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agosto / luxwoman 111 S ão irmãos, mas têm uma relação de mãe e filho. Apesar de mais nova, Inês é a única pessoa que Bernardo, a quem foi diagnostica- da esquizofrenia, deixa que dele se aproxime. Tinha 16 anos quando os pais se divorciaram e a doença começou a manifes- tar-se. A desmotivação em relação a activida- des que antes lhe interessavam era cada vez mais evidente. Hoje tem 28 anos, vive sozi- nho e é a irmã mais nova – existe outra mais velha –, que lhe trata de roupa, comida, casa, tudo. Francisco é como se fosse um filho. Todos os dias à hora de almoço passa lá em casa para ver se está tudo bem. Não vai mais do que uma semana de férias e avisa-o sem- pre. O estado de espírito dele é como uma espécie de roleta russa, se um dia a recebe com um abraço apertado acompanhado de “minha maninha querida, adoro-te”, passa- dos cinco minutos pode começar aos gritos a perguntar-lhe o que está a fazer e a insultá- -la. “Parece que é outra pessoa, é horrível. Não tenho medo, talvez porque não tenha a noção do perigo. Ele incha o peito, morde a língua, manda tudo para o ar, mas é meu irmão”, explica Inês, que admite que às vezes ameaça nunca mais voltar, mas não o faz. Sabe que é a única pessoa com quem ele pode contar. Por atribuir a culpa da situação aos pais, a relação com estes é terrível. “Não têm capacidade para cuidar dele, só o enervam, não vale a pena”, acrescenta Inês, que já perdeu conta às vezes em que o encontrou inconsciente depois de tentar suicidar-se. Já no hospital é ela a primeira pessoa que man- da chamar, não para lhe agradecer, mas para a ameaçar de que da próxima vez que o salvar vai acontecer-lhe algo. A última tentativa foi há dois meses, sempre com comprimidos. Inês chega invariavelmente a tempo, mas tem receio de que algum dia seja tarde demais. Bernardo acredita em coisas em que mais ninguém acredita, afirma a pés juntos que não é filho dos seus pais. “Tem muitas paranóias e a mania da perseguição, às vezes basta um simples olhar para fazer logo uma novela. Se lhe ligam duas vezes de um núme- ro privado, telefona-me aflito a dizer: “Eu estou a passar-me! Eles andam atrás de mim, eles andam atrás de mim...”, desabafa Inês, que nunca assistiu a nenhuma cena, mas percebe que algo se passou quando ele apare- ce com marcas na cara. Bernardo dorme reportagem 110 Getty Images esquizofrénico esquizofrénico esquizofrénico Nas fases piores ouvem vozes, têm crises de ansiedade e a mania da perseguição, mas quando a doença é detectada e são medicados, podem ter uma vida normal. A ignorância dos outros continua a ser o maior obstáculo. Por Marta Braga Na cabeça de um Perante uma crise • Evitar o confronto, durante os períodos de crise. O doente não percebe que está doente, o que pode dificultar a ida a um centro médico. • Providenciar um ambiente calmo e protegido e procurar aconselhamento profissional para saber como pode ajudar. • Não negar a existência da doença. Dizer “tens de ser forte” ou “isso passa” são atitudes erradas e contraproducentes. esquizofrenia

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São irmãos, mas têm uma relação de mãe e filho. Apesar de mais nova, Inês é a única pessoa que Bernardo, a quem foi diagnostica-da esquizofrenia, deixa que dele se

aproxime. Tinha 16 anos quando os pais se divorciaram e a doença começou a manifes-tar-se. A desmotivação em relação a activida-des que antes lhe interessavam era cada vez mais evidente. Hoje tem 28 anos, vive sozi-nho e é a irmã mais nova – existe outra mais velha –, que lhe trata de roupa, comida, casa, tudo. Francisco é como se fosse um filho. Todos os dias à hora de almoço passa lá em casa para ver se está tudo bem. Não vai mais do que uma semana de férias e avisa-o sem-pre. O estado de espírito dele é como uma espécie de roleta russa, se um dia a recebe com um abraço apertado acompanhado de “minha maninha querida, adoro-te”, passa-dos cinco minutos pode começar aos gritos a perguntar-lhe o que está a fazer e a insultá- -la. “Parece que é outra pessoa, é horrível. Não tenho medo, talvez porque não tenha a noção do perigo. Ele incha o peito, morde a língua, manda tudo para o ar, mas é meu irmão”, explica Inês, que admite que às vezes

ameaça nunca mais voltar, mas não o faz. Sabe que é a única pessoa com quem ele pode contar. Por atribuir a culpa da situação aos pais, a relação com estes é terrível. “Não têm capacidade para cuidar dele, só o enervam, não vale a pena”, acrescenta Inês, que já perdeu conta às vezes em que o encontrou inconsciente depois de tentar suicidar-se. Já no hospital é ela a primeira pessoa que man-da chamar, não para lhe agradecer, mas para a ameaçar de que da próxima vez que o salvar vai acontecer-lhe algo. A última tentativa foi há dois meses, sempre com comprimidos. Inês chega invariavelmente a tempo, mas tem receio de que algum dia seja tarde demais. Bernardo acredita em coisas em que mais ninguém acredita, afirma a pés juntos que não é filho dos seus pais. “Tem muitas paranóias e a mania da perseguição, às vezes basta um simples olhar para fazer logo uma novela. Se lhe ligam duas vezes de um núme-ro privado, telefona-me aflito a dizer: “Eu estou a passar-me! Eles andam atrás de mim, eles andam atrás de mim...”, desabafa Inês, que nunca assistiu a nenhuma cena, mas percebe que algo se passou quando ele apare-ce com marcas na cara. Bernardo dorme

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esquizofrénico esquizofrénico esquizofrénico Nas fases piores ouvem vozes, têm crises de ansiedade e a mania da perseguição, mas quando a doença é detectada e são medicados, podem ter uma vida normal. A ignorância dos outros continua a ser o maior obstáculo. Por Marta Braga

Na cabeça de um

Peranteuma crise• Evitar o confronto, durante os períodos de crise. O doente não percebe que está doente, o que pode dificultar a ida a um centro médico.• Providenciar um ambiente calmo e protegido e procurar aconselhamento profissional para saber como pode ajudar.• Não negar a existência da doença. Dizer “tens de ser forte” ou “isso passa” são atitudes erradas e contraproducentes.

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[continuação da pág. 112]

Foi um bocado fita, cobardia, não fui muito inteligente. Aos 22 anos, apaixonei-me perdidamente por uma pessoa e foi cada um para seu lado e a partir daí fiquei mais baralhado do que já estava. Ficava revoltado e agressivo com coisas pequenas. Via coisas más nas pessoas, que não existiam. Na altura, vivia com a minha mãe e queria isolar-me no quarto porque estava há três dias sem dormir. Um vizinho tinha a televisão alta, fechei a porta do quarto com força e a minha mãe, coitada, ficou sem um bocado de um dedo. Ela achou que foi de propósito e meteu-me na Clínica de Carnaxide, onde fiquei 10 anos. Depois, por questões económicas e através da Segurança Social, passei para o hospital onde estou hoje, depois de ter passado pelo Miguel Bombarda. O meu objectivo é ir viver para o apartamento que era dos meus pais, mas começo a ficar ansioso, não sei se suporto a solidão. O ideal era ter alguém que partilhasse a casa comigo, mas estou a ver que vai ser um bocado hard (risos).”

muito e não tem horários. Para ele não há dia nem noite e chega a ficar três dias sem dor-mir. “Vê-lo internado sem sequer conseguir engolir a própria saliva” é para ela o mais difícil de suportar. O seu maior sonho era que “houvesse um condomínio cheio de en-fermeiros para estas pessoas viverem lá, faze-rem amigos, terem actividades. Onde pudes-sem conhecer pessoas, ele não tem namorada nem nunca teve. Ele agora é um ser à parte, não faz nada e fuma muito.” Este é apenas um caso, entre muitos.

A realidade nacionalAté agora não havia um estudo que represen-tasse o número de doentes psiquiátricos em Portugal. Apresentado em Março deste ano, o Estudo Nacional de Saúde Mental (desen-volvido pela Faculdade de Ciências Médicas, no âmbito do World Mental Survey) coorde-nado pelo professor Caldas de Almeida, vem mostrar que um em cada cinco portugueses sofre de perturbações psiquiátricas. Conside-rado o primeiro do género em Portugal, este estudo vai permitir conhecer a prevalência dos vários tipos de doença, os factores asso-ciados e o impacto que têm. Para o coordena-dor desta iniciativa, os números foram uma surpresa: “Portugal pertence ao grupo de prevalências mais altas. Quando comparados com países do sul, como Espanha ou Itália, temos muito mais casos. Somos atípicos, temos um padrão mais parecido com os países do norte, que têm prevalências mais elevadas.” Apesar de tudo, existe uma boa notícia. “Cerca de 70% das pessoas com problemas de saúde mental pedem ajuda junto dos médicos de família. Se encontram a melhor resposta, isso já é outra conversa”, afir-ma Caldas de Almeida. Tão ou mais importante do que o acompanhamento médico, e sobretu-do no que diz respeito à esquizofrenia, é que o diagnóstico seja feito o mais cedo possível.

Na pele de um esquizofrénicoA esquizofrenia é considerada a mais grave de todas as doenças mentais, no espectro da psicose. Manifesta-se quando a pessoa em determinada fase da sua vida apresenta alte-

vezes mais casos do que de insulinodepen-dentes. Embora seja uma doença que não afecta muita gente, como é de início precoce (surge muito cedo) e se prolonga por toda a vida (apesar do risco de 10% de se cometer suicídio e de ter comportamentos de risco, como fumar muito, a esquizofrenia não ma-ta), existem muitos casos”, acrescenta o psi-

Luís, 50 anosAntecedentes familiares: Não tem.Vive com a doença há: 32 anos.Gosta de: Música clássica e ouve a Rádio Marginal.Vive: Numa unidade hospitalar.“Aos 18 anos comecei a ter lapsos de memória, estava num colégio interno a fazer o 11º ano. Passei a ficar um bocado baralhado por causa do álcool. Antes, na adolescência, já tinha tomado drogas (cannabis, anfetaminas e drunfos [sedativos]) e misturava com o álcool. A minha personalidade começou a ficar um bocado baralhada. Comecei a fumar aos 11 anos, hoje fumo um maço por dia, mas se tivesse mais, mais fumava. No início não percebia que tinha a doença, estava no meu mundo, um bocado apático. Vinha habituado a tomar banho todos os dias e no colégio só se tomava duas vezes por semana, comecei a desleixar-me e a deixar de comer, só pão e café com leite. Aos 18 anos, arranjei o primeiro emprego, mas passei a ficar muito deprimido, a entrar numa ilha depressiva e a ter dupla personalidade. Por causa da doença, não fiz o 11º ano nem tive uma vida de trabalho normal. Agora sou voluntário na Quinta Pedagógica dos Olivais, mas aos 22 anos não aguentava o mundo do trabalho. Vivo de uma pensão vitalícia. Como não tenho ninguém – nem pai nem mãe nem irmãos –, morreu tudo, tenho de sobreviver só pela minha cabeça. A partir dos 25, começou a ficar tudo uma névoa para mim. Agora estou melhor, ando nos transportes públicos e já me sinto mais no mundo real. Mas fiquei um bocado de pé atrás em relação à vida. A pessoa deixa de trabalhar, deixa de ter uma vida activa na sociedade e fica à margem. Trabalhar como voluntário é muito bom, pelo menos estou ocupado e não penso tanto na psicose. Tentei suicidar-me uma vez, devia ter uns 24 anos. Cortei os pulsos. [continua na pág. 113]

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Sinais de alertaExistem sinais que, se persistirem ao longo do tempo, podem esconder um quadro de esquizofrenia. A psicóloga Ana Lisa Vicenta enumera alguns:• Falta ou excesso de apetite;• Perturbação do sono, fuga e isolamento; • Dificuldade em manter a rotina do dia-a-dia;• Alterações de humor;• Comportamentos e pensamentos bizarros e sem sentido.

rações de comportamento, que influenciam a capacidade de gerir o seu dia-a-dia e o rela-cionamento com os outros, sobretudo os mais próximos, como familiares e amigos. Os sintomas mais frequentes são “ideias deliran-tes, pensamento e comportamento desorga-nizado, falta ou excesso de apetite, agitação psicomotora e falta de sono (podem passar dias sem dormir). Quando a descompensa-ção clínica é muito grave e não é possível rea-lizar o tratamento em casa, o doente tem de recorrer aos serviços de internamento de psi-

quiatria a fim de realizar um tratamento far-macológico mais intenso”, explica a psicóloga Ana Lisa Vicenta, que considera essencial o papel dos técnicos de saúde de forma a aco-lher, organizar e delinear uma estratégia que seja o menos dolorosa possível para o doente e para a família. Por norma, depois de uma fase aguda, o doente fica mais desmotivado, triste, apático e com falta de interesse. Tão importante quanto o apoio que se dá ao do-ente é o suporte que se dá à família, uma vez que esta se encontra, muitas vezes, em situa-ções de extrema fragilidade, podendo mesmo haver casos de depressão. O reconhecer que se tem a doença nem sempre é um processo fácil e esta negação evita que a pessoa seja medicada e acompanhada como devia. “Eles não compreendem que estes sintomas pro-vêm da cabeça deles e levá-los ao médico e interná-los é mais uma ajuda neste complot, ou seja, envolvem os médicos e os familiares nestes delírios persecutórios e recusam o tra-tamento porque não percebem que estão doentes. A partir do momento em que estão estabilizados, que compreendem o que lhes aconteceu e a medicação lhes foi útil, tomam os remédios e ficam empenhados no seu tra-tamento”, afirma Tiago Reis Marques, psi-quiatra no Maudsley Hospital, em Londres, que defende que é fundamental o envolvi-mento com a família e uma discussão aberta com o médico. Até porque, por norma, a do-ença é diagnosticada por volta dos 16/18 anos e a pessoa vive com ela até ao fim da sua vida. “Há duas vezes mais casos de esquizo-frenia no mundo do que de Alzheimer e seis

“Uma pessoa com cancro recebe flores, bombons e visitas. De uma pessoa com esquizofrenia foge-se. A sociedade tem de ser educada para saber dar mais apoio a este tipo de doente”, Tiago Reis Marques, psiquiatra.

quiatra, que considera essenciais “o envolvi-mento da família no tratamento, a elimina-ção dos factores de risco e uma boa dose de compreensão e empatia”.

Mercado de trabalho versus realidadeSe, por um lado, os doentes com esquizofrenia

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têm sintomas de evitamento social, de apatia, de indiferença, e alteração em termos cogni-tivos, que dificultam a empregabilidade, por outro, ainda têm de se deparar com o estigma que continua a existir em relação à doença. Se um esquizofrénico estiver devidamente medicado, pode ter uma vida normal, mas o medo e a ignorância continuam a ser uma constante. “Alguns estudos mostram que até 50% dos doentes pode vir a ter uma vida com um funcionamento normal”, acrescenta Tiago Reis Marques. É exactamente na tentativa de proporcionar uma vida normal a este tipo de doentes que Catarina Malcata, directora técnica do Fórum Ocupacional de Lisboa, integrado na ARIA (Associação de Reabilitação e Integração Ajuda, que ganhou o Prémio Gulbenkian Beneficência 2010), trabalha todos os dias com pessoas com problemas de saúde mental. Ao todo são 30 vagas, a maioria são homens e a idade ronda os 37 anos (ver caixa com perfis). O fórum funciona com um programa de ano escolar, no qual são colocados professores a lecciona-rem diversas acções (língua portuguesa, inglês, francês, informática, cidadania e em-pregabilidade) e existem ainda actividades como Tai-chi, Muay Thai e hidroginástica, entre outras. Depois há todo o processo, que passa por os inserir no mercado de trabalho e na vida social. “Como trabalhamos na área da integração social, não faz sentido que as pes-soas utilizem este espaço e não sejam integra-dos noutro. A função do técnico de referência que acompanha a pessoa passa por sinalizar uma área com o doente, depois efectuamos o protocolo de colaboração com a entidade e a pessoa é lá colocada uma ou duas vezes por semana”, explica a psicopedagoga clínica Catarina Malcata, que vai iniciar outro

projecto cujo objectivo passa por remunerar estes voluntários. Os protocolos duram em média um ano e se tudo correr bem são reno-vados. No primeiro dia, o técnico de referên-cia acompanha o doente e depois, de três em três meses, reúnem-se com a entidade emprega-dora para saber se está tudo a correr bem.

Factores desencadeantes: hereditariedade e cannabisHoje, e graças aos avanços que tem havido nesta área, é possível afirmar que a esquizofre-nia é explicada parcialmente pela genética, ou seja, uma pessoa que tenha um familiar em primeiro grau com a doença tem um risco cin-co a dez vezes superior de ter a doença, quan-do comparado com uma pessoa que não tenha antecedentes familiares. No entanto, “esta não é uma doença explicada por um único gene, é poligenética, ou seja, múltiplos genes contri-buem numa pequena percentagem para au-mentar o risco de desenvolvimento da doença. Até ao momento, vários genes foram implica-dos na doença, mas nenhum isoladamente é capaz de a provocar. São necessárias interac-ções entre eles e o meio ambiente”, esclarece Tiago Reis Marques. Também o consumo de cannabis pode potenciar o aparecimento de esquizofrenia. Este psiquiatra, que partici-pou num estudo sobre o consumo de cannabis e esquizofrenia, realizado em Londres e >>

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Manuel, 42 anosAntecedentes familiares: Duas tias.Vive com a doença há: 24 anos.Gosta de: Música dos anos 80.Vive: Com os pais e o irmão.“A doença começou a manifestar-se partir dos 18 anos. Na minha família, além do meu, existem mais dois casos, de duas tias, uma delas já morreu. Quando me disseram que tinha a doença não queria acreditar, achava que as vozes que ouvia eram reais e que as pessoas conseguiam ler o meu pensamento e eu, o delas. O meu círculo de amigos e os meus pais notaram que havia algo de errado em mim. Durante uns tempos não aceitei a doença e não estava a ser medicado, até que fui a uma psiquiatra da Caixa. Ela fazia muitos testes comigo, dava-me uma medicação, depois outra e não adiantava nada. Passei para um médico particular, mas também não adiantou muito, porque a medicação era clássica. Agora estou com o meu médico há 16 anos, a medicação é diferente e sinto-me muito melhor, já não tenho efeitos secundários (tremores e espasmos). Na fase pior, quando ia na rua e alguém estava a falar e levantava um braço, por exemplo, achava logo que a pessoa estava a falar de mim e a dizer “ele vai a passar”. Hoje, por vezes, ainda tenho essa sensação, mas tento dar a volta por cima, através da medicação e da minha força de vontade. Já não tenho a mania da perseguição e ouço poucas vozes. Se falho a medicação, começo logo a ficar ansioso e essa ansiedade torna-me mais desconfiado, e essa desconfiança leva às vozes.[continua na pág. 116]

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Imagens do filme e da campanha ‘Encontrar+se’, cujo principal objectivo passa por acabar

com o estigma associado à doença mental. www.encontrarse.pt

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AEAPE – Associação de Educação e Apoio na EsquizofreniaInstituição Particular de Solidariedade Social cujo objectivo é o apoio a pessoas com esquizofrenia e suas famílias.Hospital Júlio de Matos, Av. do Brasil, 53, Lisboa. Tel. 910 071 [email protected] – Associação de Reabilitação e Integração Ajuda

Tem como missão ajudar pessoas com problemas de saúde mental e adquirir recursos necessários à sua reabilitação e à sua integração sócio-profissional.Praça de Goa, 4, Lisboa.Tel. 213 641 099/213 660 [email protected] www.aria.com.ptA FARPA – Associação de Familiares e Amigos do Doente PsicóticoDep. Psiquiatria e Saúde Mental, Hospital

Distrital de Santarém, Apartado 115-2002 Santarém. Tel. 243 300 298Horizonte Aberto – Associação de Familiares e Amigos de Doentes PsicóticosR. Soares dos Reis, 83, sala 12, V.N. Gaia.ASMAL – Associação de Saúde Mental do AlgarveR. General Humberto Delgado, 5, Faro.Tel. 289 807 306www.asmal.org.pt

CONTACTOS úTEIS:

[continuação da pág. 114]

Quando estive pior, era mais agressivo, agora não. Com medicação conseguimos ter uma vida normal, trabalhar,andar de autocarro, ir, por exemplo, daqui a Setúbal. Ainda há muito estigma em relação à doença. Se estou a falar com uma pessoa e digo que ando em psiquiatria, a pessoa muda logo de atitude. De momento não estou a trabalhar, mas estou à espera de respostas. Soube da doença quando estava no primeiro emprego, era paquete e escriturário numa empresa de retroprojectores. É muito bom estar ocupado, ter um trabalho, sinto-me útil. Sempre sonhei ser tropa, gostava de ter ido para os Comandos, mas não foi possível. No princípio tive muito apoio familiar, mas como agora me vêem sem queixas, sem nada, não há tanto apoio. E nós precisamos de ajuda. Há tendência para as pessoas se esquecerem. Há muita gente que não compreende a doença, acham-nos uns coitadinhos que não sabemos o que fazemos. Nós somos mais susceptíveis na passagem de estação, na Primavera e no Outono, porque tem a ver com a mudança. Ficamos distantes, mas depois vamo-nos adaptando. Tenho uma vida social normal, falo com as pessoas. Vivo com qualidade de vida, mesmo tendo a doença.”

publicado no Bristish Journal of Psychiatry, alerta para o perigo do consumo desta subs-tância, muitas vezes considerada inofensiva: “Neste estudo mostrámos pela primeira vez que as pessoas a quem foi diagnosticada esquizofrenia tinham utilizado cannabis mais vezes e por mais tempo. Ou seja, quanto mais se fumar e durante mais tempo, maior é o risco de vir a ter a doença.” Na cannabis existem duas substâncias: o THC (respon-sável pelos efeitos psicotrópi-cos: euforia, riso, paranóia) e o CBD, que parece minimizar alguns efeitos do THC. “O que se tem verificado é que a cannabis tem cada vez mais THC na sua composição. O skunk, por exemplo, que constitui 70% da cannabis consumida no Reino Unido, em vez de ter os normais 3% de THC chega a ter 18%!”, afirma o psiquiatra, que de-fende que mesmo em algu-mas aplicações médicas limi-tadas e muito precisas (alívio da dor, redução de náuseas e vómitos e aumento de apetite em doentes com cancro), ela deve ser dada sob supervisão médica e em indicações clíni-cas específicas.

Novas descobertasNos últimos tempos tem-se avançado no tratamento da esquizofrenia, sobretudo em termos de terapêutica. A medicação, sobretu-do a mais antiga, tinha vários efeitos secun-dários, como aumento de peso, alterações

de movimento e tremores, o que, regra geral, não acontece hoje em dia, no caso de se acer-tar na medicação apropriada ao doente. Mas cada caso é mesmo um caso. Apesar de tudo, ainda há um longo caminho a percorrer. “Continuamos sem entender bem a doença, daí a necessidade permanente de prosseguir com as investigações em diversas áreas, com

o objectivo de promover a saúde, prevenir a recaída e re-abilitar o doente”, adianta a psicóloga Ana Lisa Vicenta. Porque as neurociências são um dos campos da ciência que mais têm evoluído e com o qual o estudo da esquizofrenia tem beneficiado, Tiago Reis Mar-ques está neste momento a fa-zer o doutoramento em Esqui-zofrenia e Neuroimagem. O processo de investigação passa por analisar imagens de resso-nância magnética feitas em pessoas no primeiro surto de esquizofrenia, na tentativa de compreender quais as diferen-ças cerebrais existentes entre pessoas doentes e outras que não têm a doença. “Uma vez

identificadas as áreas cerebrais envolvidas, os neurotransmissores implicados e de que forma os factores ambientais e genéticos interferem no funcionamento cerebral, podemos compre-ender melhor a doençae desenvolver tratamen-tos mais específicos e eficazes”, acrescenta o in-vestigador que espera, num futuro não muito distante, compreender como é que a doença se desenvolve e surge, beneficiando quer o trata-mento quer a prevenção de novos casos. l

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“O esquizofrénico não se sente doente. Há inclusive relatos de doentes que referem as fases de descompensação como as melhores da sua vida”, Ana Lisa Vicente, psicóloga

‘Entre a Razão e a Ilusão. Desmistificando a Esquizofrenia’ de Jorge Cândido de Assis, Cecília Cruz Villares e Rodrigo Bressan. Edição Encontrar+se