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ORGANIZADORES Júnior Macambira Francisca Rejane Bezerra Andrade ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS FUNDAMENTOS E EXPERIÊNCIAS

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ORGANIZADORES

Júnior MacambiraFrancisca Rejane Bezerra Andrade

ESTADO E POLÍTICAS

SOCIAISFUNDAMENTOS

E EXPERIÊNCIAS

ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS: FUNDAMENTOS E EXPERIÊNCIAS

ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS: FUNDAMENTOS E EXPERIÊNCIAS

Organizadores

Júnior MacambiraFrancisca Rejane Bezerra Andrade

FortalezaInstituto de Desenvolvimento do Trabalho

Universidade Estadual do Ceará2014

E79 Estado e políticas sociais: fundamentos e experiências / organizadores, Júnior Macambira, Francisca Bezerra Andrade ; autores, Marcio Pochmann ... [et al.]. – Fortaleza : IDT, UECE, 2014.

300 p

ISBN 978-85-67936-01-7

1. Políticas Sociais. 2. Estado. 3. Sociedade. I. Macambira, Júnior. II. Andrade, Francisca Bezerra. III. Pochmann, Marcio. IV. Título.

CDU: 323.2

CONSELHO EDITORIAL

Tania Bacelar de AraújoAmilton MorettoFernando Augusto Mansor de MattosTarcisio Patricio de AraújoRoberto Alves de LimaPierre Salama

REVISÃO VERNACULARMaria Luísa Vaz Costa

NORMALIZAÇÃO BIBLIOGRÁFICAPaula Pinheiro da Nóbrega

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAPatrício de Moura

CAPAIldembergue Leite

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 1O ESTADO BRASILEIRO E OS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO NO INÍCIO DO SÉCULO 21 ............................................................................................................13 Marcio Pochmann

CAPÍTULO 2ATUALIDADES DA “QUESTÃO SOCIAL”, DA JUSTIÇA SOCIAL E DA GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................................................35 Maria do Socorro Ferreira Osterne

CAPÍTULO 3RUPTURAS, CONTINUIDADES E LIMITES DAS NOVAS PROPOSTAS DE POLÍTICA SOCIAL ..................................................................................................... 57

Carlos Alberto Ramos

CAPÍTULO 4PADRÕES DE DESENVOLVIMENTO, MERCADO DE TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA ENTRE AS DÉCADAS LIBERAL (1990) E DESENVOLVIMENTISTA (2000) ............................................................................79

José Celso Cardoso Jr e Cláudia Satie Hamasaki

CAPÍTULO 5TRABALHO E INTERAÇÃO: INFLUÊNCIAS CONCEITUAIS PARA UMA POLÍTICA PÚBLICA DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL DA JUVENTUDE ......................................................................................................137

Francisca Rejane Bezerra Andrade e Júnior Macambira

CAPÍTULO 6POLÍTICAS PÚBLICAS E JUVENTUDE NA SOCIEDADE BRASILEIRA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE ...................................................................159

Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva

CAPÍTULO 7POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE NO BRASIL: RESGATE DE UMA TRAJETÓRIA EM CONSTRUÇÃO .........................................................................183

Maria Celeste Magalhães Cordeiro e Josbertini Virginio Clementino

CAPÍTULO 8ENTRE MUROS: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL COMO ESTRATÉGIA DE INSERÇÃO SOCIAL PARA ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE ........................................................................................................203Fátima Regina Guimarães Apolinário

CAPÍTULO 9POLÍTICAS DE INCLUSÃO PRODUTIVA E QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL: A EXECUÇÃO DO PRONATEC BRASIL SEM MISÉRIA E O SEGURO-DESEMPREGO NA BAHIA, NO CEARÁ E EM SERGIPE ............................................................... 227

Franco de Matos e Danilo Fernandes Lima da Silva

CAPÍTULO 10EM BUSCA DE MAIOR IGUALDADE DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO: NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS MAIS APROFUNDADAS .............253Maria Cristina Cacciamali e Maria de Fátima José-Silva

CAPÍTULO 11ARTESANATO COMPETITIVO: UM ESTUDO AVALIATIVO SOB O OLHAR DOS ARTESÃOS DE IBIAPINA-CE ................................................................................279Lúcia de Fátima Coelho Lima

APRESENTAÇÃO

Secularmente, a questão social está presente na sociedade brasileira. Ela é expressa na desigualdade. Desigualdade de riqueza, de renda, de direitos, de acesso a oportunidades de educação e saúde. E, nas abordagens transdisciplinares do desenvolvimento ela se revela como centralidade.

Dada a relevância deste tema, desenvolvimento e questão social, foi com grata alegria que recebi o livro Estado e políticas sociais: fundamentos e experiências, organizado por Júnior Macambira, pesquisador do IDT, e Francisca Rejane Bezerra Andrade, professora da UECE. Em 2013, haviam realizado, conjuntamente, a organização de outro livro – Trabalho e formação profi ssional: juventudes em transição.

Estado e políticas sociais: fundamentos e experiências é fruto da iniciativa do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT), em parceria com a Universidade Estadual do Ceará (UECE), e contou com o apoio da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Ceará. Li-o com voracidade e verifi quei o cumprimento de sua proposta desafi adora: abordar as experiências de políticas públicas do Estado, notadamente aquelas desenvolvidas pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Governo do Estado do Ceará (STDS), articulá-las com outras interpretações de pesquisadores engajados da área e, assim, contribuir para o debate acerca das políticas sociais no Brasil e no Ceará.

A organização de um livro com esta temática é tarefa árdua – há infi nitos cortes e dimensões, o que aumenta o risco de se fi ndar com uma colcha de retalhos de artigos. Não é o caso desta obra. A despeito de não ser dividido em tomos, é perceptível o fi o condutor que alinhavou a ordenação dos trabalhos. Os três primeiros tratam de fundamentos gerais. São abordadas questões cruciais: qual o tipo de estado que se deve ter para promover o desenvolvimento; como se avaliar uma proposta de política social, e o que é questão social.

Abre o volume o artigo “O Estado brasileiro e os desafi os do desenvolvimento no início do século 21”, de Marcio Pochmann. O

texto, quase um ensaio, é uma refl exão muito bem articulada acerca de como o Estado brasileiro se estruturou e as suas condições de inserção no século XXI. De fato, o autor vê a corrente crise mundial como uma oportunidade para o Brasil no cenário internacional e chama a atenção para o imperativo de uma “refundação do Estado”, considerando três problemáticas: a necessidade de políticas públicas totalizantes, a mudança do foco de atuação do Estado para políticas redistributivas (vis à vis às políticas distributivas) e a reinvenção do mercado em um cenário onde predominam grandes grupos econômicos, com o Estado fomentando micro e pequenos negócios. O trabalho vai para além de um simples diagnóstico e realiza proposições para reformular o Estado a fi m de que ele possa, efetivamente, pôr em marcha o projeto de desenvolvimento “sonhado por muitos”, nas palavras do autor.

Maria do Socorro Ferreira Osterne, em “Atualidades da “questão social”, da justiça social e da gestão de políticas públicas” escreve texto elucidativo do ponto de vista conceitual. Esclarece o conceito de questão social, também identifi cada como exclusão social; diferencia política pública de política de Estado e, indo ao encontro das ideias de Pochmann, salienta os impactos sobre equidade e justiça da setorialização das políticas sociais públicas. Outro enfoque do trabalho é a análise da gestão social e da gestão estratégica, contrapondo-as enquanto formas de administração da política pública.

Da necessidade e das dificuldades de avaliar a política social Carlos Alberto Ramos faz nascer “Rupturas, continuidades e limites das novas propostas de política social”. O autor enfrenta o desafio de revelar as limitações de novos métodos, utilizados costumeiramente em ciências médicas, transpostos para a avaliação de políticas públicas. Ramos se concentra no uso de metodologias de avaliação que utilizam experimentos aleatórios associados a grupos de controle. O autor alerta para a impossibilidade – tanto geográfica como temporal – de extrapolação dos resultados desses experimentos e ressalta que muitas das variáveis sociopolíticas (instituições, distribuições de estoques de riqueza, estabilidade política etc.), associadas ao nível de bem-estar das sociedades, não poderiam ter validações mediante experimentação aleatória.

O quarto texto, de José Celso Cardoso Jr e Cláudia Satie Hamasaki, denominado “Padrões de desenvolvimento, mercado de trabalho e proteção social: a experiência brasileira entre as décadas liberal (1990) e desenvolvimentista (2000)”, trata de um alvo caro às políticas sociais: o mercado de trabalho. O artigo aborda as principais transformações do mundo do trabalho nacional, entre 1990 e 2013, tendo como pano de fundo a política macroeconômica destas duas décadas.

Os quatro estudos seguintes alicerçam-se em políticas públicas para a juventude, sob diferentes prismas. A temática é oportuna tendo em vista que, no século XXI, a inserção do jovem no mercado de trabalho tem se dado de forma precária e insegura, como revelam os dados da Organização Internacional do Trabalho para 2010, onde se constata que a taxa de desemprego mundial na faixa etária de 15 a 24 anos é 2,6 vezes superior à mesma estatística para os adultos.

Francisca Rejane Bezerra Andrade e Júnior Macambira, também organizadores do livro, escreveram “Trabalho e interação: infl uências conceituais para uma política pública de qualifi cação profi ssional da juventude”, onde se examina a educação voltada para determinado perfi l profi ssional e constata-se que a educação objetivada para tornar o jovem competitivo frente à realidade mundial padece da desvinculação da ideia do desenvolvimento de um cidadão de direitos.

O texto de Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva, “Políticas públicas e juventude na sociedade brasileira – contribuições para o debate”, que registra exame crítico das políticas públicas destinadas aos jovens no Brasil, tem pontos de contato com as conclusões de Andrade e Macambira, particularmente na crítica às políticas públicas de caráter economicista por apresentarem perda signifi cativa da visão totalizante da condição juvenil.

Maria Celeste Magalhães Cordeiro e Josbertini Virginio Clementino, em “Políticas públicas de juventude no Brasil: resgate de uma trajetória em construção”, dão continuidade à temática da juventude e qualifi cação, ao realizarem a interpretação do termo “juventude” e a narração da construção das políticas para a juventude implementadas desde 1986 no

Brasil até o Projovem, o principal programa do governo federal, nos dias hoje, com foco nos cidadãos na faixa etária entre 18 e 24 anos.

Já “Entre muros: educação profi ssional como estratégia de inserção social para adolescentes em privação de liberdade”, de Fátima Regina Guimarães Apolinário, mostra um exemplo prático de educação profi ssional gerido pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) junto ao Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (CECAL), no Estado do Ceará. É uma abordagem qualitativa do estudo de caso de treinamento profi ssional de jovens autores de atos infracionais graves e dos efeitos dessa aprendizagem sobre a autoestima e as expectativas de futuro.

O texto “Políticas de inclusão produtiva e qualifi cação profi ssional: a execução do Pronatec Brasil Sem Miséria e o Seguro-Desemprego na Bahia, no Ceará e em Sergipe”, de Franco de Matos e Danilo Fernandes Lima da Silva, tem seleção espacial primorosa. O Nordeste brasileiro abriga o maior percentual de pobres do País, e os Estados do Ceará, Bahia e Pernambuco servem de lar para cerca de 30% do total de pessoas residentes no Brasil com renda de até ¼ de salário mínimo – enquadradas, portanto em situação de vulnerabilidade social. Tendo em vista que esses programas têm como missão reinserir produtivamente essa parcela da população através de educação inicial e continuada, mulheres e jovens representam uma parcela expressiva desse público-alvo. Desta forma, o texto pode oferecer subsídios a estudiosos de políticas sociais voltadas para o mercado de trabalho, para jovens e para mulheres.

Os dois últimos trabalhos do livro abordam gênero e mercado de trabalho. O primeiro, “Em busca de maior igualdade de gênero no mercado de trabalho: necessidade de políticas públicas mais aprofundadas”, de Maria Cristina Cacciamali e Maria de Fátima José-Silva, trata explicitamente de igualdade de gênero, ao investigar o impacto do tempo de saída da desocupação sobre os diferenciais de salários entre homens e mulheres. Compreender esta questão têm refl exos diretos sobre a elaboração de políticas públicas como as licenças maternidade e paternidade. Segundo os modelos Probit utilizados, o tempo de saída da

desocupação é responsável por cerca de 25% da explicação da diferença salarial entre homens e mulheres, no Brasil.

Por fim, Artesanato Competitivo: um estudo avaliativo sob o olhar dos artesãos de Ibiapina-CE, de Lúcia de Fátima Coelho Lima, toca, indiretamente, em questões de gênero, ao se debruçar sobre o Projeto Artesanato Competitivo do Governo do Estado do Ceará e suas repercussões na vida de 20 mulheres em Ibiapina-CE, que desenvolveram atividades socialmente aceitas e tratadas como femininas (bordado, crochê).

Em graus diversos, os dezesseis pesquisadores, com formação variada nas áreas das ciências humanas e sociais aplicadas, que aceitaram o convite para participar deste livro, estudaram, refl etiram, avaliaram e propuseram mudanças nas políticas sociais do Estado brasileiro. São contribuições originais que, espera-se, possam auxiliar na edifi cação de uma trajetória autônoma do desenvolvimento brasileiro.

Inez Silvia Batista Castro

Professora do Curso de Economia da Universidade Federal do Ceará

CAPÍTULO 1O ESTADO BRASILEIRO E OS DESAFIOS DO

DESENVOLVIMENTO NO INÍCIO DO SÉCULO 21

Marcio Pochmann1

Marcio Pochmann1

O sistema capitalista revela em suas crises periódicas momentos especiais de profunda reestruturação. Na realidade, oportunidades históricas em que velhas formas de valorização do capital sinalizam esgotamentos, enquanto as novas formas ainda não se apresentam plenamente maduras no centro dinâmico do mundo. Nestas circunstâncias abrem-se, muitas vezes, possibilidades reais e efetivas de países deslocados do centro dinâmico do mundo virem a assumir algum grau de protagonismo no desenvolvimento mundial, outrora sob o comandado da antiga e desigual divisão hierárquica do poder global.

De maneira geral, o Brasil tem demonstrado deter condições de aproveitar oportunidades históricas geradas nos momentos de profundas crises e reestruturação do capitalismo mundial. Na Grande Depressão capitalista entre 1873-1896, por exemplo, houve avanço considerável na constituição de uma nova expansão econômica associada à produção e exportação de matérias-primas e alimentos, após várias décadas de regressão econômica derivadas do fi m do ciclo do ouro no século 18. Dado o conservadorismo da oligarquia rural prevalecente em grande parte dos países da região, os esforços

1 Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.

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reformistas do fi nal do século 19 terminaram sendo contidos frente ao ciclo de prosperidade proporcionado pela economia primário-exportadora. O anacronismo republicano acomodado pelo liberalismo fez postergar por mais tempo a longa transição do sistema agrário para a sociedade urbano-industrial, não obstante as reformas impulsionadas na década de 1880, como a política (do Império para a República), e a trabalhista (do trabalho escravo para o livre).

Na Grande Depressão iniciada em 1929, o Brasil novamente experimentou uma onda de reformas inéditas ao até então capitalismo primário-exportador. Pelas mãos de uma grande e heterogênea frente política derrotada ao longo da República Velha (1889-1930), houve avanço signifi cativo na direção do desenvolvimento de suas forças produtivas urbanas, especialmente industriais, acompanhadas de avanços regulados por políticas sociais e trabalhistas aos ocupados formais nas cidades. Em menos de cinco décadas a região se tornou urbana, com áreas industriais avançadas, embora menos da metade de sua força de trabalho contasse com o sistema de proteção social e o trabalho, tendo em vista a postergação na realização das reformas clássicas do capitalismo contemporâneo (agrária, tributária e social). No ano de 1980, por exemplo, o Brasil situava-se entre as oito maiores economias capitalistas do mundo, embora ocupasse o terceiro posto de maior desigualdade do planeta e mais de 50% da população vivesse na condição de miséria.

Na crise atual do capitalismo globalizado iniciada em 2008, o Brasil defronta-se com a possibilidade de protagonizar um novo salto desenvolvimentista após a passagem de mais de duas décadas da regressão econômica e social e sua contradição com a vigência do regime democrático sem paralelo em toda a sua história. Para isso, contudo, o País trata de convergir para uma nova maioria política capaz de sustentar o desenvolvimento da região em novas bases econômicas, sociais e ambientais, tendo por referência as alterações no papel do Estado.

Em relação a isso, três aspectos são explorados nas páginas a seguir, sendo o primeiro referente ao estabelecimento de inovadoras centralidades mundiais, e o segundo associado ao movimento de fortalecimento interno de uma nova maioria política. Na sequência,

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volta-se aos desafi os do desenvolvimento a partir das novas e desafi adoras tarefas do Estado brasileiro.

NOVAS CENTRALIDADES MUNDIAIS

Na perspectiva histórica, o desenvolvimento e suas centralidades dinâmicas mundiais sofreram importantes modifi cações. Até a primeira metade do século 18, os países asiáticos respondiam pela maior parte da produção mundial, tendo em vista a combinação de grande dimensão populacional e territorial. Com a primeira Revolução Industrial (motor a vapor, ferrovias e tear mecânico), a partir de 1750, o centro dinâmico do mundo deslocou-se para o Ocidente, mais especialmente para a Inglaterra, que se transformou na grande ofi cina de manufatura do mundo por conta de sua original industrialização.

A divisão internacional do trabalho resultante da produção e da exportação da manufatura inglesa, em relação aos produtos primários exportados pelo resto do mundo, somente sofreu modifi cações importantes com o avanço da segunda Revolução Industrial (eletricidade, motor a combustão e automóvel) no último quartel do século 19. Naquela época, a onda de industrialização retardatária em curso nos Estados Unidos e Alemanha protagonizou um conjunto de disputas em torno da sucessão da velha liderança inglesa. A sequência de duas grandes guerras mundiais (1914 e 1939) apontou não apenas para o fortalecimento estadunidense como também permitiu consolidar o novo deslocamento do centro dinâmico mundial da Europa (Inglaterra) para a América (EUA).

Com a Guerra Fria (1947-1991), prevaleceu a polarização mundial entre o bloco de países liderados pelos Estados Unidos e pela antiga União Soviética. Nos anos de 1990, contudo, o desmoronamento soviético garantiu aos Estados Unidos o exercício unipolar da dinâmica econômica mundial, embora desde a manifestação da crise global de 2008 se tornassem mais claros os sinais da decadência relativa estadunidense. Como resultado, o reaparecimento da multicentralidade geográfi ca mundial foi acompanhado por um novo deslocamento do centro dinâmico, da América (EUA) para a Ásia (China).

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Dessa forma, países de grande dimensão geográfi ca e populacional voltaram a assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso da China, do Brasil, da Índia, da Rússia e da África do Sul, que já respondem atualmente por parcela crescente da expansão econômica do planeta. Tudo isso, é claro, sem considerar a região de entorno dos países chamados baleia, pois impactam também sistêmica e positivamente na integração suprarregional, que se expandem com maior autonomia no âmbito das relações Sul-Sul. Não sem motivos, demandam reformulações na ordem econômica global (reestruturação do padrão monetário, exercício do comércio justo, novas alternativas tecnológicas, democratização do poder e sustentabilidade ambiental).

Uma nova divisão internacional do trabalho se vislumbra associada ao desenvolvimento das forças produtivas assentadas na agropecuária, na mineração, na indústria e na construção civil das economias baleia. Também ganha importância as políticas de avanço do trabalho imaterial conectadas com a forte expansão do setor de serviços. Essa inédita fase do desenvolvimento mundial tende a depender diretamente do vigor dos novos países que emergiram cada vez mais distantes dos pilares anteriormente hegemônicos do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dólar e assentado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados), atualmente desacreditados.

Nestes termos, percebe-se que a reorganização mundial após a crise global de 2008 apoia-se em uma nova estrutura de funcionamento que exige coordenação e liderança mais ampliada. Os países baleia podem contribuir muito para isso, tendo em vista que o tripé da nova expansão econômica global consiste na alteração da partilha do mundo, derivada do policentrismo, associado à plena revolução da base técnico-científi ca da produção e do padrão de consumo ambientalmente sustentável.

A conexão dessa totalidade nas transformações mundiais requer o resgate da cooperação e da integração supranacional em novas bases. A começar pela superação da antiga divisão do trabalho entre países, assentada na reprodução do passado (menor custo de bens e

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serviços associado ao reduzido conteúdo tecnológico e valor agregado dependente do uso do trabalho precário e da execução em longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia ser efetivamente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a pobreza de outros.

As decisões políticas tomadas hoje pelos países de grandes dimensões territoriais e populacionais em suas regiões de entorno podem asfaltar, inexoravelmente, o caminho do amanhã voltado à constituição de um novo padrão civilizatório global. Para isso, contudo, torna-se estratégica a defi nição de uma maioria política capaz de conduzir a agenda do desenvolvimento a partir das novas centralidades mundiais.

UMA NOVA MAIORIA POLÍTICA

O curso do processo democrático das três últimas décadas no Brasil permitiu a conformação de uma nova maioria política comprometida cada vez mais com a sustentação do atual ciclo de expansão econômica com distribuição de renda desde os anos 2000. Ainda há, porém, muito que avançar nesse sentido, tendo em vista as oportunidades estabelecidas pelo atual cenário mundial de novas centralidades geoeconômicas dinâmicas.

Esse acontecimento combina com o limiar da fase de crescimento considerável conduzido, por um possível longo período de tempo, por forças políticas atentas às novas oportunidades internacionais. Destaca-se que a antiga maioria política do segundo pós-guerra mundial, que procurou dirigir o projeto de industrialização nos países da região, desfez-se a partir da crise da dívida externa (1981-1983).

A imposição imediata da queda na taxa de lucro do conjunto do setor produtivo se manteve, sobretudo pelas medidas macroeconômicas adotadas de esvaziamento do mercado interno em prol da alta exportação e da baixa infl ação. Por mais de duas décadas a região transferiu parcela do seu produto interno ao pagamento da dívida externa, cuja consequência maior foi a interrupção da mobilidade social elevada, principal charme do capitalismo urbano-industrial.

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Nesse contexto, as alternativas implementadas por acordos políticos de ocasião buscaram compensar a redução da taxa de retorno dos investimentos produtivos por meio da crescente valorização dos improdutivos ganhos fi nanceiros. Assim, a região foi modifi cando a macroeconomia da industrialização para a da fi nanceirização da riqueza, com presença permanente das políticas de ajustes fi scais (privatização do setor público, elevação dos tributos e estagnação dos gastos sociais).

Nos anos 1990, a sustentação do custo ampliado com o pagamento do endividamento público, derivado de altas taxas de juros reais, se mostrou capaz de repor aos grupos econômicos o retorno econômico perdido pelo fraco desempenho da produção e garantir o próprio sucesso eleitoral entre as décadas de 1980 e 1990. Mesmo assim, os sinais de regressão econômica e social se tornaram maiores, como a sucessiva perda de posição relativa na economia mundial e a forte elevação do desemprego e exclusão social no conjunto da região.

O processo eleitoral na década de 2000 proporcionou, de maneira geral, o fortalecimento de novas forças políticas geradas pela aglutinação dos setores perdedores do período anterior com parcela crescente de segmentos em trânsito do ativo processo de fi nanceirização da riqueza para o novo ciclo de expansão dos investimentos produtivos. Com isso reacendeu-se o compromisso da maioria política emergente com a manutenção da fase expansiva da economia, embora permaneçam dúvidas em relação ao perfi l do desenvolvimento em curso.

Nesse sentido, uma verdadeira encruzilhada passou a se estabelecer e a aguardar um desfecho neste início do século 21. Em síntese, o resultado da disputa no interior da maioria política pela condição de País da Fama (fazenda, mineração e maquiladoras), ou de País do Vaco (valor agregado e conhecimento).

O cenário atual tende a valorizar mais os países dependentes da exportação de matérias-primas e da geração de produtos internos com forte conteúdo importado. Dessa forma, a reprodução deste cenário interno é sufi ciente com a manutenção da taxa de investimento abaixo de 20% do produto, bem como a contenção da

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inovação tecnológica suprida por compras externas. Os esforços em educação são importantes, embora doutores e mestres em profusão sigam mais ativos na docência do que na pesquisa aplicada no sistema produtivo.

A condição de País da Fama cresce gerando mais posto de trabalho na base da pirâmide social e ocupando maior espaço internacional. Sua autonomia e dinâmica, no entanto, parecem menores frente aos imutáveis graus de heterogeneidade econômica e social que marcam o subdesenvolvimento.

Por outro lado, a condição de País do Vaco pressupõe reafirmar a macroeconomia do desenvolvimento sustentada pelo avanço crescente da produtividade assentada no maior valor agregado e no conhecimento. A superimpulsão dos investimentos é estratégica, seja pela agregação de valor nas cadeias produtivas e nas exportações, seja pela ampliação da inovação tecnológica e educacional exigida. Assim, os desafios do desenvolvimento exigem tanto a convergência produtiva e ocupacional de qualidade como o rompimento do atraso secular na condição subordinada brasileira ao centro do dinamismo mundial.

DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO E TAREFAS DO ESTADO

Para que o curso do ciclo de expansão econômica não repita os erros das duas fases anteriores de forte expansão nacional, a questão social exige tratamento inovador em direção à maior efi ciência e efi cácia das políticas de segurança social. Ou seja, a redefi nição do Estado frente às suas ações e à horizontalização do conjunto das políticas de proteção (previdência, assistência e saúde), promoção (educação, cultura e trabalho), e infraestrutura (habitação, urbanismo e saneamento) social. Isto porque somente o imperativo da integração orçamentária e a intersetorialização das políticas públicas, articuladas por ações matriciais no plano territorial, permitirão enfrentar, em novas bases, as mudanças socioeconômicas que surgem da transição para a sociedade pós-industrial. Nos países da região isso signifi ca que nas próximas décadas a população tende a diminuir em termos absolutos e conviver com considerável envelhecimento etário. No Brasil, por exemplo, estima-se que em 2040, a população poderá ser

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menor que o esperado para 2030, frente à queda da fecundidade impulsionada pela força da transição demográfi ca que reduz relativamente a população jovem e expande o segmento de maior idade. Todas estas profundas mudanças demográfi cas estão sendo acompanhadas por alteração não menos importantes na situação familiar. A cada ano aumenta a presença de famílias monoparentais e chefi adas por mulheres ou por idosos.

Em outras palavras, assiste-se à decrescente capacidade de os novos arranjos familiares proverem, por meio de decisões individuais, condições adequadas de vida, o que exige urgente redefi nição do papel das políticas de atenção social. No Brasil, há ainda parcela importante da população excluída de parte das políticas de proteção social.

O avanço da sociedade moderna coloca o conhecimento na principal posição de ativo estratégico em termos de geração de renda e riqueza. Não obstante a melhora educacional dos últimos anos, os países da região encontram-se muito distantes do necessário patamar de ensino-aprendizagem. Tem ainda a indecência de registrar uma quantidade inaceitável de latino-americanos analfabetos e a parte restante da população com escolaridade média abaixo de oito anos.

Na sociedade moderna o ensino superior passa ser a base para o ingresso no mercado de trabalho, bem como a educação se torna imprescindível durante a vida toda. Hoje, no País, menos de 15% do segmento etário de 18 a 24 anos encontra-se matriculado no ensino superior. A partir do ingresso no mercado de trabalho, em geral, as possibilidades de continuar estudando pertencem fundamentalmente à elite branca. Para os 20% mais ricos, a escolaridade média supera os 10 anos, enquanto os 20% mais pobres mal chegam aos cinco anos. Nos segmentos vulneráveis, como negros e índios, nem isso ocorre.

A persistente dispersão de objetivos e a fragmentação das políticas sociais impõem elevado custo-meio de operacionalização que poderia ser rebaixado sem maior comprometimento de efetividade e efi cácia. Além disso, inibiria o clientelismo e o paternalismo que terminam por obstruir a perspectiva necessária de emancipação social e econômica da população benefi ciada.

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Por outro lado, nota-se que as iniquidades existentes no tratamento concedido pelo conjunto das políticas não se localizam somente na natureza do gasto social, mas fundamentalmente na forma do seu fi nanciamento. A prevalência da regressividade na estrutura tributária que sustenta as políticas públicas na região onera proporcionalmente mais os pobres que os ricos. Por isso, o fi nanciamento das políticas sociais continua a potencializar o patamar da desigualdade originada na distribuição primária da renda e da riqueza.

Embora não tendo registrado o mesmo desempenho observado nas economias centrais, os países da região conseguiram apresentar alguma melhora nas políticas de segurança social. Apesar das especifi cidades de um país periférico, as medidas mais recentes melhoraram em várias modalidades de atenção social, sem, contudo, romper defi nitivamente com a natureza da exclusão social. Se o objetivo da questão social for o enfrentamento da totalidade das vulnerabilidades da população, a ação governamental de médio e longo prazos exige não apenas e exclusivamente a ação setorial, mas, sobretudo, e cada vez mais, a matricialidade das políticas de segurança social.

É nesse sentido que a proposição da consolidação das leis sociais assume importância estratégica. A necessária institucionalização dos mais recentes êxitos das políticas sociais permitiria evitar o constrangimento da descontinuidade temporal das políticas públicas, ao mesmo tempo em que possibilitaria modernizar e ampliar a capacidade do aparelho de Estado para racionalizar procedimentos e recursos.

Por fi m, essas medidas permitiriam a obtenção de maior efetividade, efi ciência e efi cácia no conjunto das políticas públicas voltadas para a segurança social, especialmente quando a transição para a sociedade pós-industrial se torna inexorável. Não obstante os históricos obstáculos e limites impostos ao avanço do sistema de bem-estar social, os países da região possuem, atualmente, a inédita oportunidade política de consolidar o rumo de um novo desenvolvimento capaz de combinar melhora econômica com avanço social. O futuro socialmente justo e economicamente sustentável

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se torna possível a partir de uma maioria política que assuma o protagonismo de conceber, junto com o povo, o que historicamente lhe foi negado: o bem-estar coletivo.

Ao mesmo tempo, deve-se considerar que os avanços técnico-científi cos do começo de século criam nas sociedades modernas condições superiores para a reorganização econômica e trabalhista. De um lado, o aparecimento de novas fontes de geração de riqueza, cada vez mais deslocadas do trabalho material, impõe saltos signifi cativos de produtividade. Isso porque o trabalho imaterial se liberta da existência prévia de um local apropriado para o seu desenvolvimento, conforme tradicionalmente ocorre em fazendas, indústrias, canteiros de obras, escritórios, supermercados, entre tantas outras formas de organização econômica assentadas no trabalho material.

Com a possibilidade de realização do trabalho imaterial em praticamente qualquer local ou a qualquer horário, as jornadas laborais aumentam rapidamente, pois não há, ainda, controles para além do próprio local de trabalho. Quanto mais se transita para o trabalho imaterial sem regulação (legal ou negociada), maior tende a ser o curso das novas formas de riqueza que permanecem - até agora - praticamente pouco contabilizadas e quase nada repartidas entre trabalhadores, consumidores e contribuintes tributários.

Juntas, as jornadas do trabalho material e imaterial resultam em carga horária anual próxima daquelas exercidas no século 19 (quatro mil horas). Em muitos casos começa a haver quase equivalência entre o tempo de trabalho desenvolvido no local e o realizado fora dele. Com o computador, a internet, o celular, entre outros instrumentos que derivam dos avanços técnico-científi cos, o trabalho volta a assumir maior parcela do tempo de vida do ser humano.

De outro lado, há a concentração das ocupações no setor terciário das economias. Somente nos países da região, a maior parte das novas ocupações abertas é nesse setor. Para esse tipo de trabalho o ingresso deveria ser acima dos 24 anos de idade, após a conclusão do ensino superior, acompanhado simultaneamente pela educação para toda a vida.

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Com isso, distancia-se da educação tradicional voltada para o trabalho material, cujo estudo atendia fundamentalmente crianças, adolescentes e alguns jovens. Tão logo se concluía o sistema escolar básico ou médio, iniciava-se imediatamente a vida laboral sem mais precisar abrir um livro ou voltar a frequentar a escola novamente.

Para que os próximos anos possam representar uma perspectiva superior ao que se tem hoje torna-se necessário mudar o curso originado no passado. Ou seja, o desequilíbrio secular da gangorra social. Na ponta alta dessa gangorra encontram-se os 10% mais ricos nos países da região, que concentram parcela signifi cativa de toda a riqueza contabilizada. Em contrapartida, a ponta baixa da gangorra acumula o universo de excluídos, que se mantêm historicamente prisioneiros de uma brutal tributação a onerar fundamentalmente a base da pirâmide social.

No mercado nacional de trabalho também residem mecanismos de profundas desigualdades, como no caso da divisão do tempo de trabalho entre a mão de obra. Em 2010, por exemplo, de cada 10 trabalhadores da região, havia quase um com jornada zero de trabalho (desempregado), e quase cinco com jornadas de trabalho superiores à jornada ofi cial (hora extra).

O pleno emprego da mão de obra poderia ser alcançado no Brasil a partir de uma nova divisão das jornadas de trabalho, desde que mantido o nível geral de produção. A ocupação de mais trabalhadores e a ampliação do tempo de trabalho dos subocupados poderiam ocorrer simultaneamente à diminuição da jornada ofi cial de trabalho e do tempo trabalhado acima da legislação ofi cial (hora extra). Com a redistribuição do tempo de trabalho o reequilíbrio da gangorra social se torna possível.

Na transição atual da sociedade urbano-industrial para a pós-industrial percebe-se o acúmulo de novas e importantes perspectivas para as classes trabalhadoras. Inicialmente, a ampliação da expectativa média de vida, para cada vez mais próximo dos 100 anos de idade. Simultaneamente, percebe-se a forte concentração do trabalho no setor terciário das economias (serviços em geral), podendo representar cerca de 90% do total das ocupações.

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Assim, o terciário tenderia não apenas a assumir uma posição predominante, tal como representou a alocação do trabalho no setor agropecuário até o século 19 e na indústria no século 20, como passar a exigir, por consequência, novas formas de organização e de representação dos interesses desse mundo do trabalho em transformação. Nos países desenvolvidos, por exemplo, os setores industriais e agropecuários absorvem atualmente não mais que 10% do total dos ocupados.

Embora heterogêneo, o setor de serviços responde fundamentalmente pela dinâmica do trabalho imaterial, não mais vinculado à produção de bens tangíveis. Associa-se à produtividade imaterial e passa a ser exercido em qualquer local e horário, não mais em um espaço específi co como era o mundo do trabalho na indústria, na agropecuária ou no extrativismo mineral e vegetal.

As novas tecnologias de informação e comunicação (internet e telefonia celular), em contato com as inovações na gestão da mão de obra, não intensifi cam profundamente o exercício da atividade laboral no próprio local de trabalho. Ademais, constata-se também a extensão do trabalho exercido cada vez mais para além do espaço de trabalho, sem contrapartida remuneratória e protetiva, posto que o sistema de regulação pública do trabalho encontra-se fundamentalmente focado na empresa, como bem defi nem os códigos regulatórios do emprego assalariado nos países da região.

Em virtude disso, a lógica de funcionamento da economia capitalista impõe a geração de maior excedente de mão de obra, a partir de ganhos altíssimos da produtividade imaterial. Para isso o conhecimento, e não mais a força física, torna-se importante na ampliação das novas fontes de geração de riqueza com o uso disseminado do trabalho imaterial. Nesses termos é que a estratégia das classes trabalhadoras precisa ser reinventada, não apenas na defesa da realidade passada, alcançada por segmentos bem posicionados dos trabalhadores, mas também no protagonismo de um novo padrão civilizatório.

No curso da nova sociedade pós-industrial a inserção no mercado de trabalho precisa ser gradualmente postergada, possivelmente para o ingresso na atividade laboral somente após a

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conclusão do ensino superior, com idade acima dos 24 anos, e saída sincronizada do mercado de trabalho para o avanço da inatividade. Tudo isso acompanhado por jornada de trabalho reduzida, o que permite observar que o trabalho heterônomo deve corresponder a não mais que 25% do tempo da vida humana.

Na sociedade agrária o começo do trabalho se dava a partir de cinco a seis anos de idade para se prolongar até praticamente a morte, com jornadas de trabalho extremamente longas (14 a 16 horas por dia) e sem períodos de descanso, como férias e inatividade remunerada (aposentadorias e pensões). Para alguém que conseguisse chegar aos 40 anos de idade, tendo iniciado o trabalho aos seis anos, por exemplo, o tempo comprometido somente com as atividades laborais absorvia cerca de 70% de toda a sua vida.

Naquela época, em síntese, viver era fundamentalmente trabalhar, já que praticamente não havia separação nítida entre tempo de trabalho e de não trabalho. Na sociedade industrial o ingresso no mercado laboral foi postergado para os 16 anos de idade, garantindo aos ocupados, a partir daí, o acesso a descanso semanal, férias, pensões e aposentadorias provenientes da regulação pública do trabalho. Com isso, alguém que ingressasse no mercado de trabalho depois dos 15 anos de idade e permanecesse ativo por mais 50 anos, teria, possivelmente, mais alguns anos de inatividade remunerada (aposentadoria e pensão).

Assim, cerca de 50% do tempo de toda a vida estaria comprometida com o exercício do trabalho heterônomo. A parte restante do ciclo da vida, não comprometida pelo trabalho e pela sobrevivência, deveria estar associada à reconstrução da sociabilidade, ao estudo e à formação cada vez mais exigidos pela nova organização da produção e distribuição internacionalizada. Isso porque, frente aos elevados e constantes ganhos de produtividade, torna-se possível a redução do tempo semanal de trabalho de algo ao redor das 40 horas para não mais que 20 horas. De certa forma, a transição entre as sociedades urbano-industrial e pós-industrial tende a não mais separar nítida e rigidamente o tempo do trabalho do não trabalho, podendo gerar maior mescla entre os dois, com maior intensidade e o risco da longevidade ampliada da jornada laboral para além do tradicional

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local de exercício efetivo do trabalho. Frente a isso, constata-se que o melhor entendimento acerca do novo mundo do trabalho possibilita a reinvenção da pauta sindical comprometida com a construção de uma sociedade superior.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise mundial nesta primeira década do século 21 poderá ser ressaltada no futuro próximo por ter promovido as bases de uma nova fase de desenvolvimento capitalista. Isso porque a crise atual se apresenta como a primeira a se manifestar no contexto do capital globalizado, uma vez que as depressões anteriores (1873 e 1929) ocorreram num mundo ainda constituído por colônias (pré-capitalista) e a presença de experiências nacionais de economias centralmente planejadas.

A nova fase do desenvolvimento depende crescentemente da retomada do capitalismo reorganizado, após quase três longas décadas de hegemonia neoliberal. Os quatro pilares do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema fi nanceiro internacional fundado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados) tornaram-se crescentemente desacreditados. A reorganização capitalista mundial pós-crise deve se apoiar numa nova estrutura de funcionamento. O tripé da expansão do capital consiste na alteração da partilha do mundo em função do policentrismo, na era da associação direta da ultramonopolização do setor privado com o Estado supranacional, e na revolução da base técnico-científi ca da produção e consumo ambientalmente sustentável, conforme pode ser identifi cado na sequência.

Com os sinais de fracasso do equilíbrio do mundo hegemonizado pelos Estados Unidos, após a queda do muro de Berlim, tornou-se mais evidente o movimento de deslocamento relativo do centro dinâmico. Diferentemente da experiência anterior de transição da hegemonia inglesa para os Estados Unidos, gradualmente consagrada pela saída da crise de 1929, percebe-se atualmente a possibilidade real de o mundo pós-crise ser constituído pelo dinamismo policentrista. Ou seja, o fortalecimento de diversos centros regionais do desenvolvimento mundial.

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Nos dias de hoje os controversos sinais de decadência dos Estados Unidos parecem ser mais relativos do que absolutos, tendo em vista a desproporção econômica, tecnológica e militar ainda existente em relação ao resto dos países do mundo. Apesar disso, observa-se que no contexto de emergência da reestruturação no centro do capitalismo mundial ganham maiores dimensões os espaços mundiais para a construção de uma nova polaridade no sul da América Latina, para além dos Estados Unidos, da União Europeia e da Ásia.

No âmbito latino-americano as iniciativas de coordenação suprarregional remontam à instituição do Mercosul, mas têm ganhado maior impulso desde a recente articulação supranacional em torno da Unasul e do Banco Sur, bem como as instituições já existentes. Isso tudo, entretanto, não pode representar apenas iniciativas de vontades políticas, pois depende cada vez mais de decisões governamentais mais efetivas, por intermédio de políticas públicas que procurem referendar o protagonismo de um novo centro regional de desenvolvimento.

Essa possibilidade real de partilha do mundo em novas centralidades regionais implica - além da coordenação de governos em torno de Estados supranacionais - aceitação de parte dos Estados Unidos em reestruturação interna. Do contrário, cabe resgatar o fato de a fase de decadência inglesa desde a Primeira Grande Guerra Mundial ter sido demarcada por grandes disputas econômicas e, sobretudo, militar entre as duas principais potências emergentes da época: Estados Unidos e Alemanha. Ao mesmo tempo, a reação sul-americana à condição de economias exportadoras de commodities para a China termina por equivaler ao retorno de uma situação que predominou até o início do século 20, de exportadores de bens primários à Inglaterra.

Por outro lado destaca-se que, na passagem para o século 21, o modelo de globalização neoliberal produziu, entre outros eventos, uma inédita era do poder monopolista privado. Até antes da crise mundial não eram mais que 500 corporações transnacionais com faturamento anual equivalente à quase metade do Produto Interno Bruto mundial.

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No contexto pós-crise tende a ser um contingente ainda menor de corporações transnacionais a governar qualquer setor de atividade econômica, podendo resultar na ultramonopolização privada sem paralelo histórico. Essa realidade possível faz com que os países deixem de ter empresas, para que empresas passem a ter países.

A ruína da crença neoliberal explicitada pela crise atual tornou profundamente desacreditada tanto a vitalidade dos mercados desregulados como a sufi ciência do sistema fi nanceiro internacional assentado nos derivativos. Por isso, espera-se que algo de novo deva surgir das práticas de socialismo dos ricos na crise internacional por intermédio das enormes ajudas governamentais às corporações transnacionais (bancos e empresas não fi nanceiras).

A maior interpenetração governamental na esfera dos altos negócios ultramonopolistas do setor privado global pode dar lugar ao fortalecimento de Estados supranacionais capazes de alterar as condições gerais de produção dos mercados (regulação da competição intercapitalista e apoio ao fi nanciamento das grandes empresas). Em resumo, percebe-se que a viabilização do capital ultramonopolista global tende a depender crescentemente do fortalecimento do Estado para além do espaço nacional.

Diante da maior instabilidade do capitalismo submetido a poucas e gigantescas corporações transnacionais - muito grandes para quebrarem a partir da própria lógica do mercado - amplia-se o papel do Estado em relação à acumulação de capital. A coordenação entre os Estados supranacionais poderá permitir a minimização das crises frente à regulação da competição intercapitalista. Todavia, o estreitamento da relação cada vez mais orgânica do Estado com o processo de acumulação privada do capital global deve se reverter no aprofundamento da competição entre os Estados nacionais.

Por fi m, o terceiro elemento do novo tripé do possível surgimento do capitalismo reorganizado e em melhores oportunidades ao desenvolvimento encontra-se associado à mais rápida aceleração e internalização da revolução técnico-científi ca no processo de produção e consumo. Pelo conhecimento produzido até o momento acerca da insustentável degradação ambiental gerada pelas atuais

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práticas de produção e consumo, sabe-se que a saída da crise global não deveria passar pela mera reprodução do passado.

Nesse sentido, o padrão de produção e consumo precisa ser urgentemente reconfi gurado. Para isso não apenas a matriz energética mundial vem sendo alterada, como também as alternativas de sustentabilidade ambiental se tornam cada vez mais viáveis do ponto de vista econômico (lucrativas). Assim, as penalizações governamentais às atividades de produção e consumo ambientalmente degradantes devem crescer e serem politicamente aceitas, permitindo que um conjunto de inovações técnico-científi cas possa fazer emergir um novo modelo de produção e consumo menos encadeador da maior mudança climática.

Da mesma forma, o avanço da sociedade pós-industrial, cada vez mais apoiado no avanço do trabalho imaterial, tende a viabilizar uma profunda reorganização dos espaços urbanos, fruto de exigências do exercício do trabalho em locais apropriados (fazenda para a agricultura e pecuária, fábrica e indústria para a manufatura, entre outros). Pelo trabalho imaterial, a atividade laboral pode ser exercida em qualquer local, não mais em espaços previamente determinados e apropriados para isso, bem como em qualquer horário.

Com isso, a reorganização social em comunidades territoriais torna-se possível, o que pode evitar o comprometimento temporal cotidiano com os deslocamentos da casa para o trabalho e vice-versa, entre outras tarefas comuns. Nesses termos, o fundo público precisará ser fortalecido tanto na tributação de atividades de produção e consumo ambientalmente degradantes como nas novas formas de riqueza vinculadas à expropriação do trabalho imaterial.

Somente a maior ampliação do fundo público poderá permitir a postergação do ingresso no mercado de trabalho a partir dos 25 anos, com o estabelecimento de mecanismos que permitam o processo de educação e aprendizagem para a vida toda e, ainda, jornada laboral de até 12 horas por semana. Tudo isso, contudo, pressupõe maioria política necessária para tornar realidade o que hoje se apresenta como mera possibilidade.

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Do contrário, o excedente de força de trabalho cresce, com atividades cada vez mais precárias e empobrecedoras em meio à acumulação de nova riqueza global. Para isso, as transformações do Estado se fazem urgentes e estratégicas. No atual período democrático há uma grande expectativa de se estabelecerem os novos rumos do projeto de desenvolvimento.

Além do obstáculo de consagrar uma nova maioria política que ouse mais na direção da transformação da crise mundial atual em oportunidade de maior reposicionamento do país no mundo, cabe ainda a árdua tarefa da refundação do Estado sob novas bases. Três podem ser os seus eixos estruturantes.

O primeiro consiste na reorganização administrativa e institucional que viabilize a reprogramação de todas as políticas públicas a partir da matricialidade e integração setorial de suas especialidades. Enquanto o Estado funciona na forma de caixinhas setoriais (educação, saúde, trabalho, entre outros) e regionais, os problemas atuais tornam-se cada vez mais complexos e totalizantes, incapazes de serem superados pela lógica de organização pública em partes que não se comunicam, quando concorrentes entre si. A fonte disso encontra-se centrada na recuperação do sistema de planejamento democrático e transparente de médio e longo prazos.

O segundo eixo concentra-se na necessária ampliação das políticas distributivas para as redistributivas. Ou seja, a transição da melhor repartição social do orçamento governamental para a expansão da progressividade do fundo público, com a redução da carga tributária sobre a renda do trabalho e a ampliação de impostos, taxas e contribuições sobre as rendas do capital (lucro, juros, aluguel e renda da terra). Arrecadando mais e melhor, o Estado passa a alterar a desigualdade medieval que se mantém nos países da região latino-americana.

O terceiro eixo se refere à reinvenção do mercado, tendo em vista o poder dos grandes grupos econômicos sobre o Estado. Além das exigências de transparência e crescente participação social, o Estado precisa reconstituir-se fundamentalmente para o verdadeiro mar que organiza os micro e pequenos negócios no

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país, com políticas de organização e valorização do setor por meio da criação de bancos públicos de financiamento da produção e comercialização, fundos de produção e difusão tecnológica e de assistência técnica e de compras públicas.

Esses são alguns dos passos que o Estado precisa percorrer. A refundação do Estado é urgente e inadiável. A oportunidade trazida pela crise mundial é real, mas depende da capacidade interna de organizar uma nova maioria política capaz de colocar em marcha o projeto de desenvolvimento sonhado por muitos e que agora ameaça se tornar realidade.

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Maria do Socorro Ferreira Osterne1

CAPÍTULO 2ATUALIDADES DA “QUESTÃO SOCIAL”, DA

JUSTIÇA SOCIAL E DA GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Maria do Socorro Ferrera Osterne1

Fazendo uma análise retrospectiva da experiência brasileira no campo das políticas sociais, percebe-se que grande parte de sua trajetória foi preponderantemente infl uenciada pelas mudanças econômicas e políticas ocorridas no plano internacional e pelos impactos reorganizadores dessas mudanças na ordem política interna. De fato, situada neste contexto, como bem lembram Bravo e Pereira (2002), a proteção social no Brasil jamais conseguiu apoiar-se fi rmemente nas pilastras do pleno emprego, dos serviços sociais universais, tampouco teceu, até hoje, uma rede de proteção capaz de impedir a entrada e a reprodução de segmentos sociais majoritários da população nas estratifi cadas e diversifi cadas linhas da pobreza.

Refl etir sobre política social, contudo, impõe, preliminarmente, um melhor exame de como se apresenta a “questão social” na atualidade, fenômeno social e individual abrangente tecido sobre relações cotidianas revestidas de matizes ideológicas uma vez alicerçadas nas polêmicas discussões sobre igualdade e diferenças. Discussões essas, via de regra, segmentadas, parcializadas e expressas

1 Maria do Socorro Ferreira Osterne é Assistente Social, Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, Livre Docente pela Universidade Estadual do Ceará e Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco. É Professora Associada da Universidade Estadual do Ceará e Pesquisadora do tema: Família, Gênero e Geração nas Políticas Públicas.

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em ângulos estritos e de alta densidade explicativa. Por envolver questões da ordem da equidade, da imparcialidade, da paridade, da justiça e da liberdade, não poderia, a rigor, ser tema de fácil e de imediata compreensão.

Historicamente falando, a questão social não é um problema novo. Começou bem antes da globalização e dos ímpetos concentradores do sistema fi nanceiro internacional. Seu entendimento, entretanto, comporta muitas interpretações, por sua vez relativas, culturais, históricas e graduais.

A questão social, hoje, por outros e variados caminhos explicativos, também identifi cada como exclusão social, é uma nominação surgida no século XIX a partir das manifestações de miséria e pobreza advindas da exploração das sociedades capitalistas com o desenvolvimento da industrialização. Aliás, o que se apreende, ao longo da história do capitalismo, é que há uma relação direta entre cada período dessa formação social - concorrencial, monopolista e tardio - com os sistemas de proteção social e, no caso específi co, com a assistência social.

Na primeira fase, ou seja, na etapa concorrencial, havia mui-ta fi lantropia, pouco Estado, e não existiam as políticas sociais con-forme entendidas hoje. No segundo momento, fase monopolista, o Estado se amplia, criam-se as políticas sociais e reduz-se o papel da fi lantropia. No estágio do capitalismo tardio, sob a égide neoliberal, a proposta é pouco Estado (com outra feição), redução das políticas sociais e refi lantropização da assistência, inclusive constituindo-se fi lantropia empresarial.

O que se observa é que nas particularidades inerentes a cada um desses períodos a questão social que expressa a contradição capital e trabalho, as lutas de classes e a desigual participação na distribuição da riqueza social, em essência, continua inalterada. Quer dizer, as manifestações se reciclam, se renovam, se atualizam historicamente, porém, sob bases antes já existentes. É referindo-se a essa lógica que Castel (1998) argumenta se estar vivendo uma nova velha questão social. A maior novidade do momento, entretanto, é a sua relevância nas últimas décadas, principalmente a partir dos anos

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1990. Penetrar sua contemporaneidade implica o levantamento de algumas situações.

Compreender a questão social no terreno da economia política até o fi nal da década de 1980, à luz do materialismo histórico de inspiração marxista, parecia ser a maior tendência das correntes de pensamento das esquerdas da época. Porém, a falência do sistema socialista soviético e a descrença em ideais motivadores de lutas por transformações sociais abalaram profundamente os sentimentos das esquerdas no pós-1989. Nesse contexto, ideais de pensamento que haviam abraçado o marxismo optaram por outros caminhos. Como na maioria das vezes as mudanças da teoria seguem as alterações da política, apareceram no cenário novas tentativas de constituição de paradigmas explicativos diante dos desafi os postos pela chamada sociedade pós-industrial, pós-socialista ou pós-moderna.

Levando em consideração que o presente artigo não pretende se ocupar de um maior detalhamento das adjetivações atribuídas à sociedade contemporânea, é dever indicar autores como David Harvey, Jean-François Lyotard e Edgar Morin como teóricos dedicados a pensar criticamente o atual momento histórico de rápidas e profundas alterações ocorridas,

[...] no cenário planetário- como a globalização econômica crescente, a elevação dos fl uxos transfronteiras, a irrupção de ódios étnicos em meio às guerras de esfacelamento de países artifi cialmente mantidos pela Guerra Fria e o terrorismo em escala global, dentre outros. (LIMA, 2010, p. 8).

No tocante a outros caminhos trilhados pelas esquerdas para dar conta das novas demandas sociais, estes passaram a expressar, nitidamente, uma divisão interna (teórica e prática) dos movimentos sociais progressistas. Funcionando como pano de fundo dessa divisão situam-se as discussões, muitas delas ultrapolarizadas, sobre igualdade e diferença. Discussões que permanecem atuais para pensar as desigualdades sociais que alicerçam a questão social contemporânea e também o ideal da justiça social.

Assim a histórica oposição entre igualdade/diferença persiste aparecendo como um tema fecundo para o debate. A dialética entre

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igualdade como princípio e igualdade como práxis continua a alimentar a construção do que se poderia chamar uma verdadeira teoria social do gênero, da nacionalidade, da raça/etnia e da sexualidade, dentre outros temas relacionados.

De fato, o debate sobre a igualdade e/ou a diferença que atualmente se desenvolve não só entre as feministas, ultrapassa, em larga medida, o âmbito acadêmico em suas implicações, pois remete a um importante problema político e à própria teoria do conhecimento. Suas metas, portanto, exigem transformações sociais em grandes dimensões. A propósito desse debate, Flávio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), em artigo que leva o título “Ciladas da diferença” (PIERUCCI, 1993) possibilita uma exata ideia do que possa ser a ultrapassagem dessa temática para o plano da política e da própria teoria do conhecimento. Nesse artigo o autor procura analisar aquilo que chama de armadilhas racistas, sexistas e moralistas, existentes nos discursos das esquerdas que focalizam e enfatizam o direito à diferença, dirigidas, inclusive, contra os próprios movimentos de esquerda.

Para Pierucci (1993), a bandeira das diferenças, atualmente empunhada pela esquerda como uma novidade pelos “novos” movimentos sociais (das mulheres, dos negros, dos índios e dos homossexuais), em sua origem constituiu o grande signo das direitas, velhas ou novas, extremas ou moderadas. Foi a ultradireita do fi nal do século XVIII e primeira década do século XIX, a primeira direita a surgir como reação a toda espécie de universalismo e igualitarismo existentes nas ideias fi losófi cas da época. Nos argumentos do autor a defesa das diferenças carrega tentativas de explicar as desigualdades de fato ao mesmo tempo em que reclama a desigualdade de direito.

Em suas análises diz que para os indivíduos de esquerda, principalmente os intelectuais, “a diferença não tem nada a ver com a desigualdade”. “É uma questão de pluralismo cultural!” [...] “A verdadeira igualdade repousa na diferença.” (PIERUCCI, 1993, p. 5). Raciocina que todas as diferenças não são hierarquizantes, mas a maioria sim, sobretudo quando as diferenças são defi nidoras de coletividades, de categorias sociais e de grupos. Querer defender as diferenças em bases igualitárias, enfatiza, é uma tarefa muito difícil em termos práticos, embora mais fácil em termos teóricos.

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Louvar o direito à diferença tem assumido pretensões emancipatórias como, por exemplo, nos círculos feministas mais intelectualizados, assim como no interior de outros movimentos sociais em defesa das identidades coletivas. Contudo, na ótica de Pierucci (1993), existe uma grande difi culdade de seguir até o fi m a lógica do postulado da diferença (grupal) sem reforçar práticas discriminatórias.

Por outro lado, Dagnino (1994), discorrendo sobre a apropriação e a possibilidade da emergência de uma nova “cidadania”, vincula essa possibilidade, dentre outras condições, à experiência concreta dos movimentos sociais, tanto ao de tipo urbano quanto aos movimentos de mulheres, negros, homossexuais e ecológicos, nos quais a luta por direitos tanto à igualdade como à diferença constitui sua base fundamental. Admitindo não estar preparada para desenvolver uma análise mais aprofundada sobre esta questão, a autora sugere, no contexto de uma visão historicizada da cidadania como estratégia, um quadro de referência teórico e político onde seja possível articular o direito à igualdade com o direito à diferença.

Dagnino (1994), partindo dos argumentos de Pierucci (1993), indica que, para ele, não se trata de recusar a diferença, mas de entender o que a diferença designa. Isso por acreditar na existência de um intrínseco vínculo entre igualdade e diferença. Lembra que, no campo da direita, a diferença sempre surge como afi rmação do privilégio, portanto como defesa da desigualdade. No campo da esquerda a diferença surge como reivindicação exatamente na medida em que ela determina desigualdade. A afi rmação da diferença, na ótica da autora, vincula-se sempre à reivindicação de que ela possa existir como tal, que possa ser vivida, sem que isso signifi que ou tenha como consequência o tratamento desigual e a discriminação.

Dagnino (1994) observa, enfi m, não querer escapar, recusar ou negar os riscos da articulação entre igualdade e diferença, os quais não seriam maiores do que tratar essa questão de forma desarticulada. Diz, portanto, que todo campo político relevante é sempre minado pela disputa e pela fi xação de signifi cados. Em outra linha de raciocínio, alerta para o equívoco de pensar a diferença positiva, ou seja, aquela

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afi rmada na defesa de um privilégio, como um dado sensível imediato e, consequentemente, facilmente percebido por todos.

Por outro lado, a diferença negativa que serve de base à discriminação e à desigualdade não é um dado sensível e percebido. Ao pensar assim lhe parece optar por um viés mais identifi cado com o conservadorismo popular do que com uma perspectiva de avaliação consciente dos grupos sociais que vivem o cotidiano de uma cultura autoritária. No seu pensamento, se a desigualdade não fosse constituída enquanto discriminação à diferença ela não existiria como reivindicação de direito. (DAGNINO, 1994). E, assim observando, lhe parece que o direito à diferença aprofunda e amplia o direito à igualdade.

Ainda neste sentido, são bastante atuais e instigantes, não obstante polêmicas, as refl exões de Nancy Fraser, considerada uma das pensadoras mais lúcidas do debate contemporâneo sobre justiça social. Fraser, a partir de 1980, tem se dedicado a formular uma concepção de justiça que seja capaz de sair das polaridades entre igualdade social e diferença cultural, procurando compreendê-las em um contexto histórico marcado pelas aceleradas e profundas mudanças do mundo, infl uenciadas pela globalização econômica e tecnológica, pela elevação dos fl uxos transfronteiras, pelo fundamentalismo/terrorismo e pelas guerras entre países artifi cialmente mantidas pela Guerra Fria, como já citado anteriormente.

Tomando, preferencialmente, as políticas feministas como objeto de análise, Nancy Fraser propõe uma abordagem bidimensional da justiça de gênero, válida, entretanto, para todos os movimentos sociais. Suas primeiras preocupações foram expor os dilemas entre as políticas econômicas de redistribuição e as políticas culturais de reconhecimento.

Lima (2010), em seu trabalho dissertativo sobre o sentido de justiça em Nancy Fraser, expõe que o núcleo normativo da concepção freseriana de justiça é a noção de paridade de participação. Para a autora, no dizer de Lima (2010), a paridade da participação possui duas condições para além dos padrões de igualdade legal formal, ambas necessárias. Uma condição objetiva, referida à distribuição

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de recursos materiais, e uma condição intersubjetiva, relacionada a padrões institucionalizados de respeito e oportunidades iguais para todos. Na sua concepção as lutas sociais contemporâneas têm apresentado uma forte tendência ao “fortalecimento de movimentos sociais comprometidos com a defesa de grupos historicamente injustiçados sob o ponto de vista cultural e simbólico.” (LIMA, 2010, p. 8). Refere-se, principalmente, aos movimentos feministas, de negros, de gays e lésbicas, já existentes anteriormente, mas que se fortaleceram a partir da derrocada do sistema socialista soviético, quando se assume, progressivamente, a bandeira da luta pelo reconhecimento da diferença como proposta autônoma de ação social, muitas vezes deixando de lado ou obscurecendo a antiga problemática da desigualdade econômica. (LIMA, 2010).

Para Lima (2010), Nancy Fraser observa que essa nova forma assumida pelos movimentos sociais emergentes desencadeou muitas tensões no interior da própria esquerda política, fazendo aparecer um vigoroso, polêmico e ideológico debate sobre “igualdade versus diferença” cuja tentativa de superação se tornou um encargo importante e imprescindível ao pensamento e às práticas sociais progressistas. Se as intenções redistributivas igualitárias dominaram nos últimos séculos toda a produção do conhecimento empenhada em transformações sociais, as lutas por reconhecimento cresceram depois da queda do socialismo soviético no fi nal do século XX.

A proposta de Fraser (2002) é, portanto, compreender a justiça social na sociedade contemporânea, por ela chamada de sociedade pós-socialista, investigando a relação entre os anseios por redistribuição e as reivindicações por reconhecimento, para, no fi nal, defender que a concepção de justiça, por um lado, precisa incorporar as preocupações tradicionais das teorias de justiça distributivas, especialmente a pobreza, a exploração, a desigualdade e os diferenciais de classe. Por outro, necessita, também, assimilar as preocupações recentemente ressaltadas nas fi losofi as de reconhecimento, sobretudo o desrespeito, o imperialismo cultural e a hierarquia de status. (FRASER, 2002).

O resultado dessa posição é uma concepção bidimensional de justiça que absorve tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, sem reduzir uma política em detrimento da outra. Aprofundando mais

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ainda suas refl exões, Fraser (2002) converge para acrescentar que os debates contemporâneos sobre justiça não podem abranger somente questões substanciais de primeira ordem relativas à desigualdade econômica e ao respeito à diferença. Propõe, por conseguinte, que as teorias da justiça devam se tornar tridimensionais, ou seja, que incorporem a questão política da representação (pertencimento social). Sendo as questões da representação especifi camente políticas, não poderiam se reduzir aos problemas culturais e econômicos, mesmo que entrelaçados. Apesar de a redistribuição e o reconhecimento serem eles próprios políticos, uma vez permeados pelo poder o político possibilita o cenário no qual se travam as lutas por redistribuição e reconhecimento, pontua a autora.

Polêmicas à parte, não se pode deixar de reconhecer a atualidade, a pertinência e o vigor que todas essas discussões sobre igualdade versus diferença têm emprestado para um melhor entendimento dos problemas sociais da atualidade. A igualdade como categoria ético-política e as desigualdades assumem perfi l singular frente a uma confi guração particular dos modelos adotados pelas sociedades para se produzirem e se reproduzirem segundo os princípios dominantes do sistema capitalista em vigor. Além do mais, não se pode esquecer que é preciso, também, retomar o signifi cado atribuído aos direitos sociais, uma vez que sua trajetória, em sociedades distintas, inclui o aspecto das relações de poder e da divisão de classe.

Feitas essas considerações introdutórias, cujo início problematiza a noção da questão social, entendendo-a como a razão de ser das políticas sociais públicas, passa-se para o que pode ser considerado a segunda parte desta refl exão, cujo foco serão as atuais confi gurações das políticas sociais brasileiras frente à problemática do desenvolvimento e do seu ideal contemporâneo.

As questões sociais brasileiras atuais são historicamente específi cas, embora carreguem, em si, a síntese de todas as transformações ocorridas no cenário geopolítico mundial, com destaque para o fi m da guerra fria, para a contestação da hegemonia estadunidense, para a ascensão do neoliberalismo, não obstante suas nefastas consequências para o espraiamento da globalização. Nesse contexto, não é difícil imaginar que antigos paradigmas, já plenamente

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estabelecidos, comecem a se desestabilizar, forçando a necessidade da constituição de novos instrumentos de análise e novas formas para compreender e enfrentar os problemas sociais.

Tendo como objeto refl etir sobre as políticas sociais públicas, seus rumos e suas fi nalidades, um primeiro desafi o, portanto, será o de pensar o que venha a ser desenvolvimento, dizendo melhor, a que desenvolvimento se está referindo quando se trata de direitos sociais ou, ainda, que noção de desenvolvimento conviria a um estado de justiça e equidade social.

O movimento da realidade nos últimos dez anos tem deixado claro que não faz mais nenhum sentido insistir no poder regulador do mercado. O aumento da miséria e da desigualdade, o drama do desemprego, as nefastas consequências acumuladas na vida e no cotidiano dos povos deixam evidente que os mercados, por si sós, não têm a menor condição de promover resultados socialmente justos e economicamente efi cientes. Sendo assim, a nossa época está a exigir respostas políticas mais ousadas, atitudes mais impactantes e refl exões teóricas mais inovadoras. (NOGUEIRA, 2005).

Não faz mais, também, sentido nenhum pensar o desenvolvi-mento apenas por sua vertente econômica, relacionada ao custo e ao lucro, mas como uma dinâmica que incorpore, de forma combinada, a dimensão da democracia, da justiça social e da ecologia. Em síntese, um desenvolvimento sustentável ecológico e socialmente estabeleci-do. Porém, para que esta noção seja internalizada e exercida é preciso mudar o paradigma da ação transformadora rumo a uma ontologia e a uma epistemologia que traga consigo uma nova valorização do insti-tucional, do político e do estatal.

De uma conotação originariamente genérica e aparentemente neutra, a noção de desenvolvimento assumiu o sentido de um estado positivo e desejável. Seus adjetivos pretendidos são: político, econômico, social, tecnológico, sustentável, justo, inclusivo, humano, emancipador, harmônico, cultural, material etc. Seus principais indicadores, antes, eram de natureza essencialmente econômica. Como bem refere Nogueira (2005), encontrar esse sentido exige inteligência técnica, criatividade/inventividade, mas, principalmente,

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uma abordagem inovadora da questão do Estado. Para Nogueira (2005), é preciso retomar sua reforma, não pela via do econômico, mas pelo seu sentido ético-político e por sua relevância estratégica. Além do mais, não se pode discutir o Estado, hoje, a fundo e com rigor, sem considerar o contexto da reestruturação socioprodutiva, a revolução tecnológica, a transformação do mundo do trabalho e a mundialização: do capital, das redes de comunicação e dos sistemas de informação.

Um novo poder político e um novo Estado, por sua vez, precisam trazer consigo uma nova cultura, um novo homem, uma nova cidadania. Prescindem, portanto, de uma reforma intelectual e moral, assentada no pleno emprego do recurso democrático, do diálogo e da negociação. Pressupõem, em síntese, o Estado de Direito. Tudo isso deverá ter sua gênese no campo de uma educação efetivamente emancipatória e de uma cultura revolucionária de valorização da condição humana.

Como se percebe, trata-se de uma complexidade sugestiva da prevalência do ético-político e do social sobre o econômico, e de uma maior valorização do momento estatal e político-institucional. Nas palavras de Nogueira (2005, p. 32),

Em sociedades complexas e fragmentadas, cortadas por interesses que não se compõem com facilidade e inseridas em posição subalterna no capitalismo globalizado, como o Brasil, parece pouco provável que se consiga pensar a mudança e a organização de novas hegemonias sem o pleno emprego do recurso democrático ao diálogo e à negociação. A transformação se assemelha a uma obra de arte política, edifi cada e lapidada ‘molecularmente’ ao longo do tempo por amplos arcos de sustentação.

Hoje, ainda estamos, na realidade brasileira, vivendo incertezas no tocante à possibilidade de uma política de desenvolvimento capaz de garantir o pleno emprego, o crescimento da renda e o enfrentamento das injustiças sociais. Portanto, nunca foi tão oportuno revigorar a ideia de um pacto político pela cidadania. Neste sentido, repensar a forma como as políticas sociais públicas estão sendo implementadas é tarefa importante, porém complexa, uma vez que uma gestão democrática não se esgota no administrativo, tampouco no fi nanceiro ou na manipulação

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de sistemas. Neste ponto, compreendido como o terceiro momento desta refl exão, é oportuno perguntar sobre o problema propriamente dito da gestão das políticas sociais públicas, assunto deveras importante, mas sempre tratado de forma periférica, assentado em lógicas tecnocráticas fora de uma racionalidade ético-política.

Primeiramente, convém comentar que muito se fala sobre política pública, porém pouco se atenta para a essência do seu sentido. A rigor, política pública não é sinônimo de política estatal. Segundo Bravo e Pereira (2002), a palavra “pública”, que acompanha a palavra “política”, não expressa identifi cação exclusiva com o Estado. É, portanto, pública no sentido de res publica, isto é, coisa de todos, e, por isso mesmo, algo que compromete, simultaneamente, o Estado e a sociedade. Res pública como forma de organização política que se pauta pelo interesse comum, pela vontade da comunidade, pela soberania popular, e não pelos que governam. Política pública é, assim, na ótica dessas autoras, ação pública, ou seja, onde além do Estado a sociedade se faz “presente”, adquirindo representatividade, poder de decisão, além das condições de exercer o controle sobre a sua própria reprodução e sobre os atos e decisões do governo e do mercado. Já a noção de política se refere a planos, estratégias ou medidas de ação coletiva, formulados e executados com o objetivo de atender as legítimas demandas e necessidades sociais.

Para Bravo e Pereira (2002), política pública signifi ca ação coletiva que tem por função concretizar direitos sociais demandados pela sociedade e previstos nas leis. Os direitos sociais que aludem à participação do povo na riqueza coletiva incluem: educação, trabalho, salário justo, saúde e aposentadoria. São direitos que possibilitam reduzir os efeitos das desigualdades inerentes à sociedade do capital. Esses direitos, declarados e garantidos nas leis, só têm aplicabilidade por meio de políticas públicas correspondentes, as quais, por sua vez, se operacionalizam mediante programas, projetos e serviços.

É por meio das políticas públicas que são planejados e postos em prática programas de distribuição de bens e serviços regulados e providos pelo Estado, com o envolvimento e o controle da sociedade, complementam as autoras. (BRAVO; PEREIRA, 2002). Elas alertam, contudo, para o fato de a relação da sociedade com o Estado na

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operacionalização dessa política nem sempre ser de reciprocidade, aliança e parceria, mas de competição e confl ito. Confl itos que precisam ser trabalhados para o aperfeiçoamento da política e do interesse público. (BRAVO; PEREIRA, 2002).

De fato, muitas vezes a política pública apenas representa aquilo que o governo opta por fazer ou não fazer diante das situações que se apresentam. Quando se delega ao Estado a autoridade para unifi car e articular a sociedade, as políticas públicas passam a ser um instrumento privilegiado de dominação, como muitas vezes tem ocorrido na realidade brasileira.

Assim, a política pública, ao mesmo tempo em que se constitui uma decisão, supõe uma certa ideologia de mudança social, esteja ela explícita ou não na sua formulação. É preciso compreender que essa decisão resulta do compromisso de uma racionalidade técnica com uma racionalidade política. (NOGUEIRA, 2005). É exatamente nessa dimensão política que poderá residir sua natureza contraditória, ou seja, mesmo constituída para a manutenção do status quo, poderá caminhar em favor da justiça social. Em todos os casos, para que exista uma política pública é fundamental a existência de instrumentos de ação coletiva, ou seja, de ações alicerçadas em decisões de natureza coletiva, pois seu encargo básico é a constituição da cidadania social.

Porém, sob o ponto de vista da operacionalização propriamente dita, percebe-se que no Brasil as políticas sociais públicas, em sua dimensão institucional e em todos os níveis dos poderes (municipais, estaduais e federais), caracterizam-se por um conjunto desarticulado de instituições responsáveis por políticas setoriais, extremamente segmentadas, que sobrepõem usuários e competências, além de espalharem e, via de regra, desperdiçarem recursos oriundos de uma diversidade não planejada de fontes. Assim, recebem o cidadão e seus problemas de forma fragmentada, com ações e serviços executados setorialmente, mesmo que se trate da mesma família, da mesma criança, do mesmo adolescente, da mesma mulher, do mesmo idoso, enfi m do mesmo trabalhador.

É prática comum entre as políticas públicas brasileiras a desti-nação de recursos para o enfrentamento de determinado problema,

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como por exemplo, o trabalho infantil, desconsiderando o contexto em que a criança se insere, o analfabetismo ou o semianalfabetismo do seu grupo familiar, a desqualifi cação profi ssional, o desemprego e/ou o subemprego de seus pais, a inexistência de escolas de qualidade próximas de sua moradia e a insalubridade de sua habitação, den-tre outros fatores determinantes de sua condição de exclusão social, econômica, política e cultural.

A insistência em trabalhar problemas isolados compromete o entendimento do indivíduo em sua dimensão relacional e de complexa totalidade. Consequentemente, não poderá agir sobre a essência do problema demandado. Seria, portanto, o caso de perguntar: a quem interessa a setorialização das políticas sociais públicas? Ora, o atendimento das demandas sociais como um conjunto de direitos relacionados entre si poderá convergir para a ampliação da cidadania e para a emancipação do coletivo. A setorialização, portanto, interessa a todos aqueles que não têm vontade política para fazer acontecer a equidade e a justiça social.

No tocante ao patamar do conhecimento da administração ou gestão de políticas públicas, importa considerar que essa área, somente nos últimos sessenta anos, consolidou-se como um corpo teórico específi co, com um instrumental analítico e uma gramática própria, voltada à compreensão de seus fenômenos de natureza político-administrativa.

O início da década de 1950 é considerado o marco do surgimento da área disciplinar de estudos das políticas públicas. Nessa época surgiu um crescente interesse de estudiosos e pesquisadores sobre a formulação, a implementação e a avaliação desse tipo de política. Os conhecimentos na área de políticas públicas são necessários àqueles que lidam com problemas públicos, notadamente nos setores dedicados às áreas de saúde, educação, segurança, habitação, trabalho, transporte, saneamento, ambiente, defesa nacional, assistência, cultura, desenvolvimento e gestão pública. (SECCHI, 2010).

Para Secchi (2010), quando se quer encontrar as bases epistemológicas e os modelos de análise das políticas públicas buscam-se seus principais fundamentos disciplinares nas ciências políticas; na Sociologia e na Economia. Mas, também, na

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administração pública, na teoria das organizações, na Engenharia, na Psicologia Social e no Direito. Conviria acrescentar a Filosofi a (na dimensão da Ética e da Moral), imprescindível para o entendimento da administração pública no mundo contemporâneo, quando se fala em agentes conscientes, sociedade tecnológica ou do conhecimento e da informação, ao mesmo tempo em que os episódios de falta de transparência continuam a desafi ar a possibilidade de uma gestão efetivamente democrática.

O maior desafi o dos governos e da administração pública na atualidade, entretanto, parece ser o de promover o desenvolvimento econômico e social sustentável através de políticas públicas. A expectativa dos cidadãos é de que a gestão das organizações no setor público deva se realizar sob a égide do Estado de Direito e da democracia política. Assim sendo, o ambiente da gestão pública deve ser representado pelo contexto social, político, jurídico e econômico do Estado e da administração.

Assim, na busca das bases epistemológicas e dos modelos de análise das políticas públicas, compreender o Estado constitui tarefa imprescindível. Na ótica de Pereira (2010), em um sentido amplo as principais funções do Estado situam-se em quatro grandes setores: as funções de Estado stricto sensu, encarregadas da ordem externa, da defesa do território, da representação externa, do provimento da justiça, da tributação e da administração dos serviços que presta; as funções econômicas orientadas para a criação e administração da moeda nacional, da regulamentação dos mercados e promoção do desenvolvimento (planejamento, geração de incentivos e estímulos, construção de infraestrutura em setores estratégicos, entre outros); as funções sociais para provimento universal dos bens sociais fundamentais (saúde, educação, habitação, alimentação, redes de proteção social etc.); e as funções de preservação do meio ambiente.

As políticas de Estado, portanto, orientam-se pelos preceitos consagrados na Constituição, apresentam caráter particularmente estável e infl exível e determinam que os governos de um estado as implementem, independentemente dos mandatos que os eleitores lhes confi am em determinados momentos históricos.

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As políticas de governo, nas refl exões de Heidemann e Salim (2010), são geridas com o auxílio da estrutura administrativa estabelecida para resolver ou pelo menos minorar os problemas sociais na sua totalidade ou setorialmente nas suas especifi cidades. Na ótica de Heidemann e Salim (2010), no Brasil os recursos da administração pública se caracterizam, em boa parte, por um processo de caráter eminentemente formal e também patrimonialista. Trata-se de uma administração que tem sua base de operação na instituição “repartição pública”.

Neste sentido prevalecem os meios postos em prática pelo seu administrador, o funcionário público. A administração pública brasileira é o espaço por excelência da burocracia pública e de uma ainda intensa apropriação “corporativa e política” pouco sensível à cidadania, e mais preocupada com a “efi cácia social do governo”. Lembra, ainda, que a política pública vai além da perspectiva de políticas governamentais, e que o governo não é a única instituição promotora de políticas públicas, uma vez que uma associação de moradores, as empresas concessionárias, as associações diversas da sociedade, enfi m, as Organizações Não Governamentais (ONGs) também se constituem agentes de políticas públicas. No chamado terceiro setor se dá a produção de um bem público por agentes não governa mentais, ao mesmo tempo distintos do setor empresarial e do mercado.

Contudo, a relação entre políticas públicas e instituições governamentais é muito íntima. Mais rigorosamente falando, uma política não se transforma em política pública antes que seja adotada, implementada e cumprida por alguma instituição governamental. Além do mais, as instituições governamentais emprestam às políticas públicas três características distintas, ou seja, legitimidade (obrigações legais sujeitas à lealdade dos cidadãos); universalidade (dizem respeito a todas as pessoas); poder e coerção (somente os governos podem legitimamente conter os violadores de suas políticas).

Sob o ponto de vista instrumental, Heidemann e Salim (2010) sugerem que o ciclo conceitual das políticas públicas passa por quatro etapas: a primeira se refere às decisões políticas tomadas para resolver problemas sociais previamente estudados; depois de formuladas e regulamentadas em leis precisam ser implementadas. Numa terceira

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etapa procura-se verifi car se as partes interessadas estão sendo satisfeitas em suas demandas e se estão fazendo uso dos controles sociais postos à sua disposição. Enfi m, as políticas públicas precisam ser avaliadas com vistas à sua continuidade, ao seu aperfeiçoamento ou reformulação, ou simplesmente à sua descontinuidade.

Apesar das mudanças provocadas pelo processo de globalização e pelas intensas pressões da sociedade, a gestão do setor público brasileiro continua a padecer de uma “estrutura pesada, burocrática e centralizada em diversas áreas, notadamente na social [...] e não tem sido capaz de responder, adequadamente, enquanto organização, às demandas e aos desafi os do momento atual.” (PEREIRA, 2010, p. 9).

De fato, o desafi o da administração pública tem se tornado cada vez mais ingente. Os teóricos e pesquisadores da área de gestão pública precisam continuar investindo na busca de uma visão estratégica para melhor compreender e enfrentar os problemas da gestão pública brasileira contemporânea. Pelo menos três razões estão sendo recorrentemente apontadas como motivo de preocupação para os gestores públicos e para os cidadãos. A primeira delas é que o mercado já deu provas de que por si só não consegue substituir o Estado no âmbito das políticas públicas, e que ambos precisam de um governo mais identifi cado com a justiça social. A segunda se refere às crescentes exigências relacionadas com a capacidade de implementação de políticas públicas mais societárias. A terceira observa que os cidadãos contribuintes estão cada vez mais críticos e exigindo mais qualidade dos serviços em troca dos elevados impostos que pagam.

Ultimamente, a expectativa é de que a gestão pública incorpore um elevado nível de compromisso, responsabilidade, transparência, ética e senso de justiça. Sendo assim, fala-se em governança pública. Trata-se de um tipo de arranjo institucional governamental que procura articular as dimensões econômico-fi nanceira, institucional-administrativa e sociopolítica, e estabelecer parceria com a sociedade civil e o mercado na busca de soluções inovadoras para os problemas sociais e o aprofundamento da democracia. (RONCONI, 2014).

A concepção de governança pública tem como referência um projeto político democratizante no qual a participação da sociedade

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civil torna-se condição imprescindível para a consolidação da democracia. Difere, categoricamente, do projeto neoliberal em cuja concepção de governança a participação da sociedade civil ocorre unicamente porque o Estado lhe transfere parcelas de sua responsabilidade. No projeto neoliberal, as ações de cooperação e parceria terminam se transformando em formas de cooptação, prestação de serviço e redução do Estado.

Governança pública é, portanto, uma nova tendência da administração pública e da gestão de políticas públicas que ultrapassa a perspectiva do cidadão como portador autônomo de direitos. Introduz a reivindicação cidadã de um direito que ultrapassa os direitos civis, políticos e sociais. Supõe a democracia participativa, a reforma do Estado, enfi m, a reforma política.

As reformas liberais preocuparam-se com a efi ciência do serviço público. A ideia embutida na proposta da governança pública é de um novo serviço público caracterizado por servir aos cidadãos como sujeitos políticos, contribuindo para uma noção compartilhada de interesse público, para a valorização da cidadania ativa e das pessoas, e não da produtividade.

A reforma liberal dos anos 1990 supunha a administração como negócio, a antiburocracia e o Estado enxuto, tendo como valores preponderantes a efi ciência e a efi cácia do serviço direcionado para o usuário-cliente (aquele que recebe a ação) e a qualidade. Lógica, em parte, embutida no conhecido método da Gestão por Resultado (GPR).

A GPR se refere a um modelo de gestão pensado para o setor público, respaldado na ideia de uma postura empreendedora, voltada para o cidadão como cliente que pretende, pelo menos em nível de discurso, padrões ótimos de efi ciência, efi cácia e efetividade, com ética e transparência. O que se tem observado é que esse modelo, em nenhum momento, se comprometeu com a complexidade do contexto sociopolítico onde se implantou.

Já os temas dos anos 2000 se voltaram para a ideia de governança, ou seja, para a capacidade de implementação das políticas públicas tendo como horizonte o envolvimento da sociedade civil e um Estado capacitador e ativador. Seus valores, nesse sentido são: coesão social,

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política e administrativa, participação e engajamento político. Para os teóricos “governança” se refere a uma mudança de signifi cado de governo, aludindo-se, pois, a um novo modo de governar ou a um novo método pelo qual a sociedade é governada. (TATAGIBA, 2003).

Na governança pública o cidadão não é mais o “cliente” do Estado, não é aquele que se limita a fazer reivindicações, mas um cidadão que precisa encontrar novas formas de participar das decisões e das novas formas de promoção da desigualdade através do exercício da cidadania ativa. A categoria gestão pública, portanto, extrapola a ideia de gestão de demandas e necessidades dos cidadãos para permitir maiores possibilidades de deliberação e participação das pessoas nos processos decisórios.

A categoria gestão social, além do mais, aparece no debate em contraposição à gestão estratégica, uma vez que tenta substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório precisa ser exercido por intermédio de diferentes sujeitos sociais. (TENÓRIO, 1998).

Apesar de toda essa evolução conceitual, segundo alguns pesquisadores a governança pública, na versão brasileira, ainda não assimilou adequadamente a dimensão sociopolítica desse paradigma. Tem se prendido muito a uma abordagem tecnocrática e a uma visão estreita da política. Mantém, portanto, muitas difi culdades para lidar com confl ito, negociação e cooperação. É de se esperar que uma governança com feição política implique o estabelecimento de relações confl ituosas. Assim, torna-se fundamental a ampliação do debate sobre governança no âmbito das ciências políticas tanto quanto no âmbito das ciências administrativas.

Embora objeto de estudos e pesquisas de ambas as áreas, a Administração tem enfatizado mais os aspectos instrumentais e os processos gerenciais da gestão, enquanto a ciência política pretende enfatizar seus aspectos sociopolíticos. Persiste, portanto, a separação entre o mundo do governo e da administração pública do mundo da política, quando, na verdade, ambos constituem dimensões mutuamente infl uenciáveis e imprescindíveis ao entendimento da gestão pública numa perspectiva emancipatória. (PAULA, 2005).

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Gestão pública, enfi m, não apenas como reforma do Estado nos aspectos fi nanceiros e administrativos, mas também como articulação das dimensões econômico-fi nanceira, institucional-administrativa e sociopolítica. Esse horizonte pressupõe uma democracia participativa radical que enfatize a deliberação e uma conduta ética capaz de possibilitar o desenvolvimento de um papel ativo da sociedade civil na formulação e implementação das políticas públicas.

Toda essa discussão converge para pensar a categoria gestão social como uma concepção que busca abranger a dimensão sociopolítica da gestão pública ultrapassando sua dimensão de instrumentalidade e a tendenciosa tentativa de separar o mundo do governo e da administração pública do mundo da política. Tomando como referência, por exemplo, o problema da exclusão social, é lógico que um país jamais poderá ser considerado uma comunidade política digna do nome se a chaga da questão social se mantiver aberta, isolada, entregue à sua própria sorte, somente ao mercado ou à sociedade civil na forma da solidariedade mecânica ou de uma gestão meramente tutelada pelo Estado.

Por todas as razões até agora apresentadas, conclui-se que para uma gestão pública ser efetivamente capaz de criar condições favoráveis à inclusão social e ao fortalecimento da capacidade de formulação e implementação de políticas públicas deverá ter como referência a complexidade do contexto sociopolítico, a dimensão da legalidade, da legitimidade, da transparência, da efi ciência, da efi cácia e da efetividade como condições imprescindíveis à qualidade dos serviços públicos. Tudo isso pressupõe a premente necessidade de se ter hoje, na realidade brasileira, uma reforma política, mas também educacional, intelectual, cultural e moral, capaz de impor a radicalidade de uma cidadania ativa como estratégia política, preparada técnica, política e culturalmente para viver uma nova valorização do institucional, do político e do estatal. Somente assim se poderá pensar, de fato, em um pacto nacional ou em um projeto nacional identifi cado com a justiça e com a equidade social.

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TENÓRIO, F. Gestão social: uma perspectiva conceitual. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 7-23, set./nov. 1998.

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Carlos Alberto Ramos1

CAPÍTULO 3RUPTURAS, CONTINUIDADES E LIMITES DAS

NOVAS PROPOSTAS DE POLÍTICA SOCIAL

INTRODUÇÃO1

Em uma das instituições acadêmicas mais prestigiosas do mundo, o Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 2003 foi criado, por três de seus professores (Abhijit Banerjee, Esther Dufl o, e Sendhil Mullainathan), o Poverty Action Lab (PAL), denominado, a partir de 2005, o J-PAL, em homenagem a Abdul Latif Jameel, pai de um ex-aluno (Mohammed Abdul Latif Jameel) que ajudara fi nanceiramente a consolidar o centro.2 O objetivo desse laboratório, hoje uma rede de instituições de pesquisa espalhadas por todo o mundo, era subsidiar a formulação de políticas públicas no tocante à área social, particularmente o combate à pobreza. Esses subsídios à formatação de políticas tinham como objetivo tornar as intervenções mais efi cazes e efi cientes mediante nexos e ordens de causalidade que estivessem ancorados em provas estatísticas robustas (evidence-based policy).

Basicamente, pretendia-se popularizar métodos de avaliação de impacto que já eram corriqueiros e incontornáveis em outras áreas, especialmente a medicina. Avaliações sobre os reais impactos das políticas deveriam ser quantifi cados mediante técnicas similares

1 Professor do Departamento de Economia, Universidade de Brasília (UnB). 2 A história do J-PAL pode ser encontrada em: <http://www.povertyactionlab.org/

History>.

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às requeridas, por exemplo, para autorizar a comercialização de um novo medicamento. A transcendência dada às técnicas de avaliação de impacto iria muito além de sua robustez estatística e poderia chegar a ter desdobramentos sobre como uma sociedade administra suas intervenções nas áreas de combate à pobreza, às desigualdades, aos riscos (doenças, incapacidades), e à busca de igualdade de oportunidades (educação) etc. Pela sua relevância, reproduzimos uma afi rmação de Dufl o e Kremer (2014, p. 32): “Just as randomized trials for pharmaceuticals revolutionized medicine in the 20th Century, randomized evaluations have the potential to revolutionize social policy during the 21.”

Uma forma de abordar esse olhar sobre a política social consiste em restringir a sua vocação e reduzir seu campo de atuação aos aspectos técnico-estatísticos da metodologia proposta (experimentações aleatórias com grupos de tratamento e controle).3 A formatação que adquiriam as intervenções já não poderia ser norteada por “intuições” ou “bom-senso”, senão que os provados nexos de causa e efeito (hard evidence) teriam de estar fundamentados. Para ilustrar, tomemos o caso de um dos exemplos mais corriqueiros do Welfare-State moderno, o seguro-desemprego. Este seria mesmo um programa que, articulado com a formação e a intermediação, teria capacidade de propiciar, de fato, uma compensação fi nanceira de curto prazo e uma reincorporação ao mercado de trabalho no longo prazo?

Existem evidências quantitativas de que o resultado dessas iniciativas vai no sentido esperado? Na área de educação, a distribuição de livros didáticos ou a merenda escolar e o material de informática têm impactos positivos sobre os indicadores de educação (repetência, habilidades cognitivas, habilidades no domínio da matemática, ciências e linguagem etc.)?. Historicamente, os resultados positivos dessas ações são assumidos como sendo tão óbvios que não mereceriam sequer serem incluídos na agenda de debate. Agora, essa obviedade merece ser testada, da mesma forma como merece ser avaliado o efeito positivo que, na cultura tradicional, tem um chá de menta sobre a intensidade e a duração de um quadro gripal.

Em outros termos, a política social teria que trilhar o caminho da racionalidade. Nada deveria ser sufi cientemente óbvio a tal ponto que

3 Abordaremos os aspectos técnicos dessa metodologia na Seção 3 deste Capítulo.

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não mereça ser testado. Essa “modernização” das formas de intervenção na área social teria um paralelo na transição entre a “medicina” nas sociedades tradicionais, sustentadas no óbvio, na cultura verbal, na sabedoria dos “antigos” etc., e a medicina nas sociedades modernas, quando uma relação causa e efeito (medicamento–doença) deve seguir protocolos rigidamente predeterminados e gozem de consenso entre acadêmicos, agências reguladoras etc.

Nosso objetivo, neste Capítulo, consiste em apresentar os contornos ou limites dessa dita revolução na intervenção na área social. Pretendemos evidenciar que as próprias características das ações em áreas como educação, saúde, combate à pobreza, etc., inibem paralelos com outras áreas, como a Medicina. É justamente, essa falta de paralelismo com certas ciências denominadas “duras” que, paradoxalmente, não permite atingir a essência da modernização que se procura: nexos estatisticamente robustos que viabilizem generalizações no tempo e no espaço.

Dado este objetivo, estruturamos o Capítulo da seguinte forma: na próxima seção concentraremos as nossas atenções no Welfare-State tradicional e suas articulações com um modelo econômico no qual a perspectiva de crescimento era a norma. Na seção 3, o nosso tema será a denominada moderna política social, que não substitui, mas se sobrepõe ao Estado de Bem-Estar tradicional. Veremos que suas características (focalização, transferências monetárias etc.), tornam viável sua avaliação de impacto. Na seção 4 realizaremos uma breve apresentação da metodologia das Randomizes Controlled Trials (RCTN) e sua pretendida vocação para nortear o desenho de toda intervenção na área social. Na seção 5 discorreremos sobre as limitações teóricas e a generalização (espacial e temporal) dos balanços das experimentações aleatórias, características que limitam sua capacidade de formatar um novo contrato social. Por último, na seção 6, apresentaremos um balanço de nossos principais argumentos.

O WELFARE-STATE TRADICIONAL OU O CONTRATO SOCIAL EM TORNO DO CRESCIMENTO

Existe um consenso sobre as raízes dos modernos sistemas de proteção social que, geralmente, são situadas na segunda metade

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do século XIX, na Alemanha. Levadas adiante por Bismark (à época chanceler da Alemanha), o contrato social de então assumia o Estado como tendo o dever de tomar diversas iniciativas no campo da educação, da saúde, da garantia de renda na velhice, do combate ao desemprego etc., a fi m de reduzir desigualdades de renda e de oportunidades, garantir patamares mínimos de bem-estar social etc. No começo do século seguinte, foi a Inglaterra, sob o governo de H. Asquith, que introduziu pensões para aposentados, seguro-desemprego, políticas públicas no âmbito da saúde etc., e, paulatinamente, em um processo desigual que dependia dos confl itos sociais, das raízes culturais, do dinamismo econômico etc. Processo que, com o passar dos anos, estendeu-se pela Europa Continental. Só depois da crise dos anos 1930, os EUA acompanharam os caminhos abertos na Europa e, sob o comando de Franklin Roosevelt, implementam seu Welfare-State. 4

Nos países da América Latina tenta-se, também a partir da crise dos anos 1930 e a conseguinte industrialização substitutiva, acompanhar o sistema de proteção social dos países centrais. O dualismo que singularizava essas economias, com um setor urbano-industrial moderno e um setor periférico associado a atividades agroexportadoras, limitava o alcance dos beneficiários e as possibilidades de reduzir desigualdades (de renda e de oportunidades) e garantir níveis mínimos de bem-estar material. A Constituição de 1988, com um Brasil já espacialmente mais integrado, pretendeu generalizar esse sistema. A universalização da educação e da saúde e a extensão e consolidação institucional de outros programas (como o seguro-desemprego etc.), são os objetivos explícitos do novo marco institucional.

Subjazem, nessa perspectiva do sistema de bem-estar, duas especifi cidades. A primeira diz respeito à generalidade da “receita”. Formatações que levem em conta especifi cidades nacionais são possíveis (e o que, na prática, se verifi cou), mas as linhas-mestres subjacentes teriam um caráter universal. O seguro-desemprego, por exemplo, pode ser mais ou menos extenso, cobrir mais ou menos o último salário recebido, estar associado ou não à formação e à

4 Nos EUA, a profundidade e a extensão do Welfare-State nunca foram tão acentuadas como na Europa. Ver Alesina; Glaeser e Sacerdote (2014).

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intermediação etc., mas de todo país “moderno” se espera que tenha um programa de proteção ao assalariado desligado involuntariamente e à procura de um novo posto de trabalho.

A hipótese de um caráter cíclico nas economias de mercado, com períodos de forte dinamismo e conjunturas de extenso desemprego, subjazia nessa proposta. Por outra parte, ao terem um caráter cíclico de forma idiossincrática, eram as economias de mercado que geravam desemprego, e não as atitudes ou iniciativas dos indivíduos. O desemprego seria gerado na esfera macroeconômica e era obrigação da sociedade paliar seus custos sociais. De outro modo, ao aumentar os gastos na fase declinante do ciclo e reduzir as despesas na recuperação, o seguro-desemprego seria uma espécie de “estabilizador automático” (contracíclico) que ajudaria a reduzir a amplitude das fl utuações. Ou seja, o programa seguro-desemprego podia merecer diversos olhares ou “justifi cativas”, estava ancorado em uma visão abrangente do funcionamento das economias de mercado e implicitamente fazia parte de um contrato social.

Foge aos nossos objetivos neste texto, mas leituras semelhantes à que sintetizamos no parágrafo anterior para o caso do seguro-desemprego poderiam ser feitas para a aposentadoria, a saúde, a educação etc.

A segunda especifi cidade, com vínculos com a anterior, diz respeito à generalidade analítica do diagnóstico que sustentava a própria existência do Welfare-State. Imaginava-se o crescimento econômico como sendo a fonte primordial de integração social nas economias de mercado. As ferramentas de gestão econômica keynesianas permitiriam situar as economias bem próximas do pleno emprego. Crises eram teoricamente factíveis e, além de circunstâncias pessoais, a proteção via seguro-desemprego possibilitaria mitigar os custos sociais até que a conjuntura abrisse espaço para um novo ciclo de prosperidade. Os distintos segmentos que integravam o Estado de Bem-Estar se articulavam nesse todo que outorgava sentido às partes. A educação pública, por exemplo, além de igualar oportunidades, era um instrumento adequado de formação dos recursos humanos que o desenvolvimento requeria. O crescimento econômico e demográfi co e o pleno emprego permitiriam fi nanciar, seja em um sistema de

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repartição, seja de capitalização, um fl uxo de renda adequado para os segmentos da população já retirados das atividades econômicas mercantis. Ou seja, todo o sistema de proteção social era funcional a uma perspectiva de crescimento contínuo e fl utuando sobre o pleno emprego. Seria o dinamismo do desenvolvimento econômico, articulado com o Welfare-State, a variável crucial que possibilitaria atingir os objetivos sociais consensuais (contrato social) em sociedades de mercado modernas e democráticas.

Mas, como seria possível manter esse dinamismo? A teoria nos remetia a variáveis econômicas (taxa de investimento, grau de abertura etc.), ou, em uma perspectiva mais moderna, variáveis institucionais (estabilidade das regras, direitos de propriedade etc.).5 Assim, seriam variáveis exógenas ao Welfare-State (taxa de investimento, abertura ao comercio internacional, taxa de câmbio, infl ação, direitos de propriedade etc.), as que, em última instância, dariam funcionalidade ao sistema de proteção social. Ilustramos este ponto a partir de um exemplo. O seguro-desemprego foi imaginado para um contexto de pleno emprego (para proteger a natural transição entre um emprego e outro), ou de desocupação além do mesmo, porém circunscrito temporalmente. Uma conjuntura com grandes contingentes de pessoas procurando emprego sem encontrar nenhum por longos períodos de tempo seria pouco plausível, uma vez que os instrumentos de política econômica viabilizariam a reversão da situação. Desocupação massiva em ciclos de longo prazo desencadeiam mecanismos de exclusão social para os quais o seguro-desemprego não parece o desenho de política social mais adequado.

A NOVA POLÍTICA SOCIAL

Em anos recentes, esse Welfare-State, com suas particularidades nacionais, foi complementando, nos países em desenvolvimento,

5 Na realidade, a importância das variáveis que determinam o crescimento foram mudando ao sabor dos tempos. Ver, por exemplo, Easterly (2002). Contudo, polemizar sobre a evolução das ideias econômicas no tocante ao crescimento escapa aos nossos objetivos no presente texto. O aspecto sobre o qual pretendemos chamar a atenção ao leitor está associado à hierarquia de nossa análise, na qual a hipótese de crescimento contínuo dá sentido às partes.

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especialmente na América Latina, com programas de transferência de renda condicionada. O viés universal do Estado de Bem-Estar tradicional foi substituído por um público-alvo focalizado em uma população situada abaixo de uma linha monetária de pobreza, adquirindo o benefício um caráter monetário. As condicionalidades estão circunscritas à população infantil e jovem, que deve frequentar o sistema escolar, e a certas circunstâncias individuais (como a frequência ao sistema de saúde de mulheres grávidas).

Essa nova forma de intervenção na área social tem de ser contextualizada e merece avaliação a partir de diversas perspectivas.

A procura de efi ciência e efi cácia nos gastos públicos ancora conceitualmente uma parte dessa nova modalidade de política. Os benefícios em dinheiro no lugar de bens e serviços teriam maior efi cácia e efi ciência na medida em que as preferências e as necessidades de cada benefi ciado não necessariamente coincidem com a cesta de bens e serviços determinados por um burocrata.6

Paralelamente, esse tipo de programa tem como vocação articular o alívio da pobreza no curto prazo (mediante a transferência monetária) com uma perspectiva de cunho estrutural, na medida em que, supõe-se, a maior escolarização de crianças e jovens possibilitaria às próximas gerações das famílias benefi ciadas fugir da armadilha da pobreza. 7

6 A falta de correspondência entre preferências e necessidades e a cesta disponibilizada por um programa poderiam alimentar um mercado secundário de bens, com perda de bem-estar vis-a-vis à fl exibilidade de consumo dado por uma transferência monetária. Por outra parte, o benefício em dinheiro teria também vantagens em termos de qualidade das instituições políticas, na medida em que reduziria o clientelismo e a identifi cação do programa com um governo. Lamentavelmente, a experiência nos processos eleitorais recentes no Brasil não parece corroborar essas esperanças.

7 Explicitamente, esse tipo de programa tem como lastro analítico a explicação da pobreza (e sua reprodução no tempo) sob a perspectiva da Teoria do Capital Humano. A pobreza seria entendida como uma subacumulação de capital humano produto da própria pobreza, uma vez que a taxa de preferência intertemporal dos pobres tornaria o projeto “investimento em educação” não rentável. Assim, famílias pobres enviariam seus jovens ao mercado de trabalho em tenra idade, comprometendo seus estudos. Nessa direção, existiria uma transmissão

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Por último, os programas de transferência de renda condicionada situam-se em uma conjuntura na qual a avaliação dos gastos públicos, especialmente (ainda que não exclusivamente) na área social parece ser a norma.8 Neste sentido, determinar mediante resultados empíricos (hard evidence) os desdobramentos das iniciativas públicas, notoriamente as que contam com fi nanciamento de organismos multilaterais em áreas como ajuda ao desenvolvimento, luta contra a pobreza, saúde e educação etc., passou a ser um crivo para classifi car e dar prioridade à alocação de recursos. Na medida em que os programas de transferência de renda são factíveis de serem “avaliados” os mesmos são vistos com certa simpatia, dado que se poderia determinar, com certo grau de robustez, em que medida os resultados procurados (ou mesmo desdobramentos não procurados, mas factíveis de ocorrer) são atingidos. Os balanços da avaliação possibilitariam realimentar o programa (mudar sua formatação, por exemplo), escolher entre alternativas e mesmo sugerir sua fi nalização.

AS EXPERIMENTAÇÕES ALEATÓRIAS: RANDOMIZES CONTROLLED TRIALS (RCT): DAS CIÊNCIAS MÉDICAS ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

Obviamente, o termo “avaliar” que utilizamos no parágrafo anterior é amplo e precisa ser melhor defi nido. Quando, na recente literatura, se menciona o termo “avaliação” de um programa, o seu signifi cado é bem preciso: consiste em tentar implementar um experimento aleatório e gerar um contrafactual. Ou seja, comparar o resultado do programa com o que “teria acontecido se o programa não tivesse sido implementado”.

Em termos ideais, e com ampla tradição em avaliações em outras ciências como a Medicina, a metodologia adequada seria

intergeracional da condição de pobre: hoje os pobres são pobres porque seus pais foram pobres e seus fi lhos também o serão. Nesse contexto, oferecer mais vagas nas escolas não romperia esse círculo vicioso, uma vez que a juventude deixaria de frequentar o sistema escolar, não pela ausência de vagas nem porque não conheçam os benefícios de uma maior escolarização, senão porque sua restrição orçamentária é de tal magnitude que, em termos de valor presente, os benefícios futuros têm um valor próximo de zero.

8 Extremando esse argumento, só poderiam ser efetivamente implementados programas que pudessem ser avaliados mediante robustas técnicas estatísticas.

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a escolha aleatória de dois conjuntos populacionais. A um deles é aplicado um “tratamento” e ao outro não (um grupo de controle ao qual é dado um “placebo”). Todo experimento deveria ser “duplo cego”, nem os pesquisadores nem a população deveria saber quem faz parte do grupo de tratamento e quem é do grupo de controle.9 Esse desenho de avaliação seria ideal em termos metodológicos. Contudo, pode não se levar adiante por diversas razões: éticas, políticas, orçamentárias etc. No caso das áreas sociais, prevalecem restrições éticas e políticas. Concretamente, suponhamos que, em um programa de transferência de renda com condicionalidades, uma população que cumpre todos os requisitos para se tornar benefi ciária não seja escolhida a fi m de servir como grupo de controle. Ou seja, fi caria na situação de pobreza simplesmente para viabilizar a avalição do impacto do programa (o contrafactual). Essa possibilidade não seria nem ética nem politicamente factível.10

Mesmo em áreas distantes das ciências denominadas duras, em certas circunstâncias bem específi cas esse mundo ideal pode ser reproduzido. Por exemplo, uma Organização Não Governamental (ONG) pode implementar um programa de distribuição de livros didáticos em um estabelecimento escolar e comparar os desdobramentos (repetência, habilidades cognitivas etc.), com outro estabelecimento não benefi ciado. No caso de as escolhas poderem

9 No limite, o placebo deveria, no caso dos medicamentos, produzir certos efeitos (náuseas, por exemplo) a fi m que o indivíduo não perceba que seu tratamento é neutro. Poderíamos também imaginar a escolha (sempre aleatória) de três grupos: um que recebe o tratamento, outro que recebe um placebo e outro que não recebe absolutamente nada. Essa possibilidade pode ser contemplada quando se pretende avaliar um efeito “placebo”.

10 Essas restrições éticas e políticas fi caram evidentes em recente caso da epidemia de Ébola na costa oeste da África. Um soro em processo de pesquisa foi dado a dois americanos contaminados na Libéria. Esses indivíduos conseguiram superar a infecção, e os países assolados pela epidemia demandaram a doação e a distribuição do medicamente. Em princípio, as autoridades dos EUA negaram a sua disponibilização, uma vez que os protocolos usuais não tinham sido cumpridos. Na medida em que ainda não se tinha levado adiante uma avaliação experimental, não existia um contrafactual (não se sabia se os dois cidadãos americanos tinham superado a infecção pelo soro ou se de qualquer jeito teriam sobrevivido). Posteriormente, não obstante as etapas elementares do teste não terem sido cumpridas, o soro foi distribuído em pequenas quantidades.

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ser feitas de forma aleatória, a comparabilidade e a avaliação de impacto desse projeto é factível.

Porém, quando transitamos desse caso particular (a iniciativa pontual de uma ONG) para políticas públicas, a construção dessa avaliação experimental pode não ser uma questão exclusivamente técnica (não podemos imaginar não benefi ciar uma escola simplesmente para construir um grupo de controle ou o contrafactual). O fato é que fi ca mais difícil, mas não impossível, na medida em que a factibilidade de construir grupos de tratamento e grupos de controle vai depender da “cultura” de cada sociedade. Nos EUA, por exemplo, a proposta de Imposto de Renda Negativo de Friedman (1962) foi amplamente testada no tocante ao seu impacto sobre a oferta de trabalho. Diversos protocolos foram levados a campo (Seattle, Denver, Gary, New Jersey, etc.), com grupos de tratamento e de controle.11

Contudo, essa possibilidade nem sempre pode ser vislumbrada, uma vez que, como já salientamos, culturalmente, legalmente e politicamente pode não ser factível deixar fora de um tratamento um conjunto de famílias e indivíduos simplesmente para construir o contrafactual.12 Neste caso, os pesquisadores tratam de identifi car um contrafactual produto de instituições ou marcos legais cujo objetivo não é produzir grupos de controle, mas que na prática os gera. Em geral, esse tipo de situação é denominada de “experimentos aleatórios naturais”. Vejamos um exemplo. Um caso relativamente muito estudado na literatura refere-se ao efeito de um colega ou da turma

11 O leitor interessado pode encontrar uma resenha dessas experiências em Allègre (2014). Poderíamos citar diversos casos de protocolos experimentais que difi cilmente seriam aceitos em países como o Brasil. Por exemplo, Jensen e Miller (2011) conseguem realizar uma avaliação experimental sobre o impacto de subsídios alimentícios sobre a qualidade da nutrição na China. Ou seja, de forma aleatória, certas famílias se benefi ciam dos subsídios, e outras não, sendo estas últimas excluídas a fi m de formar um grupo de controle.

12 Existe também uma questão metodológica importante. Marginalizar uma população pode alterar suas atitudes e condutas. Em outros termos: não podemos supor que não incorporando um conjunto de famílias ou indivíduos a um programa poderíamos ter um parâmetro do que “teria ocorrido na ausência do tratamento”.

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sobre o comportamento individual (Peer-Effect). O fato de a alocação dos dormitórios nas universidades dos EUA ser realizada de forma aleatória permite avaliar em que medida a hipótese de um Peer-Effect é pertinente. (SACERDOTE, 2001; KREMER; LEVY, 2008).

Seja a avaliação realizada mediante uma escolha aleatória proposital, seja um choque “natural” ou mesmo um ensaio não experimental, as comparabilidades (a magnitude do impacto) entre o grupo de tratamento e o grupo de controle pode ser realizada mediante diversas técnicas (diferenças simples, duplas diferenças, regressão multivariada, regressão por descontinuidade, aparelhamento). Foge a nossos objetivos neste texto apresentar as vantagens e fragilidades de cada técnica, assim como também outros cuidados apresentados corriqueiramente na literatura especializada (viés de publicação, viés de seleção, variáveis omitidas etc.).

Contrariamente, nos próximos parágrafos nos concentraremos em chamar a atenção no tocante à possibilidade de generalização (espacial e temporalmente) dos resultados encontrados a partir das avaliações de impacto na área social.

MARCOS ANALÍTICOS, ESPAÇO E TEMPO: OS LIMITES DOS RCTS

Voltando às ciências médicas, marco natural de referência quando se pretende refl etir sobre as avaliações mediante experimentos aleatórios (sejam eles desenhados propositalmente ou naturais), quando estamos testando a efetividade de um dado medicamento sobre uma doença, o resultado é generalizável. Ou seja, estabelecida a relação de causalidade, o medicamente é aprovado e espera-se um impacto, independentemente da área geográfi ca. Em geral, os meandros mediante os quais a droga testada apresenta resultado são bem estabelecidos.

Contrariamente, nos programas avaliados na área social, essa generalização não é possível. Em primeiro lugar, as conclusões não podem ser extrapoladas nem no tempo nem no espaço. Por exemplo, a OCDE (2014), fazendo um balanço das políticas ativas de emprego, chega à conclusão de que os programas que induzem um retorno ao emprego mediante a formação profi ssional têm um impacto positivo

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no curto prazo, mas seus efeitos se diluem no transcorrer do tempo. Contudo, ocorre o contrário com certos programas no Canadá e no Reino Unido, onde os resultados positivos só são percebidos depois de dois anos. Ou seja, os programas de formação profi ssional são positivos? Onde está situado temporalmente o impacto? A resposta é que não sabemos, cada caso é um caso.

Essa variabilidade de resultados se encontra em quase todas as avaliações sobre os impactos de formação e garantias de renda: os resultados dependem de o benefi ciário ser homem ou mulher, ser jovem ou adulto, ser trabalhador principal ou secundário, se é mulher se tem fi lhos ou não etc., sendo todos esses fatores mediados pela área geográfi ca.13

Em geral, diferentemente das ciências denominadas duras, nas quais mediante experimentos aleatórios com grupos de controle se podem fazer generalizações, nas ciências sociais a partir de estudos de casos, mesmo diante de resultados robustos estatisticamente, as extrapolações (no tempo e no espaço) devem ser evitadas. Por exemplo, mesmo que Borkum; He e Linden (2014) encontrem que em Ankara (Índia) a existência de bibliotecas não apresente resultados perceptíveis sobre as habilidades de linguagem, não podemos deduzir que uma política pública destinada a dotar as escolas de bibliotecas deva ser descartada no Brasil.

Logicamente, também não se pode afi rmar que uma biblioteca na escola vai ter algum tipo de desdobramento positivo. Mesmo se nos restringirmos ao Brasil, os resultados de uma avaliação de impacto de um determinado programa realizado no Rio Grande do Sul não podem ser mecanicamente assumidos como verdadeiros no caso de se pretender implementar o mesmo programa em Roraima. Em termos temporais, os resultados obtidos em um determinado espaço não podem ser extrapolados para outros períodos.

Essa impossibilidade de realizar generalizações tem sua origem em dois fatores: em primeiro lugar, muitas variáveis interagem e infl uenciam um resultado. Algumas podem ser controladas, mas outras

13 Ver o artigo já citado de Allège (2014).

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ou podem ser omitidas ou são de difícil quantifi cação (a cultura local, por exemplo). A fi m de subsidiar a plausibilidade e a formatação de um programa que pretende introduzir um certo insumo no processo pedagógico na Suíça, será que é de alguma utilidade o resultado encontrado em uma avaliação aleatória realizada no Vietnam? Difi cilmente alguém vai responder afi rmativamente a essa questão.

Um segundo fator é ainda mais relevante. Os experimentos aleatórios geralmente tentam testar relações de causa e efeito que surgem mais da intuição ou do bom-senso do que de nexos analíticos. Por exemplo, o bom-senso nos diz que bibliotecas em escolas devem contribuir com o processo de aprendizagem. A distribuição de gadgets (computadores, tablets, etc.) nas escolas também são elementos dos quais se espera que ajudem no processo pedagógico. Seria uma questão de bom-senso e, acompanhando o bom-senso, o Ministério de Educação do Brasil lançou, em 2012, um projeto para a compra de 600 mil tablets para o uso de professores.

Mas, fora o bom-senso ou a intuição, existem fundamentos para justifi car essa alocação de recursos? Não sabemos, mas mesmo que tenham sido levadas adiante avaliações experimentais bem desenhadas, esses resultados não nos habilitam a sustentar que a relação causa e efeito possa ser generalizada.14 O problema é que não existem modelos teóricos sendo testados, senão “intuições” e “bons-sensos”. Não existindo uma base analítica que justifi que os nexos, o resultado pode ser positivo, negativo ou neutro, o que não desqualifi ca nenhum modelo teórico.

Não encontrando correlação, o resultado não permite negar uma relação. Por exemplo, “esperamos” que a merenda escolar tenha efeitos positivos no desempenho escolar de alunos oriundos de famílias desfavorecidas. Assumamos que uma determinada avaliação que cumpriu todos os requisitos técnicos esperados não encontrou impacto. Nesse caso poderemos generalizar e afirmar que a “merenda escolar disponibilizada a jovens de famílias desfavorecidas não tem impacto positivo sobre os resultados

14 Os resultados encontrados por Barrerta-Osório e Linden (2014), por exemplo, induzem ao ceticismo nesse quesito.

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escolares”? A resposta, logicamente, é negativa. Contudo, não estamos rejeitando nenhum nexo sólido em termos teóricos. O máximo que podemos concluir desse ensaio é: cuidado com o “bom-senso” no tocante à merenda escolar.

Uma alternativa para contornar essa limitação pode ser esperar que muitas avaliações experimentais levadas adiante em diversos países e múltiplas circunstâncias, com metodologias robustas e uniformes (harmonizadas, por exemplo, por instituições multilaterais), permitam generalizar relações de causa e efeito. Obviamente, nexos identifi cados em diversas avaliações e em distintas circunstâncias tornam mais robusta a relação. Contudo, em geral, os resultados das avaliações aleatórias tendem a ter muitas restrições. Por exemplo (este é só um exemplo hipotético, mas corriqueiro), um programa de formação profi ssional pode ter efeitos positivos sobre as possibilidades de emprego de mulheres sem fi lhos oriundas de famílias desfavorecidas, mas não no restante do público benefi ciado.15 Na medida em que tantas variáveis afetam o resultado, as possibilidades de extrapolação são limitadas. Em termos do caso hipotético que mencionamos na frase anterior, se em outra avaliação forem encontrados efeitos positivos em mulheres de famílias desfavorecidas, mas se o resultado independe de estas terem ou não fi lhos, o que poderemos generalizar? Absolutamente nada.

Vemos que todo o arcabouço não possui uma âncora analítica que permita justifi car e generalizar os resultados. Continuando com o nosso exemplo anterior, por que a variável fi lhos teria sido incluída? Por uma intuição e, muito provavelmente, porque estava na pesquisa ou porque era fácil de ser levantada no trabalho de campo. Vejamos um exemplo concreto no caso denominado o “maior programa de transferência de renda com condicionalidades do mundo”, o Bolsa Família. As transferências monetárias têm impacto sobre a oferta

15 Por exemplo, em uma avaliação não experimental do Plano Estadual de Qualifi cação Profi ssional de Minas Gerais, Oliveira e Rios-Neto (2007, p. 365) sustentam que: “[...] este risco é maior para os ocupados no momento do treinamento e para os homens, e menor para os mais jovens, para os que têm fi lhos e para os menos escolarizados”. Ou seja, temos cinco variáveis (ocupação no momento do treinamento, sexo, idade, fi lhos e educação) afetando o resultado.

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de trabalho? Podemos encontrar papers com resultados dos mais variados segundo o segmento da população. Pareceria que reduz a oferta de trabalho no caso de mulheres autônomas em atividades agrícolas (TEIXEIRA, 2010), reduz a oferta em setores urbanos das áreas metropolitanas, mas a eleva em áreas rurais (RIBAS; SOARES, 2014), tem efeito positivo nas áreas urbanas para as mulheres, mas negativo no caso dos homens. (TEIXEIRA, 2010). Com essa diversidade de resultados poderemos generalizar e responder à pergunta: os programas de transferência de renda com alguma condicionalidade têm impacto sobre a oferta de trabalho? A resposta é: depende da população, da condição familiar, da área geográfi ca etc.

Contudo, cabe a pergunta: em que medida esses legítimos esforços por mesurar os resultados de recursos públicos aplicados na área social podem afetar a formatação e a existência de uma política?

Vamos começar por debater esta última possibilidade. A questão central é: uma política que não pode ser submetida à avaliação de impacto deve ser implementada? Tomemos o caso da China. No início dos anos 1980, as estimativas indicavam que 84% da população desse país vivia abaixo da linha de pobreza. Em 2012, esse percentual caiu para 11%-12%. Na Indonésia, as taxas de pobreza caíram de 54% (1990) para 16% (2011). Na Índia, de 56%, no começo dos anos 1990, para 32%, 20 anos depois. As quedas foram muito mais acentuadas em poucos anos, no caso do Vietnam, que passou de 28% (2004) para 17% (2007)16. Poderíamos estender os exemplos. Existe um consenso de que essas quedas de pobreza na Ásia foram produto de taxas de crescimento extremamente elevadas. Reproduzimos, pela sua relevância, trecho de um relatório do Departament for International Development (2014):

Economic growth is the most powerful instrument for reducing poverty and improving the quality of life in developing countries. Both cross-country research and country case studies provide overwhelming evidence that rapid and sustained growth is critical to making faster progress towards the Millennium Development Goals […]

16 Linha de pobreza U$S 1.15 per-capita por dia (PPP). Disponível em: <http://zip.net/brpJzF>.

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The central lesson from the past 50 years of development research and policy is that economic growth is the most effective way to pull people out of poverty and deliver on their wider objectives for a better life.

Mas, se a pesquisa empírica atesta que o crescimento é crucial quando o objetivo é reduzir a pobreza, e o combate à pobreza deveria ser uma das facetas mais críticas de qualquer desenvolvimento social, as nossas atenções teriam de se dirigir às variáveis que alimentam o debate sobre os fatores que determinam o crescimento (instituições, infraestrutura, estabilidade macroeconômica, capital humano, grau de abertura ao comércio e fl uxo de capitais, taxa de poupança/investimento, abertura ao comércio exterior e ao fl uxo de capitais etc.). Ocorre que a maioria dessas variáveis não é susceptível de ser avaliada mediante ensaios experimentais.

Tomemos o caso do Brasil hoje. São múltiplas as tentativas para desenvolver avaliações do impacto do programa Bolsa Família. Mesmo diante das difi culdades próprias de uma avaliação na qual um grupo de tratamento e outro de controle não podem ser construídos de forma aleatória, essa avaliação é factível. Contudo, ao programa Bolsa Família é alocado 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Se existe um estreito nexo entre crescimento de longo prazo e redução da pobreza, difi cilmente 0.5% do PIB será determinante nos níveis de pobreza em um horizonte de uma ou duas gerações.

Colocando o mesmo problema em outra perspectiva, hoje (2014), a taxa de investimento está estimada em 17% do PIB. Em 2011 estava em torno de 19%, e se estima que para atingir um patamar de crescimento de longo prazo em torno de 4%, a relação investimento/PIB teria de situar-se em valores próximos a 25%.17 Elevar a poupança interna (e a externa?) para alavancar maiores níveis de investimento introduz na discussão variáveis como as que mencionamos no começo deste parágrafo, além de outras como a pertinência ou não de crowding-out, a existência de um mercado de capitais, o perfi l das taxas de juros etc.

17 Informações fornecidas pelas Contas Nacionais publicadas pelo Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE).

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Em todos os casos o debate em torno desse tipo de variáveis está ancorado em modelos teóricos e em nexos empíricos de séries temporais de diversos países. Difi cilmente essas políticas que em última instância vão determinar, como sustenta uma ampla literatura, as possibilidades de crescimento no longo prazo e, concomitantemente, de redução da pobreza, são factíveis de serem avaliadas em termos de experimentos aleatórios.

Permaneçamos nessa perspectiva macro para a reversão da pobreza no longo prazo. Existe um debate sobre as “portas de saída” dos benefi ciários dos programas de transferência de renda condicionada. Essas “portas de saída” seriam políticas complementares à transferência de renda que possibilitariam que os benefi ciados saíssem dessa condição (ou, em outros termos, que revertessem a situação de pobreza). Por exemplo, iniciativas no que concerne ao microcrédito, à agricultura familiar ou à formação profi ssional. Mesmo certas atividades próprias das condicionalidades (como a alfabetização das crianças) podem ter externalidades positivas que viabilizem essa saída.18

Esses programas cujo objetivo consiste em disponibilizar “portas de saída” são potencialmente passíveis de avaliação (seja por metodologias experimentais ou não experimentais). Em termos de técnicas de avaliação, a pergunta seria próxima à realizada quando são avaliadas políticas ativas de mercado de trabalho (intermediação, formação, microcrédito, ajuda ao empreendedorismo etc.): comparado um grupo que foi contemplado com outros que não foram contemplados, qual é o diferencial depois de um certo período de tempo. Em geral, em anos recentes, sendo essa uma tendência mundial, a quase totalidade das políticas públicas que impliquem ganhos fi nanceiros tendem a ser associadas a “portas de saída”, a fi m de evitar relações de dependência.19

18 Ribeiro e Cechin (2012) pesquisam a possibilidade de a alfabetização das crianças ter externalidades sobre o capital humano e, consequentemente, dos rendimentos da família. Os ganhos não seriam desprezíveis (+11%) e o resultado surge da comparação entre as famílias benefi ciárias do Bolsa-Família que residem com fi lhos vis-a-vis àquelas (também benefi ciárias do programa) que não residem. No artigo, o problema da autosseleção é controlado mediante o modelo de seleção de Heckman.

19 Essa relação de dependência pode ser oriunda tanto de uma atitude passiva por

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No caso do pagamento do seguro-desemprego, por exemplo, atividades paralelas de intermediação e formação são compulsórias (ou seja, articulam-se políticas passivas com ativas). Neste caso, assumindo que, como acabamos de afi rmar, as técnicas de avaliação de impacto (sejam experimentais ou não) são factíveis, a restrição sobre a generalidade dos resultados os tornam pouco práticos em termos de insumos para o desenho de políticas. Imaginemos que um dado ensaio experimental apresente como resultado que o microcrédito pode ajudar a reduzir o hiato de pobreza ou mesmo a sair da mesma.20 Hoje, o Bolsa Família tem como público mais ou menos 14 milhões de famílias. É difícil imaginar que, dado esse enorme contingente de indivíduos, a população adulta seja um empreendedor em potencial cuja restrição para sair do programa seja o acesso ao crédito. Programas como agricultura familiar, microcrédito, formação etc., podem até ter impactos positivos, mas difi cilmente poderão ser depositários da esperança de superação da pobreza e da desvinculação dos benefícios do Welfare-State. 21

Vejamos a experiência do Brasil: desde o início da década passada, quando o Bolsa Família foi lançado (2003), a esse programa se tem atribuído a queda da pobreza e da desigualdade e tantas avaliações de impacto (avaliações não experimentais) foram levadas a cabo. Quando se analisam as fontes de redução da pobreza e de desconcentração de renda nesse período, as variáveis cruciais são: a

parte do benefi ciário (não dedica tempo às atividades de procura de emprego, por exemplo), à própria condição de benefi ciário do Welfare-State, que cria um estereotipo e difi culta a inserção e econômica e social, ou mesmo a mecanismos próprios de inércia (por exemplo, o desempregado vai deteriorando seu capital humano e o desemprego de hoje se explica pelo desemprego de ontem).

20 Este é um balanço hipotético muito generoso ou otimista. O mais provável é que o resultado seja bem mais restrito, por exemplo, que apresenta resultados positivos quando o benefi ciado está em uma dada faixa etária, é de determinado sexo, tem um dado nível de escolaridade, mora em determinada área etc.

21 Por outra parte, quando mencionamos “impactos positivos” não necessariamente signifi ca que o programa de “porta de saída” logrou realmente uma “saída”. Lembremos que um impacto positivo signifi ca que existe um diferencial entre o grupo de controle e o grupo de tratamento. Podemos imaginar uma situação na qual depois do programa o hiato da pobreza tenha se elevado. Mesmo assim o impacto pode ser positivo se o contrafactual está em situação mais desfavorável.

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formalização do mercado de trabalho, a elevação do salário mínimo – tanto pelo seu impacto sobre os rendimentos do trabalho como devido às aposentadorias rurais, os benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a elevação da educação da força do trabalho, a transição demográfi ca, a elevação da elasticidade emprego-produto, a redução da segmentação e discriminação no mercado de trabalho etc.22 Em todos os casos, essas variáveis não parecem ser aptas a uma avaliação do tipo experimental.

COMENTÁRIOS FINAIS

Hoje, a intervenção na área social (seja na saúde e na educação, seja nos programas de transferência de renda etc.) parece estar norteada por uma crescente demanda em torno da avaliação de efi ciência e efi cácia dos recursos públicos aplicados na área. Em princípio, esse tipo de inquietação é louvável, uma vez que nexos entre ações e resultados devem ser avaliados e as propostas de políticas e formatação de programas devem ter algum lastro em correlações estatísticas. Em caso de propor, por exemplo, a distribuição de gadgets nas escolas públicas para promover uma genérica “inclusão digital”, a alocação de recursos públicos para esse fi m deveria ser precedida de experiências pilotos que fundamentassem estatisticamente este nexo: distribuição de gadgets–inclusão digital.23 Não se pode propor à sociedade uma política com um perfi l cuja única sustentação seja o “bom-senso” ou a “intuição”.

Contudo, a pergunta é: poderemos construir um Welfare-State integrado apenas com programas que podem ser avaliados? Na falta de um marco teórico de referência, devemos aceitar a proliferação de iniciativas que a intuição sugere e propor sua avaliação? Vamos nos restringir à educação. Para elevar os resultados nessa área, a intuição e as propostas que proliferam nos dizem que é possível elevar

22 O leitor interessado nas referências bibliográfi cas no tocante à contribuição de cada uma dessas variáveis na explicação da desconcentração dos rendimentos do trabalho e queda da pobreza ver Ramos (2014).

23 No caso específi co de nosso exemplo, o processo de avaliação teria de ser precedido da defi nição do que se entende por “inclusão digital” e a forma de quantifi car a fi m de ser instrumentalizado estatisticamente.

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os salários dos professores, melhorar a infraestrutura, aumentar a formação do corpo docente, descentralizar (ainda que também se proponha centralizar), outorgar mais autonomia às escolas, colégios, universidades, individualizar os salários dos docentes em função da avaliação pedagógica dos alunos, divulgar resultados das avaliações por escola, distribuir vouchers ... Poderíamos continuar. As variáveis que a intuição nos sugere são quase infi nitas. É factível avaliar todas essas possibilidades?24

Por outro lado, existem amplas evidências teóricas e empíricas sugerindo que, no longo prazo, o nível de bem-estar de uma sociedade, a distribuição de renda e os níveis de pobreza dependem de variáveis (instituições, grau de abertura, estabilidade política e macroeconômica, distribuição de estoques etc.), que não são factíveis de serem avaliadas mediante experimentação aleatória. Os bons e velhos modelos e referenciais teóricos e as conseguintes validações empíricas em comparações internacionais parecem incontornáveis. Em termos de desenvolvimento comparado, podemos não copiar, mas a experiência de outros países nos podem servir de referencial. Os resultados das microexperiências cujos impactos são avaliados nem podem induzir refl exões teóricas mais abrangentes nem são capazes de balizar o desenho de programas locais.

Nessa perspectiva, não obstante os avanços que podem representar os denominados Randomized Controlled Trials (RCT), pensamos que não devemos esperar que os mesmos cheguem a revolucionar ou mesmo pautar a formatação de um contrato social nem serem cruciais para determinar o bem-estar material das sociedades no longo prazo. Muito provavelmente, além de modismos circunstanciais, alimentarão o debate e, pontualmente, poderão outorgar uma certa racionalidade econômica a propostas de política.

24 Observemos que as possibilidades dos dados estão restritas à educação. Poderíamos fazer exercícios similares nas áreas de saúde, políticas de emprego, microcrédito etc.

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José Celso Cardoso Jr1

CAPÍTULO 4PADRÕES DE DESENVOLVIMENTO,

MERCADO DE TRABALHO E PROTEÇÃO SOCIAL: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

ENTRE AS DÉCADAS LIBERAL (1990) E DESENVOLVIMENTISTA (2000)

Maria do S.1

INTRODUÇÃO2

A primeira década do novo milênio, mormente o período 2003-2013, cumpriu – entre outras – função didática nos embates acadêmico e político brasileiros. Após praticamente 25 anos de

1 Economista pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (com especialização em Economia Social e do Trabalho), ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP). Desde 1996 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), tendo sido Diretor-Adjunto de Estudos e Políticas Sociais (DISOC/IPEA), Diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (DIEST/IPEA) e Diretor de Planejamento, Monitoramento e Avaliação do Plano Plurianual (PPA) 2012-2015, na Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), Governo Federal, Brasil.

2 Graduada em Ciências Econômicas pela Faculdade de Economia, Administração e Contábeis da Universidade de São Paulo (FEA/USP), e com Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Economia (PIMES) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/PIMES). Foi pesquisadora pelo Departamento de Ciências Econômicas, no Grupo de Economia do Setor Público da UFPE. Foi professora da Universidade Católica de Pernambuco. Hoje é professora adjunta no curso de Economia da Universidade Presbiteriana Mackenzie e no curso de Economia da Facamp (Faculdades de Campinas), atuando na área de Economia do Setor Público, Economia Social e do Trabalho.

Cláudia Satie Hamasaki2

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dominância ideológica liberal e tentativas – em vários campos da vida social e econômica – de implementação de diretrizes e soluções desregulamentadoras, privatistas e internacionalizantes, com resultados pífi os ou nefastos sobre indicadores clássicos do comportamento macroeconômico, do mercado de trabalho nacional e da proteção social previdenciária, houve em período recente a contestação empírica e teórica da alegada supremacia daquelas formulações. Embora grande parte das mesmas não tenha sido plenamente revertida, e considerando ainda a infl uência benéfi ca do cenário internacional (sobretudo entre 2000 e 2008) para os resultados domésticos favoráveis em termos macroeconômicos e laborais, comprovou-se na prática que os binômios “padrão de desenvolvimento e mercado de trabalho”, e “trabalho-proteção social”, são altamente dependentes – em termos de sua sustentabilidade institucional e fi nanceira – de dinâmica produtiva pujante e virtuosa, praticamente impossível de ser obtida apenas por obra e graça das forças de mercado. Dito de outra forma, sem presença ativa do Estado como agente estruturador interno, difi cilmente o País teria condições de garantir, simultaneamente, crescimento econômico, indicadores positivos de mercado de trabalho, sustentabilidade intertemporal e solvência fi nanceira dos sistemas de proteção social em geral, e de proteção previdenciária em particular.

A razão para tanto decorre, fundamentalmente, do fato de que a categoria Trabalho é, em regime capitalista, a categoria econômica e sociológica-chave para explicar e garantir, sobretudo em contextos ainda bastante desiguais e heterogêneos como o brasileiro: (i) sustento individual ou familiar, além de sociabilidade básica à população, por meio do acesso à renda e à esfera pública que o trabalho propicia; (ii) sustentação econômica mínima ao PIB, por meio da amplitude e profundidade potenciais do seu mercado consumidor interno; e (iii) sustentabilidade fi nanceira intertemporal a todo o sistema brasileiro de proteção social, em particular aos sistemas previdenciários públicos, direta ou indiretamente contributivos, pelo peso que as fontes de fi nanciamento direto (ancoradas no trabalho) ou mesmo indireto (regressivamente ancoradas na tributação sobre o consumo, mas legalmente vinculadas ao orçamento da seguridade social) possuem no Brasil.

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Olhando em retrospectiva, acreditamos que os eventos econômicos e políticos defl agrados no Brasil ao longo do último quarto de século XX tenham sido responsáveis pelo colapso do padrão histórico de desenvolvimento centrado na industrialização e comandado pelo Estado. O mesmo conjunto de eventos engendrou novo formato de desenvolvimento ao longo da década de 1990, calcado em concepção internacionalizante e liberal de progresso econômico e social, mas cujos resultados concretos em pouco tempo mostraram-se perversos do ponto de vista da dinâmica econômica - com combinação de semiestagnação e fi nanceirização da riqueza - e inadequados do ponto de vista da natureza e da forma de funcionamento do seu mercado de trabalho, já que caracterizado por combinação de heterogeneidades e desigualdades de várias ordens.

A primeira década de 2000, por outro lado, enseja possibili-dades históricas para a nova fase de transição, cujos contornos - em delineamento - de um novo padrão de desenvolvimento talvez ainda não permitam vislumbrar o seu sentido histórico geral. As-sim, com o objetivo de captar esse suposto novo sentido do desen-volvimento nacional e interpretá-lo à luz das transformações re-centes, este texto elegeu como tema o estudo das relações entre os padrões de desenvolvimento liberal (década de 1990, a rigor, a década entre 1992 e 2002), e desenvolvimentista (primeira década de 2000, a rigor, a década entre 2003 e 2013), e os seus impactos sobre o mundo do trabalho e da proteção previdenciária em cada um dos respectivos períodos.

As diferenças entre ambos os períodos é um dos traços mais signifi cativos do momento histórico de transição entre o modelo liberal parcialmente implementado na década de 1990 e esta fase atual de novas - mas ainda incertas - possibilidades de desenvolvimento na qual se encontra o país nos dias que correm. Assim, após esta breve Introdução, a seção 2 contextualiza - em termos conceituais e históricos - a relevância da categoria Trabalho na experiência brasileira de desenvolvimento. A seção 3, por sua vez, discute aspectos da dinâmica macroeconômica das décadas de 1990 e da primeira de 2000, com vistas a relacioná-los ao comportamento geral do mercado de trabalho. Por fi m, a seção 4 apresenta e interpreta dados empíricos de ambos os períodos, com base na Pesquisa Nacional por Amostra

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de Domicílios (PNAD)/Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) de 1992 a 2012, buscando realçar determinantes, consequências e perspectivas em cada caso.

CONTEXTUALIZANDO A CATEGORIA “TRABALHO” NA EXPERIÊN-CIA BRASILEIRA

A literatura econômica dominante sobre mercado de trabalho se vale de algumas simplifi cações exageradas no trato de variáveis cruciais para entendimento mais acurado acerca da natureza e do funcionamento desse mercado no Brasil. Mais especifi camente, ela considera como categorias homogêneas tanto os trabalhadores como os postos de trabalho na grande maioria dos modelos utilizados para analisar as dinâmicas de oferta e demanda por trabalho, em suas relações com o comportamento macroeconômico subjacente. Ao se proceder desta maneira perdem-se especifi cidades muito importantes tanto da confi guração histórica do trabalho no País como das relações que existem entre a dinâmica macroeconômica geral e as particularidades que se aplicam à determinação da ocupação. Na literatura convencional sobre o tema causa estranheza, por exemplo, o fato de praticamente todos os principais e mais difundidos modelos estilizados computarem indiscriminadamente como “ocupação” todo e qualquer posto de trabalho gerado pelo sistema econômico. Esse procedimento - que visaria “meramente” à simplifi cação dos dados para o tratamento estatístico - traz consequências teóricas e empíricas não desprezíveis, seja para o entendimento que dele deriva acerca da dinâmica de determinação das quantidades e preços no mercado de trabalho, seja para a prescrição de políticas públicas no âmbito da geração de trabalho e renda.

Aqui, alternativamente, a proposta é reconhecer que o mundo do trabalho no Brasil é algo mais complexo do que supõem as teorias convencionais sobre o assunto, fato que suscita a necessidade de abordagens analíticas menos reducionistas ao tema em pauta.3 Dentre as alternativas existentes parece-nos adequado começar por distinguir os dois principais vetores de determinação da ocupação no País, cada qual responsável por fatia signifi cativa da ocupação total. São eles:

3 Ver, por exemplo, Neffa e Eymard-Duvernay (2008).

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• Vetor da demanda por força de trabalho: depende de fatores associados ao cálculo econômico privado e/ou a decisões de gasto real dos governos. Em ambos os casos, os postos de trabalho assim forjados costumam tomar as seguintes formas: i) assalariamento direto com carteira, além de militares e estatutários; ii) assalariamento direto, mas sem carteira; e iii) assalariamento indireto ou disfarçado (sem carteira): terceirização, cooperativas, pejotização etc.

• Vetor da oferta de força de trabalho: depende de fatores ligados à sobrevivência individual ou familiar imediata. Esses postos de trabalho tomam, em geral, a forma de: i) trabalhadores autônomos ou por conta própria; ii) trabalhadores no autoconsumo e/ou na autoprodução, tanto no campo como nas cidades; e iii) trabalhadores não remunerados.

Essa diferenciação é especialmente relevante de se fazer em contextos tais quais o brasileiro, marcado por padrão retardatário e insuficiente (ou incompleto) de desenvolvimento capitalista, onde grassa imensa heterogeneidade da estrutura produtiva (logo, com diferentes padrões de determinação da ocupação) e imensa precarização nas relações e condições de trabalho para a maior parte da população, mesmo aquela inserida em regime de assalariamento típico.

Assim, ao diferenciar os fatores/vetores de determinação das ocupações no País, abre-se a possibilidade de, analiticamente, identifi car-se – e dimensionar-se, com maior clareza – as relações que o mundo do trabalho no Brasil guarda tanto com os seus traços históricos de formação quanto com o nível e o ritmo de expansão econômica propriamente capitalista e estatal de que dispomos.

Tal como disposto na Figura 1, pelo lado da oferta da força de trabalho está a questão de grande parte da ocupação desde sempre existente no País ter sido gerada por força do excesso de trabalhadores em idade ativa, em comparação com a capacidade de o sistema econômico absorver tal contingente. Pelo lado da demanda por força de trabalho está a questão de que mesmo a dinâmica “modernizante” aqui instaurada (que envolve tanto a demanda ocupacional privada como a estatal) não se traduz, automática e

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necessariamente, em postos de trabalhos regulados pelo padrão formal-legal vigente de contratação.

Como consequência, o capitalismo aqui instalado e a atuação regulatória do Estado no campo trabalhista não lograram universalizar o fenômeno do assalariamento formal do trabalho, tornando incompleto o “processo civilizatório” de um capitalismo minimamente organizado, tal qual levado a cabo na experiência de alguns países ocidentais. Deste modo, a inserção das pessoas no mundo da proteção social pela via do trabalho, se já não havia sido a regra para cerca de metade da população ocupada até 1980, deixou de ser aspiração confi ável ao longo dos vários anos subsequentes de crise econômica, estatal e social no Brasil. Dos movimentos recentes de recuperação do emprego formal e de aumento da fi liação previdenciária, registrados ao longo da década 2003 a 2013, não se pode dizer que sejam fenômenos inscritos numa trajetória já virtuosa de longo prazo, presos que estão a ambientes econômicos e institucionais ainda cheios de riscos e incertezas. Prova disso são as oscilações dos grandes agregados macroeconômicos, desde 2008, por conta da crise internacional em curso.

Este conjunto de observações feitas até aqui é importante para os objetivos de análise deste texto, basicamente porque ainda reina no Brasil a crença de que o emprego formal é pequeno no total

Figura 1 - Clivagens entre Formal e Informal para o Estudo do Mercado de Trabalho no Brasil

Fonte: Elaboração Própria dos Autores.

Vetor de Assalariamento diretoSetor Estruturado / FormalDemanda por (com carteira, militares

do mercado de trabalhoForça de Trabalho e estatutários)brasileiro

DecisõesAssalariamento sem carteira

empresariais eestatais de

Assalariamento disfarçado

contratação

(sem carteira, cooperativas,terceirizações, "pejotização")

Imperativo da Trabalho autônomosobrevivência (por conta própria)

Vetor deTrabalho no autoconsumo +

Oferta de autoconstrução Setor Pouco Estruturado / Informal

Força de Trabalhodo mercado de trabalho

Trabalho não-remunerado brasileiro

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da ocupação, e não cresce da forma como deveria nos momentos de recuperação econômica por causa da existência de legislação trabalhista supostamente anacrônica, excessiva e rígida frente às necessidades dos empresários em meio à globalização em curso. Acontece que um aspecto pouco considerado nas análises correntes é a quase contínua redução do custo do trabalho no Brasil, verifi cada, por exemplo, ao longo do período 1995-2005, seja em termos da evolução dos rendimentos médios reais da população ocupada, seja em função da distribuição funcional da renda, ou ainda como proporção dos custos empresariais totais.4

Da perspectiva teórica aqui adotada há que se considerar que, na atual quadra histórica de transformações patrimoniais, industriais e tecnológicas do capitalismo, o custo do trabalho não é nem o único nem provavelmente o mais importante dos parâmetros de decisão dos empresários para efetivarem novas contratações. Diante do custo historicamente reduzido do trabalho no Brasil, é bem provável que este certamente não seja o principal fator. Na conjuntura brasileira atual importariam muito mais:

• Outros custos diretos de produção, como insumos industriais em geral e a disponibilidade energética em particular;

• A situação dos mercados de ações e de crédito, bem como a combinação vigente entre taxa de câmbio e taxa de juros de mercado;

• A efi ciência marginal do capital produtivo investido, ou seja, a taxa de rentabilidade corrente e as expectativas dos empresários com relação aos ganhos futuros de seu empreendimento; e

• Tudo isso vis-à-vis inúmeras opções de alocação da riqueza líquida e de valorização do patrimônio empresarial.

4 Ainda que os rendimentos dos trabalhadores ocupados no Brasil tenham recuperado parte das perdas históricas em anos recentes (2003-2013), e feito crescer um pouco a massa salarial total da economia, são ambos movimentos ainda de curta duração no País, para que se possa vaticinar contra tendências e padrões de longo prazo.

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Daí que, além da clivagem feita até aqui diferenciando os dois principais vetores históricos de determinação da ocupação no País, é preciso proceder ainda à clivagem entre os chamados mundos formal e informal do mercado de trabalho, também classifi cados em alguns casos como setores estruturado e pouco estruturado (ou desestruturado) do mundo do trabalho.5 A Figura 1, acima, busca clarear as relações entre os dois cortes analíticos presentes no texto.

Valendo-se da clivagem formal/informal, esses conceitos devem ser trabalhados em dupla perspectiva. A primeira considera informais as atividades assalariadas desempenhadas fora do arcabouço institucional legalmente estabelecido pelo Estado (vale dizer, trabalhadores assalariados sem carteira assinada). A segunda perspectiva considera informais as atividades não assalariadas desenvolvidas por autônomos, em que não há separação nítida entre a propriedade do empreendimento e a execução de suas atividades-fi m (separação capital/trabalho). Em outras palavras, a concepção de setor informal sustentada aqui concilia, de um lado, o critério de demarcação proveniente da relação legal de trabalho, separando trabalhadores com e sem carteira assinada e, de outro, o critério oriundo da relação de produção existente no negócio, que, no caso dos trabalhadores urbanos por conta própria, é caracterizada por ser relação de produção não estruturada em moldes tipicamente capitalistas.6

A justifi cativa para esse corte analítico está ligada ao fato de que no interior das categorias ocupacionais assumidas como informais (trabalhadores sem carteira, trabalhadores autônomos,

5 Para uma discussão mais completa, ver Cardoso Jr. (2001).6 Segundo o critério demarcatório ligado à relação de produção vigente, o ideal

seria excluir do conceito de informalidade tanto aquela parcela de trabalhadores agrícolas por conta própria, que estão inseridos em essência em situações de trabalho não capitalista, quanto a parcela de profi ssionais liberais do meio urbano que, além de auferirem rendas elevadas estão devidamente registrados nas administrações públicas, recolhendo contribuição previdenciária como autônomos (contribuintes individuais). Por outro lado, seria desejável incluir no conceito de informal àqueles trabalhadores classifi cados como empregadores, mas cujo grau de organização dos negócios é precário do ponto de vista da separação das categorias “lucro e remuneração do empregador” (pró-labore).

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trabalhadores na produção para o autoconsumo e autoconstrução, trabalhadores não remunerados) residem atividades de trabalho mais precárias, do ponto de vista do conteúdo ou da qualidade da ocupação, e de mais frágil inserção profi ssional, do ponto de vista das relações de trabalho. Isto não é, obviamente, o mesmo que dizer que não existem atividades de trabalho precárias ou frágeis também no seio das categorias de assalariados com carteira, estatutários e militares, mas sim que, nos casos apontados, a incidência de inserções de natureza ruim é bem menor, posto estarem ligadas ao núcleo mais estruturado do mercado de trabalho.7

No caso brasileiro, embora até hoje não tenhamos atingido patamar de homogeneização e de equilíbrio social como o de alguns países europeus ocidentais, o modelo de sociedade salarial serviu de espelho aos processos de industrialização e de urbanização aqui adotados. É neste sentido que a possibilidade de fracasso da sociedade salarial e a proliferação de formas ditas atípicas ou informais de trabalho rompem a trajetória pretérita de organização dos mercados de trabalho, mundo afora, inclusive no Brasil, impondo que se estude separadamente cada uma dessas categorias ocupacionais em formação nas sociedades contemporâneas.8

7 Não por acaso, o regime de trabalho predominantemente assalariado, que se consolidou com o advento e expansão do modo capitalista de produção, passou a ser tanto o canal de entrada dos indivíduos no mercado de trabalho, e daí no próprio sistema econômico, como também a forma a partir da qual as pessoas se inscreviam na estrutura social, com todos os rebatimentos passíveis de investigação em termos da hierarquização das classes e dos conteúdos culturais e simbólicos relacionados. Principalmente a partir do fi nal da Segunda Guerra Mundial, a montagem (em alguns países) ou a consolidação (em outros) dos respectivos estados de bem-estar tinham como referência central para a concessão de benefícios sociais e transferências de renda a fi liação assalariada formal dos trabalhadores, pois a primazia dessa condição de trabalho, mediada pela esfera pública, garantia a possibilidade de controle e avaliação dos programas e dos recursos governamentais envolvidos. O padrão de assalariamento formal permitia, ainda, organizar os fl uxos do mercado de trabalho de modo a favorecer um tipo de convívio humano não disruptivo, na verdade homogeneizador da estrutura social. Para estudos das tipologias de modelos de proteção social no mundo, ver Esping-Andersen (1993, 2000). Já para a crítica dos modelos meritocráticos-contributivos, ver Rosanvallon (1997, 1998).

8 Um estudo crítico sobre a gênese e a crise atual da sociedade fundada no trabalho

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Assim, tendo em tela apenas o caso nacional, é preciso reconhecer, antes de qualquer coisa, que essas categorias ocupacionais chamadas informais foram quase sempre dominantes no padrão de (des)estruturação do mercado de trabalho doméstico, com características que as colocam, ainda hoje, em posição desfavorável frente à maior parte das ocupações consideradas formais. Em primeiro lugar, constata-se, particularmente junto aos assalariados sem carteira, que a ausência de mediação institucional pelo Estado torna mais frágeis e assimétricas as relações capital/trabalho, favorecendo uma fl exibilidade quantitativa (dispensa e contratação de mão de obra) muito elevada, que contribui para engendrar alta rotatividade de trabalhadores nessas ocupações.9 Em segundo lugar, a ausência ou precariedade dos mecanismos de proteção social conferidos pelo Estado a boa parte de seus cidadãos tende a transferir aos âmbitos familiar e individual as responsabilidades pela sobrevivência numa sociedade marcada por crescente redundância do trabalho vivo. Este aspecto é particularmente dramático junto aos trabalhadores por conta própria de menores rendas, que tendem a não recolher contribuição previdenciária, tampouco a ter registros nas administrações públicas dos seus pequenos negócios.

Como consequência mais direta dos aspectos mencionados acima, potencializam-se, tanto para assalariados sem carteira como para trabalhadores por conta própria, as chances de terem de conviver com níveis médios de remuneração inferiores e jornadas de trabalho superiores às observadas para postos de trabalho semelhantes, porém pertencentes a segmentos formais e melhor organizados do mercado de trabalho. Esses aspectos concretos da realidade das categorias ocupacionais aqui chamadas informais trazem ainda outras consequências negativas sobre o ordenamento

assalariado pode ser visto em Castel (1995). Já sobre a montagem histórica e dilemas atuais do chamado Sistema Brasileiro de Proteção Social, ver Cardoso Jr. e Jaccoud (2005).

9 Como visto no capítulo 2 da Tese de Doutoramento de Cardoso Jr. (2013, p. 70), “níveis muito altos de rotatividade produzem, de um lado, postos de trabalho de baixa qualidade e praticamente nenhum investimento tecnológico ou em recursos humanos e, de outro, trabalhadores sem especialização defi nida, que rodam intensamente por ocupações distintas, sem perspectivas de ascensão profi ssional nem salarial.”

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do mercado de trabalho. Não desprezível é a insegurança crescente que reina no interior de parcela signifi cativa de trabalhadores ligados aos segmentos menos estruturados, nos quais se podem medir níveis inferiores para a produtividade e para o bem-estar geral de suas famílias. Em suma, todos os traços apontados para caracterizar a realidade das categorias ocupacionais dos autônomos e dos sem carteira conferem certa uniformidade a esse conjunto de trabalhadores, profundamente relacionada com a precariedade das ocupações e com a fragilidade das relações capital/trabalho, motivo pelo qual este texto os trata em uníssono, integrantes do setor informal, sem perder de vista, no entanto, as especifi cidades próprias que as singularizam.

Por outro lado, a importância de discutir o comportamento do emprego formal decorre basicamente de duas frentes. Em primeiro lugar, quando considerado apenas na perspectiva do mercado de trabalho sua importância reside no fato de que sobre esse tipo de relação se molda todo o arcabouço legal de regulamentação das condições de uso, remuneração e proteção social aos ocupados e àqueles eventualmente desempregados. Em outras palavras, é a partir da relação trabalhista formal/legal que se estabelece um tipo de mediação mais civilizada entre capital e trabalho, através da qual as relações laborais deixam de pertencer meramente à esfera privada dos negócios e passam a desfrutar de estatuto público. O respeito ao aparato e ao ordenamento jurídico que dali emana é condição necessária para funcionamento mais regrado, equilibrado e homogêneo desse mercado, condizente com parâmetros mínimos de civilidade e sociabilidade entre as partes.

Em segundo lugar, quando analisado na perspectiva do modelo dominante de proteção social urbano do País, aqui chamado meritocrático-contributivo, a importância do emprego formal transcende as fronteiras relativas ao ordenamento do mercado de trabalho, para se referir também às condições pelas quais as pessoas desfrutarão de proteção individual contra riscos clássicos do mundo do trabalho, isto é: i) para trabalhadores economicamente ativos: proteção temporária contra a perda circunstancial de capacidade laborativa e de renda, como nos casos de desemprego involuntário, maternidade, acidentes de trabalho, doenças, reclusão; e ii) para

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aqueles em inatividade laboral permanente: proteção vitalícia através das pensões por morte e aposentadorias por tempo de serviço, tempo de contribuição ou invalidez defi nitiva para o trabalho. Nessa perspectiva, a informalidade está associada ao não cumprimento da legislação previdenciária, garantidora daqueles direitos sociais.

Acontece que na origem do modelo brasileiro de proteção social pressupunha-se, através da carteira de trabalho, total correspondência entre relação trabalhista assalariada e vinculação previdenciária compulsória, o que tornaria informais e sem direitos previdenciários quaisquer trabalhadores sem carteira assinada. Felizmente, no entanto, a Constituição de 1988 quebrou essa relação biunívoca, reconhecendo a existência de inúmeras outras formas de inserção das pessoas na estrutura produtiva, a saber: i) como trabalhadores rurais, parceiros, meeiros e pescadores artesanais, todos em regime de economia familiar, eles podem se vincular ao sistema previdenciário como segurados especiais; e ii) como trabalhadores sem carteira e autônomos por conta própria no meio urbano, estes podem se vincular voluntariamente à previdência como contribuintes individuais ou avulsos. Em ambos os casos, a fi liação previdenciária dá acesso a um conjunto diferenciado de direitos temporários e aos direitos permanentes acima mencionados.

A partir de então, embora quase toda relação de trabalho sem carteira ainda possa ser considerada informal, sobretudo do ponto de vista do mercado de trabalho urbano, apenas as que, além disso, não contribuem voluntariamente para o sistema previdenciário público é que podem ser consideradas informais também do ponto de vista previdenciário. Dito de outra forma: pelas regras hoje vigentes, a maior parte das situações de trabalho sem carteira deve ser considerada informal do ponto de vista do mercado de trabalho, mas apenas uma parte dela, que não contribui voluntariamente para a previdência social, pode ser considerada informal também do ponto de vista previdenciário. Isto não signifi ca que o emprego formal tradicional tenha perdido importância no conjunto da ocupação, pois, como dito acima, é através dele que se ordena de forma mais regrada, equilibrada e homogênea o mercado de trabalho em contexto predominantemente capitalista de produção. Além disso, é sobre o tipo de relação assalariada formal que incidem as principais fontes

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de fi nanciamento da previdência social, situação que ainda deve perdurar por muito tempo no País, e que não cabe no escopo deste trabalho discutir. Por outro lado, ao se alargar o conjunto de situações ocupacionais albergadas no regime de proteção previdenciária dá-se passo importante rumo ao reconhecimento de que existem outras formas possíveis e sustentáveis de inserção das pessoas na estrutura econômica produtiva, cuja consolidação, no entanto, ainda deve passar pela formulação de marco regulatório adequado para essas situações de trabalho não tipicamente capitalistas e pelo estabelecimento explícito de outras fontes de fi nanciamento dos direitos previdenciários que não sejam preponderantemente calcados em tais atividades laborais.

DINÂMICA MACROECONÔMICA E TRANSFORMAÇÕES NO MERCADO DE TRABALHO: CONTRAPONTOS ENTRE OS ANOS 1990 E 2000

A crise da economia brasileira nas décadas de 1980 e 1990 teve suas raízes históricas fi ncadas na segunda metade da década de 1970. Do ponto de vista interpretativo, pode-se afi rmar que essa crise foi fruto do desmonte do projeto nacional-desenvolvimentista fundado, grosso modo, nos anos 1930, aprofundado na década de 1950, e rompido nos anos 1980. Durante esse período a economia brasileira havia conseguido transitar rapidamente da estrutura agrário-exportadora para a sociedade industrial, se bem que ampla e caoticamente urbanizada.

Com a crise econômica que tomou conta do País no bojo da implementação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) nos anos 1970, instalou-se, a um só tempo, o colapso do modelo político desenvolvimentista e a reversão das tendências de crescimento de sua economia. Assim, enquanto a década de 1980 foi representante da primeira fase da regressão industrial do País, os anos 90 podem ser vistos como palco da segunda fase da trajetória brasileira de regressão industrial. Nesses 20 anos de desorganização do parque produtivo doméstico, os anos 1980 representaram, portanto, o momento de desarticulação do desenvolvimento industrial interno, enquanto os anos 1990 simbolizariam o colapso daquela estratégia pretérita de crescimento industrializante, com consequências adversas para o futuro do País. (CARDOSO JR.; POCHMANN, 2000).

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ANTECEDENTES: A DÉCADA DE 1980

A primeira fase, transcorrida ao longo da década de 1980, desenrolou-se em ambiente de intensa instabilidade macroeconômica, em que baixas taxas de crescimento do produto interno e altas taxas de infl ação espelhavam, de um lado, a ruptura das fontes e dos fl uxos de fi nanciamento externos e, de outro, o esforço exportador visando à obtenção de expressivos saldos comerciais. A concepção a respeito dos descaminhos da economia brasi leira nesse período procura enfatizar a ideia de que muito contribuiu, para o aprofundamento da crise, o padrão de ajustamento macroeconômico efetuado no período 1979/1983. (BAER, 1993).

Após o período relativo ao ajustamento externo, no início da década, a economia produziria grandes e seguidos superávits em suas contas externas, associados ao baixo nível de absorção interna e às recorrentes desvalorizações cambiais. Entretanto, os superávits gerados tinham como principal fi nalidade a transferência de recursos reais ao exterior, devidos em sua maior parte ao pagamento de juros sobre a dívida externa contraída em períodos anteriores. Pelo fato de a dívida externa brasileira encontrar-se, desde os primeiros anos da década de 1980, praticamente toda em mãos do Estado, e considerando ainda que os setores privados eram em grande parte os detentores dos saldos comerciais conquistados nesses anos, o setor público precisava adquirir as divisas em moeda estrangeira para enviá-las ao exterior. Valia-se, para tanto, de emissão de dívida pública interna, principal responsável pelo endividamento crescente do setor público ao longo da década de 1980. (CRUZ, 1984; CARNEIRO, 1993, 2002).

O caráter fi nanceiro do défi cit público fez com que taxas de juros crescentes e prazos cada vez mais curtos se tornassem a regra, comprome tendo seriamente a capacidade de fi nanciamento do Estado brasileiro diante da crise. É no bojo desse quadro de desajustamento patrimonial do setor público que a infl ação viria a se constituir no principal problema macroeconômico da década de 1980, suscitando o deslocamento do eixo das discussões que antes girava em torno da problemática do “desenvolvimento econômico com endividamento externo crescente”, para centrar-se em torno das “causas e consequências da infl ação em países de industrialização retardatária

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ou em contextos de subdesenvolvimento crônico”. Na prática, o binômio ajuste externo - desajuste interno estabeleceu as condições para a perpetuação da crise e da infl ação, e materializou, em grandes proporções, um tipo de apartheid social único em economias com o grau de urbanização e industrialização similar ao do Brasil.

Como consequência da alternativa seguida gerou-se um setor público altamente endividado e imobilizado, ao mesmo tempo em que o setor privado estava fi nanceiramente saneado. Com isso, na medida em que o setor público transformou-se em depositário dos custos do ajustamento externo da economia, criou-se situação na qual o Estado foi perdendo o poder de outrora de condutor do desenvolvimento, seguindo o País o rumo da estagnação. O capital privado, movendo-se por estímulos de mercado, notadamente rentáveis no curto prazo, transferiu e concentrou grande parte de sua riqueza em ativos fi nanceiros ao invés de produtivos. Além disso, não foi capaz de ocupar o espaço do setor estatal com o objetivo de redirecionar o sentido do desenvol vimento, fundando um novo pacto político apto a dar conta da superação da crise. (TAVARES; FIORI, 1993; FIORI, 1995).

Nessa etapa inicial de desarticulação do modelo de desenvolvimento industrial houve também a ruptura do padrão de estruturação do mercado de trabalho, que se refl etiu em basicamente cinco fenômenos interligados. Primeiro, no perfi l setorial das ocupações urbanas localizadas no terciário (comércio e serviços). Segundo, no alargamento dos segmentos considerados pouco estruturados do mercado de trabalho (trabalhadores sem carteira assinada, pequenos empregadores, trabalhadores por conta própria e trabalhadores não remunerados). Terceiro, na tendência à precarização ou perda de qualidade dos postos de trabalho (desassalariamento formal, perda de direitos trabalhistas e previdenciários, jornadas de trabalho mais longas, remuneração oscilante no tempo, múltiplas fontes de rendimentos etc.). Quarto, na estagnação das remunerações provenientes do trabalho, em particular dos segmentos assalariados da estrutura ocupacional. Quinto, na piora distributiva funcional (repartição da renda entre rendimentos do capital e do trabalho), e pessoal (repartição dos rendimentos do trabalho entre a população economicamente ativa).

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Outros dois elementos desestruturadores do mercado de trabalho – o aumento dos níveis de desocupação e desemprego aberto, e a mudança no padrão até então vigente de mobilidade social – viriam a se manifestar com maior intensidade somente nos anos 1990, incorporando-se a partir daí ao conjunto de fatores a caracterizar empiricamente o fenômeno da desestruturação do mercado de trabalho brasileiro. (MEDEIROS; SALM, 1994; MATTOSO; POCHMANN, 1998; CARDOSO JR., 2001).

Em suma, tem início no Brasil dos anos 1980, por decorrência geral da crise econômica, uma trajetória de desregulação do mercado laboral que, nessa primeira etapa, é marcada ainda por um movimento contraditório: de um lado ocorre uma desregulação impulsionada pela tendência de desestruturação do mercado de trabalho; de outro, ocorre uma tentativa de regulação motivada pela regulamentação desse mesmo mercado. Em outras palavras, a regulação capitalista clássica do mercado de trabalho passa, no Brasil, por uma fase de amadurecimento que se dá basicamente entre as décadas de 1930 e 1980. A partir daí tem início uma fase de reversão cíclica, dentro da qual se situaram, nas décadas de 1980 e 1990, os marcos da (des)regulação do trabalho no País.

Para que não pairem dúvidas ou confusões semânticas, é conveniente precisar melhor cada um destes termos: (des)estruturação e (des)regulamentação do mercado de trabalho. O vetor da estruturação do mercado laboral é fundamentalmente dependente do padrão de desenvolvimento que se instaura na sociedade, ou mais especifi camente, da natureza do capitalismo que constitui (e põe em operação) determinadas bases produtivas de valorização do capital. Por sua vez, o vetor da progressiva regulamentação do mercado de trabalho depende do grau de organização política e social da nação e se apresenta como um conjunto de instituições públicas (estatais e civis) e normas legais que visam fornecer os parâmetros mínimos de demarcação e funcionamento deste mercado, notadamente no que diz respeito ao uso do trabalho (regulamentação

continua

Quadro 1 - Defi nições Gerais - A (Des)regulação do Trabalho como Síntese dos Processos de (Des)estruturação e (Des)regulamentação do Mercado de Trabalho Brasileiro

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das condições de contratação, demissão e da jornada de trabalho), sua remuneração (regulamentação das políticas e reajustes salariais em geral e do salário mínimo) e proteção ou assistência social aos ocupados e desempregados (regulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, da política previdenciária, das práticas de formação e requalifi cação profi ssional, da ação sindical e da Justiça do Trabalho).

Quadro 1 - Defi nições Gerais - A (Des)regulação do Trabalho como Síntese dos Processos de (Des)estruturação e (Des)regulamentação do Mercado de Trabalho Brasileiro

Fonte: Elaboração Própria dos Autores.

A DESREGULAÇÃO DO TRABALHO NA DÉCADA DE 1990

Nos termos propostos, a década de 1980 representaria, então, a primeira fase da desregulação do trabalho no Brasil, fase esta marcada ainda por um movimento contraditório, em que se tem, de um lado, o início do processo de desestruturação do mercado de trabalho, mas, de outro, a tentativa de se ampliar o raio de abrangência da regulamentação do mercado laboral.

A (des)estruturação do mercado de trabalho, de um lado, e a sua regulamentação, de outro, põem-se em antagonismo explícito ao fi nal da década de 1980, de forma que o aprofundamento da desregulação do trabalho nos anos 1990 surge como promessa de solução posta em marcha pelos governos de orientação liberalizante. Enquanto vigente, a desregulação do trabalho nos anos 1990 se deu no bojo do aprofundamento também da crise econômica geral daquele período.

A especifi cidade da trajetória de desregulação do trabalho pela década de 1990 é que, sobretudo entre 1992 e 2002, os dois vetores de sua determinação caminharam na mesma direção. Ou seja, em paralelo à desestruturação do mercado de trabalho que se intensifi cou nos anos 1990 foi posto em marcha um processo de desregulamentação do mesmo mercado, que veio como parte integrante e indissociável de ampla agenda de reformas ditas estruturais por seus formuladores, das quais a tentativa de reforma do Estado e do mercado de trabalho eram das mais importantes. (CARDOSO JR., 2001).

conclusão

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Posteriormente, porquanto o conjunto de iniciativas legais defl agradas na década de 1990 tenha buscado se constituir em reforma ampla do aparato de regulamentação do trabalho no Brasil, apenas parcialmente elas foram de fato implementadas. Outras tantas jamais foram devidamente regulamentadas e outras ainda foram revogadas ao longo da primeira década de 2000, quando o jogo de forças políticas que comandam as deliberações cruciais nessa área virou de lado.

Pode-se mesmo dizer que o fracasso relativo das iniciativas desregulamentadoras tenha sido devido, entre outros motivos, à baixíssima adesão que tiveram por parte dos atores envolvidos, trabalhadores e empresários na linha de frente. Por outro lado, embora nos dez primeiros anos do novo milênio (como se verá adiante) essa agenda liberalizante de reformas trabalhistas tenha sido na prática contestada por resultados mais favoráveis da economia e do mercado de trabalho (crescimento da ocupação à frente do Produto Interno Bruto (PIB), redução do desemprego aberto, aumento da formalização e dos rendimentos dos trabalhadores, melhora distributiva etc.), continuou presente o discurso retórico de parte dos empresários (sobretudo daqueles ligados ao comércio exterior e às fi nanças especulativas), bem como de parte de integrantes do governo e de representantes do congresso, mas agora mais bem equilibrado por argumentos e evidências levantadas por setores em defesa da classe trabalhadora (além dela própria).

Na década liberal, outro conjunto de reformas econômicas fundamentais (tais como a liberalização comercial e fi nanceira irrestrita, a privatização abrangente das empresas estatais, uma reforma tributária cola da à disciplina fi scal, com redução e focalização dos gastos públicos, dentre outras) veio delimitar o destino do País, assegurando a efetivação do que aqui foi chamado de a segunda fase da trajetória brasileira de regressão industrial. (CARDOSO JR.; POCHMANN, 2000). Essa segunda fase, que teve como palco a década de 1990, foi um período no qual a trajetória descrita pela economia se deu em ambiente macroeconômico distinto daquele que havia caracterizado a crise geral dos anos anteriores. Três eventos econômicos particularmente importantes podem ser identifi cados como responsáveis pela alteração do cenário das decisões domésticas.

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Em primeiro lugar, o retorno do Brasil ao circuito fi nanceiro internacional como receptor de recursos externos, depois de longo período de estancamento dos fl uxos na década de 1980, particularmente a partir da moratória mexicana de 1982, com a crise das dívidas externas dos países em desenvolvimento. No entanto, ao contrário do movimento de capitais observado nos anos 1970, a onda posterior de transnacionalização capitalista teve a característica de revelar de forma radical sua natureza predominantemente fi nanceira, que potencializa os efeitos desagregadores dos processos de reestruturação produtiva em andamento e submete a capacidade de regulação institucional do sistema. (CHESNAY, 1996, 2005; TAVARES; FIORI, 1997; THÉRET; BRAGA, 1998). Em segundo, o processo de abertura co mercial iniciado em 1990, depois de longo período sob a vigência de coefi ciente relativamente baixo de importações, com política cambial ativa em favor da geração de superávits comerciais. Esse fenômeno é indicativo do processo desigual de difusão das mudanças tecnológicas em curso, bem como dos efeitos desagregadores sobre as economias menos preparadas, que acabam fi cando mais distantes do rol de países desenvolvidos. (COUTINHO, 1995). Finalmente, mas não menos importante, a estabilização relativa da moeda nacional, desde o segundo semestre de 1994, depois de longo período de vigência de regime de alta infl ação e inúmeras tentativas frustradas de estabilização.

Esse fenômeno, no entanto, contou com dois componentes que acompanharam o sucesso do Plano Real desde sua implementação, a saber: (i) um diferencial positivo de grande magnitude entre as taxas de juros domésticas relativamente às praticadas no exterior, responsáveis pela entrada de grande parte da massa de recursos externos captados pela economia brasileira ao longo dos anos; e (ii) a sobrevalorização relativa da moeda nacional, como consequência do anterior, e responsável, em última instância, pelo défi cit em transações correntes e pela criação de um ambiente interno pouco favorável ao crescimento econômico, ao longo de toda a segunda metade da década de 1990.

Do ponto de vista do mercado de trabalho, por sua vez, as transformações econômicas, engendradas pelo movimento de abertura externa com recessão doméstica no início dos anos 1990,

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agiram no sentido de aprofundar as inserções setoriais ligadas aos serviços prestados às empresas (serviços produtivos), ao comércio e transportes (serviços distributivos), aos serviços prestados às famílias (serviços pessoais) e aos serviços não mercantis (serviços diversos). Ao mesmo tempo, acentuaram-se as inserções ocupacionais dos assalariados sem carteira, trabalhadores autônomos e trabalhadores não remunerados. (CARDOSO JR., 1999a, 1999b; DEDECCA, 1999; CARDOSO, 2013).

Esse panorama geral esconde, ademais, situação perversa em duplo sentido. Por um lado, as inserções setoriais típicas dos anos 1990 foram fruto mais da perda de dinamismo econômico da estrutura produtiva brasileira do que de um reordenamento da mesma rumo ao padrão de desenvolvimento de fato includente e sustentável. Por outro lado, as inserções ocupacionais dominantes representaram, muito mais, estratégias de sobrevivência dos trabalhadores diante do colapso das alternativas de empregabilidade formal com proteção social do que livre escolha para alcançar ascensão profi ssional ou pessoal, ainda que muitas dessas novas atividades autônomas possam redundar em certo prestígio ou mesmo em rendimentos médios mais elevados nas fases ascendentes dos ciclos. (CASTRO; DEDECCA, 1998).

Tal como se verá na próxima seção, ambos os fenômenos - a terciarização das ocupações e a informalização das relações de trabalho - ajudam a explicar também a deterioração da qualidade da maioria dos novos postos de trabalho abertos durante a década de 1990, com refl exos perversos sobre a estrutura já bastante concentrada da renda, tanto em termos da distribuição funcional como da distribuição pessoal.

A REESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO NA PRIMEIRA DÉCADA DE 2000

Desde quando o Brasil abandonou, em janeiro de 1999, a âncora cambial que servia de principal suporte à estabilização monetária, a política econômica tem se ancorado, durante a maior parte do tempo, na seguinte combinação: câmbio semifl utuante, superávits fi scais generosos, taxas de juros elevadas e metas rígidas de infl ação.

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Embora não haja comprovação teórica nem evidência empírica defi nitiva sobre a necessidade de dito superávit fi scal, muito menos acerca do seu tamanho percentual no PIB, parece haver crença generalizada nos meios governamentais mais infl uentes, empresariais e midiáticos de que ele é condição fundamental para a estabilidade, na medida em que isso aumentaria a confi ança dos investidores privados e (re)fi nanciadores da dívida pública, na capacidade do governo federal em honrar, periodicamente, seus compromissos fi nanceiros. Portanto, a aceitação do superávit fi scal primário como condição para o controle infl acionário dependeria mais das convenções estabelecidas entre os agentes relevantes do que propriamente de algum fundamento macro ou microeconômico inerente ao sistema. (KEYNES, 1988). De qualquer modo, com dito superávit fi scal estariam dados, na visão convencional e dominante sobre o assunto, os fundamentos macroeconômicos mínimos para a adoção do regime de metas de infl ação, considerado pelos condutores da política econômica como o mais adequado à sustentabilidade da estabilização monetária.

De acordo com muitos críticos do modelo que predominou sem grandes alterações até pelo menos o fi nal de 2010, o uso à exaustão da política monetária com vistas a salvaguardar a estabilidade dos preços mostrou-se instrumento pouco efi caz para compatibilizar objetivos tão díspares quanto complexos. A permanência de taxas de juros em patamar elevado por longos períodos limita o potencial de crescimento da economia, ajuda a atrair capital estrangeiro especulativo, valorizando em demasia a moeda nacional frente ao dólar, e faz crescer de forma abrupta o endividamento fi nanceiro do setor público. Nesse quadro não é de se estranhar que em geral prevaleça rígida subordinação das condições de funcionamento do mercado de trabalho à primazia de uma política econômica tal qual a descrita acima. Além do alto custo fi scal que advém de estratégia como essa de estabilização, que obriga o governo federal a esterilizar e transferir recursos do lado real da economia (como o são, por exemplo, os investimentos e os gastos sociais) para um tipo de gestão fi nanceirizada da dívida pública, há efeitos perversos que se manifestam tanto na desaceleração do ânimo capitalista para novos investimentos, como na valorização cambial que reduz o saldo exportador, dois dos motores mais importantes para possível

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estratégia de crescimento econômico e formalização do mercado de trabalho, como se verá na sequência.

Em linhas gerais, pode-se dizer que, a despeito da combinação adversa de câmbio e juros, que por sinal está na raiz das baixas taxas de crescimento do PIB durante praticamente todo o ciclo do Real, houve um miniciclo de crescimento nos anos recentes (2004 a 2010), cujas causas estão na origem do movimento de recuperação do emprego formal.10 Dentre tais fatores, parece conveniente destacar ao menos cinco deles, sem a pretensão de esgotar outras possibilidades.11 Importante mencionar que, embora cada um desses fatores tenha existência e contribuição independente dos demais para o fenômeno em tela, na prática eles devem ter agido em simultâneo e em mesma direção, ainda que em combinações diversas ao longo do tempo.

Ademais, todos esses fatores agiram explicitamente em direção contrária às restrições impostas pela combinação câmbio/juros apontada acima, de sorte que, na presença de arranjo mais favorável de política macroeconômica, as chances de crescimento do PIB e de intensifi cação do movimento de formalização do mercado de trabalho poderiam ter sido ainda maiores. Mas se não podemos ter clareza quanto à situação que teríamos em outro contexto de política macro, podemos afi rmar que esses fatores agiram todos na contramão da política econômica restritiva da maior parte do período, contribuindo, de alguma maneira, para tornar melhor o cenário de crescimento e de formalização dos contratos de trabalho ao longo do período estudado.12

10 Segundo Dedecca e Rosandiski (2006, p. 178), “são claros os sinais de relação positiva entre recuperação econômica e recomposição do mercado de trabalho, que, por conseqüência, desfazem o mito da impossibilidade do país restabelecer capacidade de crescimento e de geração ponderável de novas ocupações. Refuta-se, inclusive, um dos pilares da tese da inempregabilidade defendida pelo presidente Fernando Henrique, que argumentava sobre a inevitabilidade do enxugamento brusco da ocupação industrial pela modernização tecnológica da economia globalizada.”

11 Para os interessados em se aprofundar no assunto há outros trabalhos que procuraram descrever estatisticamente esse fenômeno de formalização do emprego no Brasil. Em particular, ver IBGE (2005, 2006); Brasil (2005); Costanzi (2005) e Ramos e Ferreira (2006).

12 Também é importante salientar que alguns dos fatores abaixo elencados vêm agindo de forma permanente já há alguns anos, enquanto outros trouxeram

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O acima citado é especialmente importante porque não é demais lembrar que todos os fatores aqui considerados sofrem infl uência direta de políticas governamentais, estando, portanto, sujeitos à ação permanente do Estado, daí a importância de projetos consequentes e duradouros de desenvolvimento para a estruturação, entre outras coisas, de relações de trabalho mais sustentáveis do ponto de vista econômico e social. Senão, vejamos: aumento e desconcentração do gasto social, aumento e diversifi cação do crédito interno, aumento e diversifi cação do saldo exportador, consolidação do regime tributário simplifi cado para microempresas e empresas de pequeno porte (SIMPLES) e maior efi cácia das ações de intermediação de mão de obra e de fi scalização das relações e condições de trabalho nas empresas, foram fatores identifi cados como responsáveis principais pela trajetória de recuperação do emprego formal no período 2003/2013 no Brasil.13

O primeiro fator explicativo relevante parece estar associado ao aumento e à descentralização federativa do gasto social, fenômenos que devem ter ajudado de duas formas o processo em tela: (i) pela contratação formal direta de profi ssionais em políticas sociais de orientação universalizante, como em educação fundamental e saúde pública; e (ii) pela ampliação dos volumes monetários transferidos de forma direta aos milhares de portadores de direitos sociais espalhados pelo País. Em ambos os casos, compõe-se uma renda monetária de origem pública, caráter permanente, valor real indexado ao salário mínimo e perfi l redistributivo, cujo tamanho e relevância são tão mais expressivos quanto menores e mais pobres forem os municípios contemplados. Dadas as características assinaladas, essa massa

contribuição mais explícita em determinado momento e contexto, daí a difi culdade em estabelecer relações causais diretas, e daí a necessidade de aprofundar os estudos sobre os determinantes do emprego formal, buscando, talvez, decompor a contribuição de cada fator à geração total de postos de trabalho formais, com vistas a uma mais efi caz atuação da política pública. Sobretudo a partir de 2007, com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), novos fatores entraram em operação no campo da ampliação e diversifi cação dos investimentos produtivos setoriais, intensifi cando sobremaneira os efeitos identifi cados e descritos neste capítulo. A respeito, ver Cardoso Jr. e Gimenez (2011).

13 Um exame mais completo de cada um desses fatores pode ser visto em Cardoso Jr. (2013).

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monetária se converte em importante parâmetro de decisão do cálculo microeconômico, podendo dar segurança a muitos pequenos e médios negócios privados. Embora esse fenômeno tenda a ser mais relevante nos municípios menores e mais dependentes das políticas sociais (e de outras transferências constitucionais, como os fundos de participação de Estados e Municípios), é justamente neles que está crescendo o emprego formal em atividades do comércio e dos serviços. Quanto à sua sustentabilidade, é claro que há limites para o aumento e a descentralização federativa do gasto social, mas da sua permanência no tempo é que podem derivar mercados locais minimamente autossustentáveis, ainda que não imbatíveis frente a cenários prolongados de baixo crescimento econômico geral.

Daí a importância do segundo fator apontado como parte da explicação para a retomada tanto do ciclo de crescimento do período recente quanto para os empregos formais gerados no País, ou seja, o aumento e a diversifi cação do crédito interno. Em relação a esse ponto, depois de período contínuo (1995 a 2003) de rebaixamento do volume total de crédito no PIB, teve início processo vigoroso de recuperação de novas operações de empréstimos a praticamente todos os setores da atividade econômica, com destaque para os seguintes movimentos: (i) forte ampliação do volume e diversifi cação das modalidades de crédito a pessoas físicas; (ii) inversão de sinal em três setores econômicos de grande importância para a geração de empregos, como o são os setores público, habitacional e rural; e (iii) expressivos incrementos de crédito também aos setores comercial, de serviços e industrial. Em praticamente todos os casos, mesmo naqueles em que o objetivo primordial do empréstimo é antecipar o consumo ou fazer girar o capital corrente, há o fato crucial de que o emprego mantido ou criado a partir desse vetor de demanda tem melhores chances de ser preservado do que uma ocupação qualquer gerada pelo mero instinto de sobrevivência, a partir da oferta própria de força de trabalho. Dito de outro modo: quando um emprego é criado para preencher um posto de trabalho (novo ou velho) que existe por força de demanda anterior, suas chances de se enraizar na estrutura produtiva e de se formalizar são mais amplas. É claro que a sustentabilidade dessa ocupação estará a depender do sucesso da ação empresarial ao longo do tempo, fenômeno este que, por sua vez, está condicionado por uma miscelânea de fatores objetivos e

102

subjetivos, tais como: a perspectiva de crescimento econômico geral e setorial, a combinação câmbio/juros esperada, o nível de confi ança microeconômico no empreendimento etc.

Esse conjunto de fatores também afeta o desempenho do saldo exportador, o terceiro elemento aqui apontado como responsável por parte do crescimento do PIB e dos novos empregos formais gerados na economia brasileira desde a desvalorização cambial de 1999, mas com especial impulso a partir de 2003. Neste caso, embora setores agrícolas e agroindustriais de exportação tendam mais a desempregar que a empregar novos trabalhadores, é possível que a mão de obra remanescente esteja fi cando empregada em relações de assalariamento com carteira assinada. Já nos setores comerciais, sobretudo industriais exportadores, constatou-se incremento líquido de empregos formais nas situações em que as empresas se mantêm no mercado externo por longos períodos. Daí a importância, para o mercado de trabalho formal, de estratégia nacional de inserção exportadora crescente e sustentável, calcada em expansão e diversifi cação de produtos de maior conteúdo tecnológico e maior valor agregado. Em tal contexto, a sustentabilidade das ocupações formais geradas poderá ser elevada sempre que refl etir vetores de demanda internacional robustos ao longo do tempo.

Em termos do ambiente para negócios, encontramos como quarto fator explicativo o regime tributário simplifi cado para micro e pequenas empresas, o SIMPLES. Em operação no País desde 1996, esse sistema de incentivos tributários foi alargando o número de adesões e também facilitando a criação de novos negócios à medida que os limites de faturamento anual bruto foram sendo revistos para cima. Isto aconteceu, até agora, em três oportunidades: primeiro, em 1998, quando foi elevado para R$ 1,2 milhão o limite de faturamento das pequenas empresas; depois, em 2005, quando os limites de faturamento foram duplicados para R$ 240 mil, no caso das microempresas, e para R$ 2,4 milhões no caso das empresas de pequeno porte; fi nalmente, em 2011, quando foi aprovada outra rodada de reajustes dos valores máximos de faturamento. Tendo entrado em vigor em 2012, alargaram esse subsistema tributário a um leque ainda maior de micro e pequenas empresas, reforçando, provavelmente, os efeitos aqui identifi cados no campo da formalização do emprego no Brasil. A partir

103

daí, o fato relevante é que, entre 1999 e 2010, a taxa de crescimento observada para o número de estabelecimentos e de vínculos formais de trabalho cresceu proporcionalmente mais neste segmento das micro e pequenas empresas optantes pelo SIMPLES que no segmento das empresas não optantes. Isto sugere que esse regime simplifi cado de tributação favoreceu tanto a criação de novos empreendimentos como a formalização de empreendimentos já existentes e que antes operavam na ilegalidade. Se isto for verdade é possível supor que a sustentabilidade de parte relevante dessas ocupações possa ser mantida no tempo, enquanto durar tal regime diferenciado de tributação, tudo o mais constante. Outro aspecto interessante diz respeito ao fato de que tanto o estoque total de estabelecimentos como o de vínculos empregatícios formais apresentaram tendência de crescimento ao longo do período 1999/2010; neste caso, independentemente de a empresa ser optante ou não do SIMPLES. Esse fenômeno sinaliza para o fato óbvio de que estratégias de desoneração tributária talvez não sejam condição por si só sufi cientes para o crescimento econômico e a formalização dos postos de trabalho.

Igualmente importantes parecem ter sido as ações governamentais ligadas à intermediação de mão de obra e à fi scalização das condições e relações de trabalho por parte do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), as quais tratamos aqui como quinto fator explicativo de relevância, sobretudo para a retomada dos indicadores de formalização do trabalho. Em ambos os casos, embora os percentuais de recolocação produtiva e de formalização sob ação fi scal ainda sejam pequenos frente ao tamanho do mercado de trabalho nacional, houve melhoras visíveis nos indicadores de desempenho desses programas. Este fato sugere haver ainda boa margem de manobra, no âmbito do MTE, para novos incrementos de pessoal e outros aprimoramentos de gestão, com vistas a uma ação estatal mais fi rme e abrangente em termos de fi scalização e intermediação de mão de obra no País. Sem isso, a sustentabilidade das ocupações recém-formalizadas por força da ação desses programas de governo estará na dependência, na verdade, de um ou mais fatores aqui analisados.

Tudo somado, é claro que o ritmo de geração de ocupações formalizadas tende a se alterar no tempo (e talvez a se reduzir) conforme vá mudando a base técnico-produtiva da economia e a relação

104

capital/trabalho que lhe corresponde, mas a correta identifi cação dos fatores que a cada momento concorrem para a abertura de novas fronteiras de expansão e de sustentação do emprego em geral (e do emprego formal em particular) pode ser estratégia adequada para que os formuladores e gestores de políticas públicas possam infl uenciar o processo de recomposição do mercado de trabalho nacional.

É com base nisso que, como conclusão geral, deriva a constatação de que os fatores aqui destacados - e outros a vigorarem sobretudo de 2007 em diante com a entrada em operação do PAC, por exemplo, e outras medidas de estímulo ao crescimento - são passíveis de algum tipo de atuação consciente e direcionada por parte do Estado. Ou seja, afi rmamos haver instrumentos de ação e capacidade operativa sufi cientes nos aparelhos de Estado já existentes para ativação desses e de outros fatores em prol de estratégia mais robusta e duradoura de desenvolvimento com inclusão social pelo trabalho.

DESESTRUTURAÇÃO DO TRABALHO NOS ANOS 1990, E REESTRUTURAÇÃO NOS ANOS 2000: O CONFRONTO EMPÍRICO ENTRE AS DÉCADAS LIBERAL E DESENVOLVIMENTISTA

A partir da linha de argumentação esboçada acima, é possível fi nalmente pro mover uma separação objetiva entre os elementos que diferenciam o comportamento do mercado de trabalho brasileiro entre as décadas de 1990 (a rigor, entre 1992 e 2002), e a primeira de 2000 (a rigor, entre 2003 e 2013), com vistas a demarcar algumas relações entre os distintos padrões de desenvolvimento econômico observados em cada uma daquelas décadas e os respectivos movimentos de desestruturação e reestruturação do trabalho no Brasil.

Desse confronto emerge a tese central deste texto, segundo a qual em contexto macroeconômico recessivo (década de 1990), tendo os agentes a percepção de se tratar de fenômeno duradouro, e na ausência ou inefi cácia de amplas políticas públicas de garantia de renda e proteção social aos trabalhadores e desempregados, a dinâmica de geração das ocupações passa a depender relativamente mais das con dições de oferta do que das de demanda por trabalho. Por outro lado, em contexto de combinação virtuosa de fatores que têm na ativação econômica favorável à estruturação do mercado de trabalho

105

- em especial, favorável ao vetor de assalariamento contributivo que ele engendra - o seu substrato principal (primeira década de 2000), abrem-se ricas possibilidades de compatibilização entre crescimento econômico e estruturação do mundo do trabalho, com melhoria simultânea (e não contraditória ao crescimento) de variáveis como nível e perfi l da ocupação total, formalização, rendimentos médios, distribuição da renda, combate à pobreza etc.

Tal como demonstrado pela experiência brasileira do período 2003-2013, não apenas foi possível compatibilizar certa retomada de crescimento econômico com reestruturação geral do mercado de trabalho e manutenção da estabilidade monetária, como isto se deu sem que tivesse havido reforma profunda - “mantra liberal” - do padrão de regulação do trabalho ou da proteção social no País. Com isso demonstramos a incompatibilidade intrínseca entre o modelo de estruturação do mercado de trabalho com proteção social historicamente constituído no Brasil e os modelos de desenvolvimento de cunho liberal. Tal incompatibilidade se dá, fundamentalmente, pela inadequação que se estabelece entre a dinâmica econômica de tipo liberal e a natureza heterogênea e desigual do mercado de trabalho brasileiro. Modelos de tipo liberal são, assim, inadequados a economias de tipo periférico-tardias como a brasileira, e contraproducentes a mercados de trabalho delas derivados.

A partir desse aspecto é possível defi nir e caracterizar o quadro de desestruturação do mercado de trabalho na década de 1990, bem como o de reestruturação na primeira década de 2000. A tendência à desestruturação do mercado de trabalho, iniciada na década de 1980, se aprofundaria nos anos 1990, justamente no contexto de primazia da política liberalizante que guiou as ações de todos os governos brasileiros do período, tendo por base uma caracterização que ressalta alguns aspectos sintomáticos e estreitamente interligados, a saber:14

14 Neste texto serão considerados tão-somente sete aspectos relacionados ao problema da desestruturação do trabalho, lembrando, no entanto, que uma oitava característica importante seria proceder a uma averiguação sobre os diversos tipos de segmentação - rural x urbano; homem x mulher; branco x não-branco; jovem x idoso - que se fazem presentes no mercado de trabalho brasileiro, por meio dos quais se verifi cam graus de discriminação negativa que afetam as capacidades individuais de inserção setorial e ocupacional da força de trabalho.

106

a) Crescimento patológico do setor terciário (comércio e serviços) na década de 1990 e pequena recuperação relativa do setor industrial na primeira década de 2000

A terciarização das ocupações, que já fazia parte do cenário eco-nômico nacional desde princípios dos anos 1980, com quase 50% de todo o pessoal ocupado no terciário, continuou sua trajetória de absorção de mão de obra também nas décadas de 1990 e primeira de 2000, ainda que a uma taxa média de crescimento decrescente, conforme dados das Tabelas 1 e 2, e visualização panorâmica no Gráfi co 1.15

O crescimento do terciário na década de 1990 combinou alta quantidade com baixa qualidade das ocupações, pois esteve concentrado em serviços pessoais e comércio ambulante, todos de baixíssima produtividade, baixos rendimentos médios, alta rotatividade e informalidade. Logo, pequena vinculação com os sistemas formais de proteção social (laboral e previdenciária) existentes.

Já na primeira década de 2000, mormente no período 2004 a 2012, houve certa recuperação dos setores industriais, notadamente daqueles ligados à construção civil, e arrefecimento das taxas de crescimento do setor terciário, que não obstante permanecer como o principal setor empregador da economia, hoje o é com ocupações de melhor qualidade que antes. Ou seja: crescimento do emprego em serviços sociais e produtivos (de apoio fi nanceiro, logístico, de Recursos Humanos (RH) e tecnológico às empresas), com elevação dos rendimentos médios, maior taxa de assalariamento e formalização dos vínculos. Logo, com maior acesso aos sistemas de proteção laboral e previdenciário.

Ainda em termos de distribuição da ocupação, há uma queda na participação do setor primário, que tem por raiz a forte “modernização” poupadora de mão de obra. No caso da indústria, o crescimento do percentual de pessoas ocupadas pode ser explicado pelo boom do setor de construção civil na passagem da primeira para o início da segunda década dos anos 2000, cuja taxa de crescimento foi de 3,10% ao ano entre 2004-2007, e de 3,79% entre 2008-2012.

15 A respeito, ver Cardoso Jr. (2001), bem como Cardoso Jr. (2005) para visualização em detalhe dos dados e das tendências do período.

107

Tabela 1 - Distribuição das Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, segundo os Segmentos de Atividade do Tra-balho Principal - Brasil: 1992/2012

Segmentos de atividade do trabalho principal

Distribuição das pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência (%)1992 1998 2003 2008 2012

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Agrícola 28,4 23,6 20,8 16,8 13,5Indústria 21,9 21,5 20,8 22,7 22,8Indústria 15,5 14,1 14,3 15,2 14,0Construção 6,4 7,4 6,5 7,5 8,8Serviços 49,4 54,4 58,1 60,3 63,5Comércio e reparação 14,6 16,0 17,7 17,6 18,0Serviços 34,7 38,4 40,4 42,7 45,5Atividades mal defi nidas ou não declaradas 0,3 0,4 0,2 0,2 0,1

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

Tabela 2 - Taxa Média de Crescimento Anual da Ocupação por Setor de Ativi-dade (das Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Sema-na de Referência) - Brasil: 2001 a 2012

Segmentos de atividade do trabalho principal 2001-03 2004-07 2008-12

Agrícola 1,33 -1,48 -3,75Industria 0,89 2,64 0,66Indústria 1,38 2,43 -1,04Construção -0,16 3,10 3,79Serviços 2,07 2,32 1,57Comércio e reparação 3,12 2,49 1,01Serviços 1,63 2,24 1,79

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

108

b) Crescimento substancial da informalidade nas relações de trabalho durante toda a década de 1990, medida pelo peso crescente dos trabalhadores sem registro, sem remuneração e por conta própria no total da ocupação, com reversão expressiva das mesmas tendências na primeira década de 2000

A informalização das relações de trabalho no Brasil, embora também já fi zesse parte do cenário econômico da década de 1980 (com nunca menos que 50% do total de pessoal ocupado localizado em núcleos pouco estruturados do mercado de trabalho), apresentou tendência de aumento do seu peso relativo no total da ocupação, estacionando em torno dos 60% ao fi nal dos anos 1990, conforme a Tabela 3 e o Gráfi co 2.16

A explosão da informalidade na década de 1990, como decorrência da sobreposição entre os movimentos setoriais de reestruturação produtiva e organizacional forçados pela abertura ao exterior, e as políticas eco nômicas domésticas de orientação recessiva, geraram um quadro de aprofundamento da heterogeneidade do mercado de trabalho, fato este que se traduziu em deterioração das condições de inserção ocupacional para a maior parte da classe trabalhadora no Brasil.

Enquanto nos anos 70 a heterogeneidade era vista como fruto de um crescimento insufi ciente das atividades modernas para absorver a disponibilidade existente de força de trabalho, na década de 1990 a heterogeneidade do mercado de trabalho pode ser analisada como produto da passagem de trabalhadores formais para a situação de informalidade que se aguçou pela perda de dinamismo global do sistema econômico. (BALTAR; DEDECCA, 1997).

16 A respeito, ver Cardoso Jr. (2001), bem como Cardoso Jr. (2005) para visualização em detalhe dos dados e das tendências do período.

109

Chama-se aqui de núcleo estruturado do mercado de trabalho brasileiro a soma das seguintes categorias ocupacionais: assalariamento com carteira assinada (inclusive emprego doméstico com carteira), militares e estatutários. A soma dessas categorias oscilou de 36,9% em 1992 (auge da fase de desestruturação) para 49,3% em 2012 (auge da fase de reestruturação). 17

Já o núcleo pouco estruturado do mercado de trabalho brasileiro corresponde à soma das seguintes categorias ocupacionais: assalariamento sem carteira assinada (inclusive emprego doméstico sem carteira), trabalhadores por conta própria (também chamados de autônomos), trabalhadores não remunerados, trabalhadores na produção para o autoconsumo e trabalhadores na construção para o próprio uso. A soma dessas categorias oscilou de 59,4% em 1992 (auge da fase de desestruturação), para 46,8% em 2012 (auge da fase de reestruturação).18

Quadro 2 - Defi nições Gerais - Os Núcleos Estruturados e Pouco Estruturados do Mercado de Trabalho Brasileiro

Fonte: Elaboração Própria dos Autores.

17 A diferença para 100% se deve à não inclusão dos empregadores e demais categorias mal computadas pela PNAD. Nesta agregação, o ideal é que fi quem de fora os trabalhadores por conta própria agrícolas, os trabalhadores na produção para o autoconsumo e os empregadores. Isto porque, do ponto de vista das relações de trabalho, tratam-se de relações laborais inscritas em lógica própria de não assalariamento da força de trabalho. Além disso, do ponto de vista da proteção previdenciária, tanto os trabalhadores por conta própria agrícolas como os trabalhadores na produção para o autoconsumo podem ser considerados segurados especiais potenciais da previdência rural, em regime de economia familiar rural. Os empregadores, por sua vez, inscrevem-se na proteção previdenciária ofi cial como contribuintes individuais voluntários, sendo metodologicamente mais apropriado deixá-los de fora da classifi cação proposta neste texto. Para desenvolvimento mais completo desta temática, ver Cardoso Jr. (2005).

18 Idem nota anterior.

110

Tabela 3 - Distribuição das Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, segundo a Posição na Ocupação e a Categoria do Emprego no Trabalho Principal. Brasil: 1992/2012

Posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal

Distribuição das pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de

referência (%)

1992 1998 2003 2008 2012

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Empregado 52,3 52,5 54,3 59,1 62,5

.Com carteira de trabalho assinada 29,6 28,4 29,9 35,0 39,9

.Militar e estatutário 6,1 6,5 6,6 7,0 7,4

.Empregado sem carteira de tra-balho assinada 16,6 17,5 17,9 17,2 15,1

.Sem declaração 0,0 0,0 - - -

Trabalhador doméstico 6,7 7,2 7,7 7,2 6,9

.Com carteira de trabalho assinada 1,2 1,8 2,1 2,0 2,0

.Sem carteira de trabalho assinada 5,5 5,4 5,6 5,3 4,8

.Sem declaração 0,0 0,0 - - -

Conta própria 21,7 23,0 22,4 20,0 20,4

Empregador 3,7 4,1 4,2 4,5 3,8

Não remunerado 10,5 8,7 7,1 4,7 2,7

Trabalhador na prod. para o próprio consumo 4,9 4,3 4,2 4,3 3,7

Trabalhador na construção para o próprio uso 0,2 0,3 0,1 0,1 0,1

Sem declaração 0,0 0,0 - - -

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

111

Tabela 4 - Taxa Média de Crescimento Anual da Ocupação por Posição na Ocupação (das Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência). Brasil: 2001 a 2012

Posição na ocupação e categoria do emprego no trabalho principal 2001-03 2004-07 2008-12

Empregado 1,71 2,53 1,64Com carteira de trabalho assinada 1,79 3,87 3,23Militar e estatutário 2,46 2,46 1,75Outro sem carteira de trabalho assinada 1,32 0,19 -2,01

Trabalhador doméstico 0,85 0,78 -0,56Com carteira de trabalho assinada 1,54 2,19 1,42Sem carteira de trabalho assinada 0,63 0,29 -1,33

Conta própria 1,78 0,76 0,85Empregador 1,88 -0,55 -2,84Não remunerado -0,05 -2,50 -10,07Trabalhador na prod. para o próprio consumo 5,16 3,95 -2,50

Trabalhador na construção para o próprio uso 2,42 9,43 -6,56

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

Já a partir da virada para os anos 2000, há crescimento da participação dos empregados com carteira de trabalho assinada, que chega a 40% em 2012. No entanto, a taxa de crescimento para a ocupação com carteira assinada, que era – conforme dados da Tabela 4 – de 1,8% a.a. entre 2001-2003, sobe para 3,9% a.a. entre 2003-2007, mas sofre uma ligeira queda para 3,2% a.a. no período de 2008-2012, que não é mais acentuada em função de medidas de política econômica para amortecer os efeitos da crise internacional em curso desde então.

De toda sorte, o Gráfico 2 mostra que apenas em 2012 há a inversão de posições entre os núcleos estruturados e pouco estruturados do mercado de trabalho, demonstrando, simultaneamente, tanto a tese da reestruturação relativa do

112

mercado laboral brasileiro nesta última década como o peso ainda imenso do núcleo pouco estruturado no total da ocupação.

c) Aumento dos níveis de desocupação ao longo da década de 1990, e reversão signifi cativa dos mesmos na primeira década de 2000

Os anos 1990 também vieram acompanhados de mudança de patamar nos níveis médios de desocupação da População em Idade Ativa (PIA) e desemprego da População Economicamente Ativa (PEA), que praticamente dobram ao fi nal da década em relação aos índices dos anos 1980 e começo dos 1990, mesmo considerando as estimativas conservadoras do IBGE. Já na primeira década de 2000, as tendências se revertem e o País experimenta uma fase de taxas de desocupação e desemprego bastante baixas, tanto se comparadas internacionalmente quanto se comparadas às suas próprias taxas históricas.

Alguns autores (AMADEO; CAMARGO, 1996; FRANCO, 1999) procuraram minimizar o fenômeno do desemprego no Brasil na década

36,9 36,738,6

44

49,3

59,4 59,257,3

51,6

46,8

30

35

40

45

50

55

60

1992 1998 2003 2008 2012

Nucleo Estruturado Nucleo Pouco Estruturado

Gráfi co 1 - Evolução e Composição da Ocupação Total segundo a Aglutinação das Categorias Ocupacionais entre Núcleo Estruturado e Núcleo Pouco Estruturado do Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasil: 1992/2012

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Dados do IBGE.

113

de 1990, atribuindo-o ao conjunto de transformações estruturais em âmbito mundial, resultado, portanto, dos processos de reorganização produtiva e tecnológica e das novas formas de gestão empresarial, com rebatimentos inexoráveis no País, em sua fase - àquela altura - de crescente abertura e integração junto aos mercados centrais.

Ainda que se reconheçam os impactos oriundos da esfera microeconômica sobre o emprego agregado, não é possível descartar o fato de o ambiente macroeconômico interno ter estado muito pouco propício ao enfrentamento do desemprego como fenômeno econômico e social de grandes proporções, com consequências adversas sobre o conjunto da população e da própria economia. (CACCIAMALI, 1995; BALTAR; MATTOSO, 1997). Essa afi rmação se mostra ainda mais verdadeira quando se constata a reação positiva do mercado de trabalho - e a queda expressiva das taxas de desocupação e desemprego - frente à dinâmica econômica e ao contexto internacional mais favoráveis ao longo da primeira década de 2000, ou ao menos até

Gráfi co 2 - Evolução das Taxas de Desocupação Agregada e por Gênero. Brasil: 1992/2012

Fonte: Elaboração Própria dso Autores a partir dos Dados do IBGE.

6,56,2 6,1

7,0

7,8

9,09,6

9,3

9,1

9,7

9,09,4

8,58,2

7,2

8,4

6,8

6,3

5,65,4 5,3

5,7

6,4

7,2

7,9

7,5 7,47,8

6,97,2

6,56,2

5,3

6,3

4,9 4,7

8,0

7,4 7,3

8,8

10,0

11,6

12,111,9

11,6

12,3

11,8

12,3

11,110,9

9,7

11,1

9,2

8,3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Total Homens Mulheres

114

a irrupção da crise fi nanceira em 2008. Em outras palavras, constatam-se diferenças importantes de comportamento da ocupação entre as décadas de 1990 e a primeira de 2000. Há que se destacar a marcante piora durante a década liberal e a relativa recuperação durante a década desenvolvimentista. A taxa de ocupação - População Ocupada (PO): População Economicamente Ativa (PEA) regrediu de forma mais acentuada que a taxa de participação (PEA/PIA) entre 1995/1999, fazendo a taxa de desemprego População Desempregada (PD/PEA) crescer 62,6% no período, o que a elevou de 6,1% em 1995 para 9,9% em 1999. Já na década seguinte, apesar da forte recuperação da taxa de participação (PEA/PIA), a ocupação total teve desempenho bastante positivo, contribuindo para a manutenção da taxa de desemprego em patamar sempre inferior a 10% ao ano.

d) Precarização ou piora na qualidade dos postos de trabalho na década de 1990 e relativa melhora na primeira década de 2000

Intimamente associada à informalização e ao crescimento e diversifi cação dos tipos de desemprego (friccional, cíclico, sazonal, estrutural, oculto, de inserção, de exclusão), constata-se, nos anos 1990, uma precarização crescente das relações e condições laborais, com aumento da assimetria já existente entre capital e trabalho, especialmente para as categorias ocupacionais tidas como informais, no interior das quais parece residir as atividades mais precárias, do ponto de vista da qualidade da ocupação - caso claro dos trabalhadores autônomos - e de mais frágil inserção profi ssional, do ponto de vista das relações de trabalho - caso evidente dos sem registro em carteira.19

Em estudos sobre a qualidade dos postos de trabalho, e embora reconhecendo a complexidade conceitual e empírica em defi nir e mensurar o fenômeno da precarização, acreditamos que informações sobre cobertura previdenciária, tipo e quantidade de benefícios recebidos pelos trabalhadores, jornada de trabalho, número de empregos praticados, permanência no emprego e fi liação sindical, dentre outros, cobrem conjunto muito relevante de aspectos ligados

19 Isto não é, obviamente, o mesmo que dizer que não existem atividades de trabalho precário ou frágeis também no seio da categoria ocupacional de assalariados com carteira, mas sim que neste caso a incidência de inserções dessa natureza é bem menor, posto estarem ligadas ao núcleo mais estruturado do mercado de trabalho.

115

à qualidade dos postos de trabalho. Esses aspectos são livres da dimensão exclusivamente monetária que costuma caracterizar a maioria dos estudos a respeito dos postos de trabalho, mas deveriam ser considerados.20

Tabela 5 - Percentual de Contribuintes da Previdência Social no Trabalho Principal, na População de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupada na Semana de Referência, segundo os Grupamentos de Atividade do Trabalho Principal - Brasil - 1992/2012 ( )

Grupamentos de atividade do trabalho principal

Percentual de contribuintes de instituto de previdência no

trabalho principal, na população de 10 anos ou mais de idade, ocupada

na semana de referência (%)

1992 1998 2003 2008 2012

Total 42,5 43,2 46,1 52,5 60,4

Agrícola 8,6 9,4 10,9 16,2 20,9

Indústria de transformação 66,2 63,7 63,0 69,0 76,0

Outras atividades industriais 74,1 78,0 76,8 86,8 90,5

Construção 38,6 29,0 27,9 35,3 42,6

Comércio e reparação 49,5 47,7 47,4 53,7 62,7

Alojamento e alimentação 40,5 37,9 40,2 44,9 54,0Transporte, armazenagem e comuni-cação 71,4 62,6 59,1 65,3 71,2

Administração pública 76,6 77,6 84,6 89,8 88,4

Educação, saúde e serviços sociais 75,7 75,7 82,6 85,5 88,5

Serviços domésticos 19,0 26,5 29,3 30,4 37,7Outros serviços coletivos, sociais, pes-soais 34,1 36,0 38,0 36,2 45,1

Outras atividades 80,3 73,7 72,7 73,7 80,6

Atividades mal defi nidas ou não declara-das 27,4 16,4 11,8 18,9 22,1

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e Atividade de 1992 a 2001 Harmonizada com a Classifi cação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE)-Domiciliar.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

20 A respeito, ver Reinecke (1999) e Cardoso Jr. (2005) para visualização em detalhe dos dados e das tendências do período.

116

Gráfi co 3 - Evolução das Taxas de Cobertura Previdenciária Agregada e por Gênero. Brasil: 1992/2012

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Dados do Anuário Estatístico da Previdência Social.

Neste texto, informações sobre a contribuição previdenciária e sobre a fi liação sindical permitem fazer algumas inferências sobre a qualidade dos postos de trabalho. Ao longo dos anos 1990, conforme a Tabela 5, se vê que o percentual de contribuintes do instituto de previdência no trabalho principal se manteve, segundo o IBGE, abaixo dos 45%, passando para mais de 50% já na primeira década dos anos 2000, e atingindo 60% em 2012.

Embora com valores diferentes, a mesma tendência se verifi ca no Gráfi co 3, onde se destaca, com dados do Anuário Estatístico da Previdência Social, que a cobertura previdenciária é maior entre os homens relativamente às mulheres. Mas em qualquer dos casos, fi ca claro o movimento de precarização do trabalho na década de 1990, aqui medida pela redução da cobertura previdenciária ao longo dos anos, e sua recuperação para níveis superiores aos do início da série, ao longo da primeira década de 2000.

Este desempenho guarda relação com o processo de formalização dos contratos de trabalho. Destaca-se, neste caso, o crescimento do

69,3%

68,0%67,0%

65,9%65,5%

64,8%64,1% 63,5%

62,9%63,8%

64,3%64,9%

65,7%

66,9%67,8%

68,9%

71,3%71,8%

61,8%60,9%

60,8%

60,6%

61,3% 61,4%

61,0% 60,7%60,0%

60,7%60,2%

61,4%61,8%

62,7%63,6%

64,6%

69,6%

70,6%

66,4%

65,2% 64,5%63,8% 63,8%

63,4%62,8%

62,3%61,7%

62,5%62,5%

63,4%64,0%

65,1%66,0%

67,0%

70,6%71,3%

0,54

0,56

0,58

0,6

0,62

0,64

0,66

0,68

0,7

0,72

0,74

Homens Mulheres Total

19921993

19941995

19961997

19981999

20002001

20022003

20042005

20062007

20082009

20102011

2012

117

número de contribuintes em alguns segmentos cujo desempenho está relacionado ao crescimento da importância do mercado interno, da indústria da construção e dos esforços para a formalização dos contratos de trabalho doméstico. São esses os grupamentos de atividades que mantiveram a taxa média de crescimento de contribuintes do instituto de previdência no trabalho principal mesmo diante da crise em 2008. No caso do setor de construção, houve crescimento de 6,1% a.a., no período de 2004-2007 e de 7,8% a.a., entre 2008-2012. No setor de serviços, chama a atenção o segmento de alojamento e alimentação com crescimento de 5,6% a.a., e de 8,8% a.a., nos períodos respectivos.

Tabela 6 - Percentual de Pessoas Sindicalizadas, na População de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, segundo os Grupamentos de Atividade do Trabalho Principal - Brasil - 1992/2012

Grupamentos de atividade do trabalho principal

Percentual de pessoas sindicalizadas, na população de 10 anos ou mais de idade, ocupada na semana de referência (%)1992 1998 2003 2008 2012

Total 16,7 15,9 17,7 18,2 16,6Agrícola 13,5 15,1 22,1 26,3 25,5Indústria de transformação 24,0 20,4 20,5 21,7 20,5Outras atividades industriais 46,7 40,8 34,6 37,9 29,4Construção 9,1 6,7 6,9 7,9 8,3Comércio e reparação 11,1 10,2 10,8 11,3 10,5Alojamento e alimentação 8,2 7,3 8,8 9,3 9,6Transporte, armazenagem e comu-nicação 34,8 27,0 24,0 23,3 20,3

Administração pública 21,1 23,9 26,6 26,4 22,6Educação, saúde e serviços sociais 27,3 29,1 29,2 28,1 25,6Serviços domésticos 0,7 1,0 1,6 2,0 2,5Outros serviços coletivos, sociais, pessoais 10,1 10,6 11,5 9,5 7,8

Outras atividades 32,9 27,4 25,1 21,7 19,1Atividades mal defi nidas ou não declaradas 8,4 5,6 4,6 4,9 7,6

Fonte: IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e Atividade de 1992 a 2001 Harmonizada com a Classifi cação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE)-Domiciliar.

Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

118

No entanto, ao se analisarem os dados sobre o percentual de pessoas sindicalizadas, na Tabela 6, alguns números se destacam. O percentual de sindicalizados dentre o total de pessoas ocupadas está em torno dos 17%, o que esboça certa fragilidade na capacidade de organização do trabalho no que diz respeito à representação de classe. Não obstante isso, transformações nas relações de trabalho em alguns setores determinaram crescimento do número de pessoas sindicalizadas, caso do setor agrícola, o que refl ete o assalariamento em atividades ligadas ao fortalecimento dos grandes complexos agroindustriais. Ainda assim, houve queda no percentual de pessoas sindicalizadas no início da segunda década dos anos 2000, exceção para a indústria de construção e alojamento, e alimentação no setor de serviços.

e) Estagnação relativa dos rendimentos médios oriundos do trabalho, na década de 1990, em particular dos trabalhadores assalariados com carteira, e recuperação dos mesmos ao longo da primeira década de 2000

Depois de uma década - a de 1980 - marcada por bruscos movi-mentos de queda e recuperação dos níveis médios dos rendimentos dos trabalhadores ocupados, a década de 1990 foi palco de estagnação relativa dos rendimentos médios das principais categorias ocupacionais. Os trabalhadores assalariados, notadamente os vinculados à indústria, tiveram seus rendimentos reais praticamente congelados desde que a abertura comercial acirrou a competição nos mercados domésticos de bens transáveis internacionalmente.

Por sua vez, os trabalhadores autônomos, particularmente os ligados ao comércio e aos serviços, depois de curto período de euforia no biênio 1995/1996, viram seus rendimentos reais inverterem a trajetória de crescimento e tam bém refl uírem para os níveis observados antes da implantação do Plano Real. Em outras palavras, quando se observa a evolução dos rendimentos reais mé dios por posição na ocupação desde o início dos anos 1980, vê-se que há certa estagnação relativa ocasionalmente interrompida por efeitos não duradouros de algum plano de estabilização, como no Cruzado, em 1986, ou mesmo no Real, entre a segunda metade de 1994 e a primeira de 1997.

119

Tabela 7 - Evolução dos Rendimentos Médios Reais do Trabalho Principal, por Gênero e por Posição na Ocupação. Brasil - 1992/2012. Em R$ de set. 2012

1992 2001 2009 2012 Var. %92-01

Var. %01-12

Brasil 891,1 1.087,8 1.220,9 1.432,6 22,1 31,7

Homens 1.055,2 1.254,8 1.406,9 1.631,7 18,9 30,3

Mulheres 609,2 831,8 964,4 1.158,6 36,5 39,3

Com carteira 1.204,5 1.173,5 1.241,3 1.362,6 -2,6 16,1

Sem carteira 409,0 606,6 687,9 818,7 48,3 34,9Conta própria 818,1 987,1 1.011,4 1.328,6 20,7 34,6

Empregador 3.032,4 3.766,8 3.731,0 4.523,4 24,2 20,1

Estatutário 1.462,1 1.969,7 2.298,6 2.450,7 34,7 24,4

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir de Dados do IBGE.

Como resultado agregado da década de 1990, no entanto, conforme indicam os dados da Tabela 7, houve queda real dos rendimentos dos assalariados com carteira, grupo ocupacional mais prejudicado pela década liberal, e algum crescimento relativo das demais categorias. Já na primeira década de 2000, as taxas de crescimento ponta a ponta do período 2001 a 2012 não apenas foram positivas para todas as categorias ocupacionais listadas, como também foram sensivelmente maiores que as do período anterior.

f) Estagnação relativa da situação distributiva, na década de 1990, tanto do ponto de vista da distribuição funcional da renda (repartição entre rendimentos do capital e do trabalho) quanto do ponto de vista da distribuição pessoal dos rendimentos do trabalho, e certa melhora distributiva - funcional e pessoal - nos anos 2000

Do ponto de vista da distribuição funcional da renda, ou mais propriamente da participação dos salários na renda nacional, esta se apresenta estruturalmente reduzida no Brasil, em comparação com países desenvolvidos, por conta de pelo menos dois fatores que agem na mesma direção. Em primeiro lugar, a manutenção de um peso elevado de trabalhadores em mercados de trabalho pouco

120

estruturados que, marcados pela ausência de amplos movimentos sindicais organizados e políticas públicas de transferências de renda e proteção social, reproduzem distanciamento permanente entre ganhos de produtividade e repasses reais aos salários. Em segundo lugar, como refl exo do tipo de crescimento econômico que é imposto pela dinâmica capitalista no Brasil, o ritmo insufi ciente de absorção de população ativa nos segmentos mais organizados do mercado de trabalho dá origem a uma massa reduzida de remunerações, tanto para os segmentos assalariados (com ou sem carteira) como para os autônomos, conforme pode ser visto no Gráfi co 4.21

Gráfi co 4 - Evolução da Distribuição Funcional da Renda - Participação da Ren-da do Trabalho Assalariado (Com e Sem Carteira) + Vencimento dos Militares e Estatutários no PIB e na Renda Total dos Fatores. Brasil: 1995/2008

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Dados do Sistema de Contas Nacionais/IBGE.

21 Reforçando ambos os aspectos acima mencionados, tem-se no caso brasileiro que tanto a ausência de políticas salariais de orientação estruturante do mercado de trabalho quanto o poder restrito dos sindicatos na fi xação dos salários nominais constituíram-se em fatores adicionais para manter reduzida a participação dos salários na renda nacional. A respeito, ver Pochmann (1994); Oliveira (1994) e Baltar e Proni (1995).

48,8 48,346,7

47,5 47,346,7

47,246,2 45,7 45,8 46,7

47,6 48,149,1

64 63,1

60,8 61,3 61 60,4 60,559,6 58,7

5858,4 58,9 59,4

60,4

40

45

50

55

60

65

70

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

remuneração empregados / PIB

remuneração empregados + remuneração autônomos / Renda total dos fatores

121

Nos dois casos (remuneração dos empregados sobre o PIB; e remuneração dos empregados e dos autônomos sobre a renda total dos fatores), percebe-se certa estagnação relativa (com ligeira piora, na verdade) da distribuição funcional na década de 1990, e alguma recuperação do peso das remunerações dos empregados (e também dos empregados e dos autônomos) ao longo da primeira década de 2000.

Já do ponto de vista da concentração pessoal dos rendimentos do trabalho, como a hierarquia de remunerações responde a características da estrutura produtiva preponderantemente vinculada aos segmentos estruturados dos mercados de trabalho, e como o peso e a dinâmica desse setor não conseguem absorver integralmente toda a oferta efetiva de mão de obra, tem-se um perfi l altamente concentrado para a distribuição dos rendimentos provenientes do trabalho. Esse perfi l é reforçado pela existência de um nível muito baixo de salários para a maior parte das pessoas pertencentes à base pouco estruturada do mercado laboral.

Tabela 8 - Indicadores Selecionados para a Distribuição Pessoal dos Rendimen-tos do Trabalho Principal Brasil - 1992/2012

1992 2002 2012 Var. %92-02

Var. %02-12

I. Gini 0,580 0,587 0,526 12,0 -1,09I. Theil-L 0,634 0,634 0,496 0,00 -2,42

Razão 20+/20- 26,0 24,7 16,8 -0,51 -3,78Razão 10+/40- 5,3 5,5 3,8 0,37 -3,63

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Dados do Sistema de Contas Nacionais (SCN)/IBGE.

Desta maneira, analisando os indicadores da Tabela 8, vemos que a distribuição pessoal dos rendimentos do trabalho mostra uma melhora consistente apenas quando o padrão liberal de desenvolvimento, dominante na década de 1990, deixa de ser hegemônico na nova confi guração de políticas públicas da primeira década de 2000. Ainda mais, pode-se dizer que a queda da desigualdade pessoal apenas se torna de fato virtuosa, dos pontos de vista econômico e social, quando associada - a partir de 2003 - a uma melhora simultânea da distribuição funcional da renda. Isso porque há, na primeira década de 2000, combinação positiva entre crescimento da massa global de

122

remunerações do trabalho e sua melhor distribuição no interior da classe trabalhadora.

Se adicionarmos a isso o fato de que tal combinação se deu também com fatores positivos de reestruturação do mercado laboral, tais como crescimento da ocupação total à frente do crescimento do PIB, crescimento da formalização dos vínculos à frente do crescimento da ocupação, recuperação real - ainda que insufi ciente - dos rendimentos médios para praticamente todas as categorias ocupacionais, e crescimento mais que proporcional desses rendimentos para segmentos populacionais da base da pirâmide social), tem-se, de fato, que se trata de um novo cenário na relação desenvolvimento - mercado de trabalho no Brasil.

g) Elevados patamares de pobreza na década de 1990, e queda expressiva na primeira década de 2000, refl etindo estancamento da mobilidade social intrageracional (de renda) na década liberal e certa retomada na década desenvolvimentista, mas de curta distância e concentrada nos estratos inferiores da escala social

Gráfi co 5 - Evolução da Distribuição Pessoal dos Rendimentos do Trabalho Principal. Brasil: 1992/2012

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a prtir dos Dados do SCN/IBGE e PNAD.

48,8

48,3

46,7

47,5

47,3

46,7

47,2

46,2

45,7 45,8

46,7

47,6

48,1

49,10,5850,580 0,580

0,5750,567 0,566

0,5630,554

0,547 0,5440,541

0,5280,521

0,480

0,500

0,520

0,540

0,560

0,580

0,600

45

45,5

46

46,5

47

47,5

48

48,5

49

49,5

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

remuneração empregados / PIB I. Gini - PNAD

Gini

123

Partindo da suposição de que o estudo da mobilidade intrageracional - ao invés do comportamento da mobilidade intergeracional - seja o mais indicado para se captarem os efeitos das transformações econômicas de curto/médio prazos sobre determinado grupo populacional dentro de uma escala social hierárquica, uma primeira observação importante é que, independentemente do tratamento metodológico utilizado, a maior parte dos estudos sobre o assunto aponta para uma mudança no padrão de mobilidade social entre as décadas de 1990 e a primeira de 2000, decorrente das transformações observáveis no próprio padrão de desenvolvimento econômico nacional.22

Na fase de esgotamento do padrão pretérito de desenvolvimento nos anos 1980 e de gestação de um novo modelo de crescimento econômico nos anos 1990, verifi ca-se aumento do grau de imobilidade intrageracional e até mesmo aumento não desprezível do grau de mobilidade social descendente. (PICANÇO, 2001). Segundo esse autor, em estudo que compara os tipos de mobilidade social entre os anos de 1988 e 1996 para todas as pessoas ocupadas de dez anos e mais, a imobilidade intrageracional total saltou de 35,1% para 40,3% no intervalo considerado, o que equivale a dizer que, em 1996, percentualmente mais pessoas estavam presas ao mesmo estrato sócio-ocupacional registrado no momento de sua entrada no mercado de trabalho.23

22 Historicamente, durante o longo ciclo de crescimento do País (1930-1980), o movimento dominante de mobilidade intrageracional foi ascendente e de tipo estrutural, vale dizer, comandado não pelos atributos pessoais dos trabalhadores, mas sobretudo pela dinâmica de incorporação de mão de obra que se verifi ca numa sociedade em processo de crescente industrialização e urbanização. O trabalho clássico de Pastore (1979), por exemplo, mostra que há movimento intenso de mobilidade social, mas de curta distância entre os estratos sócio-ocupacionais e localizado sobretudo na base da escala social. Tal resultado é decorrência, basicamente, da intensa migração rural-urbana, que por si só foi contabilizada por Pastore como mobilidade social ascendente.

23 Este resultado geral, no entanto, foi especialmente importante para os homens, cuja taxa de imobilidade passou de 31,2% para 40,1% entre 1988 e 1996. Já no caso das mulheres, embora tenha havido pequeno aumento no grau de mobilidade total, esta foi basicamente de tipo descendente, fenômeno que também aconteceu com os homens, mas em menor intensidade. No caso das mulheres, o aumento da mobilidade descendente no período coincide com o aumento da taxa de

124

Outra informação relevante extraída do mesmo estudo (PICANÇO, 2001) indica que a mobilidade estrutural – comandada pelo crescimento econômico – perdeu ímpeto entre os dois anos pesquisados (1988 e 1996), dando lugar a um tipo de mobilidade circular que decorre da troca de posições entre indivíduos na estrutura social, tal que para um indivíduo ocupar certa posição, outro tem de sair dela. Neste contexto, as características da oferta de trabalho se sobrepõem às da demanda, motivo pelo qual os atributos pessoais dos trabalhadores adquirem maior importância na defi nição das ocupações.24

Infelizmente, não faz parte da tradição de estudos sobre mobilidade uma desagregação dos estratos sociais por posição na ocupação. Este aspecto certamente ajudaria na compreensão do fenômeno de desestruturação do mundo do trabalho pela ótica da mobilidade intrageracional. Eventos tais como imobilidade e mobilidade descendente devem possuir forte correlação com as outras dimensões aqui tratadas como terciarização patológica, informalização das relações de trabalho, perda de qualidade das novas ocupações, aumento da desocupação, queda nos rendimentos e piora distributiva, bem como com a dimensão da pobreza, tal como a apresentamos no Gráfi co 6.

participação – e desemprego – desse grupo populacional no mercado de trabalho. Os contextos de crescimento econômico pífi o e concorrência exacerbada pelo lado da oferta de trabalho são favoráveis a situações de discriminação e segmentação nos mercados de mão de obra, o que poderia explicar, em parte, o aumento da mobilidade descendente das mulheres relativamente à dos homens.

24 Tomando-se em consideração outro estudo (JANUZZI, 2002) num intervalo mais longo de tempo (1982-1996), e usando como referencial os movimentos de mobilidade de chefes de domicílio homens de 15 a 74 anos por estratos ocupacionais, chega-se praticamente às mesmas conclusões. Neste caso, o fenômeno da imobilidade intrageracional total aparece como bastante signifi cativo em ambos os anos de referência pelo fato de não considerar a migração rural-urbana um fator em si mesmo de mobilidade social. Assim, o que surge como movimento relevante é o aumento expressivo da mobilidade descendente em todos os estratos sócio-ocupacionais pesquisados. No intervalo de tempo considerado a mobilidade ascendente apenas é percebida do último para o penúltimo estrato social, e, ainda assim, em magnitude bem modesta.

125

Gráfi co 6 - Percentual de Pobres, com e sem Transferências Previdenciárias. Brasil: 1992/2012

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)/IBGE.

Nota: *Foram considerados apenas os habitantes de domcílios onde todos os moradores declararam a integralidade de seus rendimentos. Para efeito de cálculo o salário mínimo foi corrigido a preços de set/2011

** Linha de pobreza = 1/2 salário mínimo

Nota-se grande correlação entre o período de imobilidade (ou mobilidade descendente) da década de 1990 e o estancamento (ou ligeiro aumento) nos patamares de pobreza nesse período. Fenômeno oposto ocorre na primeira década de 2000, sob infl uência de um padrão de desenvolvimento includente pela via das políticas sociais (com expansão do seu vetor de transferência de renda, notadamente via previdência e assistência social), e estruturador do mercado de trabalho (com aumento mais que proporcional da ocupação total frente ao PIB, aumento mais que proporcional da formalização dos vínculos laborais e previdenciários frente à ocupação total, incremento real médio das remunerações do trabalho mais que proporcional para segmentos inferiores da pirâmide distributiva, melhoria da distribuição funcional e pessoal da renda do trabalho etc.).25 Nessa

25 Aqui pesa a valorização do salário mínimo como piso dos benefícios previdenciários e dos salários-base do núcleo estruturado (trabalhadores com carteira assinada),

56,7 56,1

45,6 45,5 45,3 45 45,7 45,544,5

46,644,3

40,8

36,535,3

3229,2 27,8

63,3 63

53 53,2 53,4 53,555 55,3 54,4

57,355

52,3

48,2 47,2

44,141,7

40,6

25

30

35

40

45

50

55

60

65

70

Com Transferências PrevidenciáriasSem Transferências Previdenciárias

19921993

19941995

19961997

19981999

20002001

20022003

20042005

20062007

20082009

20102011

2012

126

década nota-se, então, grande correlação entre a queda dos índices de pobreza e a retomada de alguma mobilidade social promovida pelas tendências citadas, ainda que esta permaneça sendo uma mobilidade de curta distância entre as escalas de população concentrada nos estratos inferiores da pirâmide social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mercado de trabalho nacional passou por modifi cações profundas entre as décadas de 1990 e a primeira de 2000, quase todas infl uenciadas diretamente pelo cenário macroeconômico geral, bem como pelo que aqui se chamou de padrão liberal (década de 1990) e desenvolvimentista (década de 2000) de desenvolvimento nacional. Na verdade, é perceptível a existência de três momentos claramente discerníveis, através dos quais se nota, de fato, que o mercado de trabalho refl ete, em grande medida, o comportamento ditado pelas políticas públicas do período, além dos referidos padrões de desenvolvimento.

Entre 1995 e o fi nal de 1999, em ambiente macroeconômico marcado por sobrevalorização cambial e diferencial positivo e elevado entre as taxas de juros domésticas e internacionais, as principais variáveis do mercado de trabalho nacional sofreram processo intenso de deterioração. Os níveis absoluto e relativo de desemprego aumentaram, bem como a informalidade das relações contratuais e a desproteção previdenciária para amplos segmentos do mercado de trabalho urbano, enquanto os níveis reais médios de renda do trabalho e a sua distribuição pioraram.

Já entre a desvalorização cambial de 1999 e meados de 2005, apesar do arranjo de política econômica restritivo (câmbio semifl utuante, superávits fi scais generosos, taxas de juros elevadas e metas rígidas de infl ação), a economia brasileira operou em contexto de comércio internacional favorável, o que permitiu certo arrefecimento das tendências anteriores para as principais variáveis do mercado de trabalho. Os níveis absolutos e relativos de desemprego pararam de subir no mesmo ritmo que antes, a informalidade das relações de

assim como o peso das transferências de renda tipo Bolsa Família.

127

trabalho e o grau de desproteção previdenciária arrefeceram (mas em patamares muito elevados). Enquanto os níveis médios de renda real do trabalho continuaram a cair para a maior parte das categorias ocupacionais, a distribuição dos rendimentos começou a esboçar pequena melhora, sobretudo depois de 2001.

Por fi m, no período 2006/2013, a despeito de o arranjo de política macroeconômica manter-se praticamente inalterado, a pujança do comércio exterior até instalar-se a crise internacional em 2008, combinada com reduções nos patamares de juros internos e com importante expansão das várias modalidades de crédito, aumentos do salário mínimo à frente da infl ação e expansão das políticas sociais, houve reação positiva do mercado de trabalho a estímulos da política econômica.

Evidenciava-se - daí para a frente - tanto a relação de causalidade entre padrão de desenvolvimento e variáveis cruciais do mundo do trabalho e da proteção social, como o potencial multiplicador implícito entre essas dimensões. A taxa de desemprego aberto, o grau de informalidade das relações de trabalho e o grau de desproteção previdenciária esboçaram diminuição, enquanto o nível de remunerações da base da pirâmide social parou de cair em 2004, elevando-se a partir de 2005, o que contribuiu para prolongar o processo de redução das desigualdades de renda em bases mais virtuosas.

De todo modo não custa salientar que, a despeito da recomposição real do salário mínimo nos últimos anos, a maior parte (cerca de 90%) das novas ocupações formais geradas entre 2003/2013 esteve limitada ao teto de até dois salários mínimos mensais, com o agravante de que os índices de rotatividade da mão de obra aumentaram no mesmo intervalo de tempo. Por outro lado, houve mudança qualitativa importante no que diz respeito à distribuição dos rendimentos do trabalho. A queda na desigualdade de rendimentos, ao menos entre 2003 e 2013, passou a ser motivada por aumento mais que proporcional dos rendimentos inferiores da pirâmide distributiva, em contexto de valorização real do salário mínimo, ampliação da ocupação em geral e aumento mais que proporcional da fi liação previdenciária, aspectos que, somados, colocam em pauta a exequibilidade de políticas de crescimento econômico compatíveis tanto com a reestruturação e

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o reordenamento do mercado de trabalho quanto com trajetórias também benéfi cas de melhoria dos indicadores de desempenho fi nanceiro da previdência social.

Por tais motivos é bastante relevante a constatação obtida pela PNAD/IBGE (e demais fontes estatísticas e registros administrativos) acerca da trajetória recente de recuperação do emprego assalariado formal no País. E apesar das difi culdades empíricas para estabelecer causalidades nem sempre diretas ou óbvias, cremos ter conseguido, como primeira aproximação ao tema, grau de conhecimento mais acurado sobre o assunto. Em outras palavras: aumento e desconcentração do gasto social, aumento e diversifi cação do crédito interno, aumento e diversifi cação do saldo exportador, consolidação do regime tributário simplifi cado para microempresas e empresas de pequeno porte (SIMPLES), e maior efi cácia das ações de intermediação de mão de obra e de fi scalização das relações e condições de trabalho nas empresas foram determinantes fundamentais para explicar a trajetória de recuperação do emprego formal no período 2003/2013 no Brasil. (CARDOSO JR., 2007, 2013).

Assim, os indícios levantados no texto apontam para a necessidade de uma agenda mais explícita, orgânica e sistêmica de desenvolvimento, ancorada nos seguintes vetores de transformação positiva:

• Recuperação e sustentação do crescimento econômico em bases mais sólidas e níveis mais elevados que os atuais. Vale dizer: indução deliberada do Estado rumo a uma revolução de base técnico-científi ca-produtiva, que seja capaz de combinar estímulos à chamada economia verde e educação ambiental, com encadeamentos inovativos nas esferas produtiva e institucional, em processos e produtos;

• Reestruturação institucional do padrão de fi nanciamento público em geral, e das políticas sociais em particular. Vale dizer: reforma tanto tributária como fi scal que seja capaz de combinar progressividade na arrecadação com redistributividade nos gastos;

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• Consolidação de mínimos civilizatórios para a regulação (estruturação e regulamentação) do mundo do trabalho. Vale dizer: aprofundamento de uma cultura de direitos, referenciada ao conjunto de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais (a chamada Plataforma DHESCA);

• Promoção politicamente deliberada da distribuição funcional e pessoal da renda;

• Construção de novas institucionalidades na relação Estado/Sociedade para a promoção da cidadania ampla e para a consolidação democrática. Vale dizer: reforma ético-política nos sistemas de representação, participação e deliberação, com valorização da esfera pública e da cidadania em todos os níveis.

Este conjunto de diretrizes estratégicas perfi la-se, claramente, ao lado do debate político e acadêmico defendido por setores do campo progressista da sociedade brasileira, dentro e fora das estruturas de governo. Em outros termos, acreditamos não haver solução positiva dentro do caminho liberal. Defendido por setores conservadores da sociedade, comunidades da política (partidos, sindicatos e outras agremiações) e da própria burocracia, além da mídia e setores do empresariado, essa alternativa política, orientada ao esvaziamento do papel do Estado, trouxe consequências nefastas em outros tempos, ao Brasil e ao mundo.

No caso brasileiro, a via liberal parcialmente implementada ao longo da década de 1990 provocou, dentre outros problemas, desarticulação produtiva, fi nanceirização da riqueza, precarização do mercado de trabalho e desmonte do sistema de proteção social, então em formação. A via liberal, portanto, inviabiliza trajetória sustentada de homogeneização econômica e social no País, não podendo se constituir em alternativa crível aos desafi os da contemporaneidade colocados ao Brasil já nesta segunda década de século XXI.

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CAPÍTULO 5TRABALHO E INTERAÇÃO: INFLUÊNCIAS

CONCEITUAIS PARA UMA POLÍTICA PÚBLICA DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

DA JUVENTUDE

TRABALHO E INTERAÇÃO: NOVOS PARADIGMAS NA QUALIFICAÇÃO DO TRABALHADOR12

É bastante difundida na literatura a colocação do advento do taylorismo como um marco fundamental na divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual. Se tomarmos em conta os estudos que põem em questão o caráter mercantil da força de trabalho, somos levados a responder à problemática da transformação da capacidade de trabalho em trabalho efetivo, repensando simultaneamente a problemática da qualifi cação. No entanto, essa qualifi cação deve ser concebida atualmente como politicamente produzida por meio de aparatos que regulam as relações sociais ocorridas na produção. Tecnologia, organização, decisões de investimento e aparatos de produção tornam-se objetos de luta, politizando-se a análise do processo de trabalho.

Essa reviravolta no mundo do trabalho leva a se repensar, portanto, os nexos entre qualifi cação, processos e mercados de

1 Profa. do Curso de Graduação em Serviço Social, do Mestrado Profi ssional em Planejamento e Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora CNPq.

2 Analista de Mercado de Trabalho do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT)

Francisca Rejane Bezerra Andrade1

Júnior Macambira2

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trabalho, visto que essas novas relações produtivas no mundo do trabalho capitalista levam à busca de identifi cação e compreensão das infl uências desse processo sobre a qualifi cação do trabalhador.

Enquanto Marx analisou os processos de aprendizagem na dimensão do pensamento objetivante, do saber técnico e organizativo, do agir instrumental e estratégico das forças produtivas, emergiram mudanças que justifi cam a ideia de que a dimensão do saber prático, do agir comunicativo e da regulação consensual dos confl itos de ação têm lugar nesses processos de aprendizagem, que se traduzem em formas de interação social, em novas relações de produção.

Tradicionalmente, a qualifi cação tendeu a ser abordada a partir do conjunto de características das rotinas de trabalho. Era então expressa empiricamente em termos de tempo de aprendizagem no trabalho ou do tipo de conhecimento que estaria na base das tarefas defi nidoras de uma dada ocupação.

Uma vez isolada e objetivada, acredita-se que essa concepção corre o risco de reifi cação, materializando como requerimento da tecnologia algo que é fruto de uma construção sociocultural complexa. É verdade também que as organizações operam com representações sistemáticas e formalizadas das tarefas e habilidades requeridas e que ocorre uma variação do grau de universalismo com que essas regras de relação entre trabalhador e posto de trabalho são aplicadas, seja no recrutamento, seja na supervisão, como demonstra Habermas (1974, p. 49):

[...] Hoje, a dominação eterniza-se e amplia-se não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que assume em si todas as esferas da cultura. Neste universo, a tecnologia proporciona igualmente a grande racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade “técnica” de ser autônomo, de determinar pessoalmente a sua vida. Com efeito, esta falta de liberdade não surge nem irracional nem como política, mas antes como sujeição ao aparelho técnico que amplia a comodidade da vida e intensifi ca a produtividade do trabalho.

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Se a evolução técnica obedece a uma lógica que indica êxito, então, segundo Habermas, não se vê como poderíamos renunciar à técnica, isto é, à nossa técnica, substituindo-a por uma qualitativamente distinta, enquanto não se modifi car a organização da natureza humana e enquanto houvermos de manter a nossa vida por meio do trabalho social e com a ajuda dos meios que substituem o trabalho.

É com essa análise da forma racional da ciência e da técnica que Habermas (1974, p. 57) realiza a distinção entre trabalho e interação.

Por “trabalho” ou ação racional teleológica entendo ou a ação instrumental ou a escolha racional ou, então, uma combinação das duas. A ação instrumental orientada por regras técnicas que se apoiam no saber empírico. [...] A ação racional teleológica realiza fi ns defi nidos sob condições dadas; mas, enquanto a ação instrumental organiza meios que são adequados ou inadequados segundo critérios de um controle efi ciente da realidade, a ação estratégica depende apenas de uma valorização correta de possíveis alternativas de comportamento, que só pode obter-se de uma dedução feita com o auxílio de valores e máximas.

Habermas (1974) tem presente que, na teoria da racionalidade, podemos distinguir dois paradigmas: o paradigma da fi losofi a da consciência - a razão centrada no sujeito - e o paradigma da comunicação - a razão como resultado do discurso. Para ele, o paradigma da fi losofi a da consciência - comum a Descartes, Kant e Hegel, entre outros - considera o sujeito como dotado da capacidade de conhecer os objetos e dominá-los. Em sua obra Teoria da Ação Comunicativa, Habermas escreve: “O sujeito refere-se aos objetos a fi m de representá-los como são, ou para intervir neles, a fi m de torná-los como deveriam ser.” (HABERMAS, 1974, p. 516). Por conseguinte, no paradigma da comunicação o sujeito que conhece deve procurar se entender com os outros. Nesse ato comunicativo ele deixa de lado o ideal objetivista do conhecimento como representação exata da realidade e passa a se orientar pela relação que ele próprio estabelece com os outros. Em outras palavras, o sujeito participa de uma comunidade de comunicação na qual deve realizar intersubjetivamente seus

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atos de fala e na qual encontra procedimentos argumentativos para legitimar suas pretensões de validade no que diz respeito à verdade das proposições e normas de ação.

Desde o fi nal do século XIX, impõe-se a tendência da cientifi cação da técnica. Deste modo, a ciência e a técnica, segundo Habermas, transformam-se na primeira força produtiva. Entretanto, os interesses sociais continuam a determinar a direção, as funções e a velocidade do progresso técnico. Tais interesses defi nem de tal modo o sistema social como um todo que coincidem com os interesses pela manutenção do sistema capitalista.

Na medida em que ocorre esse progresso técnico surge a tendência de mudança do tipo de atividade física para a intelectual, e de trabalho não qualifi cado para qualifi cado, deslocando-se também os pressupostos de qualifi cação, a importância do conhecimento da experiência para o conhecimento ensinado. Modifi cam-se os símbolos de reconhecimento, as formas de comunicação e as experiências de legitimação e os cotidianos ligados ao processo de trabalho, com respeito à desigualdade social no trabalho.

Essas mudanças atingem de forma direta a qualifi cação profi ssional, tendo em vista que para que o trabalhador desempenhe uma atividade com domínio amplo de sua área é imprescindível que tenha uma formação profi ssional sólida, o que supõe uma educação que contemple a relação atividade intelectual/atividade prática.

A rápida evolução das mudanças nos modelos de produção entre os séculos XX e XXI, assim como a ampliação do próprio conceito de formação profi ssional como fator de crescimento social e de cultura geral dos trabalhadores, têm provocado em vários países a necessidade de reorganizar o sistema educacional.

Nessas condições tornou-se oportuno o desenvolvimento de princípios e métodos educacionais, levando em consideração as necessidades específi cas dos diversos ramos de economia de cada nação e de suas profi ssões, assim como usos e costumes.

A inserção do Brasil neste contexto ocorre através de propostas para a promoção da educação como forma de construção da cidadania

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e de realização do desenvolvimento. Na área da educação profi ssional a meta prioritária presente no Plano Nacional de Educação é “triplicar as matrículas da educação profi ssional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansão no segmento público.” (BRASIL, 2014b). Observando que:

Aumentar a oferta da educação para os trabalhadores é uma ação urgente, mas para que seja garantida sua qualidade faz-se necessário que essa oferta tenha por base os princípios e a compreensão de educação unitária e universal destinada à superação da dualidade entre as culturas geral e técnica e que garanta o domínio dos conhecimentos científi cos referentes às diferentes técnicas que caracterizam o processo do trabalho produtivo na atualidade, e não apenas a formação profi ssional stricto sensu. (BRASIL, 2014b).

As transformações no mundo do trabalho ocorrem paralelamente à reforma e reestruturação do Estado que desencadeiam diversas medidas políticas e legislativas que impactam a administração pública, particularmente as políticas sociais. Inicia-se, portanto, um amplo processo no qual o Estado passa a promover as políticas sociais em parceria com a sociedade civil. Observe-se ainda que:

[...] as políticas públicas desenvolvidas em um país e, especifi camente, as políticas sociais no contexto da globalização são infl uenciadas frontalmente por esses dois campos: o global e o nacional. Está claro que existe uma relação de poder e de interesses no interior das políticas sociais cujas ações, delas advindas, encontram suas fontes nas desigualdades das relações sociais procedentes do mundo do trabalho. (ANDRADE; SANTOS, 2007, p. 86).

Esta nova realidade repercute na atuação do poder público sobre a educação e, mais ainda, sobre o processo de qualifi cação profi ssional de milhares de jovens no Brasil e no mundo. Nessa perspectiva, as políticas educacionais voltadas para a juventude, principalmente para a juventude em situação de vulnerabilidade social, passam a apresentar um componente profi ssionalizante, com vistas a possibilitar o acesso

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e a permanência do jovem ao mercado de trabalho. Por conseguinte, importa referenciar que as medidas políticas e legislativas adotadas com a reforma do Estado, e que afetaram a administração pública em geral, promoveram signifi cativas mudanças na educação, pois como destaca Barroso (2005, p. 726):

[...] na educação, se promovem, se discutem e se aplicam medidas políticas e administrativas que vão, em geral, no sentido de alterar os modos de regulação dos poderes públicos no sistema escolar (muitas vezes com recurso a dispositivos de mercado), ou de substituir esses poderes públicos por entidades privadas, em muitos dos domínios que constituíam, até aí, um campo privilegiado da intervenção do Estado. Estas medidas tanto podem obedecer (e serem justifi cadas), de um ponto de vista mais técnico, em função de critérios de modernização, desburocratização e combate à “inefi ciência” do Estado (“new public management) [...].

Em síntese, presencia-se a partir da segunda metade do século XX, um amplo processo de mudança na estrutura das economias globais e dos Estados nacionais, ao passo em que ocorre uma reconfi guração do mercado de trabalho, a decadência do movimento sindical e dos benefícios sociais, desencadeando, dentre outros problemas, uma grave situação de desemprego advinda da introdução do que Harvey (1992) denominou de acumulação fl exível.

As implicações concretas desses processos para o trabalho e a educação são perceptíveis quando se observa que, com o intuito de cumprirem acordos internacionais, os Estados nacionais afi rmam a necessidade de redução dos gastos públicos, principalmente no âmbito das políticas sociais conquistadas ao longo do século XX. Ao mesmo tempo estes vivem, em geral, uma de suas maiores crises estruturais, a crise do emprego que tem favorecido a ampliação do quadro de desigualdade social, desemprego e precarização do trabalho, gerando uma massa de excluídos.

Os dados apresentados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) mensuram essa dramática realidade mundial quando revelam que:

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O número de jovens desempregados no mundo inteiro em 2010 era de 78 milhões, situando-se muito acima do nível anterior à crise – 73,5 milhões em 2007 [...]. O desemprego no grupo etário dos 15 aos 24 anos era de 12,6% em 2010, ou seja, 2,6 vezes superior à taxa de desemprego dos adultos. (OIT, 2011).

Afi rmam ainda: “A fraca recuperação do trabalho digno confi rma a incapacidade persistente da economia mundial para garantir a todos os jovens um futuro. Isto prejudica as famílias, a coesão social e a credibilidade das políticas”. (OIT, 2011).

A partir do conhecimento das diversas dimensões que caracterizam o jovem na sociedade contemporânea atual, organismos internacionais e Estados nacionais empreendem esforços no sentido de implementar ações que contribuam para a promoção da qualidade de vida e do trabalho da juventude. Implica considerar, dentre outras dimensões, o entendimento sobre o que é a juventude; as questões que permeiam o mundo do trabalho na atualidade; a atuação dos órgãos públicos voltados para a inserção segura dos jovens nos diversos espaços da vida social; a qualidade e as estratégias de avaliação dos serviços educacionais destinados a essa clientela. Dentre eles vale destacar a educação profi ssional.

EMPREGO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL FOCALIZADAS NA VULNERABILIDADE SOCIAL E NO EMPREENDEDORISMO

Desde o início do presente século, o contexto de transformação econômica na qual o Brasil esteve inserido desde o fi nal dos anos de 1980, se tornou cada vez mais nítido como contexto das políticas públicas para a juventude. Ao mesmo passo em que se declarava a necessidade de reduzir os gastos públicos e melhorar a efetividade das políticas, principalmente as da esfera social, se pôde observar também um foco mais estreito, principalmente na política educacional, na política de educação profi ssional e na política de juventude. Empreenderam-se políticas públicas destinadas ao segmento juvenil, de forma prioritária a grupos em situação de vulnerabilidade social, e que apresentam um teor profi ssionalizante, com vistas a habilitar o

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rápido acesso e inserção desse segmento populacional no mercado de trabalho. Em geral, tratam-se de medidas extremamente focalizadas, de caráter imediatista e restritivo na política pública de qualifi cação profi ssional do segmento jovem, em consonância com o ideário neoliberal e as necessidades do capitalismo globalizado.

Embora se tenham implementado programas e projetos no Brasil que visam a reduzir a desigualdade educacional que afeta predominantemente adolescentes e jovens pobres, se pode também observar uma dissonância entre, de um lado, as orientações normativas das políticas públicas e, de outro lado, as proposições políticas e as necessidades e direitos da juventude. Essa observação se torna possível quando se parte de uma compreensão de educação como um conceito muito mais abrangente do que conhecimentos e habilidades (competências-chave) voltadas ao exercício de atividades produtivas, ou seja, uma educação - seja ela geral ou para a qualificação profissional - de caráter holístico, a qual possibilite a formação social, ética/filosófica, psicológica, política e econômica dos jovens, possibilitando-lhes real inclusão e empoderamento como agentes autônomos e transformadores das relações econômicas e de poder na sociedade e na economia em que se inserem. (MARKERT, 1994).

Porém, na área da política da qualifi cação profi ssional prevaleceu, nos últimos anos, um modelo de educação focado, dentre outros aspectos, na inserção econômica dos jovens no mercado de trabalho. É a partir desse entendimento que as políticas educacionais foram formuladas e efetivadas na sociedade brasileira com vistas a um conceito hegemônico de ‘empregabilidade’. ‘Empregabilidade’ se torna necessária, de acordo com esta lógica, no momento em que constantes mudanças afetam o ambiente profi ssional - em geral devido ao que se convencionou chamar de globalização e internacionalização do capitalismo e da produção - o que torna necessário se adaptar às novas necessidades e dinâmicas do mercado de trabalho.

Nesta perspectiva os egressos da educação profi ssional devem ter habilidades, atitudes e competências técnicas, sociais e comunicativas que lhes assegurem o empreendedorismo e a empregabilidade na

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sociedade das incertezas. Em outros termos, o acesso e a permanência no mercado de trabalho dependerão, em sua maior parte, da capacidade individual de cada sujeito, de suas competências e qualifi cações.

É relevante reafi rmar que a elevada taxa de desemprego entre os jovens é notória no século XXI, quando comparada às dos adultos. Tal situação não é um fenômeno isolado do Brasil, mas um cenário na maioria dos países. Fatores como renda, ausência de qualifi cação profi ssional, nível de escolaridade, pouca experiência, entre tantos outros aspectos, acirram o grande descompasso e o distanciamento de jovens e adultos no mundo do trabalho.

Nesse cenário de restrição das oportunidades de emprego – que afeta inclusive os trabalhadores já inseridos, desacreditando a estabilidade como marca fundamental da vida adulta – duas grandes tendências se confi guram entre os jovens. Aqueles de origem social privilegiada adiam a procura por uma colocação profi ssional e seguem dependendo fi nanceiramente de suas famílias; com isso, ampliam a moratória social que lhes foi concedida, podendo, entre outras coisas, estender sua formação educacional, na perspectiva de conseguir uma inserção econômica mais favorável no futuro. Os demais, que se veem constrangidos a trabalhar, em grande parte das vezes acabam se submetendo a empregos de qualidade ruim e mal remunerados, o que, em algum grau, também os mantêm dependentes de suas famílias, ainda que elas lidem com isto de forma precária. Embora ganhe tonalidades diferentes segundo as possibilidades que o nível de renda familiar permite, o bloqueio à emancipação econômica dos jovens, em ambos os casos, além de frustrar suas expectativas de mobilidade social, posterga a ruptura com a identidade fundada no registro fi lho/a, adiando a conclusão da passagem para a vida adulta e ensejando uma tendência de prolongamento da juventude. (IPEA, 2008, p. 8-9).

Importa lembrar, ainda, os obstáculos e os labirintos que tanto difi cultam o ingresso de milhares de jovens no mundo do trabalho, o que os tornam mais vulneráveis se comparados a outros segmentos populacionais, principalmente quando fatores como diferenças

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sociais, padrão de rendimento, raça/cor, entre outros, são também considerados. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indica que:

A magnitude do desemprego entre os jovens guarda relação direta com aspectos de natureza demográfi ca e estruturais associados ao mercado de trabalho. Pelo lado da oferta, a pressão de origem demográfi ca ainda se faz presente, fruto, sobretudo, da onda jovem, que vem gerando efeitos de caráter duradouro. (OIT, 2012, p. 67).

O Estudo da OIT (2012, p. 67) ainda observa que

Esse processo irá manter-se, embora com uma intensidade cada vez menor, até o fi nal da próxima década. Ou seja, pelo lado da oferta, o desafi o será o de conviver com uma pressão por novos empregos de origem demográfi ca, provocada pela onda jovem, pelo menos até 2020, apesar desse fenômeno já ter começado a se atenuar na segunda metade da atual década.

Mesmo diante da realidade apresentada pela OIT, é fato que a pressão dos jovens por um espaço no mercado de trabalho continua sendo intensa, levando-os, muitas vezes, à renúncia de seus estudos para antecipar seu ingresso no mundo do trabalho, principalmente os jovens de famílias mais pobres.

Essa realidade pode ser claramente caracterizada quando observamos que:

[...] a Taxa de Frequência Líquida entre os adolescentes de 15 a 17 anos de idade refl ete a persistência de um enorme desafi o para o sistema educacional brasileiro. Apesar da signifi cativa expansão observada entre 2004 e 2009 – de 44,4% para 50,9% - ao fi nal da década de 2000 apenas a metade desses adolescentes estavam estudando no ensino médio, que é o nível de ensino adequado a essa faixa etária. A baixa taxa de escolarização entre os adolescentes de 15 a 17 anos de idade é decorrente do atraso escolar ainda existente entre os egressos do

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ensino fundamental. Com efeito, em 2009, a média de anos de estudo das pessoas com 14 anos de idade era de apenas 5,8, quando deveria ser de pelo menos 8,0 anos completos em função da adequação série-idade. (OIT, 2012, p. 51).

Esses jovens sofrem o dilema de ter de abandonar a escola, pois postergar o ingresso na vida laboral é algo ainda distante, visto que suas famílias dependem da renda de seu trabalho, sem falar das consequências futuras dessa decisão, como disputa desigual por melhores salários, melhores ocupações, poucas chances de mobilidade ocupacional, dentre outras situações.

Para Gonzales (2009, p. 120),

[...] a inserção dos jovens brasileiros no mundo do trabalho se dá de forma precária e difícil. Além de constituírem o grupo etário mais desfavorecido pelas condições restritivas do emprego, também reproduzem em si desigualdades de gênero e de renda presentes na população brasileira como um todo.

Considerando-se o gênero como categoria de análise, nota-se a maior presença das mulheres jovens no mundo do trabalho, onde cada vez mais essa presença se dá de forma latente, em diversos segmentos da economia. Em algumas ocupações chega até a desmistifi car situações passadas em que os homens eram, majoritariamente, mais infl uentes, como é o caso, por exemplo, das atividades vinculadas à construção civil.

Não se pode esquecer, contudo, que ainda se vivenciam episódios de fragmentações socioeconômicas entre os gêneros, situações que não podem nem devem ser mascaradas no contexto de uma sociedade que prega a liberdade de opinião e a igualdade de direitos, indistintamente. Neste sentido, estudo do IPEA (2012, p. 17) afi rma que:

A desigualdade de gênero existente no interior das famílias determina processos sociais e econômicos que reproduzem uma desigualdade estruturante em nossa

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sociedade, subjugando um grupo de pessoas em relação à outra e limitando suas possibilidades de exercício pleno e efetivo da cidadania.

É evidente a importância do trabalho na vida dos jovens brasileiros, assim como urge a necessidade de melhorias na qualidade dos postos de trabalho que estão sendo gerados, de maneira a contribuir com as carreiras profi ssionais de tantos jovens que sonham com melhores oportunidades de trabalho e de cidadania. Para isso, é preciso ampliar os estudos e a formação profi ssional, atributos estes que são decisivos na esfera de mercados de trabalho cada vez mais competitivos, que exigem mais conhecimento e criatividade das pessoas.

QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO SOCIAL SUSTENTÁVEL

No documento Políticas Públicas para a Educação Profi ssional e Tecnológica (BRASIL, 2004), encontram-se os pressupostos específi cos que alicerçam ainda hoje a compreensão e as práticas da educação profi ssional no Brasil, os quais interessa destacar: articular a educação profi ssional e tecnológica com a educação básica; integrar a educação profi ssional e tecnológica ao mundo do trabalho; promover a interação da educação profi ssional e tecnológica com outras políticas públicas.

A educação profi ssional é posta, a partir de então, em diversos documentos governamentais, como componente relevante para o desenvolvimento social e sustentável do País. Com esta perspectiva, em 2005, o Estado convoca a sociedade civil para participar desse processo através do pacto pela educação profi ssional e tecnológica.

No documento Pacto pela Valorização da Educação Profi ssional e Tecnológica - por uma profi ssionalização sustentável (BRASIL, 2014a), elaborado no governo Lula, explicita-se a importância dessa modalidade de ensino e indica-se sua articulação com as demais políticas públicas de educação, saúde, assistência social, ciência e tecnologia, agricultura, dentre outras.

Para a efetivação da referida política pública foram apontadas as seguintes ações: efetivação de um novo ordenamento legal;

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fortalecimento das redes federal e estaduais de educação profi ssional e tecnológica e valorização do educador e do educando; política de fi nanciamento, modernização e expansão; estruturação de um subsistema de educação profi ssional e tecnológica; e organização da parceria público-privado. (BRASIL, 2014a).

Em termos de organização de parcerias, o Ministério da Educação/SETEC busca realizar um duplo movimento político que envolve articulações público-público e público-privado. O movimento público-público abrange:

[...] articulação, unifi cação e integração das políticas públicas federais, com os diversos ministérios afi ns, com as políticas e planos estaduais de educação profi ssional e seguimentos públicos não-estatais (instituições efetivamente comunitárias e da sociedade civil organizada). [...]Nesta mesma perspectiva da parceria público-público será valorizada a integração e articulação de políticas, planos e programas com todos os Estados da federação com vistas a potencializar as ações existentes, expandir a oferta de vagas, qualifi car as redes e otimizar estruturas e recursos públicos com vistas a ampliar o acesso à educação profi ssional. (BRASIL, 2014a).

Quando trata da parceria público-privado, o MEC/SETEC destaca que:

[...] o segmento empregador deste país e a sociedade civil organizada, seja através de centrais, sindicais, ONG´s ou sindicatos de trabalhadores, possuem um conjunto de programas, projetos e ações com as quais este governo quer estabelecer um diálogo, uma articulação e, na medida do possível, sua transformação em política pública. (BRASIL, 2014a).

Após uma década de um efetivo movimento político na área da educação profi ssional, advindo de medidas governamentais infl uenciadas, de um lado, por organismos internacionais e, de outro, por uma maior participação da sociedade civil no desenvolvimento de programas e projetos de educação profi ssional básica e técnica,

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consolida-se um modelo cujo foco é, dentre outros, a inserção dos jovens no mercado de trabalho. É a partir desse entendimento que as políticas públicas educacionais são idealizadas e efetivadas na sociedade brasileira, sob as rédeas do conceito de competência3, referência-chave das matrizes curriculares dos cursos técnicos e tecnológicos.

Nesta perspectiva, os egressos da educação profi ssional devem ter habilidades, atitudes e competências técnicas, sociais e comunicativas que lhes assegurem o empreendedorismo e a empregabilidade na sociedade das incertezas. Em outras palavras, o ingresso ou permanência no mercado de trabalho dependerá da capacidade individual de cada sujeito, de suas competências e qualifi cações. Ou seja,

[...] pode-se entender que as propostas pedagógicas presentes nos documentos ofi ciais preconizam uma escola cuja ênfase deve se deslocar da tarefa de transmitir o saber objetivo para a tarefa de preparação dos indivíduos em seu processo de adaptação às relações sociais existentes. (ABRUNHOSA, 2006, p. 151).

Em sintonia com esta referência, uma série de programas e projetos são postos na agenda governamental, contando com a participação e o envolvimento estratégico da sociedade, além da valorização dos jovens no encaminhamento das práticas educativas. Conjuntura esta edifi cada por reivindicações dos movimentos sociais no momento de construção da Constituição Federal, as quais impulsionaram a inclusão de dispositivos que permitem a participação da sociedade nas ações e decisões do Estado brasileiro.

Foi em meio a essas mudanças na área da educação profi ssional que o governo federal criou, em 2005, o Conselho Nacional de Juventude

3 Entende-se o conceito de competência como: “Demonstração, dentro de situações reais, de domínio de conhecimentos e de habilidades, de condições de agir com efi cácia [...] De um modo geral, designa a capacidade mobilizada pelos indivíduos ao buscar a realização de uma atividade ou a resolução de problemas. É o recurso que faz da subjetividade dos trabalhadores um elemento central e distintivo.” (FIDALGO; MACHADO, 2000, p. 56-57).

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e a Secretaria Nacional de Juventude, objetivando a implantação da Política Nacional de Juventude, que resultou do diálogo entre o governo e os movimentos sociais em torno da necessidade de se institucionalizar uma política de juventude no País - até então inexistente na agenda pública brasileira - e da infl uência de organismos internacionais como a Organização Internacional do Trabalho, a Comissão Econômica para a América Latina e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

[...] Esses órgãos não só entendem a escola e o trabalho como mecanismos de inserção social, mas também apostam no engajamento em ações coletivas e de bem comum como grande possibilidade para incluir essa juventude na dinâmica social, embora exista uma defesa no âmbito das políticas públicas de que a aludida juventude já é cidadã, e, portanto, já está integrada na sociedade. (GONDIM et al., 2012, p. 37).

Após mapeamento dos programas federais voltados para o segmento da juventude, realizado ainda em 2005, por representantes de 19 ministérios, representantes das secretarias especiais e do IPEA, diagnosticou-se ampla fragmentação e paralelismo das políticas federais. Partindo dos referidos resultados foram identifi cados desafi os para a implementação da Política Nacional de Juventude no Brasil, a saber:

Ampliar o acesso e a permanência na escola de qualidade. 2. Erradicar o analfabetismo entre os jovens. 3. Preparar para o mundo do trabalho. 4. Gerar trabalho e renda. 5. Promover vida saudável. 6. Democratizar o acesso ao esporte, ao lazer, à cultura e à tecnologia da informação. 7. Promover os direitos humanos e as políticas afi rmativas. 8. Estimular a cidadania e a participação social. 9. Melhorar a qualidade de vida dos jovens no meio rural e nas comunidades tradicionais. (SILVA; ANDRADE, 2009, p. 51).

A história recente revela, no entanto, que foi somente em 2007 que o governo Lula redesenhou a política destinada aos jovens através do lançamento do Programa ProJovem Integrado, que reúne

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os seis programas emergenciais destinados aos jovens com baixa escolaridade, pouca qualifi cação profi ssional e que se encontram excluídos do mercado de trabalho: ProJovem, Escola de Fábrica, Agente Jovem, Saberes da Terra, Consórcio Nacional da Juventude e Juventude Cidadã.

Destaque-se que apesar das mudanças realizadas, o Programa não logrou êxito em termos de intersetorialidade, pois a integração das ações promovidas pelos diversos ministérios não foi alcançada, havendo ainda uma grande difi culdade de produzir ações transversais voltadas aos jovens.

A estratégia utilizada na Política Nacional de Juventude merece destaque, considerando ser recorrente a presença da proposta de qualifi cação profi ssional e da aceleração de aprendizagem destinada à parcela do segmento jovem pobre, com vistas a elevar os índices de alfabetização e escolarização desse público, fato que se coaduna com os ditames dos organismos internacionais, os quais foram destacados anteriormente. Ou seja, essa política não tem caráter universal, posto que não integra a totalidade dos segmentos que compõem as juventudes. Silva e Andrade (2009, p. 68) realizam uma pertinente refl exão, quando destacam que:

[...] Não se trata de negar a necessidade de um diálogo maior da política nacional com a parcela de jovens excluídos em face da realidade brasileira. Em um país com enormes desigualdades sociais, é natural e importante que a política de juventude privilegie os jovens excluídos e conduza ações mais voltadas para sua inclusão. Contudo, dada à diversidade das experiências juvenis e a admissão da condição do jovem como sujeitos de direitos, não se deve perder de vista que as políticas sociais universais precisam caminhar com os programas emergenciais. Além disso, valeria a pena refl etir e avaliar mais densamente os programas emergenciais que estão sendo implantados para descobrir se estas ações estão de fato contribuindo para a autonomia e o protagonismo dos jovens, que são os dois princípios mais importantes para uma política de juventude que pretenda ser transformadora.

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A atual proposta de políticas públicas para o segmento jovem apresenta uma sinergia com o modelo de Estado aplicado no Brasil - gestor e descentralizador das ações administrativas governamentais - e dos organismos internacionais que disseminam a ideia da globalização do conhecimento a partir de princípios e diretrizes que foram defi nidos externos à nação.

CONTRIBUIÇÕES FINAIS

Observa-se que os programas sociais da área educacional se revestem dessa noção de desenvolvimento. Os projetos pedagógicos, as matrizes curriculares e os demais documentos tidos como referência para a realização dos cursos de formação profi ssional partem do conceito de competência, que pressupõe a defi nição do perfi l profi ssional de qualifi cação, seguida da delimitação das habilidades e atitudes do egresso.

Nesta perspectiva, compreende-se o interesse em consolidar uma política pública que visa a tornar o cidadão competitivo frente à realidade mundial, ao mesmo tempo em que traz a ideia de formação profi ssional do sujeito desvinculada da compreensão do desenvolvimento de um cidadão de direitos. Portanto, a inclusão social é compreendida enquanto “possibilidade,” e não como “efetividade”, demarcando nesse processo a responsabilidade do sujeito quanto à sua inserção social, educacional e laboral.

As condições de acesso e permanência do jovem na escola e seu ingresso no mercado de trabalho no Brasil tornaram-se grandes desafi os neste contexto de “possibilidades”. A democratização do acesso à escola trouxe consigo o desafi o da evasão escolar, proveniente de diversas causas que se vinculam não apenas ao cotidiano escolar, mas também às relações que o jovem mantém com sua família e demais sujeitos sociais, além das políticas governamentais. A realidade brasileira revela que:

[...] Hoje o que se tem é uma perversa diferenciação entre jovens que podem combinar trabalhos criativos e educação de qualidade, e outros que, quando têm emprego e tentam perseguir alguma escolarização, têm

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que se engajar em trabalhos exaustivos que tolhem a possibilidade de dedicação a estudos mais refl exivos e críticos. A ênfase na equação estudo e trabalho não desconsidera que juventude é tempo de formação educacional, cultural, e que, portanto, tempo de lazer e divertimento também deve ser garantido como direito. (NOVAES et al., 2006, p. 27-28).

Oliveira e Sousa (2013, p. 99) contribuem também para a análise ao discorrerem que:

ante a conjuntura atual, a própria educação, que deveria ser um elemento vital de estabelecimento de relações solidárias, socialização e elaboração de identidades e emancipação humana, passa a ser compreendida como um instrumento de formação de pessoas para disputarem uma posição no mercado de trabalho.”

O conhecimento do mercado de trabalho torna-se uma ferramenta indispensável para a elaboração de políticas públicas de qualifi cação profi ssional no País.

Importante se faz mencionar que os acordos e documentos internacionais no campo da educação também infl uenciam as políticas públicas brasileiras na área. A título de refl exão, destaca-se a importância que o Relatório Delors (Delors, 1999), elaborado para a UNESCO pela Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, passou a exercer sobre as propostas educacionais no País, quando estabelece os quatro pilares da educação contemporânea, colocando-os como fundamentais para o desenvolvimento das políticas educacionais de todos os países.

Segundo Delors (1999), uma educação só pode ser viável se for uma educação integral do ser humano, e não apenas voltada para um dos seus componentes. Propõe, assim, uma educação transdisciplinar que inclui aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.

O documento em pauta é referência para os estudos sobre as novas exigências educacionais e para as análises sobre como as

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inovações teóricas e tecnológicas devem ser incorporadas à prática educativa, no sentido da abrangência detransmissão e apreensão dos saberes.

Os quatro pilares defendidos no Relatório Delors aproximam-se dos saberes escolares a serem ensinados pelos educadores, na medida em que são estes os meios pelos quais os alunos irão formar uma rede de signifi cados, desenvolvendo competências e habilidades que lhes permitam compreender e agir no mundo contemporâneo.

Neste contexto, a educação ganha nova dimensão através das condições por ela desenvolvidas para a obtenção das novas capacidades esperadas do trabalhador, uma vez que, no nível de responsabilidade e complexidade dos trabalhos defi nidos pelas novas tecnologias, as habilidades manuais específi cas vão se tornando cada vez menos importantes. Crescem em importância as qualifi cações de ordem superior, especifi camente os conhecimentos gerais teóricos e conceituais.

Essa perspectiva contribui, de certa forma, para o entendimento de que se torna necessário privilegiar metodologias ativas centradas no sujeito que aprende, com base em ações desencadeadas por desafi os, problemas e projetos, pois o foco do trabalho educacional deve se deslocar do ensinar para o aprender, do que vai ser ensinado para o que é preciso aprender. Assim, passa-se a valorizar o docente no papel de facilitador e mediador do processo de aprendizagem.

A educação tem um papel ativo a desempenhar, além de colaborar para a promoção da inovação e do progresso técnico e tecnológico na economia. Dessa forma, espera-se que a escola ofereça condições para que as crianças e os jovens possam enfrentar situação novas que se delineiam. Se as atividades solicitadas pelas transformações no mundo do trabalho puderem ser estimuladas pela escolarização, a escola estará ao mesmo tempo propiciando o desenvolvimento de condições para que o aluno possa futuramente participar ativa e responsavelmente de todas as esferas da vida, e não apenas da economia. Assim, se as novas competências puderem ser desenvolvidas no espaço escolar, a escola não estará produzindo apenas trabalhadores mais adaptados às novas tecnologias e à economia. Certamente não bastará superar

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as defi ciências educacionais dos trabalhadores para alterar o quadro atual, mas torna-se fundamental enfrentar tal problema.

A questão educacional, especifi camente de qualifi cação profi ssional, não pode ser vista apenas do ponto de vista das variáveis econômicas, mas essencialmente do ponto de vista dos direitos básicos dos cidadãos. Ou seja, ela interessa não somente em termos de dar condições de acesso ao mercado de trabalho e dos ganhos de produtividade, mas também de referir-se ao exercício efetivo dos cidadãos na sociedade.

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CAPÍTULO 6POLÍTICAS PÚBLICAS E JUVENTUDE NA

SOCIEDADE BRASILEIRA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE

Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva1

POLÍTICAS PÚBLICAS: BREVE INCURSÃO

Inicia-se esta refl exão abordando a categoria política pública, uma vez que é comum o seu uso em textos acadêmicos, na mídia e em espaços reservados à discussão política. A ausência de defi nição do termo passa a ideia de que o seu conceito seja determinado para todos aqueles que o usam. Entretanto, não é bem assim, já que a expressão engloba vários aspectos.

Cita-se o conceito apres entado por Belloni; Magalhães e Sousa (2001, p. 44), que concebem política pública como:

[...] a ação intencional do estado junto à sociedade. Assim por estar voltada para a sociedade e envolver recursos sociais, toda política pública deve ser sistematicamente avaliada do ponto de vista de sua relevância e adequação as necessidades sociais, além de abordar os aspectos de efi ciência, efi cácia e efetividade das ações empreendidas.

A expressão política pública envolve a composição de ações, estratégias e planos desenvolvidos com o intuito de suprir as legítimas

1 Assistente Social e Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará.

Liduina Elizabete Angelim Gomes da Silva1

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demandas sociais. Por conseguinte, Pereira (2001, p. 223) defi ne política pública como:

[...] ação coletiva que tem por função concretização de direitos sociais demandados pela sociedade e previstos nas leis. Ou, em outros termos, os direitos declarados e garantidos nas leis só têm aplicabilidade por meio de políticas públicas correspondentes, as quais, por sua vez, operacionalizam-se mediante programas, projetos e serviços. Por conseguinte, não tem sentido falar de desarticulação entre direito e política se nos guiarmos por essa perspectiva.

Salienta-se que por intermédio das políticas públicas são colocados em prática os programas de distribuição de bens e serviços regulados e oferecidos pelo Estado com o envolvimento da sociedade civil. Entretanto, a relação entre Estado e sociedade nem sempre é de reciprocidade, havendo, inclusive, um processo que envolve competição e confl ito.

Parafraseando Ferge (1996), quando trata de política social, não há uma defi nição universalmente aceita de políticas públicas. As descrições baseadas na prática e no âmbito histórico abordam variáveis referentes às políticas públicas que podem se complementar.

Abad (2003) afi rma que a política pode ser considerada em diversos sentidos, desde a luta pelo poder e os acordos de governabilidade, até a execução de programas governamentais. A concepção mais conhecida na América Latina de política pública é aquela que indica tudo aquilo que o governo decide fazer ou não fazer frente às situações que lhe são apresentadas. Pode signifi car ações concretas com investimento de recursos por parte do Estado. Admitindo-se delegar ao Estado a função de unir e articular a sociedade, as políticas públicas podem ser consideradas como instrumento de dominação.

Na tentativa de se compreender a sua dinâmica e tomando como base o conceito relacionado à intenção da ação do governo, percebe-se que a política pública existe em um determinado momento como ideia motivadora, e em outros momentos se transforma em realidade pelos seus canais naturaisde execução. O bem-estar da

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sociedade deveria ser a origem e o destino de uma política pública, mas infelizmente nem sempre é assim. Precisa-se identifi car a quem servem seus autores: ao interesse público, ao interesse de uma coletividade, ou ao interesse individual.

O grau de complexidade e as inúmeras variáveis que se combinam no espaço nucleador das políticas públicas tornam intrincadas as suas defi nições. Nesse sentido, faz-se a apropriação do pensamento de Chrispino (2004, p. 64), que tenta compreender essa categoria por partes, ou seja:

Como Política, vamos entender a arte de governar ou de decidir os confl itos que caracterizam os agrupamentos sociais. Como Pública, vamos entender aquilo que pertence a um povo, algo relativo às coletividades. Logo, poderemos reduzir que Política Pública em uma meta –conceito – seria a ação do governo que vise atender a necessidade da coletividade.

Seguindo essa linha de pensamento, encontram-se outros estudiosos concordantes:

1. Vianna (2001), valorizando o Estado e a ação, escreve que o modo de operar do Estado se traduz no ato de “fazer” políticas públicas;

2. Garcia (2001 apud FRISCHEISEN, 2000) conceitua políticas públicas como diretrizes, princípios, metas coletivas conscientes que direcionam a atividade do Estado, objetivando o interesse público;

3. Cunha (2002) entende política pública como linha de ação coletiva que concretiza direitos sociais declarados e garantidos em lei. É mediante as políticas públicas que são distribuídos e redistribuídos bens e serviços sociais, em resposta às demandas da sociedade. Por isso, o direito que as fundamenta é um direito coletivo, e não individual.

Ao considerar as contribuições dos autores mencionados, pode-se conceituar políticas públicas como a ação de governo que visa a atender a necessidade da coletividade, concretizando os seus direitos.

161

Supõe-se que cada modelo de Estado produza o seu modelo de políticas públicas, ponderando que a dinâmica do governo está relacionada com a sociedade e a aptidão desta em se organizar para fi scalizar e cobrar o cumprimento dos seus direitos. Por esta razão, e também por conta do quadro político brasileiro enraizado em nossa história, é difícil produzir políticas públicas efi cientes e efetivas.

ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL

No Brasil, o tema envolvendo políticas públicas é recente e está ligado ao desenvolvimento econômico nacional. Até a década de 1930, nossa economia era predominantemente agrícola. A partir de 1980, o Brasil possuía o oitavo Produto Interno Bruto industrial mundial, só perdendo para o grupo das sete economias mais ricas do mundo. Isto nos revela uma mudança no perfi l da sociedade e da economia brasileira na metade do século XX. O que alguns países levaram séculos para fazer, o Brasil fez em 1950, transformando-se em uma potência industrial média, e com grande parte de sua população residindo nas cidades.

A característica maior do Estado brasileiro, no início dos anos 1930 até a década de 1980, era seu foco desenvolvimentista, conservador, centralizador e autoritário. Portanto, não se poderia pensar em Estado de Bem-Estar Social, como o que acontecia nos países do primeiro mundo. O Estado aqui era o promotor do desenvolvimento, e não o transformador das relações da sociedade. Assim, o grande objetivo era de ordem econômica.

Percebe-se que o Estado brasileiro é, tradicionalmente, centralizador. Não dá importância ou ênfase ao bem-estar social, ou seja, a ideia de adotar um modelo de desenvolvimento centrado no objetivo do crescimento econômico com o mínimo de proteção social ao conjunto da sociedade fez com que o Estado adquirisse uma postura de fazedor, e não de regulador. Assim, ao longo da história do Brasil observa-se um Estado centralizador em períodos como a longa ditadura Vargas e, depois, a ditadura nos governos militares pós-64. O viés autoritário é muito forte nas políticas públicas do País.

Desse modo, as políticas públicas eram mais econômicas que sociais. Ao se observar a história recente verifi ca-se que as políticas

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sociais e as políticas regionais são meros prolongamentos das políticas econômicas, não se confi gurando, portanto, como o centro das preocupações das políticas públicas. Nelas, o corte se apresenta predominantemente compensatório, uma vez que a preocupação central é a política econômica.

Entende-se, portanto, que o perfil autoritário, conservador e centralizador do Estado se reflete na forma como são pensadas as políticas sociais, pois essas políticas normalmente não levam em consideração a grande heterogeneidade do território nacional. Assim, quando a política é centralizada o tratamento é homogeneizado. Essa centralização faz com que as propostas venham de cima para baixo e, por conseguinte, observa-se que é esta a forma de se pensar e fazer as políticas sociais no País. Aliado a isso está, ainda, a consequente dificuldade de promover a participação da sociedade. Nesta perspectiva, segundo Marx (1985a, p. 39), a forma de existência do Estado será sempre o governo de uma classe sobre outra, o que denominou de “ditadura de classe”, seja a da burguesia, seja a do proletariado.

Pode-se, portanto, conjecturar que Marx tenha empregado o termo ditadura com o sentido de indicar maior ênfase ao domínio de uma classe sobre a outra, e não como forma de governo. Da mesma forma, acredita-se que o emprego do termo contenha a intenção de considerar o caráter temporário da dominação, ou seja, de seu esgotamento histórico até a extinção defi nitiva das classes e do Estado.

Reconhecer o que está acontecendo no Brasil é desafi ador. Vive-se sob a ação ininterrupta da mudança. A sociedade, incitada pelo processo de globalização capitalista e pelas inovações tecnológicas, é infl uenciada também pela era da informação, tornando-se refém de um mercado fi nanceiro volátil. Nessa velocidade se dão as modifi cações socioeconômicas nas relações de trabalho.

A globalização da economia nesse fi nal de século se fi rma e se consolida cada vez mais. Marca, na verdade, uma grande transformação no mundo, principalmente no Brasil, onde foram implantadas as políticas neoliberais que se iniciaram no governo Collor e se fi rmaram no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). Entende-se, ainda,

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que essa política é determinada pelos agentes econômicos que impõem as regras do jogo, o padrão de competitividade e o tipo de organização econômica, que são, na verdade, imposições dos grandes conglomerados econômicos e dos países centrais, o que termina afetando o conjunto do espaço econômico mundial, principalmente os países médios como o Brasil.

Observa-se, em Antunes (2004, p. 17), que:

Não é demasiado lembrar que a modernização neoliberal para o Terceiro Mundo penaliza de maneira muito mais brutal e nefasta o mundo do trabalho. Despossuído, dilapidado, desqualifi cado, o ser social não consegue nem mesmo viver do seu trabalho. Converte-se, em largas faixas, numa classe sem trabalho, que vive da miséria da economia informal.

Percebe-se, portanto, que no mundo atual se privilegia uma política de Estado que valoriza o mercado. A individualidade se sobrepõe ao coletivo e, desse modo, confi gura-se a perspectiva dos dirigentes mundiais, impregnando todas as sociedades no fi nal de século XX e início do século XXI. Por conseguinte, há menos políticas públicas, e mais mercadorias e serviços. Conforme Antunes (2004, p. 73):

[...] o sistema produtor de mercadorias, vigente em quase todas as partes do mundo, mostra seu enorme caráter destrutivo: sua lógica elimina, entre tantas coisas, a própria força de trabalho. O brutal desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global e de forma arrasadora, é uma evidência desse caráter destrutivo.

Com o processo de democratização, os desafi os e oportunidades para o Brasil implicam considerar a sua heterogeneidade. Portanto, para pensar políticas públicas é imprescindível deixar de lado a visão centralizadora e hegemônica, já que temos uma grande diversidade no território brasileiro. Outro desafi o é romper com a ideia de que público é sinônimo de governamental, apesar da tradição brasileira.

Nesse contexto, o debate acerca das políticas sociais no Brasil vem ganhando espaços, gerados pelos indicadores econômicos e

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sociais que revelam uma sociedade com profundas desigualdades sociais. A pobreza de grande parcela da população é determinada pelo Estado, identificado como historicamente ineficiente e trazendo à tona a relação Estado/sociedade e Estado/mercado, em um contexto em que predominam, de um lado, políticas econômicas voltadas para a estabilização da moeda e o ajuste estrutural da economia e, de outro, a complexa relação entre democracia política e democracia social. Discutir as políticas sociais, o seu financiamento e a prestação de benefícios e serviços ocupa lugar central no debate atual, bem como a sua eficiência quanto ao alcance dos objetivos e o público-alvo. Portanto, é urgente que as políticas e os programas sociais no Brasil permitam imprimir uma racionalidade efetiva para a construção de uma sociedade democrática e igualitária.

Percebe-se que com a descentralização das políticas públicas nas últimas décadas houve uma melhoria nos indicadores sociais, especialmente nas áreas de saúde, educação e redução da pobreza que, segundo pesquisas, atingiram patamares que não haviam sido alcançados em nenhum momento da história do País.2 O Brasil vive hoje uma etapa de franco progresso das condições de vida de sua população, apesar das carências e dos défi cits sociais que ainda se tem que enfrentar. Contudo, não se pode deixar de evidenciar os fatos recentes de mudanças da sociedade. As pesquisas apontam para a redução dos índices sociais como: diminuição da pobreza, menores índices de mortalidade infantil, menor número de analfabetos, tudo isso apesar da herança de um longo passado de exclusões e de injustiças. Portanto, o avanço dos últimos anos é inequívoco.

2A pobreza pode ser entendida em vários sentidos, principalmente como carência material. Tipicamente, envolve as necessidades da vida cotidiana como alimentação, vestuário, alojamento e cuidados de saúde. Pobreza neste sentido pode ser entendida como a carência de bens e serviços essenciais. Segundo o Banco Mundial (2001), os pobres vivem sem liberdade de ação e escolha em relação aos que estão em melhor situação. Muitas vezes não dispõem de condições adequadas de alimentação, abrigo, educação e saúde. Essas privações os impedem de levar o tipo de vida que todos valorizam.

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Faleiros (2006, p. 45) traz uma contribuição signifi cativa quando compreende que as políticas sociais:

[...] apesar de aparecerem como compensações isoladas para cada caso, constituem um sistema político de mediações que visam à articulação de diferentes formas de reprodução das relações de exploração e dominação da força de trabalho entre si, com o processo de acumulação e com as forças políticas em presença.

Destaca-se, por conseguinte, que a redução da pobreza ocorreu em todas as regiões do País, principalmente no Nordeste, tanto nas áreas urbanas quanto nas áreas rurais, especialmente nas últimas décadas. A educação apresentou aceleração notável em todos os níveis, com índices recordes de atendimento e inclusão, demonstrando ser um mecanismo essencial para promover a diminuição da miséria e da desigualdade.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do atual governo traz em seu bojo políticas sociais que visam à redução da pobreza. Assim, a promoção social continua sendo uma prioridade para o governo federal, pois em seu orçamento reserva grande parte de recursos para os programas de desenvolvimento social. Apesar dos esforços e dos resultados já alcançados na área social, a natureza estrutural dos problemas exige atenção continuada, buscando consolidar e aperfeiçoar a política e os programas e, ao mesmo tempo, intensifi car a melhoria da gestão das políticas públicas.

Finalizando esta refl exão sobre as políticas sociais, considera-se oportuno citar o pensamento de Faleiros (2006, p. 70): “As lutas pelas políticas sociais são complexas, pois a própria organização das instituições sociais em vários setores fragmenta e separa os pobres dos trabalhadores e dos cidadãos, dividindo-os em categoriais especiais.”

Não constitui nossa intenção investigar profundamente a questão do Estado brasileiro e as repercussões provocadas pelas políticas sociais públicas, embora se considere fundamental contextualizá-los em níveis macro para um melhor entendimento do ponto em que se pretende chegar. A partir de agora esta refl exão se detém nas políticas públicas de atendimento aos jovens.

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A JUVENTUDE BRASILEIRA: O FOCO NO DESEMPREGO E NA QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

Realizar uma análise das políticas públicas para a juventude no Brasil exige a compreensão do desafi o frente à amplitude das práticas espalhadas neste País. Antes de abordar os aspectos pertinentes a este tópico, julga-se conveniente citar o conceito de políticas públicas para a juventude. Segundo Chillán (2005, p. 68), políticas públicas para a juventude podem ser entendidas como “o sistema público que aborda as preocupações sociais relativas aos jovens de um país ou uma região”.

É inegável que o tema Juventude no Brasil já passou a compor preocupação inserida em agenda pública, com a percepção da necessidade de formulação de políticas específi cas para essa fase da vida. Escolhe-se como marco os anos de 1990, quando se deu a mobilização da sociedade civil em torno dos direitos da infância e da adolescência, resultando na aprovação de um novo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A atenção voltada para a política juvenil ocorreu inicialmente nos países capitalistas centrais, e posteriormente nos periféricos. A inquietação quanto a essa problemática extrapola os governos nacionais, como pode ser comprovado através de iniciativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que incluiu a redução do desemprego entre os jovens como um de seus objetivos.

O governo brasileiro despertou para a existência de problemas que afetavam os jovens: doença, violência e desemprego e as ações nessas áreas constituíram o seu foco principal. No fi nal do século XX e início do século XXI, o desemprego juvenil e o realce dado aos processos de exclusão provocaram o surgimento de novas ações que procuraram focalizar nos jovens pobres as ações do Estado.

Importa destacar que, em 2002, no último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, existiam 33 programas federais voltados para a juventude. Uma parcela bastante signifi cativa das ações foi realizada através da transferência de recursos para as Organizações Não Governamentais (ONGs), que se responsabilizavam pela execução. O traço proeminente dessas ações revelou que o próprio governo

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federal não havia concebido uma proposta clara e satisfatória para solucionar os problemas vivenciados pelos jovens. Nos últimos 15 anos, o Brasil despertou para a importância de uma nova experiência democrática, com a construção da interação entre a sociedade civil e o Estado.

Uma ação bastante inovadora ocorreu através da abertura institucional para o envolvimento dos jovens nas diversas etapas do orçamento participativo em alguns municípios, e a presença deles na função de gestores dos órgãos que executam ações específi cas para a juventude. Entretanto, persiste a luta pelo reconhecimento da necessidade das políticas de juventude.

O governo federal, mesmo não sendo o executor das políticas, ainda se constitui como o indutor importante, uma vez que é o responsável pelas diretrizes gerais e a garantia dos recursos. Daí a relevância de se romper com os aspectos que têm caracterizado as ações federais nos últimos anos, ou seja, em determinados momentos a ausência total dos jovens na formulação das políticas e, em outros, a difi culdade do Estado em conceber os jovens como sujeitos de direitos.

Para que a Política Nacional de Juventudes funcione com efi cácia e efi ciência, realizando ações e iniciativas que contem com a devida importância e pertinência, é necessário realizar uma distribuição integrada e consensual dos papéis e funções a serem desempenhados em cada caso concreto.

O projeto de criação de uma política nacional de trabalho e emprego com foco na juventude foi divulgado por ocasião da campanha do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Anteriormente, o problema do desemprego dos jovens ainda não tinha sido encarado como prioridade do governo federal, isso sem invalidar algumas ações desenvolvidas no plano nacional.

O início da estruturação do Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego para os Jovens (PNPE) ocorreu no primeiro semestre de 2003, e foi criado ainda no fi m de 2003, por meio da Lei n° 10.748, de outubro de 2003. Também foi criada uma estrutura responsável pelo programa dentro do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE):

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o Departamento de Políticas de Trabalho e Emprego para a Juventude (DPJ), vinculado à Secretaria de Políticas Públicas de Emprego (SPPE), já responsável, no âmbito do MTE, pelos principais instrumentos de ação do Sistema Público de Emprego.

A linha central da formulação da política foi a constituição de mecanismos para facilitar o encaminhamento do jovem ao mercado de trabalho, sendo previstas ações de qualifi cação, intermediação e aumento de vagas no mercado e estímulo ao desenvolvimento de ações geradoras de ocupação e renda.

O objetivo primordial das políticas de emprego é extirpar ou controlar o desemprego, principalmente porque a economia capitalista possui ciclos de crescimento e períodos de inclinação do nível de atividades que exercem infl uência sobre o mercado de trabalho. As políticas de emprego vêm ocupando maior espaço na agenda pública dos governos brasileiros devido à insufi ciência de postos de trabalho que atendam à demanda cada vez mais crescente, principalmente dos jovens brasileiros.

Devido ao fato de o desemprego juvenil ser maior que entre os adultos, a criação das políticas estatais de empregos surgiu como alternativa de buscar um caminho para propiciar aos jovens uma integração com a sociedade através da sua inserção no mercado de trabalho.

Gimenez (2001) cita que as políticas de emprego para jovens são ainda mais necessárias em contextos de baixo crescimento econômico, porque ocorre uma relação inversa entre o crescimento dos empregos por meio da expansão da economia e a seletividade do mercado de trabalho. Assim sendo, “quanto maior a expansão dos empregos, menor a seletividade que difi culta de forma particular a inserção de determinados segmentos da força de trabalho.” (GIMENEZ, 2001, p. 2). Na visão de Gimenez (2001), o crescimento econômico sustentado é fundamental para dinamizar os mecanismos de inclusão social.

Somente a partir de 2003 surgiu uma política nacional de emprego para jovens. Anteriormente elas só ocorriam nas esferas municipais e estaduais. O que se percebe, no entanto, é que a grande

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preocupação é com a geração de emprego sem a observância da qualidade dos mesmos.

Conforme destaca Villela (2005), no Brasil a juventude só se torna objeto de uma política quando ligada a estereótipos negativos, como a delinquência, o uso de drogas ou a violência. Na perspectiva de que os jovens não tragam problemas à sociedade, os governos geram políticas de emprego.

O fato de a sociedade ter acordado e se envolvido em discussões sobre o alto desemprego juvenil impulsionou a implementação de ações públicas que começaram a perceber o trabalho como um direito de todos os jovens.

Com o intuito de ampliar as oportunidades dos postos de trabalho os governos recorrem a várias ações. Entre elas está o subsídio à contratação, o banimento de encargos sociais e a defi nição de salários mínimos menores para os jovens, bem como a criação de empregos temporários, no setor público ou no setor privado. O jovem fi ca no emprego criado por um tempo limitado, entre seis meses e um ano. Com essas medidas julga-se que os jovens terão menos difi culdades para se inserirem no mercado de trabalho, já que tiveram oportunidade de ter o primeiro contato com o trabalho.

Citam-se como fatores que infl uenciam a inefi ciência das políticas de emprego o baixo crescimento econômico e os reduzidos investimentos por parte do Estado. Outro fator que pode ser apontado como negativo é a concepção de políticas que não levam em conta os aspectos nacionais, regionais e locais.

É importante frisar que algumas políticas substituem os esforços de criação de novos empregos pela oferta de qualifi cação profi ssional, na crença de que assim os jovens de classes mais pobres poderão ter chances de ocupar vagas compatíveis com as vagas ofertadas aos jovens de classe média. A qualifi cação propiciada é básica e os níveis de qualidade são considerados baixos.

O aspecto positivo que deve ser salientado nas políticas de emprego é a exigência que normalmente apresentam quanto ao jovem

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estar estudando ou retornar aos bancos escolares, ou seja, apoiam a elevação da escolaridade. O ideal seria que o Estado brasileiro se preocupasse primordialmente com a criação de políticas públicas educacionais satisfatórias e com qualidade sufi ciente para tornar o jovem mais preparado para a competitividade tão presente nos tempos modernos.

É incontestável o reconhecimento por parte do governo quanto à criação de políticas públicas, leis e recursos voltados para o atendimento aos jovens. O trabalho passou a ser encarado com um direito, entretanto resta aos jovens continuarem lutando pela continuidade das ações e buscando cada vez mais o seu aperfeiçoamento quantitativo e qualitativo.

As políticas de emprego nas quais os jovens estão inseridos são desenvolvidas no Brasil a partir da década de 1990, classifi cadas em três tipos: políticas de qualifi cação profi ssional, políticas de inserção ao mercado de trabalho, e políticas de retardamento do ingresso ao mercado de trabalho.

A preparação dos jovens no que concerne à disputa por uma vaga no mercado de trabalho tem se constituído como o objetivo central das políticas de qualifi cação profi ssional. Na concepção dos formuladores dessas políticas, o fator determinante para a inclusão dos jovens no mundo do trabalho está relacionado com a qualifi cação. Com o intuito de possibilitar aos jovens, independentemente de sua condição econômica, a possibilidade de concorrer a uma vaga no mercado de trabalho, surgiram algumas políticas que tentam oportunizar a qualifi cação e, consequentemente, o preenchimento das vagas oferecidas pelo mercado de trabalho. Exemplos desse tipo de política são: o Plano Nacional de Formação Profi ssional (PLANFOR), e o Programa Nacional de Qualifi cação (PNQ).

Na visão de outros formuladores das políticas que defendem a realização de ações de combate ao desemprego juvenil, as políticas de inserção no mercado procuram instituir mecanismos que contribuam para a passagem dos jovens da condição de inatividade para o mundo do trabalho. Para o alcance desse objetivo procuram realizar várias ações, destacando-se aquelas que oferecem subsídios

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fi nanceiros para as empresas contratarem jovens tanto em empregos formais como em estágios.

Com referência às políticas de retardamento dos jovens no mercado de trabalho, citam-se aquelas que adotam medidas que procuram ampliar o tempo de estudo dos jovens, bem como a sua qualifi cação profi ssional. O incentivo à cidadania através do exercício de trabalhos sociais com transferência de renda e liberação de bolsas de estudo proíbe o engajamento em empregos formais durante o tempo em queos jovens estejam vinculados a essa política.

É importante compreender que a entrada precoce do jovem no mercado de trabalho e o afastamento da escola certamente se constituem um fator que difi culta a sua adequada preparação para a inserção decente no mundo laboral. Essa política de retardamento se depara com a desistência de um grande número de jovens que, por receio de não conquistar o emprego futuro, preferem abdicar desse direito, apesar de o trabalho juvenil ter passado a ser encarado como um direito. Entretanto, resta aos jovens continuarem lutando pela continuidade de ações que busquem cada vez mais o aperfeiçoamento quantitativo e qualitativo das políticas de geração de emprego e renda.

No Brasil, como as políticas desse tipo são insufi cientes e a desigualdade verifi cada no País é espantosa, somente os jovens de famílias de alta renda ampliam o tempo de inatividade e de escolaridade. Entretanto, as políticas públicas, de alguma forma, procuram amenizar a inatividade dos jovens e apontam a possibilidade de manter a trajetória escolar elevada. Portanto, “para o jovem oriundo das famílias pobres, o acesso à renda por meio do trabalho é condição para a manutenção de vínculos com a rede escolar.” (POCHMANN, 2002, p. 105).

Impróprio seria não admitir que esses três tipos de políticas apresentam limitações quanto aos recursos governamentais para o atendimento do grande número de jovens, especialmente em relação à geração de empregos, para que os jovens não fi quem na dependência de outras políticas.

Um fato a ser destacado é que os governos compreenderam a importância da criação das políticas de emprego focalizadas na

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juventude através da implantação de programas, leis e recursos visando à sua manutenção, uma vez que o mercado de trabalho brasileiro apresenta uma dinâmica que pode ocasionar riscos à sociedade. As grandes transformações tecnológicas geram desemprego, precarização das ocupações e das relações de trabalho. A preocupação com a redução dessa problemática faz os governos instituírem políticas públicas voltadas para o mercado de trabalho, também designadas de políticas de emprego.

O trabalho passou a ser considerado um direito dos jovens, restando-lhes a coragem de lutar pela permanência dessas políticas, sempre na perspectiva de uma maior abrangência com o oferecimento de melhor qualifi cação e um número maior dos postos de trabalho. Essas políticas possuem variados intuitos, tanto de atuar sobre a oferta de mão de obra quanto impulsionar a demanda por trabalhadores. Mas, é preciso enfatizar que a geração de postos de trabalho e a melhoria das condições ocupacionais dos indivíduos vão além das políticas de emprego, pois estão sujeitas ao crescimento econômico, aos investimentos estatais e privados e até mesmo às políticas sociais.

O desemprego se constitui um dos maiores problemas enfrentados no mundo, provocando o aumento de pessoas sem ocupação e obrigadas a buscar alternativas de sobrevivência. Para os jovens que vivenciam algo semelhantea situação se torna mais complexa, pois sem postos de trabalho e com difi culdades de acesso à rede de proteção social, o que lhes resta é a incerteza quanto ao futuro.

Na atualidade, todo trabalhador é um presumível desempregado. Quase sempre o desemprego é involuntário. Registra-se que, nas últimas décadas, tanto no Brasil como em outros países periféricos e das nações centrais, aconteceu um alargamento do desemprego, porém esse aumento foi mais marcante para os jovens.

A prorrogação da entrada no mundo do trabalho é defendida por muitos pesquisadores e gestores, podendo ser encarada como uma condição favorável se levarmos em consideração que o jovem ao completar 17 anos deveria ter concluído ou estar próximo de concluir o ensino médio. Ter a possibilidade de concluir o ensino

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médio e posteriormente se preparar para a inserção no mundo laboral é o desejável. Entretanto, se esse retardo estiver relacionado com o desemprego, com o envolvimento em tarefas domésticas ou, ainda, se for causado pelo abandono dos estudos é de fato uma situação preocupante. (IPEA, 2008).

Cumpre salientar que o aumento de pessoas sem ocupação provocou maior competição entre jovens e adultos que lutam pelos postos de trabalho. Percebe-se que existe um preconceito por parte de alguns empregadores quanto à capacidade produtiva dos jovens, havendo muitas vezes a preferência pelos adultos para preenchimento das vagas ofertadas. Fora isso, não se pode perder de vista outras barreiras criadas pelo mercado de trabalho e que afetam diretamente a população juvenil: a obrigatoriedade da experiência profissional anterior e as condições de escolaridade e qualificação. Assim sendo, a juventude é sempre mais atingida que os adultos pelo desemprego.

Convém notar que o desemprego juvenil é decorrência da desestruturação do mercado de trabalho brasileiro, do baixo crescimento econômico, apesar do reconhecimento de melhora do crescimento econômico nos últimos anos no País. Há mais oferta de postos de trabalho, mas mesmo assim não são sufi cientes para atender a demanda por emprego dos jovens. Além desses fatos pode-se ainda identifi car como difi culdadesas políticas realizadas pelas empresas no sentido de amortecer o uso da força de trabalho, ou mesmo de precarizar esse uso. Isto pode ser considerado, também, como uma consequência do processo de reestruturação produtiva, que extinguiu empregos que sempre foram ocupados por jovens.

Posta, assim, essa questão, é preciso dizer que a juventude brasileira foi formada com a ideia de que através do trabalho desempenharia uma profissão e teria os recursos para a sua manutenção. Mas, com a ampliação do desemprego e as precárias condições de inserção ao trabalho da população jovem, esse ideal se transformou em um sonho cuja realização se limita a poucos, ficando assim comprometida a inclusão social dos jovens por intermédio do trabalho.

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Como se pode notar, o desemprego impede que os jovens possam vivenciar a juventude e chegar à fase adulta com muitos anos de estudo e experiência profi ssional no mercado de trabalho.

As políticas nacionais para a juventude, expressas através do Ministério do Trabalho e Emprego, regem-se pelos mesmos principios norteadores das políticas de qualifi cação profi ssional e intermediação de mão de obra que procuram contribuir para que todos os cidadãos tenham reconhecidos e valorizados os seus direitos como:

Pessoa, mediante a aquisição de níveis crescentes de autonomia, de defi nição dos próprios rumos, de exercício de seus direitos e de sua liberdade;

Cidadão, consciente da importância do papel protagônico da juventude e da necessidade da sua efetiva participação no aprimoramento da democracia, na defesa dos direitos civis, políticos e sociais e no exercício da solidariedade para a mudança social;

Trabalhador, qualifi cado social e profi ssionalmente para a inserção ativa, cidadã, no mundo social e do trabalho. (BRASIL, 2008).

O trabalho é uma ferramenta de obtenção de valores como dignidade, amor próprio, autoestima e geração de renda. A atividade laboral é uma busca contínua da evolução pessoal. Homens e mulheres são portadores de direitos sociais, entre os quais se inclui o trabalho. Encontram-se aí muitos obstáculos, tendo em vista a grande concorrência, as inúmeras exigências e os requisitos que nem sempre têm condições de serem atendidos, ainda mais quando se trata de jovens que buscam o primeiro emprego.

O Governo federal, na tentativa de minimizar as difi culdades de inserção dos jovens no mundo do trabalho, resolveu criar o programa denominado ProJovem Trabalhador, que tem como “objetivo inserir jovens entre 18 e 29 anos de idade, com baixa renda familiar per capita e baixa escolaridade no mercado formal de trabalho”.

O referido projeto apresenta objetivos voltados, especifi camente, para a preparação dos jovens quanto ao ingresso no mercado de trabalho ou engajamento em ocupações que venham a gerar renda.

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Ocorreu a unifi cação de seis programas com foco nos jovens: Agente Jovem, Pró-Jovem, Saberes da Terra, Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego, Consórcio Social da Juventude e Juventude Cidadã, e Escola de Fábrica em um único Programa, nos termos da Medida Provisória nº. 411, de 28 de dezembro de 2007, convertida na Lei nº. 11.692, de 10 de junho de 2008, cuja regulamentação consta do Decreto nº. 6.629, de 4 de novembro de 2008.

Vale salientar que algumas adaptações foram feitas com a fi nalidade de unifi car as ações dos ministérios e melhorar os resultados. Entre elas está a qualifi cação profi ssional, que tem como objetivo contribuir com a redução da distância cultural existente entre pessoas de classes sociais diferentes. As alterações estão relacionadas ainda com a ampliação da faixa etária, que antes era de 16 a 24 anos, e agora é de 18 a 29 anos. Os jovens engajados no referido programa recebem qualifi cação profi ssional com carga horária de 350 horas e auxílio mensal de R$ 100,00 (cem reais) durante seis meses.

O objetivo geral do Projeto foi assim concebido:

O ProJovem Trabalhador é uma política de qualificação social e profissional, de caráter compensatório, que será desenvolvida em parceria com os estados, municípios e a sociedade civil, visando preparar e intermediar essa mão-de-obra para o mercado de trabalho formal e fomentar novas oportunidades de geração de renda e a visão empreendedora desses jovens. (BRASIL, 2008).

Destaque-se que foi realizada uma reconfi guração de modalidades que tenham caráter permanente, como a aprendizagem profi ssional e o estágio profi ssionalizante, e que não se aplicam somente ao segmento de jovens mais vulneráveis do ponto de vista da renda, como o ProJovem Trabalhador.

Não se pode deixar de reconhecer como avanço nas políticas públicas de trabalho destinadas aos jovens a delimitação da faixa etária, ou seja, no novo programa concebido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ela foi elastecida. Diversos estudiosos já vinham apontando a necessidade de analisar a condição juvenil levando em consideração as transformações quanto à expectativa

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de vida e à estrutura econômica da sociedade. Entre outros, cita-se Pochmann (2004, p. 221):

Talvez adequada 100 anos atrás, quando da expectativa de vida ao nascer encontrava-se um pouco acima de 30 anos, a faixa etária de 15 a 24 anos poderia indicar precisamente um período de tempo compatível com a ideia de transitoriedade que marca a condição juvenil. Atualmente, quando a expectativa média de vida encontra-se ao redor dos 70 anos no Brasil, aproximando-se rapidamente dos 100 anos para as décadas vindouras, torna-se fundamental identifi car que houve alargamento da faixa etária circunscrita à juventude pra algo ente 16 e 34 anos de idade.

Atuar no âmbito do trabalho pressupõe o desenvolvimento de ações públicas que tenham condições de promover uma qualifi cação condizente com o que o mundo atual exige.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas públicas no Brasil destinadas aos jovens, centradas no discurso de que a preparação para o mercado de trabalho exige maior qualificação, novos atributos, habilidades e competências, na maioria das vezes partem da crença equivocada que associa juventude, desemprego e pobreza. Operam de forma unidimensional e podem contribuir para a segregação dos jovens ao ignorar outros aspectos significativos de suas vidas, tais como as práticas sociais, o lazer e a cultura.

O que se verifi ca nas práticas governamentais são preocupações economicistas que deixam de lado aspectos relevantes como dignidade e cidadania. Só será possível imaginar que os jovens terão uma vida com mais qualidade quando forem percebidos em sua totalidade, e não apenas focalizados em uma faixa etária com prioridade na aplicação de alguns recursos públicos.

Uma parcela da população jovem enfrenta sérias difi culdades na inserção profi ssional e não vê o trabalho como algo que norteia positivamente a sua vida. Esses jovens se sentem à deriva profi ssional e aproveitam quaisquer possibilidades de inclusão. Na conjuntura de

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ruptura da linearidade profi ssional e de mobilidade social se agarram à negatividade do não ter. Preocupam-se com a difi culdade de engajamento no mercado de trabalho e se deparam com difi culdades de estabelecer outros modos de conceber a própria vida.

Baseados nessa realidade, os programas que se propõem a favorecer a inserção profi ssional são imperativos. É importante que se incluam atividades, em suas ações, que os façam pensar diversas alternativas de trabalho, e não apenas o engajamento no mercado de trabalho formal.

No Brasil contemporâneo três verbos fazem parte da linguagem e da atitude dos empregadores: lucrar, fl exibilizar e reestruturar. Nessa conjuntura, um dos grupos sociais que mais sofrem com as características peculiares do capital é a juventude. Por isso a juventude regula sua vida através da preocupação de três fatores: incerteza, desemprego e precarização.

Não se pode deixar de perceber que as barreiras fundamentais criadas pelo mercado de trabalho formal à população jovem são: obrigação de experiência profi ssional anterior e altos requisitos de escolaridade e qualifi cação. Dessa forma, os jovens acabam sendo mais prejudicados que os adultos pelo desemprego.

Posta esta problemática, é oportuno dizer que a juventude brasileira foi educada com a ideia de que por meio do trabalho exerceria uma profi ssão e disporia de recursos para a sua manutenção. Contudo, com o acréscimo do desemprego e as péssimas condições de inserção e de trabalho dos jovens, esse ideal passou a se constituir um sonho difícil de alcançar. Apenas uma pequena parcela conseguirá realizá-lo, estando assim bloqueada a integração social através da infl uência do trabalho.

Afi rmar que a falta de qualifi cação é fator preponderante para o desemprego dos jovens mascara a causa da insufi ciência de oportunidades de trabalho. Quando se faz referência a essa insufi ciência de qualifi cação profi ssional como o principal elemento que difi culta a inserção dos jovens não se pode esquecer que durante longos anos até os dias atuais a política responsável pela qualifi cação

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profi ssional vem atuando sem a devida preocupação com as exigências do mercado, com o oferecimento de cursos totalmente adversos ao que a realidade nacional exige, e até mesmo sem atentar para as potencialidades regionais.

O avanço da escolaridade e da qualifi cação dos jovens aconteceu nas últimas décadas no Brasil, porém sem maior destaque no arrefecimento do desemprego desse grupo social. A qualifi cação não tem nenhuma interferência na criação de postos de trabalho, somente possibilitando ao indivíduo ser dono de conhecimentos necessários para desempenhar uma profi ssão. Nesse sentido deve-se afi rmar que os jovens transitam, atualmente, entre a escola e o desemprego.

É imprescindível, portanto, que o Estado seja cauteloso e atue de forma que a juventude não vislumbre apenas incerteza, desemprego e exclusão social. Assim, os esforços dos governantes devem convergir, sobretudo, para que haja lugar para todos no mercado de trabalho, para que os jovens possam viver dignamente como cidadãos. Por outro lado, é necessário que os jovens se mobilizem em busca de seus direitos e, ao mesmo tempo, governos, empresários e políticos reconheçam esses jovens como seres detentores de direitos.

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CAPÍTULO 7POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUVENTUDE NO

BRASIL: RESGATE DE UMA TRAJETÓRIA EM CONSTRUÇÃO

Maria Celeste Magalhães Cordeiro1

Josbertini Virginio Clementino2

INTRODUÇÃO

O tema “juventude” auferiu visão pública nos últimos anos no Brasil, ocupando a pauta em diversos espaços, como os meios de comunicação, as universidades e os parlamentos. Uma das razões desse interesse é o aumento do número de jovens no País. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), há cerca de 50 milhões de pessoas com idades entre 15 e 29 anos no Brasil,

1 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (1997), Mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (1989). Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1976). Atualmente é professora do Mestrado de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará e professora aposentada da Universidade Estadual do Ceará. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Política, atuando principalmente nos seguintes temas: Imaginário e Política, Literatura e Sociedade, Pensamento Social Brasileiro. Coordena grupo de pesquisa sobre Imaginário e Política.

2 Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (2009), Graduado em Administração Pública e de Empresas pela UECE (2002). É Secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará. Foi Diretor do Departamento de Políticas de Trabalho e Emprego para a Juventude do Ministério do Trabalho e Emprego, Secretário Parlamentar da Câmara dos Deputados, Conselheiro Nacional de Juventude da Secretaria Geral da Presidência da República, Secretário de Juventude de Maracanaú-CE, e Presidente do Fórum Estadual de Secretários de Juventude do Ceará.

Maria Celeste Magalhães Cordeiro1

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representando mais de 1/4 da população nacional. (IBGE, 2010). Em comparação demográfi ca, a população total da Argentina foi estimada em cerca de 40 milhões, e a da Venezuela em 27 milhões. (UNFPA, 2010).

Num país de proporções continentais, como o Brasil, atravessado por gritantes desigualdades sociais, os jovens não devem ser enxergados como um bloco homogêneo. Ao se debruçar sobre a juventude brasileira, o conceito de “juventudes plurais” torna-se mais adequado, já que há diferenças acirradas de ser jovem em função das classes sociais, de habitar no centro de grandes metrópoles ou em sua periferia, de viver no campo, de pertencer a religiões e credos distintos, chegando também no nível das etnias.

O olhar da sociedade sobre a juventude ainda está carregado de mitos e preconceitos. É necessário renovar esse olhar compreendendo mais e ouvindo o que os próprios jovens querem e pensam sobre seu futuro, para que se possam construir novos referenciais de sociedade.

Quanto às políticas de juventude, identifi ca-se que chegam de maneira tardia na agenda das políticas públicas no Brasil. Essas políticas já existem no País e esse processo de inserção na agenda pública foi iniciado e está em curso. A trajetória dessas políticas deve ser reforçada para que seu processo de consolidação seja irreversível, permanente e sustentável.

A COMPREENSÃO DA JUVENTUDE NA CONTEMPORANEIDADE

O primeiro passo para discutir juventude é identifi car de qual juventude se está falando. Falar desse grupo pode parecer uma tarefa simples, uma vez que o termo é corrente nos vocabulários e tem-se uma defi nição no senso comum. Convive-se com jovens no dia a dia e todos têm opiniões a respeito das características, das questões, dos problemas, dos defeitos ou virtudes da juventude. Diariamente observam-se instituições disseminarem impressões sobre quem são e como vivem os jovens.

Com frequência, a imagem dos jovens é permeada por estereótipos e por um conjunto de ideias contraditórias sobre a vivência da condição juvenil. É comum, por exemplo, que comerciais e

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propagandas explorem a imagem da juventude, associando os sujeitos jovens à saúde, ao desprendimento, à liberdade e à espontaneidade. Por outro lado, nos noticiários da TV, pode-se observar uma percepção bastante negativa dos jovens, atrelando suas imagens, sobretudo de negros e pobres, ao desvio, à desordem social e à violência.

Constata-se essa contradição pelo fato de a sociedade, por um lado, ser “juventocêntrica”. Ser jovem se tornou um modelo cultural valorizado e consumido por todos, estando nesta condição ou não; por outro lado, quando se verifi cam os jovens concretos e também reais, percebe-se a existência de preconceitos e estereótipos que são reiterados em diferentes espaços. Um exemplo é a ideia de irresponsabilidade e imaturidade visivelmente difundida para falar do conjunto dos jovens, enquanto a violência e o desvio são estigmas que recaem para grupos específi cos da população. (FREITAS; PAPA, 2003).

A primeira difi culdade quando se fala de juventude é determinar a faixa etária que a defi ne. O Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) e outras instituições de pesquisa no País têm utilizado o recorte dos 15 a 24 anos. (IBGE, 2000). Já outras organizações tomam como parâmetro o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que determina o término da adolescência aos 18 anos. (BRASIL, 1995). A Secretaria Nacional de Juventude do Governo Federal adotou como parâmetro a idade de 15 até 29 anos. (CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE, 2006).

A discussão sobre o início e o término da juventude diz respeito a como se diferencia esta de outros grupos dentro da população. Além disso, ela defi ne, por exemplo, a quem devem ser destinados recursos, projetos e políticas dirigidas aos jovens. No Brasil ainda há confusão no uso dos termos juventude e adolescência, muitas vezes empregados como sinônimos. Embora estejam relacionadas, as duas categorias dizem respeito a processos distintos.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adolescência constitui um processo fundamentalmente biológico e psíquico que vai dos 10 aos 19 anos de idade, abrangendo a pré-adolescência (10 a 14 anos), e a adolescência propriamente dita (15 a 19 anos). Esta defi nição leva em conta o desenvolvimento biopsíquico

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dos sujeitos. Já a juventude é considerada uma categoria que foi social e historicamente constituída e que está relacionada com um período no ciclo vital dos indivíduos para o qual cada sociedade atribui sentidos, expectativas e signifi cados diversos. (CLEMENTINO, 2011).

A juventude, tal como se concebe hoje, está conectada à estruturação da sociedade moderna ocidental e às novas possibilidades abertas pelo desenvolvimento industrial e capitalista. A ideia de juventude foi se estabelecendo como um momento cuja marca seria o preparo para a “vida adulta”. E esse ciclo termina quando os sujeitos transpõem algumas fronteiras que marcam aquilo que socialmente é atribuído ao mundo dos adultos: terminar os estudos, viver do próprio trabalho, sair da casa dos pais, casar-se, ter fi lhos e estabelecer-se numa moradia pela qual se torna responsável.

Os jovens brasileiros, porém, conciliam escola e trabalho. Muitos, apesar de trabalhar, ainda não conseguem produzir o próprio sustento com a renda obtida. Alguns já se encontram experimentando paternidade e maternidade. A ideia de manter a juventude afastada de algumas atribuições reservadas aos adultos está longe de ser uma realidade partilhada pelo conjunto de jovens brasileiros.

Além disso, mudanças recentes na sociedade tornam cada vez mais difícil defi nir onde começa e onde termina a juventude. O aumento da expectativa de vida dos brasileiros, a ampliação do tempo de permanência na escola, e o desemprego estrutural, entre outros fatores, produzem o que muitos denominam de prolongamento ou “descronologização” da juventude.

Neste sentido, o Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE), um espaço de articulação e formulação de políticas para a juventude que reúne sociedade civil e representantes do poder público, considerou quem são os jovens no Brasil, na sua publicação de 2006, “Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas”:

[...] o cidadão ou cidadã com idade compreendida entre os 15 e os 29 anos. [...] Nesse caso, podem ser considerados jovens os “adolescentes-jovens” (cidadãos e cidadãs com idade entre 15 e 17 anos), os “jovens-jovens” (com idade entre os 18 e 24 anos) e os “jovens-

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adultos” (cidadãos e cidadãs que se encontram na faixa-etária dos 25 aos 29 anos). (CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE, 2006).

Trabalhar com essas distinções é útil porque permite aprimorar o conhecimento sobre os sujeitos e descobrir suas necessidades, seus interesses e suas demandas.

A juventude pode ser considerada uma etapa da vida que, como as outras, possibilita um conjunto de novas trajetórias, desafi os e experiências. Mais do que um momento assinalado por transformações biológicas, a juventude é marcada pelas relações que as pessoas estabelecem dentro da sociedade. Se for considerada, porém, apenas como um momento de trânsito entre a infância e o estágio adulto, corre-se o risco de perceber a juventude apenas a partir daquilo que o senso comum diz que lhe falta: maturidade, competência e responsabilidade de adultos.

É preciso perceber que ela também é uma vivência específi ca do presente, marcada por novas experiências, contato com outros grupos e maior autonomia da família e de outros adultos. Sendo assim, a juventude combina processos de preparo para a vida adulta, entrando aí a formação, com outros de experimentação e construção de trajetórias, que incluem a inserção no mundo do trabalho, a defi nição de identidades, a vivência da sexualidade, da sociabilidade, do lazer, da fruição e criação cultural, e da participação política efetiva. (ABRAMO, 1997).

Outra especifi cidade da juventude é o fato de este grupo de pessoas viver de modo mais intenso os dilemas e as questões que são de toda a sociedade, antecipando-as. Eles chegam depois na sociedade do adulto. Por isso, possuem mais condições de estranhá-la e questioná-la. Isso não signifi ca, contudo, afi rmar que os jovens sejam naturalmente revolucionários, mas sim que estão mais dispostos a novas experiências. Podem, todavia, buscar um caminho de ruptura ou de inserção. E a ruptura pode ter diferentes signifi cados, não sendo necessariamente positiva.

Os jovens podem ou não conservar valores como a solidariedade e o respeito, podem lutar por um país mais justo, ou podem

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referendar um mundo competitivo e desigual. Tudo depende de suas experiências concretas e das possibilidades reais de constituir suas experiências nas diferentes esferas da vida. Produziu-se um consenso, no Brasil, de que é necessário atentar para as diversas situações envolvidas quando se trata da juventude. Isso porque é muito difícil afi rmar que os jovens do País partilham condições parecidas para vivenciar essa etapa da vida.

Por outro lado, os jovens de hoje sofrem o impacto de questões como o avanço de doenças como a Síndrome da Imunodefi ciência Adquirida (AIDS), a presença cada vez maior das tecnologias de informação e comunicação, a mudança nas estruturas familiares, a chegada do aquecimento global e outras ameaças ao meio ambiente e o aprofundamento da globalização capitalista. Isso defi ne as experiências dos sujeitos jovens e infl uencia as visões que eles próprios possuem de si. Assim, as vivências e experiências dos jovens estão fortemente ligadas aos contextos em que os sujeitos estão imersos e com as diferentes práticas culturais. Essas diferenças também são marcadas pelas limitações de ordem econômica e social desses contextos.

A classe social do indivíduo, sua condição étnica e de gênero, sua presença ou não no mercado de trabalho e na escola, seu local de moradia - urbano ou rural -, sua situação familiar, ter ou não uma defi ciência, sua orientação sexual e sua escolha religiosa são fatores, entre outros, que vão diferenciando internamente esse grupo que se chama juventude. Por isso, ao se falar das experiências juvenis deve-se reconhecer essa diversidade e pronunciar juventudes, no plural. Esse reconhecimento demanda uma atenção redobrada daqueles que querem propor políticas e iniciativas governamentais dirigidas aos jovens.

A TRAJETÓRIA DAS POLÍTICAS DE JUVENTUDE NO BRASIL A PARTIR DA REDEMOCRATIZAÇÃO

Diferentemente de países que intensifi caram a consolidação das políticas de juventude nas suas agendas a partir das discussões lideradas no plano internacional pelo Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), já na década de 1960, constata-se que o Brasil somente inicia esse debate mais intenso e organizado em meados

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da década de 1990, praticamente dez anos após a declaração do Ano Internacional da Juventude.

O debate sobre a juventude reaparece, com alguma ênfase, no Brasil, quando a ONU recolocou o tema na pauta e elegeu o ano de 1985 como “Ano Internacional da Juventude: Participação, Desenvolvimento e Paz”. O impacto, entretanto, aconteceu em plano estadual, nos Estados de São Paulo, em 1986, e em Minas Gerais, em 1987, quando esses estados instituíram os primeiros conselhos estaduais de juventude.

O protagonismo juvenil na luta contra a ditadura encontrou expressão massiva no Movimento Diretas Já, a maior jornada de mobilização de rua havida até então. Mesmo com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, Tancredo Neves vence no Colégio Eleitoral, simbolizando a volta de um civil ao Palácio do Planalto, mas antes de sua posse morre.

Ainda assim, a democracia se afi rma no amplo movimento cívico pela aprovação da Constituição de 1988, que consolida as eleições diretas para todos os cargos e a legalidade dos partidos políticos. Na Constituinte, diversas juventudes se unem na campanha Se Liga 16, que consegue recolher cerca de um milhão de assinaturas para legitimar o voto facultativo com 16 e 17 anos, conferindo expressivo peso eleitoral à juventude brasileira no novo ordenamento democrático. (CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE, 2011).

A partir da segunda metade dos anos 1990, podemos perceber a emergência de certo número de iniciativas empreendidas pelos diferentes níveis de governo - federal, estadual e municipal. É nesse período que surgem, nos planos local e regional, organismos públicos destinados a articular ações no âmbito do Poder Executivo e estabelecer parcerias com as organizações juvenis, da sociedade civil e do setor privado, para a implantação de projetos ou programas de ação para a juventude.

Devemos destacar que nessa década houve passos iniciais e sinalizações de institucionalização das políticas de juventude no Brasil e uma movimentação de organizações da juventude para levar o tema

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ao centro das políticas públicas. É a expressão do protagonismo juvenil nos temas gerais da Nação. O impeachment de Collor, impulsionado por jornadas de protestos multitudinários de estudantes leva à posse do vice-presidente Itamar Franco. Ele instituiria, em 13 de julho de 1993, a Semana Nacional do Jovem pela Lei n˚ 8.680.

Foi realizado, pela Fundação Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social (MUDES)3, em 1995, no Rio de Janeiro, o I Encontro Nacional de Técnicos em Juventude, com a participação de especialistas e jovens de vários municípios brasileiros. Foi debatida e indicada uma proposta de formulação da Política Nacional de Juventude. (CLEMENTINO, 2011).

Em 1997, dois anos depois, no âmbito do Governo Federal criou-se uma assessoria específi ca de juventude vinculada ao gabinete do ministro da Educação. Naquele mesmo ano constituiu-se a primeira articulação nacional de gestores de juventude de governos e prefeituras focada especifi camente na promoção das Políticas Públicas de Juventude (PPJ), a Organização Brasileira de Juventude (OBJ).

Em 1998, foi realizado o I Festival Nacional de Juventude, em Brasília, promovido pelo governo do Distrito Federal, gestão de Cristovam Buarque, e sociedade civil. O festival contou com a presença de cerca de cinco mil jovens, tornando-se o encontro de juventude mais amplo, plural e participativo ocorrido no Brasil na década de 1990. Entre suas propostas estava a de discutir e aprofundar a elaboração e execução de políticas de juventude. Concomitantes ao Festival surgiram as bases do Fórum Nacional dos Movimentos e Organizações Juvenis, espaço que articula diferentes atores.

3 Movimento Universitário de Desenvolvimento Econômico e Social é uma instituição fi lantrópica e sem fi ns lucrativos, voltada para o desenvolvimento de programas e projetos sociais em benefício da juventude. Atua como agente de integração fazendo a mediação entre as empresas conveniadas que oferecem vagas de estágio e os estudantes de ensino médio, técnico e superior que buscam uma oportunidade. Referida fundação representou o Governo brasileiro em vários eventos internacionais de juventude na década de 1990, inclusive na Organização Ibero-Americana de Juventude.

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Entre 1995 e 2002, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, ainda que não se possa falar de políticas estratégicas orientadas para os jovens brasileiros na esfera federal, algumas propostas foram executadas, sobretudo com base nas ideias de prevenção, controle ou efeito compensatório de problemas que atingiam a juventude. Em geral, o jovem sempre era visto numa condição de risco social e/ou vulnerabilidade, o que resultava na formulação de programas e projetos associando o jovem ao tema da violência, vinculado ao consumo e tráfi co de drogas, e ao desemprego.

Nos anos iniciais de 2000, observa-se um aprofundamento do debate na sociedade civil e nas universidades. Em 2002 e 2003, respectivamente, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) constituíram os primeiros observatórios de juventude em instituições universitárias brasileiras, juntamente com a Universidade Católica de Brasília, que em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) lançou o Observatório de Violência nas Escolas. É importante ressaltar que a representação da UNESCO no Brasil foi responsável por diversas publicações e pesquisas que serviram e servem de referência para a implantação de Políticas Públicas de Juventude (PPJ).

Destaca-se, nessa construção, o Seminário “Políticas Públicas: Juventude em Pauta”, organizado em 2002, pela Organização Não Governamental (ONG) Ação Educativa, juntamente com a Fundação Friedrich Ebert. Esse seminário conseguiu reunir, de maneira ampla, pesquisadores, gestores, ONGs e grupos juvenis para delimitar e debater, com suporte nas experiências nacionais e internacionais apresentadas, questões cruciais do campo das políticas públicas de juventude.

Também no ano de 2002, com o advento das eleições presidenciais, uma grande diversidade de organizações e movimentos de juventude de todas as regiões do Brasil, convocadas pela OBJ, UNESCO e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), reuniram-se no Rio de Janeiro. Com base nas experiências das organizações e em consensos internacionais desenvolvidos pela sociedade civil organizada aprovaram uma carta comum denominada “Agenda

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Jovem 2002”. O ativismo de vários agentes sociais e o peso eleitoral dos jovens naquela eleição levaram os três principais candidatos à Presidência da República a apresentarem propostas específi cas para a juventude brasileira em seus planos de governo.

Logo após as eleições o debate sobre juventude ganhou força em diversos espaços. Na Câmara dos Deputados foi criada a Comissão Especial de Políticas Públicas de Juventude (CEJUVENT). Em 2004, essa Comissão realizou um processo inédito e experimental de audiências públicas de conferências estaduais de juventude que culminou em uma denominada Conferência Nacional de Juventude, promovida pela Câmara dos Deputados.

Esse evento foi uma grande oportunidade de encontro para as organizações e movimentos de juventude e, apesar das difi culdades de organização, foi um marco relevante na construção das políticas públicas de juventude no Brasil, pois comprometeu o parlamento brasileiro com o debate. Como resultado a conferência apresentou subsídios à formulação da Emenda Constitucional 65, que insere a juventude como público prioritário na constituição do Plano Nacional da Juventude, que estabelece metas a serem cumpridas em prol da juventude num período de dez anos, além do Estatuto da Juventude, que reafi rma os direitos dos jovens e prevê a organização e estruturação do Estado brasileiro para que possa garantir os referidos direitos. Tais iniciativas representaram esforços para transformar as políticas públicas de juventude em políticas de Estado, presentes na legislação nacional.

Vale ressaltar que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 138/2003), conhecida como a PEC da Juventude, constituída como Emenda 65 foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2010. Em 2011 a Câmara dos Deputados aprovou o Estatuto da Juventude, sendo agora apreciado no Senado Federal.

No período de 2003 a 2010 a temática avança efetivamente como preocupação relevante do Governo Federal. Institucionalmente, a busca de desenhos adequados para o desenvolvimento das Políticas Públicas de Juventude, no novo cenário político brasileiro, foi sendo discutida por meio da criação de novos âmbitos de debate e formulação do tema.

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Inicialmente, houve no Governo Federal uma tentativa de constituir a questão da juventude pelo eixo do mundo do trabalho. Assim, foi desenvolvido o Programa Nacional do Primeiro Emprego (PNPE) e criada uma unidade de juventude no Departamento de Trabalho e Emprego do Ministério do Trabalho (DPJ-MTE). Pelo fato de ser o primeiro grande programa para a juventude, ele gerou muita expectativa. A ação contava com o apoio do presidente e grande orçamento, mas deparou-se com difi culdades para o cumprimento de todas as suas metas.

Esses esforços do poder público foram acompanhados por debates e acordos de apoio desenvolvidos por organismos internacionais, como a elaboração do Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ) da UNESCO e as propostas desenvolvidas por cerca de cem organizações de juventude no evento “Vozes Jovens I e II”, organizado pelo Banco Mundial, em parceria com a Secretaria Geral da Presidência da República e o Sistema ONU no Brasil.

Outra importante iniciativa foi o Projeto Juventude, do Instituto Cidadania, que realizou uma série de levantamentos, debates e pesquisas sobre a situação da juventude no País. Esse projeto, que envolveu boa parte dos especialistas brasileiros no tema, desenvolveu um consistente banco de informações, estudos e propostas sobre políticas públicas de juventude.

Também as organizações e os movimentos da juventude buscaram se articular para participar da formulação e defi nição das prioridades governamentais. Entre 2003 e 2005, foram criados fóruns e movimentos como a Rede Juventude pelo Meio Ambiente (REJUMA), o Diálogo Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis, articulado pela União Nacional dos Estudantes (UNE), a Rede Nacional de Organizações, Movimentos e Grupos de Juventude (RENAJU), a Rede Sou de Atitude e o Fórum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis (FONAJUVES). Exemplos da mesma intenção de distintos setores da juventude brasileira de constituir plataformas e redes juvenis em âmbito nacional com cada uma reconhecendo seu papel e suas limitações. Em 1998, já havia sido lançada a Rede de Jovens do Nordeste (RJNE).

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Nesse período, diversos governos municipais e estaduais criaram órgãos gestores de juventude e reforçaram ações visando à participação dos jovens na elaboração das PPJ e no empoderamento de suas organizações associativas. Buscava-se uma maior efetividade na aplicação dos recursos, com suporte em esforços capazes de mobilizar setores estratégicos do poder público e da sociedade civil pela promoção da juventude brasileira.

Em 2004, surge o Fórum Nacional de Secretários e Gestores Estaduais de Juventude, em Fortaleza-CE, por meio de convocação e articulação do Evento de Juventude FUTURE - Feira de Rumos e Atitudes. O referido fórum se instituiu visando a articular as políticas públicas de juventude das unidades federativas brasileiras no plano nacional. Nesse mesmo ano, o Governo Federal deu um passo importantíssimo ao instalar o Grupo Interministerial de Juventude encarregado de defi nir uma política nacional integrada de juventude. O grupo, formado por representantes de 19 ministérios e secretarias especiais, mapeou dados sobre as condições em que vivem os jovens brasileiros, os programas federais voltados para eles, os desafi os para a construção de uma política nacional de juventude e as recomendações para a elaboração dessa política.

Segundo documento divulgado pelo grupo interministerial sobre o balanço das ações governamentais de juventude na primeira gestão do Governo Lula (IPEA, 2004), foram identifi cadas mais de 150 ações federais desenvolvidas em 45 programas e implementadas por 18 ministérios ou secretarias de Estado. Do total de ações identifi cadas, apenas 19 eram específi cas para o público jovem (de 15 a 24 anos). As demais ações, ainda que contemplassem os jovens, não foram desenhadas exclusivamente para eles.

Como resultado, o Governo apresentou, em 2005, as suas primeiras ações de construção do embrião de uma política nacional de juventude: a criação da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho Nacional de Juventude, e do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM). Vale destacar que todos os países da América Latina, com exceção de Brasil e Honduras, já contavam, em 2003, com organismos governamentais para tratar das questões juvenis.

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A Secretaria Nacional de Juventude passou a ser o organismo do Governo Federal responsável por promover a integração de todas as ações, tendo como foco o público juvenil. Ela também se tornou a principal referência governamental no que diz respeito à juventude, tanto na interlocução com a sociedade civil (movimentos, ONGs, grupos juvenis etc.), como no trabalho conjunto entre os ministérios e secretarias, visando à criação de mais programas e ações.

O Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE) foi criado junto com a Secretaria Nacional de Juventude, em fevereiro de 2005, e implantado em agosto desse mesmo ano, sendo sua primeira composição feita inicialmente por indicação do Governo Federal. Constituiu-se como espaço com a importante tarefa de estabelecer diretrizes sobre a política nacional de juventude baseadas em um diálogo entre a sociedade civil e os membros do governo.

É composto por 60 conselheiros, dentre os quais 20 são indicados pelo poder público - ministérios, fórum de secretários e gestores estaduais de juventude, Frente Parlamentar de Juventude da Câmara dos Deputados e o Fórum de Gestores Municipais de Juventude. 40 são eleitos em assembleia pela sociedade civil - membros de organizações juvenis de representação nacional, ONGs, redes e movimentos.

O PROJOVEM, que se tornou o principal programa de juventude do Governo Federal, teve inicialmente como foco jovens entre 18 e 24 anos de idade, que não concluíram o ensino fundamental e que não têm emprego com carteira assinada. Com uma metodologia que inclui a educação profissional, a conclusão do ensino fundamental e o desenvolvimento de ações comunitárias, o PROJOVEM estabelece ainda uma bolsa que estimula a participação do jovem em suas atividades.

Embora seja o principal programa da Secretaria Nacional de Juventude, de acordo com o discurso do Governo Federal, as políticas públicas nacionais de juventude vão muito além do PROJOVEM, de acordo com o trabalho apresentado pelo Conselho Nacional de Juventude em 2011, intitulado “Refl exões sobre as Políticas Nacionais de Juventude: 2003/2010”. As PPJs provêm de iniciativas de outros ministérios e secretarias (Educação, Trabalho e Emprego,

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Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Saúde, Ciência e Tecnologia, Cultura, Defesa, Turismo, Esportes, Desenvolvimento Agrário, Justiça, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Promoção da Igualdade Racial, Direitos Humanos e outros).

Pode-se, entretanto, considerar esse conjunto de iniciativas dos ministérios do Governo Federal como programas desintegrados e desconexos, ainda que haja um esforço da Secretaria Nacional de Juventude para realizar maior articulação desse “amontoado” de ações e projetos para os jovens. Inclusive, a referida secretaria lançou o Guia de Políticas Públicas de Juventude, catalogando os principais programas de juventude do Governo Federal.

O Governo Lula lançou, no final de 2007, de forma inédita, um programa unificado de juventude, reformulando o PROJOVEM com a integração de seis programas federais já existentes, chamado pela imprensa de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da Juventude, com investimento aproximado previsto de cinco bilhões até 2010, visando a atender mais de quatro milhões de jovens. Com a reformulação, passou a ser denominado PROJOVEM Integrado tendo quatro modalidades: Urbano, Campo, Trabalhador e Adolescente.

É importante destacar que pela primeira vez na história do Brasil um programa específi co de juventude, no caso o PROJOVEM, constou no Plano Plurianual do Governo Federal. A iniciativa teve o apoio do Presidente Lula e grande orçamento, mas deparou-se com difi culdades para o cumprimento de metas. Inclusive a Presidenta Dilma, após essa avaliação não muito promissora de resultados e metas do programa, lançou uma nova ação de qualifi cação profi ssional, instituindo o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), focando vários segmentos da juventude e da população brasileira, fazendo uma série de mudanças no PROJOVEM Integrado. Uma dessas mudanças foi transferir da Secretaria Nacional de Juventude para o Ministério da Educação a gestão do PROJOVEM Urbano.

Realizou-se também a 1ª e a 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude, promovida pela Secretaria e Conselho Nacional

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de Juventude, vindo a ocorrer em 2008 e 2011, respectivamente, com a participação de milhares de jovens na sua etapa fi nal, em Brasília, e nas diversas etapas estaduais e municipais, além das conferências livres. Essas conferências tiveram como objetivo ampliar o diálogo e o debate com os jovens acerca das políticas de juventude. Ao fi nal da primeira conferência foram indicadas 70 resoluções e 22 prioridades aprovadas pelos delegados presentes, para serem encampadas pelo Governo Federal. A segunda conferência foi confusa porque não houve um resgate das proposições elencadas na primeira, e as propostas encaminhadas na conferência de 2011 foram pouco consistentes e sem muita fl exibilidade para o debate.

Uma iniciativa importante para impulsionar as políticas de juventude no Brasil foi o “Pacto pela Juventude”, que consistiu numa proposição aos governos federal, estaduais e municipais. Muitos candidatos a prefeito, vereador, governador, deputado e senador, nos dois últimos pleitos eleitorais, se comprometeram com as políticas públicas de juventude nas suas plataformas eleitorais e futuras ações de governo.

A Secretaria e o Conselho Nacional de Juventude tiveram no “Pacto pela Juventude” um instrumento para manter o debate em torno dos temas apresentados pela conferência, viabilizando a ampla divulgação dessas propostas e o comprometimento com alguns parâmetros para a implementação das políticas públicas de juventude.

Na nova gestão da Secretaria Nacional de Juventude do Governo Dilma não surgiram novidades de impacto e nenhuma ação estruturadora das políticas de juventude no Brasil. A grande ação foi a realização da 2ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude, já comentada. Sua convocação foi realizada pelo Presidente Lula no último ano do seu governo.

A secretária nacional de juventude, Severine Macedo, anunciou as primeiras ações estruturais da sua programação de trabalho no fi nal de 2011, com três novos programas, até para fazer um contraponto à perda da gestão do seu principal programa, Projovem Urbano, para o Ministério da Educação, a saber: Estação Juventude, fortalecimento dos conselhos de juventude e observatório de políticas de juventude.

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O primeiro, Estação Juventude, trata-se de um centro de políticas de juventude que deve ser implantado pela Secretaria Nacional de Juventude em parceria com os municípios brasileiros. Nesse centro o jovem poderá encontrar diversos programas de juventude, além de um espaço de socialização, encontro e informação voltados para o público juvenil.

O fortalecimento dos conselhos de juventude já está sendo operacionalizado pela Secretaria Nacional de Juventude. O Governo Federal está repassando recursos para as unidades federativas fortalecerem seus conselhos com a realização de mais ações locais e para a estruturação mais consistente dos mesmos.

O Observatório de Políticas de Juventude não tem uma defi nição específi ca de sua atuação. A ideia inicial é lançar bases para alavancar a pesquisa no Brasil em torno das políticas públicas de juventude, além de levantar e sistematizar dados sobre a juventude brasileira.

As iniciativas da nova gestão da Secretaria Nacional de Juventude são boas e úteis para o processo de consolidação das políticas de juventude, mas ainda não se sabe como, onde e quando vão acontecer, excetuando a ação de fortalecimento dos conselhos de juventude. É importante haver uma refl exão sobre todas as ações em vigor e apontar, num futuro breve, como fi ca o conjunto das políticas de juventude no Brasil, até para que não ocorram retrocessos numa série de avanços que foram conquistados, principalmente no Governo Lula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma sintética, o desafi o deste artigo foi fazer uma discussão inicial sobre a compreensão da juventude na contemporaneidade, identifi cando os diversos olhares atribuídos aos jovens pela sociedade, para, em seguida, realizar a contextualização e o resgate da trajetória de construção das políticas de juventude no Brasil.

Observa-se que há uma ampla e diversifi cada percepção na sociedade sobre a juventude. O senso comum, no entanto, continua representando a juventude de modo negativo, por meio de estigmas e estereótipos. A depender do contexto sociopolítico e econômico do

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qual se originam, os jovens são considerados perigosos, marginais, alienados, irresponsáveis, desinteressados ou desmotivados. Cada vez mais são relacionados, principalmente pela grande mídia, à violência e aos desvios de conduta.

Continua sendo um desafi o para aqueles que querem propor políticas e iniciativas governamentais dirigidas aos jovens reconhecer a diversidade da juventude. Pronunciar juventudes, no plural, para que a partir dessa maior compreensão possam construir políticas de juventude sustentáveis e com resultado.

O quadro das políticas de juventude nos permite mostrar que, especialmente em nosso País, há ainda um longo caminho a percorrer no sentido de transformar em políticas públicas de Estado as atuais políticas de governo para o público juvenil.

Identifi ca-se que já foram dados passos importantes para a consolidação desse processo. O início da institucionalização das políticas de juventude, em 2005, com a criação da Secretaria e do Conselho Nacional de Juventude, foi um relevante passo à frente.

Entretanto, constata-se que se está longe de ter uma política nacional de juventude. Ainda é necessário construí-la. O que está posto como vitrine pelo Governo Federal é um grande programa emergencial, o PROJOVEM, para um segmento importante da juventude com demandas específi cas, que são os jovens mais pobres que pararam de estudar e não trabalham. Existem, ainda, alguns programas em outros ministérios bastante desarticulados nessa lógica da política pública integrada.

É necessário e urgente estruturar uma política nacional de juventude universal, ou seja, para todos os jovens, com horizonte de longo prazo e com sustentabilidade política e orçamentária, e continuar o percurso de consolidação das políticas de juventude numa agenda pública de Estado.

Neste momento, lançar pilares novos e estruturantes para que a política pública de juventude possa alcançar outro patamar está na ordem do dia. Sem novas ações estruturantes e de folego, sem programas diferenciados e uma verdadeira rede de serviços de

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juventude constituídos para suprir as necessidades e demandas dos jovens e da sociedade brasileira, difi cilmente teremos as respostas que queremos para a nossa juventude.

Por isso, se quisermos que esta geração e as próximas tenham sua inclusão e sejam protagonistas de um processo sustentável, é essencial, fazendo um trocadilho, criarmos uma nova geração de políticas públicas de juventude.

REFERÊNCIAS

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CONSELHO NACIONAL DE JUVENTUDE (Brasil). Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas. São Paulo, 2006.

. Refl exões sobre a Política Nacional de Juventude: 2003/2010. Brasília, DF, 2011.

FREITAS, Maria Virgínia de; PAPA, Fernanda de Carvalho (Org.). Políticas públicas: juventude em pauta. São Paulo: Cortez, 2003.

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. População jovem no Brasil: a dimensão demográfi ca. Brasília, DF, 2000.

IPEA. Relatório do Grupo Interministerial da Juventude. Brasília, DF, 2004.

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SPOSITO, Marília P.; CARRANO, Paulo. Juventude e políticas públicas no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 24, p. 16-39, set./dez. 2003.

UNFPA. A situação da população mundial 2010. Nova Iorque, 2010.

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CAPÍTULO 8ENTRE MUROS: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL COMO ESTRATÉGIA DE INSERÇÃO SOCIAL

PARA ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE1

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Fátima Regina Guimarães Apolinário2

INTRODUÇÃO

Na busca de compreensão do objeto de análise avançamos na direção de entendê-lo, considerando o contexto social em que está inserido e elegendo como eixo dos questionamentos a indagação: As ações desenvolvidas entre muros efetivam as políticas públicas direcionadas à juventude? Esse questionamento deu origem a outros a ele relacionados. Assim, buscaremos respostas sobre as ações voltadas ao público submetido a medidas socioeducativas, na unidade educacional, com base no tripé qualifi cação, aprendizagem e renda, numa parceria entre governo e empresas privadas.

Para isso analisaremos as ações desenvolvidas na educação profi ssional voltada ao público em cumprimento de medidas socioeducativas do Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (CECAL), gerido pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), numa parceria com empresas privadas. Buscaremos saber se as ações estão contribuindo para gerar mudanças na vida desses jovens.

1 Trabalho desenvolvido para a obtenção do título de mestre, do Mestrado em Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE), no ano de 2009.

2 Assistente Social e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Fátima Regina Guimarães Apolinário2

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Existe, por parte dos jovens, um olhar sobre os novos rumos de suas vidas após seu desligamento da unidade, o que prescinde a qualifi cação para o trabalho. Assim, esses jovens veem a educação profi ssional vislumbrando alternativas futuras de inserção social.

Considerando a relevância de buscar respostas para tais indagações desenvolvemos esta pesquisa inicialmente elegendo categorias como base para ajudar a desvendar a realidade da educação profi ssional, do trabalho e das políticas públicas. Os paradigmas que desenham a educação profi ssional no século XXI reconhecem os avanços da tecnologia e as novas expectativas surgidas em decorrência do mercado globalizado e competitivo. Nesse cenário emergem as exigências quanto à formação e desempenho dos profi ssionais, em que a educação vem representando a sociedade nacional, caracterizada pela desigualdade de renda que afeta diretamente a distribuição do conhecimento. Dessa forma, o dualismo entre a educação da elite e a educação das camadas menos favorecidas foi se tornando ofi cial e legitimado.

É nesse contexto que verifi camos a importância da iniciativa das políticas públicas desenvolvidas pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Ceará (STDS-CE), a qual, em parceria com empresas privadas, amplia os horizontes de pessoas em situação de vulnerabilidade social, preferencialmente. O objetivo geral deste estudo é compreender os resultados das ações de educação profi ssional desenvolvidas no Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (CECAL), junto aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.

Nessa perspectiva, procura-se analisar as políticas públicas de educação profi ssional voltadas para a juventude em confl ito com a lei no Estado do Ceará; investigar as ações desenvolvidas pela STDS em parceria com a empresa Marisol, que tem como foco o jovem aprendiz; identifi car as mudanças ocorridas na vida dos jovens que integram o Projeto Primeiro Passo, na linha de ação Jovem Aprendiz do Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (CECAL).

Tendo em vista a fi nalidade e a natureza deste trabalho, optamos pelo estudo de caso, cujos dados foram submetidos a uma abordagem

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qualitativa com base no fato de que ela requer um pesquisador atento e cuidadoso. A técnica escolhida para a pesquisa foi a entrevista grupal ou grupo focal, que envolve discussões informais, de tamanho reduzido, com o propósito de se obterem informações de caráter qualitativo, em profundidade. É uma técnica rápida e de baixo custo para avaliação e obtenção de dados e informações qualitativas e que fornece aos gerentes de projetos ou instituições uma grande riqueza de informações sobre o desempenho de atividades desenvolvidas, de prestação de serviços, de novos produtos e outras questões. (GOMES; BARBOSA, 1999).

Esta pesquisa foi realizada no ano de 2009, durante os meses de agosto e setembro, no Centro Educacional Cardeal Aloísio Lorscheider (CECAL). Trata-se de uma unidade de atendimento a adolescentes em confl ito com a lei, autores de atos infracionais graves, sentenciados e encaminhados por ordem judicial. Ela foi inaugurada em 17 de dezembro de 2000, inicialmente para atendimento de jovens maiores de idade e adolescentes com idade de 14 a 17 anos, tendo sido defi nida, em 2006, como unidade de internação masculina exclusiva para jovens adultos na faixa etária de 18 a 21 anos.

Inicialmente, solicitamos à direção do CECAL o apoio institucional e a adesão de 30 jovens para participarem do estudo. Foram explicados os objetivos da pesquisa e a metodologia de sua aplicação. Os participantes foram divididos em dois grupos (A e B), cada um com 15 participantes na faixa etária entre 18 e 21 anos. Após serem consultados sobre o seu interesse em participar da pesquisa e informados previamente sobre dia, local e fi nalidade dos encontros, foram também informados de que teriam preservadas suas identidades3. Os aspectos éticos da pesquisa foram considerados, uma vez que os participantes conheceram os objetivos da pesquisa e foram consultados sobre seu interesse em participar do estudo, sendo-lhes assegurado o anonimato e o sigilo das informações coletadas.

3 Os jovens foram identifi cados com nomes fi ctícios. Para isso usamos nomes de planetas e de plantas, a fi m de deixá-los mais à vontade, pois suas identidades estavam sendo preservadas.

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A seguir, discorreremos acerca de algumas leis que regem as medidas socioeducativas de internação, exemplifi cando as adotadas pelo sistema brasileiro.

A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO

Os pressupostos norteadores da construção coletiva dos direitos do homem foram consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos4 e adotados por diversos diplomas, sistemas e ordenamentos jurídicos. Eles sugerem um conjunto de princípios e valores para a constituição de um projeto de sociedade que garanta ao ser humano uma vida digna.

A Constituição Federal de 1988, tida como cidadã por atender signifi cativo número de reivindicações provenientes dos mais diversos setores da sociedade civil, entre elas o apelo social em prol de crianças e adolescentes, em seus artigos 227 e 228, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), incorporou, no panorama legal brasileiro, os princípios e concepções da Doutrina da Proteção Integral da Organização das Nações Unidas. Elevou os adolescentes ao status de sujeitos de direitos, implicando alterações no atendimento a eles dispensado. A condição de sujeitos de direitos conquistada pelos adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, no novo ordenamento jurídico nacional, traz como pano de fundo a longa caminhada de lutas e conquistas do homem na construção da sua história, o que encontra suporte na afi rmação de Mill (1964, p. 177), quando aponta:

Toda a história do progresso humano foi uma série de transições através das quais costumes e instituições, umas após outras, foram deixando de ser consideradas necessárias à existência social e passaram para a categoria de injustiças universalmente condenadas.

Percebe-se, pela afi rmação de Mill (1964), que até culminar com o status de detentores de direitos e obrigações, próprios da condição

4 De acordo com Bernardo Toro - educador colombiano - a maior invenção do homem no século XX, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948, como expressão de pessoas das mais diversas etnias, nacionalidades, credos e tradições.

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da pessoa em desenvolvimento, os jovens e adolescentes enfrentaram uma série de injustiças e preconceitos que persistem até os dias atuais. Introjetados no inconsciente coletivo, esses preconceitos se conformam em obstáculos a serem superados para a efetiva incorporação da Doutrina da Proteção Integral dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A criação do Sistema de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente associou os princípios fundamentais da Doutrina de Proteção Integral aos princípios do sistema socioeducativo. Este, por implicar restrições à liberdade, alicerçou sua legalidade na Constituição Federal e no ECA5. Tem-se, ainda, como referência leis secundárias, como o Direito Penal e o Direito Processual Brasileiro, objetivando ampliar os direitos dos adolescentes, contudo sem prejuízos às especifi cidades da doutrina de proteção integral. Assim, foi possível estabelecer mecanismos para superar práticas que resumem o adolescente infrator ao ato a ele atribuído.

A concepção de que as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, assumida pelo ECA, levou esse Estatuto a trazer no seu Titulo I - Das Disposições Preliminares, artigo 4º, a redefi nição das atribuições do Estado, da sociedade e da família em relação a eles:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profi ssionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL. LEI N° 8.069, 2014).

Na esteira das garantias dispostas no artigo anteriormente citado, o artigo 5º do mesmo Estatuto assegura que a criança e o adolescente fi cam a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Essas garantias compreendem o parágrafo único do artigo anterior, quais

5 Que se assenta no princípio de que todas as crianças e adolescentes, sem distinção, desfrutam dos mesmos direitos e se sujeitam a obrigações compatíveis com a sua peculiar condição de desenvolvimento.

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sejam: prioridade a proteção e socorro, atendimentos nos serviços públicos, e recursos e execução de políticas sociais públicas.

Os papéis atribuídos aos atores sociais, contidos no artigo 4º do ECA, se entrelaçam numa corresponsabilidade que requer o fortalecimento das redes sociais de apoio aos que se encontram em desvantagem social - entendidos pela lei como: portadores de defi ciências físicas, psíquicas e mentais; dependentes químicos; ex-presidiários; condenados e adolescentes em situação de risco. (BRASIL. LEI Nº 9.867, 2014). No art.3º destaca-se a conscientização da população sobre as questões que encerram a atenção aos jovens em confl ito com a lei para, sobretudo, superar o assistencialismo e a coerção generalizada.

A transgressão às normas estabelecidas - ato infracional - somente é imputada aos adolescentes com idade compreendida entre 12 e 18 anos, e, por se caracterizar como violação do dever jurídico por pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, não pode ser caracterizada como crime. Por isso, embora fi quem sujeitos às consequências dos seus atos infracionais, eles não são passíveis de responsabilização penal, cabendo-lhes, nesses casos, medidas socioeducativas, cujos objetivos são pautados na perspectiva de reinserção social, de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, e não punição.

Consideradas sanções, e não penas, as medidas socioeducativas têm caráter pedagógico baseado na severidade e na justiça adotada pelo ECA. Essas medidas consideram o adolescente em sua peculiaridade, descartando as armadilhas das concepções compensatórias e paternalistas. Neste sentido, Costa (2006, p. 5) afi rma: “Em termos práticos, vê-se que o Estatuto apenas estendeu aos adolescentes garantias como o direito à defesa e à presunção da inocência, próprias do Direito Penal dos Adultos.” Semelhantemente ao que ocorre aos infratores adultos, ao adolescente é assegurado o devido processo com todas as garantias do estado democrático de direito.

As concepções de compensação e paternalismo não encontram suporte no ordenamento do ECA, visto que a compensação busca justifi car o aumento da repressão na proporção da gravidade das

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infrações praticadas, enquanto o paternalismo tende a isentar os adolescentes da responsabilidade pelas infrações cometidas, tornando a prática infracional ato natural. Nessa perspectiva, o convívio social requer a aceitação de regras mínimas, essenciais, o que sugere a responsabilização do adolescente quando ele transgredir esses padrões. A sua condição de ser em desenvolvimento revela a proteção especial a que tem direito por lei, considerado como sujeito de direitos, o que não pressupõe anulação da sua obediência aos preceitos jurídicos. Tal entendimento corrobora o que aponta Barbosa e Moretto (2002, p. 10), ao afi rmarem que “o processo de desenvolvimento do adolescente passa pela aprendizagem de um posicionamento crítico e responsável em relação às suas condutas.”

A ressocialização pretendida pela medida socioeducativa de internação6 não pode ser entendida em sentido funcionalista, o qual sugere um sujeito social estático, predestinado a voltar a ser. Pelo contrário, tal medida deve comportar a ideia de um sujeito ativo, relacional, que, mesmo infl uenciado pela dinâmica social, é capaz de infl uenciá-la com sua maneira de ser e de fazer. Para tanto, ainda que a medida socioeducativa de privação seja cumprida em regime fechado, a instituição para tal não pode ter o caráter de instituição total. (FOUCAULT, 1990; GOFFMAN, 1999).

O ECA, admitindo a complexidade do problema, se rende aos princípios de excepcionalidade, brevidade e respeito à condição de pessoa em desenvolvimento. Seus fundamentos estão na premissa de que o processo socioeducativo não se dá no isolamento do convívio social. A privação de liberdade e a internação funcionam como útimo recurso dentre as medidas socioeducativas.7

Os princípios de excepcionalidade, brevidade e respeito à condição de pessoa em desenvolvimento, antes referidos, podem ser interpretados como: a) excepcionalidade - signifi ca que a medida socioeducativa de internação deve ser aplicada apenas em casos

6 ECA, artigo. 121- A internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

7 ECA, artigo. 112, I, II, III, IV, V, VI, VII.

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extremos, quando não couber nenhuma das outras medidas que não comportam privação de liberdade; b) por brevidade - entende a importância do limite cronológico, exigindo que a medida socioeducativa deva abreviar o tempo de privação do sentenciado para possibilitar com sua participação e esforço a progressão para medida menos severa; c) o respeito à condição de pessoa em desenvolvimento - signifi ca que devem existir propostas pedagógicas e de ressocialização para que a medida cumpra seu efeito, tendo em conta que a sanção foi aplicada a um ser humano que vive a transição da infância para a vida adulta.

De conteúdo predominantemente pedagógico, mas de natureza sancionatória, a medida socioeducativa de internação é excepcional e reservada aos casos específi cos e bem caracterizados, pois consiste na privação da liberdade, aplicada ao adolescente infrator como medida coercitiva quanto ao delito por ele cometido, não comportando prazo determinado e sujeita a reavaliação, no máximo, a cada seis meses - ECA, artigo 121, § 2º. (BRASIL. LEI N° 8.069, 2014). A privação de liberdade dessa medida socioeducativa deve ser proposta pelo Ministério Público e aplicada pelo Juiz, mediante infração de grave ameaça ou violência à pessoa, como propõe o artigo 122,8 do Estatuto, ou por reiteração no cometimento, por descumprimento reiterado e injustifi cável da medida anteriormente imposta. Dessa forma, como aponta Tavares (2002, p. 118):

É a mais severa das medidas sócio-educativas estabelecidas no Estatuto. Priva o adolescente de sua liberdade física - direito de ir e vir - à vontade [...] O adolescente poderá trabalhar e estudar fora do estabelecimento onde é recolhido, se não oferecer perigo à segurança pública ou à sua própria incolumidade, segundo avaliação criteriosa da equipe interprofi ssional que assessora a Justiça da Infância e da Juventude.

A medida socioeducativa deve ser aplicada como último recurso, considerando os danos emocionais, mentais, físicos e morais que dela resultam, como lembra Liberati (2002, p. 99):

8 Art. 122 – A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustifi cável da medida anteriormente imposta.

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Na verdade, por melhor que seja a entidade de atendimento, a internação deve ser aplicada de forma excepcional, porque provoca no adolescente os sentimentos de insegurança, agressividade e frustração, acarreta exacerbado ônus fi nanceiro e não responde às dimensões do problema. (LIBERATI, 2002, p. 99).

Melo Neto e Froes (2001) apontam para o risco da adoção ordinária da medida de internação, dado o trauma que dela resulta aos adolescentes e às suas respectivas famílias. Sem alternativa, tal medida deve ser adotada desde que em fi el observância ao ordenamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que integra o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), responsável pela implementação da Doutrina da Proteção Integral dos Diretos da Criança e do Adolescente incorporada pela Constituição Federal e pelo ECA.

Cabe ressaltar que as medidas socioeducativas, em sua totalidade, da mais branda à mais severa, contemplam essa natureza sancionatória. Essa característica de conteúdo serve de base para o comentário de Costa sobre a formação dos profi ssionais responsáveis por cumprir e fazer cumprir a lei nas unidades de internação.

Sobre os direitos específi cos do adolescente privado de liberdade e sua confrontação com os direitos dos adultos em condição semelhantes, Costa (2006, p. 37) cita Emílio Garcia Méndez, jurista argentino, estudioso e especialista do direito da criança e do adolescente:

Emílio Garcia Méndez [...] costuma afi rmar que, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, as conquistas da Revolução Francesa, com duzentos anos de atraso, chegaram aos adolescentes privados de liberdade. Direitos que, há muito tempo, eram assegurados aos adultos privados de liberdade só agora alcançaram os adolescentes nessa mesma situação.

O recorte apresentado remete ao entendimento de que para amenizar as injustiças infl igidas ao adolescente infrator, ao longo dos tempos, o legislador deve equilibrar sua postura para, no estado democrático de direito, compatibilizar o máximo de garantia indispensável ao bom resultado dentro da comunidade socioeducativa.

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Os direitos específi cos do adolescente privado de liberdade são delimitados no artigo 124, do ECA, como o de ser entrevistado pelo representante do Ministério Público, receber escolarização e profi ssionalização, receber visitas ao menos semanalmente, entre outros. Essas garantias são dispensadas ao sujeito de direitos - o adolescente infrator. Volpi (1999, p. 28) indica que a internação:

Ou seja, a contenção não é em si a medida sócio-educativa, é a condição para que ela seja aplicada. De outro modo ainda: a restrição da liberdade deve signifi car apenas limitação do exercício pleno do direito de ir e vir e não a outros direitos constitucionais, condição para sua inclusão na perspectiva cidadã.

Por essa dimensão percebe-se a importância de o espaço socioeducativo contemplar, além da sua sujeição ao que prescreve o artigo 90 do ECA (BRASIL. LEI N° 8.069, 2014), a garantia de respeito à dignidade humana, à integridade e outros. As ações de atendimento aos infratores devem ser articuladas com técnicos, gestores, educadores e representantes do Ministério Público.

A aplicação da internação também é possibilitada no caso de descumprimento reiterado e injustifi cado de medida anteriormente imposta, em conformidade com o ECA, artigo 122, inciso III. (BRASIL. LEI N° 8.069, 2014).9 Pode, portanto, ser determinada a internação do adolescente infrator que não cumpra integralmente a prestação de serviços à comunidade, por exemplo. Sobre essa possibilidade de internação, quando da elaboração desse dispositivo, houve quem alegasse a necessidade de “dar um susto” ao adolescente com seu internamento por até três meses. Diante de tão aviltante argumento, Melo Neto (2001, p. 185) ponderou o seguinte:

Inconformado com tal naipe de raciocínio, respondi que só defendia esse ponto de vista quem tinha certeza de que os próprios fi lhos jamais seriam encaminhados para uma unidade de internação, onde o susto pelo qual se quer que os fi lhos dos outros passem pudesse implicar a prática de violências físicas, psicológicas e sexuais.

9 ECA, artigo 122 - A medida de internação só poderá ser aplicada quando: III - por descumprimento reiterado e injustifi cável da medida anteriormente imposta.

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A necessidade de “dar um susto” ao adolescente, alegação denunciada pelo autor, evidencia o descaso com que a situação dos menores desvalidos era tratada antes da vigência do novo ordenamento trazido pela Constituição Federal e pelo ECA. Os objetivos da internação através da privação da liberdade do adolescente infrator são a ressocialização e a reeducação, demonstrando ao adolescente que a limitação do exercício pleno do direito de ir e vir é a consequência da prática de seus atos delituosos. Contudo, na aplicação das medidas socioeducativas deverão ser observadas a capacidade do adolescente de cumpri-las, as circunstâncias e a gravidade da infração. Em nenhuma hipótese pode ser imputado o trabalho forçado e, ainda, aos defi cientes ou doentes deverá ser reservado tratamento individual e especializado, tendo em conta a adequação do local à sua condição - ECA, 1990, artigo112, § 1º, 2º e 3º. (BRASIL. LEI N° 8.069, 2014).

Veremos a seguir os dados coletados na pesquisa, sua análise, bem como as implicações da escolha do método de Grupo Focal como ferramenta estratégica na obtenção desses dados.

COLETA DE DADOS: O GRUPO FOCAL COMO ESTRATÉGIA

A ambiguidade percebida nas respostas colhidas no grupo focal e no diálogo desenvolvido entre a pesquisadora e os socioeducandos na ambiência do CECAL remete à teoria de Pierre Bourdieu, que considera as relações como essenciais ao desenvolvimento da análise sociológica. E para justifi car sua teoria ele utiliza os conceitos de habitus, campos e capital na composição do seu sistema de análise.

Para maior orientação desta análise, o enfoque no aspecto relacional dos internos revela suas experiências, visto que as percepções deles resultam de um conjunto de fatores que compõem o seu dia a dia. Por outro lado, é preciso entender que não se trata de algo preciso, fechado, mas elaborado a partir das opiniões construídas com base na compreensão de mundo, o que, por sua vez, resulta do acúmulo de diferentes capitais.

Os pilares das atividades realizadas pelos Grupos Focais, juntamente aos jovens internos da instituição objeto da presente pesquisa, se conformaram nas temáticas: a) Importância da formação

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profi ssional para o jovem em confl ito com a lei; b) Mudanças pessoais e profi ssionais resultantes da formação; c) Expectativas relacionadas ao mundo do trabalho.

A formação profi ssional tem se mostrado de vital importância para o processo de inserção e/ou reinserção dos jovens pertencentes às camadas sociais menos favorecidas ou consideradas em situação de vulnerabilidade social, no mercado de trabalho. Sua relevância se sustenta na demanda das empresas de grande porte, pressionadas pela globalização, por profi ssionais com mão de obra qualifi cada, na perspectiva de alcançar maior competitividade e possibilidade de permanência no mercado.

A formação profi ssional assume uma importância inusitada pela relevância que adquire o treinamento de mão de obra qualifi cada das grandes empresas e pelo papel central que passa a ter no sentido de abrir novas e melhores oportunidades de trabalho aos desempregados e poucos qualifi cados. (LEITE; NEVES, 1998, p. 10).

Os novos e complexos desafi os apontados remetem à ideia de que na conformação assumida atualmente pela qualifi cação profi ssional são levados em consideração, no momento da capacitação do profi ssional, conhecimentos que envolvem os bancos escolares, os saberes técnicos e o contexto social, para a melhor habilitação do indivíduo ao mercado de trabalho.

Assim, partindo desse pressuposto e estabelecidas as bases deste trabalho investigativo, iniciamos a análise dos dados coletados na pesquisa de campo focando nos aspectos positivos e negativos apontados pelos jovens, quanto à formação profi ssional recebida. É importante refl etir sobre os aspectos positivos citados pelos jovens, principalmente quando eles falam da ocupação como alternativa de mudança de vida, vislumbrando a possibilidade de se engajar no mercado de trabalho formal.

Grupo A

Ocupação, já temos uma ocupação... um meio de vida (Saturno).

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Vida melhor pra ajudar a família da gente, nossas famílias (Netuno).Eu acho que aqui a gente fi ca isolado, mas quando a liberdade chegar os cursos vão ajudar nós (Mercúrio).Tem uns aqui que não estudavam ‘na liberdade’ e que hoje estão aqui estudando. Tem uns aqui que não sabia ler e aprendeu aqui (Mercúrio).A profi ssão aqui dentro nós nunca imaginava aprender, não sabia como era que fazia, tentava mexer no computador e não sabia, agora a gente sabe (Terra).Aqui a gente faz ofi cina de rede, tapete. Ofi cina é uma profi ssão e ainda se ganha dinheiro (Júpiter). Dentro do CECAL todo mundo tem chance igual, faz uma prova, aí, quem passa vai trabalhar na Marisol (Marte).A Marisol dá oportunidade a nós de conhecer a empresa prá quando nós sair daqui poder trabalhar lá (Vênus).A única coisa importante para nós aqui dentro é trabalhar na Marisol e estudar (Sol).Grupo BMuda o olhar, o olhar diferente, como olham para nós e já sai sabendo uma profi ssão (Castanheira).Aprender uma profi ssão, ter dinheiro para mudar a vida da gente, prá gente não passar o dia pensando besteira... sai pra trabalhar... senão passa o dia só pensa besteira (Coqueiro).Nós trabalha, acha bom porque trabalha só pela manhã e lá fora nós estamos no treinamento, curso, pra quando sair daqui já ter garantido um trabalho, carteira assinada, vários cursos, completar os estudos (Jacarandá).Arruma a cabeça, tá trabalhando, acho que não tem como não mudar... Não muda se não quiser (Juazeiro).Lá em casa... Vou ter uma confecção... Trabalhar em casa... (Mogno).Temos carteira assinada. Aí é bom que quando nós sair daqui arruma um emprego, ir trabalhar, cuidar da vida da gente... (Imbuzeiro).As pessoas não vê a gente como perdido... Trabalhador, cidadão, pai de família... (Nogueira).É oportunidade de crescer com a empresa aí... (Cedro).Na Marisol se sente em casa... é porque nós não quer fi car preso... É ruim porque é só quatro horas de curso... (Castanheira).

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Com base no exposto pelos internos, cabe ressaltar a relevância da possibilidade de retorno à educação básica, que alguns deles haviam abandonado. A educação é considerada o mecanismo essencial ao processo de profi ssionalização e de reparação da desigualdade instalada no meio socioeconômico, de modo especial nas populações em situação de risco e menos favorecidas:

É comum atribuir-se à educação o papel de construtora de uma sociedade aberta, capaz de corrigir as desigualdades existentes no âmbito econômico. A educação escolar é encarada como um instrumento efi caz de a população menos aquinhoada economicamente melhorar sua situação na sociedade, diminuindo, assim, as diferenças entre as diversas classes sociais. (SCHNEIDER, 1987, p. 128).

Mesmo diante do que aponta o recorte sobre a importância do diploma escolar para o ingresso no mercado de trabalho, a permanência ou ascensão dos jovens de qualquer classe social, sobremaneira para os oriundos das casas de aplicação de medidas socioeducativas e/ou egressos das camadas sociais que inspiram maiores cuidados, é fato que há grande defasagem entre a teoria e a prática educacional profi ssionalizante equânime:

A sociedade brasileira apresenta graves problemas sociais e, portanto, qualquer análise que busque discutir o alcance da intervenção da educação profi ssional necessita enfocar questões de ordem socioeconômica, político-cultural e educacional, objetivando identifi car as possibilidades desta desenvolver um ensino voltado para a efetiva inserção dos jovens na vida social e no trabalho, principalmente daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social. (ANDRADE, 2006, p. 2).

Desse modo, não é difícil perceber que aqueles jovens considerados pobres ou que se encontram em confl ito com a lei encontram mais difi culdade de inserção ou reinserção no mercado de trabalho e na sociedade, dada a sua precária alfabetização e escolaridade.

Os jovens internos em cumprimento de medidas socioeducativas pontuaram alguns aspectos negativos relacionados à desmotivação

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sentida no começo da qualifi cação. A falta de oportunidade de serem ouvidos, fenômeno que se mostra como lugar comum no cotidiano das dependências das instituições destinadas a tratar de parcela da população jovem em confl ito com a lei fi ca patente nas falas dos entrevistados.

Grupo AQuando a gente fala que tem que mudar alguma coisa, se não tá legal nem sempre a gente é escutado (Sol).Como aqui é um centro educacional, o instrutor mesmo faz com que a pessoa fi que deseducado, fazendo vistoria (Lua).Grupo BTem difi culdade não... (Cedro).Acho cansativo aula, curso e trabalho... mas tem que ter paciência (Castanheira).Fiquei desmotivado no começo, não entendia nada... não queria nada... explicava, explicava, eu tentava e não conseguia. Depois eu consegui, aprendi tudo direitinho... no começo era difícil (Coqueiro).Acho que as pessoas deveriam aprender outras profi ssões... quem não gosta de costura, como não tem outra opção é melhor que fi car parado (Jacarandá).Deveria também dar mais oportunidade, são muito poucas... poucas vagas, são só trinta e apenas três trabalhando na Marisol (Juazeiro).

Com base na visão dos adolescentes autores de ato infracional sujeitos a transições, mudanças e autoafi rmação próprios da faixa etária, podemos inferir que num sistema visivelmente marcado por valores contraditórios, em meio a jogos de poder e força, a condução equilibrada da formação profi ssional efi caz se mostra quase inexequível, ainda mais numa sociedade que se destaca por suas desigualdades e injustiças. Considerando que as instituições colaboram positivamente com a transformação da vida dos internos, não é difícil identifi car as defi ciências para a integração social e funcional dos jovens.

[...] os processos desenvolvidos pelas instituições de privação de liberdade, responsáveis pela aplicação de

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medidas socioeducativas a adolescentes em confl ito com a lei, não podem ser caracterizados precisamente com uma perspectiva de integração social num sentido funcionalista, nem preparam o jovem para a atuação singular num campo de poder. (VOLPI, 2001, p. 129).

A tendência das respostas dos entrevistados, reforçada pelo que assevera Volpi, citação acima, evidencia que as instituições parecem não apresentar capacidade para desenvolver as atividades que lhes são destinadas, em razão da impossibilidade de dotar os seus usuários, de forma contundente, de intencionalidade ou objetivos práticos. Eles enfrentam certo dilema ao destacar aspectos positivos ou negativos de sua estada na instituição, podendo, a depender do estímulo e em razão das percepções ambíguas, pender para um lado ou para o outro.

MUDANÇAS PESSOAIS E PROFISSIONAIS RESULTANTES DA FORMAÇÃO

Quanto às opiniões relativas às mudanças pessoais e profi ssionais dos adolescentes internos no CECAL, unidade de internação socioeducativa, é possível perceber que os jovens concebem essa oportunidade ofertada através da qualifi cação como uma possibilidade de inserção profi ssional na empresa Marisol,10 como também em outras empresas. Assim, as respostas aos questionamentos evidenciam a possibilidade de os usuários do sistema, através da reestruturação do universo relacional educativo, desenvolverem autonomia, solidariedade e competências pessoais e profi ssionais.

A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fi nalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho. (BRASIL. LEI Nº 9.394, 2014).

A afi rmação tem suporte na necessidade de promoção do educando, tendo em conta sua condição como pessoa, como cidadão

10 Empresa parceira do poder público na oferta de formação que disponibilizou seu espaço para a prática dos internos submetidos a medidas socioeducativas.

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e como profi ssional, de modo que o primeiro aspecto está relacionado ao seu pleno desenvolvimento; o segundo, à sua preparação para o exercício da cidadania, e o terceiro diz respeito à sua preparação para o trabalho.

Grupo AExperiência, oportunidade de trabalho que nós temos aqui (Saturno).A gente fora daqui ia atrás de emprego, a gente chegava para pedir emprego o pessoal não queria, dizia que a gente não se enquadrava (Plutão).A gente chega ali na fábrica, nós esquece que estamos presos (Mercúrio).Novas amizades, novas conquistas, a educação recebida (Urano).Quando a gente tá lá na Marisol, a gente é tratado como se fosse uma pessoa normal, como se tivesse em liberdade (Júpiter).A gente muda lá dentro... até a postura da gente são diferentes dos outros (Marte) .Chamava a gente de vagabundo, agora a gente somo cidadão, trabalho suado e sou bem visto pela população (Sol).Grupo BMudou, muita coisa boa. Só vivo agora pensando coisa boa... Lá eu só fi cava pensando besteira... fazer besteira. Quando chega na fábrica, a oportunidade de aprender, de mexer nas máquinas. Tem muita gente correndo atrás de uma oportunidade e não tem... E tem sido muito aproveitado (Mogno).Tenho até família... (Mogno).Penso em construir família, ter casa, meu sonho... planejar tem que planejar (Nogueira).Antes eu era muito perturbado, não sabia nem mexer em máquina. No começo era ruim costurar, hoje cada qual aprendeu a costurar uma parte... um faz, outro faz... (Imbuzeiro).

Os depoimentos dos internos sobre as mudanças pessoais e profissionais revelam, entre outros aspectos, que a experiência da aprendizagem profissional e o convívio na ambiência corporativa

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da empresa Marisol, além de oportunizar uma mudança de visão do mundo e da sociedade, afeta de maneira positiva a forma de encarar a vida e seus desafios. Cria um sentimento de pertença que permite a inserção no mercado de trabalho quando de sua saída da casa de internação.

Por outro lado, o recorrente descumprimento das garantias fundamentais de cidadania e direitos humanos, por vezes pela difi culdade em disponibilizar, de imediato, o acesso ao atendimento médico, por exemplo, sinaliza para a dualidade das relações vividas na ambiência das instituições com momentos prazerosos e estados de tensão.

As unidades educativas, particularmente aquelas cujos trabalhos são dirigidos aos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade, devem ser revitalizadas. Precisam ganhar uma nova vida, novos tipos de relacionamentos, novas oportunidades e condições educativas para oferecer aos educandos. (COSTA, 2006, p. 65).

Por esse entendimento pode-se inferir que deve ser instalado um clima favorável a mudanças pessoais e profi ssionais nas instituições junto aos internos. Esse ambiente deve ser capaz de dar vida ao processo educativo de reinserção social, até porque o público ao qual se destina é composto pelos antes considerados “jovens em situação de risco”, que sentem necessidade e têm direito ao reconhecimento da sociedade.

EXPECTATIVAS RELACIONADAS AO MUNDO DO TRABALHO

Sobre as expectativas relacionadas ao mundo do trabalho, esta investigação junto aos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas aponta para uma realidade na qual os participantes do curso de aprendizagem no CECAL acreditam que terão mais facilidades de conseguir trabalho, mudar sua vida e da sua família. No entanto, a necessidade de decidir sobre quais caminhos irão trilhar quando da sua saída das casas de internação coloca os jovens diante de um grande desafi o, ou mesmo dilema, considerando-se a pressão e as condições impostas pela sociedade para sua reinserção.

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A continuidade dos estudos, as expectativas de aceitação e o progresso no meio corporativo quase sempre se revelam maiores que sua capacidade de compreensão e discernimento. A adolescência é uma fase de grandes definições, como a escolha do que fazer, como e onde, o que parece ser um dos ajustamentos mais importantes desse período da vida humana que se inicia na puberdade e se caracteriza por mudanças corporais e psicológicas, essenciais à construção da identidade.

A adolescência é um período bastante valorizado, principalmente por seus aspectos relacionados à vivacidade, contestação, descompromisso. No entanto, esta fase é também um período de grandes sofrimentos, entre eles, o resultante da busca por um lugar na sociedade. Este lugar relaciona-se principalmente à conquista de um espaço dentro do mercado de trabalho. (AUDI, 2006, p. 3).

Pode-se inferir que as conquistas dos jovens são alicerçadas nas experiências presentes e passadas no meio em que vivem, de modo que a decisão sobre quais caminhos tomar nas esferas do estudo e do trabalho estão associadas às antecipações e previsões a respeito desses papéis futuros. Contudo, a experiência nas casas de medidas socioeducativas, onde as condições subjetivas e objetivas essenciais ao jovem para o seu desenvolvimento se mostram insufi cientes à sua emancipação, não arrefece as expectativas dos internos quanto ao seu retorno ao meio social e sua entrada no mundo do trabalho, como demonstram os depoimentos colhidos e abaixo relacionados:

Grupo ADar um novo futuro pros nossos fi lhos, pra eles não passar pelo que nós estamos passando (Saturno).Pretendo trabalhar mesmo, pois fi ca mais fácil quando nós sair da fábrica, ganhar experiência, aí, a gente pode ter carteira assinada (Netuno).A gente aqui tá com carteira assinada e todos os documentos tirado, tudo legalizado (Vênus).Vai ser mais fácil depois desse curso porque vão saber que nós já trabalhemos, aí vão querer empregar a gente (Plutão).

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Quero ser costureiro da Marisol e talvez chegue na função de mestre, né? Vou viver minha vida numa boa (Mercúrio).Só costureiro pra mim tá bom, agora se eu tiver uma oportunidade de subir eu quero (Urano).Eu quero abrir meu próprio negócio, devagarzinho, começa com uma máquina e outras máquinas (Terra).

Em consonância com os diplomas legais relativos à criança e ao adolescente, os jovens que cumprem medidas socioeducativas devem ser orientados pelo viés do trabalho como princípio educativo, de modo a cumprir as exigências pedagógicas relacionadas ao seu desenvolvimento pessoal, social e profi ssional. O foco deve estar na sua peculiaridade - pessoa humana em processo de desenvolvimento, sujeito de direitos amplos garantidos pela Constituição e pelas leis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa revelou que a parceria fi rmada entre a STDS/CECAL/MARISOL tem se constituído um espaço de inserção profi ssional dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em regime fechado. Estes conseguiram colocar em prática os ensinamentos recebidos na própria unidade. Mais signifi cativa é a cidadania que essa parceria provoca, posto que o direito ao trabalho é encarado como um dos mais importantes no rol dos direitos humanos, sobretudo para aqueles impossibilitados de buscar mercado de trabalho.

Essa iniciativa, como mostram os depoimentos citados, apresenta dados signifi cativos que precisam ser ampliados para oportunizar a todos os jovens em privação de liberdade ações concretas, haja vista que hoje o número de vagas ofertadas ainda é muito pequeno.

É fundamental que o Estado reforce as políticas públicas voltadas para a juventude, vislumbrando um atendimento amplo e efi caz, com projetos específi cos, voltados especialmente para os jovens que cumprem medidas socioeducativas, uma vez que estes são tratados de forma diferente por terem cometido ato infracional e precisarem recuperar sua cidadania, sua autoestima. Na medida em que os projetos são ofertados a esse público ampliam-se suas

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possibilidades de resgate e fortalecimento da capacidade de buscar um lugar no mercado de trabalho.

Identifi camos como maior difi culdade a falta de conclusão dos cursos e do contrato de aprendizagem dos jovens engajados no projeto, visto que a permanência deles é defi nida pela justiça, e a interrupção ocorre devido ao término da medida. Pelas falas dos entrevistados compreende-se que o fato de eles terem essa oportunidade de trabalho lhes permite vislumbrar um futuro melhor, pois acreditam que os conhecimentos teóricos e práticos certamente farão a diferença no momento da saída do CECAL. Eles poderão ser absorvidos pela própria empresa MARISOL, parceira do poder público na oferta de formação, e podem, também, ter a comprovação dessa experiência para facilitar sua inserção no mercado de trabalho formal.

Este estudo revelou que apesar das inúmeras difi culdades ainda encontradas dentro do CECAL, com questões de ordem estrutural, entre tantas outras, a experiência desenvolvida pela empresa Marisol consegue despertar nesses jovens em privação de liberdade uma dose de ânimo, de esperança e de sonhos de um futuro melhor. Não foi fácil passar da inquietação que motivou esta pesquisa para a ação de produzir conhecimento sobre o objeto de estudo.

Contudo, foi essa inquietude que criou todas as alternativas que encontramos durante esse percurso. Os caminhos percorridos não foram simples, mas o aprendizado adquirido nessa trajetória recompensa todas as difi culdades. Esperamos que este estudo desperte o interesse de outros pesquisadores pela temática, pois certamente há muito que desvendar e contribuir com as políticas públicas voltadas para a educação profi ssional de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas com privação de liberdade.

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224

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226

CAPÍTULO 9POLÍTICAS DE INCLUSÃO PRODUTIVA E

QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL: A EXECUÇÃO DO PRONATEC BRASIL SEM MISÉRIA E

O SEGURO-DESEMPREGO NA BAHIA, NO CEARÁ E EM SERGIPE

Franco de Matos1

Danilo Fernandes Lima da Silva2

APRESENTAÇÃO

As políticas de qualifi cação profi ssional, no Brasil, ganharam maior projeção com a estruturação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). A partir da vertente do programa denominada Pronatec Brasil Sem Miséria foram criados instrumentos por meio dos quais o governo federal permite viabilizar a inclusão produtiva dos benefi ciários de seus programas sociais.

1 Economista formado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA)/Universidade de São Paulo (USP), com mestrado e doutorado em Integração da América Latina pelo PROLAM-USP. Foi Coordenador Geral de Emprego e Renda do Ministério do Trabalho e Emprego, responsável pelo Sistema Nacional de Emprego (SINE) e pelos programas de crédito e geração de emprego e renda vinculados ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Atualmente é professor substituto do curso de Gestão de Política Pública na Universidade de Brasília (UnB). Tem atuação em pesquisas e consultorias na área de políticas públicas enquanto consultor sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

2 Consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento desde 2010, período no qual trabalhou no México, Estados Unidos e Brasil. Possui mestrado em Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po Paris), e contribuiu para o desenho, implantação e avaliação de programas relacionados a intermediação de mão de obra, capacitação profi ssional e educação em diferentes países da América Latina.

Franco de Matos1

Danilo Fernandes Lima da Silva2

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Outra modalidade do Pronatec, voltada ao público de benefi ciários do Seguro-Desemprego, também vem cumprindo papel importante no sentido de promover o acesso a cursos de qualifi cação profi ssional de trabalhadores oriundos do sistema público de emprego, que igualmente concentra trabalhadores com maior difi culdade de ingresso no mercado de trabalho devido à baixa escolarização e capacitação defi ciente.

O presente artigo procura discutir como vêm sendo estruturadas essas duas vertentes do Pronatec em unidades federativas selecionadas do Nordeste brasileiro. A pesquisa original que permitiu o levantamento dessas informações foi proporcionada pelo “Programa de Apoio à Inserção de Grupos Vulneráveis no Mercado de Trabalho do Nordeste do Brasil”, uma iniciativa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com o objetivo de proporcionar subsídios aos governos estaduais da Bahia, do Ceará e de Sergipe, para o aperfeiçoamento de políticas de inclusão produtiva e qualifi cação profi ssional, intermediação de mão de obra e educação de jovens e adultos, voltadas a grupos vulneráveis da população.

Após esta introdução, a segunda seção deste artigo tratará de aspectos conceituais que justifi cam a implementação de políticas de qualifi cação profi ssional e inclusão produtiva, assim como apresentará o estado da arte do desenvolvimento dessas políticas no Brasil. Na terceira seção serão delineados os planos e as políticas de inclusão produtiva e qualifi cação profi ssional, na esfera federal, sendo que na seção seguinte serão apresentados os principais resultados de execução do Pronatec enquanto política de qualifi cação profi ssional e inclusão produtiva, por meio de duas de suas vertentes: o Pronatec Brasil sem Miséria e o Seguro-Desemprego. Na quinta seção será tratado como este programa vem sendo estruturado em três unidades federativas do Nordeste brasileiro: Bahia, Ceará e Sergipe, e, por fi m, são expostas as considerações fi nais.

POLÍTICAS DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E INCLUSÃO PRODUTIVA

Apesar de serem muito variados os conceitos de qualifi cação profi ssional, no Brasil essa expressão é usualmente utilizada para

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designar a preparação inicial e continuada do trabalhador para o mercado de trabalho.

Também é levado em conta que, conforme preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com base na conceituação que construiu para trabalho decente, a educação e a qualifi cação profi ssional devem ser entendidas como elementos fundamentais para o exercício do trabalho com qualidade, no sentido de estarem associadas à ampliação da capacidade produtiva dos indivíduos e à expansão das potencialidades das pessoas. Deve-se levar em consideração também que o crescimento econômico de longo prazo, de um país ou região, está diretamente relacionado ao nível educacional da população; portanto, a distribuição dos benefícios desse crescimento depende, em grande parte, da disseminação da educação. (ALBUQUERQUE, 2006).

Com esta compreensão, organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e outros, atribuem como papel do Estado, assim como de seus entes federados, não apenas a realização de estratégias para atrair investimentos econômicos, mas também criar mecanismos que fomentem a geração de emprego e a inserção socioprodutiva da população, tanto por meio de instrumentos nas áreas de educação e preparação técnica para o trabalho quanto por meio de programas de qualifi cação profi ssional.

Assim, o acesso a postos de trabalho de melhor qualidade se dá pelo aumento da empregabilidade do trabalhador, ou seja, um trabalhador egresso de um processo de qualifi cação profi ssional tende a conseguir uma ocupação melhor do que teria caso não tivesse sido qualifi cado. E a empregabilidade deve ser apreendida não apenas como capacidade de obter um emprego, mas principalmente de o trabalhador se manter empregável em um mercado de trabalho em constante mutação. (DELUIZ, 2000).

Cacciamali (2006) também destaca que a aquisição de capital humano deve ser entendida como um dos elementos-chave para o aumento de produtividade de uma economia, proporcionando a geração de empregos e ocupações de qualidade. Para Cacciamali (2006),

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principalmente a partir dos anos 1990, programas e ações do poder público com vistas a ampliar as oportunidades de acesso à educação e à qualifi cação profi ssional passaram a integrar de forma sistemática a política pública no Brasil, tanto para superar o retardamento da escolaridade da população quanto para preparar a mão de obra para postos de trabalho derivados das novas tecnologias, ou ainda, para diminuir o elevado grau de desigualdade na distribuição da renda, característica histórica da sociedade brasileira.

Compõem a agenda de instrumentos públicos de intervenção, para Cacciamali (2006): i) subsidiar a educação e a capacitação profi ssional dos membros das famílias mais pobres e dos trabalhadores em situação de desvantagem no mercado de trabalho; ii) subsidiar treinamentos realizados por meio da combinação de capacitação teórica em escolas e operacional em fi rmas; iii) impor penalidades fi scais às fi rmas que não propiciam programas de treinamento; iv) promover consórcios de micro e pequenas fi rmas alcançando escala para a realização de treinamentos, entre outras.

Contudo, como aponta Booth e Snower (1996), há pesquisas que revelam certa concentração dos investimentos em capacitação de mão de obra nas empresas maiores, especialmente entre os trabalhadores masculinos e de maior escolaridade. E segundo Almeida e Carneiro (2006), os trabalhadores que têm maior probabilidade de receber treinamento possuem, relativamente, mais anos de escolaridade, predominantemente são do sexo masculino, e recentemente contratados. Desta forma, justifi ca-se a intervenção pública com vistas a garantir qualifi cação profi ssional para trabalhadores de baixa escolaridade e grupos específi cos, como mulheres, jovens e afrodescendentes. Neste ponto, cabem algumas refl exões acerca da delimitação do público dessas políticas, denominado nesse projeto de grupos vulneráveis da população.

Para Garcia (2006),

o termo vulnerabilidade é o que descreveu melhor a realidade dos mercados de trabalho e da sociedade dos países latino americanos, conseguindo apreender o dinamismo do processo de desigualdade de forma mais ampla.

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E segundo documento preparado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) para o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), podem ser considerados vulneráveis: aqueles indivíduos que estão privados de ativos físicos (os quais envolvem terra, animais, máquinas, moradia, bens duráveis relevantes para a reprodução social), ativos pessoais (o trabalho, como ativo principal, saúde, educação, qualifi cação profi ssional),e ativos sociais (redes de reciprocidade, confi ança, contatos e acesso à informação), impossibilitando que essas pessoas possam aproveitar as oportunidades de inserção ocupacional, socialmente reconhecidas como minimamente aceitáveis e/ou adequadas, geradas pelos mecanismos de mercado, pelo Estado ou pela sociedade. (DIEESE, 2007).

Além disso, também para Garcia (2006), os grupos sociais em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho são aqueles que apresentam: i) baixo grau de instrução formal; ii) insufi ciente ou inadequada formação e qualifi cação profi ssional; iii) ausência ou reduzida experiência anterior de trabalho, como os jovens; iv) portadores de necessidades especiais; v) redução da capacidade física, como grupos de idosos ou com doenças crônicas e; vi) discriminação em função do gênero, da cor da pele, ou da etnia.

Castro et al. (2010) entendem que as discussões sobre capacitação, qualifi cação profi ssional e inserção produtiva que aconteçam no meio acadêmico ou nos processos de gestão pública devem observar a premissa da vulnerabilidade social em que se encontra grande parcela da população no Brasil. Destacam que a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) estabelece que projetos e programas de capacitação e inserção produtiva são formas de enfrentamento da pobreza e, portanto, justifi cam o investimento econômico e social voltado para os grupos populares. Esse normativo legal também estabelece que cabe ao poder público garantir recursos fi nanceiros e técnicos em apoio a iniciativas que proporcionem a esses grupos mais vulneráveis os meios de superação da pobreza em que se encontram, e permitam fi nanciar a transição deles de situações de vulnerabilidade e risco para posições com condições mínimas de sobrevivência.

231

Segundo Draibe (2006), políticas de combate à pobreza requerem uma compreensão multidimensional da pobreza, pois esta situação não está relacionada apenas à escassez de renda, mas se relaciona também à falta de acesso a serviços de saúde, educação, qualifi cação profi ssional, enfi m, às políticas públicas em geral, além de estar associada a condições precárias de moradia e de trabalho. A partir deste entendimento deve-se considerar que políticas de inclusão produtiva são, por natureza, intersetoriais. Portanto, para alcançar resultados efetivos é necessário articular várias políticas setoriais e de desenvolvimento regional.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE), a temática da inclusão produtiva tem adquirido espaço na agenda pública, principalmente na última década. A partir da pesquisa “Perfi l dos Estados Brasileiros - 2012”, desenvolvida por este Instituto, pode ser verifi cado que as três esferas de governo desenvolvem ampla e variada gama de políticas com vistas à promoção da inserção qualifi cada dos trabalhadores no mundo do trabalho, benefi ciando segmentos mais vulneráveis da população. Essas iniciativas permitem alargar a intervenção social do Estado e complementar as políticas de proteção social, como a assistência social e as políticas de garantia de renda de cidadania, e também têm contribuído para potencializar as ações de enfrentamento da pobreza. (IBGE, 2013).

Conforme a conceituação de Castro et al. (2010), as ações de inclusão produtiva compreendem um conjunto heterogêneo de políticas que se destinam à aquisição de habilidades e conhecimentos necessários para a inserção no mundo do trabalho. A principal referência é a qualifi cação profi ssional, à qual se associam ações de elevação da escolaridade e assistência técnico-gerencial, entre outras. Também engloba políticas com o objetivo de viabilizar o exercício dessas habilidades pela promoção do acesso ao mercado de trabalho, seja na condição de trabalhador assalariado, seja como trabalhador autônomo, por conta própria, como empreendedor individual, ou ainda por meio do trabalho associado (em cooperativas). São exemplos de políticas de inclusão produtiva, além da qualifi cação profi ssional, a intermediação pública de mão de obra, o microcrédito produtivo e orientado e o fomento ao associativismo e ao cooperativismo.

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O conjunto de políticas de inclusão produtiva busca promover, assim, tanto o acesso ao mundo do trabalho quanto o apoio à sustentabilidade desse acesso, por meio de ações que conduzam à melhoria das condições de trabalho e à elevação da renda auferida. (IBGE, 2013). Além disso, as políticas de inclusão produtiva são desenvolvidas no meio urbano e no rural. Destacam-se, no meio rural, ações de fortalecimento da agricultura familiar, como o fi nanciamento agrícola, a extensão rural e o Programa de Aquisição de Alimentos.

No Manual do Censo do Sistema Único de Assistência Social, a inclusão produtiva pode ser defi nida como

o estímulo ao desenvolvimento de atividades econômicas de pequenos negócios individuais ou coletivos (associativos ou cooperados) que permitam a emancipação econômica autossustentada pela geração de trabalho e renda, ou a inserção no mercado de trabalho formal. Inclui desde o apoio à elaboração de soluções empreendedoras microempresariais, até a capacitação e qualifi cação profi ssional em atividades já existentes no local. (BRASIL, 2013a).

Também deve ser destacado que o apoio à inclusão produtiva está contemplado nos Planos Plurianuais (PPA) do governo federal, em ações socioassistenciais complementares às políticas públicas setoriais de formação profi ssional, capacitação e geração de renda. E, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), um dos desafi os do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é a promoção da inclusão produtiva de famílias que se encontram em situação de risco ou vulnerabilidade social. (BRASIL, 2013). Além disso, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o conjunto de projetos de inclusão produtiva que ele desenvolve busca fi rmar as condições para a geração de renda e oportunidades de trabalho para parcela de inscritos no Cadastro Único do governo federal. (BRASIL, 2013). Assim, as políticas de inclusão produtiva devem ser entendidas como complementares às demais políticas de emprego e assistência social.

Resultados da pesquisa do IBGE “Informações Básicas Estaduais - 2012”, que investigou se os governos estaduais executam iniciativas

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relacionadas à inclusão produtiva, aponta que entre as unidades da federação, 26 declararam desenvolver ações, programas ou projetos de inclusão produtiva, o que revela a apropriação da temática por parte das administrações estaduais. No que se refere a ações de qualifi cação profi ssional, a totalidade dos estados afi rmou executá-las. Contudo, nessa pesquisa do IBGE não estão disponíveis informações relacionadas à quantidade de vagas ofertadas, aos tipos de cursos ofertados ou em relação ao perfi l dos benefi ciários.

O MDS também investiga a estruturação de políticas de inclusão produtiva nos entes federados a partir do Censo SUAS, que tem como objetivo identifi car as condições de infraestrutura e funcionamento de equipamentos públicos da assistência social, assim como avaliar os recursos humanos, os serviços e os programas em curso em cada uma das unidades investigadas3. Segundo resultados obtidos por este Censo, em relação a ações, programas ou projetos de qualifi cação ou capacitação profi ssional desenvolvidos pelos municípios verifi ca-se que, em 2011, 4.366 municípios (80,6%) desenvolveram iniciativas de qualifi cação ou capacitação profi ssional. Em 2012 esse conjunto foi representado por 4.308 municípios (81,1%).

Por fi m, segundo dados também extraídos do Censo SUAS, correspondentes a 2012, os cursos de qualifi cação profi ssional oferecidos nos municípios brasileiros envolveram quase 1 milhão de vagas, em 2011, com sensível redução, em 2012, para 776 mil vagas. Contudo, segundo análise do MDS, aparentemente houve uma qualifi cação da oferta em direção a cursos com maior aderência aos mercados de trabalho regionais. (BRASIL, 2013).

POLÍTICA DE INCLUSÃO PRODUTIVA E QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL, NA ESFERA FEDERAL

No Brasil, a montagem de uma política de qualifi cação profi ssional voltada a grupos vulneráveis da população se dá a partir da estruturação do Plano Brasil Sem Miséria, conjugada com adaptações feitas na política de educação profi ssional, buscando-se

3 No Censo SUAS 2011 o questionário foi respondido por 5.416 municípios. A edição de 2012 do Censo SUAS contabilizou 5.314 municípios. (BRASIL, 2013a).

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principalmente a ampliação da oferta de qualifi cação profi ssional para esse público.

O Plano Brasil Sem Miséria foi lançado em 2011, pelo governo federal, sendo coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome4. Tem como objetivo criar condições para a superação da condição da extrema pobreza, definida como a população que apresenta renda familiar per capita mensal igual ou inferior a R$ 70,00 reais. Este Plano também prevê ações com vistas a criar oportunidades que proporcionem elevação da renda e o acesso a serviços públicos, beneficiando os segmentos mais vulneráveis da população.

Assim, o plano Brasil Sem Miséria organiza-se em três eixos de atuação: i) garantia de renda; ii) acesso aos serviços públicos; e iii) inclusão produtiva. Um dos avanços que podem ser destacados neste Plano, em relação à política de assistência e inclusão social do País, é a estruturação de um eixo voltado à inclusão produtiva, no qual são previstas diversas linhas de ação, dentre as quais:

• Geração de emprego: por meio de ações de qualifi cação profi ssional, estruturadas em torno do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), em sua vertente Pronatec Brasil Sem Miséria; intermediação de mão de obra, por meio de formas de integração com o Sistema Nacional de Emprego (SINE) e; parcerias com setor privado;

• Apoio ao Microempreendedorismo Individual (MEI): por meio de formalização e assistência técnica e gerencial;

• Acesso ao microcrédito produtivo orientado: por meio do Programa Crescer; e

• Iniciativas de economia popular e solidária: por meio de editais e chamadas públicas de projetos dessa natureza.

4 A Secretaria Extraordinária de Superação da Extrema Pobreza (SESEP), órgão vinculado ao MDS, é responsável pela coordenação das ações e gestão do Plano Brasil Sem Miséria, e tem como missão articular e mobilizar os esforços do governo federal, dos estados e dos municípios para a superação da extrema pobreza.

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Cabe destacar que nem todas essas linhas de ação foram efetivamente implantadas. Se por um lado as ações de qualifi cação profi ssional, por exemplo, realizadas por meio do Pronatec Brasil Sem Miséria foram priorizadas, por outro lado não é possível afi rmar que o Plano Brasil Sem Miséria tenha conseguido avançar no fortalecimento da articulação das ações de assistência social com as de intermediação de mão de obra (realizadas pelo SINE). Da mesma forma, o MDS não conta com mecanismos efi cazes para orientar os benefi ciários de seus programas para o programa MEI.

A política de qualifi cação profi ssional se estrutura fundamentalmente a partir de diretrizes emanadas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e do Plano Nacional de Educação, muito embora esses marcos institucionais estejam desenhados para tratar de forma precípua a educação profi ssional e tecnológica, e não a qualifi cação profi ssional de curta duração, voltada ao mundo do trabalho. Esse plano prevê estratégias específi cas para a inclusão de minorias, como alunos com defi ciência, indígenas, quilombolas, estudantes do campo e alunos em regime de liberdade assistida. O Plano Plurianual (PPA) do governo federal, no período de 2012-2015, também defi ne que as ações de educação profi ssional devem contemplar grupos mais vulneráveis da população5, coadunando com diretrizes também estabelecidas pelo governo federal de implementar políticas de inclusão social por meio de democratização do acesso, garantia da permanência, valorização da diversidade, equidade e inclusão. Fundamentalmente, as ações previstas nesse marco legal estão sob a coordenação do Ministério da Educação (MEC).

Analisando como se encontra estruturada a agenda federal das políticas de qualifi cação profi ssional voltadas a grupos vulneráveis no Brasil, pode-se destacar que:

5 O Plano Plurianual (PPA) do governo federal, para o período de 2012-2015, defi ne no programa temático: Educação Profi ssional e Tecnológica, o seguinte objetivo: “Expandir, interiorizar, democratizar e qualifi car a oferta de cursos de educação profi ssional e tecnológica, considerando os arranjos produtivos, sociais, culturais, locais e regionais, a necessidade de ampliação das oportunidades educacionais dos trabalhadores e os interesses e necessidades das populações do campo, indígenas, quilombolas, afrodescendentes, das mulheres de baixa renda e das pessoas com defi ciência”. (BRASIL, 2014).

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• As referidas ações de qualifi cação profi ssional são explicitadas apenas no Plano Brasil Sem Miséria, no âmbito da vertente relacionada à inclusão prevista neste Plano, sendo que uma parceria entre o MDS e MEC proporcionou a criação de um programa específi co para atender a esse público (Pronatec Brasil Sem Miséria);

• Os principais entes institucionais responsáveis pela estruturação da agenda dessa política são o MDS e MEC, sendo apenas subsidiária a participação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), também responsável por ações de qualifi cação profi ssional, mas que não se encontram devidamente articuladas aos planos de assistência social e inclusão produtiva, no âmbito do desenvolvimento social, nem da educação profi ssional, no âmbito da educação.

Finalmente, cabe destacar a política de aprendizagem profi ssional, que constitui eixo fundamental da política de promoção do ingresso de adolescentes e jovens ao mercado de trabalho, e foi instituída pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. Essa política busca proporcionar aos jovens entre 14 e 24 anos, e às pessoas com defi ciência sem limite de idade, uma primeira experiência de trabalho, a qual é formalizada por meio de contrato de trabalho de natureza especial, por prazo determinado não superior a dois anos, e serve como conexão entre sua formação educacional e o mundo do trabalho. A legislação da aprendizagem estabelece que médias e grandes empresas devem contratar um número de aprendizes correspondentes a, no mínimo, 5%, e, no máximo, 15% do contingente de trabalhadores contratados, excetuando-se da base de cálculo as funções que exijam nível superior, técnico ou cargos de gerência. As empresas, por imposição da legislação, também fi cam obrigadas a efetuar a matrícula desses jovens em cursos de formação técnico-profi ssional, ao longo de todo o período em que vigore o contrato de trabalho.

Conforme destacado no PPA 2012-2015, cabe ao MTE, por meio da auditoria trabalhista, fi scalizar o cumprimento da cota reservada à aprendizagem nas empresas, assim como a regularidade das condições de trabalho dos aprendizes. Além disso, por intermédio

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deste Ministério, a Secretaria de Políticas Públicas de Emprego (SPPE) coordena o Fórum Nacional da Aprendizagem Profi ssional, o qual promove o diálogo entre órgãos, entidades formadoras e de representação, sociedade civil organizada e outras esferas do poder público e privado, mobilizando esses atores para promover os direitos de adolescentes e jovens à profi ssionalização e ao trabalho decente.

EXECUÇÃO DE MODALIDADES SELECIONADAS DO PRONATEC, EM ÂMBITO FEDERAL

PRONATEC BRASIL SEM MISÉRIA

A execução do Pronatec Brasil Sem Miséria prevê nove etapas operacionais (BRASIL, 2013): i) habilitação das prefeituras, a partir de seu compromisso de adesão; ii) negociação e pactuação, entre o poder público e as entidades ofertantes dos cursos que serão realizados; iii) mobilização dos benefi ciários; iv) pré-matrícula; v) matrícula; vi) aula inaugural; vii) acompanhamento dos benefi ciários; viii) articulação com políticas públicas de trabalho e emprego; e ix) atividade de formatura. Algumas dessas etapas são consideradas essenciais para a efetivação do programa, cabendo destacar:

a) Negociação e pactuação de vagas e cursos: nessa fase o órgão municipal responsável pela gestão do Pronatec Brasil Sem Miséria deve avaliar a demanda do mercado de trabalho local e o perfi l socioeconômico da população inscrita no Cadastro Único6. Com base nessas informações, as prefeituras formulam sua proposta de demanda e passam a negociar com as entidades ofertantes aqueles cursos que sejam mais adequados ao mercado de trabalho local e às especifi cidades das pessoas inscritas no Cadastro Único. O MDS recomenda que os municípios devem somente negociar cursos adequados ao público-

6 Para tanto, o programa recomenda que sejam consultadas as secretarias estaduais e municipais de planejamento e desenvolvimento econômico, as universidades e outros órgãos de pesquisa, a secretaria municipal de educação, a secretaria municipal de trabalho e os coordenadores estaduais e/ou municipais do SINE. A participação do empresariado, dos sindicatos e das comissões municipais de emprego (onde houver) também é incentivada. (BRASIL, 2013).

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alvo e à vocação econômica local7. As negociações entre prefeituras e ofertantes e as pactuações geradas são realizadas ao longo do ano, podendo passar por ajustes e devendo ter registro em ata.

b) Mobilização dos benefi ciários: a mobilização dos benefi ciários do programa deve ser efetuada pela rede de assistência social, incluindo os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), e as equipes do ACESSUAS Trabalho8. Estes órgãos devem ser informados sobre a oferta de cursos e vagas do Pronatec Brasil Sem Miséria, estando preparados para prestar esclarecimentos aos interessados9. O MDS ressalta que a consulta prévia ao Cadastro Único é condição necessária para a identifi cação de potenciais benefi ciários e a defi nição da estratégia para alcançá-los.

c) Acompanhamento dos benefi ciários: cabe ao gestor municipal do Pronatec Brasil Sem Miséria e à equipe do ACESSUAS Trabalho, em diálogo com as entidades ofertantes dos cursos, acompanhar os benefi ciários que demandem apoio socioassistencial para permanecer nos cursos relacionados a difi culdades socioeconômicas ou pedagógicas.

d) Articulação com políticas de emprego: a articulação do Pronatec Brasil Sem Miséria com a rede SINE é essencial para garantir a inserção dos benefi ciários do programa no mercado de trabalho. No entanto, é

7 O MDS reconhece que a oferta imediata dos cursos previstos no Guia Pronatec depende da capacidade instalada de cada entidade ofertante. Em casos de inexistência de oferta de cursos, recomenda que a prefeitura defi na com a entidade ofertante um planejamento que viabilize a oferta desses cursos por meio de unidades móveis, ou disponibilizando espaços físicos da prefeitura. (BRASIL, 2013).

8 O MDS ressalta que a fase de mobilização deve ser considerada uma atividade contínua, devendo ser planejada pelo gestor municipal do programa em observância à oferta de turmas para o município e em parceria com a rede de assistência social, entre outros parceiros. Para cada curso, também recomenda mobilizar número de pessoas duas vezes superior ao número de vagas disponíveis, para garantir a formação das turmas. (BRASIL, 2013).

9 O MDS também recomenda às prefeituras a realização de eventos periódicos de informação profi ssional sobre os cursos disponíveis, em conjunto com as entidades ofertantes dos cursos. E que esses eventos contem com a participação de empregadores, trabalhadores e técnicos do SINE. (BRASIL, 2013).

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enfatizado pelo MDS que o gestor municipal deve ter em perspectiva que o emprego formal não é a única forma de a pessoa matriculada em cursos de qualifi cação do Pronatec Brasil Sem Miséria se inserir no mercado de trabalho. Os benefi ciários devem ser orientados sobre outras formas de inserção laboral, devendo ser apresentados a programas governamentais de apoio a microempreendedores individuais ou de economia solidária. Neste sentido, foi estruturada, em 2013, a vertente do programa denominada Pronatec Empreendedor, em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), sendo que esta entidade também presta serviços de orientação aos empreendedores informais com vistas a torná-los formalizados como Microempreendedores Individuais (MEI).

Assim, pode-se considerar que na execução do Pronatec Brasil Sem Miséria o poder público municipal exerce um papel proeminente. São interlocutores dessa vertente do programa, no âmbito das prefeituras municipais, as secretarias municipais de assistência social, que se responsabilizam pela: i) mobilização dos benefi ciários; ii) pré-matrícula e; iii) acompanhamento dos alunos.

Por sua vez, a oferta de cursos de qualificação profissional no âmbito do Pronatec Brasil Sem Miséria se dá por meio de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e escolas técnicas vinculadas a universidades federais, que constituem a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica10; pelas redes estaduais e distrital; e pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem que constituem o Sistema S, principalmente o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).

10 A Rede Federal de Educação Profi ssional, Científi ca e Tecnológica conta com 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia presentes em todos os estados do país. A mesma rede oferece qualifi cação profi ssional em diferentes níveis e modalidades, desde cursos de ensino médio integrado à educação profi ssional até cursos superiores de tecnologia, licenciaturas e pós-graduação. Segundo informações do MEC, no fi nal de 2012, contemplava 354 unidades em todo o território nacional, benefi ciando cerca de 500 mil estudantes. Compõe a Rede Federal de Educação Profi ssional, na Bahia: Instituto Federal Baiano e o Instituto Federal da Bahia; no Ceará: Instituto Federal do Ceará; e em Sergipe: Instituto Federal de Sergipe.

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Conforme previsto no desenho do programa, os cursos devem ser defi nidos pelos municípios diretamente com as unidades ofertantes. Assim, o órgão municipal gestor do Pronatec Brasil Sem Miséria é responsável pela negociação e pactuação de cursos e vagas junto às entidades ofertantes e pela estratégia de mobilização dos benefi ciários, assim como pela articulação com os governos federal, estadual e demais órgãos municipais.

A participação do município não envolve a transferência de recursos fi nanceiros, sendo que estes recursos são transferidos diretamente para as entidades ofertantes dos cursos. Assim, o pagamento às entidades ofertantes é de responsabilidade do MEC, que repassa os valores diretamente a essas entidades, sem a necessidade de contrapartida municipal ou da realização de convênios com as prefeituras. Estas últimas, por sua vez, não podem ser solicitadas a custear quaisquer despesas relacionadas, por exemplo, à contratação, alimentação ou hospedagem de instrutores.

As informações de gestão do Pronatec, assim como sua vertente Pronatec Brasil Sem Miséria, são geridas por um sistema informatizado operado pelo MEC, denominado Sistema Nacional de Informações da Educação Profi ssional e Tecnológica (SISTEC-MEC).

O Plano Brasil Sem Miséria, no âmbito dessa vertente do Pronatec, tem como meta capacitar um milhão de pessoas inscritas no Cadastro Único até o ano de 2014. Segundo informações institucionais levantadas junto ao MDS, o programa apresentou os seguintes resultados, desde seu estabelecimento: 266,7 mil matrículas realizadas, em 2012; 420 mil matrículas realizadas, até abril de 2013; 433 tipos de cursos contemplados. O MDS também estima que, dentre o total de matrículas do programa em 2012, 65,8% foram efetuadas por mulheres.

Segundo balanço da Presidência da República, até julho de 2013, cerca de 571,5 mil pessoas de baixa renda estavam matriculadas em 481 cursos técnicos e de educação profi ssional, no âmbito do Pronatec, em 1.690 municípios. Ainda segundo o mesmo balanço, até março de 2013, 616,3 mil inscritos no Cadastro Único se formalizaram como Microempreendedores Individuais.

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PRONATEC SEGURO-DESEMPREGO

A execução do Pronatec Seguro-Desemprego se dá a partir da articulação entre secretarias estaduais e municipais de trabalho que operam o SINE, e as entidades ofertantes de cursos, no âmbito do Pronatec.

O Fórum Nacional de Secretarias do Trabalho (FONSET)11 instituiu, em 2013, um grupo de trabalho tendo como propósito realizar um diagnóstico do desempenho da integração entre as ações de qualifi cação profi ssional, no âmbito do Pronatec, e as ações do sistema público de emprego executadas pelo SINE. Segundo informações obtidas junto ao MEC, e sistematizadas especialmente para o FONSET, o Pronatec Seguro-Desemprego realizou 47.880 matrículas, em 2012, correspondentes a apenas 35,3% das vagas pactuadas. No Nordeste, foram 10.207 matrículas, com aproveitamento das vagas ainda mais insatisfatório, de apenas 30,4% das vagas pactuadas. Em relação a 2013, foram pactuadas 212.587 vagas com o MTE, no âmbito desta vertente do programa, sendo que até maio de 2013, apenas 12,7% das vagas tinham matrículas efetuadas.

A seguir, são apresentadas as informações sistematizadas pelo MEC para o FONSET acerca dos resultados do Pronatec Seguro-Desemprego, por unidade da federação, sendo destacados os casos de Bahia, Ceará e Sergipe:

11 O FONSET, criado no fi nal dos anos 1980, é constituído como uma sociedade civil, formada por titulares das secretarias estaduais de trabalho e a Secretaria de Trabalho do Distrito Federal. Trata-se de um espaço de diálogo e troca de experiência entre os estados e o governo federal, e tem por objetivo defi nir e fi rmar posições em torno de problemas relacionados ao mundo do trabalho, como fortalecer a participação dos estados na defi nição de políticas públicas. Atua junto ao MTE no aperfeiçoamento das ações de qualifi cação e intermediação dos profi ssionais, celebrando convênios com órgãos e entidades nacionais e internacionais, com vistas ao intercâmbio nessa área. Esse fórum tem participação ativa no Conselho Nacional de Economia Solidária (CNAES) e no CODEFAT, ambos vinculados ao MTE.

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Tabela 1 - Pronatec Seguro-Desemprego - Resultados 2012 e 2013

ESTADO

RESULTADOS 2012 Resultados 2013 (Até maio)

Vagas Pactua-

das

Matrícu-las

Aproveita-mento (%)

Vagas Pactua-

das

Matrícu-las

Aprovei-tamento

(%)

AC 298 52 17,45 250 - 0,00AL 1.029 558 54,23 2.174 67 3,08AM 683 929 136,02 1.576 845 53,62AP 1.100 31 2,82 480 5 1,04BA 16.879 4.989 29,56 29.018 6.044 20,83CE 6.185 1.783 28,83 3.575 897 25,09DF 475 561 118,11 6.325 275 4,35ES 2.344 625 26,66 7.917 1.484 18,74GO 3.107 2.161 69,55 5.545 607 10,95MA 333 76 22,82 425 97 22,82MG 10.836 3.248 29,97 39.270 1.638 4,17MS 2.129 487 22,87 2.001 195 9,75MT 38.134 7.563 19,83 15.361 4.100 26,69PA 1.733 7.563 25,33 3.028 182 6,01PB 513 882 171,93 687 167 24,31PE 5.807 1.174 20,22 4.092 232 5,67PI 1.522 160 10,51 1.902 11 0,58PR 2.117 2.620 123,76 14.360 1.066 7,42RJ 19.297 8.578 44,45 18.564 3.367 18,14RN 155 361 232,90 383 - 0,00RO 932 357 38,30 992 67 6,75RR 321 34 10,59 133 20 15,04RS 1.038 1.279 123,22 14.120 1.174 8,31SC 310 973 313,87 2.078 217 10,44SE 1.089 224 20,57 780 33 4,23SP 16.820 7.494 44,55 36.651 4.102 11,19TO 246 242 98,37 900 113 12,56TOTAL BRASIL

135.432 47.880 35,35 212.587 27.005 12,70

TOTAL NE

33.512 10.207 30,46 43.036 7.548 17,54

Fonte: MEC e FONSET. Elaboração Própria dos Autores.

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PRONATEC: EXECUÇÃO ESTADUAL DE UFS SELECIONADAS NO NORDESTE

O papel reservado aos governos estaduais, na execução do Pronatec Brasil Sem Miséria, é menos preponderante do que aquele reservado aos municípios (e mesmo às entidades ofertantes de cursos), e se restringe a ações de encaminhar e discutir, junto aos departamentos regionais das entidades ofertantes dos cursos, eventuais questões e demandas levantadas pelos municípios, assim como garantir apoio às ações desenvolvidas pelas prefeituras, no âmbito do programa.

São responsabilidades dos governos estaduais, no âmbito do programa:

• Promover a participação dos municípios interessados no Pronatec Brasil Sem Miséria e fazer a gestão junto ao governo federal para formalização das adesões;

• Organizar, em conjunto com o MDS, mesas estaduais de negociação de vagas do Pronatec Brasil Sem Miséria, convidando municípios, unidades ofertantes e representantes do setor privado;

• Realizar o diálogo com os departamentos regionais das unidades ofertantes, visando ao atendimento de cursos e vagas defi nidas por cada município;

• Identifi car oportunidades de geração de emprego e renda no território e apoiar os municípios no alinhamento da oferta de cursos de qualifi cação com essas oportunidades;

• Apoiar o alinhamento da oferta de cursos de qualifi cação com o perfi l do público-alvo da iniciativa; e

• Promover, em conjunto com os municípios, a integração dos alunos às políticas de emprego e renda e aos programas de associativismo e cooperativismo. (BRASIL, 2013).

Mesmo reconhecendo que os governos estaduais não

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desempenham papel preponderante na execução desse programa, o presente capítulo se ocupará de apresentar os principais resultados de execução do Pronatec nos estados, principalmente relacionados à sua vertente Pronatec Brasil Sem Miséria, uma vez que esse programa federal constitui a principal iniciativa de oferta de qualifi cação profi ssional aos grupos mais vulneráveis da população. Assim, a pesquisa realizou também entrevistas em profundidade junto a gestores das principais entidades executoras de cursos do Pronatec, em cada estado (SENAI E SENAC), cujos principais achados de pesquisa são também apresentados neste capítulo.

Na Bahia, o Pronatec Seguro-Desemprego, em 2012, ofertou 16.879 vagas, sendo que apenas 4.989 matrículas foram realizadas, ou seja, um aproveitamento de 29,5% (segundo informações do MEC, sistematizadas para o FONSET). Em 2013, essa vertente do programa ofertou 20.018 vagas, sendo que até maio deste ano apenas 6.044 haviam sido preenchidas (30,1% de aproveitamento).

Em relação ao Pronatec Brasil Sem Miséria, foram realizadas 15.081 matrículas em 2012 (número bem superior à vertente do programa referente ao Seguro-Desemprego), sendo que, em 2013, foram ofertadas 37.481 vagas para esta vertente do programa, tendo sido realizadas, até julho deste ano, 33.545 matrículas (um aproveitamento de 94,8%).

No estado não foi constituído um grupo gestor do Pronatec. É a Secretaria de Educação da Bahia (SEC-BA) que coordena as ações, no âmbito do programa, relacionadas à pactuação de metas e articulações entre municípios e entidades ofertantes de cursos. Esta secretaria é, ao mesmo tempo, entidade demandante e ofertante do programa, por meio da rede de escolas técnicas estaduais sob coordenação da Superintendência de Educação Profi ssional.

A rede estadual de escolas técnicas da Bahia foi habilitada pelo MEC no segundo se mestre de 2012, para ofertar o pro grama, re ce-bendo R$ 15.894.000,00 de investimentos. Segundo dados da SEC-BA, em 2013, serão ofer tadas 36 mil novas vagas no âmbito do Pronatec destinadas a estudantes do segundo e do terceiro ano do en sino médio ou do Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) Médio, em

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180 diferentes cursos de Formação Inicial e Continuada. As demais instituições parceiras que ofertam o programa no Estado são: SENAI, SENAC, Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), além do Instituto Federal da Bahia (IFBA), e o Instituto Federal Baiano. Conforme dados da SEC-BA, 133 municípios da Bahia são benefi ciados com o Pronatec.

No Ceará, conforme dados da Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS-CE), no ano de 2013, 42.786 vagas para formações profi ssionalizantes foram disponibilizadas através do Pronatec.

O Pronatec Seguro-Desemprego, em 2012, ofertou 6.185 vagas, sendo que apenas 1.783 matrículas foram realizadas, ou seja, um aproveitamento de 28,8%, segundo informações do MEC, sistematizadas para o FONSET. Em 2013, essa vertente do programa ofertou 3.575 vagas, sendo que até maio deste ano apenas 897 haviam sido preenchidas (25% de aproveitamento).

Em relação ao Pronatec Brasil Sem Miséria, foram realizadas 18.100 matrículas em 2012, número superior à vertente do programa referente ao Seguro-Desemprego, sendo que, em 2013, foram ofertadas 41.541 vagas para esta vertente do programa, e realizadas, até julho deste ano, 30.099 matrículas (um aproveitamento de 72,5%).

No Ceará ainda não está estruturada uma rede de oferta do Pronatec, que passa por fase de “animação”, sob coordenação da STDS-CE e SEDUC-CE. Foi também decisão do governo do Estado que os órgãos estaduais que realizam cursos de capacitação e qualifi cação profi ssional não fossem ofertantes do programa.

Cabe à Secretaria de Educação (SEDUC-CE) atuar junto às entidades do Sistema S local (em especial SENAC, SENAI, SENAT e SENAR), e com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), com vistas a estabelecer, anualmente, a oferta de cursos de educação profi ssional técnica de nível médio, e de formação inicial e continuada, no âmbito do Pronatec.

Em 2013, a SEDUC-CE articulou a oferta de 11.378 vagas, no âmbito do Pronatec Brasil Sem Miséria, contemplando 115 cursos,

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benefi ciando 23 municípios do Estado, assim distribuídos: i) ao SENAC, ao SENAI e ao IFCE coube ofertar 1.629 vagas para 24 cursos técnicos nos seguintes municípios: Fortaleza, Maracanaú, Iguatu, Aracati, Crateús, Crato, Quixadá, Quixeramobim, Salitre; ii) enquanto ao SENAC, ao SENAI, ao IFCE, ao SENAT e ao SENAR coube ofertar 9.749 vagas para 92 cursos de formação inicial e continuada nos seguintes municípios: Canindé, Crato, Fortaleza, Iguatu, Independência, Itapipoca, Jaguaribe, Juazeiro, Limoeiro, Madalena, Maracanaú, Maranguape, Morada Nova, Quixadá, Russas, Quixeramobim, São Gonçalo, Sobral, Tauá, Tianguá.

Por fi m, em Sergipe o Pronatec Seguro-Desemprego, em 2012, ofertou 1.089 vagas, sendo que apenas 224 matrículas foram realizadas, ou seja, um aproveitamento de 20,5% (segundo informações do MEC, sistematizadas para o FONSET). Em 2013, esta vertente do programa ofertou apenas 780 vagas, sendo que até maio deste ano apenas 33 haviam sido preenchidas (4,2% de aproveitamento).

Em relação ao Pronatec Brasil Sem Miséria, foram realizadas 6.115 matrículas em 2012, número superior à vertente do programa referente ao Seguro-Desemprego, sendo que, em 2013, foram ofertadas 16.031 vagas para esta vertente do programa. Foram realizadas até julho deste ano 14.748 matrículas (um aproveitamento de 91,9%).

A SEIDES-SE é responsável pela coordenação, no Estado, da vertente Pronatec Brasil Sem Miséria. Esta secretaria atua, no interior do Estado, como articuladora entre os 75 municípios, o MDS e o Sistema S (SENAC, SENAI, SENAT, e SENAR), e o Instituto Federal de Sergipe, que constituem as entidades ofertantes dos cursos, no âmbito dessa vertente do programa. Em Sergipe dos 75 municípios, 72 já aderiram ao Pronatec, conforme informações da SEIDES-SE. Do total de vagas pactuadas, 5% são sempre destinadas, no estado, aos benefi ciários do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Em articulação com os municípios e com os CRAS locais, por meio do programa ACESSUAS Trabalho, a SEIDES desenvolve ações de busca ativa de pessoas em situação de vulnerabilidade, com vistas à realização de pré-matrículas no programa, além de ações de sensibilização e mobilização dessa população.

247

Dentre os principais cursos de qualifi cação profi ssional ofertados no Estado no âmbito do Pronatec Brasil Sem Miséria estão: cabeleireiro, manicure e pedicure, garçom, auxiliar de confeitaria, cuidador de idoso, vendedor, auxiliar de cozinha, cuidador infantil, agente de informação turística, recepcionista em meios de hospedagem, empregada doméstica, costureiro, camareira em meio de hospedagem, depilação e maquiagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo procurou delinear o estado da arte do desenho das políticas públicas de qualifi cação profi ssional, assim como investigar como vem se dando a sua execução em estados selecionados do Nordeste brasileiro.

Ainda que se constitua uma iniciativa recente do governo federal, voltada à qualifi cação profi ssional, o Pronatec, criado em 2011, vem alcançando gradualmente seu objetivo de ampliar a oferta de cursos de educação profi ssional e tecnológica. Contudo, conforme levantamentos apresentados neste artigo, sua implementação em âmbito estadual ainda é muito desigual. Da mesma forma, nem todas as vertentes do programa têm igual êxito de execução.

Pode-se apontar uma maior execução da modalidade do programa voltada à inclusão produtiva da população de baixa renda, a qual se dá no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria, sendo fruto de uma parceria entre o MEC e o Plano Brasil Sem Miséria (BSM), coordenado pelo MDS. Este programa contempla cursos de formação inicial e continuada voltados para a inserção no mercado de trabalho, com duração mínima de 160 horas. Tais cursos são ofertados por instituições de ensino técnico e tecnológico, como unidades do Sistema Nacional de Aprendizagem (SENAC e SENAI), e a Rede Federal de Educação Profi ssional e Tecnológica. A oferta dos cursos é gratuita e os benefi ciários recebem alimentação, transporte e materiais escolares.

A execução do Pronatec Brasil sem Miséria é desenvolvida junto aos municípios, por meio da rede de assistência social, que se responsabiliza pela mobilização dos benefi ciários, pela pré-matrícula

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e pelo acompanhamento dos alunos, contando com o apoio dos governos estaduais. A meta do Plano BSM é capacitar um milhão de benefi ciários inscritos no Cadastro Único até o fi nal 2014.

O próprio desenho do Plano Brasil sem Miséria, que conta com a estruturação de uma rede de execução municipal, pode ser apontado como um dos fatores que contribuem para a sua efetividade. Contudo, o mesmo dinamismo não pode ser observado na vertente do Programa voltado ao público benefi ciário do Programa Seguro-Desemprego. O Pronatec representou uma signifi cativa mudança institucional na condução da política nacional de qualifi cação profi ssional, que até então sempre havia sido coordenada pelo MTE. A migração para o MEC exigiu novas articulações no governo federal entre os ministérios de trabalho e educação. O Pronatec Seguro-Desemprego necessita, também, para seu funcionamento, de uma constante colaboração entre o governo federal e os governos estaduais. Tais articulações, na maioria dos casos, são frágeis - e este é o fator principal que explica o pequeno número de qualifi cados pelo Pronatec Seguro-Desemprego.

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CAPÍTULO 10EM BUSCA DE MAIOR IGUALDADE DE

GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO: NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

MAIS APROFUNDADAS1

1Maria Cristina Cacciamali2Maria de Fátima José-Silva3

INTRODUÇÃO

A participação da mulher no mercado de trabalho refl ete, na maioria dos países, sua posição subalterna na sociedade, a despeito da evolução positiva dos indicadores de que maior igualdade entre homens e mulheres fora alcançada nas últimas quatro décadas nos países

1 Este artigo deriva de pesquisa fi nanciada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico, Brasil. Participaram da pesquisa os pesquisadores: Eduardo Cury, Fabio Tatei e Tania Toledo Lima, do Núcleo de Estudo e Pesquisa de Política Internacional. Estudos Internacionais & Políticas Comparadas (NESPI)/Universidade de São Paulo (USP)/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq). Ao longo do texto citaremos os artigos produzidos pela equipe sobre o tema.

2 Maria Cristina Cacciamali, Doutora e Livre Docente em Economia pela Universidade de São Paulo (Brasil) com Pós-Doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology. Atualmente é Professora Titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo, onde leciona e pesquisa na área de estudos do trabalho e políticas públicas. Pesquisadora Sênior do CNPq. Coordenadora do NESPI/USP/CNPq.

3 Maria de Fátima José-Silva, especialista em psicologia social; especialista em saúde do trabalhador, doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina (PROLAM)/USP. Professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina, pesquisadora NESPI/USP/CNPq.

Maria Cristina Cacciamali2

Maria de Fátima José-Silva3

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ocidentais. A assimetria das relações de poder e, consequentemente, as desvantagens no mercado de trabalho se mantêm, não obstante os esforços políticos e institucionais para alcançar maior igualdade de gênero.

Não se tratou nem se trata de um afastamento da mulher do mercado de trabalho. Ao contrário, no capitalismo as mulheres mais pobres sempre trabalharam4, lutando pela sua sobrevivência e de suas famílias, ocupando empregos de baixa qualidade muitas vezes em uma situação de segregação, como o serviço doméstico, a prostituição ou os serviços rurais. As lutas feministas desde o século XIX e o acesso universal à educação criaram o substrato para o acesso a uma gama diversifi cada de ocupações, embora com discriminação, haja vista a menor valorização salarial e a não equivalência das condições de trabalho frente ao universo masculino, e ainda acumulando as tarefas domésticas e o cuidado com fi lhos e idosos da família.5

A incorporação pelas mulheres de níveis mais altos de educação no século XX, entretanto, independentemente do estrato social da mulher, não garantiu a igualdade de condições no mercado de trabalho, embora as mulheres dos estratos médios e superiores tenham acesso a melhores trabalhos, ainda que necessitem contratar outras mulheres para dar conta da reprodução familiar. De toda sorte, os empregos que proporcionam menor mobilidade ocupacional são feminizados, por exemplo, os trabalhos de baixa qualidade no ambiente rural, aqueles menos qualifi cados na manufatura, os serviços pessoais, manuais e domésticos.

4 Existe ampla literatura sobre as diferenças de participação da mulher no mercado de trabalho, segundo o seu estrato social, desde o século XIX. Por exemplo, Viotti da Costa (2010, p. 503); Schumaher e Brazil (2000) e Del Priori (1997).

5 Até o período de consolidação da burguesia, as mulheres tinham restrições para administrar seus bens/patrimônio, ter conta bancária, testemunhar nos tribunais, votar, obter educação superior e/ou exercer uma profi ssão liberal. O argumento mais comum para obstar a participação da mulher no espaço público era o da incompatibilidade com a vida doméstica - sua missão principal. Ademais argumentava-se que a natureza emocional da mulher era antagônica à racionalidade necessária para a tomada de decisões na vida pública. (PINSKY; PEDRO, 2003; GAY, 2001, p. 303).

254

No setor público as diferenças são mais estreitas entre sexos, comumente por força de lei, embora o número de mulheres em posições de comando seja inferior ao dos homens. Por outro lado, se a mulher alcança um posto de trabalho gerencial, de controle ou comando, o que não é frequente, recebe menos que um homem, e pode manter relações tensas com seus subordinados – homens e mulheres. (CACCIAMALI; TATEI, 2012).

O nível médio de educação das mulheres no Brasil, desde os anos 1970, é mais elevado do que aquele dos homens, todavia na comparação com eles o retorno marginal de cada ano adicional é menor.6 Quando empregada, a mulher ganha menos, ainda que receba elogios pelo seu desempenho. Quando desempregada, o tempo de busca por um novo trabalho é maior, o que reforça a sua situação de inferioridade incentivando-a a receber salários menores. Estudos recentes constatam que existe uma relação direta entre a duração do desemprego e o diferencial de salários entre homens e mulheres. Ou seja, quanto maior a duração do desemprego, maior será o diferencial de salários entre homens e mulheres.

Estes aspectos confi guram o quadro de resultados econômicos sobre o tema da discriminação da mulher no mercado de trabalho. Menos conhecidos são os efeitos da duração do desemprego sobre os diferenciais de salário, trajetória profi ssional da mulher, seu nível de renda permanente. Este é o objeto de estudo deste artigo. Os resultados alcançados ampliarão o conhecimento das práticas contratuais no mercado de trabalho, contribuindo para demandas políticas e políticas públicas para elevar a qualidade da participação feminina na sociedade.

6 Estudos demográfi cos identifi caram que a igualdade de sexos na escola primaria foi alcançada no Brasil na segunda metade dos anos 1930; a entrada maciça das mulheres na escola secundária ocorreu nas décadas de 1960; e nos 1970 começa o ingresso mais expressivo de mulheres no ensino superior. Neste último caso, em 1991 a proporção de mulheres para cada homem é de dois para um. (BELTRÃO; ALVES, 2004). Neste período se observa maior escolaridade entre as mulheres negras, embora a tendência crescente para estas perdure até os anos de 2000. (MARTELETO; MIRANDA, 2004).

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DETERMINANTES DA DISCRIMINAÇÃO FEMININA NO MERCADO DE TRABALHO. O QUE SABEMOS?7

O ingresso contínuo das mulheres no mercado de trabalho iniciou-se no Brasil a partir dos anos 1970, no período denominado “milagre econômico”. O elevado crescimento de empregos no setor privado e público, a expansão das atividades terciárias e as mudanças sociais, culturais e demográfi cas das famílias brasileiras no período infl uenciaram decisivamente na maior participação feminina no mercado de trabalho.8 Beltrão e Alves (2004); Marteleto e Miranda (2004) e Guedes (2004), entre outros, ressaltaram para esse período a importância do crescimento do contingente feminino no sistema educacional em todos os níveis, ganhando expressão o aumento da participação das mulheres no ensino superior e no mercado de trabalho. A resistência ao pagamento de igual salário para homens e mulheres para iguais ocupações, entretanto, vem ratifi cando a difi culdade de transpor as relações tradicionais de gênero no Brasil.

A literatura internacional destaca que o hiato salarial negativo para as mulheres se constitui um fenômeno comum à maioria dos mercados de trabalho, com exceção dos países nórdicos europeus, embora tenha tendência, em geral declinante, depois dos 1980. Blau e Kahn (2003), por exemplo, estudaram o tema para 22 países entre 1985 e 1994, e verifi caram a redução do diferencial motivada por dois fatores: o estreitamento dos diferenciais de salários entre os homens da força de trabalho e a menor oferta de mulheres no mercado de trabalho.9 Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1920 e 1980, odiferencial entre homens e mulheres ocupados na mesma região e com características pessoais equivalentes situava-se em torno de 40%, nos anos 1990 diminui para 10%.

7 Os achados apresentados neste estudo originalmente foram apresentados em Cacciamali; Lima e Tatei (2013) e Cacciamali (2013).

8 Entre outros, os seguintes livros tratam ou contêm artigos sobre o período: Castro e Souza (1985); Gaspari (2002); Lessa (1998); Szmrecsányi e Suzigan (2002).

9 Os dois fatores, mas, principalmente, o primeiro encontra-se circunscrito às instituições do mercado de trabalho de cada país, especialmente com relação aos mecanismos de negociação coletiva.

256

Desse percentual, 1/3 corresponde a fatores não observáveis ou a práticas de discriminação. (BLACK et al., 2008). A idade dos indivíduos, variável que aproxima o tempo de experiência no mercado, se revelou a principal causa das diferenças salariais entre homens e mulheres (O’NEIL, 1985). Além de essa variável estar relacionada com a tomada de decisão sobre a maternidade. (GIUBERTI; MENEZES-FILHO, 2005).

No Brasil, Barros et al. (2006) estudaram o tema e constataram que entre 2001 e 2005, o hiato salarial entre sexos declinou entre 35% e 25% referente à queda da segregação de mercado, ou seja, trabalhadores segmentados em postos diferentes por serem homens ou mulheres; e 10% devido à diminuição da discriminação ou variáveis não observáveis, ou seja, dois trabalhadores com aporte de dotações equivalentes em uma mesma ocupação.

Essa diminuição não foi uniforme no período, os mais jovens e os menos qualifi cados tiveram as maiores quedas; enquanto que entre os trabalhadores que tinham escolaridade de nível superior o estreitamento foi menor.

Nessa mesma direção, Kassouf (2008); Cacciamali e Hirata (2005) e Cacciamali; Tatei e Rosalino (2009) verifi caram que a discriminação por sexo era maior entre os trabalhadores formais, ou seja, nos empregos de qualidade mais elevada, relativamente aos informais. Destaca-se, além disso, na distribuição da escolha das carreiras de nível superior o viés é negativo para as mulheres, que em geral ingressam em carreiras de remuneração média menor.

Soares (2000); Biderman e Guimarães (2005); Crespo e Reis (2004) e Matos e Machado (2006) aplicam como nos demais estudos a decomposição de Oaxaca (1973) para o período entre as décadas de 1980 e 1990, ampliando o estudo incluindo a desagregação cor da pele, e concluem pela tendência decrescente do hiato salarial entre sexos e entre indivíduos brancos, negros e mestiços. Todos os estudos concluem que a desigualdade de rendimentos das mulheres brancas com relação aos homens brancos se deve apenas à discriminação, enquanto para os homens negros com relação aos homens brancos prevalece a sua pior qualifi cação – fatores pró-mercado.

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Por sua vez, as mulheres negras enfrentam tanto a discriminação como a menor dotação de fatores produtivos. Por fi m, Soares constatou que a evolução do diferencial de salários por cor/raça/etnia se estabiliza entre os homens, enquanto para as mulheres ocorre uma redução gradual. Bohnenberger (2005) ampliou o quadro de análise, em termos de espaço e tempo, manteve as conclusões dos estudos anteriores, e acrescenta duas conclusões adicionais: a discriminação contra as mulheres é mais resistente do que a discriminação contra os negros e mestiços; a região mais pobre do País mostrou maior discriminação por sexo; enquanto na região mais rica a discriminação é maior pela cor da pele.

O IMPACTO DA DURAÇÃO DA DESOCUPAÇÃO SOBRE O DIFERENCIAL DE SALÁRIOS ENTRE SEXOS

O impacto do tempo de saída da desocupação sobre os diferenciais de salários entre homens e mulheres, nosso objeto de estudo, ingressou na agenda de pesquisas especializadas depois do aumento persistente da desocupação gerada pela crise fi nanceira de 2007/2008. As taxas de desocupação de homens e mulheres, segundo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com dados de dezenove países, tendem a convergir, devido à construção social de comportamentos similares como a equivalência na qualifi cação e a manutenção de vínculos contínuos com o mercado de trabalho. Ao longo do ciclo econômico, contudo, o diferencial nas taxas de desocupaçãose mantém constante, as demissões na indústria de transformação respondem pela maior parte dadesocupação no ciclo descendente, mas a recuperação não amplia o emprego, o que traz indícios de que o diferencial do tempo de desocupação pode estar diminuindo entre homens e mulheres. (ALBANESI; SAHIN, 2013).

Entretanto, a tomada de decisão pela maternidade e o cuidado com fi lhos pequenos podem impactar no maior tempo de duração da desocupação das mulheres,como no caso da Finlândia, onde esse comportamento aconteceaté a coorte etária de 30 anos, idade a partir da qual o tempo de busca de emprego se iguala entre os sexos. (GONZALO; SAARELA, 2000). Para além desses estudos, um conjunto de causas foidiagnosticado na Turquia, na China e no Brasil, para explicar o maior tempo de desocupação das mulheres frente aos homens. No

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primeiro país predominam a discriminação da mulher no mercado de trabalho e a sua maior participação nas atividades domésticas; enquanto no segundo foram diagnosticados o menor acesso às redes sociais pelas mulheres e o tratamento desigual nos serviços públicos de emprego como os motivos principais. (TANSEL; TASC, 2004; DU; DONG, 2009). E, no Brasil, a seletividade é apontada como o principal fator que leva à baixa probabilidade de sair da desocupação, considerando o custo de oportunidade da busca por trabalho. (BARROS; CAMARGO; MENDONÇA, 1997; COSTA; TEIXEIRA, 2008).

A importância dessa questão diz respeito à relação negativa entre o período mais recente de desocupação do trabalhador e a sua renda corrente, e tem consequência sobre a sua renda permanente e a possibilidade de acumular patrimônio, como a aquisição de um imóvel. Cooper (2013) estimou que o vencimento do trabalhador desempregado, quando reempregado, demora 20 anos, ou mais para atingir o vencimento do trabalhador que não fi cou desempregado estimou se o vencimento do trabalhador desempregado pudesse, quando locado, atingir o vencimento do trabalhador que não fi cou desempregado depois de 20 anos ou mais, sendo que essa situação se agrava para os desempregados de longa duração - 26 semanas ou mais buscando emprego. Essa situação é mais grave para as mulheres, pois 56% dos diferenciais salariais entre sexos são explicados pela desocupação; destes, 39,6% cabem à duração da desocupação; e14,2% respondem pela probabilidade de estar desempregado. Assim, apesar de longos períodos de desocupação implicar menores salários para ambos os sexos, principalmente no setor de serviços, as mulheres tendem a perceber as maiores reduções salariais, uma decorrência muitas vezes da discriminação. (BAFFOE-BONNIE; EZEALA-HARRISON, 2005).

A aplicação de metodologia similar à anterior em uma base de dados brasileira - Pesquisa Mensal de Emprego (PME) da Fundação Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) de 2012 e 201110 - permitiu estimar as cinco etapas previstas para a estimação do impacto do tempo de duração da desocupação sobre os diferenciais de salário entre homens e mulheres. Os Quadros 1 e 2 nos fornecem

10 Vejam-se as especifi cações do modelo no Apêndice A.

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os resultados estatisticamente signifi cantes das estimativas de probabilidade de estar desempregado e do tempo de desocupação com relação a um conjunto de variáveis. Os quadros indicam o efeito que cada variável signifi cativa tem sobre a probabilidade da desocupação/tempo de desocupação para homens e para mulheres, sendo que (+) indica que a variável aumenta a probabilidade, e (-) o efeito inverso.

A primeira etapa - modelo Probit - gerou resultados consistentes com outros estudos que constam na literatura especializada. A correlação positiva se observa apenas para homens entre desocupação e experiência; para homens e mulheres, a correlação positiva se dá entre desocupação e coorte etária jovem, responsável pela família e posição de fi lho; e para as mulheres, a posição de cônjuge na família e em apenas uma região metropolitana. (AVELINO, 2001). Ou seja, os determinantes comuns para a desocupação são mais importantes que os específi cos por sexo, sobretudo a posição familiar e a idade. A localização geográfi ca importa sobre a desocupação para a RM do Rio de Janeiro, vis-à-vis à RM de São Paulo, que apresenta menor probabilidade de desocupação para homens e mulheres.

No caso da variável “anos de escolaridade”, constata-se correlação negativa tanto para os homens como para as mulheres. O resultado é consistente com outros estudos do Brasil, haja vista que maiores níveis de escolaridade e de experiência profi ssional correspondem a menores chances de desocupação. (FERNANDES; PICCHETTI, 1999; MENEZES-FILHO; PICCHETTI, 2001).

A variável “experiência”, contudo não apresentou signifi cância estatística na amostra das mulheres. Ou seja, a incorporação de qualifi cação por parte das mulheres não é tão valorizada no mercado quanto no caso dos homens, pois não garante menor probabilidade de desocupação feminina. A variável “cor da pele”, por outro lado, foi signifi cante apenas para as mulheres negras e com correlação negativa, o que indica menor desocupação frente às mulheres brancas, o que pode ser explicado pelos baixos salários que recebem em média e os trabalhos de baixa qualidade que assumem. Por fi m, a variável “nível de emprego” apresentou resultado esperado, de modo que quanto maior o nível de emprego na sociedade, menor é a probabilidade de o indivíduo fi car desocupado.

260

A importância do salário de reserva se destaca nos sinais dos coefi cientes de probabilidade das variáveis correlacionadas com o tempo de duração da desocupação. Maior experiência e qualifi cação; menores níveis de renda; pessoas em famílias maiores; jovens e negros e pardos mostram maior probabilidade de maior tempo de desocupação. Ou seja, os primeiros possuem um salário de reserva alto e buscam por mais tempo uma ocupação; enquanto os últimos têm que aceitar uma ocupação rapidamente por uma questão de sobrevivência. A localização geográfi ca, por outro lado, além de apresentar em muitos casos coefi cientes não signifi cantes, estatisticamente mostra pouca consistência nos sinais.

Homem Mulher

Experiência -

Experiência2 +

Anos de estudo - -

Jovem + +

Cor – preta -

Cor – parda

Cor – outra (índio, branco e amarelo)

Família – cônjuge +

Família – fi lho + +

Família – outro(principal responsável, outro parente, agregado, pensionista, empregado doméstico, parente de empregado doméstico)

+ +

RM – Recife

RM – Salvador

RM – Belo Horizonte +

RM – Rio de Janeiro - -

RM – Porto Alegre

Nível de emprego - -

Quadro 1 - Probabilidade de Desocupação - Síntese da Estimativa do Modelo Probit Anos 2011-2012

Fonte: Elaboração Própria dos autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.

* As células sem sinal indicam que o resultado/coefi ciente não foi estatisticamente signifi cativo.

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Homem Mulher

Experiência - -

Experiência2 +

Anos de estudo + +

Jovem -

Cor – preta + +

Cor – parda +

Cor – outra

Família – cônjuge -

Família – fi lho +

Família – outro + -

RM – Recife

RM – Salvador

RM – Belo Horizonte

RM – Rio de Janeiro +

RM – Porto Alegre - -

Nível médio de renda - -

Renda familiar per capita - -

Tamanho da família - -

Quadro 2 - Probabilidade do Tempo de Duração da Desocupação - Síntese da Estimativa do Modelo Tobit. Anos 2011-2012

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.

* O quadro indica o efeito que cada variável signifi cativa tem sobre o tempo de duração dadesocupação, sendo que (+) indica que a variável aumenta a duração dadesocupação, e (-) o efeito é inverso.

A terceira etapa do procedimento metodológico consiste em inserir os valores previstos para a probabilidade de desocupação e o tempo de desocupação estimados pelos modelos Probit e Tobit na equação salarial, cujos resultados são apresentados na Tabela 1.

262

Tabela 1 - Estimação da equação de salários. Brasil - 2012

Homem MulherCoef. t Sig. Coef. t Sig.

Anos de estudo 0,2257 45,73 * 0,2419 40,23 *Idade 0,0388 12,62 * 0,0414 10,28 *Idade2 -0,0003 -10,38 * -0,0003 -7,28 *Experiência -0,0051 -31,12 * -0,0068 -33,20 *Experiência2 0,0000 28,01 * 0,0000 30,26 *Jovem -0,0567 -3,56 * -0,0506 -2,66 *Cor – preta -0,1072 -9,18 * -0,0355 -2,62 *Cor – parda -0,0900 -10,71 * -0,0433 -4,68 *Cor – outra 0,1404 3,22 * 0,0930 2,26Família – cônjuge -0,0876 -7,43 * -0,0974 -9,55 *Família – fi lho 0,0686 4,87 * 0,0198 1,55Família – outro 0,0281 1,65 *** -0,1047 -5,78 *RM – Salvador 0,1028 4,74 * 0,2269 10,56 *RM – Belo Horizonte -0,0839 -4,97 * -0,1329 -8,29 *RM – Rio de Janeiro -0,2551 -14,87 * -0,1969 -11,21 *RM – Porto Alegre -0,4237 -18,94 * -0,2545 -13,12 *Atividade – construção -0,0452 -3,90 * 0,1524 4,14 *Atividade – comércio -0,1439 -13,34 * -0,0670 -4,78 *Atividade – fi nanceira -0,0294 -2,49 ** 0,1034 7,96 *Atividade – adm. pública 0,1084 7,81 * 0,1597 11,88 *

Atividade – serv. doméstico -0,2165 -4,48 * 0,0196 1,30

Atividade – outros -0,0645 -5,93 * 0,0152 1,09PIB regional 0,0000 -15,31 * 0,0000 -13,77 *Probabilidade Desocu-pação -1,1445 -12,91 * -1,5129 -17,63 *

Duração Desocupação -0,4950 -42,05 * -0,3631 -39,66 *_cons 4,5667 33,04 * 3,5327 24,69 *

N 35.210 30.272

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.Obs.: * signifi cativo a 1%; ** signifi cativo a 5%; *** signifi cativo a 10%.

263

Os resultados da estimação da equação salarial corroboram resultados existentes na literatura e adicionam novas estimativas. Assim, destacamos que mais anos de escolaridade implicam retornos marginais positivos no mercado de trabalho para homense mulheres, com a característica de que os retornos à educação são marginalmente superiores para as mulheres do que para os homens. A relação entre salário e idade apresenta formato de U invertido, indicando que os aumentos marginais do salário atingem uma determinada idade e depois apresentam tendência decrescente.

Ratifi cando esse comportamento os retornos à experiência profi ssional tendem a ser menores para aqueles com maior experiência profi ssional.Salários menores para jovens, negros e mestiços perante brancos, assim como para aqueles que se localizam fora da região economicamente mais dinâmica - São Paulo, e do setor industrial, exceto a administração pública. Especifi camente para este estudo, verifi cou-se que a maior probabilidade de desocupação e o maior tempo de duração da desocupação têm efeitos negativos sobre o nível salarial, sobretudo entre as mulheres. Ou seja, as mulheres tendem a aceitar salários menores do que os homens devido à maior difi culdade de se manterem empregadas e de encontrarem uma ocupação. Mais uma penalização feminina no mercado de trabalho.

A quarta etapa se refere à estimativa dos resultados da decomposição do diferencial de salários segundo a metodologia Oaxaca-Blinder, cujos resultados se encontram expostos na Tabela 2. As variáveis referentes à “experiência profi ssional”, à “probabilidade de desocupação” e à “posição na família” aumentam o diferencial de salário por sexo. Esses efeitos se retroalimentem e incidem sobre a menor experiência profi ssional, as menores chances no mercado de trabalho e o maior diferencial. Por outro lado, as variáveis “idade”, “anos de escolaridade” e “tempo de duração da desocupação” diminuem o hiato. Ou seja, indivíduos que buscam por mais tempo uma ocupação podem receber um prêmio maior para a sua qualifi cação, inclusive as mulheres.

Atividades como comércio, serviço doméstico e administração pública diminuem o diferencial, assim como viver em Salvador, Porto Alegre ou Rio de Janeiro, enquanto que serviços fi nanceiros,

264

construção civil, e viver nas demais RMs aumentam o diferencial. O termo referente às variáveis não observáveis - aproximação para a discriminação - é responsável por cerca de 1/3 do diferencial de salários observado entre homens e mulheres. Resultado similar ao encontrado por Soares (2000); Biderman e Guimarães (2005) e Cacciamali; Tatei e Rosalino (2009), entre outros.

Por fi m os efeitos marginais das variáveis explicativas são somados em módulo, de modo a se obter a participação relativa de cada variável sobre o efeito total da diferença salarial. Assim, verifi camos que a probabilidade de desocupação responde por 3,5% do efeito total, enquanto o tempo de duração de desocupação é responsável por 25,6%, e as demais características respondem por 70,9%, dos quais 32,5% são relativos à escolaridade e à experiência profi ssional.

Tabela 2 - Decomposição do Diferencial de Salários por Sexo

Variáveis Dotação de fatores

Coefi -cientes Interação Total

Idade 0,021 -0,123 -0,002 -0,104Idade2 -0,018 -0,026 -0,001 -0,045Anos de estudo -0,146 -0,158 0,009 -0,295Experiência 0,112 0,681 -0,028 0,765Experiência2 -0,036 -0,214 0,009 -0,241Jovem 0 -0,001 0 -0,001Cor – preta 0 -0,007 0 -0,007Cor – parda -0,001 -0,015 -0,001 -0,017Família – cônjuge 0,028 0,003 -0,002 0,029Família – fi lho 0 0,013 0,001 0,014Família – outro 0,001 0,006 -0,001 0,006PIB regional 0 -0,039 0 -0,039RM – Salvador -0,001 -0,008 0,001 -0,008RM – Belo Horizonte 0,001 0,005 0 0,006

RM – Rio de Janeiro -0,003 -0,015 -0,001 -0,019RM – Porto Alegre 0 -0,017 0 -0,017Atividade – construção 0,019 -0,002 -0,024 -0,007Atividade – comércio -0,001 -0,014 -0,002 -0,017Atividade – fi nanceira 0,002 -0,021 -0,003 -0,022

265

continua

Tabela 2 - Decomposição do Diferencial de Salários por Sexo

Variáveis Dotação de fatores

Coefi -cientes Interação Total

Atividade – adm. pública -0,021 -0,012 0,007 -0,026Atividade – serv. doméstico -0,003 -0,033 0,032 -0,004Atividade – outros 0,001 -0,013 -0,003 -0,015Probabilidade Desocupação 0,104 0,06 -0,025 0,139Duração Desocupação 0,069 -1,123 0,028 -1,026_cons 0 1,138 0 1,138

Total 0,128 0,065 -0,006 0,188

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.

Obs.: Cada uma das variáveis apresenta três efeitos conjuntos de efeitos: i) devido à dotação de fatores; ii) devido aos coefi cientes; e iii) à interação entre dotação e coefi cientes. A soma desses três efeitos informa o efeito total de cada variável sobre o hiato salarial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: POLÍTICAS MAIS PROFUNDAS

Esta revisão esteve circunscrita a estudos da área de economia, contudo, como não poderia deixar de ser, abundantes constatações sobre a discriminação contra as mulheres no trabalho podem ser evidenciadas em estudos de outras áreas e de outras manifestações sobre os comportamentos sociais, como a segregação induzida pelas representações sociais na divisão social do trabalho; possibilidade de acesso a determinadas carreiras de nível técnico ou superior; assédio nos locais de trabalho; violência familiar; dificuldades para obter serviços públicos para os filhos; ou discriminação salarial entre trabalhadores em ocupações ou graus de escolaridade similares. Além de outros aspectos que discriminam homens e mulheres, como é o caso dos ambientes de trabalho pouco amigáveis à necessidade de equilibrar a vida social e doméstica do quotidiano com a vida laboral.

A participação feminina no mercado de trabalho brasileiro vem crescendo desde o fi nal dos anos 1970, todavia, tanto a forma de inserção ocupacional como os salários auferidos eram e permanecem signifi cativamente distintos do que se observa entre os homens. A despeito disso, apenas a partir dos 1990, estudos sobre práticas de discriminação no mercado de trabalho no Brasil ganham maior

266

conclusão

relevância, impulsionados pela maior preocupação de organismos internacionais na defesa dos direitos humanos.11

Concomitantemente, houve maior organização e visibilidade dos movimentos sociais de mulheres e demais grupos socialmente vulneráveis e/ou excluídos, trazendo ao debate público a questão da exclusão social e da discriminação. Pois, além de ferir os direitos humanos, a discriminação no mercado de trabalho leva a inefi ciências na alocação de recursos em decorrência da subutilização dos recursos humanos e de capital. A maior pressão por ações afi rmativas para superar essas diferenças incentivou a elaboração e a realização de políticas sociais voltadas ao acesso e à criação de oportunidades de inclusão social para os grupos discriminados e, consequentemente, fomentou a geração de estudos e informações que subsidiassem essas políticas.

O efeito do tempo de duração de desocupação sobre a determinação dos salários é um tema pouco explorado na literatura brasileira, sendo que a melhor compreensão desse fenômeno é importante para a formulação de políticas públicas que visem combater as desigualdades e limitações do mercado de trabalho, sobretudo no tratamento discriminatório sobre as mulheres.

Entre os novos achados presentes neste estudo, destacamos que no caso brasileiro, a relação entre tempo de desemprego e diferencial de salário apresentou sinal inverso aos dos países tomados como referencial. Ou seja, no Brasil, quanto maior o tempo de desemprego, menor o diferencial salarial entre homens e mulheres. Esse comportamento deve ser mais bem estudado para o caso brasileiro, entretanto chamamos a atenção para duas possíveis causas que podem inclusive se retroalimentar. A primeira diz respeito ao período pesquisado, no qual a taxa de desemprego era muito baixa, e o mercado era favorável ao trabalhador. Nesse caso, a busca mais

11 Dentre esses, destacam-se a Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, da Organização Internacional do Trabalho; e a Declaração do Milênio das Nações Unidas, aceita pelos 191 países membros em 2000, na qual constam oito objetivos que se pretendem alcançar até 2015, como a promoção da igualdade entre os sexos e a valorização das mulheres.

267

demorada pode implicar a obtenção de uma ocupação mais adequado ao perfi l do trabalhador de salário maior.

O segundo motivo tem a ver com a geração de empregos no mercado de trabalho brasileiro recente, que se mostra intensivo em mão de obra menos qualifi cada. Como é notório, esse mercado apresenta menor diferencial de salário do que o mercado de maior qualifi cação. Nesse sentido os dois fatores podem ter contribuído para esse resultado no caso do Brasil. E essa questão necessita de testes estatísticos/econométricos adicionais.

Outro achado é a relação negativa entre tempo de duração da desocupação e hiato salarial; e as relações diretas entre experiência e hiato salarial, e essa última variável e a probabilidade de desocupação. Quanto a este último aspecto, salientamos o menor acesso da mulher a programas de treinamento e especialização nas empresas, assim como a menor valorização dada ao aperfeiçoamento profi ssional quando assumido privadamente por ela. Em parte esse comportamento se deve ao fato de o empregador temer perder o investimento realizado por ausências em caso de gravidez ou cuidados com membros da família. Uma forma de se contrapor a essa situação será a demanda por lei que permita o compartilhamento do usufruto do benefício da licença maternidade entre o casal, licença paternal, como já ocorre nos países nórdicos europeus e sem remuneração nos Estados Unidos, por exemplo.

Instituições compartilhadas no atendimento a fi lhos e familiares contribuem para a ressignifi cação dos papéis sociais entre os sexos, e permitem o envolvimento necessário do homem com a criação dos fi lhos e no cuidado com sua família para além do papel de provedor.

Ressaltamos a importância da extensão da jornada escolar para tempo integral desde a pré- escola associada à elevação da qualidade das atividades e do conteúdo da escolaridade. Esta medida dará condições para o maior planejamento das atividades da mulher, na interação entre as atividades da vida familiar e profi ssional.

Por fi m, é da maior importância que a mulher, por meio de suas associações, realize tanto demandas políticas quanto divulgue

268

pela mídia não apenas mensagens que ressaltem a qualidade de seu desempenho profi ssional, mas também a importância da derrubada de barreiras e preconceitos para sua maior participação no mercado de trabalho e em outras dimensões da vida social, de tal forma a ampliar a apreensão e a utilização das capacidades e talentos de todos os membros da sociedade.

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APÊNDICE A

Tabela 1A - Estimação da Probabilidade do Indivíduo Estar Desocupado (Probit)

Homem Mulher

Coef. Std. Err. t P>t Coef. Std.

Err. t P>t

Experiência -0,0011 0,0003 -3,51 0,000 -0,0003 0,0003 -1,02 0,308Experiência^2 0,0000 0,0000 7,40 0,000 0,0000 0,0000 0,83 0,408Anos de estudo -0,0598 0,0079 -7,58 0,000 -0,0644 0,0063 -10,29 0,000Jovem 0,5347 0,0385 13,89 0,000 0,5248 0,0378 13,87 0,000Cor – preta -0,0070 0,0388 -0,18 0,858 -0,0579 0,0350 -1,65 0,098Cor – parda 0,0209 0,0273 0,76 0,445 0,0298 0,0237 1,26 0,209Cor – outra -0,1744 0,1515 -1,15 0,250 0,1675 0,1127 1,49 0,137

Família – côn-juge -0,0124 0,0394 -0,31 0,753 0,1559 0,0258 6,04 0,000

Família – fi lho 0,5523 0,0333 16,59 0,000 0,2672 0,0328 8,15 0,000Família – outro 0,4192 0,0486 8,63 0,000 0,1521 0,0484 3,14 0,002RM – Recife -0,2649 0,1892 -1,40 0,162 -0,2235 0,1767 -1,26 0,206RM – Salvador -0,0122 0,1156 -0,11 0,916 0,0169 0,1070 0,16 0,874RM – Belo Hori-zonte 0,0370 0,0403 0,92 0,358 0,0603 0,0360 1,68 0,094

RM – Rio de Janeiro -0,3187 0,0947 -3,36 0,001 -0,3072 0,0870 -3,53 0,000

RM – Porto Alegre -0,0295 0,0355 -0,83 0,406 -0,0114 0,0353 -0,32 0,748

Nível de em-prego -5,6089 2,0639 -2,72 0,007 -6,2488 1,9071 -3,28 0,001

cons 2,1315 1,1512 1,85 0,064 2,9404 1,0645 2,76 0,006 Numberofobs = 35210 Numberofobs = 30272 Design df = 2273 Design df = 2227 F(16, 2258) = 108,87 F (16, 212) = 87,06 Prob> F = 0 Prob> F=0

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.

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APÊNDICE BTabela 1B - Estimação do Tempo de Duração da Desocupação (Tobit)

Homem Mulher

Coef. Std. Err. t P>t Coef. Std.

Err. t P>t

Experiência -0,0301 0,0062 -4,86 0,000 -0,0477 0,0065 -7,31 0,000

Experiência^2 0,0000 0,0000 1,14 0,254 0,0000 0,0000 3,00 0,003

Anos de estudo 1,5223 0,1461 10,42 0,000 1,9039 0,1307 14,57 0,000Jovem -0,7603 0,6336 -1,20 0,230 -2,2773 0,6249 -3,64 0,000Cor – preta 1,3003 0,6406 2,03 0,042 2,3042 0,6774 3,40 0,001Cor – parda 0,6987 0,4552 1,54 0,125 1,4431 0,4519 3,19 0,001Cor – outra 3,0714 2,0559 1,49 0,135 -0,0133 2,3826 -0,01 0,996

Família – cônjuge 0,3183 0,6192 0,51 0,607 -2,2114 0,5212 -4,24 0,000

Família – fi lho 2,9391 0,5524 5,32 0,000 0,4976 0,6630 0,75 0,453Família – outro 2,1800 0,7567 2,88 0,004 -1,5909 0,9116 -1,75 0,081Renda familiar per capita -0,0021 0,0007 -2,81 0,005 -0,0031 0,0004 -7,59 0,000

Tamanho da família -0,6188 0,1698 -3,65 0,000 -0,3865 0,1621 -2,38 0,017RM – Recife -0,7796 2,4635 -0,32 0,752 -3,6160 2,6282 -1,38 0,169RM – Salvador 2,0104 1,6101 1,25 0,212 1,9623 1,8073 1,09 0,278RM – Belo Hori-zonte -0,2845 0,9409 -0,30 0,762 -0,6901 1,0054 -0,69 0,493

RM – Rio de Janeiro 1,0845 0,7190 1,51 0,132 1,4906 0,7562 1,97 0,049RM – Porto Alegre -2,9730 0,9572 -3,11 0,002 -1,9685 0,9802 -2,01 0,045nível médio de renda -0,0110 0,0041 -2,66 0,008 -0,0157 0,0044 -3,55 0,000

_cons -8,6920 -1,23 0,219 2,1487 7,5514 0,28 0,776

/sigma 17,1072 28,09 0,000 17,0901 0,5765 29,64 0,000

Numberofobs = 35210 Numberofobs = 30272

Design df = 2273 Design df = 2227

F(18, 2256) = 29,86 F(18, 2210) = 30,26Prob> F = 0 Prob> F = 0

Fonte: Elaboração Própria dos Autores a partir dos Microdados da PME/IBGE.

CAPÍTULO 11ARTESANATO COMPETITIVO: UM ESTUDO

AVALIATIVO SOB O OLHAR DOS ARTESÃOS DE IBIAPINA-CE1

ARTESANATO COMPETITIVO: UM ESTUDO AVALIATIVOSOB O OLHAR DOS ARTESÃOS DE IBIAPINA-CE1

Lúcia de Fátima Coelho Lima2 (UECE)

INTRODUÇÃO

Uma abordagem sobre o artesanato e tudo o mais que envolve trabalho, vida, tempo, produção, arte e consumo, inclui, necessariamente, a compreensão de valores, estigmas, sistemas sociais, políticos e econômicos que delineiam a história de diferentes sociedades humanas fomentadas em suas representações simbólicas e culturais.

Defendemos o pressuposto de que é a partir da compreensão da importância da aliança entre os valores humanos e os sistemas sociais, econômicos e políticos que se constroem e (re)constroem valores culturais, econômicos e sociais, os quais acabam por determinar a intervenção governamental na gestão de políticas públicas direcionadas ao fomento do artesanato.

A partir dessa refl exão uma pergunta orientou o desenvolvimento deste estudo: Como garantir a sobrevivência do artesão com dignidade em uma sociedade marcada pela evolução tecnológica e demais recursos produzidos cotidianamente que

1 Trabalho desenvolvido para a obtenção do título de mestre, do Mestrado em Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

2 Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará.

Lúcia de Fátima Coelho Lima2

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transformam valores simbólicos, interferem no estilo de ser, estar e agir no mundo e constroem uma trama para mecanismos de trabalho, produção e consumo, numa permanente desvalorização e negação de tudo que é tradicional?

Este questionamento justifi cou nosso interesse por avaliar a atual política pública de incentivo ao artesanato, adotada pelo Governo do Estado do Ceará, e seu desempenho na dinamização do Projeto Artesanato Competitivo.

Entendemos que o trabalho artesanal adquire contornos diferenciados que dependem das condições concretas em que a vida do artesão se insere. A maneira como agem para adequar a natureza aos seus interesses de sobrevivência infl ui, de modo decisivo, na construção das representações simbólicas que balizam e explicam a sua realidade.

Esta discussão se delineia com o objetivo de justifi car aspectos signifi cativos do desenvolvimento desta pesquisa, pois nela analisaremos uma prática profi ssional exercida há mais de dez anos pelos artesãos de Ibiapina. Em seu percurso, as respostas advindas do senso comum deixaram de satisfazer a necessidade de compreender, dentre outros questionamentos, o desempenho do Projeto Artesanato Competitivo na dinamização da vida dos artesãos residentes no município de Ibiapina-CE.

Decidimos investigar: A qualifi cação profi ssional que vem sendo desenvolvida com os artesãos no Estado do Ceará tem contribuído para o aperfeiçoamento da produção, no que diz respeito a inovação, adequação de produtos e de novos valores? A execução dessa política pública contribui para o aumento da geração de renda do artesão?

Adotamos o conceito de artesão tal como é defi nido pelo Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) (Decreto nº 4.544, de 26/12/2002, artigo 7º, inciso I), o qual defi ne o artesão como “um indivíduo que exerce por conta própria, uma arte, um ofício manual”. (BRASIL. DECRETO Nº 4.544, 2014).

Metodologicamente, desenvolvemos pesquisa quantitativa e qualitativa. Ao selecionarmos essa abordagem consideramos que

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as ciências sociais têm sua especifi cidade e, no campo dos estudos organizacionais, a natureza do fenômeno estudado - as organizações - são compostas por pessoas que agem de acordo com seus valores, sentimentos e experiências; estabelecem relações internas próprias, estão inseridas em um ambiente mutável onde os aspectos culturais, econômicos, sociais e históricos não são passíveis de controle, mas sim de difícil interpretação, generalização e reprodução. (CHIZZOTTI, 1995).

A partir dessas referências, este estudo foi desenvolvido com base em pesquisas do tipo bibliográfi ca, documental e de campo. A pesquisa bibliográfi ca exigiu leituras de obras clássicas e contemporâneas que tratam dos conceitos pertinentes à temática selecionada.

A pesquisa documental efetivou-se pela análise de documentação ofi cial relacionada a artesanato, a qualifi cação profi ssional e apolítica pública voltada para a geração de renda, destacando-se a legislação existente sobre artesanato e o artesão; o conteúdo da Política Nacional de Desenvolvimento do Artesanato (PNDA); o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB); o Projeto Artesanato Competitivo, além de Relatórios, Regulamentação do Conselho Cearense do Artesanato eo Cadastro dos Artesãos, dentre outros.

A pesquisa de campo foi desenvolvida junto aos artesãos do município de Ibiapina-CE, em setembro de 2013. A seleção desse município se deu por ele estar entre os de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado. O município foi escolhido também pela vocação de seus moradores para o artesanato e por integrar a área de abrangência do “Projeto Artesanato Competitivo”, pois esses fatores nos disponibilizariam um excelente escopo para análise.

Após a aplicação dos questionários, os dados coletados foram sistematizados, analisados e integrados ao conteúdo deste artigo.

Portanto, adentrar a perspectiva das políticas públicas destinadas ao artesanato é um caminho que certamente vai conduzir este estudo para a compreensão cultural, histórica, econômica e social do artesanato e da realidade vivenciada pelo artesão cearense na

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contemporaneidade, mais especifi camente aquele que trabalha e vive no município de Ibiapina-CE.

DO SURGIMENTO DO GRUPO DE ARTESÃOS À ELEVAÇÃO DA AUTOESTIMA DOS ATORES SOCIAIS: ARTESÃOS DE IBIAPINA-CE

Um trabalho de pesquisa, especialmente quando envolve a experiência de um profi ssional em suas relações de trabalho, coloca como exigência o compromisso com a validade e a utilização de seus resultados. É o que ocorre neste estudo, considerando-se que um profi ssional vinculado ofi cialmente à instituição executora do Projeto Artesanato Competitivo toma para si o desafi o de avaliar seus resultados em uma área de abrangência previamente delimitada.

Neste aspecto, nossa pesquisa pode ser classifi cada como “participativa” (COHEN, 1993), porque combina, para além da compreensão do pesquisador, a percepção externa dos atores sociais envolvidos na pesquisa, para referendar seus achados.

Metodologicamente, este estudo foi desenvolvido em abordagens qualitativas e quantitativas. A utilização simultânea dos dois métodos para responder às questões colocadas por este estudo é complementar e adequada para minimizar a subjetividade e aproximar seus achados ao objeto de estudo, proporcionando maior confi abilidade aos dados analisados. (CHIZZOTTI, 1995).

Fundamentado em pesquisa do tipo bibliográfi ca, documental e de campo, selecionamos para a concretização deste estudo 20 (vinte) artesãos, legitimados pela Central de Artesanato Luiza Távora (CEART)3, ou seja, detentores da “Carteira do Artesão”; participantes das ações desenvolvidas pelo Projeto Artesanato Competitivo, residentes no município de Ibiapina-CE.

A seleção do município de Ibiapina como área de abrangência deste estudo se deu primeiramente pelo fato de ser da responsabilidade

3 A Central de Artesanato (CEART) é uma entidade sem fi ns lucrativos que visa desenvolver e coordenar as políticas de fomento e promoção do artesanato e da economia solidária, possibilitando, assim, a melhoria da qualidade de vida do artesão e dos empreendedores cearenses.

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desta pesquisadora prestar assessoria técnica aos artesãos ali residentes, o que facilitaria nosso deslocamento de Fortaleza até o município. Segundo, porque a comunidade de artesãos ali residente foi capacitada pelo Projeto Artesanato Competitivo, sendo, portanto, uma referência indispensável para o alcance dos objetivos declarados neste estudo.

O grupo de artesãs de Ibiapina surgiu em 2007, por iniciativa de um profi ssional do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) que vinha trabalhando com mulheres encaminhadas pelo Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS- AD).

Esse grupo de mulheres apresentava diagnóstico de depressão e, como terapia ocupacional, o profi ssional do CRAS introduziu o artesanato na rotina de atendimento. Observando o interesse do grupo, ainda no ano de 2007, o profi ssional do CRAS formalizou na Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social - Coordenadoria do Artesanato e Economia Solidária - a realização de um curso para capacitar 20 mulheres nas técnicas de composição de retalho, pintura, crochê, bordado e ponto de cruz.

Depois da capacitação, a CEART passou a encomendar as peças produzidas pelo grupo e a expô-las à venda na sua loja instalada na Praça Luíza Távora, em Fortaleza-CE. O sucesso da iniciativa promoveu o aprimoramento das peças e introduziu noções de gerenciamento no cotidiano das artesãs. Assim, abriu oportunidade de inclusão de seus produtos no mercado, passou a gerar renda e a incluir essas mulheres no mercado artesanal. A partir de então foram cadastradas e obtiveram carteiras de artesãs. Esse mesmo grupo registra, posteriormente, a participação em mais dois cursos que resultaram no aperfeiçoamento das peças produzidas.

A credibilidade no trabalho do grupo foi referendada pela Prefeitura de Ibiapina, que tomou a iniciativa de implantar uma feira mensal para exposição e venda do artesanato por elas produzido. Além disso, participam da Feira Artesanal (FEIRART) na Praça da CEART.

Foi evidenciada pela pesquisa de campo a importância do artesanato para melhorar a autoestima das artesãs pelo

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reconhecimento e valorização do trabalho por seus familiares, pelos consumidores e pelo poder público municipal.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DO MUNICÍPIO DE IBIAPINA-CE

O Estado do Ceará concentra uma população total de 8.180.087 habitantes. Desse total, 23.808 pessoas vivem no município de Ibiapina, situado na mesorregião noroeste cearense. O topônimo Ibiapina vem do tupi-guarani ybyá (terra, chão, solo), pina (pelada, sem vegetação, tosquiada) e signifi ca terra limpa. (CEARÁ, 2013b). A cidade concentra, entre seus habitantes, 5.351 (22.48%) famílias na condição de extrema pobreza (com rendimento domiciliar per capita mensal de até R$ 70,00). (IBGE, 2013). A distância entre Ibiapina e Fortaleza, Capital do Estado, é de 338 km,e o acesso rodoviário à cidade se dá pela BR 222 ou pela CE187.

A linha do tempo em que se alicerçam os fatos históricos mais marcantes da vida do município de Ibiapina remete ao século XVI, antes da chegada dos colonizadores portugueses, quando seu território era habitado por nações indígenas (tupis, tabajaras, tupinambás e tapuias). Esses habitantes primitivos tinham contatos e negociavam com os franceses estabelecidos em São Luiz do Maranhão. (CEARÁ, 2013b).

Em 1603, a expedição de Pero Coelho de Souza atravessou a aldeia com o intuito de expulsar os franceses do Maranhão. As tropas portuguesas avançaram na direção do Piauí, guerrearam e foram derrotadas pelos indígenas e franceses. Em 1656, vieram os jesuítas do Maranhão. Nesse período, formou-se o aldeamento que iria formar a cidade de Ibiapina. Até 1741, esta cidade pertenceu à Capitania do Piauí, quando, então, passou à jurisdição do Ceará, mas, até hoje, existe um litígio entre os dois estados sobre as divisas territoriais. (IBGE, 2013).

Do século XVI aos dias atuais, grandes foram as transformações mundiais que repercutiram na tradição e cultura indígena e no próprio cenário da cidade de Ibiapina-CE. Considerando os impactos de tais mudanças, Wisner (1992) afi rma que é necessário adequar a tecnologia ao homem levando em consideração o meio, a cultura, a geografi a, os

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saberes, a singularidade de cada local, a região. É a cultura em que o indivíduo nasce e vive que determina hábitos, atitudes, posição social e sua opinião acerca do mundo. (LUSTOSA, 2014).

A seguir, apresentaremos alguns indicadores que, agregados, delineiam o perfi l dos participantes deste estudo.

O PERFIL DAS ARTESÃS DE IBIAPINA-CE

Os indicadores reunidos neste estudo para traçar o perfi l das artesãs de Ibiapina-CE não ultrapassam os limites de uma noção aproximada da realidade que expressam, na qual cada um desempenha papel determinante para a compreensão do todo.

Sennett (1988) observa que não devemos catalogar comportamentos ou situações, e alerta para o cuidado de não fazermos vista grossa para o fato de que os papéis não são apenas pantomimas ou espetáculos silenciosos nos quais as pessoas exibem mecanicamente os sinais emocionais certos no lugar e em momentos certos.

Apresentar características e traçar o perfi l das artesãs integrantes deste estudo é ta refa que nos remete ao fato de serem os papéis por elas desempenhados, no cotidiano, repletos de crenças, valores, carregados de signifi cados e simbologias. Para além de qualquer catalogação de como um ou outro se comporta ou percebe a realidade, existe a necessidade de identifi car o valor que cada um confere aos resultados práticos da ação do Estado (no caso, o Projeto Artesanato Competitivo) sobre seu trabalho.

Na relação entre o Estado e o artesão existe uma via de mão dupla em que os papéis desempenhados por um e por outro devem convergir para determinar, por um lado, o êxito (ou não) dos objetivos do Projeto Artesanato Competitivo, e, por outro, a compreensão dos participantes no que se refere à infl uência da ação do Estado sobre suas condições objetivas de trabalho e vida. Nessa perspectiva, passamos a descrever os resultados do trabalho de campo cujos indicadores nos permitem sinalizar traços do perfi l dos participantes deste estudo.

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Como destaque, convém retomar aqui a situação vivenciada pelas mulheres que hoje integram o grupo de artesãs participantes deste estudo. O grupo de artesãs de Ibiapina teve início no ano de 2007, quando profi ssionais do CAPS AD buscaram, no trabalho do CRAS, alternativas para a melhoria da qualidade de vida de mulheres que apresentavam diagnóstico de depressão.

Foi então que um profi ssional do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) introduziu o artesanato como terapia ocupacional, e observando o interesse do grupo solicitou à CEART, em 2007, a realização de um curso para capacitar seus integrantes para técnicas de composição de retalho, pintura, crochê, bordado e ponto de cruz.

O sucesso da iniciativa determinou o interesse da CEART, que passou a investir em outras etapas de capacitação, assessoramento técnico, cadastramento das artesãs, encomendas e exposição de peças produzidas pelo grupo na sua loja instalada na Praça Luíza Távora, em Fortaleza-CE.

O gradativo aprimoramento da qualidade das peças produzidas pelo grupo, para além de contribuir com o fomento e a geração de ocupação e renda, disseminou de modo espontâneo a credibilidade de profi ssionais e gestores no trabalho do grupo e foi determinante para que a Prefeitura local tomasse a iniciativa de implantar uma feira mensal para exposição e venda do artesanato produzido.

Além disso, puderam expor e vender seus produtos na FEIRART gerenciada pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS)/Coordenadoria do Artesanato e Economia Solidária - que acontece conforme calendário sazonal favorável à comercialização desses produtos. Esse evento, que ocorre sempre na Praça da CEART, tem grandes dimensões não apenas pela qualidade das peças expostas, mas também pela grande afl uência de consumidores locais e turistas de origem nacional e internacional.

A partir dos elementos apresentados, evidenciamos a importância do artesanato para melhorar a autoestima das artesãs pelo reconhecimento e valorização do trabalho por seus familiares,

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pelos consumidores e pelo poder público, tanto municipal quanto estadual.

A sistematização dos dados obtidos pelas respostas contidas no questionário que serviu de referência para este estudo identifi cou, no que se refere à categoria de gênero, que 100% dos integrantes do grupo são constituídos por mulheres.

Esse resultado se justifi ca tanto pelo histórico que originou sua formação quanto pela tipologia do trabalho que desenvolvem no grupo (composição de retalho, pintura, crochê, bordado, ponto de cruz, atividades essas compreendidas culturalmente como práticas essencialmente femininas).

É interessante salientar que a distinção de papéis atribuídos ao homem e à mulher se reproduziu secularmente no imaginário simbólico de diferentes culturas. No caso brasileiro, mais especifi camente nordestino e cearense, não foi diferente. Mesmo que no mundo do trabalho o preconceito já não se mostre tão visível, pois as competências e funções estão sendo desmitifi cadas no que se refere a questões de gênero, compartilhadas indistintamente entre várias atividades laborais, no caso das práticas artesanais prevalece o costume transmitido ao longo do tempo entre diferentes gerações. Assim, atividades como bordar, fazer crochê e costurar permanecem compreendidas como tarefas de domínio feminino.

A trajetória de vida das artesãs retrata, entre as mais idosas (50% das respondentes), que valores e costumes familiares foram transmitidos e assimilados mais facilmente no passado que nos dias atuais. Observamos, na faixa etária compreendida abaixo de 20 anos e até 30 anos, ser mínima a aprendizagem ou o conhecimento de práticas artesanais herdadas de seus familiares.

Sendo assim, entendemos que optar por reproduzir práticas artesanais deixou de ser um incentivo de avós e mães para seus fi lhos e netos, não somente pelas novas oportunidades de inclusão na escola, na profi ssionalização e no trabalho, mas essencialmente pelas difi culdades de acesso à matéria-prima e aos canais de comercialização dos trabalhos artesanais, o que concorre para a baixa lucratividade.

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Esses fatores, portanto, diminuem a capacidade de sustento fi nanceiro dos que restringem sua vida laboral à produção artesanal.

O Projeto Artesanato Competitivo tem diante de seus objetivos grandes desafi os de fomentar o artesanato como atividade econômica sustentável e de inclusão social, mediante a valorização da identidade cultural cearense, integrando-se à cadeia produtiva do turismo e da cultura e, assim, promover a ampliação das oportunidades de trabalho e geração de renda para os artesãos.

É compreensível que, numa sociedade capitalista, o acesso a tecnologias adequadas, mesmo no que tange ao trabalho artesanal, seja um requisito importante para ampliar e melhorar o nível da capacidade produtiva e do produto.

Assim, uma estratégia de estímulo ao interesse pela produção artesanal consiste no investimento público para fomento do aprimoramento da produção pela via de instruções ao uso de novos desenhos, aquisição de matéria-prima, equipamentos de pequeno porte e materiais permanentes que possibilitem a efetividade no resultado das capacitações de aperfeiçoamento e de criação de novos produtos, sobretudo, no que diz respeito às principais tipologias artesanais, as quais, culturalmente, foram sendo disseminadas nos mais diferentes polos do Estado.

No que tange à situação civil das respondentes, percebe-se que a maioria (75%) é constituída de casadas. A opção solteira (5%) mostrou-se pouco expressiva, e nenhuma delas vivencia a condição de divorciada. Na opção “outros”, representada por 20%, identifi camos as viúvas como maioria.

O estado civil é apenas uma referência convergente para o entendimento da composição familiar de cada uma, o que vai repercutir em outras questões. Um exemplo é sinalizar as possibilidades (ou não) de transmissão intergeracional dos valores ou das habilidades que sedimentam o interesse entre sucessivas gerações pela arte que se delineia na reprodução das peças artesanais ao longo do tempo.

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A composição familiar das artesãs revela certo equilíbrio entre as famílias pequenas (no que se refere à quantidade de fi lhos), e as extensas (aquelas cuja prole se dá entre 4 e 10 fi lhos).

O interesse em quantifi car o número de fi lhos das participantes deste estudo, como já explicitamos, está relacionado à possibilidade de este dado contribuir para identifi carmos a transmissão cultural (ou não) do trabalho artesanal que desenvolvem entre seus fi lhos ou outros integrantes de suas famílias.

A situação observada no que se refere à infl uência do artesanato entre os fi lhos das participantes revela um quadro animador em relação à perspectiva da transferência dos valores culturais entre as gerações. Identifi camos que 30% dos fi lhos entrevistados se interessam pelo trabalho artesanal de suas mães e, mais ainda, que 25% deles colaboram e participam.

No que diz respeito ao nível de escolaridade, observamos entre as integrantes desse grupo de artesãs que todas foram alfabetizadas. Neste quesito temos os seguintes dados: 55% não concluíram o Ensino Fundamental, sendo ainda signifi cativo, embora em menor número, observar que 10% possuem nível superior.

A educação formal é um componente importante para viabilizar a aprendizagem da gestão de todo e qualquer negócio, pois os controles de estoque de matéria-prima, o cálculo dos custos de cada peça produzida e do preço final para a comercialização determinam resultados e acabam por fomentar o incentivo para o controle da qualidade e a vontade de crescer e expandir possibilidades.

Feitas essas considerações sobre alguns traços que caracterizam o perfi l das artesãs, consideraremos os aspectos relacionados ao artesanato. Dentre outros temas, destacamos a cultura artesanal, a capacidade gerencial e o signifi cado do Projeto Artesanato Competitivo para cada uma das artesãs que responderam ao questionário, cujos achados referendam nossa análise.

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A COMPREENSÃO DO GRUPO SOBRE O ARTESANATO

O artesanato desenvolvido no município de Ibiapina segue as características de fi o e tecido, em cuja tipologia se inserem as técnicas de composição/retalho, crochê, pintura em tecido, bordado, ponto de cruz, e tapete de lã. Apesar da variedade de tipologias, a maioria das entrevistadas trabalha com a composição/retalho. Muito embora a atividade artesanal tradicionalmente seja um aprendizado que começa em família, entre as participantes deste estudo observamos grande infl uência do trabalho de monitoria do CRAS como determinante para a prática artesanal no município. Importante destacar que a maioria das participantes fez referência ao aprendizado ou aperfeiçoamento que tiveram com o apoio de tal monitora.

Esse fato coloca em questão a compreensão de que a tradição familiar seria o vetor mais provável de transmissão do conhecimento sobre o fazer artesanal.

Quanto à importância do artesanato para o município de Ibiapina, as respostas ao questionário não seguiram uma linha única de pensamento. Entre aquelas que entendem a importância do artesanato para o desenvolvimento local, convivem harmonicamente opiniões divergentes, e até mesmo aquelas que não se posicionam nem defi nem suas respostas sobre a questão.

Com o intuito principal de sabermos se a atividade artesanal é a única provedora do sustento familiar, questionamos acerca de suas rendas familiares. Com a análise dos dados pudemos perceber que a atividade artesanal não se constitui como exclusiva fonte de renda familiar para todas as entrevistadas, isto é, o trabalho artesanal complementa a renda dessas artesãs.

Entre os comentários, apenas uma integrante do grupo acrescentou ser benefi ciária do Programa Bolsa Família, programa de transferência de renda, fi nanciado com recursos do Governo Federal, destinado às famílias que se situam abaixo da linha da pobreza.

A própria história de formação do grupo (mulheres com histórico de depressão, provenientes do Programa CAPS AD, e posteriormente atendidas pelo CRAS do município) evidencia a falta de interesse

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pela perspectiva da produtividade artesanal no que se refere a lucro. Consideramos que, para essa amostra, a atividade artesanal emergiu em suas vidas muito mais como possibilidade terapêutica do que como alternativa de provimento econômico.

Uma indagação contida no questionário levou as participantes deste estudo a se posicionarem sobre a seguinte questão: Pretende continuar nessa atividade?

Por unanimidade todas disseram que pretendem dar continuidade ao trabalho artesanal que desenvolvem pelos mais diferentes motivos. Dentre eles se destacam: “Porque é bom aprender novas técnicas, para não parar de trabalhar”; ou “Porque é uma atividade que ajuda a passar o tempo”. Enfi m, pelos mais diversos motivos e utilidades, o artesanato é uma prática bem aceita entre as participantes deste estudo.

Estar aberta aos novos aprendizados e conhecimentos é uma característica observada entre as participantes deste estudo. Ao refl etirem sobre a vontade de aprender outra atividade, as respostas foram unânimes. Sobre o porquê desse interesse, as respostas variam desde o simples interesse por aprender até o desafi ador objetivo de ampliar a fonte de renda da família.

Outro questionamento convergiu para a indagação sobre as experiências do grupo de artesãs em outras atividades, para além do artesanato. A maioria respondeu afi rmativamente ter experiência na agricultura. Entre as demais vivências, registramos desde o trabalho como servidora pública (algumas como professora), e outras com experiência do trabalho no comércio.

Feitas as considerações sobre o perfi l das artesãs participantes e do destaque empreendido na relação destas com a prática artesanal, focaremos nas análises acerca da importância (ou não) do Projeto Artesanato Competitivo na dinâmica de sua realidade produtiva.

Retomando a vinculação do Projeto com uma política pública de base estatal, aqui vale lembrar os questionamentos de Prodanov e Freitas (2013) sobre a qualidade das ações institucionais que vêm sendo praticadas junto ao setor de base artesanal, sugerindo a necessidade

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de estudos e pesquisas sobre o setor que considerem sua diversidade e complexidade como aspectos que constituem este contexto produtivo.

Ainda conforme Prodanov e Freitas (2013), as metodologias adotadas para formulação, planejamento e ações de inovação no setor de base artesanal devem ser revistas sempre que necessário e as terminologias utilizadas nas etapas metodológicas devem estar calcadas nos procedimentos e critérios determinados para a atuação coerente em diversos contextos.

Nessa perspectiva, Wisner (1992) infere que as diferenças entre os povos são a essência das difi culdades encontradas pela transferência de tecnologia. No artesanato não há um modelo sistematizado e cientifi camente testado de transferência de tecnologia/inovação que seja aplicável em todas as comunidades de produção artesanal respeitando suas particularidades. A maioria dos grupos artesanais surgiu espontaneamente, através de vocações locais, aproveitando as vantagens territoriais que permitiram estruturas produtivas especializadas, muitas vezes utilizando tecnologia desenvolvida pelos próprios artesãos ou por seus ancestrais.

Destacamos aqui a crítica de Paz (1984) à intervenção governamental de estímulo à produção artesanal. Tal medida é geralmente inspirada por razões comerciais: “As burocracias são inimigas naturais do artesão e cada vez que pretendem orientá-lo deformam sua sensibilidade, mutilam sua imaginação e degradam suas obras.” (PAZ, 1984, p. 24). Assim considerando, o sentido de alerta para os cuidados com as deformidades provocadas pela burocracia governamental no desenvolvimento deste estudo está sendo observada.

Nosso interesse não é negar a dimensão econômica das políticas de desenvolvimento do artesanato, embora compreendamos que uma atividade que preserva o caráter cultural não pode ser tratada com a mesma lógica de outras atividades econômicas, aindaque elarepresente uma atividade geradora de riquezas.

A partir de tais esclarecimentos procuramos compreender a visão das participantes deste estudo sobre a situação do trabalho artesanal quanto à matéria-prima. Das 20 (vinte) participantes, apenas

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07 (sete) afi rmaram ter estoque de matéria-prima; outras 07 (sete) disseram não ter nenhum estoque; 03 (três) afi rmaram ter pouco estoque; e as demais não responderam a esse questionamento.

É nosso interesse identifi car a contribuição (ou não) das ações do Projeto Artesanato Competitivo para a formação de estoque de matéria-prima, considerando que tal investimento representa aspectos signifi cativos para a permanência de todo negócio. As respostas apresentadas convergem para o entendimento de que a maioria diversifi cou a matéria-prima utilizada em seu processo produtivo. Para muitas, o tecido termocolante veio agregar valor às peças, entretanto o grupo demonstra que não aprendeu ainda a importância do gerenciamento de estoque da matéria-prima.

Sobre a situação do trabalho artesanal no que se refere à quantidade de peças produzidas e vendidas mensalmente, e sobre o estoque de produtos acabados fi cou aparente a fragilidade gerencial das artesãs, pois muitas não sabem informar a quantidade de peças produzidas e vendidas mensalmente. Também se mostrou signifi cativo o número daquelas que não têm controle sobre o estoque de peças acabadas.

No que se refere à comercialização, indagamos se seus produtos são expostos à venda na CEART, considerando que se trata de um espaço por excelência para a comercialização artesanal por sua localidade (área nobre da cidade de Fortaleza), além de ser um ponto comercial divulgado pela rede hoteleira, por onde transitam turistas de procedência nacional e internacional. Assim considerando, a minoria afi rmou participar de feiras de exposição e comercialização de seus produtos, mas a maioria afi rmou ter acesso à exposição de suas peças na CEART.

Quando indagadas sobre o valor do capital de giro, observamos que algumas não sabem informar. Esse dado demonstra que não dominam o gerenciamento de estoque de matéria-prima e de produtos acabados, do mesmo modo que desconhecem o valor do seu próprio faturamento mensal. Esse resultado sugere a necessidade de intervenção dos profi ssionais responsáveis pela capacitação gerencial desses artesãos.

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Frente às novas exigências do consumidor emergem novos parâmetros de competitividade. Nessa lógica, os artesãos, por vezes, são forçados a promover mudanças em seus produtos utilizando-se cada vez mais de recursos do design que, nesse contexto de competição, revelam-se fundamentais para o refi namento de processos e produtos, considerando as necessidades de quem produz, comercializa e utiliza.

A prática profi ssional do design no setor de base artesanal aponta para outras realidades e confi rma a existência de uma demanda real para trabalhos nesse segmento. O designer faz a adequação de produtos artesanais ao contexto contemporâneo, considerando os padrões de consumo provocados pelo processo de globalização da economia, mantendo as demandas por produtos com identidade.

Dessa forma, quando as relações entre o designer e o artesão são pactuadas no desenvolvimento do produto, o mercado, que por vezes é inacessível ao artesão, passa a ser um importante canal de promoção de seus artigos. (AGUIAR, 2005).

Questionamos sobre a importância do Projeto para a melhoria da qualidade das peças produzidas pelo grupo, uma vez que o Projeto investe não só no gerenciamento do negócio, mas também contribui para o refi namento da produção artesanal disponibilizando capacitações com instrutores e profi ssionais designer. Sobre esse aspecto, cada uma, à sua maneira, proferiu a importância do Projeto para a melhoria de suas peças, seja no acabamento,sejana embalagem ou, ainda, para a qualidade de seus produtos.

A unanimidade de “SIM” entre as respostas das participantes à pergunta: “A Inclusão no Projeto Artesanato Competitivo melhorou sua vida?”, faz-nos inferir que o Projeto vem apresentando, até então, resultados signifi cativos para a melhoria da qualidade de vida dessas mulheres. Entre suas falas explicativas, identifi camos que o Projeto teria aberto possibilidades para sonhar, aprender, organizar melhor o processo produtivo, enfi m propiciar felicidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem a intenção de apresentarmos conclusões defi nitivas, este estudo orienta a formulação de algumas considerações julgadas

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oportunas para animar outros estudiosos do tema a avançar em novas pesquisas de modo a contribuir para o fortalecimento da atividade artesanal no Estado do Ceará.

Quando decidimos desenvolver este estudo, uma pergunta central orientou sua formulação e desenvolvimento. Interessava-nos compreender como garantir a sobrevivência do artesão com dignidade em uma sociedade marcada pela evolução tecnológica e demais recursos produzidos cotidianamente que transformam valores simbólicos, interferem no estilo de ser, estar e agir no mundo e constroem uma trama para mecanismos de trabalho, produção e consumo, numa permanente desvalorização e negação de tudo que é velho e ultrapassado.

As respostas para tal questionamento foram encontradas nos resultados da pesquisa bibliográfi ca e de campo que empreendemos ao longo deste estudo. Dentre os resultados podemos aqui retomar os postulados históricos em que se assentam a base da cultura do artesanato e, mais recentemente, os postulados e as perspectivas da economia criativa, cujos fundamentos concorrem para nos alertar sobre o poder da criatividade para o enfrentamento das crises do capitalismo nas quais a evolução tecnológica, dentre outros fatores, acaba por produzir o desemprego.

Diante de tal perspectiva, os resultados deste estudo nos permitem inferir, ainda, que para superar seus impactos negativos a criatividade do artesão concorre para atribuir valor não somente monetário, mas essencialmente simbólico aos produtos com vinculação na origem cultural.

Observamos entre as artesãs certa fragilidade no que concerne a aspectos gerenciais tanto no que se refere à produção quanto à comercialização. Algumas desconhecem o valor do próprio capital de giro e outras sequer sabem fazer referência ao faturamento mensal de sua produção e venda. Tal percepção concorre para alertar o poder público e, mais precisamente, a gestão do Projeto Artesanato Competitivo sobre a necessidade de maior atenção e investimento na capacitação gerencial dos artesãos cadastrados no Programa.

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Sobre as fragilidades na administração do fl uxo de estoque e também de matéria-prima e produtos acabados, vale observar o papel não somente da gestão como também do Conselho Cearense do Artesanato em sua função de exercício do controle social do Programa Artesanato Competitivo como um todo.

Pelo exposto, observamos falhas nos mecanismos gerenciais de planejamento, acompanhamento, monitoramento e controle social. Nesse contexto, é importante acreditar que os resultados em destaque neste estudo serão socializados não somente no âmbito da academia, mas principalmente entre os gestores responsáveis pelo Programa Artesanato Competitivo e, consequentemente, entre artesãos que dele participam, oportunizando uma reflexão coletiva sobre seus resultados e alternativas para a superação das fragilidades observadas.

Apelamos aqui para retomar os estudos de Prodanov e Freitas (2013) cujos pressupostos orientam sobre a necessidade de revisão periódica das metodologias adotadas para formulação, planejamento e controle social das ações de base artesanal, sempre que necessário.Enfi m, confi rmamos o pressuposto de que é a partir das lutas cotidianas do artesão pela sobrevivência que se constroem e reconstroem valores culturais, econômicos e sociais, os quais determinam a intervenção governamental na gestão de políticas públicas direcionadas ao fomento do artesanato.

Isso porque o trabalho artesanal adquire contornos diferenciados dependendo das condições concretas em que a vida do artesão se insere. A maneira como agem para adequar a natureza aos seus interesses de sobrevivência infl ui, de modo decisivo, na construção das representações simbólicas que balizam e explicam a realidade.

As artesãs que vivem no município de Ibiapina enfrentam muitas difi culdades, e a experiência vivenciada pelo Projeto Artesanato Competitivo, muito embora não apresente resultados de ganhos monetários essenciais para o sustento das mulheres participantes deste estudo, concorre para auxiliar nas despesas domésticas, servir de terapia ou mesmo propiciar a felicidade para algumas.

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A pesquisa revelou que as ações do Projeto Artesanato Competitivo têm se constituído em um espaço de inserção social e de mercado para as artesãs do município de Ibiapina. As mulheres conseguiram colocar em prática o aprimoramento do fazer artesanal, bem como desfrutam do valor signifi cativoe do sentimento de pertencimento à cidadania que essa parceria provoca, tendo-se em vista ser o trabalho encarado como um dos mais importantes direitos humanos.

Não foi fácil passar da inquietação que nos motivou a pesquisar para a ação de produzir conhecimento sobre nosso objeto de estudo. Todavia, foi essa inquietude que criou todas as alternativas que precisamos encontrar durante esse percurso. Os caminhos percorridos não foram fáceis, porém o aprendizado adquirido supera todas as difi culdades.

Esperamos que este estudo desperte o interesse de outros pesquisadores pela temática, pois com certeza há muito a desvendar e contribuir com as políticas públicas voltadas para a capacitação do artesão e inserção no mercado do artesanato cearense.

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