale o princípio da reserva legal se o ordenamento jurídico não for formulado

por um processo legítimo e sobretudo respeitando um caráter impessoal e geral.

Para Luiz Régis Prado,

Direto Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas conseqüências jurídicas – penas ou medidas de segurança (conceito formal). Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandatos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas conseqüências. De outro lado, refere-se, também, a comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, que afetam gravemente bens jurídicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (conceito material) (PRADO, 2006, p. 51).

O Direito Penal Ambiental é um setor do Direito Penal localizado na legislaçao

penal especial, que em função do surgimento de novos riscos e incremento dos já

existentes – característico de uma sociedade de alta tecnologia, complexa e volátil –

112

e a manifesta relevância dos bens jurídicos de natureza transindividual –

indispensável para existência e o desenvolvimento do homem, desta forma, a

“gravidade, a urgência dos problemas e o alto significado da proteção penal do

ambiente” (PRADO, 2009, p. 81) exigiu a sua tutela também na esfera criminal,

inserida no disposto da lei federal ordinária de número 9.605 de 12 de fevereiro de

1998, contendo inúmeras figuras criminosas, vazada quase sempre em elementos

normativos e em normas penais em branco, estreitamente relacionada com a

disciplina administrativa, o que além de dificultar sua compreensão, torna sua

relação com os ditames gerais que informam o Direito Penal nem sempre isentos de

atritos.

Norma penal em branco são aquelas em que a descrição normativa da

conduta punível se revela incompleta ou lacunosa, necessitando da

complementação ou outro dispositivo legal, que pode ser de natureza legislativa ou

mesmo administrativa, em geral de cunho extrapenal.

Luiz Regis Prado enumera os tipos de norma penal em branco:

Três são as formas apresentadas para o preenchimento ou a colmatação da lacuna constante da norma penal em branco: 1) o complemento se acha contido na mesma lei (refere-se mais a um problema de técnica legislativa deficiente, em geral); 2) o complemento se acha contido em outra lei, mas emana do mesmo poder; 3) o complemento se acha contido em disposição normativa de outro poder – estas seriam as leis penais em branco em sentido estrito. São exemplos as leis penais referentes a transgressão de tabelas de preços. (PRADO, 2009)

Por sua vez, elemento normativo é a tarefa de complementar o tipo legal

através da interpretação, divididos em duas espécies: tipos normativos fechados e

abertos.

Os tipos normativos fechados seriam aqueles, segundo Francisco de Assis

Toledo, em que a descrição do modelo de conduta estaria completa, não permitindo

ao intérprete fazer a verificação da ilicitude, limitando-o à simples constatação da

correspondência entre a conduta e a descrição típica, tudo isso com a observância

da inexistência de causas de justificação. Já nos tipos normativos abertos, a

descrição do modelo de conduta resta incompleta, transferindo assim para o

intérprete a tarefa de completar o tipo, porém dentro dos limites e das indicações

nele contidos (1994, p. 136).

113

Esta complexa instrumentalização legislativa do Direito Penal do meio

ambiente recomenda um entrosamento entre complementos legislativos e/ou

disposições administrativas de outras esferas estatais, exigindo o exercício de

verdadeiras fusões interpretativas de diversos enunciados, legislativos e

administrativos, bem como deixa normas inacabadas e imprecisas para o judiciário

concluir.

A legislação penal ambiental optou por não incorporar-se ao Código Penal e

adicionar na sua tipologia as normas do Direito Administrativo, para daí regrar e

punir uma conduta quanto exteriorizada “no mundo concreto e perceptível, por meio

de um comportamento positivo, a ação (“um fazer”), ou de uma inatividade indevida,

a omissão (“um não fazer o que era preciso”)” (CAPEZ, 2008, p. 116) consistente

na justaposição da descrição abstrata da norma, que se chegou numa deplorável e

complexa interrelação.

Por isso, impede-se de obter uma maior unidade e harmonia, além de obstar

o controle na coordenação, preudicando o conhecimento e a interpretação dos

elementos que compõem o tipo penal ambiental, por conta deste lastimoso

interrelacionamento normativo, dependente da norma administrativa e de exercício

valorativo do interprete. É aí que se abre, em certo grau, espaço para o poder

indiscriminado de atribuir uma punição legal sem correspondência precisa e

impessoal da infração penal, violando princípios básicos que se deve observar no

Direito Penal, gerando alto risco para a ordem e a segurança jurídica e não refletindo

a expressão da vontade popular, que é fonte de todo poder político.

As normas abertas pendentes de complemento caracterizam verdadeiras

janelas abertas que demandam para sua eficácia o esclarecimento sobre o

significado da expressão contida no elemento descrito.

Fábio B. da Rosa considera que os tipos abertos fragilizam a garantia da

reserva legal devido à insegurança gerada na interpretação da extensão de uma lei

que cria uma figura penal (2003, p. 109).

Os elementos normativos e as normas penais em branco enfraquecem a

função da garantia do tipo, introduzindo certa indeterminação no conteúdo da

conduta punível. A elaboração de normas incriminadoras deve ser função exclusiva

da lei, devendo definir com exatidão e de forma cristalina a conduta proibitiva, pelo

Poder eleito para desempenhar esta função, de maneira a não comportar

entendimento peculiar do julgador, retirando o caráter subjetivo dessa valoração.

114

Para Nucci, Guilherme de Souza as normas penais em branco não afrontam o

princípio da legalidade,

O que se pode fazer através da análise das leis intermitentes. São normas penais em branco aquelas cujo preceito primário é indeterminado quanto a seu conteúdo, porém determinável, além de terem o preceito sancionador determinado. Dividem-se em: a) normas impropriamente em branco, que se valem de fontes formais homogêneas, não penais. Ex.: os impedimentos matrimoniais do crime do art. 237 (casar conhecendo tais impedimentos) são achados no Código Civil, que também é lei; b) normas propriamente em branco, que se utilizam de fontes formais heterogêneas, porque o órgão legiferante é diverso e sempre fora do âmbito do direito penal (NUCCI, 2009, p. 77).

O complemento da norma penal em branco é de fundamental importância

para a exata compreensão da lei penal, não se podendo considerar um elemento

secundário, pois passa a integrar, indubitavelmente, o conteúdo da conduta

censurada, formando um todo, de forma que a alteração de uma parte, como

resultado de uma nova valoração jurídica do mesmo fato, tem repercussão total e

imediata, ao contrário a norma penal ficará carente de complemento, restando

inacabada, portanto inaplicável.

O Direito Ambiental de fato encontra uma dificuldade em individualizar

condutas em razão da multiformidade dos elementos que compõem o meio

ambiente, conduzindo sem dúvida ao tipo penal aberto, e sob este argumento,

utiliza-se demasiadamente, ocorrendo assim um enfraquecimento da função

garantidora da tipicidade penal.

A tipicidade “é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura

abstratamente descrita na lei penal” (BITENCOURT, 2008, p. 259). O

enquadramento do fato social à norma penal para que exista subsunção, dá-se

quando a conduta descrita é idêntica à conduta fática, operando a incidência da

norma.

Se na lei penal existir elementos ambíguos, expressões duvidosas, esse

procedimento de análise da subsunção restará fluido e impreciso.

As condutas descritas na norma penal “merecedoras de punição, devem ser

suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar dúvida, em relação

ao seu cumprimento, por parte do destinatário da norma” (NUCCI, 2010, p. 48). Este

conceito é fruto do princípio da taxatividade, corolário de um princípio maior que vem

a ser o da legalidade, que engloba tanto a taxatividade quanto a irretroatividade da

115

lei. A legalidade consagra que cada tipo penal deve ser individualizado pelo Estado,

cada conduta criminosa deve ser delimitada expressamente na lei, sendo assim o

legislador não poderá se valer de expressões ambíguas na sua atribuição de

descrever as condutas criminosas. A norma deverá ser clara, transparente, geral e

de singela interpretação.

É salutar para a segurança jurídica de todos que o legislador evite a adoção

de tipos abertos em excesso quando da elaboração da tipologia penal, limitando a

órbita de valoração do intérprete e da norma regulamentadora, condicionando essas

valorações a certas diretrizes impostas pelos valores maiores, e fundantes, do

ordenamento jurídico penal.

O artigo 46 da lei de crimes ambientais (lei n.º 9.605 de 12 de fevereiro de

1.998) atende bem nossa proposta científica, uma vez que sua tipologia retrata as

idéias ás quais pretendemos lançar luzes, quanto à sua regulamentação precedida

por via de portaria.

Art. 46. Receber, ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, multa. (BRASIL, 1998)

O artigo em questão descreve a necessidade de exibição de licença,

outorgada pela autoridade competente, munindo-se da via que deverá acompanhar

o produto. A lei dos crimes ambientais (lei n.º 9.605/98) não orienta ou esclarece

qual licença ou qual autoridade é competente para outorgar e que via é a devida

para acompanhar o produto até o final do beneficiamento, devendo socorrer-se em

outra norma, característica própria da norma penal em branco.

Uma aparente solução encontra-se no disposto do artigo 80 da mesma lei que

diz: “O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias a

contar de sua publicação”.

Atendendo ao texto normativo do artigo 80 da lei n. 9.605/98 e valendo-se do

poder regulamentar consignado no disposto no artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a”

da Constituição, constituindo uma das mais significativas prerrogativas do Executivo,

foi editado o Decreto n.º 3.179 de 21 de setembro de 1.999, que logo foi revogado

pelo Decreto 6.514 de 22 de julho de 2.008.

Kildare Gonçalves Carvalho faz alguns apontamentos acerca desta importante

prerrogativa que dispõe o Poder Executivo:

116

A Constituição menciona a existência de decretos e regulamentos. Assim, a atividade administrativa do Presidente da República pode instrumentalizar-se em atos de efeitos genéricos, que são os regulamentos. Num caso ou noutro, os decretos e os regulamentos deverão subordinar-se sempre à lei, pois é nela que encontram seu fundamento de validade. Não podem ainda inovar o Direito, nem introduzir, modificações na ordem jurídica. Note-se que em muitos casos o decreto costuma invadir o campo legislativo, configurando-se aí usurpação de competência. Nessa hipótese, estabelece a Constituição exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa (artigo 49, V). Tal circunstância não impede, todavia, que o Poder Judiciário examine a questão, caso entenda o Executivo ter sido o decreto editado nos limites da lei (CARVALHO, 2009, p. 1.245).

Restou inicialmente a tarefa de esclarecer qual é a licença que se deve exibir,

qual autoridade é competente, qual via deverá acompanhar o produto até o

beneficiamento para o Decreto n.º 6.514/08.

Acontece que não só a lei dos crimes ambientais (lei n.º 9.605/98) se furtou

de orientar ou esclarecer, como também o Decreto que recebeu a obrigação por

determinação do artigo 80 da mesma lei, também fez ouvidos moucos para as

informações prementes do artigo 46.

Não obstante, a Constituição Federal ter conferido comando para o Decreto

regulamentar a lei, este em sede de Direito Penal posta em situação delicada, pois

suscetível de gerar sérios inconvenientes para o campo da legalidade, pois a medida

executiva pode utilizar “expressões ambíguas, equívocas e vagas de modo a ensejar

diferentes e mesmo contrastantes entendimentos” (LUISI, 1991, p. 18) no

compromisso regulatório, vulnerando fundamentos constitucionais penais.

Como o Decreto não cumpriu sua missão de preencher a definição oca da

norma de natureza incriminadora do artigo 46 da lei dos crimes ambientais, isto é,

não descreveu efetivamente quais licenças são aptas para adequar o

comportamento ao permissivo legal, omitindo-se na sua função regulamentar, frente

ao seu silêncio e omissão do Poder Executivo, o órgão ambiental estadual, no que

tange o presente estudo, o Instituto Estadual de Floresta do Estado de Minas Gerais,

recentemente extinto pelas leis delegadas de n.º 179,180 e 181, editadas em janeiro

de 2011 e regulamentadas pelo Decreto n.º 45.536 de 27 de janeiro de 2011,

avançou na prerrogativa dada pelo artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a” da

Constituição Federal para o Presidente da República e fez o papel regulatório da

incidência do artigo 46. Ocorre que o Instituto Estadual de Floresta somente calha

sua competência nos limites territoriais do Estado de Minas Gerais, em função de

117

ser autarquia estadual vinculada à secretaria de Estado do Meio Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável, criado em 05 de janeiro de 1962 pela lei n. 2.606 e

regulada pelo Decreto n. 44.807 de 12 de maio de 2008.

A portaria n. 17 foi editada pelo vice diretor desta autarquia estadual (IEF) em

26 de janeiro de 2009, nos seguintes termos:

Portaria nº 17, de 26 de fevereiro de 2009 Institui a Guia de Controle Ambiental Eletrônica. (Publicação – Diário do Executivo – “Minas Gerais” – 27/02/2009) O Vice Diretor Geral do Instituto Estadual de Florestas - IEF, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo inciso I do art. 10 do Decreto nº 44.807, de 12 de maio de 2008, e com respaldo na Lei Delegada nº 79, de 29 de janeiro de 2003, alterada pela Lei Delegada nº 158, de 25 de janeiro de 2007, com base na Lei nº 2.606 de 05 de janeiro de 1962, alterada pela Lei nº 8.666, de 21 de setembro de 1984, e em especial o disposto na Lei nº. 14309, de 19 de junho de 2002, em seu artigo 44 e inciso II do artigo 53; Resolve: Art. 1º - Instituir a Guia de Controle Ambiental Eletrônica - GCA como licença obrigatória para o controle do transporte, armazenamento e consumo de produtos e subprodutos florestais no Estado de Minas Gerais, de origem nativa ou plantada, contendo as informações sobre a procedência desses produtos e subprodutos, gerado por sistema eletrônico disponível no site do IEF na Internet (IEF, 2009)

Portaria na sua condição de,

fórmula pela qual as autoridades de qualquer escalão de comando, desde que inferiores ao Chefe do Executivo, expedem orientações gerais ou especiais aos respectivos subordinados ou designam servidores para o desempenho de certas funções ou, ainda, determinam a abertura de sindicância e inquérito administrativo. Não se prestam, pois, a veicular medidas que possam alcançar ou obrigar particulares, embora muitas vezes, isso aconteça. (GASPARINE, 2008, p. 90-91)

Regulamentou-se a norma penal incriminadora do artigo 46 da lei n.º

9.605/98, lançando o indivíduo que a descumprir em violação de um dever ético

social, relevante sob ótica do Direito Penal Ambiental, formando desta maneira uma

unidade legal, um corpo lógico com a lei penal incriminadora, como se uma só se

formasse, assumindo como fonte integradora do mundo real com o direito positivo,

todas as obrigações da tutela das garantias Constitucionais, inarredável do Direito

Penal.

Promovidas estas considerações, quanto ao caráter integrativo penal da

portaria 17/09 da autarquia estadual, percebe-se que esta não atendente alguns

postulados que compõem o princípio da legalidade no viés do Direito Penal.

118

O ato normativo do órgão ambiental intitulado como regulador adquiriu uma

realidade incontroversa, que enseja em limitar comportamento do indivíduo,

elastecendo seu comando na área penal para efeito de controlar o cidadão,

buscando legitimar a tipicidade de comportamento lesivo à idéia-matriz do bem

jurídico ambiental, ações perigosas, as quais não raro atingem as raias da pura

abstração, seja pela importância de figuras criminosas ou de institutos penais que

não se acomodam à tradição penalística brasileira; seja, por fim, pela força dos

meios de comunicação social, acionados por oportunismo político ou pelo contágio

do medo infundido na população.

A portaria edita da pelo órgão estadual ambiental do Estado de Minas Gerais

não coaduna com os preceitos dos direitos fundamentais do homem, enquanto

conjunto de prerrogativas e garantias. Daí já se depreende o forte arcabouço ético

que magnetiza toda a formulação dos direitos fundamentais.

A norma penal emerge características próprias que têm como pano de fundo

atender os direitos fundamentais individuais, e neste sentido a generalidade da lei

penal incriminadora age de forma que se destina a toda coletividade, dirige-se a

todos os cidadãos. Por isso, entende-se que a norma possui eficácia erga omnes. É

imperativa, tendo em vista que submeter-se-á à pena quem cometer ato previsto

como ilícito. A norma penal punirá quem desobedecer ao seu mandamento.

Conforme assevera Damásio de Jesus, “A todos é devido o acatamento à lei penal.

Daí o seu caráter de obrigatoriedade” (2005, p 63). Por fim, a norma penal é abstrata

e impessoal, possui essa característica, pois não se destina a um indivíduo ou grupo

determinado. Dirige-se a todas as pessoas e a fatos futuros.

Baracho Júnior pontifica:

O objeto das leis é sempre geral, uma vez que considera os súditos em corpo, e os atos abtratos, pois jamais dirigidos a um homem com indivíduo ou a uma situação particular ou individual seria nula. Tais idéias trazem uma série de consequências: as leis devem ser tidas como atos da vontade geral (BRACHO JÚNIOR, 1999, p. 35);

Desta forma, o raio de atuação da norma penal ambiental complementada

pela portaria 17 de 12 de fevereiro de 2008 não atende às características do Direito

Penal, pois sua área de abrangência limita-se ao Estado de Minas Gerais, fincando

os cidadãos dos demais Estados incólumes em relação ao seu cumprimento,

verdadeiramente regionalizando o crime ambiental, de forma que selecionou uma

119

única unidade da federação e criou mecanismos diversos dos demais Estados desta

mesma federação.

Apresenta-se, então, o problema de estabelecer equilíbrio entre a “liberdade

individual” e a “autoridade estatal”. Isto porque o conceito de liberdade não é

absoluto, não implica em ausência de coação. Liberdade consiste na ausência de

coação anormal, ilegítima e imoral. Daí conclui-se que somente a lei geral estatal

pode restringi-la ou outra norma também de força geral e impessoal, e assim mesmo

devendo aquela ser elaborada segundo regras preestabelecidas e aceitas pela

coletividade que busca regular, e não em forma de portaria editada pelo vice diretor

do órgão ambiental que não foi eleito para legislar em nome do povo.

A lei limitadora do conteúdo da liberdade individual precisa ser norma, moral

e legitima, no sentido de ser consentida por aqueles que a liberdade restringe.

A liberdade geral, portanto, está indissociavelmente ligada ao princípio da

legalidade, sendo esta garantia daquela. Qualquer medida que obrigue alguém a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa, deve ser precedida pelo devido processo

legislativo, atendido os anseios dos destinatários das normas. Esta forma de

considerar-se a legalidade frente à liberdade é baseada em um conteúdo negativa,

sendo a liberdade o conceito geral e impessoal. Não há uma relação no sentido de

poder-se fazer tudo o que a lei permite, mas de poder-se fazer tudo, exceto o que a

lei expressamente proíbe a todos indistintamente.

A legalidade apresenta-se, então, como plano negativo da esfera da

liberdade. É o limite, estabelecido pelo Estado, enquanto representante da soberania

popular e não de apenas uma parcela, ou melhor, de uma unidade da federação.

A legalidade funda-se em um forte apelo do exercício ético do poder,

enquanto a legitimidade é uma qualidade deste mesmo poder. Bobbio leciona:

Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade, costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário" (BOBBIO, 2000, p. 674).

120

O poder que impõe a legalidade deve ser um poder legítimo. Modernamente

não se aceita mais legalidade como conceito meramente formal. Para que a

limitação à esfera individual seja válida, deve ser observado que “é legítimo o

raciocínio quando os princípios são verdadeiros e a consequência deduzida segundo

regras” (ACQUAVIVA, 2006, p. 768). Exige-se legalidade do exercício e forma de

aquisição do poder para que haja legitimidade do poder em si. O problema, aí, deixa

de ser meramente jurídico para assumir conotação eminentemente ética.

O órgão ambiental estadual possui uma esfera de poder hipertrofiado em

relação ao direito e o desrespeito a este direito se traduz na violação do Princípio da

Legalidade. Em outras palavras, importa dizer que o respeito ao Princípio da

Legalidade é antes de tudo respeito ao Direito na medida em que este é fruto da

vontade geral e a ela se destina, ou como diz Wolkmer: “Numa cultura jurídica

pluralista, democrática e participativa a legitimidade não se funda na legalidade

positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das

necessidades reconhecidas como ‘reais’, ‘justas’ e ‘éticas" (1994, p. 31).

Com isto, a legitimidade do poder regulatório no âmbito penal torna-se

questionável. As limitações impostas à liberdade, por conseguinte, não seriam

éticas, legitimas, e, portanto, o direito fundamental estaria sendo desrespeitado em

relação aos que não foram contaminados pela exigência imposta. Não basta

argumentos justificadores que somente têm o condão de “formulação de normas e

diretrizes indispensáveis ao exercício pelos órgãos administrativos” (PRADO, 2009,

p.86), uma vez que sua inobservância caracteriza delito, passível de medida punitiva

incriminadoras, restritiva de liberdade, portanto, arma para referendar abuso de

poder e restrição ilegítima às liberdades individuais, possuidoras de uma conotação

ética de razão última e principal. Seria característica metajurídica, para alguns, mas

inegavelmente não pode ser questionada.

A ilegitimidade normativa do órgão estadual ambiental reside no ponto de

vista de generalidade e impessoalidade, que também deve ser fonte de

consideração ética. Inclusive, mesmo uma norma formalmente válida e emanada de

poder legitimo, pode ser moralmente considerada inválida, enquanto limitadora do

conteúdo das liberdades em caráter específico e identificável, sem que se possa

vislumbrar a vontade geral (consenso).

121

A verdade é que a portaria é moralmente questionável quanto à sua esfera de

alcance. Comando legal que limita a liberdade individual pode trazer regra que

moralmente não traduza o interesse coletivo, o conteúdo moral pode modificar e até

afastar a eficácia da norma válida.

Os órgãos ambientais banalizaram as normas editadas por eles, inclusive

invadiram esfera que não lhes pertence, do ponto de vista da competência e,

sobretudo, do ponto de vista da legitimidade, avançando sobre as liberdades do

indivíduo.

A liberdade é, em sua própria essência, um princípio ético. Por seu turno, na

medida que funciona como garantia das liberdades individuais contra o poder

estatal, o princípio da legalidade também possui carga ética, enquanto expressão da

soberania popular.

A indiscutível obrigatoriedade de fundamentação ética na origem das leis para

sua aceitação, e a adaptação de seu conteúdo às evoluções da consciência moral

da sociedade são as ferramentas para a manutenção do princípio da legalidade.

John Rawls define os elementos constitucionais como sendo:

(1) os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do processo político; os poderes do legislativo, do executivo e do judiciário; os limites da regra da maioria; e (2) liberdades e direitos básicos iguais dos cidadãos que a maioria legislativa deve respeitar, tal como o direito de votar e de participar da política, liberdade de pensamento e de associação, liberdade de consciência, como a preservação do Estado de Direito (RAWLS, 2001, p. 28).

A compatibilidade do direito do indivíduo recomenda o mais amplo e

adequado esquema de liberdades básicas que são o resultado da concretude do

Princípio da legalidade, regulado por meios legítimos.

Essas proibições das ações legislativas ilegítimas se encontram enunciadas

nos dois princípios da Justiça de John Rawls:

(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável ao mais plenamente adequado esquema de liberdades básicas iguais, desde que seja compatível com o mesmo esquema das mesmas liberdades para todos; e

(b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar vinculadas (attached) a cargos e posições acessíveis para todos, sob condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, e, segundo, devem primar pelo máximo benefício daqueles membros da sociedade que são os menos favorecidos (princípio da diferença) (RAWLS, 2001, p. 42-43).

122

Assim, conclui-se que no âmbito penal há um gigantesco princípio a regular e

orientar todo o sistema, assegurando a certeza jurídica própria do Estado

Democrático de Direito, cuidando de obter a segurança política do cidadão em

concretizar tipos penais que exercem função garantidora do primado da liberdade e

da igualdade, com a consequente eliminação do temor, corolário obrigatório do

pensamento político-democrático.

O artigo 46 da lei n.º 9.605/98 não preenche claramente toda a estrutura

definidora da conduta penalmente proibida, exigindo para tanto, complementação

em outra norma expedida pelo Poder Executivo na forma de Decreto, recomendação

do artigo 80 da mesma lei ambiental.

No entanto, o Decreto 6.519/08 não cumpriu com seu compromisso e ficou

silente quanto à regulamentação, oportunidade em que o instituto estadual de

floresta do Estado de Minas Gerais editou portaria n.º 17/09 para disciplinar a lei

federal incriminadora, manifestamente invadindo esfera que não lhe pertence,

segundo o artigo 22, inciso I da Constituição Federal: “Art. 22. Compete

privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico,

espacial e do trabalho”.

Mesmo tendo a norma ambiental ter realidade de norma penal em branco,

exige-se que tal complementação seja emanada por Poder de âmbito federal em

vista das características de norma geral e impessoal que se deve ter a norma penal

incriminadora, já que como seu complemento, esta se transforma em uma única

unidade.

Trata-se de um braço genérico e abrangente, que deriva direta e

imediatamente deste moderno perfil político do Estado brasileiro, a partir do qual o

legislador encontra guarida e se orienta na definição das condutas delituosas, que

se traduz na dignidade da pessoa humana e caráter geral e impessoal.

Em Facticidade e validade, Habermas trata sobre a imposição legítima do

Direito:

Essa tensão ideal retorna intensificada no nível do direito, mais precisamente na relação entre a coerção do direito, que garante um nível médio de aceitação da regra, e a idéia de autolegislação – ou da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que resgata a pretensão de legitimidade das próprias regras, ou seja, aquilo que as torna racionalmente aceitáveis. Esta tensão na dimensão de validade do direito

123

implica a organização do poder político, empregado para impor legitimamente o direito (e o emprego autoritativo do direito); poder político ao qual o direito deve a sua positividade. A idéia de Estado de direito constitui uma resposta ao desiderato da transformação jurídica pressuposta pelo próprio direito. No Estado de direito a prática da autolegislação dos cidadãos assume uma figura diferenciada institucionalmente. A idéia de Estado de direito coloca em movimento uma espiral de auto-aplicação do direito, a qual deve fazer valer a suposição internamente inevitável da autonomia política, contra a facticidade do poder não domesticado juridicamente, introduzida no direito a partir de fora. (...) E aqui se trata de uma relação externa entre facticidade e validade (percebida na perspectiva do sistema jurídico), uma tensão entre norma e realidade, que constitui um desafio para a elaboração normativa. (HABERMAS, 1997, p. 60-61)

A instrumentalização legislativa do Direito Penal do Ambiente por via

administrativa de órgão Estadual não atende aos primados do Princípio da

Legalidade por retirar a feição geral e impessoal, sendo, portanto, ilegítima.

4.5 A relação da ilicitude penal e administrativa n o âmbito do Direito Ambiental

O direito Penal e o Direito Administrativo são ramos que inseridos na seara

ambiental apresentam intensa relação, muito embora suas áreas de incidência

estejam determinadas de maneira fulgente.

Nessa simbiose normativa, a tutela penal, conforme Günter Heine (1997), se

apresenta em grande parte relativamente dependente da norma administrativa, em

razão da peculiar estrutura do objeto, e da própria unicidade e coerência que regem

o ordenamento jurídico.

A administração pública possui função cabal na chancela do meio ambiente,

sua atividade se exterioriza por diversos meios e formas. Rosário de Vicente

Martinez (1993) elenca algumas das suas principais funções, quais sejam, função

normativa, que se refere na formulação de normas e diretrizes indispensáveis ao

exercício da administração ambiental; função de controle, que consiste na gestão do

ambiente vinculada aos interesses coletivos e exercida pelos órgãos administrativos,

através de técnicas de polícia ou de controle (v.g., licenças, autorizações,

concessões etc.); e função de fiscalização, que se realiza na inspeção ou vigilância

exercida em relação à evolução de determinados riscos autorizados ou não.

Nesse sentido, verifica-se que não cabe exclusivamente ao direito penal a

função de zelar pelos bens jurídicos. Liderado pelos princípios da intervenção

124

mínima, da fragmentariedade e da necessidade, tem-se que o adequado seria a

intervenção da lei penal somente deverá ocorrer em ultima instância, diante apenas

de graves lesões, quando necessário para salvaguardar bens jurídicos essenciais.

No âmbito de proteção de bens jurídicos metaindividuais – meio ambiente -,

comumente a intervenção penal legalizada se perpetra de maneira subsidiária e

acessória.

Luís Rodrigues Ramos preleciona acerca do caráter acessório da norma

ambiental e afirma que isso decorre de,

razões político-criminais de eficácia, pois é tão complexa e normatizada a orbe ambiental que a lei penal só será aplicada se operar com apoio de leis e regulamentos administrativos, que, de modo claro, determinem entre outras coisas o âmbito do lícito e ilícito. (RAMOS, 1982, p. 266-267)

No entanto, Luiz Regis Prado adverte que “na conformação do injusto penal

essa acessoriedade é de ordem relativa, o que não impede também a tutela direta e

independente, nas hipóteses de maior gravidade” (2009) .

O legislador pátrio adotou esse sistema de tutela, o qual também é adotado

pela Alemanha, Áustria e Espanha. O referido sistema se consubstancia no fato de

que a tutela ambiental depende relativamente da norma de cunho administrativo.

Isso significa que na chancela do bem jurídico ambiental, a ofensa à norma

administrativa integra o tipo de injusto como um de seus elementos.

O referido modelo de características mistas é o mais apropriado. Desse

modo, ensina De La Mata Barranco ao afirmar que,

o que se entende merecedor de sanção penal não são as lesões contra o Direito Administrativo à margem de seus efeitos ecológicos, mas sim as ações com consequências, ao menos potencialmente lesivas ao meio ambiente, ainda que seja necessário para constatar essa lesividade remeter-se à decisão administrativa, que determina, com finalidade preventiva, as margens de autuação individual.(BARRANCO, 1996, p. 76)

Günter Heine esclarece,

Não se trata de proteger o ato de mero desobediência administrativa, a pura infração das disposições do ordenamento administrativo, a pura infração das disposições do ordenamento administrativo (diferentemente do propugnado pelo postulado da absoluta acessoriedade administrativa), sem ter em conta as efetivas incidências ecológicas [...] (HEINE, 1993, p. 58)

125

Além do modelo misto, têm-se outros sistemas, quais sejam: a tutela penal

absolutória independente, neste caso, o fato típico descreve de modo direto,

compreendendo a conduta, sem fazer referência a conceitos administrativos. Esse

modelo, caracterizado pela independência penal é o acolhido nas legislações

holandesa, polonesa e dinamarquesa; Há ainda o sistema, na qual a chancela penal

é absolutamente dependente da administrativa (sistema de acessoriedade absoluta

ou extrema ao direito Administrativo), a conduta criminosa é descrita de tal maneira

que a definição do injusto depende de quase que na totalidade de legislação

administrativa. Visa-se assegurar, por meio da aplicação da sanção penal, as

normas administrativas ou os atos congêneres da autoridade administrativa.

Consiste na punição por não cumprir as normas administrativas. Esse é o modelo

adotado nas legislações belgas, francesa e inglesa, canadense e norte-americana.

No que tange à acessoriedade relativa, existe neste modelo várias espécies

de formulações, os quais mister se faz citá-los e distingui-los. São eles a

acessoriedade conceitual, acessoriedade normativa ou material e acessoriedade ao

ato administrativo. Luiz Felipe Greco (2006) elucida que o primeiro modelo concebe-

se pela incorporação ao tipo penal de conceitos administrativos como elementos

normativos jurídicos; no segunda, a norma penal, de modo expresso ou tácito, faz

alusão à norma administrativa (lei penal em branco); e, na última formulação, prevê-

se na estrutura típica legal de modo explícito e concreto um ato administrativo

específico (ato de substancia não normativa – autorização/permissão e proibição).

Esse sistema de tutela ambiental tem como escopo destacar a identidade

própria do injusto penal, em relação ao ilícito administrativo.

Nesse ponto, frisa-se a importância do princípio de coordenação, pois,

conforme Carlo Blanco Lozano,

Os estatutos jurídicos-penal e jurídico-administrativo ambientais, especialmente em matéria sancionadora, devem atuar coordenados, facilitando-se assim a aplicação de ambas as normativas e se evitando o cruzamento de competências entre os órgãos administrativos e os jurisdicionais (LOZANO, 2001, p. 127-128).

Nesse esteio, Luiz Regis Prado adverte,

A intervenção penal nessa seara há ser sempre limitada e cuidadosa Isso para evitar não só o seu excesso, bem como sua realização ao arrepio do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos. Daí ter-se que o delito ambiental não pode ser um fim em si mesmo, estruturado como mera

126

infração de desobediência, ou servir à garantia de puras funções administrativas (de controle ou gestão) (PRADO, 2009, p. 88).

Outro aspecto relevante, desencadeado pela acessoriedade normativa da lei

penal em relação ao direito administrativo, pauta-se na ocorrência de duplo

sancionamento pelo ilícito penal e ilícito administrativo.

A tutela dos bens jurídicos não é papel exercido unicamente pelo direito

penal, verifica-se que o direito administrativo desempenha relevante função no que

tange, precipuamente, à proteção jurídica do meio ambiente.

Assim, a norma administrativa não possui intuito de meramente integrar a

norma penal, em uma relação de acessoriedade, mas também de estabelecer os

ilícitos administrativos.

A priori, inexiste empecilho na existência simultânea entre infrações penais e

administrativas na proteção jurídica do ambiente, uma vez que a legislação penal

deve ser aplicada em último caso, diante das agressões mais severas e, por

conseguinte, com sanções mais rigorosas.

Todavia, a celeuma surge quando o ilícito penal e administrativo incide sobre

um único fato praticado pelo agente e que possua consequências jurídicas com

idêntico fundamento.

A hipótese acima referida de duplo sancionamento acarretaria grave violação

ao princípio non bis in idem, garantido no sistema jurídico penal de um Estado

Democrático de Direito.

Nos Estados Unidos, a proibição ao double jeopardy encontra-se na 5ª

Emenda à Constituição, que, nesse aspecto, coíbe que uma pessoa seja

processada duplamente pela mesma ofensa.8

A Suprema Corte já decidiu que tal proibição,

foi concebida para proteger um indivíduo de se sujeitar aos riscos de julgamento e possível condenação mais de uma vez por uma ofensa alegada...A ideia subjacente, que está profundamente enraizada pelo menos no sistema jurídico anglo-americano, é a de que ao Estado, com todos os seus recursos e poder, não se deve permitir fazer repetidas tentativas de condenar um indivíduo por uma alegada ofensa, de modo a sujeitá-lo a embaraços, a despesas e a sofrimentos e a compeli-lo a viver num contínuo estado de ansiedade e insegurança, bem como a aumentar a possibilidade de que, mesmo inocente, possa ser considerado culpado”9

8 No original: “nor shall any person be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb” 9 Green v. United States, 355 U.S. 184, 187–88 (1957), no original: “The constitutional prohibition against ‘double jeopardy’ was designed to protect an individual from being subjected to the hazards of

127

A Constituição da República Portuguesa dispõe, em seu art. 29, 5, que

“ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

Segundo Canotilho e Vital Moreira, o que se proíbe é,

“o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanção jurídico-penais, pela prática do mesmo crime”. A questão central, então, é saber o que constitui a prática do mesmo crime ou infração, como será visto adiante. (CANOTILHO; MOREIRA, 1993, p. 194)

O principio do Non Bis in Idem, conforme assevera Paulo Queiroz (2001)

decorre dos princípios da estrita legalidade e da proporcionalidade, versa sobre a

proibição de dupla valoração fática de conduta delituosa, de modo a agravar a pena,

ou seja, um mesmo sujeito não pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato nem

se pode imputar-lhe consequências posteriores que violem o principio.

Tal princípio ganha contornos mais relevantes quando verificamos que além

da roupagem de uma acessoriedade administrativa relativa, são instituídos ilícitos

administrativos correspondentes aos delitos ambientais. Isso se deve ao fato de que

grande parte dos crimes ambientais previstos na Lei 9.605/1998, subsome também

em infrações administrativas, em muitas das vezes com mesma redação legal, como

ocorre no Decreto 6.514/2008.

Essa celeuma se estabelece em razão da unicidade do ordenamento jurídico

e da diferente natureza dos ilícitos penal e administrativo. Em um ponto diz-se que

entre os dois há distinção de ordem qualitativa (ontológica) e, de outro, verifica-se a

existência de uma diferenciação meramente quantitativa ou de grau.

Em linhas gerais, conforme doutrina José Cerezo (1993), a primeira corrente

baseia-se na suposta inexistência de um desvalor ético-social nos ilícitos

administrativos e que estes últimos não consubstanciariam lesão ou perigo de lesão

a bens jurídicos, mas simples menoscabo a interesses da Administração, e seriam,

portanto, apenas ilícitos formais (ou de mera desobediência).

trial and possible conviction more than once for an alleged offense. The underlying idea, one that is deeply ingrained in at least the Anglo–American system of jurisprudence, is that the State with all its resources and power should not be allowed to make repeated attempts to convict an individual for an alleged offense, thereby subjecting him to embarrassment, expense and ordeal and compelling him to live in a continuing state of anxiety and insecurity, as well as enhancing the possibility that even though innocent he may be found guilty”

128

O mesmo autor assevera ainda que, não obstante, entende-se como incorreta

a afirmação de que o ilícito administrativo seja ético-socialmente indiferente

(avalorado), pois o Direito como um todo – que não seja despótico ou arbitrário –

cria, por meio de normas jurídicas, estados ou situações valiosos, cuja relevância

ético-social será maior ou menor, mas não deixará de existir. Em miúdos, consiste

dizer que delito e infração administrativa têm conteúdo material similar e estrutura

lógica idêntica.

As sanções administrativas baseiam-se no dano a um bem jurídico e sua

necessidade de aplicação, que se revelam em um juízo desvalorativo ético-social.

Frisa-se que o ilícito administrativo além de tutelar os interesses da

administração, também chancela bem jurídicos, Luiz Regis Prado nessa esteira

assevera,

Tanto o Direito Penal quanto o Direito Administrativo prestam-se a tutelar bens jurídicos, sendo que o primeiro deve subordinar-se aos princípios fundamentais penais e constitucionais penais, como, por exemplo, da intervenção mínima e da fragmentariedade, e o segundo, além de certos postulados legais inerentes à atuação administrativa (legalidade, impessoalidade, moralidade administrativa), pode também vincular-se a outros princípios originariamente penais ou processuais penais (legalidade/culpabilidade/proporcionalidade/ampla defesa/ contraditório) (PRADO, 2009, p. 89).

Dessa forma, entre ilícito penal e ilícito administrativo só pode existir uma

diferença quantitativa ou de grau e jamais de qualidade, consoante ensinamentos de

Miguel Reale Junior (2007). As distinções, assim, se baseiam no campo da forma e

não da essência.

O cometimento de alguns delitos ambientais estabelecidos pela lei 9.605/1998

pode culminar na aplicação concomitante de infrações ambientais previstas no

decreto 6.514/2008, por possuírem o mesmo conteúdo.

Contudo a aplicação simultânea de sanções fundada unicamente sobre o

mesmo fato, quando verificado a tríplice identidade (fato/sujeito/fundamento) é

terminantemente inadmissível em face do princípio do non bis in idem, sob pena de

transgressão penal-constitucional.

O advento do decreto 6.514/2008 acarretou uma anormalidade no sistema

jurídico pátrio em relação a alguns delitos ambientais e algumas infrações

administrativas, posto ter obstaculizado a aplicação das devidas sanções,

vislumbramos, a exemplo disso, o estabelecimento da prevalência de um dos

comandos sancionadores oriundos do direito penal ou administrativo.

129

O papel sancionador da administração está subordinado à função judicial,

diante disso, o comando penal sancionador se sobrepõe à ordem administrativa

caso ocorra conflito entre ambas. Isto porque o direito penal atua de forma mais

ríspida na punição de determinadas condutas socialmente reprováveis contra os

bens jurídicos mais relevantes. Tal superioridade também se evidencia em

decorrência da existência de maiores garantias individuais, asseguradas

constitucionalmente no curso do processo penal.

Outro fator importante que implica na preponderância da sanção penal sobre

ordem administrativa decorre do princípio da divisão dos poderes conjugado com o

princípio da legalidade, aplicada à administração pública, visto ser função típica do

poder judiciário o processamento e julgamento de condutas ilícitas, sendo ainda que

toda a atividade administrativa deve ser realizada nos moldes da lei, submetendo-se

à apreciação do poder judiciário na ocorrência de dano a interesse particular.

Dessa forma, iniciado o processo administrativo, deve este ser protelado até

que finde o processo penal, porquanto não ser admitido a ocorrência de decisões

contraditórias.

Porém, se o processo penal já foi concluído, a administração pública,

segundo Miguel Ángel Boldova (2007), está impedida de atuar, salvo se o agente

tenha sido absolvido por causa diferente da inexistência do fato e houver

possibilidade de apreciação da correspondente infração administrativa.

Noutro lado, se ao findar do processo administrativo houver sido aplicada a

respectiva sanção, e, após, tiver dado inicio ao processo penal, a pena poderá ser

deduzida da sanção penal, isto se ambas tiverem a mesma natureza, sendo,

contudo, de naturezas diversas admite-se revisão das autuações administrativas

precedentes e até nulidade da sanção aplicada, conforme preleciona novamente o

referido autor.

Ao cabe das explanações, vale notar que a existência de delitos ambientais e

infrações administrativas iguais, estabelecidos em diplomas legislativos diferentes

implicam não somente ofensa ao princípio non bis in idem, mas também reforça a

ideia do manejo simplesmente simbólica e negativa do Direito Penal em referência a

determinadas condutas, as quais poderiam ser sancionadas de maneira mais eficaz,

na esfera administrativa, se existissem instrumentos mais hábeis de controle e

fiscalização.

130

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa se propôs a investigar a legitimidade normativa dos

órgãos ambientais estaduais na perspectiva do Estado Democrático de Direito.

Nesse esforço ficou assente que o Estado Democrático de Direito é um

conceito que se aplica a garantir o respeito pelos Direitos Humanos e pelas

liberdades fundamentais, estabelecido através da tutela jurídica, construída por um

discurso racional que reflete a expressão da soberania do povo, traduzida pelo

império da lei.

A lei é obra do Direito positivo possuidora de força coercitiva, que necessita

obter legitimidade por meio de um procedimento legislativo democrático, autorizando

possibilidade para que haja ações pelo simples atendimento à norma e o respeito

aos Direitos Fundamentais.

Nesta preocupação aos Direitos Fundamentais, nasce com a Constituição

Federal de 1988, o Direito Ambiental Constitucional que originou não apenas, como

mais uma forma de manifestação social (BARACHO JÚNIOR, 2008), “mas

movimentos com características novas, qualitativamente distintas, inclusive pelas

dificuldades encontradas pela sociedade industrial em lidar com aqueles novos

problemas” (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 12).

O Direito Ambiental transformou em tema de tanto relevo, que foi editada a lei

9.605 de 12 de fevereiro de 1998, conhecida como lei dos crimes ambientais, como

o escopo de tutelar as condutas incriminadoras em face do meio ambiente, nessa

construção normativa que se destaca a pesquisa cientifica.

A norma incriminadora ambiental foi cunhada sob o manto da imprecisão,

emergindo a necessidade de complementação por outra fonte legislativa ou

administrativa. Nesse formato destaca-se o artigo 46 da lei penal ambiental, pois

carente de complemento.

A norma penal em branco ambiental do artigo 46 foi complementada via

portaria 17/09 do Instituto Estadual de Floresta do Estado de Minas Gerais, surgindo

assim, o escólio cientifico da legitimidade normativa dos órgãos ambientais

estaduais, uma vez que o Direito positivo com sua força coercitiva necessita obter a

legitimidade por meio de um procedimento legislativo democrático, abrindo

possibilidade para que haja ações pelo simples atendimento à lei.

131

Eliseu Jusefovic assevera que a legitimidade do direito se liga a um processo

legislativo, de forma que “todos possam sentir-se autores das normas, e a

legitimidade destas se mede pela resgatabilidade discursiva de pretensões de

validade normativas” (2005, p. 171).

Nesse caso, a portaria foi editada pelo vice diretor da Autarquia Estadual

mineira, figura estranha a escolha representativa popular, de atribuição limitada ao

Estado de Minas Gerais, resultando a ausência de legitimidade da própria regra,

tornando impossível o assentimento pelos destinatários, já que com a fusão da

portaria com a lei incompleta, resulta em uma nova norma, que apesar de aparentar

pronta e acabada não reflete legitimidade por conta de não ter sido a manifestação

da vontade da coletividade, pois “aqueles que criam a lei devem mantê-la coerente

com seus princípios” (BARACHO JÚNIOR, 1999, p. 121).

Eliseu Jusefovicz, entende que, “uma regra se mede pela resgatabilidade

discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em; ultima

instancia, é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional”

(JUSEFOVICZ, 2005, p. 173).

Nessa fusão normativa, entre lei e portaria, que resultou em uma norma

pronta e acabada, verifica-se a ausência da legitimidade, segundo Habemas:

a positividade (facticidade artificial) e a pretensão de aceitabilidade raciona (validade). No primeiro aspecto, a positividade do direito cria uma estrutura normativa, modificável a qualquer momento; nesse caso, a validade aparece como expressão pura de uma vontade, “o phatos do positivismo jurídico alimenta-se desse voluntarismo da pura criação”. Mas, de outro lado, “a positividade do direito não pode fundar-se somente na contingência de decisões arbitrárias, sem correr o risco de perder seu poder de integração social. (HABERMAS, 2003, p. 60).

O Princípio da Legalidade é postulado do Estado Democrático de Direito,

possuidor de algumas características próprias, tais como a generalidade e

impessoalidade, “além dos discursos universais de justificação das normas abstratas

e da garantia de certeza do Direito” (BARACHO JÚNIOR, 2008, p. 36).

Na democracia, o direito não se isola na tarefa de ativar a tensão entre

faticidade e validade, também operacionaliza uma dependência interna na medida

em que o ordenamento jurídico responsabiliza os indivíduos pela a integração social,

o que faz com que a legitimidade seja possível a partir da legalidade. Para

estabilizar as expectativas nas sociedades modernas. O direito precisa pressupor

132

mutuamente direitos humanos e soberania popular, ou seja, a autonomia privada e

pública.

Baracho Júnior faz as seguintes advertências:

O Estado legislativo é dominado por normas impessoais, de conteúdo mensurável e determinado. A lei está separada de sua aplicação a um caso concreto e o legislador separado dos órgãos de aplicação da lei. Nesse Estado, imperam as leis, não os homens ou as autoridades (BARACHO JÚNIOR, 1999, p 84).

Nessa perspectiva, a ausência do discurso racional e o atrofiado raio de ação

da portaria, quanto à generalidade e impessoalidade da norma pesquisada, não

restam dúvidas da carência de sua legitimidade.

133

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