12
Teologia da Evangelização (6) 3. A SOBERANA GRAÇA DE DEUS: “A doutrina da soberania divina seria grosseiramente mal aplicada se porven- tura a invocássemos de uma maneira tal que viesse a diminuir a urgência, o impulso, a prioridade e o constrangi- mento obrigatório do imperativo evan- gelístico” J.I. Packer. 1 O homem como ser paradoxal 2 que é, tende a nutrir posições diferentes so- bre o mesmo assunto, dependendo das circunstâncias que, amiúde são de caráter passional. Posso, por exemplo, defender a supremacia da lei, até que eu mesmo a tenha quebrado. Do mesmo modo, posso sustentar determinados princípios liberais ou conservadores, desde que a minha família não esteja em jogo, ou que outros in- teresses políticos não sejam afetados. Ou seja: tendemos a ser mais subjetivos do que imaginamos ou estaríamos dispostos a admitir. Lamentavelmente temos de ad- mitir que somos mais dados a interesses do que a princípios. E o pior: o princípio é o meu interesse. Uma doutrina que facilmente é objeto de posicionamentos contraditórios é a sobe- rania de Deus. 3 Gostamos de alardear a nossa liberdade, a nossa capacidade de escolha e persuasão. Quando assim fazemos, falar em soberania de Deus parece diminuir um pouco a nossa autoconfiança e suposta autonomia; portanto, conside- ramos ser melhor deixá-la guardada em alguma gaveta para onde empurramos os papeis que não estão sendo utilizados e não sabemos bem o que fazer com eles. No entanto, quando nos vemos sem recursos, sem perspectivas favoráveis, sem saber o que fazer, podemos, sem talvez nos darmos conta, nos contentar com uma fé sin- gela no cuidado de Deus e, podemos então dizer para nós mesmos: “Deus é sobe- rano, Ele sabe o que faz”; “nada acontece por acaso...”. A bem da verdade, nós mesmos, crentes em Cristo, com certa frequência tendemos a adotar atitude seme- lhante. Calvino capta bem isso ao dizer: “Mesmo os santos precisam sentir-se ameaçados por um total colapso das forças humanas, a fim de aprende- rem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de Deus”. 4 Mas, afinal, Deus é ou não soberano? Parece que esta é uma das doutrinas mais repudiadas pelo homem natural e, ao mesmo tempo, é a doutrina mais consoladora para todos nós que cremos em Cristo Jesus, especialmente nos momentos de afli- ção. 1 J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 26. 2 “O ser humano tende a ser paradoxal” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 123). 3 Pink lamenta: “Hoje, porém, mencionar a soberania de Deus em muitos ambientes, é falar uma língua desconhecida” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19). 4 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.8), p. 22.

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Teologia da Evangelização (6)

3. A SOBERANA GRAÇA DE DEUS:

“A doutrina da soberania divina seria

grosseiramente mal aplicada se porven-

tura a invocássemos de uma maneira

tal que viesse a diminuir a urgência, o

impulso, a prioridade e o constrangi-

mento obrigatório do imperativo evan-

gelístico” – J.I. Packer.1

O homem como ser paradoxal2 que é, tende a nutrir posições diferentes so-

bre o mesmo assunto, dependendo das circunstâncias que, amiúde são de caráter passional. Posso, por exemplo, defender a supremacia da lei, até que eu mesmo a tenha quebrado. Do mesmo modo, posso sustentar determinados princípios liberais ou conservadores, desde que a minha família não esteja em jogo, ou que outros in-teresses políticos não sejam afetados. Ou seja: tendemos a ser mais subjetivos do que imaginamos ou estaríamos dispostos a admitir. Lamentavelmente temos de ad-mitir que somos mais dados a interesses do que a princípios. E o pior: o princípio é o meu interesse. Uma doutrina que facilmente é objeto de posicionamentos contraditórios é a sobe-

rania de Deus.3 Gostamos de alardear a nossa liberdade, a nossa capacidade de

escolha e persuasão. Quando assim fazemos, falar em soberania de Deus parece diminuir um pouco a nossa autoconfiança e suposta autonomia; portanto, conside-ramos ser melhor deixá-la guardada em alguma gaveta para onde empurramos os papeis que não estão sendo utilizados e não sabemos bem o que fazer com eles. No entanto, quando nos vemos sem recursos, sem perspectivas favoráveis, sem saber o que fazer, podemos, sem talvez nos darmos conta, nos contentar com uma fé sin-gela no cuidado de Deus e, podemos então dizer para nós mesmos: “Deus é sobe-rano, Ele sabe o que faz”; “nada acontece por acaso...”. A bem da verdade, nós mesmos, crentes em Cristo, com certa frequência tendemos a adotar atitude seme-

lhante. Calvino capta bem isso ao dizer: “Mesmo os santos precisam sentir-se

ameaçados por um total colapso das forças humanas, a fim de aprende-

rem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de Deus”.4

Mas, afinal, Deus é ou não soberano? Parece que esta é uma das doutrinas mais repudiadas pelo homem natural e, ao mesmo tempo, é a doutrina mais consoladora para todos nós que cremos em Cristo Jesus, especialmente nos momentos de afli-ção.

1 J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 26.

2 “O ser humano tende a ser paradoxal” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento,

São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 123). 3 Pink lamenta: “Hoje, porém, mencionar a soberania de Deus em muitos ambientes, é falar

uma língua desconhecida” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19). 4 João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.8), p. 22.

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Uma das grandes dificuldades dos homens em todos os tempos é deixar Deus ser

Deus;5 recebê-lo tal qual Ele Se revela, não cedendo à tentação de construí-lo den-

tro de nossos pressupostos culturais ou mesmo do nosso gosto pessoal.6 Estamos

dispostos a fabricar nossos deuses para que estes possam cobrir as brechas de nossa compreensão. Deste modo, quando consigo dominar a realidade, já não pre-ciso de Deus; quando não, invoco este meu deus para justificar as minhas crenças, expectativas e, ao mesmo tempo, a minha falta de fé. Dentro desta perspectiva, on-

de há ciência não precisamos de Deus;7 onde reina a ignorância há um espaço para

um ser transcendente, destituído de sua glória, é verdade, mas, assim mesmo um “ser superior”. Aqui há o esquecimento proposital, de que o ateísmo é também uma

questão de fé.8

No Antigo Testamento os judeus insensíveis aos seus próprios pecados, tomaram o aparente silêncio de Deus como uma aprovação tácita de seus erros, projetando em Deus o seu comportamento. Considerando que eles mesmos procediam deste modo, pensavam que Deus fosse igual a eles. No entanto, Deus, no momento pró-prio, exporia diante deles os seus delitos “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e porei tudo à tua vista” (Sl 50.21).

Calvino diz que o homem pretende usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz de si

mesmo um deus e virtualmente se adora, quando atribui a seu próprio poder

o que Deus declara pertencer-lhe exclusivamente”.9

De fato, os homens estão dispostos a reconhecer espontaneamente diversas vir-tudes em Deus: o seu amor, sua graça, bondade, perdão, tolerância, provisão, etc.

Agora, a sua soberania, jamais.10

Pink (1886-1952) entende que “negar a sobera-

5“Dizer que Deus é soberano é declarar que Deus é Deus” (A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 19).

6Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São

Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 32-35. 7Este otimismo secular foi sustentado primariamente por Nietzsche. Veja-se: Alister E. McGrath, Teo-

logia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publica-ções, 2005, p. 331. 8“O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo” (Alister McGrath, O Deus Des-

conhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 23). “Portanto, os ho-

mens que rejeitam ou ignoram a Deus o fazem não porque a ciência ou a razão requeira

que o façam, mas pura e simplesmente porque querem fazê-lo” (Henry H. Morris, The Bible has the Answer, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1971, p. 16. Apud D. James Kennedy,

Por Que Creio, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 33). “.... não vejo como é possível não acreditar

em Deus e considerar que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar fir-

memente na inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo” (Umberto Eco, In: Umberto Eco; Carlo Maria Martini, Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85). 9João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 100.1-3), p. 549. Veja-se

também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Caps. 1-3, p. 11-14. 10

Kennedy diz precisamente isso: “O motivo por que tantas pessoas se opõem a essa doutrina

(predestinação) é que elas querem um Deus que seja qualquer coisa, menos Deus. Talvez

permitam-lhe ser algum psiquiatra cósmico, um pastor prestativo, um líder, um mestre, qual-

quer coisa, talvez... contanto que Ele não seja Deus. E isso por uma razão muito simples... elas

mesmas querem ser Deus. Essa sempre foi a essência do pecado – o fato que o homem pre-

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nia de Deus é entrar em um caminho que, seguindo até à sua conclusão ló-

gica, leva a manifesto ateísmo”.11

A nossa dificuldade está em reconhecer a

Deus como o Senhor que reina.12

A Palavra, por sua vez, nos desafia a aprender

com Ela a respeito de Deus. O nosso Deus, entre tantas perfeições, é o Deus sobe-

rano; sem este atributo, Deus não seria Deus: “Verdadeiramente reconhecer a

soberania de Deus é, portanto, contemplar o próprio Deus soberano”.13

No

entanto, Jó demonstra a dificuldade de nossa compreensão, ao indagar: “Eis que is-to são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?” (Jó 26.14). Mas, o fato que faz par-te amplamente da experiência cristã, é que somente aquele que confia intensamente

na soberania de Deus poderá encontrar a paz em meio as vicissitudes da vida.14

Estudemos este ponto doutrinário de tão grande relevância, como pressuposto da evangelização.

A) A LIBERDADE DE DEUS E DO SEU PODER:

Uma das doutrinas fundamentais de toda Escritura Sagrada é a Sobera-nia de Deus. "Creio em Deus Pai Todo-Poderoso...", esta tem sido a declaração feita pelos cristãos desde o século II, por meio do Credo Apostólico. A Igreja, amparada nas Escrituras, tem afirmado a sua fé no Deus "Todo-Poderoso", Senhor de todas as

coisas e, que ao mesmo tempo, é o nosso Pai Bondoso.15

Um dos aspectos fundamentais da soberania é a independência. Quando a nossa independência depende de algo alheio ao nosso controle, a nossa suposta capaci-dade de decidir livremente está ameaçada ou sofre de limitações que podem ser bastante comprometedoras. Na realidade, somente em Deus há a autonomia total e

absoluta. Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: "Deus é independente de

tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quando Ele

tende ser Deus” (James Kennedy, Verdades que Transformam, São Paulo: Editora Fiel, 1981, p. 31). 11

A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 21. Em outro lugar: “Os idólatras

do lado de fora da cristandade fazem „deuses‟ de madeira e de pedra, enquanto que os

milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas

mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa possível se-

não a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus” (A.W. Pink, Os Atributos de

Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 28). “Defender a crença num

„poder do alto‟ nebuloso é balançar entre o ateísmo e um cristianismo total com suas exi-

gências pessoais” (R.C. Sproul, Razão para Crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 48). 12

Ver o sermão de Spurgeon sobre Mt 28.15 citado por Pink. A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 32-

33. 13

A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 138. 14

Veja-se: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 30. 15

Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Paracletos, 2002.

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diz: 'Eu farei', o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e Sua vonta-

de, não a vontade do homem, será feita".16

Deus Se apresenta nas Escrituras como de fato é, o Deus Todo-Poderoso (Onipo-

tente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme a Sua vontade (Sl

115.3; 135.6; Is 46.10; Dn 4.35; Ef 1.11);17

entretanto, Deus também Se mostra coe-

rente com as demais de Suas perfeições; ou seja, Deus exercita o Seu Poder em

harmonia com todas as perfeições de Sua natureza (2Tm 2.13);18

a Sua vontade é

eticamente determinada. O poder de Deus se harmoniza perfeitamente com a Sua

vontade.19

A soberania de Deus se manifesta no fato dEle poder fazer tudo o que

faz (poder ordenado) e mesmo aquilo que não realiza, visto que não determinou fa-

zê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.20

E o poder ordenado delimita o poder absoluto pela própria decisão restritiva de Deus: quando Deus decide fazer o que faz, delimitou a sua ação de forma que não mais pode fazer o que não determinou fazer.

Deus exerce o Seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da provi-

dência. Aliás, as obras da Providência consistem na execução temporal dos decre-

tos eternos de Deus.21

Contudo, o que Deus realiza não serve de limites para o Seu poder. “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverte João Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas, não da fé de Abraão (Mt 3.9). Contudo, Deus não fez isso. Por quê? Simples: porque não determinou. Entre tantos outros exemplos, podemos citar um que consiste numa grandiosa demonstração de fé e co-ragem resultantes da percepção correta do poder e da vontade de Deus. Vejamos o contexto: Nabucodonosor rei da Babilônia havia levado cativa parte do povo de Judá para a Babilônia (605 a.C.). Entre os exilados estava o jovem Daniel e seus três a-migos. Eles se destacaram diante do rei por sua fidelidade a Deus e pelo fato de Daniel ter interpretado um sonho do rei, conforme a sabedoria concedida por Deus

16

C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,

1992, p. 42-43. 17

“No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SE-

NHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “... O meu conselho permanecerá de pé, farei toda da minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). 18

“Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm

2.13). 19

“Deus tem poder para fazer tudo quanto Ele queira; e com certeza a pessoa que tenta

separar o poder de Deus de Sua vontade, ou retratá-lo como incapaz de fazer o que Ele

queira, o que o tal faz é simplesmente tentar rasgá-lo em pedaços” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 78.18), p. 212). 20

Ver: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book

House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), Vol. 2, p. 12. 21

No Catecismo Maior de Westminster (1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus os seus

decretos?”. Responde: “Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providên-

cia, segundo a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho da Sua vontade” Veja-se também: Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, III.4.9.

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(Dn 1.17). O rei que tão rapidamente reconhecera a soberania de Deus (Dn 2.47), logo se esquece disso e constroi – certamente também com propósito religioso-

político22

–, um obelisco (que era a sua imagem ou de algum deus babilônio) de ou-

ro com cerca 30 metros de altura e três de largura, promovendo ostentosa consa-gração – inclusive com música bem cuidada –, acompanhada de uma ameaça real para aqueles que se negassem a adorar àquela imagem (Dn 3.1-7). Acontece que a promoção de Daniel e de seus amigos – simples exilados –, gerou o ciúme de outros

líderes23

que, ainda que não ousassem desafiar a Daniel, preparam uma armadilha

para Hananias, Misael e Azarias, sem dúvida para atingir a Daniel e enfraquecer o seu poder. Eles dizem ao rei que aqueles jovens judeus não adoravam, conforme o decreto real ao deus imperial (Dn 3.8-12). O rei então os chama e lhes faz a pergun-ta, mostrando-se profundamente arrogante; porém, conferindo-lhes assim, a oportu-nidade de retratação; o que de fato seria impossível. “Falou Nabucodonosor e lhes disse: É verdade, ó Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que vós não servis a meus deuses, nem adorais a imagem de ouro que levantei? Agora, pois, estai dispostos e, quando ouvirdes o som da trombeta, do pífaro, da cítara, da harpa, do saltério, da gaita de foles, prostrai-vos e adorai a imagem que fiz; porém, se não a adorardes, sereis, no mesmo instante, lançados na fornalha de fogo ardente. E quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos? Responderam Sadraque, Mesaque e Abe-de-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder. Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.14-18).

Sadraque, Mesaque e Abede-Nego24

não sabiam se sobreviveriam à condenação do rei, no entanto, tinham certeza de que Deus Se assim O quisesse (poder ordena-

do), nada nem ninguém poderia impedir-lhe (poder absoluto). “Os jovens não têm

necessidade de um milagre para acreditar na onipotência divina, ao contrá-

rio dos pagãos. Deus pode libertar do fogo: se não o faz, alimenta outros pro-

jetos aos quais é justo abandonar-se com extrema confiança”.25

Ou seja: Es-

tes jovens conheciam o seu Deus de forma que sabiam que Ele tinha poder absoluto para livrá-los; contudo, o que eles não poderiam fazer, e de fato não fizeram, era de-

clarar levianamente que Deus os livraria.26

“[Deus] é poderoso para nos salvar se

22

“A estátua (...) não foi um ídolo senão um símbolo do glorioso poder de Babilônia. Sem

embargo, se mandou que os homens a adorassem. Nesse instante o poder da Babilônia se

converteu em ídolo” (S.G. De Graaf, El Pueblo de la Promesa, Grand Rapids, Michigan: Subomisi-on Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1981, Vol. II, p. 372). 23

Vejam-se: João Calvino, Daniel, São Paulo: Edições Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.8-12), p. 197;

Joyce G. Baldwin, Daniel: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1983, (Dn 3.8), p. 110. 24

Que tiveram os seus nomes mudados: “Entre eles, se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hana-

nias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessa-zar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego” (Dn 1.6-7). 25

B. Marconcini, Daniel: Um povo perseguido procura as fontes da esperança, São Paulo: Paulinas,

1984, p. 30. 26

“Ao ler esta história não temos de chegar à conclusão de que Deus sempre livra a seus fi-

lhos como livrou a aqueles três. Deus nem sempre nos concede livramentos tão dramáticos.

(...) A salvação eterna é segura; a liberação do forno de fogo somente foi um sinal dessa

salvação” (S.G. De Graaf, El Pueblo de la Promesa, Vol. II, p. 372).

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assim quiser”.27

Daqui tiramos um princípio de suma importância: Deus não satisfaz

necessariamente as nossas expectativas. Ele cumpre sempre as Suas promessas, não aquilo que imaginamos que Ele vá fazer. Precisamos aprender a confiar em Deus e nas suas promessas, no entanto, devemos também aprender a não confun-dir os nossos anseios com o propósito de Deus, ainda que aqueles sejam conside-

rados por nós santos e justos. Calvino conclui: “Sempre que for oportuno, Deus

usará Seu poder e nos salvará; contudo, se Ele nos levar à morte, decidamos

em nossos corações que não nos há nada melhor do que morrermos, e que

é prejudicial o prolongamento de nossas vidas”.28

Eles demonstraram também que a acusação feita era parcialmente verdadeira,

eles não serviriam nem adorariam a deuses estranhos, que nada são: “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.17-18/Dn 3.12). Eles sabiam que Deus age como determina agir, tendo plenos poderes para levar adiante a Sua determinação (Sl 115.3).

Deus por intermédio de Isaías, falando a respeito da futura destruição da babilô-

nia, diz: “.... O meu conselho permanecerá de pé, farei toda da minha vontade” (Is 46.10). Deus salvou os Seus servos e, o próprio rei pagão Nabucodonosor, teve de admi-tir: “.... não há outro Deus que possa livrar como este” (Dn 3.29). Ele tem total domínio sobre o Seu poder, estando este sob o Seu controle, caso

contrário, Deus deixaria de ser livre. “Ele tem poder sobre o seu poder”.29

Assim,

o poder de Deus é essencialmente harmônico e compatível com todo o Seu Ser. Por isso, a Bíblia declara que Deus não pode MENTIR (Nm 23.19; 1Sm 15.29; Tt 1.2; Hb

6.18);30

NEGAR-SE (2Tm 2.13);31

MUDAR (Tg 1.17);32

PECAR (Tg 1.13).33

Estu-

demos agora, alguns aspectos do Soberano Poder de Deus.

27

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Edições Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.16-18), p.

206. 28

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, Vol. 1, (Dn 3.23-25), p. 216. 29

Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2003, Vol. 1, p. 428. 30

“Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura,

tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa“ (1Sm 15.29). “Na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos” (Tt 1.2). “Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança propos-ta” (Hb 6.18). 31

“Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm

2.13). 32

“Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não po-

de existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). 33

“Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal

e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13).

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O Poder de Deus é soberanamente livre. Deus não tem primariamente compro-missos com terceiros; em outras palavras, Deus é soberano em Si mesmo, a onipo-tência faz parte da sua essência, por isso para Ele não há impossíveis; apesar de

qualquer oposição, Ele executa o Seu plano;34

tudo o que Ele deseja, pode realizar

(Mt 19.26; Jó 23.1335

).36

No entanto, Deus não precisa exercitar o Seu poder para

ser o que é. 1) Liberdade de Existência: Poder de Existência: Os homens, por mais poderosos que sejam, na realidade, estão pode-rosos em decorrência de alguma posição que ocupam, das riquezas e/ou prestígio que possuem, do sucesso de suas realizações ou até mesmo devido à proximidade com pessoas influentes que, por sua vez, se encaixam em alguma das colocações

acima.37

Entretanto, quando a Bíblia fala do poder soberano de Deus, ela se refere

não a um estado determinado por fatores externos, tais como dinheiro, fama, prestí-gio, etc., mas sim, à Sua própria natureza. Deus não deriva o Seu poder de nada a-lém de Si mesmo. Deus não simplesmente está poderoso: Ele é o próprio Poder. Por isso, se manifesta poderosamente: "Uma vez falou Deus, duas vezes ouvi isto: Que o poder pertence a Deus” (Sl 62.11). A Confissão de Fé de Westminster (1647) resume:

“Deus tem em si mesmo, e de si mesmo, toda a vida, glória, bondade e

bem-aventurança. Ele é todo suficiente em si e para si, pois não precisa

das criaturas que trouxe à existência, não deriva delas glória alguma, mas

somente manifesta a sua glória nelas, por elas, para elas e sobre elas. Ele é

a única origem de todo o ser; dele, por ele e para ele são todas as coisas

e sobre elas tem ele soberano domínio para fazer com elas, para elas e

sobre elas tudo quanto quiser” (II.2) Deus é tão eterno quanto o Seu poder; Ele sempre foi e será o que é, indepen-dentemente de qualquer elemento externo a Ele. Deus existe eternamente por Si

próprio.38

Por isso que a Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte

34

Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-

512. 35

“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é pos-

sível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13). 36

Stott coloca nestes termos: “.... A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre

para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira” (John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58). 37

T. Hobbes, O Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIV), 1974, I.x., p. 57ss, fala

sobre algumas formas de poder humano. 38

Veja-se uma boa discussão sobre isso em R.C. Sproul, Razão para Crer, São Paulo: Mundo Cris-

tão, 1986, p. 80-83.

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apenas do fato consumado de que Deus existe, manifestando o Seu poder em Seus atos criativos (Gn 1.1).

"O poder de Deus, diz Spurgeon, é como Ele mesmo, auto-existente, auto-

sustentado. O mais poderoso dos homens não pode acrescentar sequer uma

sombra de poder ao Onipotente. Ele não se firma sobre nenhum trono refor-

çado; nem se apóia em nenhum braço ajudador. Sua corte não é mantida

por Seus cortesãos, nem toma Ele emprestado das Suas criaturas o Seu es-

plendor. Ele próprio é a grande fonte central e o originador de toda energi-

a"39

(Vejam-se: Ex 3.14; At 17.25; 1Tm 6.15,16).

2) Liberdade de Decisão: Poder de Determinação: Pelo fato de Deus ser Todo-Poderoso, Ele pode determinar livremente

as Suas ações, o que de fato faz, manifestando tal poder nos Seus decretos.40

Deus

eternamente tem diante de Si uma infinidade de possibilidades de “decisões” sobre

todas as coisas; entretanto, Ele “decidiu”41

fazer do modo como fez por Seus pró-

prios motivos, sem que haja a possibilidade de influência de ninguém, nem de anjos, nem de homens, visto que nenhum deles fora ainda criado e, também, porque Deus não necessita de conselhos (Is 40.13,14; Rm 11.33-36). O plano de Deus é sempre o melhor, porque foi Ele Quem sábia e livremente O escolheu! 3) Liberdade de Execução: Poder Executivo: Deus executa o Seu plano por intermédio do Seu poder, conforme a

Sua vontade (Mt 8.2; Jr 32.17).42

Não podemos marcar hora e lugar para Deus fazer

isto ou aquilo. Deus opera como e quando quer, dentro de Suas próprias delibera-ções. Deus age sempre conforme o Seu Decreto, não dependendo de nenhum meio externo para realizá-lo, a menos que Ele assim O determine. Ou seja; ontologica-mente Deus não precisa de nada fora de Si mesmo; Ele se basta a Si. Deus não

precisa de meios para executar o que quer. “Esta simples ideia da onipotência

de Deus, de que Ele pode fazer sem esforço, mediante volição, tudo o que

quer, é a ideia de poder mais elevada e mais claramente apresentada nas

Escrituras”.43

Contudo, por graça, Ele se agencia também por intermédio das cau-

sas externas para concretizar o Seu propósito. Por exemplo: Deus poderia, se qui-sesse, salvar a todos os homens independentemente da Palavra (Bíblia) e da fé em Cristo; entretanto, Ele assim não faz; esta não é a Sua forma ordinária de agir por-

39

C.H. Spurgeon, Apud A.W. Pink, Os Atributos de Deus, 1985, p. 48. 40

Veja-se: Confissão de Westminster (1647), Capítulo III. 41

Reconheço que a palavra decisão não é a melhor, pois, pressupõe a idéia de algo anterior à deci-

são; no entanto, não disponho de outra melhor. A ideia é que eternamente Deus sempre teve diante de Si as escolhas e eternamente as fez livre e soberanamente. 42

“E eis que um leproso, tendo-se aproximado, adorou-o, dizendo: Senhor, se quiseres, podes purifi-

car-me” (Mt 8.2). “Ah! SENHOR Deus, eis que fizeste os céus e a terra com o teu grande poder e com o teu braço estendido; coisa alguma te é demasiadamente maravilhosa” (Jr 32.17). 43

Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 307.

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que sábia e livremente estabeleceu o critério de salvação, que é pela graça, sempre pela graça, que opera mediante a fé por meio da Palavra (Rm 10.17; Ef 2.8). Deus

sempre age de forma compatível com a sua perfeita justiça.44

Jesus Cristo se encar-

nou a fim de que Deus pudesse ser justo, e ao mesmo tempo o justificador daqueles

que confiam em Jesus para salvação (Rm 3.26);45

portanto, para nós que cremos,

Ele se tornou justiça, santificação e redenção (1Co 1.30).46

Deste modo, sem a gra-

ça de Deus, amparada no sacrifício de Cristo,47

ninguém será salvo!.

Deus tem poder para executar toda a Sua deliberação.48

Ele é o Todo-Poderoso

(Gn 17.1)49

e nenhum dos Seus planos pode ser frustrado (Jó 42.2).50

Ele determi-

nando, quem o impedirá?. A Palavra de Deus é poderosa no cumprimento do que

Deus Se propôs,51

porque provém do Deus onipotente: “Jurou o SENHOR dos Exér-

citos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e, como determinei, assim se efetua-rá. Quebrantarei a Assíria na minha terra e nas minhas montanhas a pisarei, para que o seu jugo se aparte de Israel, e a sua carga se desvie dos ombros dele. Este é o desígnio que se formou concernente a toda a terra; e esta é a mão que está es-tendida sobre todas as nações. Porque o SENHOR dos Exércitos o determinou; quem, pois, o invalidará? A sua mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?” (Is 14.24-27).

44

Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 36.5), p. 128. 45

“Tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o

justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). 46

“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e

santificação, e redenção” (1Co 1.30). 47

“Devemos buscar refúgio na graciosa promessa da misericórdia que nos é oferecida em

Cristo, para que saibamos com certeza que somos considerados justos aos olhos de Deus”

(João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.4), p. 131). “A maior

desonra que alguém poderia lançar sobre Seu nome é a de contestar Sua justiça” (João Cal-

vino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.21), p. 417). “Deus, que é justo, pode perdoar pecado

porque Ele já puniu o pecado na Pessoa de Seu unigênito Filho. (...) Deus proclama Sua e-

terna justiça e ainda pode perdoar os pecados daqueles que crêem em Jesus – eis uma ter-

ribilíssima, uma profundíssima declaração” (D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 420). (Vejam-se também: Confissão de Westminster, (1647), VIII.1,5,8; Catecismo Maior de Westminster, Perguntas: 36,37 e 59; J. Calvino, As Institutas, II.17.1ss.). 48

“O poder de Deus é a sua capacidade de fazer aquilo que deseja e determina que a-

conteça, seja na área física, moral ou espiritual. É a capacidade de ação onipotente que

esteja de acordo com a Sua vontade” (Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus, São Paulo: E-ditora Cultura Cristã, 1999, p. 384). 49

“Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu

sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17.1). 50

“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). 51

“Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me a-

praz e prosperará naquilo para que a designei” (Is 55.11).

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4) Liberdade de Limitação: Poder Auto-Limitante: Algumas pessoas ficam desconfiadamente impressionadas pelo fato de falarmos de Deus, que é Todo-Poderoso, como sendo isto ou aquilo, fazendo e não fazendo, podendo e não podendo. O raciocínio de tais pessoas, que a priori pode parecer lógico, é o seguinte: Se Deus é soberano, Livre e Todo-Poderoso, Ele pode

muito bem, conforme a Sua vontade, mudar "as regras do jogo",52

modificando as

leis, Seus princípios de ação, Seus critérios; enfim, alterar aquilo que Ele mesmo re-velou e fez registrar na Sua Palavra. Pois bem; se este poder pertencesse a um ho-mem, deveríamos temer. A História tem demonstrado que o pensamento do Lorde Acton (1834-1902) é verdadeiro em muitos casos, visto que, amiúde, o poder que o-riginalmente faz para da nossa imagem e semelhança divinas, mal utilizado, tende a

corromper.53

Afinal, Deus poderia fazer tudo isto ou não?! Deus estaria sujeito à corrupção re-sultante do mau uso do poder? Retardemos um pouco mais a resposta. Geralmente quem raciocina da forma apresentada acima tem em mente a ação do homem como modelo – cometendo o mesmo equívoco de muitos gregos na Anti-guidade –, tomando o homem como parâmetro para uma comparação, como se o

"homem fosse a medida de todas as coisas".54

Este tipo de raciocínio encontra

alento em Thomas Hobbes (1588-1679), que entendia que "o soberano de uma

República, seja ele uma assembléia ou um homem, não está absolutamente

sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode,

quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomo-

dam e fazendo novas".55

De fato, apesar desta atitude não ser apreciável em si,

ela ocorre com frequência na esfera humana. Respondo agora: Entretanto, com Deus é diferente; os homens, são tão fracos em suas condições de poderosos que não conseguem controlar os seus ímpetos, por isso, agem por paixões das mais variadas, tais como: preconceito, vaidade, ódio, in-teresses, etc. Deus, no entanto, é tão poderoso que estabelece limites para Si mes-mo! Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não pretendemos estabelecer limi-

52

Atitude muito comum nas crianças, que quando estão perdendo o jogo, formam uma nova regra pa-

ra se beneficiar, dizendo que o que antes não podia "agora pode". Diga-se de passagem, que esta atitude infelizmente não caracteriza somente as crianças; muitas vezes nós adultos quando estamos investidos de alguma autoridade, somos com frequência – com uma imaturidade maldosa – "levados" a mudar as normas e as leis, obedecendo a casuísmos que, "coincidentemente", nos beneficiam. 53

A frase completa é a seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe

de modo absoluto. Os grandes homens são quase sempre homens maus” (Lord Acton, Ensai-os e Estudos Históricos). 54

O sofista grego Protágoras (c. 480-410 a.C.) afirmara: "O homem é a medida de todas as coi-

sas, da existência das que existem e da não existência das que não existem" (Apud Platão, Teeteto, 152a e Aristóteles, Metafísica, XI, 6. 1062). O Humanismo Renascentista tomou este dito como lema na sua "virada antropológica" (Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Con-temporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 65-69). 55

T. Hobbes, Apud G. Lebrun, O Que é Poder?, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 28. Veja-se

também, T. Hobbes, O Leviatã, II.xviii, p. 111ss.

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tes para Deus, mas sim, reconhecer os próprios limites ou critérios que Ele declarou a respeito de Si mesmo em Sua relação consigo e com o universo. Estes critérios são decorrentes das Suas perfeições, pois, se Deus é perfeitamente poderoso, é também perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso, santo. Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições do Seu ser e nos deu a conhecer tais perfeições a fim de que pudéssemos nEle confiar e as Suas virtudes proclamar (Ml 3.6; 1Pe 2.9,10). O poder de Deus está sob o controle de Sua sábia e

santa vontade, "Deus pode fazer tudo o que Ele deseja, porém Ele não deseja

fazer tudo o que pode"56

(Ex 3.14; Nm 23.19; 1Sm 15.29; At 4.12; 2Tm 2.13; Hb

6.18; Tg 1.13,17).57

"Deus é lei para Si próprio, de modo que tudo quanto Ele

faz é justo".58

O poder absoluto de Deus não é incoerente com a Sua essência. A

vontade de Deus é santa. Não há propósitos e atitudes contraditórios em Deus. O soberano poder de Deus somente é limitado pelo absurdo ou pelo autocontraditório

e por ações imorais.59

“Deus é o padrão para a moralidade humana, assim Ele

não pode ser menos que perfeito em Sua santidade, bondade, e retidão”.60

Portanto, Ele não pode realizar coisas auto-excludentes em si mesmas: não pode deixar de ser Deus, não pode ser diferente de Si mesmo, fazer um círculo quadrado. O Seu poder é executado em completa harmonia com a Sua perfeita e gloriosa dig-nidade, enfim, com o seu caráter sábio e santo. A perfeição da natureza de Deus

permeia todas as Suas obras. “Deus age consistentemente consigo mesmo, e

56

A.H. Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, Pa.: Judson Press, 1993, p. 287. Do mes-

mo modo: R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 21. 57

“Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU

me enviou a vós outros” (Ex 3.14). “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, pa-ra que se arrependa“ (1Sm 15.29). “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). “Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). “Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alen-to tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta” (Hb 6.18). “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13). “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). 58

A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 34. Em outro livro, o mesmo autor escreve: "Afirmamos que

Deus não está sujeito a nenhuma regra ou lei fora da sua própria vontade e natureza e que

Deus é a sua própria lei, não tendo qualquer obrigação de prestar contas dos seus propósi-

tos a quem quer que seja" (A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 21). 59

Vejam-se: William G.T. Shedd, Dogmatic Theology, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing

House, (s.d.), (Reprinted), Vol. 1, p. 359-360; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 83; J.I. Packer, Teo-logia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 34; Augustus H. Strong, Teologia Sistemá-tica, São Paulo: Hagnos Editora, 2003, Vol. 1, p. 428; Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ./São Paulo: Editora Vozes/Federação Agostiniana Brasileira, 1990, Vol. I, V.10. p. 204-205; John M. Frame, The Doctrine of God, Phillipsburg, NJ.: P & R Publishing, 2002, p. 518-521; Wayne Gru-dem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 160; Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 231; He-ber Carlos de Campos, O Ser de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 386-389; Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 332-336; C.S. Lewis, O Problema do Sofrimento, 2ª ed., São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 19-26. 60

John M. Frame, The Doctrine of God, p. 519.

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jamais poderá desviar-se do que Ele disser”.61

Deste modo, as Suas promessas

sempre serão cumpridas visto que Ele é poderoso para cumprir tudo o que promete.

Por Deus ser fiel, justo e poderoso, o que Ele promete, cumprirá.62

“Seja o que for

que Deus tenha que fazer, inquestionavelmente o fará, se Ele o tiver prome-

tido”.63

Este fato nos enche de alegre confiança em Deus. H. Bavinck (1854-1921) resu-me bem este ponto, dizendo:

"A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua

bondade e todos os seus atributos. E é por essa razão que o coração e a

mente do homem podem descansar nessa vontade, porque é a vontade,

não da sina cega, nem da energia obscura da natureza, mas de um Deus

onipotente e de um Pai misericordioso. Sua soberania é uma soberania de

ilimitado poder, porém é também uma soberania de sabedoria e graça.

Ele é Rei e Pai ao mesmo tempo".64

São Paulo, 6/7 de fevereiro de 2011. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

61

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.11), p. 581. 62

Ver: J.I. Packer, Teologia Concisa, p. 34. 63

João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 3.20-21), p. 106. 64

Herman Bavinck, The Doctrine of God, 2ª ed. Grand Rapids, Michigan: W. M. Eerdmans Publishing

Co., 1955, p. 235.